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MÁRIO DE ANDRADE AINDA VIVE?

O ideário modernista em questão

Yvonne Maggie

Daniel foi o primeiro classificado no mais di- brasileira, um Macunaíma, podendo escolher en-
fícil vestibular de uma universidade pública, o tre as categorias negro, pardo, preto, indígena ou
vestibular de medicina da Universidade Estadual mesmo branco e podendo ser visto também da
do Rio de Janeiro (Uerj) em 2003, com a nota mesma forma pelas outras pessoas. Na verdade,
mais alta entre todos os candidatos. O jovem de declarou sua cor porque os candidatos ao vesti-
25 anos foi entrevistado pela Rede Globo de tele- bular da Uerj em 2003, pela primeira vez em nos-
visão no seu programa de domingo, o Fantástico. sa história, foram induzidos a escolher entre duas
Sem medo das câmeras, com um sorriso largo e categorias negro/pardo ou branco, pois se havia
rosto moreno, cabelos cortados rente à cabeça, o instituído 40% de cotas para negros e pardos,
jovem disse ter se declarado pardo na ficha de além de 50% de cotas para estudantes de escolas
inscrição do primeiro vestibular das cotas para ne- públicas.1 O candidato em questão não precisava
gros e pardos, instituídas por força de lei, porque do sistema de cotas para entrar na universidade,
vinha de uma família de “origem negra”. Tendo pois foi o que teve o melhor desempenho entre
uma bisavó negra, achava que não poderia se todos os candidatos no vestibular. Ele já tinha se
considerar branco e decidiu declarar-se pardo. posicionado contra o sistema de cotas e assim
Daniel pode ser considerado de aparência típica como muitas pessoas que enviaram cartas aos jor-
nais com suas opiniões depois que o sistema foi
Artigo recebido em janeiro/2005 implantado em 2002, e mesmo quando foi insti-
Aprovado em abril/2005 tuído dois anos antes.2

