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2008 35
Resumo:
A
obra de Milan Kundera, em seu conjunto, é marcada por uma profun-
da desconfiança nas representações harmônicas e totalizantes da reali
dade. Tudo o que busca ocultar contradições e imperfeições humanas
é tratado com repulsa nos romances do autor, seja por meio das personagens e
situações apresentadas, seja nas intervenções do narrador que, em seus roman-
ces, ao mesmo tempo em que narra, assume uma postura reflexiva diante do
enredo e das figuras humanas que nele se envolvem1.
1
A narrativa de Kundera apresenta, muitas vezes, uma “voz autoral”. Em outras palavras, o
próprio autor insurge no texto e, de forma metalingüística, tece suas considerações sobre o
romance que escreve e reflete, a partir do enredo, sobre questões existenciais e elementos de
sua própria biografia.
Tavares, Betzaida Mata Machado
36 O riso dos anjos e o riso dos demônios: considerações sobre o humor na obra de Milan Kundera
2
KUNDERA, Milan. Os testamentos traídos: ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p. 5.
3
Idem. p. 7.
4
Idem. p. 30.
Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura e humor, no 37, p. 35-49, 2º sem. 2008 37
Essa imagem rabelaisiana, que põe lado a lado Deus e a merda, rebaixan-
do o que pertence ao plano do sublime, acaba por expor aquilo que se preten-
de esconder, uma vez que qualquer idéia de perfeição precisa encobrir e negar
aquilo que destoa do modelo harmônico para que se sustente:
5
BERGSON, Henri. O riso – ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins
Fontes, 2001. p. 21.
6
KUNDERA, M. A insustentável leveza do ser. São Paulo:Cia das Letras, 1999. p. 278.
Tavares, Betzaida Mata Machado
38 O riso dos anjos e o riso dos demônios: considerações sobre o humor na obra de Milan Kundera
Segue-se que o acordo categórico com o ser tem por ideal estético
um mundo onde a merda é negada e onde cada um se compor-
ta como se ela não existisse. Esse ideal estético se chama kitsch.
(...) o kitsch, em essência, é a negação absoluta da merda, tanto
no sentido literal como no sentido figurado: o kitsch exclui de
seu campo visual tudo o que a existência humana tem de essen-
cialmente inaceitável.7
O riso aqui, mais reflexivo que alegre, é provocado por aquilo que a idéia
tem de grotesco: degrada o que é sublime, rebaixa, traz para a terra, para o
baixo corporal aquilo que se impõe por uma elevação. 8 Nessa obra, como em
outras de Milan Kundera, a imagem do grotesco é um elemento fundamental
para exibir o que a existência humana tem de inaceitável e provocar um riso
irônico, incrédulo, que desconfia dos arranjos homogêneos. Em outras pala-
vras, é o riso, como foi descrito por Bergson, que se dirige à inteligência pura
e necessita que haja uma insensibilidade momentânea:
O riso não tem maior inimigo que a emoção. (...) Numa socie-
dade de puras inteligências provavelmente não mais se choraria,
mas talvez ainda se risse; ao passo que almas invariavelmen-
te sensíveis, harmonizadas em uníssono com a vida, nas quais
qualquer acontecimento se prolongasse em ressonância senti-
mental, não conheceriam nem compreenderiam o riso.9
7
Idem. p. 281.
8
Cf. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de
François Rabelais. 3. ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: UnB, 1993.
9
BERGSON, H., op. cit. p.3.
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Mais uma vez é o riso que segue a tradição rabelaisiana. Um riso ambivalente
que ao inverter a ordem das coisas promove um esvaziamento do que há de terrí-
vel e ameaçador em nossa condição humana: a morte, as desgraças, as catástrofes.
Ao mesmo tempo, um riso que representa a resignação diante do inevitável:
10
KUNDERA, M. O livro do riso e do esquecimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. p. 74.
11
Idem.
12
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: UNESP, 2003. p. 281.
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I – OS ANJOS
***
Gabrielle e Michèle são duas jovens americanas que estudam teatro num
curso de férias em uma pequena cidade na costa mediterrânea. A professora,
Mme Raphael, tem predileção pelas duas moças que sempre a olham atentamen-
te durante sua exposição e anotam todas as suas observações. Por isso, escolhe-as
para preparem uma exposição sobre a peça Rinoceronte, de Eugène Ionesco.
As duas moças caminham e discutem o sentido de todas as personagens,
na peça, transformarem-se em rinocerontes. “É antes de tudo um símbolo”,
diz Michèle; “Você não acha que é um símbolo fálico?”, propõe Gabrielle. Eis
que, em meio à discussão compenetrada, Michèle apresenta sua idéia como
um grande insight: “O autor quis criar um efeito cômico!”. Essa idéia cativa
Gabrielle que diminui o passo. Sua amiga a acompanha na desaceleração da
marcha até que as duas, por fim, estancam.
