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das escolas de samba. O sucesso dessa entre o pesquisador estrangeiro e seus


forma carnavalesca, cujo processo ritual hóspedes locais. Embora freqüentemente
foi clarificado pela autora há mais de escamoteada pelo discurso especulativo,
uma década, é confirmado ainda hoje e a intensidade surgida de tal interação
vem servindo de referência e estímulo pode, se explorada em sua devida com-
para novas pesquisas, como aquelas plexidade, conferir vigor particular ao
mencionadas no prefácio desta 3ª edição texto etnográfico.
de 2006. As pesquisas que se seguiram O próprio Descola, situando seu livro
evidenciam seu rendimento analítico não no registro da “crônica”, escreve no epí-
só no âmbito dos estudos sobre o carnaval logo que o trabalho etnológico “não tem
carioca, mas também nas abordagens das como dissociar a descrição da invenção, e
relações entre formas rituais e seus as- essa não implica a falsidade, aproximan-
pectos sociológicos em contextos urbanos do-se antes da verossimilhança do que
diversos, comprovando sua contribuição da verdade” (:457). Aperceber-se de que
mais ampla à sociologia, à antropologia tanto o olhar local quanto o estrangeiro
urbana e à análise ritual. são inseparáveis de seu substrato cultural,
diz ainda o autor, “não quer dizer praticar
a apologia da subjetividade como modo de
conhecimento, e sim enfatizar mais uma
vez a evidência de que os julgamentos
DESCOLA, Philippe. 2006. As lanças do cre- que fazemos sobre os costumes alheios
púsculo: relações jivaro na Alta Amazônia. são amplamente determinados, na vida
São Paulo: Cosac & Naify. 520pp. como na ciência, por nossa história in-
dividual” (:456-457). Descola, balizando
a subjetividade, oferece também parâ-
Pedro de Niemeyer Cesarino metros para esta sua aproximação com
Doutorando PPGAS/ MN/ UFRJ a literatura, a fim de garantir o espírito
científico: “a composição literária reorga-
niza o real para torná-lo mais acessível,
As lanças do crepúsculo é já uma in- às vezes mais digno de interesse, mas
dispensável monografia da etnologia não modifica a substância dos fatos. Em
americanista. Ao narrar o período em contrapartida, quando se propõe desven-
que esteve entre os Jívaro da Amazônia dar o seu significado, a interpretação lhes
equatoriana com sua esposa e colega traz uma nova dimensão; ela se apresenta
Anne-Christine Taylor, Philippe Descola graças à criatividade, sem reais garantias
demonstra seu rigor investigativo ao de não estar enveredando no imaginário”
percorrer, em um mesmo livro, temas (:456, ênfases minhas). 
diversos como a guerra e a vingança, a Se for verdadeiro que a descrição
predação, o xamanismo, a cosmologia, permanece neutra ou objetiva, parece,
a mitologia, a política, as etiquetas e os porém, difícil separá-la não apenas de
meandros da sociabilidade nas aldeias. seu nível imediatamente superior (a pas-
Marcado por sua descrição da vendetta sagem do “singular ” para o “universal”
e de seu sentido para as sociedades [:456] que a valida enquanto discurso
Achuar, o livro mostra que as teorias etnológico), mas também do problema
produzidas pela imaginação antropoló- da verossimilhança que a constitui.
gica repousam, antes de tudo, em uma Ciente de tal dilema, não agrada a Des-
rica e obscura base criada pela interação cola a idéia de que a etnologia possa
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ser uma “hermenêutica das culturas”: sistema desigual” (:458), é também


