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COLEÇÃO POPULAR DE FORMAÇÃO ESPIRITUAL

XXVIII

• .1

EDITORA VOZES L TOA., PETROPOLIS, R. J.


RIO DE JANEIRO - SAO PAULO

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br/
Tratado
.
das Tentações

Obra póstuma
do

PADRE MICHEL
da Companhia
de Jesus

1952
EDITORA VOZES LTDA., PETROPOLIS, R. J.
RIO DE JANEIRO - SÃO PAULO

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I
' '

r. ,

I M P � I M A T U R
POR COMISS.AO ESPECIAL 00 BXMO.
E REYMO. SR. DOM MANUEL PEDRO
DA CUNHA CINTRA, BISPO DE PE-­
TRóPOLIS. FREI LAURO OSTERMANN
O. F. M. PETRóPOLIS, 3-3-1952.

ToDOS OS DmEITOs RESERVAD01;5

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'

....

CAPíTULO I

AS TENTAÇõES NAO SAO UMA PROVA


PE .ABANDONO DA PARTE DE DEUS. SE
AS VEZE S SAO UMA PROVA DA- SUA
qóLERA, E' DE UMA CóLERA DIRIGIDA
PELA SUA MISERICóRDIA.

As tentações perturbam a.s almas pie�


dosas:. arrastamao pr.ecipiclo .as,. almas
_

d�ipadas. Para Prevenir o mal qúe delas


·
pode resultar, é a propósito fazer-vos sa..;
bet as razões que tendes de não. as temer
demasiado, os princípios sobre. os quais
podeis decidir-vos em muita.!; ocasiões, a
maneira de vos comportardes no tempo
em que elas vos atacam, e de v.:os premu­
nirdes contra os efeitos delas; e mostrar­
vos as vantagens que delas podeis tirar.
As tentações são idéias, sentimentos, iD.­
clinações, pendores ·que nos induzem a
violar a Lei de Deus, para nos satisfazer­
mos. Essas tentações não devem nem p�r�
turbar nem desanimar uma alma cristã.
O demônio decla�a. guerra principalmen­
te ··às almas que detestam o império dele�
que combatem as suas próprias paixões,
que· são discípulas de Jesus-Cristo tahto
pela. pureza dos seus coStumes como pelo

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6 Tratado das Ten.ta.çõe3

cunho inefável da sua regeneração { ou


àquelas que pensam seriamente em 5acu­
dir .o jugo sob o qual o demônio as man­
tém. Pelas molas que faz funcionar con­
tra elas, o demônio só procura concitá-las
a renunciar ao amor de J esu.s Cristo, des­
prendê-las de Deus, tomando-as cúmpli­
ces da desobediência dele. Esta reflexão
deve consolar as almas que são tentadas.
E' a oposição delas ao inimigo da salvação,
é o seu apego à piedade, à vontade de
Deus, que lhes atrai essa perseguição do­
méstica. Um pouco de con.sta.ncla tomá­
las-á vitoriosas, firmá-IM-á na virtude.·

Allll8S naturalmente tímidas, ou aquelas


que o senhor por longo tempo conduziu
na calma das paixões e nas doçuras da
paz. imaginam que as tentações que elas
às vezes experimentam são sinais da cO­
lera de Deus sobre elas; e com isso che­
gam até a pen.sar que Deus as abandonou,
quando a.s tentações são fortes e frequen­
tes. Não podem persuadir-se de que Deus
possa deitar olhares favoráveis sobre um
coração violentamente agitado por senti­
mentos contrários à virtude. Esta cilada
é o último recurso do inimigo da salvação
para derrubar uma alma que ele não pode
vencer pelas vãs satisfações do vicio. Rou­
ba-lhe essa preciosa confiança que pode

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I

Tratado das Ten�es 7

sustentá-la contra todos os esforços do in­


ferno.
Grosseiramente se enganam essas al­
mas.As que são instru1das, as que conhe­
cem melhor os caminhos de Deus, não se
surpreendem com essa guerra que têm de
sustentar. Pelos orãculo.s do Espírito San­
to aprenderam que a vida do homem é
um combate continuo; que temos de nos
defender incessantemente, por dentro
contra os nossos gostos, as nossas incij:-:­
nações, o nosso amor-próprio, esses ini­
migos domésticos tão capazes de nos se­
duzir pelas suas artimanhas e pretextos;
por fora, contra a sedução dos maus exem­
plos, contra o respeito humano, contra
as potências do inferno, invejosas da fe­
licidade do homem e conjuradas contra
ele desde o começo do mundo; e apren­
deram que só pelas vitórias que alcança­
mos com o. socorro da graça é que abri­
mos caminho para chegarmos ao Céu; que1
enfim, consoante o Apó.stolo (2 Tim 2, 5),
só haverá coroa para aqueles que houve­
rem fielmente combatido até o fim.

S. Paulo não considerou como efeito da


cólera e do abandono de Deus as tenta­
ções que continuou a experimentar, em­
bora tivesse pedido ser livrado delas. Os
Santos, por tanto tempo e tão vivamente
atacados pelo demônio até nos desertos e

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8 Tratado das TentaÇÕ:e.S

nos exercícios da mais austera penitêz;tcla,


não tiveram das tentações a mesma.ridéia
que vós. Pelo contrârio, consideraram-nas
sempre como o objeto dos seus combates
·
e a matéria dos seus méritos. Não igri'ora-
vam o que é dito nos Livros Sagrados:
Por isso que éreis agr®ável a Deus, mts�
ter se fazia JtJsseis provado pela tentação
(Tob .2, 13). E' esta a idéia que deveis fa­
zer da tentação; é a única que seja justa
nos princípios da Religião; e, dessarte, não
fi�rei.s nem perturbada nem desanimada
com ela.
Contudo, embora as tentações não sejam
um sinal do abandono de Deus, porque
Deus nunca abandona inteiramente o ho­
mem enquanto este estiver na terra; e em-
bora essas tentações sejam, ordinàriamep.-_ · ���
te, provações para as almas j u.stas, às
vezas são também efeitos da Justiça dlvi-
_na; que pune certas negligências no seu
serviço, certas fraquezas a que se deixam
levar almas desapllcadas e presunçosas,
certas aplicações naturais que dividem o
coração. Ma.s� seja punição ou provação, a
submissã o e m recebê-las, a fidelidade em
lhes .resistir devem ser as mesmas. Da
·

parte ·do mais terno dos pais, a justiça é


.sempre acompanhada. de misericórdia; A
sua graça está sempre ligada à oração e ê.
confiança. Ele não quer perder-nos, não

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Tt-
_ a_ta._d_o_d_as
_ T_e_n_ta.-.:ç:.
ões
...
__ _________ 9

quer punir-no.s senão para no.s reconduzir


a Ele. Esta circunstància, bem longe de
desanimar e de perturbar uma alma, deve,
pelo contrário, animá-la ao combate pela
vista do perdã� que lhe é oferecido, se
com coração contrito e humilhado, e com
fidelidade inviolável, cumprir a peni.:.
tência que Deus lhe impõe.