RBCS Vol. 20 nº. 58 junho/2005


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Uma outra candidata com a mesma aparên- de seu gradiente de cor que aproxima os pólos
cia “misturada” de Daniel, também entrevistada negro e branco. Os números descrevem uma so-
em outro programa de TV, disse que não se decla- ciedade partida entre negros e brancos, como o
rou negra ou parda com medo de ser considerada faz também a introdução de cotas, ou reservas de
mentirosa, pois a lei diz que os candidatos devem vagas, para “negros” na função pública federal e
firmar sua própria identidade, “sob as penas da nas universidades do Estado do Rio de Janeiro.
lei”. Desolada por não ter obtido uma vaga, ape- Há, contudo, uma pergunta que paira no ar: por
sar de ter tido nota superior a muitos que se de- que só agora esses números, já conhecidos pelo
clararam negros ou pardos, disse que pensava em menos desde os anos de 1950 com o Projeto da
entrar na justiça para fazer valer o seu direito. Unesco,5 e que foram mais estudados nos anos de
Qual o significado desse acontecimento, a 1970, com os trabalhos de Nelson do Valle Silva
mudança de uma lei, e como pode afetar a estru- (1978), Carlos Hasenbalg (1979) e Oliveira et al.
tura de nossa sociedade baseada em um sistema de (1983), saíram do círculo restrito dos poucos es-
valores que não aposta na oposição, mas na com- pecialistas do tema e ganharam a mídia, transfor-
plementaridade, no que une e não no que separa?3 mando-se em contra-discurso ou em negação de
Minha intenção neste trabalho é refletir so-
uma versão da nossa nacionalidade que até on-
bre a hipótese de que se inicia uma espécie de
tem estava presente inclusive no discurso dos mi-
terremoto na maneira pela qual o Brasil pensa o
litantes dos movimentos negros?
Brasil no alvorecer do século XXI. Com a recente
Cabe indagar: será que a nação segregada nos
legislação sobre cotas para negros nas universida-
números é a mesma presente nos bairros das peri-
des e no serviço público federal a idéia de nação
ferias, na mente dos cantadores, nas salas de aula
misturada da “fábula das três raças” parece ter
desconfortáveis dos cursos pré-vestibular do Movi-
sido questionada, cedendo lugar à noção de uma
mento do Pré-Vestibular para Negros e Carentes
nação dividida entre negros e brancos.
(PVNC)? Há ainda alguma forma de interpretar o
Pela primeira vez na nossa história desde os
mito da democracia racial como um mapa para a
anos de 1920, a elite brasileira parece ter lançado
ação social e compromisso com o igualitarismo
por terra as bases do pensamento que permitiu a
criação de nossa cultura mais radicalmente nacio- como fez Peter Fry (2000) ao discutir as interpreta-
nal e cosmopolita. O ideário de brasilidade moder- ções de Pierre Bourdieu e Loic Wacquant (1998)
nista de Mário e Oswald de Andrade, de Paulo Pra- sobre as ações afirmativas no Brasil? Há como ser-
do e Sérgio Buarque de Holanda, de Gilberto vir a dois senhores, de um lado apostar na mistu-
Freyre e Di Cavalcanti, de Tarsila do Amaral e Ani- ra, no que une, e, de outro, no que é diverso e se-
ta Malfati está sob suspeita. Todo o esforço em- para? Esses dois modelos vêm sendo discutidos e
preendido nos anos de 1930 para positivar a mes- destrinchados por Peter Fry em inúmeros de seus
tiçagem parece estar sendo posto a baixo. Os trabalhos desde o clássico “Feijoada e soul food”
números das desigualdades raciais, divulgados re- nos anos de 1980 até os recentes artigos sobre as
centemente por Ricardo Henriques e Roberto Mar- conseqüências das políticas coloniais, reunidos no
tins do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplica- livro A persistência da raça, Fry (2005b).6
das (Ipea) por ocasião da preparação da III Neste trabalho, volto-me para os nossos he-
Conferência Mundial das Nações Unidas4 ocorrida róis fundadores porque acredito ser correto reto-
em Durban, na África do Sul, em 2001, passaram a mar o debate de onde começou. É com certeza
constituir uma “verdade” da nação. difícil discorrer sobre essas transformações que
O Brasil deve se pensar, agora, a partir das agora se apresentam carregadas de muita moral
categorias “negro” e “branco”, construídas para “politicamente correta”. Mas é impossível se calar
desvendar a nossa estrutura social, e não a partir diante desses acontecimentos. Essa nova versão
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de um Brasil que é imaginado ou deveria ser ima- “contra”, como alguns podem interpretar. O ideá-
ginado como uma nação segregada em duas “ra- rio modernista mudou nesses trinta anos e influen-
ças”7 tem seduzido muitos adeptos não só entre ciou, de forma diversa, muitas gerações desde a
os movimentos sociais como entre os bem pen- década de 1920.12 A contestação desse ideário tam-
santes de nossa sociedade.8 bém foi surgindo ao poucos com a persistente crí-
tica ao “mito da democracia racial” empreendida
pelos movimentos negros desde pelo menos os
Macunaíma e o Manifesto anos de 1950. Não vou aqui descrever esse proces-
antropófago so que foi tão bem analisado por Fabiano Dias
Monteiro (2003) em sua dissertação de mestrado.
Em 1928, Mário de Andrade publicava o clás- Neste trabalho vou deixar de lado o longo proces-
sico Macunaíma: um herói sem nenhum caráter so que gerou os dois modelos e buscar, carregan-
dedicado a Paulo Prado, que no final do mesmo do nas tintas, opor duas versões que estão sendo
ano publicaria o seu Retrato do Brasil. O romance postas na mesa neste início do século XXI.
é uma história baseada em lendas e mitos brasilei- Voltando ao romance Macunaíma, embora
ros.9 O personagem central, Macunaíma, foi cons- seja uma história já clássica, não custa refrescar a
truído a partir da descrição feita pelo naturalista memória. Mário começou o livro, que chamou de
alemão Theodor Koch-Grünberg em Vom Roroima poema ou rapsódia, relatando o nascimento do
zum Orinoco (Do Roraima ao Orenoco) publica- nosso herói:
do, em cinco volumes, entre 1916 e 1924.
Mário não estava só nesta empreitada que No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma,
foi a de sua geração. Seu argumento, no entanto, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do
não surgia do nada. É preciso lembrar que se an- medo da noite. Houve um momento em que o si-
lêncio foi tão grande escutando o murmurejo do
corava em idéias enraizadas na nossa cultura já
Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma
no século XIX, basta pensar na tese de Carl F. von
criança feia. Essa criança é que chamaram de Ma-
Martius, Como se deve escrever a história do Bra- cunaíma.
sil, vencedora do concurso do Instituto Histórico Já na meninice fez coisas de sarapantar. De pri-
e Geográfico Brasileiro em 1836.10 Esta monogra- meiro passou mais de seis anos não falando. Si o
fia marcou o futuro de nossa historiografia ao des- incitavam a falar exclamava:
crever nossa história a partir da mescla de bran- – Ai que preguiça!...
e não dizia mais nada.
cos, negros e índios na “raça brasileira” usando a
...As mulheres se riam muito simpatizadas, falan-
metáfora do encontro entre três rios. O argumen- do que “espinho que pinica de pequeno já traz
to da “raça” era tão forte que Mário numa primei- ponta,” e numa pajelança Rei Nagô fez um discur-
ra versão de Macunaíma teria optado pelo epíte- so e avisou que o herói era inteligente (Andrade
to de “herói de nossa raça”. Só mais tarde é que [1928] 1984, p. 9).
mudou para “herói de nossa gente”. No entanto,
tomarei aqui o romance como um marco para A história é longa e conta como Macunaíma,
pensar o que muda e o que permanece no nosso nascido preto, de mãe índia, virou branco quan-
ideário de nação nos últimos tempos.11 do foi parar na cidade depois de sair da mata vir-
Sei também que entre 1928 e 2000 muitas coi- gem. O encontro de Macunaíma com a cidade é
sas mudaram e não se pode apenas dizer que o belíssimo e descreve, às avessas, o espanto dos
modernismo é nossa única herança, mesmo por- colonizadores diante da cultura e da sociedade in-
que havia diferentes modernistas e diferentes pers- dígenas. É na cidade que se desenrola a trama
pectivas já naquela época. Não estou dizendo que principal. Macunaíma busca a muiraquitã e no de-
existem apenas os “adeptos da brasilidade” e os correr da narrativa vira, além de branco, inseto,
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peixe e até mesmo um pato. Decide travestir-se Macunaíma no alemão de Koch-Grünberg. E Ma-
de francesa para seduzir Venceslau Pietro Pietra, cunaíma é um herói surpreendentemente sem ca-
ráter. (Gozei). (Andrade, 2001, p. 169).
o gigante Piaimã, comedor de gente, companhei-
ro de uma caapora velha chamada Ceiuci, tam-
Mário e a geração modernista pensavam que
bém antropófaga e muito gulosa, para reconquis-
a história era ancorada no mais profundo incons-
tar a muiraquitã. Resolve procurar o terreiro de
ciente da nossa sociedade, a ponto de Oswald
Tia Ciata e lá pede a Exu que o auxilie a reaver a
chamar o romance de a Odisséia brasileira. Será
muiraquitã. A descrição do terreiro é maravilhosa
que pensavam mal? Teria sido toda essa invenção
e tia Ciata – uma mãe-de-santo que ficou na his-
de um país misturado, mestiço e onde o mito de
tória dos cultos afro-brasileiros – manda Exu cas-
igualdade entre as “raças” estava no cerne da uto-
tigar Venceslau Pietro Pietra em cena ontológica.
pia, uma ficção de uma elite que não conhecia e
Macunaíma procura até uma bolsa de estudos
nem via o que estava à sua volta? Seria esta uma
para ir para a Europa, e o romance termina como
invenção ou mito, no sentido de farsa ou menti-
um mito de origem, descrevendo como o herói
ra, que ganhou o mundo, transformando o nosso
virou brilho bonito, mas inútil, de estrela da cons-
destino de uma sociedade inviável, porque mesti-
telação da Ursa Maior. ça, em desiderato e fonte de todo o espanto?
Macunaíma é uma ficção escrita em seis Pensavam os modernistas e muitos depois
dias. Mário de Andrade revelou a sua descoberta deles que era preciso transformar os campos de
do herói em um prefácio que nunca chegou a pu- trigo em verdes plantações de abacaxi ou como
blicar junto com o romance. Telê Porto Ancona disse Mário, em carta de 1940, ao jovem poeta Al-
Lopez, em edição crítica do romance, transcreve phonsus de Guimaraens Filho referindo-se a ver-
o trecho em que Mário revela a sua intenção e o sos de “Lume de estrelas”:
significado que deu à sua descoberta:
Com o caso do “canavial” já não concordo com
O que me interessou por Macunaíma foi incontes- você. Si trigo é mais universal (não há dúvida),
tavelmente a preocupação em que vivo de traba- o é numa universalidade perigosa, Bíblia-via-Eu-
lhar e descobrir o mais que possa a entidade na- ropa. “Canavial” é exótico em Rilke? Não há dú-
cional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito vida e é isso que me interessa prá humanidade
verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasi- de você, pra não-esteriotipação de você: é que
leiro não tem caráter. Pode ser que alguém já te- se você tivesse falado sem vir através de cana-
nha falado isso antes de mim, porém, a minha viais, ou cafezais, ou de terras de ferro, isso se-
conclusão é uma novidade para mim porque tira- ria sua humanidade, sua Minas, seu Brasil, sua
da da minha experiência pessoal. E com a palavra América. “Trigo” é, no caso, um remígio do con-
caráter não determino apenas uma realidade mo- dor. Se observe bem e você verá que é (Andra-
ral não, em vez, entendo a entidade psíquica per- de e Bandeira, 1974, pp. 16-17).
manente, se manifestando por tudo, nos costumes,
na ação exterior, no sentimento, na língua, na His- Era preciso também gostar de ser brasileiro
tória, na andadura, tanto no bem como no mal. O
por acaso e por escolha e não querer ser outro.
brasileiro não tem caráter porque não possui nem
Era preciso descobrir o universal no nosso parti-
civilização própria nem consciência tradicional.
Os franceses têm caráter e assim os iorubas e os cular para transformá-lo em universal ou como di-
mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo zia o próprio Mário:
iminente, ou consciência de séculos tenham auxi-
liado, o certo é que esses uns têm caráter. Brasilei- Veja bem: abrasileiramento do brasileiro não quer
ro não. Está que nem o rapaz de 20 anos: a gente dizer regionalismo nem mesmo nacionalismo
mais ou menos pode perceber tendências gerais, Brasil pros brasileiros. Não é isso. Significa só que
mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no
[…] Pois quando matutava nessas coisas topei com concerto das nações que hoje em dia dirigem a
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Civilização da Terra, tem de concorrer com esse ropa não teria sequer a sua pobre declaração dos
concerto com a sua parte pessoal, com o que o direitos do homem (Idem, p. 14).
singulariza e individualiza, parte essa única que
poderá enriquecer e alargar a Civilização (Inojo- Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O
sa, apud Moraes, 1999). índio vestido de senador do Império. Fingindo de
Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio
de bons sentimentos portugueses (Idem, p. 16).
Mais contemporâneo não poderia ser e dian-
te de tanta moral politicamente correta, Mário pa- Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o
rece estar discutindo com aqueles que hoje que- Brasil tinha descoberto a felicidade (Idem, p. 18).
rem pensar a partir do que aqui é falta, ausência,
vazio em comparação com outras sociedades di- Era preciso descobrir a felicidade, ou seja,
tas civilizadas. A proposta modernista imaginava aquilo que nos tirava do destino trágico que nos
uma nação que tinha como singularidade a sua impunha a dominação européia. Ainda não tínha-
forma de lidar com as diferenças. Manuel Bandei- mos tido a experiência da Segunda Guerra Mun-
ra em sua Apresentação da poesia brasileira con- dial e nem tampouco do holocausto, e a declara-
ta como Mário pensava a estética e a brasilidade. ção dos direitos do homem, citada no manifesto,
Sobre o tema da brasilidade diz Mário: “Só sendo era a da Revolução Francesa, considerada pobre
brasileiro, isto é, adquirindo uma personalidade pelos jovens e rebeldes intelectuais que se empe-
racial e patriótica (sentido físico) brasileira é que nharam em desvendar esta idéia de uma nação
nos universalizaremos, pois que assim concorre- misturada e que estava unida pela antropofagia
remos com um contingente novo, novo assembla- dos Tupi que comeram o bispo Sardinha e com
ge de caracteres psíquicos para o enriquecimento ele a Europa vista daqui.
do universal humano” (Mário, apud Bandeira, Mas terá sido esta uma quimera de um gru-
s.d., p. 127). po da elite que estava ausente da nossa realida-
O modernismo foi um movimento estético de? Gilberto Freyre ([1933] 1995) foi um dos que
que tinha uma maneira toda própria de pensar a estavam na trilha modernista e Casa-grande e sen-
mistura e a busca de uma identidade que não fos- zala teve a primeira edição revista por Mário de
se aquela do universalismo iluminista, mas que Andrade.13 Era preciso transformar o país do pe-
fosse universal. Em nome da afirmação radical de sadelo do conde Gobineau,14 que só via um fim
nossa identidade, Oswald de Andrade assinou o trágico para tanta mistura, em uma utopia que nos
manifesto do grupo no mesmo ano da publicação colocaria em pé de igualdade com a Europa de
de Macunaíma, 1928, o Manifesto antropófago Descartes.15 Falo aqui do “pesadelo de Gobineau”,
que resumo aqui, com pena de não poder mos- porque ele é quase um ícone de uma geração de
trá-lo na íntegra: adeptos do darwinismo racial,16 que jogou todas
as suas fichas na idéia de que um país de “raças”
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Econo- mistas era inviável. Esse não era apenas o seu pe-
micamente. Filosoficamente. [...]. sadelo, mas o grande fantasma que atormentou
Única lei do mundo. Expressão mascarada de to- uma geração de pensadores do século XIX e que
dos os individualismos, de todos os coletivismos. volta aqui e ali a assombrar ainda no século XX.
De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Parece que o pesadelo renasce nessa grande mu-
dança do século que começamos a viver. Afinal, a
Tupi, or not tupi that is the question (Andrade,
1978, p. 13).
versão de um país dividido em brancos e negros
é uma versão contemporânea da idéia de que a
Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Re- mistura é ruim e nos torna inviáveis.
volução Francesa. A unificação de todas as revol- Assim, uma geração de escritores e artistas
tas eficazes na direção do homem. Sem nós a Eu- pintou o Brasil da Mulata, de Di Cavalcanti,17 do
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Abapurú e da Negra, de Tarsila do Amaral.18 E al- ça do então presidente Fernando Henrique Car-
gumas gerações depois deles continuaram pen- doso em Brasília no ano de 1996.22
sando e inventando um país que não teme esta Neste seminário ouviu-se pela primeira vez
mistura e faz dela a delícia e a dor de ser o que os ecos do debate entre essas duas concepções
somos. Não vou nomear todos, mas não se pode de nação. Aqueles que propugnavam uma nação
esquecer dos Concretos, e, sobretudo de Augusto que tem como mito e desejo uma sociedade igua-
de Campos e seu poema “Luxo”. E o que dizer en- litária, em que a “raça” não seja tomada como ca-
tão do movimento tropicalista e daqueles jovens racterística de distinção e desigualdade. Deste
dos anos de 1960 que até hoje compõem canções lado estavam os que se identificam e identificam
que falam do nosso paradoxo de ser Haiti e não a nossa brasilidade em Macunaíma. Fábio Wan-
ser o Haiti.19 Também não se deve esquecer do derley Reis (1997), na conferência intitulada “Mito
clássico filme de Joaquim Pedro de Andrade que, e valor da democracia racial”, e Roberto DaMatta
em 1969, faz uma releitura de Macunaíma, trans- (1997), na palestra “Notas sobre o racismo à bra-
formando o livro em obra cinematográfica que re- sileira”, defenderam esta posição Do outro lado
vela sua contemporaneidade. E o que dizer então estavam aqueles que descreviam este desiderato
dos trabalhos de Luiz Alphonsus O conceitual ca- da nossa nacionalidade como falsa consciência,
boclo20 e Índia e mato – paródia e metáfora da Ne- como falta, como o que nos falta porque compa-
gra de Tarsila – se não fosse essa interpretação do ram a nossa maneira de pensar a diferença com
Brasil inaugurada por Mário de Andrade e os mo- outras sociedades que pensam “raça” a partir da
dernistas na década de 1920. oposição e não da mistura. Esses últimos rom-
Outros percorreram os caminhos de Mário nas piam com o mito Macunaíma, que viam como ilu-
suas viagens do Turista aprendiz.21 O mesmo Her- são, e entre eles estavam os muitos pesquisadores
mano Vianna (1995) já havia revelado histórias fan- norte-americanos e alguns brasileiros ao lado de
tásticas da construção do samba no Rio de Janeiro. militantes novos e históricos.
A partir da descrição do encontro, em 1926 de Gil- Entre os pesquisadores brasileiros que pro-
berto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Pedro põem tratar desigualmente os desiguais, destaco a
Dantas, Heitor Villa Lobos e Luciano Garret com participação de Antonio Sergio Guimarães, que
Patrício, Donga e Pixinguinha, imortalizados por desde então escreve sobre o tema e que, nesse se-
seus apelidos no panteão da música popular brasi- minário, expôs de forma muito cartesiana os pres-
leira, Hermano Vianna nos leva a descobrir o mis- supostos deste tipo de engenharia social e de sua
tério do samba. O “encontro” ocorreu bem antes da aplicabilidade no Brasil. Mas havia outros como
publicação de Casa-grande e senzala (1933) e Raí- Thomas Skidmore (1997), Carlos Hasenbalg (1997),
zes do Brasil (1936), livros que foram fundamentais Angela Gilliam (1997), Anthony Marx (1997) e
para a definição da identidade moderna brasileira. George Reid Andrews (1997). Ativistas de movi-
Redescoberto por Hermano Vianna (1995) no livro mentos negro e o senador Abdias do Nascimento,
O mistério do samba, hoje referência fundamental, que não foi convidado para a mesa, da platéia, fa-
esse encontro é um achado para se compreender ziam inúmeras intervenções se posicionando ao
os caminhos traçados pela história do samba e de lado desses últimos.23
nossa identidade. Sem dúvida o debate que se iniciou no final
Não se pode esquecer também Roberto Da- dos anos de 1990 não apagou de jeito nenhum as
Matta em toda a sua obra, que se diz herdeira de vozes dos que ainda se pautam pela versão da fá-
Sérgio Buarque de Holanda, e especificamente bula das três raças como mito fundante da nação
em sua contribuição toda particular no seminário brasileira. Poderia ir listando e me lembrando de
“Multiculturalismo e racismo”, organizado pelo muitos que beberam na fonte do modernismo ou
Ministério da Justiça e que contou com a presen- que foram buscar inspiração na escuta sensível
MÁRIO DE ANDRADE AINDA VIVE? 11