***
Chechoripsky, ou o “sábio tcheco” como o narrador o apelidou, era di-
retor de uma seção do Instituto de Entomologia e, em 1968, quando o exér-
cito russo tomou seu país, consentiu que adversários do regime utilizassem
uma sala de sua seção para reuniões clandestinas. Por esse motivo, foi expulso
do Instituto e passou a trabalhar como operário em seu prédio até o fim da
14
Idem. p. 43.
15
KUNDERA, M. O livro do riso e do esquecimento. p. 68.
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ocupação russa em 1989. Seis meses depois, foi convidado para proferir uma
palestra em um Congresso de Entomologistas na França.
Orgulhoso da sua condição de perseguido, o sábio tcheco põe-se a dis-
cursar. Desculpa-se pela emoção que sente por depois de quase vinte anos
poder se dirigir a uma assembléia de pessoas movidas pela mesma paixão que
o anima. Conta que vem de um país onde as pessoas eram privadas do próprio
sentido de sua vida apenas por dizerem o que pensa. Fala sobre sua experiência
como operário (não há nada de humilhante nisso, ressalta), mas lamenta ter
sido privado do contato com a ciência (uma paixão e um privilégio que lhe foi
recusado durante vinte anos). O sábio tcheco emociona-se, emociona a platéia
e volta ao seu lugar:
***
Três situações em que as personagens são profundamente convictas de
suas idéias e orgulhosas de sua própria condição: orgulhosa do grupo ao qual
pertence, no caso de Marketa; da maneira como são capazes de pensar e inter-
pretar suas leituras e de como estão em consonância com o que Mme Raphael
espera delas, no caso de Gabrielle e Michèle ou, por fim, no episódio do “sábio
tcheco”, orgulhoso por aquilo que sofreu no passado e por conseguir a cumpli-
cidade da platéia à qual se dirige.
Os três casos acima têm em comum a harmonia entre o pensar e o agir
das personagens e, podemos ir mais longe, uma harmonia em relação à própria
resposta que a realidade externa dá às suas ações, ao menos na forma como as
personagens entendem essa realidade externa: no estágio de formação do Par-
tido tudo é encantador, as amigas conseguem encontrar a chave de interpreta-
ção da peça “Os rinocerontes” e o sábio tcheco emociona a platéia à qual ele
se dirige. Contudo, nesses três casos serão inseridos elementos que quebram a
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KUNDERA, M. A lentidão. São Paulo: Círculo do Livro, 1995. p. 55.
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harmonia da ordem. Mais do que isso: elementos que rasgam o cenário estabe-
lecido evidenciando uma ordem que, na verdade, não é tão harmônica assim.
É o momento da narrativa em que se apresenta o riso dos demônios.
II – OS DIABOS
17
KUNDERA, M. A brincadeira. p. 40.
18
Idem. p. 43.
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***
Para falar sobre a peça Rinoceronte, Gabrielle e Michèle encaixaram um
tubo de papelão no nariz que imitava o chifre de um rinoceronte. Assim, fa-
ziam sua exposição sobre a peça sacudindo os chifres postiços. A professora,
que não escondia sua preferência pelas duas alunas, estava maravilhada. Os
outros alunos sentiam uma espécie de compaixão constrangida diante daquela
apresentação que era, no mínimo, desajeitada. Eis que Sarah, uma moça judia
que “detestava cordialmente” a dupla, levantou-se de seu assento e dirigiu-se
para onde estavam as duas estudantes. Solenemente, tomou impulso e deu um
pontapé no traseiro, primeiro de Michèle e em seguida de Gabrielle. A turma
irrompeu numa gargalhada e Sarah voltou para seu banco. O efeito cômico
da peça de Ionesco acabara de ser demonstrado, não por meio do que Michèle
e Gabrielle haviam preparado, mas pela humilhação delas próprias que vertiam
lágrimas pelos olhos e se contorciam “como se tivessem câimbras no estômago”
enquanto seus colegas riam.
***
Pouquíssimos instantes depois de se emocionar com a fala proferida pelo
“sábio tcheco” e de aplaudi-lo efusivamente, a platéia, num extremo constrangi-
mento, silencia-se. Chechoripsky, imerso demais em sua glória, não se dá conta
do que ocorreu: o silêncio emocionado tinha-se convertido em silêncio embaraçado.
Na verdade, o “sábio tcheco”, estava tão absorvido pela sua condição de
perseguido político que se esquecera de proferir sua palestra a respeito de no-
vas moscas, razão pela qual fora convocado para aquele Congresso.
O constrangimento pouco a pouco deu lugar ao riso, não aquele que está
em consonância com a situação, mas o riso que desestrutura a cena. O herói
que comovera a platéia havia se transformado em figura risível num intervalo
de pouquíssimos segundos.
***
O cômico decorrente das situações apresentadas tem um duplo caráter: de
destruição e de revelação. De um lado, nos três casos, o riso é provocado por um
fator que desarranja uma cena posta: a galhofa no bilhete de Ludvik, o chute des-
ferido nos traseiros de Michèle e Gabrielle e a constatação de que “o sábio tche-
co”, apesar de uma bela fala, não havia proferido a palestra que era justamente a
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razão pela qual havia sido convidado para aquele congresso. Portanto, em cada
uma das cenas, o elemento cômico desmancha uma dada ordem das coisas.