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CAPlTULO li

AS TENTAÇõES NAO SAO SINAL DO MAU


ESTADO DE UMA ALMA EM RELAÇAO
A DEUS E A SUA SALVAÇAO.

Ordinàriamente, as tentações frequen­


tes bem podem assinalar um coração su­
jeito a paixões e propenso ao mal, porém
não assinalam um coração mau e afas­
tado de Deus, quando essas inclinações são
desaprovadas. Esse pendor para o mal, que
nós trazemos ao nascer, pela desordem
que o pecado de nosso primeiro pai pôs
nas nossas inclinações, às vezes é fortale­
cido pela dependência em que a nossa al­
ma está dos sentidos. Essa dependência
torna-nos mais ou menos sujeitos às ten­
tações, conforme seja mais forte ou menos
forte a impressão dos sentidos; sendo tudo
isso independente da nossa vontade, e não
vindo do fundo do coração, não assinala
nele um vicio particular. Ele não é a causa
dessa disposição dos sentidos; pelo con­
trário, sofre com ela, e, quando a corrige
pelo seu apego à virtude, por mais forte
que seja a inclinação o coração nem por
isso se torna mau.
Essa resistência às tentações assinala,

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Tratado das Tentaç� 11

antes, um coração cristão, e faz conhe­


cer o apego que ele tem a seu Deus, e a
proteção que Deus lhe concede; coisa que
deve consolá-lo e enchê-lo de confiança.
A determinação em que ele se acha de
resistir à Inclinação que o arrasta, recebe-a
ele da misericórdia divina, que o sustenta
por uma graça tanto mais particular
quanto mais expooto ele estiver ao mal e
ao perigo de sucumbir.

E• raciocinar mal o dizer: Se a minha


mente e o meu coração estivessem em
bom estado, se fossem bem de Deus, teria
eu estas idéias, estes sentimentos, que fe­
rem a caridade, que são oposto::; à fé, à
submissão, à paciência, e que me metem
horror a mim mesmo?

Se essas idéias, se esses sentimentos de­


pendesse m de vós, se estivesse na vossa
escolha tê-los ou não oo ter, com razão
julgaríeis .estar muito afastada de Deus
quando os experimentais. Mas tudo isso
absolutamente não depende de vós. Essas
idéias, esses sentimentos insinuam-se sub­
tilmente, ou se abatem com impetuosida­
de sobre o vosso espirito e sobre o vos­
so coração, sem consultarem a vossa von­
tade; e, o que é ainda mais forte, perseve­
ram na vossa alma a despeito da vossa
vontade, que quereria desvencilhar-se de­
les, e que emprega toda sorte de meios

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12 Tratado das Tentações

para os afastar. Eles não são, pois, a ex­


pressão livre d a vontade; não são da. es­
colha desta: não podem, pois, decidir coi­
sa alguma contra o bom estado da alma e
contra· o seu apego a Deus e à v�tude.

O coração só se apega pelos seus sen-·


timentos refletidos e deliberados. Pode,
pois, um coração ser inteiramente de Deus,
embora experimente indeliberadamehte
sentimentos contrários à virtude, desde
que estes lhe desagradem em vista de Deus.
Digo mais: o desgosto que ele .sente de se
ver atacado por tais inimigos, o horror
que tem destes, são uma prova bem de­
cisiva de que ele está apegado ao dever e
ao amor divino. Se ele amasse menos a
Deus, se temesse ou se detestasse me­
nos o peca do, não teria nem esse desgosto,
nem essa perplexidade, nem esse horror;
seguiria a sua inclinação, satisfaria os seus
<;tesejo.s. Não pode ele, pois, ter prova mais
segura do seu amor a Deus do que a fide­
lidade que Deus lhe dá em combater essas
más inclinações.

Os maiores santos foram postos a essa


prova;S. Paulo não foi eximido dela: e
eles amavam a Deus perfeitamente. o nos­
so divino Salvador quis submeter-se a ela
para nossa instrução: e era o Santo dos
Sa ntos . O que Ele quis experimentar na
sua humanidade santa não pode ser um

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Tratado das Tentações 13

mal, nem mesmo uma imperfeição: Ele


era incapaz de um e de outra. Não pode­
mos, pois, ser culpados quando experimen­
tamos isso da mesma máneira que Ele,
quando nos defendemos disso como �e o
fez, em proporção da nossa fraqueza..

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CAPITULO m

E' PRECISO RECORRER A DEUS NAS


TENTAÇõES. ELE NOS SUSTENTA NO
MEIO DO COMBATE; E NóS NAO REPA-
.

RAMOS NISSO POR FALTA DE


ATENÇÃO.

Nessas tempestades de que uma alma é


agitada, às vezes Deus a conduz de ma ­
neira sensível. Trabalha-se então com co­
ragem para se sustentar contra as on­
das impetuosas das paixões. A vista de
Deus, que se apresenta vivamente a nós,
o desejo de amá-lo, que se faz sentir, ani­
mam-nos, e redobram a nossa confiança.
Mas à.s vezes, também, Deus se oculta: pa­
rece adormecido como outrora na barca
dos Discípulos, prestes a perecerem pela
violência das ondas pelas quais ela era ba­
tida. Em semelhante ocasião, uma alma
acha-se em perigo, pelo temor excessivo
que se lhe apodera do coração e que o en­
fraquece.
Não; n� momento, nada tendes a te­
mer se le'Vantardes os olhos para o Céu,
de onde vos deve vir o socorro de que pre­
cisais, e se fizerdes uso desse socorro. em
Discípulos, expostos a perder-se, não per-

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deram seu tempo ·em .se lamentar· inutil­
mente; .não abandonaram o cuidado da
sua barca por Uin d�o puer.U: con­
tinuaram a manobra, para se s ustentarem.
contra a borrasca; e recorreram ao seu
divino Mestre, cujo socorro imploraram.
Jesus parecia dormir (Mt 8, 34); e no en­
tanto os dirigia, sem que eles reparassem
nisso, ·nas medidas que tomava para
eles não serem tragados pelas ondas. As­
sim Deus, por mais oculto que esteja aos
vossos olhos, nem por .isto está menos
atento ao que se pas.sa no vosso coração.
A todo momento parece-vos que ides nau­
fragar; e, no entanto, vos sustentais con­
tra a tempestade.
Essas vistas que vos. guiam, esses sen­
timentos que vos animam e que vos fa­
zem agir quase sem que o percebais, essa
coragem que tantas vezes parece abando­
nar-vos e que renasce sempre, essa fir­
meza que vos faz renunciar com constân­
cia aos faLsos prazeres, aos prazeres cn­
minooos que o inimigo vos apresenta, de
quem é que os haveis? Será de vós mes­
ma? Fraca como sois, lisonjear-vos-eis de
resistir sozinha? Não os haveis de Jesus
Cristo, que, sem se mostrar sensivelmente,
vos sustenta poderosamente, consoante a
palavra que Ele vos deu (1 Cor 10, 13), de
que a provação não será acbna das vos-
Col. Pop. 28 - 2

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Tentaçõá
16 Tratado das

sas forças, aj udada.s pela .sua graça? Sim.,


mesmo quando o julgais afastado de vós,
Jesus :cnsto está no meio do vosso cora­
ção: vós vos julgais esquecida, e ma.ts .do
que nunca estais presente ao vosso Salva­
dor, porque tendes necessidade d'Ele. ·Ele
preside aos vossos combates, como presidiu
ao de s. Estêvão (At 7, 55); e, desde que
não falteis à confiança, Ele vos tornará
superior a todos os vossos inlmigo.s, impe­
dindo-vos de consentir no.s maus deslg-:
nios deles.

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CAPITULO IV.

MEIO PARA RECONHECER QUE NAO SE


CONSENTIU NA TENTAÇAO.

Sem dificuldade convimos q�, em si


mesma, a tentação não é um mal, e que
só o consentimento faz o pecado. O que
produz embaraço e causa uma viva in­
quietação às almas que Deus põe nessa
provação e que conduz pela via penosa
das tentações, é que elas quase sempre
temem ofender a Deus; e que, não haven­
do refletido bastante sobre esta matéria,
não têm princípios para se tranqullizarem:
não sabem distinguir a tentação do c.Qn--:
.sentimento. Essa incerteza em q� elas
estão de haverem aderido à tentação lan­
ça-as numa perplexidade que as faz so�
frer muito, ··que lhes faz perder a paz in­
terior, que lhes debilita a confiança con­
frangendo-lhes o coração� que as impede
de ir a Deus com liberdade, finalmente
que as lança num desânimo extremo e lhes
abate inteiramente as forças. Algumas re­
flexões poderão esclarecer as vossas dtl­
vidas sobre este ponto, e pôr-vos em e:;-
·

tado de decidir-vos.
Nós não somos inteiramente senhores d�
2*

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Tratado das Tentações
18

nossa mente e do nosso coração. Não po­


demos impedir que certas idéias, certos
sentimentos nos . ocupem_ A3 vezes mesmo
eles nos ocupam de súbito tão fortemente,
que a. alma é arrastada a seguir um pen­
samento, um projeto, sem o perceber. A
preocupação é tão grande, que não vemos
n�da, não ouvimos nada do que se pa.sSa
ao redor de nós, que não nos lembramos
�equer do momento em que essas idéias,
�es sentimentos começaram a apoderar­
.se da nossa alma. Assim, m"\litas vezes,
nos achamos, sem reparar, em pensamen­
tos e sentimentos contrários à caridade e
a outras virtudes, em projetos de vaidade,
de orgulho e de amor-próprio.
Este estado dura mais ou menos, con­
forme é mais ou menos forte a impressão
dos objetos ou da imaginação, ou confor­
me alguma circunstância.. impress ionante
tire mais cedo a alma dessa espécie de en­
cantamento. Então, por uma reflexão dJs­
tinta, ela percebe aquilo que a ocupa. Se,
ness e momento em que é restituida a si
· a, ela condena essa idéia, ess e .sen­
m.esm
timento; se os desaprova e .se se desvia de­
lesiantó quanto pode, prudentemente po­
de-se assegurar que em tudo o que precedeu
ela não fez nenhum mal. A satisfação
que ela experimenta de se ver liberta de­
les 'é mais um sinal bastante seguro de

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19
Tratado das Ten�ões

que a vontade não tomou nenhuma parte


neles com reflexã.o.
Nessa preocupação, não houve delibe�­
çAo, não houve �colha da parte da. von­
tade. Para que se ofenda a I;>eus, é. preciso
que a vontade con.slnta deliberadamente
em alguma coisa má, e que possa renun­
ciar-lhe. Não se acha nem uma coisa hem
outra naquilo que precede a reflexão: não
pode, pois, haver ai pecado . Aliás, essa
.

desaprovação tão pronta, desde a prünelra


reflexão, assinala a boa disposição da al­
ma, que não teria admitido essas idéias,
esses sentimentos, que não se teria ocu­
pado deles, se os houvesse conhecido com
bastante reflexão para os admitir ou rejei­
tar por escolha. Devemo-nos, pois, compor­
tar neste caso como se essas idéias e esses
sentimentos começasse m no momento em
que os percebemos com reflexão. Só neste
ponto é que deve começar o exame que se
deve fazer; -e, se então eles foram rejeita­
dos, devemos conservar-nos em paz.

Essa preocupação pode ser longa., como


muitas vezes sucede na oração, em que
somos arrastados por uma distração que
absorve toda a atividade da alma. Esta
circunstância não a torna voluntária e de­
liberada. Não depende da vontade tornar
essa distração mais curta, como não de­
pende o Impedi-la de vir: não hâ d a sua

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Tratado das Tentações

parte mais escolha numa coisa do que nou­


tra. Também não haverá mais mal; visto
que a preocupação que chega subitamente
sem que a prevejamos não é um pecado. A
longura do tempo que a experimentamos
não a torna culpasa. Não é, pois, muitO
difícil decidir-se nessa circunstância.

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l
CAPlTULO V

SOBRE AS TENTAÇõES CURTAS


E PASSAGEIRAS

Geralmente, as tentações são percebidas


apenas começam, ou logo depois, e podem
agir diferentemente. As vezes são pensa­
mentos, sentimentos, que se apresentam
subitamente e que não fazem mais d() que
paSsar. Então, muitas vezes fica-se emba­
raçado para discernir se foi umà simples
tentação ou um pecado. Embora nos te�
nhamos desviado dela, estamos em dificul:.:
dade para julgar se nesse curto intervalo
de tempo fizemos isso bastante cedo pará.
prevenir o consentimento.
Nesta circunstância, podemo-nos decidir
com base nos nossos próprios sentimen­
tos e no nôsso procedimento comum. Uma
Pe&soa que estima, que ama, que pratica
com vigilância as virtudes contra as quais
teve essas tentações; que, pela disposlçãó
habitual do seu coração, está afastada de
toda falta voluntária contra essas mesmas
virtudes; que, nas ocasiões em que teve
tentações mais .seguidas nesse gênero, cóni..::
báteu para· não sucumbir, pode prudente­
mente julgar que essas idéias, esses sen.:

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l
Tratado das Ten�

tlmentos pass ageiros não são falt�, porém


im.lcamente tentações, e que a desaprova­
ção que as fez d es.aparecer ,;3e antecipou ao
·

consentimento.
A razão disso é que1 quando uma alma
age contra os sen timentos que ordinária­
mente segue e contra o hábito que con­
traiu, faz a si uma espécie de violência
�a qual não é fácil deixar de se dar conta.
S,e, na di.sposição em que a suponho, ela
tivesse d ad o algum consentimento à ten­
tação, não o ignoraria, não duvidaria disso:
jl a. im.pre.ssã o, embora passageira,ter�e-ia
feito sentir o bastante para se fazer notar.
Devemo-nos, pois,. tranquilizar nessas oca­
siões pelo simples fato de não estarmos .se­
guros d e haver consentido na tentação.
Então a dúvida é uma certeza: se .se hou­
vesse realmente consentido, não se duvi­
daria.
No caso dessas idéias passageiras, todos
ps que dão às almas tentadas regras de
con�duta convêm unAnimemente em que se
devem desprezar essas espécies de tenta­
ções; e que se lhes deve dar o menos de
atenção possível. A razão que eles dão
disto é fundada na experiência. Esta nos
ensina que, se .as d esprezamos, se a,s ..de�
xamos passar, oc,upan do-nos de out� coi­
sas, elas voltam mais raramente, ou mes-.
mo não voltam mais; que, ao contrário,

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23
Tra.tado das Tentações

se com elas nos chocamos de frente, se


lhes damos uma atenção séria por exames
inquietos, mormente se o temor as acom­
panha, elas tinham passàdo e as tornamos
a chamar, detêmo-las, damos-lhe uma no­
va força pelo estágio que· elas fazem na
alma. Aquilo que não passava de uma
.sombra que se desvanecia num instante,
de um relâmpago que desaparecia num
momento, pelo desprezo que dele se fazia,
toma consistência pela atenção que se lhe
dá, torna-se um fogo que aumenta pela
reflexão. E então é um inimigo que teve
tempo de se fortificar, que se encarniça
no combate, e que põe a alma em perigo .

Dá-se com a tentação o que se dá com


um inimigo timido: por assim dizer, ele sé
en.Saia com o seu adversário; se encontra
contemporizações tímidas ou um temor pu­
·
silânime, aproveita-se da fraqueza que ele
lhe mostra, ataca com força, obriga 'o· ad­
versário a· receber a lei. Cumpre, poLs,
deixar cair todas essas idéias sem e.vocá­
las, e dar toda a sua aplicação a ocupar-se:
com objetOs úteis. Se, quando essas ten­
tações pass ageiras se apresentam, sim�
plesmente volvermos o nosso coração para
Deus por um sentimento de piedade e sc)­
bretudo ·de amor, não receberemos · dano .

algum.

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,I.

CAP:tTULO VI

SOBRE AS TENTAÇõES DURADOURAS E


IMPORTUNAS; E SOBRE AS QUE PRO­
DUZEM IMPRESSAO NOS SENTIDOS.

Mais comumente a tentação não cede


assim tão fàcümente o lugar: ataca com
constância, com viveza. Se dá alguma tré-·
gua, logo volta à carga. E, como ela agita
espírito e o coração, uma alma timorata
teme sempre que seja um pecado esse
sentim�nto que ela experimenta tão repe­
tidas vezes, e que tão frequentemente ela
reencontra no seu coração quando entra
nele. ·Esse temor torna esse sentimento
ainda mais vivo: a agitaçãó em que elã.
está, a inutilidade dos esforçós que e m­
prega para afastá-la do seu coração, lan-
. çani-na num abatimento ainda mais pe­
rigoso do que a tentação, porque lhe tira
á.s .forças de que ela precisa para r�istir.
A conduta que se manteve no tempo
em que a tentação durou pode servir para
decidir. se se tem alguma coisa. a se cen­
surar. Primeiro, para não se deixar domi­
nar por esses temores tão perigosos e tão
mal fundados, é preciso voltar ao princi­
pio deles. O sentimento que se experimen-

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Tratado das Tentações

ta na tentação não é o consentimento li­


vre. E' um engodo do inimigo que o soli­
cita. Ele mostra o objeto à mente: é o
pensamento. Fá-lo degustar pelo coração:
é o sentimento que se segue naturalmente
da representação do objeto. Esse sentimen­
to pode ser mais ou menos vivo, conforme
a compleição da pesso a e a impressão
que o objeto produz nela. Tudo isso , inde­
pendente da vontade, precede o consenti­
mento.
Para este consentimento, é preciso que
a vontade adira deliberadamente a esse
sentimento; que o aP.rove; que se lhe ape­
gue; que se compraza nele. Uma idéia
pode estar na �ente;" um sentimento no
coração, sem que a vontade o adote. Assim
resistimos aos bons sentimentos, como aos
maus. O mal como o bem não consiste,
pois, ne&e primeiro pensamento, nesse
primeiro sentimento, que não fazem senão
propor à vontade o objeto bom ou mau
moralmente: consiste na escolha que á
vontade faz dele, apegand�se-lhe.
Portanto, se no tempo da tentação uma
alma teve o cuidado de recorrer a DeÚS
pará obter as graças de que há mister;
se renunciou a esse sentimento contrário
à virtude; se o desaprovou; se teve. atas..:
tamento, horror de tudo o que a tentaçãÕ
lhe propunha; ·se procurou distialr;.se delá,

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'

26
Tratado das Tenta.ç6es

fixando a mente em outros objetos hones­


tos e úteis: então, embora não possa
responder a si mesma, com 'inteira certe­
za, pela sua fidelidade -em todos os ins­
tantes,. pode julgar prudentemente que
tudo o que experimentou, por m� vio­
lento e de qualquer duração que tenha
sido, não passou de simples tentação, ·e
que não houve nisso nenhuma culpa.
Deus não permite que a alma experi­
L mente tentações acima das suas forças;
assegura-no-lo o Espirito Santo (2 Tim 2,
5). Ele nunca falta à alma que faz tudo
o que· depende de si para evitar o pecado.
E' certo que, na. conduta que segue pondo
I em obra os meios que a. Religião e a ex­
'i periência fornecem, ela não tem de se
i exprobrar o haver descurado de si. Deve,
PÇ)is, esperar que Deus, que pela sua mlse­
ri�órdia a sustentou na. fidelidade em em­
pregar os meios, tê-la-á preservado de to­
da queda, consoante as suas promessas.
Esta razão deve fazer cessar todos os te­
mores inquietos. que podem sobrevir quan­
do Deus faz suceder a calmaria à tem-
· ·

pestade.
Pode a tentação ser bastante forte par�
produzir impressões molestas nos sentidos ..

Não devem elas, porém, perturbar uma al­


ma que as experimenta. O que dissemos
çlos sentimentos deve se� a_pUead o � ��-.

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Tratado das Ten�s
l
$Q,ÇÕes. As impreMões sensíveis não depen­
dem da vontade: esta não tem o poder de
detê-las e de fazê-las findar; ela não é,
pois, culpada nem do começo nem da
duração delas. Não pode haver falta, nes­
sa ocasião, senão quando a alma as apro­
va e se compraz nelas. Enquanto as con­
sidera efeito da tentação que ela combate,
que ela detesta, não toma nelas nenhuma
complacência; não faz, portanto, nenhum
mal. Essas impressões tomamo-las mais
,

fortes se lhes damos demasiada atenção,


e se fazemos inúteis esforços para des­
trui-las. Já que elas não .são pecados, não
nos devemos afligir com elas. Toda aten-'
ção deve convergir para afastar da mente
e do coração a tentação que lhes é a fon­
te, e para recusar a esta o consentimento
que ela pede.

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OAPlTULO vn

'
.SOBRE AS TENTAÇÕES QUE NOS PER­
TURBAM NO EXERCíCIO DAS VIRTU­
DES. NAO SE DEVE DEIXAR A BOA OBRA,
A PRETEXTO DOS DEFEITOS OU DOS
MAUS MOTIVOS QUE PODEM ENTRE­
MEAR-SE NELA. CUMPRE RENUNCIAR
A UNS E PRESERVAR NA OUTRA.

Todos esses princípios servirão para de­


cidir e animar uma alma durante certas
tentações que ela pode experimentar na
prática do bem. O inimigo da salvação
não ousaria propor a certas almas aban­
donarem o exercício das virtudes que le­
vam à perfeição: mas põe por obra um
artifício para detê-las, e para retê-las nu­
ma mediocridade que as faz cair na ne­
gligência. Todo o tempo que não é desti­
nado aos exercícios de piedade, ele as dei­
xa tranquila.s; porém, mal elas se apli­
cam a esses santos exercícios, enche-lhes
a imaginação de mil idéias que as ator­
mentam.
Se há almas que pensam em levar uma
vida mais perfeita, e se não as pode ele
I
desviar disso nem pelo respeito humano,
I nem pela visão do constrangimento a que

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---t�o_d_�
__ __T_e_n_���--------------------- �

elas se obrigam e que ele aumenta aos


olhos delas, inspira-lhes então uma secre­
ta vaidade na prática dos seus deveres.
Essa idéia segue-as em quase todas as
suas ações. Parece-lhes que elas só agem
para atrair a vã estima dos homens, ou
por uma vã complacência para consigo
mesmas.
Essas tentações afetam tão fortemente
certas pessoas, que elas ficam fatigadas,
desconcertadas com elas. Na idéia que a.s
impressiona vivamente, de se constrange­
rem sem fruto e sem méritos por essa
falta de pureza de intenção, elas preferem
resistir a Deus; afastam-se dos exercícios
de piedade; levam uma vida cheia de im­
perfeições e de faltas. Pelo temor do com­
bate, omitem o bem que Deus lhes inspira.
Assim, só evitam uma cilada caindo nou­
tra.
Se a tenta ção sobrevém a ensejo das
inutilidades a que a pessoa se entrega, ou
mesmo das ocupações perigosas que não
são do seu estado, não é duvidoso que
ela deva renunciar a elas, para não se
expor ao perigo; menos verdade não é,
porém, que o temor da tentação não deve
impedir uma alma de cumprir os seus de­
ve res e de seguir o esplrito de Deus. Por
si mesma, a tentação não é um mal; mas

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30 Tratado das ·Tentações

é ··um mal o faltar aos próprioo deveres,


àqullo que Deu.s exige. Se a alma fiel �e
�eixa guiar por ess a aflição, e por esta
razão abandona oo seu.s exercícios de pie­
dade ou o bem que pode fazer pelos .sa­
crifícios secretos, é infiel; priva-se dos
socorros que a fariam progredir na perfei­
ção; dá ao inimigo um meio seguro pata.
a fazer abandonar . .sucessivamente tudo o
que para ela é de obrigação. O inlrrig
i o
fará uso dess e império que ganha .sobre·

ela, desse temor que lhe inspira e que ali­


menta nela, para fazê-la negligenciar as
.Práticas de Religião, os Sacramentos, e
tudo o que pode nutrir a piedade. Uma
alma neste estado, sem ânimo e .sem for­
ça, uma alma que não ousa haurir na
oração, na mortificação, os meios de se
sustentar, essa alma resistirá àos assaltos
I que o inimigo poderá desfechar-lhe?

Não· deve ela, pois, temer essas espécies


de tentações, �to não serem faltas, en­
.q.uanto a vontade não as adoptar, enquan­
.to nelas não consent ir . A13 que são maJ6
seguidas, deve ela combatê-la-s· pela con­
fiança e pelo amor. As que Só consistem
LI em idéias passageiras, por mais frequen­
I
teS que sejam, deve ela, sem se inquietar
com elas, desprezá-las. deixá-las cair,
propondo-se cumprir a vontade de �eus

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Tratado das Tenta.ções

em todas as suas aç.ões. Assim .sendo, es­


sas idéias não entremearão IW;so a menor
imperfeição. Farão,, mesmo, 1liil bem: obri­
garão essa alma a renovar ·mat.s frequen­
temente a pureza de intenção com que de­
ve agir. Assim· ela tirará o bem do mal:
fará servir à sua santificação aquilo que
era preparado para a sua perdição.

Col. Pop. 28 - S

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I,

CAPITULO VIII

NAO SE DEVE DISCUTIR COM A TEN­


TAÇAO. MEIOS DE SE DESVIAR DELA.

Há potências que não poderemos vencer


se não as atacarmos diretamente, seguin­
do uma conduta oposta à que elas suge ­
rem. São desse número as que vêm do
fundo d a índole que se não domou. Se
uma pesso a é sujeita à vaidade, à cólera,
I

à sensibilidade, a essa ·mania . a que se


chama antipatia, não .superará essas pai­
xões .senão praticando nas ocasiões as vir­
tudes que lhes são diretamente opostas.
Não somente deve renunciar aos sen­
timentos que essas paixões lhe inspiram,
mas deve também agir para mortificá­
las. Se se contentar com evitar certas oca­
siões, não destruirá esses sentimentos des­
regrados; e, nas ocasiões em que não as pu­
' der evitar, sucumbirá quase sempre. E' pra­
; :
ticando a humildade, a doçura, é renun­
ciando-se a si mesmo, é indo ao encontro
das pessoas contra quem se têm preven­
ções, é deste modo que se vibram nessas
paixões golpes eficazes e poderosos que
as.seguram a derrota delas, e que dão uma

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Tratado das Tentações

vitória completa àquele que combate fiel­


mente em todos os ataques.
Mas, também, não há nada mais prej u­
dicial do que o procedimento de certas al­
mas nas tentações. Elas acreditariam .ter
algo a se exprobrar se não se exaurissem
em argumentações para destruir aquilo
que a tentação lhes inspira. Entram, pois,
em esclarecimento com a paixão que as
ataca, e à qual não faltam pretextos para
se justificar. A.s.sim, aturam um com­
bate longo e perigoso, combate que mui­
tas vezes poderia ter sido terminado num
momento se elas não houvessem entrado
em disputa com um inimigo· artificioso,
ou que pelo menos lhes teria dado muito
menos pena a .suportar. Isso lhes sucede
sobretudo quando elas têm idéias contra
a Fé, contra a Esperança, sentimentos
contra a Caridade. Elas querem assegurar­
se das suas disposições interiores, comba­
tendo. diretamente a tentação. Essa ma­
neira de proceder é uma fonte de pena$,
de perplexidades: é perigoslssima.
Desde que se discute com a tentação, ou
sobre matérias difíceis nas quais as difi­
culdades se fazem sentir sem custo e as
respostas são difíceis de compreender. por
aqueles que carecem de luzes e de princí­
pios nesse gênero; ou sobre coisas que li­
sonjeiam o amor-próprio e que a· malig-

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Tratado das Tentações

nidade natural aplaude, estamos no maior


perigo de sucumbir. Assim .se perdeu Eva.
A tentação que entra na alma pelos sen­
tidos, e que lhe apresenta uma satisfa­
Ção conforme à natureza, causa uma forte
impressão. Não sendo sensível e não cons­
trangendo a natureza aquilo que se lhe
tem a opor, não causa, quase certo, nésta,
uma impressão semelhante, a menos que
uma fé viva lhe dê força. Na perturbação
em que nos achamos, às vezes essa fé tem
dificuldades em se fazer sentir; e então
já não opomos à paixão senão uma fraca
resistência. Aliás, em combatendo desse
modo a paixão, damos-lhe uma atenção
que. a alimenta e que a torna mai.s sensl­
vel, de maneira que a todo in.stante pa­
rece que consentimos nela; o que lança a
alma numa perturbação e num embaraço
do qual ela custa a sair quando quer dar­
se conta do seu procedimento.
E.o;1 todas essas tentações, não há me io
mais seguro para se colocar fora de al­
cance do que desviar sem demora a men­
te dessas idéias, ligando o coração a sen­
timentos de piedade. Se há na mente pen­
samentos que não dependem da vontade,
a vontade também pode obrigar a mente
a ocupar-se de certos objetos que a des­
viem daqueles que a tentação lhe apresen­
ta. Aliás, nem sempre é necessário prefe-
/!

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'

l
Tratado das Tenta�ões
35

rir aqueles que são diretamente opostos à


tentação. Desaprovamo-la suficientemente
desde que nos volvamos para Deus por
qualquer pensamento e por qualquer ato
de virtude que seja. Cada um deve ape­
gar-se àquilo que ordinàriamente mais o
sensibiliza ou impressiona.
Uns, sensíveis aos sofrimentos de um
Deus feito homem para salvar os homens,
colocam-se ao pé da Cruz de Jesus Cristo"
ocupados desse Deus Salvador, que, pelo
sacrifício da sua vida infinitamente pre­
ciosa, expiou os pecados deles; eles con­
cebem um vivo pesar das suas faltas, das
suas infidelidades, e um grande horror a
tudo o que possa de novo crucificar no
seu coração o seu bom Mestre. Outros,
retirando-se, pelo pensamento, no Sagrado
Coração de Jesus, cujo socorro e misericór­
dia imploram, penetram-se dos sentimen­
tos de bondade e de compaixão que esse
divino Salvador por eles teve, para se ex­
citarem à gratidão e à confiança que MSe­
guram a sua fidelidade. Uns, mais sensi­
bilizados pelo milagre do amor de Jesus
Cristo, que quis dar-se a eles de maneira
tão admirável na divina Eucaristia, ser­
vem-se dos sentimentos que esta miseri­
córdia infinita lhes inspira, para desvia­
rem o seu coração de tudo o que possa
ofender um Deus tão bom. Outros, colo-

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,: 36 Tratado das Tent�ões

cando-se em espirito no momento em que


irão dar contas a Deus de todo o curso
da sua vida, representam-se situados entre
o Céu e o Inferno. Dizem a .si incessante­
mente: Se, depois deste combate, eu de­
.\ vesse ·Comparecer no Tribunal de Jesus
r,,,
Cristo, como quereria ter sustentado este
combate? Ocupam-se vivamente desses
objetos, tão interessantes para o homem,
p�ra o cristão, e tão capazes de os afas­
tar de todo mal. Compenetrado dessas ver­
dade.s tão tocantes, tão impressionante.s,
o seu coração torna-se insensível ao ob­
jeto da tentação, a sua mente não se ocu­
pa mais deles.

Poucas tentações há que resistam muito


tem p o numa alma que, sem escutar as ra­
zões da imaginação escaldada pela paixão,
e sem se divertir em lhe responder, ani­
mada de uma viva confiança volve-se pa­
ra Deus por .sentimentos de amor, e lhe
implora o socorro sob a proteção da SS.
Virgem . Este exercicio do amor de Deus,
enquanto durar o ataque, é a defesa mais
segura do coração. Este nunca será for­
çado enquanto se mantiver apegado a
Deus por esse sentimento. Para tornar
esse sentimento mais forte e mais dura­
douro, apliquemos a me nte à consideração
dos motivos que devem alimentá-lo e au­
mentá-lo: logo o inimlgo, confuso, aba.n-

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I l
37

ttonará o seu ataque. Se ele recomeçar o


eombate, põ-lo-emos em fuga pela mesma
manobra.
Finalmente; trata-se, com a· graça de
.Deus, de afastar da mente ou do coração as
Idéias e os sentimentos que põem em pe­
l'lgo. Mais fácil e mais seguramente con­
seguimos isso dando-lhes outro curso, ou­
tra ocupação. Há mesmo circunstâncias,
quando as tentações são fortes e obstina­
das, em que é oportuno, para se distrair
delas, ocupar-se de alguma obra de espi­
rito ou de corpo, cuidar de empregos ou
de afazeres. Estas ocupações afastam da
alma os objetos que as obsidiam, e pro�
porcionam-lhe a tranquilidade. Quando a
calma volta, a mente e o coração elevam­
se a Deus com mais liberdade, prendem-se
a Ele com muito mais força.

Nesses combates, ponto essencial é não


se perturbar, é não deixar enfraquecer a
sua confiança em Deus, sobretudo resistir
aos primeiros ataques. Se a mente e o
coração são perturbados pelo temor,
não sabem a que se apegar para se sus­
tentarem: a perturbação escurece as ver­
dadeiras luzes. Neste estado, já não se
pensa em procurar socorro. O coração não
sabe a que se resolver, porque a mente
não lhe apresenta nada que seja capaz
de animá lo E'
- . diária a experiência disto,

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38 Tratado das Tentações

e estende -se às coisas tempor ais como


à.s coisas espiritua is. Vede esse h omem que
se acha num perigo, num ataqu e impre­
visto: fornecem-lhe meios de safar-se dele,
mas ele não os vê; tem as suas armas
junto de si, mas procura-as sem as achar.
Recebei o inimigo com mais segurança,
e tornareis mais medidas p ara lhe aparar
os golpes , vereis melhor os meios de ven­
cê-lo, em p regareis esses meios com mais
liberdade, empregá-los-eis com mais van�
tagem: Afinal de contas, por que vos per­
turbardeS? O demônio pode, na verdade,
sugerir-vos tudo o que ele tem de maJs
perverso, porém não pode obrigar-vos a
\• :
consentir nisso. O coru;entimento não de­
pende dele; só depende de vós. Por que,
pois, v os assustardes, como fazeis, numa
coisa em que sois absolutamente senhor,
em que, com o socorro da graça, podeis
'I!
1!' sempre recusar o consentimento? Resisti,
e nada tendes a temer de um inimigo que
só pode vencer-vos quando bem o qui­
serdes.
Esta. segurança, dar-vo-la-á a confiança
em Deus, se não a deixardes enfraquecer­
se. Uma alma desanimada na tentação é
·
uma alma meio vencida. Ela não faz mais
senão fracos esforços , porque já não é ·
sustent ada por essas graças particulares
que Deus só concede à confiança. Como

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Tratado das Tentacões

haveria ela de tê-las, essas graças precio­


sas? Nesse estado, ela nem sequer pensa
em pedi-las. Parece que Deus não é mais
para ela o Deus forte, o Deus bom, que
pode, que quer sustentá-la. Entretanto, ela
experimentaria essa bondade e esse poder,
se os invocasse com fé. Deus prometeu-o:
sua palavra é infalfvel (SI 17, 4; 137, 7).
Não digais: Tenho experimentado tan·
tas vezes a minha fraqueza nessa tenta­
ção! Se a experimentastes, foi por ha­
verdes sempre faltado à confiança. Não
falteis mais, e não mais sucumbireis. Pe­
dro, andando sobre as águas por ordem
de Jesus Cristo, começou a afundar assim
que faltou à fé e à confiança (Mt 14, 31):
e só foi salvo pela volta desse sentimen­
to, que lhe atraiu a proteção do seu di­
vino Mestre.
Nas tentações, mormente nas que geral­
mente são violentas, atenta aos primeiros
botes da paixão, aplicai-vos a lhe sustar
os primeiros movimentos. Se deixardes à
imaginação tempo para se esquentar, ao
coração tempo para se prender ao objeto,
e isto por uma defesa fraca de vossa
parte, esta infidelidade enfraquecer-vos-á
ainda mais. A paixão tratada com consi­
derações grimpa logo. Era apenas uma
faisca, que teria sido fácil apagar: mas,
por essa negligência, toma-se um abra-

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Tratado das Tentações

samento1 que ganha todas as potências


da alma. Ainda mais necessário é este
conselho nas tentações cuja força redobra
pelas impressões que elas prod uzem noo
sentidos . Então fazem-se mister rasgos de
uma misericórdia particular para se con­
servar no meio das chamas .sem ser por
elas danificado. A diligênci a em prevenir
esse perigo, ou vos teria preservado da
tentação, ou vos teria assegurado a pro­
teção de Deus para s airdes dela s em re­
ceber ferimento.
Quando não se tem exper�ência, devem ­
se r eve lar ao seu c onfessor as ten taçõ es as­
sim que começam. Assim aprende-se a
maneira de combatê -las ; e assim nos des­
li fazemos delas mais fàcilmente. Esse ato
de humildade e de simplici d ade cristã
atrai graças particulares do Céu. Uma al­
ma que, segundo a ordem estabelecida pe­
la Providência, quer conduzir-se pela tri­
lha da obe diência, merece que o Senhor
se interesse especial me nte por ela nas
suas penas.. Por isto, com frequênc ia su­
cede já não caus arem essas t entações per­
turbação, mal as revelamos ao ministro
do Senhor . Se as calamos, na esperança
de que elas passarão, ordinàriamente da­
mo-lhes tempo para se fortificarem, e elas
se torn am mais dificeis de ven cer ;

, I

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CAPITULO IX .

SOBRE AS TENTAÇõES FREQUENTES.


E' NOS INTERVALOS DA PAZ QUE NOS
DEVEM:OS PREPARAR PARA A GUERRA.

Quando estamos expostos a tentações


frequentes, devemos, no tempo da calma,
premunir-nos contra os ataques delas, hau­
rir forças para lhes resistir. Aquele que
espera pelo momento do combate para a
ele se dispor, infalivelmente é surpreendi­
do e logo vencido. E' no tempo de paz que
nos devemoo preparar para a guerra : esta
máxima é geralmente reconhecida. Deve ­
mos fazer uso dela na piedade, onde as
derrotas são de consequência inteiramen­
te outra que nas coisas temporais, visto
que privam, de um reino eterno.
Esta preparação consiste numa vida re­
colhida, interior. Entregue à dissipação,
uma alma não presta, a princípio, toda a
atenção que deve prestar ao que se pass a
no seu coração. A tentação faz progressos
antes que ela estej a em estado de renun­
ciar-lhe. Ocupada com inutilidades, a
mente custa a refletir seriamente sobre
os motivos de Religião que podem contra-:
balançar o atrativo da paixão. No reco-

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42 Tratado das Ten�

lhimento, a alma, ocupada de Deus e de


bons sentimentoo, de longe vê vir o ini­
migo : precata-se de inicio : e acha, na .sua
mente e no seu coração, armas pronti.nhas
para combatê-lo com êxito. A mente ocu­
pada das verdades da Fé, o coração ape­
gado à virtude peloo sentimentos habituais
que o guiam, dificilmente .são abalados
pelas falsas satisfações que a paiXão apre-
- senta. Ao clarão desse facho da Fé, fà­
cilmente reconhecemos o precipício hor­
rendo a que a tentação conduz, concebe­
mos horror dele, afastamo-nos dele para
a ele não nos deixarmos arrastar. A ora ­
ção assidua, a proteção, que reclamamos,
dos Santos, e sobretudo da Mãe de Deus,
abrem os tesouros do céu : fazem descer
dele essas graças de escolha de que se
torna indigna uma alma dissipada, que
não pensa em solicitá-las.
Se essa vida recolhida for sustentada
pelos Sacramentos, dos quais nos aproxi ­
mamos amiúde, para isto nos preparando
com cuidado, ainda em mais segurança es­
taremos. Ainda mesmo quando sucumbfs­
semos algumas vezes, não devemos afastar­
nos dos Sacramentos : muito antes, a eles
devemos recorrer mais frequentemente. O
Sacramento da Penitência · foi estabelecido
não sõmente para perdoar os p ecad os que
se cometeram, mas ainda para conferir