dos muitos negros, morenos, mulatos, escuros, al- Tudo leva a crer que os revisores dessa le-
vos, claros, marrons etc. que vivem esses encon- gião de fundadores da brasilidade parecem estar
tros entre classes nos muitos rituais existentes na propondo mudanças radicais naquela concepção
nossa sociedade. de nação misturada e formada da mistura, que é
Terá sido todo esse esforço e muitos livros plástica e ambígua na classificação e autoclassifi-
inesquecíveis na nossa memória escritos em vão? cação, em nome do combate ao racismo, disto
Teriam sido seus autores apenas copiadores de que chamam de ideologia racial brasileira e em
uma mensagem que acabou como ideologia, trans- favor do fim das iníquas desigualdades raciais. As
figurando-se em refúgio de uma elite racista, como cotas para negros são um dos pilares que susten-
dizem muitos hoje? A dúvida e a pergunta não são ta essa reorientação do projeto de nação que pa-
infundadas. Hoje, o mito Macunaíma está sob se- rece estar em curso. São, basicamente, duas as
vera crítica, pois inventando uma nação dividida principais idéias que estão subjacentes às propos-
entre negros e brancos, e destruindo aquele herói tas dos revisores da brasilidade modernista:
misturado e plástico com políticas de Estado que
• Construir uma nação dividida entre “raças”
exigem a classificação bi-polar, apresenta-se em
que se opõem – negra e branca –, e passar da
seu lugar um outro conceito de nação. Quem ou-
idéia de integração para um ideário de sepa-
saria criticar Mário de Andrade? Parece que os que
ração sob a bandeira da “diversidade”.
querem inventar um Brasil dividido em negros e
• Abandonar o ideal da democracia liberal fran-
brancos estão, sem se aperceber, muitas vezes des-
cesa, pelo liberalismo da democracia norte-
tronando o mito Macunaíma, pois este funda uma
americana, propondo tratar desigualmente os
nação baseada na mistura, na plasticidade desta
desiguais e tomar o “mito da democracia ra-
mistura e na possibilidade de ser índio, branco e
cial” como ideologia que mascara a realidade.
preto ao mesmo tempo. O presidente Fernando
Henrique Cardoso em mensagem do dia 21 março
Essa mudança de rumo de um projeto de na-
de 2001, dia Internacional pela Eliminação da Dis- ção não se faz sem riscos. A mudança é radical
criminação Racial, contribuiu para esse destronar porque toma o que era próprio da nossa maneira
de nossa maneira toda particular de combater o ra- de tratar a diferença como algo espúrio e que
cismo, porque querendo instrumentos para dimi- deve ser extirpado mediante políticas públicas
nuir a exclusão social jogou fora o bebê com a como, por exemplo, com as cotas para negros no
água do banho ao dizer: “Não é fácil desmantelar serviço público e em instituições públicas de en-
estruturas mentais e institucionais fortalecidas du- sino superior. A versão que dá origem a esta po-
rante séculos de escravidão, exclusão social e vi- lítica de combate à desigualdade parece não só
sões românticas de ‘democracia racial’”. Há ainda suspeitar de Macunaíma. Ela aniquila Macunaíma
os que usam adjetivos mais fortes para criticar essa porque sendo política de Estado obriga as pes-
matriz do universalismo como o fez Ricardo Hen- soas a se definirem não nos moldes de nosso he-
riques em entrevista concedida a O Globo em rói fundador, mas como negro ou branco, e sen-
21/4/2002: do política de Estado afeta a sociedade como um
todo. A nova política de cotas adotada em muitos
[...] é romper com a matriz republicana francesa. níveis das instituições federais, nas universidades
Todos nós fomos culturalmente educados e a públicas do Estado do Rio de Janeiro e em muitas
grande maioria estudou numa base dessa grande
outras universidades públicas do país, obriga as
matriz francesa universalista, que acha que o im-
pessoas a se identificarem sem nenhuma dúvida
perativo da igualdade é a melhor matriz para fa-
zer qualquer intervenção, tratando todos por entre estes dois pólos: ou negro ou não negro.24
iguais. Esta é a estratégica mais cínica de lidar O Governo Federal enviou em 2004 para o
com o problema. Congresso Nacional um projeto de lei que institui
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cotas para negros e estudantes de escolas públicas inscrição e a portaria do Fies, a certidão de nasci-
nas universidades federais. O projeto ainda está mento com a “raça” do genitor(a). A segunda é a ne-
tramitando ao lado de outros vinte que já estavam cessidade de educar a população para “a consciên-
lá tratando do mesmo tema. O ministro da Educa- cia” da “raça”. Essas diretrizes são, portanto,
ção tomou os cuidados necessários para que a po- necessárias para a criação de uma educação raciali-
lítica de cotas raciais e sociais fosse discutida no zada e na qual o “movimento negro” tenha uma par-
Congresso Nacional, pelos representantes do povo. ticipação ativa. A terceira conseqüência é a idéia de
Mas as cotas já tinham sido adotadas pelo Mi- orgulho étnico. Depois se pode imaginar uma esco-
nistério da Educação por meio da portaria nº 30 de la dividida entre brancos e negros.25 O cenário mais
12 de agosto de 2004, como política de Estado. A próximo é o de um país dividido.
portaria cria o critério “raça/cor” para a concessão O modelo estatístico do IBGE, que vem pes-
do benefício do Financiamento ao Estudante de quisando há pelo menos cem anos o lugar social
Ensino Superior (Fies). O Fies é um empréstimo da população brasileira, optou por um caminho
destinado a custear as mensalidades de estudantes que respeitava a ambigüidade de nosso sistema.
de instituições de ensino superior particulares – As categorias (“preto”, “pardo”, “branco,” “amare-
esse crédito existe há muitos anos. Até agora o cri- lo” e “indígena”) adotadas nas estatísticas oficiais
tério de concessão era a pobreza ou renda. Com a eram menos radicalmente opostas a Macunaíma
nova portaria o estudante que preenche o formu- porque permitiam a inclusão de um maciço gru-
lário responde ao quesito – “raça/cor”. Se a res- po de pardos, misturados de toda a sorte, que po-
posta for “negra”, terá 20% a mais de chances de diam eventualmente migrar para branco ou para
ganhar o benefício. O candidato que for selecio- preto. Na versão que derruba Macunaíma não ha-
nado para a entrevista final terá de apresentar “a verá outra escolha possível a não ser entre “bran-
certidão de nascimento do pai e/ou da mãe, na co” e “não branco”.26
qual conste, em pelo menos uma delas, informa- Como teria sido possível esta guinada tão
ção de que o(a) genitor(a) é da raça/cor negra”. profunda no ideário que marcou a nossa história
Recentemente o MEC, por intermédio do do século XX? Como puderam essas propostas de
Conselho Nacional de Educação, exarou outro mudança ser aceitas tão rapidamente, inclusive
documento importantíssimo e muito pouco deba- pela mídia, a ponto de terem sido tema das agen-
tido também, as Diretrizes curriculares nacionais das políticas dos candidatos nas eleições presi-
para a educação das relações étnico-raciais e denciais de 2002 e terem conquistado grande par-
para o ensino de história e cultura afro-brasileira te da elite contemporânea dos bem-pensantes?
e africana. José Roberto Pinto de Góes (2004) foi Estarão as pessoas que foram seduzidas por estas
o primeiro a nos alertar sobre elas em recente ar- políticas conscientes de que estão na trajetória de
tigo n’O Globo. As diretrizes dizem que, conforme destruição do ideário modernista?
“alerta o movimento negro”, aqueles que reco- É difícil descobrir as razões da mudança e
nhecem sua ascendência africana são negros (pre- mais difícil ainda imaginar que o ideário moder-
tos e pardos). Ou seja, as escolas devem ensinar nista pudesse ser tão rapidamente descartado. Será
o sistema de classificação racial adotado pelo que realmente foi lançado por terra? Será que os
“movimento negro”. proponentes das políticas de cotas se percebem
A política de cotas é uma política pública que como contestadores do ideário modernista? Ape-
tem conseqüências lógicas que afetam a sociedade sar de querer acreditar naqueles que afirmam que
como um todo no presente e também o seu desti- nada mudará porque somos o que somos e vamos
no. A primeira é a necessidade de definir aqueles deglutir tudo isso à nossa maneira, não há como
que serão objeto do benefício. Por isso a Universi- deixar de pensar que as mudanças propostas po-
dade de Brasília exigiu as tais fotografias no ato da derão afetar as bases do ideário modernista.
MÁRIO DE ANDRADE AINDA VIVE? 13