Contudo, o riso que decorre dessas três situações não tem um caráter
apenas de destruição. Ao desmanchar o arranjo das coisas estabelecidas, acaba
por revelar tanto a fragilidade da ordem quanto os elementos que ela pretende
ocultar, mas que, na verdade, estão lá, presentes nas relações entre pessoas nas
mais diversas instâncias sociais. Como afirma Alberti, o riso revela que o não
normativo, o desvio e o indizível fazem parte da existência:
19
ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002. p. 12
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que não for adequado à sua conformação. Assim, o formato do círculo repre-
senta todo ideal que, perfeito e harmônico em sua forma, despreza e coloca
para fora de sua lógica imperfeições e incongruências humanas.
É a vontade de integrar-se a um círculo, mais que qualquer convicção
racional, que leva as pessoas a aderirem a ideologias, a abraçarem causas e a
participarem de movimentos:
Após passar pelos mais diversos círculos, Mme Raphael busca ficar em
perfeita harmonia com seus alunos e com eles constituir uma unidade: o que
significa que ela os obriga sempre a pensar e a dizer a mesma coisa que ela. Porque
o círculo, em sua forma perfeita, não admite a dissidência e, se, de um lado,
iguala a todos em sua forma horizontal e integradora, de outro, é implacável
com quem questiona essa forma (lembremos que Ludvik foi condenado a tra-
balhar nas minas de carvão por causa de uma brincadeira despretensiosa que
fez com sua namorada). É interessante porque justamente no episódio de Mme
Raphael é evocada a peça de Eugène Ionesco em que as pessoas de uma peque-
na cidade, paulatinamente, vão se transformando em animais truculentos.
Nessa peça, as pessoas se transformam em rinocerontes por opção e apresen-
tam argumentos para tal transformação: voltar à pureza original, viver de acordo
com os instintos, “reconstituir a base da vida”, “voltar à integridade primordial.”21
Examinemos um pouco melhor como isso ocorre em O rinoceronte.
20
KUNDERA, M. O livro do riso e do esquecimento. p. 76
21
Esses termos são utilizados pelo personagem Jean, no momento em que inicia sua transfor-
mação em Rinoceronte. Cf. IONESCO, Eugène. O rinoceronte. São Paulo: Abril Cultural,
1976. p. 155
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Eles estão rodando em volta da casa. Estão brincando! Crianças grandes! 22.
Essa é a exclamação do personagem Dudard ao observar os animais pouco
antes dele próprio converter-se em um deles. A transformação das pessoas
em rinocerontes na peça de Ionesco nos remete à roda de Kundera que, em
sua forma fechada e homogênea, iguala a todos, suprime todas as diferenças e
restabelece a inocência e a pureza supostamente perdidas.
O desejo de fazer parte da roda e, assim, igualar-se aos outros é também
o medo da solidão do indivíduo que, por não ser parte de um todo, sente-se
ameaçado pela realidade externa. É esse medo que leva as pessoas a perderem
suas idiossincrasias e se transformarem em animais que, embora truculentos
e desajeitados, podem se reconhecer em seus pares e se integrarem aos outros.
O abandono e o desespero de quem não se integra a essa roda são expressos
no final da peça por meio da fala de Bérenger, o único personagem que não
aderiu à transformação:
***
“Eu também dancei em roda”. Essa afirmação, feita pelo próprio Kundera,
dá um significado próprio à ironia presente em sua obra em relação aos proje-
tos harmônicos e totalizantes. Ao afirmar que também dançou em roda, não é
possível pensar em um narrador que, colocando-se fora das questões humanas
que apresenta, destrói com seu humor modelos, pensamentos e personagens
mantendo-se, ele próprio neutro e incólume. Ao contrário disso, ele comprome-
te-se o tempo inteiro com seu enredo, com suas personagens e com as reflexões
existenciais que apresenta. Vejamos de forma mais detalhada o que diz o autor:
22
IONESCO, E., op. cit. p. 195.
23
IONESCO, E., op. cit. p. 236.
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48 O riso dos anjos e o riso dos demônios: considerações sobre o humor na obra de Milan Kundera
Dessa maneira, o riso que desmancha a forma do círculo e expõe suas in-
congruências é ao mesmo tempo a redenção daqueles que, jogados para fora da
roda, sentem nostalgia de um passado em que era possível integrar-se aos anjos
e encontram no riso o lenitivo para suportar a permanente queda em que se lan-
çaram no momento em que saíram do círculo. O riso do diabo, portanto, seria,
ao mesmo tempo, a desforra e o consolo de quem foi expulso do paraíso.
24
KUNDERA, M. O livro do riso e do esquecimento. p. 78.
25
KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. p. 78-79.
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Abstract: