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Carta Aberta aos Europeus,

por Denis de Rougemont.


A Ideia de uma Comunidade Cultural Europeia

Isabel Baltazar
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (UNL)
ibaltazar@fcsh.unl.pt

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Carta Aberta aos Europeus, por Denis de Rougemont, p. 305-325

Resumo
Este estudo tem como objectivo apresentar a Carta Aberta aos Europeus de
Denis de Rougemont, mostrando a originalidade e a actualidade da proposta da
ideia de uma Comunidade Cultural Europeia. A Europa, antes de ser uma aliança
política ou uma entidade económica, deve ser uma comunidade cultural.
Na perspectiva deste federalista, o caminho para a construção europeia
deve seguir a vontade dos europeus, unidos por uma herança cultural comum.
Não são as instituições que determinam a união do povo europeu, mas a unidade
de uma cultura milenar.
Uma Europa Unida na Diversidade: eis a ideia visionária de Rougemont para
a Europa, bem actual pelo ano europeu do Diálogo Intercultural que acabámos
de comemorar (2008).

Palavras-chave
Europa / Europeus / Comunidade / Cultura / Diversidade

Abstract
This study has the aim to present the Open Letter To Europeans by Denis de
Rougemont, demonstrating the originality and actualness of the proposal of the
idea of a European Cultural Community. Europe, before being a political alliance
or an economical entity, must be a cultural community.
Through the perspective of this federalist, the path to the European
construction must follow the Europeans wish, joined by a common cultural
heritage. It cannot be the institution to determine the union of the European
people, but the unity of a millenarian culture.
A Europe united in Diversity: here is the visionary idea of Rougemont for
Europe, very updated concerning the European year for Intercultural Dialogue
that we have just commemorated (2008).

Key Words
Europe / European / Community / Culture / Diversity

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Compreende-se que nem toda a gente perceba


com evidência a realidade da Europa, porque
a Europa não é uma “coisa”, mas um equilíbrio…
Segredo grande e paradoxal, sem dúvida!
Porque o equilíbrio ou balança de poderes é uma
realidade que consiste essencialmente na existência
da pluralidade. Se esta pluralidade se perdesse,
aquela unidade dinâmica esvanecer-se-ia.
Europa é com efeito, um enxame: muitas abelhas e
um só voo.

Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas

Podemos considerar Denis de Rougemont como um visionário sobre o


destino europeu. No seu tempo (1906-1985), teve a oportunidade de viver os
acontecimentos mais marcantes da Europa, que levariam precisamente a concluir
sobre a necessidade de uma unidade europeia, nem que fosse para evitar uma
nova guerra. A grande originalidade de Denis de Rougemont encontra-se na sua
proposta de uma unidade também dos europeus. O seu federalismo tem, por isso
mesmo, fundamentos bem mais profundos do que os interesses dos Estados. Esta
unidade pressupõe a possibilidade de unir os povos europeus, ou melhor, (re) unir, já
que estes já se encontram unidos animicamente pelas suas raízes culturais comuns.
O seu passado histórico, a herança greco-romana e o cristianismo religioso,
permitem construir um futuro conjunto, partindo daquelas pedras lapidares que
garantem a continuidade da cultura europeia. Nesta cultura comum europeia
fica desenhada uma identidade própria – uma identidade europeia – composta
das diferentes culturas e identidades que constituem o seu todo.
Denis de Rougemont viveu o tempo suficiente para observar, e até participar,
nos esforços de unidade europeia empreendidos a seguir à primeira grande guerra,
e na efectiva construção europeia pós-segunda guerra1. Teve a possibilidade de

1
A este propósito refira-se a obra de Denis de Rougemont intitulada L’Europe en Jeu, Neuchatel, La

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apreciar os consideráveis passos da construção europeia desde a célebre Declaração


Schuman, em 1950, quase até ao presente. Constatou que o “método dos pequenos
passos” preconizado pelo Ministro Francês era de facto a opção escolhida até
ao fim da sua vida e até ao presente mais recente. Tal como os próprios pais
fundadores, sendo de destacar a figura de Jean Monnet2, nunca deixou de sonhar
com uma verdadeira união europeia e acreditar na sua possibilidade. Para além
de unir Estados era preciso unir os europeus. Esta era a sua visão – comum a
muitos outros intelectuais da época – e que permanece com uma actualidade
impressionante. Finalmente, também os políticos compreenderam a necessidade
de construir uma Europa com Rosto, uma Europa com Alma, a substituir aquele
“Objecto Político Não Identificado” – OPNI – que chamaria a atenção de Jacques
Delors. Esta nova Europa, que precisa dos europeus para sair da encruzilhada do
momento presente, não é uma Europa de Estados Unidos (esta já mostrou estar
esgotada). Esta Europa terá de ser uma Europa dos Europeus Unidos, tarefa bem
mais difícil de concretizar, mas com um destino bem mais promissor.
É neste contexto, que julgamos de todo pertinente, trazer à leitura a Carta
Aberta aos Europeus3, escrita por Denis de Rougemont quando se construía uma
Comunidade Económica Europeia. O seu espírito visionário permitia-lhe pensar
algo mais arrojado do que unir economias, mas, também, muito mais profundo.
O seu projecto europeu fundamentava-se na constituição de uma Europa que
unisse as suas culturas, e, por isso, envolvesse os europeus. Este esboço afigura-
-se-nos como a tentativa de criação de uma Comunidade Cultural Europeia.

Por uma Comunidade Cultural Europeia

Denis de Rougemont foi um dos intelectuais mais determinantes na reflexão


sobre a Europa, no período entre-guerras e depois de 1945, ao lado de outros
pensadores como Gabriel Marcel ou Emmanuel Mounier que, também, merecem
um estudo sobre a sua visão da Europa. É de salientar que a filosofia personalista
não poderia pensar a Europa a partir, apenas, do pragmatismo político. O futuro
dos europeus seria a sua grande preocupação, e ocuparia grande parte da sua
vida. Para além da filosófica preocupação com a pessoa humana, na base destes
personalismos estava, também, a crença na possibilidade de mobilizar os europeus
na construção de uma Europa comum. Para isso, tornava-se necessário exortar os
europeus a participarem na construção europeia, mobilizados na defesa do bem
geral. É nesse contexto que se enquadra, Denis de Rougemont escrever uma carta
dirigida a todos os europeus:

Baconnière, 1948.
2
Sobre este assunto pode ler-se Isabel Baltazar, “O Espírito Europeu: fundamentos para uma Europa
Unida. Contributo dos Encontros Internacionais de Genebra (1946) ”, Revista Lusíada, nº 17, Univer-
sidade Lusíada, 2008, pp. 101-117.
3
Denis de Rougemont, Carta Aberta aos Europeus, Lisboa, Editorial Pórtico, 1970.

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“Albanesas, Albaneses!
Alemãs Federais e de Leste, Alemães Federais e de Leste!
Austríacas, Austríacos!
Bálticas e Bálticos da Estónia, da Letónia e da Lituânia!
Belgas, Belgas!
Bougresses, Bougres
Checoslovacos (bis)!
Cipriotas, Cipriotas!
Dinamarquesas, Dinamarqueses!
Espanholas, Espanhóis!
Finlandesas, Finlandeses!
Francesas, Franceses!
Helenas e Gregos!
Holandesas e Holandeses!
Húngaras e Magiares!
Inglesas e Ingleses!
Irlandesas, Irlandeses!
Italianas, Italianos!
Jugoslavas, Jugoslavos!
Luxemburguesas e seus Burgueses!
Maltesas, Malteses!
Norueguesas, Noruegueses!
Otomanas e Turcos!
Polacas, Polacos!
Portuguesas, Portugueses!
Romenas, Romenos!
Suecas, Suecos!
Suíças e Suiços dos vinte e dois Cantões”4.

Uma carta bem personalizada e que procura dirigir-se particularmente a


cada um daqueles europeus, pelo menos no princípio da epístola, já que depois,
passarão a ser, apenas, chamados no seu conjunto, como o próprio admite:
“Na realidade, nunca poderemos fazer qualquer coisa juntos se de cada vez
tivermos de começar por nos enumerarmos nos dois géneros e segundo a ordem
alfabética - o que exige mais de vinte e quatro palavras de saudação - antes que
se diga algo, e apenas dá uma pálida ideia dos incómodos, obstáculos, perdas
de tempo e de energias advenientes da existência dos nossos Estados - Nações,
desde que se trate de colaborar seja no que for. Deixai-me, portanto, tratar-vos
muito simplesmente assim: EUROPEIAS; EUROPEUS!”5.

4
Idem, ibidem, pp. 7-8.
5
Idem, ibidem, pp. 8-9.

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É de lembrar que esta Carta Aberta aos Europeus já tinha uma história anterior
a ser escrita. Muito antes de 1970, já Denis de Rougemont tinha escrito sobre os
europeus, particularmente na obra Les chances de l’ Europe6, e até na clássica e célebre
L’ Amour et L’ Occident publicada em 19387. A sua visão da vida era pacífica, tendo-
lhe até custado a liberdade em 1939, ao defender a invasão alemã da França e a
ocupação de Paris. Seria também um resistente contra os fascismos que nessa altura
despontavam, fundando a Liga de Gothard. As suas posições eram incómodas para
os políticos que o enviariam para os Estados Unidos da América com o pretexto
de falar da Suíça aos americanos. Aí encontraria Saint Exupéry, Marcel Duchamp,
André Breton e Coudenhove – Kalergi, entre muitos outros. Seria com aquele último
que teria a possibilidade de partilhar a ideia de Europa e, muito particularmente, as
suas ideias para a Europa8. Ideias que regressariam ao velho continente a propósito
da União Europeia dos Federalistas, congresso em que ambos estariam presentes.
A data de 8 de Setembro de 1946 seria o marco inicial para uma série de discursos
de Denis de Rougemont sobre a Europa.
O problema da reconstrução europeia e a necessidade de uma unidade
europeia eram os temas que ocupavam os intelectuais, políticos e economistas
da época. Rougemont discursava sobre a união da Europa, acreditando na sua
real possibilidade. Para além do seu espírito visionário, que o fazia sonhar
com uma Comunidade Cultural Europeia, o escritor suíço também propunha
medidas concretas e efectivas para a unidade europeia a curto prazo: enunciava
os problemas da reconstrução europeia paralelamente à necessidade de unir os
europeus num projecto comum.
Um desses momentos seria o discurso no seio do Congresso da União
Europeia dos Federalistas em Montreux (1947), onde nasceria a ideia do
Congresso Europeu da Haia, a realizar no ano seguinte sob a presidência de
Winston Churchill. Seria na capital holandesa que Rougemont iria proferir aquela
que ficaria, para sempre, conhecida como Mensagem aos Europeus, e que contém
em si as linhas fundamentais que seriam apresentadas mais tarde na Carta Aberta
aos Europeus.
Para Denis de Rougemont a cultura era a base de qualquer possível
união, também porque era na história cultural da Europa que se encontravam
os fundamentos comuns dos europeus. Compreende-se, assim, toda a missão
em prol da cultura que preencheu a vida deste autor. Para além da criação do
Centro Europeu da Cultura em Genebra, seria Rougemont a promover, também,
a Conferência Europeia da Cultura (1949) sob a presidência de Salvador de
Madariaga. No ano seguinte, participa na instituição do Congresso para a
Liberdade da Cultura, assumindo a sua presidência de 1952 a 19669.

6
Denis de Rougemont, Les chances de l’Europe, Neuchâtel, Editions de la Baconniere, 1962.
7
Esta obra está traduzida em português com o título O Amor e o Ocidente, Lisboa, Vega, 1989.
8
Esperamos publicar em breve um estudo sobre Coudenhove-Kalergi para mostrar todas as virtua-
lidades da sua “Pan-Europa”.
9
Curiosamente, também em Portugal se fazem ouvir os ecos deste movimento, protagonizados em

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É, ainda, de referir que, para além de outros eventos culturais, também


ligados à ecologia e à defesa do meio ambiente pelos europeus, foi fundador da
Revista Cadmo, também ligada às questões europeias. Após a sua morte a 6 de
Dezembro de 1985, as suas ideias seriam continuadas por uma fundação com o
seu nome, que continua a promover o debate e a reflexão sobre a Europa.

Será possível a Europa?

Antes de escrever a Carta Aberta aos Europeus, Denis de Rougemont foi


pronunciando algumas conferências na Universidade de Genebra10 sobre
a possibilidade da Europa, que reuniria numa obra intitulada Europa como
probabilidade11. Embora dedicadas aos estudantes de todas as faculdades daquela
universidade, eram também abertas ao público em geral, o que mostra o
interesse e a oportunidade da temática na época. No entanto, como descreve o
conferencista, não deixava de ser um desafio: “ Apresentar em alguns quartos de
hora a aventura milenária dos europeus, era por certo correr uma aventura. Mais
ainda, tratava-se de responder à questão posta pelo título de forma implícita e
arriscar um prognóstico sobre o futuro da Europa”12.
Para falar sobre o futuro da Europa, Denis de Rougemont acabaria por falar
sobre o seu passado, um passado decisivo para a própria humanidade, de uma
espécie de pátria do mundo. A tese defendida ao longo das quatro conferências parte
da função universalizadora da Europa: a Europa descobriu, dominou e influenciou
a civilização universal. O segredo deste dinamismo europeu encontra-se na sua
vitalidade, vontade e vocação universalista. A unidade europeia fundamenta-se
numa comunidade espiritual e jurídica históricas. É nessa idiossincrasia europeia
que se encontram as novas possibilidades da Europa: partir do seu espírito europeu
para construir uma política mundial de civilização.
Este autor considera que a sobrevivência da Europa e do mundo depende
da unidade europeia. Assim, ou se unia ou tendia para o desaparecimento. A
Europa não se podia dividir em nações rivais. Dessa forma perderia o seu poder
e seria colonizada. Para Rougemont a via possível era a de constituir elos de
união entre as nações, cujo modelo político era o federalismo, o único capaz de
assegurar uma efectiva defesa europeia e, também, de impedir uma nova guerra.
Era este o caminho para alcançar, para além da sobrevivência, o desenvolvimento
da Europa. Esta unidade na diversidade permitia concretizar o tradicional papel
da Europa no Mundo. Seria esta ideia uma utopia?
Para Rougemont, a Europa era a memória do mundo e continuaria a ser o
canto do mundo onde era possível realizar utopias transformadoras. O passado

Lisboa pelo Centro Nacional de Cultura.


10
Estas conferências foram realizadas por convite do reitor daquela universidade, Eric Martin.
11
Denis de Rougemont, Europa como probabilidad, Madrid, Taurus Editiones, 1963.
12
Idem, ibidem, p. 7.

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devia juntar ao esforço de unidade futura, unindo as nações pela federação


e partilhando as soberanias. Só assim estaria impedido qualquer tipo de
fragmentações europeias com consequências inevitáveis para a própria Europa
e para o Mundo.
Para além deste autor, refira-se também Ortega y Gasset, cujas meditações
sobre a Europa chegariam à conclusão da necessidade absoluta de unidade
europeia, fundamentada precisamente na sua unidade essencial. Entre outros
escritos que merecem atenção, refira-se A Rebelião das Massas, obra paradigmática
sobre a sociedade europeia e que merece reflexão. Sobre a Europa diz o autor:
“A Unidade da Europa não é uma fantasia, mas sim a própria realidade, e
a fantasia é precisamente a outra coisa: a crença em que França, Alemanha, Itália
ou Espanha são realidades substantivas e independentes”.
Contudo, compreende-se que nem toda a gente perceba com evidência a
realidade da Europa, porque a Europa não é uma “coisa”, mas um equilíbrio. Já
no século XVIII o historiador Robertson chamou ao equilíbrio europeu the great
secreto of modern politics.
Segredo grande e paradoxal, sem dúvida! Porque o equilíbrio ou balança de
poderes é uma realidade que consiste essencialmente na existência da pluralidade.
Se esta pluralidade se perdesse, aquela unidade dinâmica esvanecer-se-ia. Europa
é com efeito, um enxame: muitas abelhas e um só voo.
Este carácter unitário da magnífica pluralidade europeia é o que eu
chamaria a boa homogeneidade, a que é fecunda e desejável, a que já fazia dizer
a Montesquieu: L’ Europe n’est qu’une nation composée de plusieurs, e fazia falar a
Balzac, mais romanticamente, da grande famille continentale, dont tous les efforts
tendent à je ne sais quel mystère de civilisation.13
Ainda na linha de Rougemont, também Ortega y Gasset reflecte sobre
“Quem Manda no Mundo”14, num capítulo sobre o assunto, acreditando que,
apesar da decadência europeia, anunciada por Spengler, e de uma civilização que
vive a “Rebelião das Massas”, chegará o dia em que a Europa regressará à sua
anterior hegemonia. O seu espírito também visionário acredita na reconstrução
europeia, a partir de uma análise sociológica do mundo. Uma profunda reflexão
chegaria à conclusão:
“Quem evitar cair na consequência pessimista de que ninguém vai mandar,
e que, portanto, o mundo histórico volta ao caos, tem de retroceder ao ponto de
partida e interrogar-se seriamente: É tão certo como se diz que a Europa está em
decadência e se demite do mando, abdica? Não será esta aparente decadência a
crise benfeitora que permitirá que a Europa seja literalmente Europa? Não seria
necessário a priori a evidente decadência das nações europeias, se algum dia
fosse possível os Estados Unidos da Europa, a pluralidade europeia substituída

13
Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, Lisboa, Relógio D’Água, s.d. É de anotar que a primeira
edição desta obra apareceu em 1930, muito antes da obra central deste estudo, mas contemporânea
da vida e acção pela unidade europeia de Denis de Rougemont.
14
Idem, «Quem Manda no Mundo», in op.cit., p. 127, sublinhados nossos.

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pela sua unidade formal?”15


Para além desta extraordinária reflexão filosófica, fundamentada numa
profunda análise sociológica, é de referir, também, uma extraordinária conferência
pronunciada por Ortega em Berlin, intitulada Consideratio de Europa quedam16,
ou seja, uma certa consideração da Europa feita em latim. Porquê a escolha
desta língua para pensar a Europa? Guido Bruner atreve-se a concluir que esta
sociedade europeia, independentemente de ser formada por ingleses, franceses,
italianos ou alemães, é algo que tem um fundamento comum, em última análise,
uma pátria intelectual de Erasmus, cuja língua era o latim17.
Todo o historial descrito sobre o percurso de Rougemont por um lado, e
todo um contexto histórico vivido a seguir ao primeiro conflito europeu até aos
anos cinquenta, justificam a Carta Aberta aos Europeus como um ponto de chegada
sobre a defesa da unidade da Europa. Para além da realidade nacional, este autor
acreditava na realidade europeia. A este propósito é interessante ler:
“Dizem-me, porém, que não existis!
Dizem-me que na Europa só existem Franceses, Ingleses, Alemães, Suíços,
Albaneses, etc., e que os Europeus são apenas uma concepção de espírito. A este
título, não existem Suíços, mas apenas súbditos de vinte e dois Estados federados
chamados cantões; não existem Franceses, mas apenas Bretões, Bascos, Occitanos,
Alsacianos, Catalães, Corsos, naturais de Nice, Poitou, Bourbon, Béarn, do condado
da Borgonha, da Sabóia, para não dizer mais. A França, a Suíça e as outras nações
não são, todavia, simples concepções de espírito, antes realidades bem marcadas
nos mapas e delimitadas por fronteiras. No entanto, são mais transitórias que a
Bretanha, Castela, Escócia ou Berna, que existiam antes do Estado-Nação onde hoje
se encontram englobadas a que, sem a menor dúvida, sobrevirão”18.
Para Rougemont as fronteiras são artificiais, como artificiais são, também,
os Estados-Nação. Assim, qualquer um, se individualmente, pode a qualquer
momento perder a soberania, ou cedê-la a favor de uma união de Estados, “por
dependência obrigatória, económica, social ou ideológica”19. O que nunca se
perderá é a “alma europeia”, fortalecida por uma união europeia. Por isso, eis
a opção: “Ou então, escolheis a união da Europa e fundais o único poder capaz
de salvaguardar a vossa entidade nacional e regional, as vossas maneiras de ser
diferentes, o vosso direito a permanecerdes iguais a vós próprios”20.
Em conclusão, sem a união europeia qualquer Estado pode ser esmagado,
ser colonizado, desaparecer. Com a união europeia, para além de persistirem os
Estados sobrevivem os europeus. É este o sentido das suas palavras: “Por outras

15
Idem, Ibidem, pp. 138-139.
16
Ortega y Gasset, “Consideratio de Europa quaedam”, Europa y la idea de nation y otros ensayos sobre
problemas del hombre contemporaneo, Madrid, Allianza, 1998.
17
Cfr. Guido Brunner, “Europa, sin embargo, se mueve?”, in José Luis Abellán (coord.), El reto europeo:
identidades culturales en el cambio de siglo, Madrid, Editorial Trotta, 1994, pp. 35-40.
18
Denis de Rougemont, op.cit., pp. 9-10.
19
Idem, ibidem, p. 10.
20
Idem, ibidem.

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palavras, se não existirdes como Europeus, não existireis mais ou por muito
tempo como Franceses, Checos ou Suíços. Sereis colonizados um após outro e
insensivelmente desnaturados pelo dólar ou pelos vossos partidos comunistas,
como o haveis sido ainda não há muito pelo nacional-socialismo”21. Parafraseando
Rougemont, a Europa sempre existiu: “ Deixareis de existir por não terdes
reconhecido que só de vós depende existir – pois, apesar de tudo já existir, já
existis todos desde há séculos e apenas se trata de o reconhecer! Portanto, aqueles
que dizem que não existis terão razão enquanto alimentarem as vossas divisões.
Na verdade, só podereis existir todos juntos”22. Eis a solução para a Europa ser,
ainda, mais Europa: a união de todos os europeus.

Uma unidade de Cultura

Toda a história da Europa evidencia uma unidade que interessa preservar.


Desde Pierre Dubois, quando já em 1308 escrevia uma carta aos governantes
da Europa propondo a união contra os turcos. Muitos outros planos a favor do
povo europeu iriam sendo arquitectados ao longo da história, sendo de relevar
os planos de Emeric Crucé, no século XVII. Também o duque de Sully, Cómenius,
William Penn e o seu “Ensaio sobre a paz presente e futura da Europa”, ou, no
século seguinte, os Projectos de Paz Perpétua do Abade de Saint-Pierre (1712) e
de Emmanuel Kant (1795). Todos eram unânimes em considerar a necessidade
de unir a Europa, modificando-se, apenas, os motivos imediatos da união,
como Saint-Simon que, em 1815, decide publicar um plano de reorganização
da sociedade europeia, muito próximo do que viria a ser o mercado comum.
Seriam, sem dúvida, as grandes guerras do século XX a determinarem o futuro da
Europa. As grandes preocupações seriam a Paz, a Prosperidade e a Comunidade
Espiritual, áreas das três comissões do Congresso da Europa, em Haia: comissão
política, económica e cultural.
A primeira seria concretizada pela Comissão política que levaria à criação do
Conselho da Europa; a segunda pela comissão económica que impulsionaria a fusão
dos interesses essenciais das nações, na altura o Carvão e o Aço, que levariam à criação
da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, C.E.C.A., à qual viria a acrescentar-
se a Comunidade Económica Europeia – CEE – em 1957. A última, a Comunidade
Espiritual, parecia ter-se perdido no tempo ou parecer utópica, sem lugar. Que
pretendia esta comunidade espiritual? Diz o próprio Rougemont: “ E a comunidade
espiritual pela reunião das forças vivas da cultura, para além das fronteiras e dos
nacionalismos”23. Estas “forças vivas da cultura” são as mais difíceis de unir, mas são,
também, as que mais garantias oferecem para uma verdadeira união europeia. Todos
os interesses políticos e económicos vão-se alterando com o tempo, restando como

21
Idem, ibidem.
22
Idem, ibidem.
23
Idem, ibidem, p. 17.

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“guardiã” da Europa essa cultura comum europeia fundada num passado comum.
Essa vertente cultural da união europeia já tinha sido considerada em Haia como
uma “prioridade”, arrastada no tempo até aos dias que vivemos.

Um Centro Europeu da Cultura

É interessante lembrar que a comissão cultural de Haia não gerou uma


Europa da Cultura, mas, também, não morreu, dando origem à criação, em 1949,
em Genebra, de um Centro Europeu da Cultura. Podemos ler nas entrelinhas, que
Rougemont percebeu que o seu federalismo não seria a via seguida pela Europa,
já que a integração abandonava essa opção política. No entanto, o seu espírito
visionário acreditava que um centro desta natureza permitia conservar a ideia
de uma “comunidade espiritual” para a Europa, alimentada pelo surgimento de
Associações, Institutos e Casas da Europa, que despertassem o sentimento de
proveniência comum dos europeus.
Eis que surgiriam duas Europas – a Europa económica e a Europa cultural.
A primeira visível, nos passos concretos de integração europeia, e a segunda,
quase, invisível, mas, afinal, a “alma” da primeira, e que fazia da aventura
espiritual europeia a sua prioridade e dos europeus os seus principais actores,
quase “dispensados” no modelo económico seguido. Nesta Europa circulavam
sobretudo mercadorias, mas não circulavam ideias. O Espírito da Europa
permanecia e animava todos os que, como Denis de Rougemont, acreditavam
que era necessário construir a Europa pelas bases:
“Todas as razões do mundo, tanto negativas como positivas, nos obrigam
a unir a Europa, mas o certo é que nada ou quase nada se fez à escala da Europa
inteira. Vinte e cinco anos de discursos insistindo, desde o primeiro (o de
Churchill, em Zurique), na urgência vital da questão; e um progresso de facto que
evoca para o humorista o rapto da Europa por um caracol… Parte desta constatação,
deste escândalo, terá de recomeçar tudo pela base.

EUROPEIAS, EUROPEUS!

Não escrevo uma defesa. Não vos digo o que é preciso fazer. Não, não é para
aqueles que ainda não repararam como é vital para os Europeus fazer a Europa
que eu escrevo. Escrevo para os que sabem que a Europa tem que se unir, mas
que fazem de si próprios estas duas perguntas: Poder-se-á fazer a Europa? Como?
Digo que se pode fundar a união da Europa sobre a unidade de cultura que
ela forma e que a forma desde há dois ou três milénios. Vejo que esta unidade é
comparável à de um corpo organizado: é feita de diversidades e tensões, não é
por completo homogénea”24.

24
Idem, ibidem, p. 22.

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Esta Europa tem de se fazer a partir de uma ideia: uma ideia europeia. O que
falta à Europa dos Estados é essa ideia criadora, um programa, uma verdadeira
unidade. Quando perguntavam o “Que é a Europa? Será capaz de me responder
numa frase? Eu digo: A Europa é qualquer coisa que é preciso unir”25. Essa união deve
ser feita a partir de uma civilização e de uma cultura que, de perto, parecem muito
diferentes entre as várias nações, mas de longe, vistas, por exemplo, da América, são
de uma unidade evidente e todos somos bem europeus: “Vista de bastante longe,
a Europa é evidente. Vistos da América, seja qual for a nossa nação, somos todos
europeus. Vistos da Ásia, nem vale a pena insistir, tomamo-nos mesmo, por vezes,
por americanos!”26. Pelo contrário, “Vista de demasiado perto, em contrapartida,
não há Europa!...Não será o Europeu esse homem estranho que se manifesta como Europeu
na medida exacta em que duvida que o seja e pretende, ao contrário, identificar-se quer com
o homem universal, quer com o homem de uma só nação do grande complexo continental do
qual se revela assim parte integrante, apenas porque o contesta?”27.
Em síntese, a Europa era a pátria da diversidade mas tinha uma original e
profunda unidade que lhe permite ter uma consciência comum europeia. Só os
nacionalismos esmagaram essa unidade e esse civismo europeu, apresentando
a Europa como um puzzle de nações e a cultura europeia como um somatório de
culturas distintas e mesmo rivais. Os mesmos nacionalismos esmagaram, também,
a própria Europa provocando conflitos sanguinários.

A Educação Europeia

A grande originalidade de Denis de Rougemont está em acreditar que o


caminho para criar uma verdadeira união europeia está na educação. Cabe aos
professores difundirem as várias culturas dos países europeus, como pertencentes
a uma cultura europeia:
“Roland de Lassus não pertence nem à Bélgica, nem à França, nem à Itália
actuais, do mesmo modo que Grünewald não se tornou um pintor francês em virtude
da anexação de Colmar à França, quase três séculos depois da sua morte. Quer se
trate de música, de pintura, de arquitectura, de filosofia ou de ciência, para já não
falar de religião que a todos inspira à partida, não existe um único ramo na nossa
cultura que não resulte de mil intercâmbios tecendo a obra comum dos europeus; e
não existe uma única que se possa estudar de maneira séria ou inteligível no campo
limitado pelas fronteiras de uma só das nossas nações actuais. Não há uma pintura
francesa como não há química alemã ou matemáticas soviéticas, porque antes de
todas estas divisões arbitrárias existia a grande comunidade de criações e influências
mútuas que sempre se chamará Europa na história do espírito humano28”.

25
Idem, ibidem, p. 24.
26
Idem, ibidem, p. 29.
27
Idem, ibidem, p. 29.
28
Idem, Ibidem, p. 59.

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Carta Aberta aos Europeus, por Denis de Rougemont, p. 305-325

A melhor maneira de criar cidadãos europeus é através de uma educação


europeia. A verdadeira unidade europeia não começa nos políticos, mas nos
cidadãos educados para serem europeus. Por isso, é necessário contar a Europa às
crianças e jovens para vir a formar cidadãos europeus. O grito de Rougemont é de
alarme:
“Ó professores todo-poderosos do ensino secundário! Mostrar isto sem
descanso, a todo o momento, aos vossos alunos, não é somente fazer História
honesta após um século de falsificação nacionalista das perspectivas; é também
fazer a Europa nos espíritos jovens e mostrar a sua unidade fundamental, base da
união que está por fazer”29.
São palavras bem actuais, ainda por concretizar. A Educação para a Europa é
a solução apresentada para uma mais profunda construção europeia. Urge e-ducere,
isto é, conduzir os alunos a “fazer Europa antes de fazer a Europa; o mesmo é dizer
que se trata menos de ensinar a união da Europa que de educar nos nossos filhos
o Europeu, pelo próprio estilo da educação”30. Era esta a via apresentada para
ultrapassar a decadência europeia, bem expressa por Paul Valéry, já em 1919, logo
após a primeira guerra mundial: “Nós as civilizações, sabemos agora que somos
mortais”31.
Apesar dos sinais de decadência europeia, sentidos em todos os tempos, “a
civilização europeia é a única que se tornou efectivamente universal”32. Conclui
Rougemont: “Onde está, portanto, todo este eclipse da Europa como cultura? No
espírito dos seus intelectuais, somente”33.
Esta ideia de uma Educação Comum Europeia, tendo no horizonte, a criação
de um espírito comum europeu, seria retomada na actualidade com a proposta
alemã de criação de um Livro Europeu de História, por ocasião da sua presidência
da União Europeia. Com o sugestivo título “E se a Europa lesse o mesmo livro
de História?”, a imprensa portuguesa daria conta desse projecto. Esse livro teria
como destinatários os estudantes dos 27 estados-membros, servindo-se do manual
franco-alemão como modelo. Esta intenção, protagonizada pela ministra da
Educação alemã, Annete Schavan, pretendia “ajudar a relançar os valores comuns
europeus”34. Embora alvo de muitas críticas, nomeadamente do ministro polaco,
Roman Gyvertich, este projecto entusiasmou Angela Merkel, chanceler alemã, mas,
também, conquistou Espanha. Para a Holanda, a República Checa e a Dinamarca,
a ideia não os entusiasma, sendo mesmo perigosa para o Reino Unido, parecendo
usar o sistema educativo para explorar o seu passado nazi.

29
Idem, ibidem, p. 59.
30
Idem, ibidem, p. 70.
31
Idem, ibidem, p. 85.
32
Idem, ibidem, p. 89.
33
Idem, ibidem, p. 94.
34
“E se toda a Europa lesse o mesmo livro de História?”, Diário de Notícias, 8 de Março de 2007, p. 3.

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Isabel Baltazar

Carta aberta a todos os europeus

A mensagem final é de esperança na Europa dos europeus. Uma Europa


unida na diversidade, proposta por Denis de Rougemont e que soa bem actual.
Para o autor fazer a Europa passa pela solução federalista, como sabemos. Diz ele:
“O obstáculo a toda a união possível da Europa, portanto, a toda a união
federal, não é outro senão o Estado-Nação, tal como Napoleão o modelou,
integralmente centralizado com vista à guerra. É este modelo que todos os povos
da Europa, grandes e pequenos, imitaram uns após outros, ao longo do século
XIX, seguidos nos nossos dias pelo resto do mundo, principalmente pelo Terceiro
Mundo, mal descolonizado neste aspecto…”35.
No entanto, o que está verdadeiramente em causa é criar um espírito
europeu. Um espírito só possível entre uma unidade de culturas, sempre de
cariz espiritual, protagonizada pelos europeus e nunca pelos Estados. Lembra
Rougemont que um Estado-Nação submete pela força realidades diferentes, que
não têm entre si nenhum elo natural: fronteiras, língua, economia, ideologias ou
religiões. No fundo, é unir realidades essencialmente distintas, como afirma o
autor:
“Nada, portanto, mais hostil a toda a espécie de união mais ou menos séria
ou sincera que este Estado-Nação que, aliás, se revela incapaz de responder
às exigências concretas do nosso tempo, pois é simultaneamente demasiado
pequeno para o mundo, demasiado grande para as suas regiões e sem outra
correspondência que não seja acidental com um espaço económico definido pela
natureza das coisas ou por um projecto racional.
Ora, eis a ironia trágica da nossa história: é na base deste obstáculo radical a
toda a união que nos esforçamos desde há vinte e cinco anos, por unir a Europa!
Eis o que explica suficientemente, creio eu, o motivo por que não se avançou um
metro em direcção à nossa união política.
Quer se lhe chame a Europa das pátrias, das nações, dos Estados ou das
soberanias, a união da Europa não se fará sobre a grande confusão, tão cara aos
homens de Estado, das nossas diversidades e das nossas divisões”36.
Embora esta visão seja influenciada por uma opção federalista de base, não
deixa de ser bem actual a encruzilhada anunciada: a unidade da Europa com base
numa natureza “acidental”, a unidade de interesses económicos, sem avistar,
nem ao longe qualquer consenso político e, ainda mais longínquo, um verdadeiro
projecto europeu com base cultural e que envolva os europeus. Lembra o autor
que “ainda não se avançou um metro em direcção à nossa união política”, quadro
de uma actualidade impressionante, por faltar o sentido de uma verdadeira
união, só possível se fundamentada em interesses mais profundos. Esta união
não pode ser feita pelos homens de Estado, tem de ser feita pelos europeus:

35
Idem, Ibidem, p. 118.
36
Idem, ibidem, pp. 119-120.

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Carta Aberta aos Europeus, por Denis de Rougemont, p. 305-325

“Europeias, Europeus, deixai de imaginar que os vossos homens de Estado


têm verdadeiramente a intenção de fazer a Europa! (…) A Europa não se fará
também espontaneamente, pela força das coisas, que é a medida exacta da fraqueza
do nosso espírito, ou por ser necessária, ou ainda em virtude de qualquer sentido
da História que nunca ninguém conheceu, não conhece nem poderá vir a conhecer,
na verdade, antes dos fins dos tempos e do Juízo Final.
Europeias, Europeus, sereis vós quem fará a Europa e mais ninguém, com a
única condição de que o queirais verdadeiramente”37.
A Europa dos Europeus é muito mais duradoura do que a Europa das Nações.
Como dizia Renan, “As nações não são nada de eterno. Começaram, acabarão.
A confederação europeia substituí-las-á provavelmente”38. A humanidade
permanecerá para além da vontade dos Estados; os europeus são a verdadeira
realidade europeia. É sobre a realidade europeia que se pode edificar uma Europa
unida. É, sem dúvida, uma tarefa mais difícil de realizar do “que a Europa dos
mitos nacionais, mas incomparavelmente mais interessante de viver!”39.
Esta Europa – a Europa dos europeus – será o resultado do espírito
europeu, representado pelas europeias e europeus de todos os tempos. Esta
Europa fundamentada numa comunidade cultural europeia tem a adesão de
(quase) todos os europeus. Nesse sentido, são cada vez menos os antieuropeus,
sobretudo os jovens com menos de trinta anos, a quem Denis de Rougemont se
dirige especialmente:
“Europeias, europeus de menos de trinta anos! Podereis, finalmente,
compreender que a única possibilidade de fazer a revolução é fazer a Europa das
regiões, refazer uma comunidade”40. Esta revolução não significa destruir tudo
para fazer de novo, mas construir algo de novo a partir da realidade vivida: “A
revolução que preconizo, a única que fará a Europa e que só pode ser feita pela
Europa prestes a fazer-se, consiste, em notável analogia com a Renascença e as
suas etapas, em deslocar o centro do sistema político não só da Nação para a
Europa, mas também para a Humanidade no seu conjunto e, ao mesmo tempo,
para a pessoa”41.
Esta humanidade no seu conjunto transporta em si a memória histórica
na qual encontra as bases para uma união. É a partir desta base de natureza
histórico-cultural que constrói o seu futuro. Será uma utopia? Responde o
próprio Rougemont: “ Se me disserem agora que não passa de utopia querer
ultrapassar o Estado-Nação, respondo que se trata, ao contrário, da grande tarefa
política do nosso tempo ou, mais precisamente, dos próximos vinte anos. Na
verdade, só a este preço faremos a Europa e fá-la-emos para toda a Humanidade,

37
Idem, Ibidem, p. 133.
38
Ernest Renan, Qu’est-ce qu’une Nation? Paris, 1882, p. 11.
39
Denis de Rougemont, op.cit., p. 179.
40
Idem, ibidem, p. 185.
41
Idem, Ibidem, pp. 185-186.

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Isabel Baltazar

pois devemos-lhe isso!”42. Esta Europa não é a Europa ideal, é a Europa possível:
“Uma Europa que não será necessariamente a mais poderosa ou a mais rica; será,
isso sim, esse canto do planeta indispensável ao mundo de amanhã, onde os
homens de todas as raças poderão encontrar não talvez mais felicidade, mas mais
sabor, mais sentido de vida”43.
São estas as últimas palavras da Carta Aberta aos Europeus. Uma carta aberta
no tempo, à espera de poder ser ouvida e a sua mensagem concretizada. Uma
carta para os europeus do seu tempo e de todos os tempos. Uma carta que na
actualidade encontra os primeiros passos de realização. Será o século XXI o
tempo do visionário?

Reflexões finais

As ideias de Denis de Rougemont conservam uma grande actualidade e


oportunidade de realização. O ano de 2008 – Ano Europeu do Diálogo Intercultural
– parece ter sido a tentativa de concretização de parte da mensagem da sua carta.
Sobretudo a tentativa de encontrar uma saída para a crise de civilização anunciada
em vários momentos da história da humanidade e, vivida muito particularmente
pela Europa no fim do século XX44.
Tendo como lema Unida na Diversidade, a Europa pretende concretizar a
ideia de uma identidade fundamentada na pluralidade cultural, considerando
a cultura como a possibilidade de unir animicamente os europeus. Esta ideia,
tão presente na actualidade, está no projecto historicamente idealizado por Jean
Monnet para uma verdadeira construção europeia, “utopia” sem tempo e lugar
para realizar nos primórdios da construção europeia. Seria, por isso, substituída
pelo pragmatismo daquele pai fundador que encontraria na economia um
interesse “aparentemente” bem mais atractivo para iniciar a vida da já centenária
União Europeia.
As dificuldades que a história tem mostrado em unir países e, ainda mais, em
unir povos, e a própria encruzilhada em que se encontra a União Europeia sobre
o método a seguir, mostram um futuro incerto. Daí a necessidade de regressar
às origens da Europa e às pedras lapidares comuns que construíram os estados
europeus e características culturais comuns aos seus povos, em busca de dar um
sentido ao caminho.
A imprensa nacional e internacional tem dado conta desses esforços à opinião
pública, talvez, a mais céptica sobre uma União Europeia que tem vivido desunida
dos cidadãos europeus, a julgar pelos resultados das sondagens sobre o que pensam

42
Idem, Ibidem, p. 190.
43
Idem, Ibidem, p. 190.
44
A este propósito leia-se a reflexão sobbre o assunto de Fernand Moran, “Europa: de lo implícito a
lo explicito”, in José Luís Abellán, El reto Europeo. Identidades culturales en el cambio de siglo, Madrid,
Editorial Trotta, 1994, pp. 21-30.

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Carta Aberta aos Europeus, por Denis de Rougemont, p. 305-325

os cidadãos sobre a Europa. Terá chegado a hora de ouvir os europeus sobre o que
desejam para uma entidade sem uma verdadeira identidade? A União Europeia
continua a ser esse OPNI – Objecto Político Não Identificado –, utilizando a célebre
expressão de Jacques Delors, e o aprofundamento político não parece ser a vontade
de ninguém, nem dos europeus nem dos próprios políticos.
Parece evidente que reconstruir a Europa passa por “ressuscitar” o
paneuropeísmo por que tanto lutou Coudenhove-Kalergi, ainda antes da Segunda
Guerra Mundial. Perante os problemas actuais que a Europa enfrenta, cada vez se
torna mais necessário regressar ao passado europeu para construir o futuro. Nesse
passado de uma história comum há um povo europeu, cuja herança histórica lhe
garante uma unidade cultural aberta à pluralidade, travando tentações racistas
ou xenofóbicas entre si. Não será este o sonho europeu?45
Terá chegado a hora de mudar o rumo à Europa para (re)encontrar a
sua essencialidade? Finalmente, parece ter chegado o tempo de dar a voz aos
intelectuais, que nunca deixaram de pensar a Europa, em si mesma, sem interesses
económicos materializados em tratados. Essa velha Europa, com uma longa vida,
com uma herança cultural única, mas cuja história haveria de mostrar-lhe a face
da(s) guerra(s). Seria nesse contexto sangrento que se iniciariam os esforços de
união europeia, primeiro de unidade europeia, a seguir à primeira grande guerra,
e de efectiva construção europeia após o segundo conflito mundial.
Após 50 Anos, a Europa tornou-se uma “utopia interessante”46 e, ao
mesmo tempo, uma “casa da impotência”47, segundo as expressões do pensador
português da Europa, Eduardo Lourenço. Basta recordar os efeitos do debate
sobre a Constituição Europeia. O mesmo autor reconhece que, apesar de tudo, a
“Europa nunca foi mais Europa do que hoje”48.
Também Jacques Le Goff, um dos maiores historiadores contemporâneos,
é céptico em relação a uma Europa política e aos seus efeitos nacionalistas,
propondo uma Europa Cultural49: “A Europa unida deve ser acima de tudo
cultural. A História mostra-nos que, em toda a Europa, da Escandinávia à
Grécia e a Portugal, existem elementos fundamentais de uma mesma cultura e,
também, de uma Europa política”50. Por isso, olha com apreensão o futuro da
Europa e o actual processo da construção europeia: “Vejo-as infelizmente com
um certo pesar, porque já não há o entusiasmo, a vontade de construir a Europa
que havia na segunda metade do século XX. Há o que se chama uma espécie de
eurocepticismo. Predomina a ideia de fazer da Europa, como quer a maioria dos