Agora é preciso traçar um pouco to DaMatta.28 Considerei os dados levantados no


dessa história ano do centenário como indício de que o Brasil
poderia ter algo a ensinar ao mundo, sobretudo
Em a Ilusão do concreto (1991), descrevi as diante das trágicas guerras étnicas que assolavam
preocupações que afligiam os pesquisadores do a Europa Oriental:
tema e muitos militantes ao longo dos anos de
1970 e 1980. Com dados levantados por ocasião A explosão do racismo no seio das sociedades do
primeiro mundo, que esperavam ter superado
dos eventos do centenário da Abolição da Escra-
suas divergências “étnicas” e diferenças sociológi-
vatura, afirmei que a preocupação central dos cas, está fazendo com que mais e mais estudiosos
bem-pensantes àquela época era com o que se se voltem para a questão. Talvez essa influência
chamava cultura negra e não com as desigualda- consiga sensibilizar os intelectuais brasileiros
des raciais. Descrevi o paradoxo de nosso sistema (Maggie, 1991, p. 105).
de classificação racial que embora baseado no
gradiente de cores não deixa de mencionar a Naquela época, porém, duvidei de Mário de
oposição, seguindo o fio condutor tecido por Andrade. Pensei que a recusa em falar das desi-
Oracy Nogueira (1985) em 1950, Moema de Poli gualdades sociais e raciais e a insistência no dis-
Teixeira (1986) na década de 1980 e muitos ou- curso sobre uma cultura negra significavam que
tros antropólogos que nesses anos de 1980 des- as idéias que marcaram a minha juventude e os
creveram um Brasil da mistura.27 meus primeiros escritos estavam servindo para
Nas décadas de 1970 e 1980 um grupo de deixar cegos os brasileiros diante do racismo pre-
estudiosos do tema estava preocupado em esti- sente no nosso cotidiano. Estariam enganados os
mular novos pesquisadores a mergulhar no estu- jovens antropólogos dos anos de 1970, que em
do sobre desigualdades raciais e sobre o racismo. outras viagens de aprendizagem como etnógrafos
Esse grupo, liderado por Carlos Hasenbalg (1979) descobriram um Brasil que se caracterizava por
e Nelson do Valle Silva (1978), refletia sobre as ra- uma cultura da mistura, do encontro entre desi-
zões do silêncio na literatura sociológica de então guais, nos terreiros de umbanda (Maggie, [1975]
a respeito do racismo e das desigualdades raciais. 2001), na “Feijoada e soul food” (Fry, 1983), no
Segundo o grupo, tal silêncio teria sido produzi- samba (Goldwasser, 1975) ou em prédios da Uto-
do pela visão herdada de Florestan Fernandes pia urbana em Copacabana (Velho, 1971)?
(1965) que considerava o racismo uma sobrevi- Busquei caminhos para sair desse impasse
vência do passado escravista e acreditava que à que angustiava uma geração de antropólogos se-
medida que a sociedade se tornasse mais desen- guidores das linhas traçadas por Mário de Andra-
volvida o racismo tenderia a desaparecer. Assim de. Minha primeira providência foi chamar mais
sendo, a pesquisa sobre o tema se apagou do ce- parceiros para o debate, formando, no Laborató-
nário das ciências sociais que enfatizou os aspec- rio de Pesquisa Social do Instituto de Filosofia e
tos culturais herdados desse passado. Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal
Impressionada também com os números das do Rio de Janeiro, uma geração de novos pesqui-
desigualdades raciais voltei-me para a pesquisa sadores interessados no estudo da “questão ra-
sobre os mecanismos produtores dessas desigual- cial”. Com essa equipe de estudantes e outras an-
dades e afirmei que era o medo de falar naquilo tropólogas do Rio Janeiro e de São Paulo já
que opõe e separa, ou seja, em brancos e pretos, tínhamos iniciado em 1988 uma ampla pesquisa
o que dificultava o avanço das pesquisas Os meus qualitativa sobre o ano do centenário da Aboli-
dados, recolhidos em ampla pesquisa qualitativa, ção.29 Um dos interessantes resultados dessa pes-
reforçavam a hipótese de que no Brasil preferi- quisa, além, é claro, dos artigos e das teses que
mos pontes a margens no dizer clássico de Rober- dela se originaram, foi o de ter estimulado muitos
14 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 58

estudantes a se dedicarem ao tema, a concluírem no ano de 2000, o campo estava minado e tudo
seus estudos na graduação e prosseguirem a car- estava sendo tratado com um tom moral e acusa-
reira acadêmica no mestrado e no doutorado. tório. Já era muito difícil recolocar o modernismo
Com apoio da Fundação Rockefeller, organizei no seu lugar. Os números das desigualdades en-
em 1994, no IFCS, o Programa Raça e Etnicidade, tre “negros” e “brancos” tinham ganho a mente
trazendo pesquisadores brasileiros e de muitos dos bem-pensantes e da mídia que agora pare-
outros cantos do mundo para discutirem e repen- ciam se mostrar a favor de uma estratégia que in-
sarem a questão. Ao longo desses anos revisitei os cluísse a reserva de lugares para negros. Para eles,
meus primeiros escritos e, refazendo a trilha da a nossa sociedade deixava de ser o lugar da mis-
antropologia que entende “raça” como construção tura e do híbrido para ser entendida como dividi-
social, além das discussões com esse grupo de an- da nitidamente entre negros e brancos.
tropólogos de várias procedências e tendências, Se a tradição da antropologia fazia com que
pude me reconciliar com o ideário modernista. buscássemos auscultar o que dizem os nossos nati-
O resultado daquele programa foi como uma vos sobre o tema da “raça”, os proponentes dessa
retomada do Projeto da Unesco, pois brasileiros e outra versão menos macunaímica e menos antropo-
estrangeiros se uniram para pesquisar temas que já fágica de nossa cultura baseavam-se em que fontes?
estavam esquecidos de nossa literatura sociológi- Em artigo intitulado “Silêncio nunca mais”, a
ca. Naquela altura não se falava em cotas e os pes- jornalista Miriam Leitão revelou as fontes que a fi-
quisadores descobriram muitas outras dimensões de zeram se convencer de que era preciso mudar o pa-
identidade entre seus “nativos”. Na introdução do li- radigma e que o caminho seriam as cotas. Diz ela:
vro Raça como retórica (Maggie e Rezende, 2002),
que traz alguns resultados desse programa, sinali- As cotas são mesmo polêmicas. Eu sou a favor.
Achei mais convincentes os dados de Roberto Mar-
zei a necessidade de pensar, como na tradição
tins e Ricardo Henriques e os argumentos de tan-
modernista, a contribuição do Brasil para engran- tos negros que ouvi que provam que políticas uni-
decer e enriquecer a civilização.30 versalistas não conseguiram, durante os últimos
Também organizamos no IFCS, de 1998 a cem anos, enfrentar a distância entre pretos e par-
2000, o Programa Cor e Educação e fizemos um dos, de um lado, e brancos, de outro. Li os textos
de especialistas como Antonio Alfredo Guimarães
levantamento completo do que estava sendo pen-
e Hélio Santos, vi o quadro de Nelson Valle e Sil-
sado e realizado como política pública para dimi- va que compara salários de negros e brancos no
nuir as desigualdades raciais. Descobrimos então mesmo extrato social. Conversei com a governa-
que o Brasil ainda se pensava misturado. A maio- dora Benedita sobre os talentos que ela achou na
ria dos nossos entrevistados ainda achava que o montagem do governo e que estavam escondidos,
sistema de cotas não era a melhor solução para por serem negros. Fui a debates como os do pro-
fessor Hédio Silva, na PUC de São Paulo; do ex-
enfrentar o racismo. Fizemos um estudo de caso
ministro Raul Jungman, na Fiesp; da ONU; da Cân-
de um movimento social que começava a ganhar, dido Mendes. Entrevistei negros, brasileiros e es-
a cada dia, mais e mais adeptos, o Pré-Vestibular trangeiros. Abri minha mente e deixei entrar a for-
para Negros e Carentes (PVNC). Este estudo indi- ça das convicções de quem estudara ou vivera o
cou que a estratégia de nomear os negros ao lado problema. As cotas não são as únicas ações afirma-
tivas, mas elas têm a força de empurrar o debate.
dos carentes representava uma maneira de reco-
Ação afirmativa é um campo amplo no qual polí-
nhecer a questão “racial” sem deixar de falar nas ticas públicas, ações privadas podem começar a
desigualdades sociais e de classe. O movimento construção de menos desigualdade étnica no Bra-
do PVNC propunha outro caminho para superar sil (O Globo, 22/12/2002).
as nossas iniqüidades sociais. Voltarei ao tema do
PVNC mais adiante, mas é preciso dizer que, Miriam Leitão apresentou de forma muito
quando apresentamos o resultado dessa pesquisa clara o que pensam aqueles que foram convenci-
MÁRIO DE ANDRADE AINDA VIVE? 15

dos pelos números de Roberto Martins e Ricardo Nós, no Brasil, de fato convivemos com a discri-
Henriques: minação, convivemos com o preconceito, mas “as
aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá” o
que significa que a discriminação e o preconcei-
O racismo brasileiro é diferente do americano,
to que aqui temos não são iguais aos de outras
mas tem sido muito eficiente em apartar as duas
formações culturais.
metades da população brasileira. Por não ter
Portanto, nas soluções para esses problemas, não
ocorrido aqui a grosseria da política de segrega-
devemos simplesmente imitar. Temos de ter cria-
ção, nos conformamos com um quadro de injus-
tividade, temos de ver de que maneira a nossa
tiça intolerável. E nos iludimos com o discurso de
ambigüidade, essas características não cartesianas
que o Brasil se miscigenou e, assim, dissolveu o do Brasil – que dificultam tanto em tanto aspec-
problema. Da miscigenação, nossos álbuns fami- tos –, também podem ajudar em outros aspec-
liares são testemunhas. O truque do racismo bra- tos... É melhor, portanto, buscarmos uma solução
sileiro foi não exigir atestado de origem. Foi dar mais imaginativa (Cardoso, 1997, p. 14).
aos brancos de pele mais chances, mais portas
abertas, mais ascensão, mais poder (O Globo,
Em outro discurso, por ocasião do dia mun-
22/12/2002; grifos meus).
dial de combate ao racismo em 2000, mudava o
rumo da conversa e propunha:
Nessa versão nossa nação é descrita como
constituída de duas metades estanques. Embora
Este ano de 2001 é especialmente importante na
Miriam Leitão reconheça que nossos álbuns de fa- luta contra a discriminação racial. Em agosto, a co-
mília estejam recheados dessa mistura, acredita munidade internacional realizará na África do Sul
que eles são fruto de um “truque”, de um ilusio- uma conferência mundial contra o racismo, a xe-
nismo e, dizendo isso, põe abaixo aquilo que es- nofobia e a intolerância, em que se avançará no
diagnóstico das manifestações contemporâneas do
tava no cerne da utopia modernista. O Brasil, de
racismo, discutindo suas causas, identificando suas
Mário de Andrade, traçara um caminho próprio vítimas e analisando estratégias para seu combate
depois de comer o bispo Sardinha. Agora, segun- e superação. O Governo e o povo brasileiro estão
do esta versão da nossa nação, é preciso jogar a engajados nesse combate. Resta muito a fazer
estratégia do encontro e da mistura fora e adotar para a plena superação do racismo no Brasil. Não
é fácil desmantelar estruturas mentais e institucio-
outra baseada no que Miriam Leitão está chaman-
nais fortalecidas durante séculos de escravidão,
do de atestado de origem. Uma gota de sangue exclusão social e visões românticas de “democra-
negro...? Quem sobraria para aplicar as cotas? cia racial”. No entanto, muito já tem sido feito.
Há uma contradição que aparece no discur- Medidas como a reforma dos parâmetros curricu-
so de Miriam Leitão e em muitos outros. Se, de lares e o reforço da fiscalização contra a discrimi-
nação no mercado de trabalho exemplificam o
um lado, falam em um país dividido entre bran-
empenho de meu Governo nessa luta. Mas é im-
cos e negros, de outro, não contestam o que cha- portante que essas medidas continuem a se mul-
mam de miscigenação ou mistura dos nossos ál- tiplicar, que tenham seguimento, e que a socieda-
buns de família. O que Mirian Leitão propõe de e os meios de comunicação reflitam com
então é uma mudança radical na nossa concepção veracidade e com orgulho o fato de que somos
realmente uma nação multi-étnica e multicultural.
de nação, na qual os indivíduos buscarão um
Nossa identidade mestiça é, sem dúvida, um dos
atestado de origem. Mas e o que fazemos então aspectos centrais das realizações históricas que
com aquela mistura que está nos nossos álbuns? celebramos com os 500 anos do Descobrimento.31
O próprio presidente Fernando Henrique
Cardoso, em 1996 no seminário organizado pela Uma nação multi-étnica e multicultural e mes-
Secretaria de Direitos da Cidadania do Ministério tiça é uma contradição em termos. Ou somos mul-
da Justiça, exortava os pesquisadores a descobri- ti-étnicos ou somos misturados. Assim, voltando ao
rem uma saída criativa e nossa para o problema: argumento da jornalista Miriam Leitão, como dizer
16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 58

que nossos álbuns de família revelam as nossas riações das formas. As estatísticas são modelos
mistura se vivemos numa sociedade só de negros construídos que é preciso rechear de sangue, car-
e de brancos? ne e músculo. Para buscar entender o que os nú-
Certo ou errado nosso mito de origem fala meros não podem revelar, aquilo que fundamenta
que nós, brasileiros, somos um povo que veio de nossa vida cotidiana, a saída é escutar e saber ou-
três “raças” diversas que aqui se uniram para plan- vir os muitos negros, brancos, morenos e pobres
tar uma nova civilização. Macunaíma é o herói sem que serão afetados por esta mudança proposta,
caráter porque estamos ainda, como disse Mário de que sem dúvida alguma não custará muito para os
Andrade lá pelos idos de 1928, como meninos de próprios proponentes. Nosso país tem de buscar a
20 anos buscando a nossa identidade. Como fazer inclusão de quase 80% da população que está fora
para lançar esse mito por terra? Teríamos que rein- de muitos importantes ganhos da cidadania. É pre-
ventar o mito de Macunaíma e fazer como na brin- ciso ir mais fundo para buscar as soluções que afe-
cadeira séria de Richard Morse (1990) um herói tarão os sujeitos dessa história, e não se deve es-
com bastante caráter? quecer que para isso há muito a fazer para incluir
milhares de jovens que ainda não conseguem ter-
Não se pode tomar as categorias emprega-
minar sequer o ensino fundamental.
das nas estatísticas oficiais como representação
Foi isso que fez um grupo de jovens pobres
social de toda a sociedade porque são, na verda-
da periferia do Rio de Janeiro unindo-se em um
de, um modelo construído pelos analistas a partir
movimento intitulado Pré-Vestibular para Negros
das realidades vivenciadas de muitas maneiras no
e Carentes (PVNC) que citei mais acima. Acho
cotidiano da vida social. Essa realidade do mode-
que há aí uma pista que não deveria ser perdida.
lo não está contida na mente dos que vivem as
O movimento conseguiu atrair centenas de jovens
realidades cotidianas. No entanto, o risco é que
que, beneficiados pelas políticas de inclusão uni-
afirmando como verdade universal esse modelo versais, conseguiram terminar o ensino médio e
analítico ele pode acabar fazendo parte da vida queriam ter acesso a vagas nas universidades pú-
cotidiana e pode, ao fim e ao cabo, reinventar blicas do Rio de Janeiro. É preciso dizer que ain-
mesmo as representações sociais, como profecia da são poucos os que terminam essa fase do per-
que se cumpre por si mesma. curso escolar. Apenas 30% da faixa etária de
jovens conseguem chegar ao fim do ensino mé-
dio. Esse grupo de jovens das periferias e dos
Quem tem medo de mudar? bairros pobres da cidade, muito ativo, não queria
ser cooptado por ideologias das agências finan-
É evidente que os alarmantes números das ciadoras nacionais ou estrangeiras. Não aceitava
desigualdades “raciais” indicam um racismo reni- apoio de qualquer fonte a não ser dos professo-
tente no Brasil. Mas como tentar extirpar esse res que davam aulas gratuitamente, ou na forma
mal? Os proponentes das cotas acham que temos de empréstimos de salas de aula em igrejas ou as-
de abandonar o ideário modernista, tratando-o sociações de moradores e até, algumas vezes, de
como “truque”. Mas eles vão realmente nos levar escolas da rede pública. Queriam discutir entre si
a superar nossas iniqüidades? Eis a minha dúvida. e desenvolver uma estratégia criada por eles mes-
Para encontrar uma solução mais interessan- mos. Durante alguns anos conseguiram atrair não
te, é preciso fazer como Mário de Andrade e sair só militantes que se autoclassificavam como ne-
dos números que nos dão uma fotografia em pre- gros, mas também muitos brancos pobres e ou-
to e branco, e nem isso, porque as estatísticas não tros color blind, como um dos alunos que respon-
revelam os muitos tons de cinza que fotos em pre- deu a um survey realizado pela minha equipe de
to e branco contêm. As estatísticas não são como pesquisa em 1994 se definindo como flicts, em re-
filmes que revelam a diacronia, as cores e as va- ferência à belíssima história de Ziraldo (1984).32
MÁRIO DE ANDRADE AINDA VIVE? 17

Este movimento teve um enorme sucesso de como combater o racismo usando a raça?”33 A
mídia e seduziu muitos jovens estudantes que maior transformação não veio, no entanto, dos
buscaram aquelas salas desconfortáveis tanto para que arrefeceram o ânimo, mas das propostas fei-
aprender como para ensinar. Nomeando os ne- tas por frei Davi. Esse padre dominicano que é um
gros ao lado dos carentes, o movimento conse- dos heróis fundadores do PVNC criou uma outra
guiu dar uma solução racialmente não neutra e ao organização, o Educafro, que se define como um
mesmo tempo ser sensível às muitas maneiras movimento para afrodescendentes e carentes e
que esses estudantes têm de se autoclassificarem. que ao contrário do PVNC aceitou doações de
A eficácia do movimento deve-se certamente à agências estrangeiras, rompendo com a proposta
garra desses jovens que buscavam sair do cami- de autonomia financeira. Situando agora os caren-
nho das balas da polícia e dos traficantes e do iso- tes ao lado daqueles que têm origem africana –
lamento em que se encontravam por estarem fora afro – como critério de escolha de seus estudan-
das possibilidades de competir com seus colegas tes, o Educafro redefiniu os rumos do PVNC. Frei
mais bem-aquinhoados pela fortuna e herança Davi organizou o Educafro como uma franquia,
educacional. Ao longo da década de 1990, desde buscando seduzir os muitos núcleos do PVNC que
a sua inauguração em uma paróquia de São João quisessem se identificar com a proposta que aca-
bou vitoriosa também neste movimento: a descen-
de Meriti e sob a liderança de frei Davi, o movi-
dência deve ser tomada como base para a auto-
mento cresceu de forma espetacular. Muitos Nú-
classificação. Assim, aqueles que não quiserem
cleos, como são chamados os grupos que se reú-
excluir os mais brancos de seu álbum de família,
nem em igrejas, associações de moradores ou
certamente estarão excluídos dos cursinhos.
escolas, foram sendo criados e seus coordenado-
Que não se acuse Mário de Andrade de racis-
res, organizados em uma direção geral, discutiam
ta! Foi a sua geração e sob sua liderança que se ini-
constantemente os rumos do PVNC.
ciou o movimento mais radicalmente anti-racista
Até o ano da conferência de Durban em
depois de séculos de racismo dito científico. Mas
2001, a maioria dos coordenadores era contrária à
talvez os que estão propondo o fim do ideário mo-
introdução de cotas. Suas lideranças queriam que
dernista sejam, no fundo, mais crentes em Macu-
os estudantes conseguissem por mérito e esforço naíma e no Manifesto antropófago do que a auto-
próprios galgar um lugar no sistema de ensino su- ra destas linhas. Talvez acreditem que comeremos
perior e com isso talvez terem mais chances de o multiculturalismo hoje como o bispo Sardinha e
sair dessas periferias nas quais a presença do Es- não avaliam os riscos para a estrutura quando
tado é quase nenhuma e onde os jovens estão à eventos como esses que descrevi mais acima ocor-
mercê de um outro “movimento”: “o movimento” rem. Como disse Marshall Sahlins (2004), a estrutu-
que no dizer popular significa o tráfico de drogas. ra corre riscos ao ser invadida pelos eventos que
Depois de Durban, com a introdução da po- mesmo sendo interpretados à luz da tradição po-
lítica de cotas para negros nas universidades pú- dem transformá-la de forma radical.
blicas estaduais do Rio de Janeiro, o PVNC passou As mudanças estruturais produzidas pelas leis
por uma transformação muito importante. Algu- e normas exaradas pelo Estado, que descrevi aqui,
mas de suas lideranças tiveram o seu ânimo dimi- ou seja, a criação de uma engenharia social basea-
nuído e muitas abandonaram o movimento ator- da na bipolaridade racial, afetará muito mais a po-
mentados com dúvidas sobre o caminho a seguir. pulação misturada e flicts que vive nos imensos su-
No dizer de uma ex-coordenadora: “A mudança búrbios e periferias das cidades. Mas como disse
gerou dúvida e intranqüilidade. Se de um lado, Miriam Leitão, todos nós estamos juntos nisso.
quem sabe, diminuiremos as desigualdades, com Quem se responsabilizará pelas conseqüências?
essa política, de outro lançaremos por terra o mé- Muitas pessoas que leram versões iniciais des-
rito”. Finalmente, disse ela: “a dúvida maior é: te trabalho me perguntaram o que fazer então? Res-
18 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 58

pondo sempre que há muito o que fazer para com- pensava ser uma cultura que tinha resolvido de
bater o racismo e as desigualdades no nosso país forma não violenta as suas diversidades étnicas.
e que já não é sem tempo de começar. A primeira Marcos Chor Maio tem um importante trabalho no
providência para qualquer campanha anti-racista qual descreve todo os trâmites dessa história e dis-
deveria certamente começar, como muitos vêm di- cute as obras que resultaram desse esforço de
zendo desde o início deste debate, por destruir a pesquisa (ver Maio, 1997).
própria idéia que o faz nascer: a idéia de “raça”. 6 Tenho trabalhado com Peter Fry há muitos anos
desde que estreitamos a nossa amizade por ocasião
da defesa de minha dissertação de mestrado nos
NOTAS anos de 1970. Além de amigo, Peter Fry foi meu ori-
entador na tese de doutorado e vem sendo desde
1 A Assembléia Estadual do Rio de Janeiro instituiu então um interlocutor com o qual venho repartindo
as cotas para as universidades do Estado em 2000. angústias e descobertas. As idéias aqui expressas
A primeira lei de cotas raciais instituía 40% de foram discutidas com ele em inúmeras e constantes
vagas para estudantes que se auto-declarassem conversas e discussões formais e informais.
negros/pardos. A lei foi modificada em 2003, e os
7 A palavra “raça” estará sempre entre aspas para
candidatos agora têm que ser pobres em primeiro
frisar o fato de que é categoria nativa e não con-
lugar e há 20% de cotas para negros (e não mais
ceito, pois a moderna ciência da genética já destru-
negros/pardos). Sobre as normas do vestibular nas
iu as bases científicas em que a palavra foi alicerça-
universidades do Estado do Rio de Janeiro implan- da no século XIX.
tadas por força de lei, ver a tese de doutorado de
Elielma Ayres Machado (2004) e o artigo de Carla 8 Agradeço a Everardo Rocha os comentários que
Ramos (2004), que está concluindo sua dissertação me incentivaram a persistir nesta investigação
sobre o tema. Peter Fry vem chamando a atenção sobre os rumos do ideário modernista.
para essa criação do racismo a partir de leis e nor- 9 Gilda de Mello e Souza em o Tupi e o alaúde ([1979]
mas racializadas, ver, mais especificamente, Fry 2003) faz uma das mais belas leituras do romance e
(2003). vê a sua estrutura também toda feita da mistura, do
2 Maggie e Fry (2002 e 2004) analisaram esta questão bricolage. Lendo esse livro recentemente reeditado
fiquei ainda mais impressionada, porque a autora de
descrevendo as representações sobre cor e raça
forma clara e precisa mostra como o livro é uma
assim como mérito e esforço próprio.
meditação “extremamente complexa sobre o Brasil”.
3 Em Medo do feitiço levantei essa hipótese quando dis- A leitura que a autora propôs “é menos a de uma
cuti as acusações de feitiçaria no Brasil Republicano interpretação triunfal e retoma a indicação pes-
(ver Maggie, 1992). simista de Mário [...]”. Certamente a afirmação que
4 III Conferência Mundial das Nações Unidas de vejo no romance não é de modo algum incom-
Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xeno- patível com essa visão ambivalente. Afinal, foi na
fobia e Intolerância Correlata. nossa cultura mestiça, misturada e ambígua que,
como mostrou Gilda de Mello e Souza, Mário foi
5 O projeto da Unesco, como ficou conhecido, foi beber, mesmo estando também mergulhado na cul-
realizado a partir das propostas de Artur Ramos, tura mais cosmopolita e universal.
representante brasileiro nesta organização, depois
10 Monoel Luiz Salgado Guimarães tem uma importante
do fim da Segunda Guerra Mundial, e substituído
contribuição para a discussão desse livro fundador
por Luiz Aguiar da Costa Pinto por ter falecido pre-
da historiografia brasileira (ver Guimarães, 2000).
cocemente. Costa Pinto propôs que o escopo da
pesquisa fosse ampliado para incluir todo o Brasil 11 O livro clássico de Mário de Andrade tem sido inter-
e não só a Bahia como originalmente estava pre- pretado por muitos quando se discute a questão
visto. A idéia era justamente desvendar o que se racial por ser mesmo um paradigma dessa versão de
MÁRIO DE ANDRADE AINDA VIVE? 19

uma brasilidade mesclada de brancos, negros e 15 É preciso também ler Schwarcz (1999) sobre a
índios. Lílian Schwarcz discutiu o assunto em duas importância de Casa-grande & senzala para a inter-
ocasiões: se na primeira, em 1995, defendeu o mito pretação da sociedade brasileira. Diz Schwarcz: “O
dos ataques daqueles que o interpretavam como ‘cadinho de raças’ aparecia como uma versão
mentira, falsa consciência, na segunda, em 1998b, otimista, mais evidente aqui do que em qualquer
optou por um outro caminho tentando conciliar o outro lugar: ‘Todo o brasileiro, mesmo o alvo, de
mito com os dados das desigualdades raciais. cabelo louro, traz na alma quando não na alma, e
Discordo de sua última interpretação, porque vejo o no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indí-
mito ou a fábula das três raças e a própria idéia de gena e/ou do negro’, afirmava Freire fazendo da
democracia racial como um ideal, algo que se mestiçagem uma questão ao mesmo tempo nacional
busca, como uma vontade e um desiderato. Esse e distintiva” (Schwarcz, 1999, p. 276).
desejo de igualdade, esse sonho é uma forma toda
nossa de combater o racismo ou poderia ser a nossa 16 Para uma análise do pensamento racial no século
contribuição particular a esta luta pelo fim do racis- XIX, ver Schwarcz (1993).
mo. Neste artigo tento enunciar os argumentos que 17 Ver a Mulata de Di, Cavalcanti de 1928 no site
me levam a pensar de forma diferente. www.dicavalcanti.com.br/, que apresenta toda a
12 Agradeço a Lilia Schwarcz a leitura generosa e obra do pintor.
cuidadosa de uma primeira versão deste artigo. 18 Ver o Abapurú de 1928 e a Negra de 1923, de
Seus comentários ajudaram-me a repensar a Tarsila, no site www.tarsiladoamaral.com.br/.
história do nosso mito de origem e as heranças do
século XIX que marcaram a construção do “herói 19 Cf. canções de Caetano Veloso, “Haiti” e
de nossa gente”. “Americanos”.

