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Isabel Baltazar
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (UNL)
ibaltazar@fcsh.unl.pt
Resumo
Este estudo tem como objectivo apresentar a Carta Aberta aos Europeus de
Denis de Rougemont, mostrando a originalidade e a actualidade da proposta da
ideia de uma Comunidade Cultural Europeia. A Europa, antes de ser uma aliança
política ou uma entidade económica, deve ser uma comunidade cultural.
Na perspectiva deste federalista, o caminho para a construção europeia
deve seguir a vontade dos europeus, unidos por uma herança cultural comum.
Não são as instituições que determinam a união do povo europeu, mas a unidade
de uma cultura milenar.
Uma Europa Unida na Diversidade: eis a ideia visionária de Rougemont para
a Europa, bem actual pelo ano europeu do Diálogo Intercultural que acabámos
de comemorar (2008).
Palavras-chave
Europa / Europeus / Comunidade / Cultura / Diversidade
Abstract
This study has the aim to present the Open Letter To Europeans by Denis de
Rougemont, demonstrating the originality and actualness of the proposal of the
idea of a European Cultural Community. Europe, before being a political alliance
or an economical entity, must be a cultural community.
Through the perspective of this federalist, the path to the European
construction must follow the Europeans wish, joined by a common cultural
heritage. It cannot be the institution to determine the union of the European
people, but the unity of a millenarian culture.
A Europe united in Diversity: here is the visionary idea of Rougemont for
Europe, very updated concerning the European year for Intercultural Dialogue
that we have just commemorated (2008).
Key Words
Europe / European / Community / Culture / Diversity
1
A este propósito refira-se a obra de Denis de Rougemont intitulada L’Europe en Jeu, Neuchatel, La
Baconnière, 1948.
2
Sobre este assunto pode ler-se Isabel Baltazar, “O Espírito Europeu: fundamentos para uma Europa
Unida. Contributo dos Encontros Internacionais de Genebra (1946) ”, Revista Lusíada, nº 17, Univer-
sidade Lusíada, 2008, pp. 101-117.
3
Denis de Rougemont, Carta Aberta aos Europeus, Lisboa, Editorial Pórtico, 1970.
“Albanesas, Albaneses!
Alemãs Federais e de Leste, Alemães Federais e de Leste!
Austríacas, Austríacos!
Bálticas e Bálticos da Estónia, da Letónia e da Lituânia!
Belgas, Belgas!
Bougresses, Bougres
Checoslovacos (bis)!
Cipriotas, Cipriotas!
Dinamarquesas, Dinamarqueses!
Espanholas, Espanhóis!
Finlandesas, Finlandeses!
Francesas, Franceses!
Helenas e Gregos!
Holandesas e Holandeses!
Húngaras e Magiares!
Inglesas e Ingleses!
Irlandesas, Irlandeses!
Italianas, Italianos!
Jugoslavas, Jugoslavos!
Luxemburguesas e seus Burgueses!
Maltesas, Malteses!
Norueguesas, Noruegueses!
Otomanas e Turcos!
Polacas, Polacos!
Portuguesas, Portugueses!
Romenas, Romenos!
Suecas, Suecos!
Suíças e Suiços dos vinte e dois Cantões”4.
4
Idem, ibidem, pp. 7-8.
5
Idem, ibidem, pp. 8-9.
É de lembrar que esta Carta Aberta aos Europeus já tinha uma história anterior
a ser escrita. Muito antes de 1970, já Denis de Rougemont tinha escrito sobre os
europeus, particularmente na obra Les chances de l’ Europe6, e até na clássica e célebre
L’ Amour et L’ Occident publicada em 19387. A sua visão da vida era pacífica, tendo-
lhe até custado a liberdade em 1939, ao defender a invasão alemã da França e a
ocupação de Paris. Seria também um resistente contra os fascismos que nessa altura
despontavam, fundando a Liga de Gothard. As suas posições eram incómodas para
os políticos que o enviariam para os Estados Unidos da América com o pretexto
de falar da Suíça aos americanos. Aí encontraria Saint Exupéry, Marcel Duchamp,
André Breton e Coudenhove – Kalergi, entre muitos outros. Seria com aquele último
que teria a possibilidade de partilhar a ideia de Europa e, muito particularmente, as
suas ideias para a Europa8. Ideias que regressariam ao velho continente a propósito
da União Europeia dos Federalistas, congresso em que ambos estariam presentes.
A data de 8 de Setembro de 1946 seria o marco inicial para uma série de discursos
de Denis de Rougemont sobre a Europa.
O problema da reconstrução europeia e a necessidade de uma unidade
europeia eram os temas que ocupavam os intelectuais, políticos e economistas
da época. Rougemont discursava sobre a união da Europa, acreditando na sua
real possibilidade. Para além do seu espírito visionário, que o fazia sonhar
com uma Comunidade Cultural Europeia, o escritor suíço também propunha
medidas concretas e efectivas para a unidade europeia a curto prazo: enunciava
os problemas da reconstrução europeia paralelamente à necessidade de unir os
europeus num projecto comum.
Um desses momentos seria o discurso no seio do Congresso da União
Europeia dos Federalistas em Montreux (1947), onde nasceria a ideia do
Congresso Europeu da Haia, a realizar no ano seguinte sob a presidência de
Winston Churchill. Seria na capital holandesa que Rougemont iria proferir aquela
que ficaria, para sempre, conhecida como Mensagem aos Europeus, e que contém
em si as linhas fundamentais que seriam apresentadas mais tarde na Carta Aberta
aos Europeus.
Para Denis de Rougemont a cultura era a base de qualquer possível
união, também porque era na história cultural da Europa que se encontravam
os fundamentos comuns dos europeus. Compreende-se, assim, toda a missão
em prol da cultura que preencheu a vida deste autor. Para além da criação do
Centro Europeu da Cultura em Genebra, seria Rougemont a promover, também,
a Conferência Europeia da Cultura (1949) sob a presidência de Salvador de
Madariaga. No ano seguinte, participa na instituição do Congresso para a
Liberdade da Cultura, assumindo a sua presidência de 1952 a 19669.
6
Denis de Rougemont, Les chances de l’Europe, Neuchâtel, Editions de la Baconniere, 1962.
7
Esta obra está traduzida em português com o título O Amor e o Ocidente, Lisboa, Vega, 1989.
8
Esperamos publicar em breve um estudo sobre Coudenhove-Kalergi para mostrar todas as virtua-
lidades da sua “Pan-Europa”.
9
Curiosamente, também em Portugal se fazem ouvir os ecos deste movimento, protagonizados em
13
Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, Lisboa, Relógio D’Água, s.d. É de anotar que a primeira
edição desta obra apareceu em 1930, muito antes da obra central deste estudo, mas contemporânea
da vida e acção pela unidade europeia de Denis de Rougemont.
14
Idem, «Quem Manda no Mundo», in op.cit., p. 127, sublinhados nossos.
15
Idem, Ibidem, pp. 138-139.
16
Ortega y Gasset, “Consideratio de Europa quaedam”, Europa y la idea de nation y otros ensayos sobre
problemas del hombre contemporaneo, Madrid, Allianza, 1998.
17
Cfr. Guido Brunner, “Europa, sin embargo, se mueve?”, in José Luis Abellán (coord.), El reto europeo:
identidades culturales en el cambio de siglo, Madrid, Editorial Trotta, 1994, pp. 35-40.
18
Denis de Rougemont, op.cit., pp. 9-10.
19
Idem, ibidem, p. 10.
20
Idem, ibidem.
palavras, se não existirdes como Europeus, não existireis mais ou por muito
tempo como Franceses, Checos ou Suíços. Sereis colonizados um após outro e
insensivelmente desnaturados pelo dólar ou pelos vossos partidos comunistas,
como o haveis sido ainda não há muito pelo nacional-socialismo”21. Parafraseando
Rougemont, a Europa sempre existiu: “ Deixareis de existir por não terdes
reconhecido que só de vós depende existir – pois, apesar de tudo já existir, já
existis todos desde há séculos e apenas se trata de o reconhecer! Portanto, aqueles
que dizem que não existis terão razão enquanto alimentarem as vossas divisões.
Na verdade, só podereis existir todos juntos”22. Eis a solução para a Europa ser,
ainda, mais Europa: a união de todos os europeus.
21
Idem, ibidem.
22
Idem, ibidem.
23
Idem, ibidem, p. 17.
“guardiã” da Europa essa cultura comum europeia fundada num passado comum.
Essa vertente cultural da união europeia já tinha sido considerada em Haia como
uma “prioridade”, arrastada no tempo até aos dias que vivemos.
EUROPEIAS, EUROPEUS!
Não escrevo uma defesa. Não vos digo o que é preciso fazer. Não, não é para
aqueles que ainda não repararam como é vital para os Europeus fazer a Europa
que eu escrevo. Escrevo para os que sabem que a Europa tem que se unir, mas
que fazem de si próprios estas duas perguntas: Poder-se-á fazer a Europa? Como?
Digo que se pode fundar a união da Europa sobre a unidade de cultura que
ela forma e que a forma desde há dois ou três milénios. Vejo que esta unidade é
comparável à de um corpo organizado: é feita de diversidades e tensões, não é
por completo homogénea”24.
24
Idem, ibidem, p. 22.
Esta Europa tem de se fazer a partir de uma ideia: uma ideia europeia. O que
falta à Europa dos Estados é essa ideia criadora, um programa, uma verdadeira
unidade. Quando perguntavam o “Que é a Europa? Será capaz de me responder
numa frase? Eu digo: A Europa é qualquer coisa que é preciso unir”25. Essa união deve
ser feita a partir de uma civilização e de uma cultura que, de perto, parecem muito
diferentes entre as várias nações, mas de longe, vistas, por exemplo, da América, são
de uma unidade evidente e todos somos bem europeus: “Vista de bastante longe,
a Europa é evidente. Vistos da América, seja qual for a nossa nação, somos todos
europeus. Vistos da Ásia, nem vale a pena insistir, tomamo-nos mesmo, por vezes,
por americanos!”26. Pelo contrário, “Vista de demasiado perto, em contrapartida,
não há Europa!...Não será o Europeu esse homem estranho que se manifesta como Europeu
na medida exacta em que duvida que o seja e pretende, ao contrário, identificar-se quer com
o homem universal, quer com o homem de uma só nação do grande complexo continental do
qual se revela assim parte integrante, apenas porque o contesta?”27.
Em síntese, a Europa era a pátria da diversidade mas tinha uma original e
profunda unidade que lhe permite ter uma consciência comum europeia. Só os
nacionalismos esmagaram essa unidade e esse civismo europeu, apresentando
a Europa como um puzzle de nações e a cultura europeia como um somatório de
culturas distintas e mesmo rivais. Os mesmos nacionalismos esmagaram, também,
a própria Europa provocando conflitos sanguinários.
A Educação Europeia
25
Idem, ibidem, p. 24.
26
Idem, ibidem, p. 29.
27
Idem, ibidem, p. 29.
28
Idem, Ibidem, p. 59.
29
Idem, ibidem, p. 59.
30
Idem, ibidem, p. 70.
31
Idem, ibidem, p. 85.
32
Idem, ibidem, p. 89.
33
Idem, ibidem, p. 94.
34
“E se toda a Europa lesse o mesmo livro de História?”, Diário de Notícias, 8 de Março de 2007, p. 3.
35
Idem, Ibidem, p. 118.
36
Idem, ibidem, pp. 119-120.
37
Idem, Ibidem, p. 133.
38
Ernest Renan, Qu’est-ce qu’une Nation? Paris, 1882, p. 11.
39
Denis de Rougemont, op.cit., p. 179.
40
Idem, ibidem, p. 185.
41
Idem, Ibidem, pp. 185-186.
pois devemos-lhe isso!”42. Esta Europa não é a Europa ideal, é a Europa possível:
“Uma Europa que não será necessariamente a mais poderosa ou a mais rica; será,
isso sim, esse canto do planeta indispensável ao mundo de amanhã, onde os
homens de todas as raças poderão encontrar não talvez mais felicidade, mas mais
sabor, mais sentido de vida”43.
São estas as últimas palavras da Carta Aberta aos Europeus. Uma carta aberta
no tempo, à espera de poder ser ouvida e a sua mensagem concretizada. Uma
carta para os europeus do seu tempo e de todos os tempos. Uma carta que na
actualidade encontra os primeiros passos de realização. Será o século XXI o
tempo do visionário?
Reflexões finais
42
Idem, Ibidem, p. 190.
43
Idem, Ibidem, p. 190.
44
A este propósito leia-se a reflexão sobbre o assunto de Fernand Moran, “Europa: de lo implícito a
lo explicito”, in José Luís Abellán, El reto Europeo. Identidades culturales en el cambio de siglo, Madrid,
Editorial Trotta, 1994, pp. 21-30.
os cidadãos sobre a Europa. Terá chegado a hora de ouvir os europeus sobre o que
desejam para uma entidade sem uma verdadeira identidade? A União Europeia
continua a ser esse OPNI – Objecto Político Não Identificado –, utilizando a célebre
expressão de Jacques Delors, e o aprofundamento político não parece ser a vontade
de ninguém, nem dos europeus nem dos próprios políticos.
Parece evidente que reconstruir a Europa passa por “ressuscitar” o
paneuropeísmo por que tanto lutou Coudenhove-Kalergi, ainda antes da Segunda
Guerra Mundial. Perante os problemas actuais que a Europa enfrenta, cada vez se
torna mais necessário regressar ao passado europeu para construir o futuro. Nesse
passado de uma história comum há um povo europeu, cuja herança histórica lhe
garante uma unidade cultural aberta à pluralidade, travando tentações racistas
ou xenofóbicas entre si. Não será este o sonho europeu?45
Terá chegado a hora de mudar o rumo à Europa para (re)encontrar a
sua essencialidade? Finalmente, parece ter chegado o tempo de dar a voz aos
intelectuais, que nunca deixaram de pensar a Europa, em si mesma, sem interesses
económicos materializados em tratados. Essa velha Europa, com uma longa vida,
com uma herança cultural única, mas cuja história haveria de mostrar-lhe a face
da(s) guerra(s). Seria nesse contexto sangrento que se iniciariam os esforços de
união europeia, primeiro de unidade europeia, a seguir à primeira grande guerra,
e de efectiva construção europeia após o segundo conflito mundial.
Após 50 Anos, a Europa tornou-se uma “utopia interessante”46 e, ao
mesmo tempo, uma “casa da impotência”47, segundo as expressões do pensador
português da Europa, Eduardo Lourenço. Basta recordar os efeitos do debate
sobre a Constituição Europeia. O mesmo autor reconhece que, apesar de tudo, a
“Europa nunca foi mais Europa do que hoje”48.
Também Jacques Le Goff, um dos maiores historiadores contemporâneos,
é céptico em relação a uma Europa política e aos seus efeitos nacionalistas,
propondo uma Europa Cultural49: “A Europa unida deve ser acima de tudo
cultural. A História mostra-nos que, em toda a Europa, da Escandinávia à
Grécia e a Portugal, existem elementos fundamentais de uma mesma cultura e,
também, de uma Europa política”50. Por isso, olha com apreensão o futuro da
Europa e o actual processo da construção europeia: “Vejo-as infelizmente com
um certo pesar, porque já não há o entusiasmo, a vontade de construir a Europa
que havia na segunda metade do século XX. Há o que se chama uma espécie de
eurocepticismo. Predomina a ideia de fazer da Europa, como quer a maioria dos
45
A este propósito refira-se o interessante artigo de Xavier Flores, “El sueño de Europa”, José Luis
Abellán (coord.), El reto europeo: identidades culturales en el cambio de siglo, Mardid, Editorial Trotta,
1994, pp. 107-117.
46
Eduardo Lourenço, A Europa desencantada. Para uma Mitologia Europeia, Lisboa, Gradiva, 2001, p.
179.
47
Idem, Ibidem.
48
Idem, Ibidem, p. 239.
49
Jacques Le Goff, “Por uma Europa cultural”, Jornal de Letras, 25 a 8 de Maio de 2007, p. 9.
50
Idem, ibidem.
51
Idem, Ibidem.
52
Veja-se o artigo “Ministros propõem Carta da Cultura”, Diário de Notícias, 28 de Novembro de 2004,
p. 19.
53
“A Cultura Europeia encontra-se em Paris”, Público, 2 de Maio de 2004, p. 32.
54
Idem, Ibidem.
55
“A Cultura na Defesa da Europa”, Jornal de Letras, 11 a 24 de Maio de 2005, p. 6.
56
Cfr. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Jornal Oficial das Comunidades Europeias,
C 364/01 de 18.12.2000.
57
“Declaração de Berlim assinala 50 Anos da União Europeia”, in http:/Europa.eu/50, 28 de Março
de 2007.
58
“Eslovénia: Ano Europeu do Diálogo Intercultural”, Público, 6 de Novembro de 2008, p. 1.
59
“Podemos viver sem o outro? As possibilidades e os limites da interculturalidade”, in Newsletter da
Fundação Calouste Gulbenkian, nº 97, Outubro de 2008, p. 18.