45
A este propósito refira-se o interessante artigo de Xavier Flores, “El sueño de Europa”, José Luis
Abellán (coord.), El reto europeo: identidades culturales en el cambio de siglo, Mardid, Editorial Trotta,
1994, pp. 107-117.
46
Eduardo Lourenço, A Europa desencantada. Para uma Mitologia Europeia, Lisboa, Gradiva, 2001, p.
179.
47
Idem, Ibidem.
48
Idem, Ibidem, p. 239.
49
Jacques Le Goff, “Por uma Europa cultural”, Jornal de Letras, 25 a 8 de Maio de 2007, p. 9.
50
Idem, ibidem.

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Isabel Baltazar

ingleses, uma grande zona económica…”51.


Seriam os próprios políticos a reconhecer que o que a Europa precisa é de
uma alma, ou seja, a necessidade de dar uma alma à Europa. Foi esse o lema do
Encontro de Berlim52, em Novembro de 2004, lembrando a herança espiritual e os
valores comuns da Europa. Na mesma linha, se realizariam os Encontros para a
Cultura na Europa53, que reuniriam em Paris, no ano seguinte, 800 personalidades
de todos os países da União Europeia, tendo como objectivo “afirmar a dimensão
cultural da Europa”54. Para além da Declaração a Favor de uma Carta de Intenções
para a Europa e a Cultura55, evidenciando que a cultura está na origem da Europa
em que vivemos, estes encontros têm o mérito de mobilizarem os europeus para
a construção europeia. Pelo menos intencionalmente, propondo uma unidade
cultural que seja a conjugação das diversidades culturais europeias. Uma Europa
a várias vozes, ou seja, cuja identidade seja feita da diversidade.
Por uma Europa Cultural: eis a conclusão de todas estas tentativas actuais
de concretizar uma verdadeira união europeia. Uma Europa unida pela cultura e
não pela economia, uma Europa que envolva os europeus no seu próprio destino,
uma Europa com Alma.
Este ano de 2008 ficaria assinalado como o Ano Europeu do Diálogo
Intercultural. Esta iniciativa inscreveu-se na concretização dos princípios dos
tratados, especialmente da Carta dos Direitos Fundamentais56 sobre o respeito e
a promoção da diversidade cultural.
Será esta ideia a materialização de tantas ideias e intenções políticas, agora
levadas à prática? Será que todos os europeus viveram este ano como uma
motivação para o diálogo entre culturas? É tempo de eliminar preconceitos e
ideias feitas sobre o outro e partir à sua descoberta. A melhor forma é incentivar
o diálogo intercultural, promovendo os valores comuns e a noção de respeito
mútuo. É tempo de educar os europeus no sentido de reconhecerem que a
diferença não opõe mas enriquece. Finalmente, é tempo de reconhecer que a
grande diversidade cultural europeia representa uma vantagem. É esse o sentido
do lema adoptado: Juntos na Diversidade57. Talvez por isso, a escolha de Ljubliana,
na Eslovénia para lançar este ano, enfatizando a carácter intercultural da Europa.
Como dizia Ján Figel, comissário europeu para a Educação, Formação, Cultura e
Juventude,”queremos ir para além das sociedades multiculturais onde diferentes
grupos e culturas coexistem lado a lado: a mera tolerância já não é suficiente.

51
Idem, Ibidem.
52
Veja-se o artigo “Ministros propõem Carta da Cultura”, Diário de Notícias, 28 de Novembro de 2004,
p. 19.
53
“A Cultura Europeia encontra-se em Paris”, Público, 2 de Maio de 2004, p. 32.
54
Idem, Ibidem.
55
“A Cultura na Defesa da Europa”, Jornal de Letras, 11 a 24 de Maio de 2005, p. 6.
56
Cfr. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Jornal Oficial das Comunidades Europeias,
C 364/01 de 18.12.2000.
57
“Declaração de Berlim assinala 50 Anos da União Europeia”, in http:/Europa.eu/50, 28 de Março
de 2007.

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Carta Aberta aos Europeus, por Denis de Rougemont, p. 305-325

Precisamos de dar um impulso para conseguir uma verdadeira metamorfose nas


nossas sociedades, de modo a conseguirmos criar uma Europa intercultural, com
respeito universal pela dignidade humana”58.
Refira-se a recente Conferência Gulbenkian, a 27 e 28 de Outubro, cuja
pertinente interrogação temática “Podemos viver sem o outro?”, mostra “as
possibilidades e os limites da interculturalidade”59. Uma interculturalidade que
só poderá ser vivida se interiorizada. Mais uma vez, para além da cultura, a
grande missão da Educação, como lembra Denis de Rougemont. Uma Educação
para os valores, cujo valor da tolerância será a pedra angular da possibilidade de
um verdadeiro diálogo. Também o Tratado de Lisboa vem abrir novos horizontes
para uma Europa da paz, do desenvolvimento e da diversidade cultural.
Uma Europa da união na diversidade. Uma Europa do diálogo. Uma
Europa da Cultura. As ideias para a Europa do passado parecem ter encontrado
uma força criadora para a sua realização. São as ideias à frente do seu tempo
que podem construir o futuro. A Europa parece mais próxima do equilíbrio ou,
pelo menos, procura esse equilíbrio. Viria o tempo a confirmar as “profecias” de
Rougemont?

58
“Eslovénia: Ano Europeu do Diálogo Intercultural”, Público, 6 de Novembro de 2008, p. 1.
59
“Podemos viver sem o outro? As possibilidades e os limites da interculturalidade”, in Newsletter da
Fundação Calouste Gulbenkian, nº 97, Outubro de 2008, p. 18.

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