13 O estudo mais completo que rediscute Casa- 20 O artista plástico Luiz Alphonsus, da geração
grande & senzala, apresentando uma análise com- Conceitual, só para citar um deles, fez dois trabal-
plexa dessa obra é o de Araújo (1994). É preciso hos que remetem a esta influência modernista. O
também discutir a expressão democracia racial que conceitual caboclo e Índia e mato fazem parte da
foi muitas vezes atribuída a Gilberto Freire e, coleção Gilberto Chateaubriand.
segundo Guimarães (2002), foi cunhada mais
21 Ver o livro de fotos de Hermano Vianna, que refez
tarde, por Roger Bastide e não em no livro de
uma das viagens de Mário de Andrade (Vianna,
Gilberto Freyre.
2000).
14 O conde Arthur de Gobineau foi embaixador
22 Esse seminário, organizado pelo Departamento de
francês no Brasil e escreveu, em meados do século
Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça, teve
XIX, o Ensaio sobre a desigualdade das raças
a maioria das comunicações reunidas em livro
(1853-1855). Nos anos em que permaneceu no
organizado por Souza (1997).
Brasil como chefe da delegação diplomática, segun-
do relato minucioso de Lilia Schwarcz “parecia 23 Monica Grin (2000) discutiu esse evento e as várias
respeitar apenas o imperador do Brasil [...] todos os posições em jogo em excelente análise em sua tese
demais na opinião desse embaixador francês, ‘pare- de doutorado.
ciam-se como macacos’” (Schwarcz, 1998b, p. 372).
24 Recentemente uma polêmica surgiu ao ser intro-
O conde Gobineau tinha uma visão pessimista
duzido um método novo de identificação de can-
sobre a miscigenação, para ele sinal de degener-
didatos que optaram pelas cotas no vestibular da
ação que fazia com que não houvesse futuro para
UnB. Para uma discussão da questão, ver Maio e
nosso país. Lilia Schwarcz (1993) discutiu a obra de
Santos (no prelo).
Gobineau e o debate que se travava entre pen-
sadores daquela época em O espetáculo das raças. 25 Para os que se posicionam a favor da política de
Segundo a autora, as idéias de Gobineau repercuti- cotas raciais, elas se constituem em um caminho
ram mais no Brasil do que no exterior. mais curto para uma consciência racial que está
20 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 58

ausente e deve ser reforçada. Eduard Telles (2004) zonte/Brasília, Itatiaia/Instituto Nacional
afirma que este atalho é necessário para a do Livro/Fundação Pró-Memória.
diminuição das desigualdades raciais na educação.
_________. (2001), Macunaíma: o herói sem ne-
Fry (2005a), em resenha ao livro de Telles, per-
nhum caráter. 32 ed. Texto revisto por
gunta se esse não seria um caminho sem volta e se
Telê Porto Ancona Lopez. Belo Hori-
a destruição da noção de democracia racial como
zonte/Rio de Janeiro, Livraria Garnier
ideal não é uma forma de jogar fora o bebê com a
(Coleção dos Autores Modernos da Lite-
água do banho.
ratura Brasileira)
26 José Murilo de Carvalho (2004) em recente artigo
ANDRADE, Mário de & BANDEIRA, Manuel.
chamou a atenção para o genocídio estatístico dos
(1974), Itinerários: cartas a Alphonsus
pardos que vem ocorrendo na divulgação dos
de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro,
dados sobre desigualdades raciais. O autor descreve
Duas Cidades.
como a questão vem sendo tratada a partir do sécu-
lo XIX nos censos demográficos e argumenta que ANDRADE, Oswald. (1978), Do pau-brasil à an-
esta mudança atual significa uma reviravolta na tropofagia e às utopias. Rio de Janeiro,
nossa concepção de nação. Civilização Brasileira.
27 Ver, por exemplo, Peter Fry (1983), Roberto DaMatta ANDREWS, George Reid. (1997), “Ação afirmati-
(1987b), Manuela Carneiro da Cunha (1985). va: um modelo para o Brasil”, in Jessé
Souza (org.), Multiculturalismo e racis-
28 Ver DaMatta (1987a).
mo: uma comparação Brasil-Estados
29 Cito aqui alguns desses trabalhos que partiram dos Unidos, Brasília, Paralelo 15.
dados recolhidos ao longo do ano do centenário da
ARAÚJO, Ricardo Benzaquem de. (1994), Guerra
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30 Ver em Maggie e Rezende (2002) uma seleção dos
BANDEIRA, Manuel. (s./d.), Apresentação da poe-
ensaios produzidos por pesquisadores que partici-
sia brasileira. Rio de Janeiro, Ediouro
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candidatos ao processo seletivo do FIES
referente ao segundo semestre de 2004
e dá outras providências. Brasília, Minis-
tério da Educação, 12 ago. Ver no site
www.observa.ifcs.ufrj.br.
www.mj.gov.br/
www.dicavalcanti.com.br/
www.tarsiladoamaral.com.br/
RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 205

MÁRIO DE ANDRADE AINDA DOES MÁRIO DE ANDRADE MÁRIO DE ANDRADE VIT EN-
VIVE? O IDEÁRIO MODERNIS- STILL LIVE? THE MODERNIST CORE? LA DOCTRINE MODER-
TA EM QUESTÃO IDEATION IN COGITATION NISTE EN QUESTION

Yvonne Maggie Yvonne Maggie Yvonne Maggie

Palavras-chave Keywords Mots-clés


Ação afirmativa, Cotas, Ensino Affirmative action; Quotas; Action affirmative; Quotas; Édu-
superior, Nação, Brasilidade College education; Nation; cation supérieure; Nation;
modernista Modernist brazilian Brésilien moderniste

Este trabalho busca refletir sobre a This paper reflects upon the hypo- Cet article cherche a réflechir sur
hipótese de que se inicia uma espé- thesis that a dramatic change is ta- l’hypothèse selon laquelle il s’opère
cie de terremoto na maneira pela king place in the way Brazil thinks en ce moment une sorte de change-
qual o Brasil pensa o Brasil no alvo- about itself at the dawn of the 21st ment radical dans la manière dont le
recer do século XXI. Com a recente century. With the passage of recent Brésil pense le Brésil à l’aube du
legislação sobre cotas para negros laws on quotas for black people at XXIe siècle. Avec les lois récentes
nas universidades e no serviço públi- public universities and the civil ser- sur les quotas pour noirs dans les
co federal, a idéia de nação mistura- vice, the notion of a mixed nation universités et la fonction publique,
da da “fábula das três raças” parece made up of “three races” seems to l’idée de cette nation mélangée de la
ter sido questionada cedendo lugar à have been challenged, giving way to “fable des trois races” semble avoir
noção de uma nação dividida entre the idea of a nation divided bet- été remise en question, laissant la
negros e brancos. Pela primeira vez ween blacks and whites. For the first place au concept d’une nation parta-
na nossa história desde os anos de time in our history since the 1920s, gée entre blancs et noirs. Pour la
1920, a elite brasileira parece ter lan- the Brazilian elite seems to have première fois dans notre histoire de-
çado por terra as bases do pensa- shattered the foundations of the puis les années 1920, l’élite brésilien-
mento que permitiu a criação de nos- idea that allowed for the creation of ne semble avoir jeté par terre les
sa cultura mais radicalmente nacional our most radically nationalistic and fondements de la pensée qui a per-
e cosmopolita. O ideário de brasili- cosmopolitan culture. The notions mis la création de notre culture la
dade modernista de Mário e Oswald of a Modernist Brazilian character plus radicalement nationale et cos-
de Andrade, de Paulo Prado e Sérgio forged by Mário and Oswald de An- mopolite. La notion d’un caractère
Buarque de Holanda, de Gilberto drade, Paulo Prado and Sérgio Buar- brésilien moderniste de Mário et Os-
Freire e Di Cavalcanti, de Tarsila do que de Holanda, Gilberto Freire and wald de Andrade, de Paulo Prado et
Amaral e Anita Malfati está sob sus- Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e Sérgio Buarque de Holanda, de Gi-
peita. Qual o significado da mudan- Anita Malfati, is under suspicion. berto Freire et Di Cavalcanti, de Tar-
ça em nossa legislação, e como pode What does this change in our law sila do Amaral et Anita Malfati, est
afetar a estrutura de nossa sociedade mean, and how can it affect the struc- désormais vue avec méfiance. Que
baseada em um sistema de valores ture of our society, based as it is in a signifie ce changement dans notre
que não aposta na oposição, mas na set of values which does not empha- législation, et de quelle façon peut-il
complementaridade, no que une e size opposition, but rather comple- influer sur la structure de notre so-
não no que separa? mentarity, giving precedence to that ciété basée comme elle est sur de
which unites rather than that which valeurs qui ne mettent pas l’ accent
separates? sur l’opposition, mais plutôt sur la
complementarité, et sur ce qui unit
plutôt que sur ce qui sépare?

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