deve haver “um valor antropológico que essencial para desmanchar os clichês
transcen[da] o particularismo das cir- do “comunismo primitivo” que ainda
cunstâncias em que foram formuladas” circulam pelas inteligências. Ou mes-
(:457), nota o autor. As lanças do crepús- mo que “os Jívaro não concebem sua
culo desenvolve, portanto, uma tarefa etnicidade como um catálogo de traços
propriamente especulativa que, embora distintivos que dariam substância e
tomando o recurso da crônica, acaba por eternidade a um destino compartilhado”
conduzir a um trajeto paralelo à literatu- (:459), problematizando as recaídas con-
ra, e não a um entrecruzamento efetivo servadoras e românticas dos discursos
(e será mesmo possível?) entre os dois indigenistas, atualmente em voga nas
registros da criação. Isto porque a opção áreas mais diversas, em favor de uma
pelo estilo narrativo não deixa de reser- compreensão mais acurada do sentido
var o centro da obra para a explicação ameríndio de comunidade. Há que se
e a exposição etnográfica extensiva — mencionar também o reconhecimento
eixo essencial de monografias descriti- de que “a natureza humana não existe
vas — impedindo uma interpenetração em toda parte e para sempre ou, mais
efetiva da verossimilhança etnológica e especificamente, que essa separação
da literária — como poderia ser, talvez, radical, há muito estabelecida pelo
no caso de uma exploração maior do Ocidente, entre o mundo da natureza
entrecruzamento dissonante de subje- e o mundo dos homens não tem grande
tividades de que se faz a experiência significação para outros povos, que
de campo. conferem às plantas e aos animais os
Ao partir para outra direção, a obra atributos da vida social” (:457), desta
mostra que este “olhar crítico que nossa vez contra a insistente aliança entre “os
civilização soube tardiamente lançar índios e a natureza” agarrada em nosso
sobre o mundo e sobre si mesma” pode imaginário rousseauista. 
ser capaz de “fundar o conhecimento Com a intenção louvável de circular
do outro sobre o desvendamento das o conhecimento acumulado pela etno-
próprias ilusões” (:461). Tarefa funda- logia, As lanças do crepúsculo coloca
mental para uma cultura geral letrada em xeque muitos dos pressupostos do
que ainda engatinha na compreensão senso comum, em direção a uma melhor
dos universos ameríndios, talvez por interpretação dos universos ameríndios.
estarem seus estudos especializados, Em sua exposição da complexa rede xa-
ao menos no Brasil, demasiadamente mânica que vincula os Achuar aos outros
restritos aos meios acadêmicos em que povos da região, o autor diz, todavia, o
são produzidos. Assim, um trabalho seguinte sobre a cura: “os males que
etnológico competente pode apresentar afligem o cliente de um xamã são fre-
a interpretação de que os Achuar vivem qüentemente imaginários ou de ordem
“o próprio destino sem o apoio de uma psicossomática” (:391, ênfases minhas).
transcendência divina ou histórica” Em seu campo, o etnólogo via melhora
(:458), contra as idéias banais de uma no aspecto dos doentes após as sessões
“religiosidade indígena”. De maneira de cura, “libertadas de um tormento que
similar, a percepção de que o indivi- decerto nunca tivera nenhuma base orgâ-
dualismo Achuar “não se fundamenta nica” (ibidem), mas que, “por aplacarem
na reivindicação de igualdade social a angústia dos que os consultavam, por
e econômica, pois não sucede de um libertarem-nos da terrível alienação do
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face a face com a dor e o desconhecido, PUSSETTI, Chiara. 2005. Poetica delle emo-
os xamãs até logram provocar uma me- zioni. I Bjijagó della Guinea Bissau. Roma:
lhora provisória em pessoas realmente Editorial Laterza. 268 pp.
enfermas” (ibidem). 
Nos termos e nas construções gra-
maticais escolhidos pelo autor, parece Alexandre Surralles
persistir um crônico rebaixamento dos CNRS, Laboratoire d’anthropologie sociale,
sistemas xamânicos — como se, despro- Collège de France
vidos de qualquer ontologia possível,
a eles restasse a solução de talvez se
alojarem ao menos no discurso: “será a Chiara Pussetti nos oferece uma ex-
convicção [da eficácia das entidades ou celente monografia sobre a dimensão
dos espíritos] suficiente para propiciar afetiva da vida dos habitantes do ar-
a cura? Se for partilhada pelos doentes, quipélago de Bijagós da Guiné-Bissau,
por que não o seria, ocasionalmente?” oeste africano. O texto começa por um
(ibidem). Se, como mostrou o próprio capítulo introdutório que aborda as
autor, a “natureza” é algo partilhado características deste campo, bem como
apenas pelo caldo do qual surgem as as generalidades sociológicas e históri-
mentalidades modernas, decerto ela cas do arquipélago. No plano teórico,
também não serve como padrão im- a autora propõe a noção de emoção
plícito para a avaliação de um sistema como conceito analítico e nos adianta
cuja lógica interna não reside — e nem uma forma de empatia reflexiva como
poderia residir (por incompetência?) — método de investigação. O segundo ca-
em qualquer base orgânica. Mas por pítulo corrobora esta escolha com uma
que nela insistir como parâmetro de síntese, bastante convencional, sobre
compreensão? E se não há uma base as vicissitudes da noção de emoção nas
orgânica para a crise xamânica, será ciências humanas para desembocar na
então necessário supor alguma outra (o antropologia das emoções como discur-
discurso, o imaginário) para que o xa- so, abordagem desenvolvida na América
manismo “até” possua alguma eficácia do Norte, nas últimas décadas, a partir
pontual? Talvez fosse interessante in- dos trabalhos seminais de C. Geertz e
vestigar os critérios de verossimilhança M. Rosaldo.
que os próprios Achuar projetam para Retornaremos à escolha da aborda-
o pensamento quando se submetem às gem pela autora depois de examinar a
suas sessões de cura: como traduzi-los análise etnográfica realizada, que se
a partir dos nossos próprios? inicia no terceiro capítulo a partir da
Como esta é uma obra que se destaca, descrição de uma noção-chave local,
entre outras coisas, por sua competente n’atribá. Os Bijagós afirmam adquirir
descrição de diversos aspectos do xa- n’atribá ao longo de sua juventude.
manismo Achuar, caberia reavaliar para Uma criança ou mesmo um jovem co-
os dias de hoje este tratamento da cura metem atos freqüentemente sem razão
xamânica, a fim de que não se natura- ou motivação aparente porque não
lizem os seus pressupostos, sobretudo têm ainda um n’atribá suficientemente
quando tratamos de uma importante obra desenvolvido. Esta noção não pode,
de divulgação. portanto, ser traduzida por inteligência,

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