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Tratado das Tentações

graças particulares que afastam dos peca­


dos que ainda se poderiam cometer, �a­
ças que fortificam contra as paixões que
os fizeram cometer. Afastando-nos do
Sacramento, privamo - nos dessas graças
especiais, e tornamo-nos sempre mais
fracos. A med ida que mais amiúde nos
aproxi.mamos do Sacramento da reconci­
liação, concebemos sempre mais horror ao
pecado. Este horror, mais vezes reiterado,
imprime-se mais fortemente, age mais vi­
vamen te na alma, .e su.stenta-a mais po­
derosamente na ocasião. Aliás, todos os
Ooutores convêm em que uma pessoa que
teve a desdit a de cair num pecado mor­
tal, mormente quando tem pendor para
ele, não deve adiar por m uito tempo o sair
desse estado, porque , privada da graça
santificante, e por isto afastada de Deus,
de quem se tornou inimiga, está em maior
perigo de cair em semelhantes pecados,
se for de ·novo atacada pela tentação.
Causa ela, pois, a si mesma grandissimo
prejuízo quando se afasta do sacramento
da Penitência .
A santa Comunhão tamb é m é um meio
poderoso para se sustentar contra as ten­
tações, se nos aproximarmos dela com
santas disposições. Nela recebemos Jesus
Cristo, o Salvador de nossas almas. De­
pois de se haver dado a nós, podemos

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Tratado das Tenta!;ÕeS'

pensar que Ele nos recusará os s ocorros


que devem prender -n os a Ele? Ele só vem
ao nos.so coração para firmá-lo no b em . o
santo Concilio de Trento, falando da divi­
na Eucaristia, diz : Jesus Cristo quis _ que
esse Sacramento fosse recebido com,o o
alimento espiritual das almas, alimentó
·
que as sustentasse e fortificasse . . . e co­
mo um anttdoto pelo qual fôssemos liber..;.
tos das faltas diárws} e preservados dos
pe ca dos mortais (Sess . 13, c. ll) . Se há
estado em que a alma tenha necessidade
premente d e um socorro particUlar que a
sustente no bem, que a fortüique contra
os inimigos da sua salvação, que a preser­
ve dos pecados mortais, esse estad o é, sem
dúvida, ess e em que se acha a alma su­
j eita às tentações. Nunca essa comida ce­
leste, esse an tidoto poderoso, lhe é mais
necessário. Privar -se , por culpa própria,
de tamanho bem, estabelecido para o fim
que se desej a nesse estado, não é querer
expor-se a sentir todo o peso de sua fra­
queza? Aliás, ess a alma que quer aproxi­
mar-se santamente dos Sacramentos está
ocup ada desse gra nde obj eto: cheio dos
sentimentos de piedade que quer trazer
a eles, o seu coração faz diversão às ten­
ta ções que o assedi am, e fie� poderosa­
mente empenhado em não admitir coisa
alguma que possa opor óbice às graças

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Tratado das Tentações 45

que ele solicita. Sobre este artigo, entre­


tanto, é ao confess or que compete j ulgar
das disposições ; é a ele q�e cabe prescre­
ver o que uma al'ma deve · fazer nesse es­
tado, para não cair na ilusão.
A todos ess es . meios d� se premunir
contra as tentações a que uma alma está
exposta, pode -se j untar a penitência. Ela
atrai graças ; humilha o espírito ; amor­
tece as paixões ; expia os pecados, as fal­
tas, as infidelidades ; desperta o fervor; .
excita à vigilância. Nã'o s e deve, entretan­
to, empre gá - la sem discrição e sem discer­
nimento. Devemo-nos m or ti ficar , mas até
certo ponto, para além do qual haveria
um excesso capaz de prej udicar a saúde,
saúde que a prudência cristã e religiosa
manda poupar. Empregam-se sempre com
êxito as práticas da penitência contra a
maioria das paixões : mas há tentações
em que essas prática:s podem ser perni­
ciosas a c ertas pessoas, no tocante ao
seu caráter, ao seu temperamento. Para es­
sas pess oas, devem as penitências ser in­
terditas ; e . essas pessoas nada devem fa­
zer, ness e gênero, sem conselho e sem per­
missã o

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CAPITULO X

AS VANTAGENS DAS TENTAÇÕES

Não encaramos as tentações sob o seu


verdadeiro ponto de vista : dai vem o en­
tristecermo-nos tanto com elas. Só presta­
mos atenção ao perigo a que elas nos ex­
põem, ao mal a que nos l e vam ; mas não
pensamos nas vantagens que delas podemoo
tirar, nos bens espirituais que elas podem
proporcionar-nos. Esta ignorância, ou esta
falta de reflexão, é a causa do pouco pro­
veito que nelas achamos. As reflexões se­
guintes servirão para no-las fazer supor­
tar mais pacientemente, e dar-nos-ão mai.s
facllidade para vencê-las .
.A3 tentações podem empenhar um cora­
ção cristão- na prâtica das virtudes mais
sólidas, e fazer-lhe adquirir grandes me­
recimentos para o Céu. Bem grande con­
.
s olação é poderdes tirar, dos próprios ini­
D::úgos que vos atacam, vantageÍl.s eternas,
e poderdes fazê-los servir à vossa felici- ·
dade. A vista de tamanho bem não pode
deixar de animar uma alma no combate .

E' um motivo que nos propõe o Apóstolo


S. Tiago : Considerai um motivo de ale­
gria quando fordes atacado de dijerente8

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Tratado das Tentaçõe!iJ

tentações; quanào toràes posto em àiver,..._


sas. provações (c. I) ; sabendo que · essas
provações em que voss a fé é posta produ­
zem a paciência, e que a paciênc�a · <4\: a
p er fe iç ão às obras.
O homem reflete pouc o - sobre si mesmo :
conhece-se pouco; evita· examinar-se a:
fund o, com medo d e achar. e m s i defeitos\
de que o amor-próprio teria .de corar. Toda­
a sua atenção dedica-se, . pois, natural� ,
mente a · paliar , a os seus próprios olhos;
os seus vícios, a salientar as suas boas
qualidades. Desta conduta tão pouco sábia'
é que vem esse amor-próprio tão delica­
do, tão sensível, tão su.sceptivel, ess a vã
estima que ele tem de si mesmo, essa pre­
sunção que o expõe a tantos perigos ; essa
vaidade, essa preferência que ele se dá
sobre os ou tr os . o orgulho, fonte de todos
os males, cega-o sobre a sua miséria, so ­
bre ·os seus P,efeitos, sobre as suas q1,1ed�,
sobr e as suas _fraquezas. As próprias pes�
soas q�e se afeiçoam à pie dade nem sem-.
pre estão isentas dessa vã complacêncta ,
tão natural, de, uma alma que se nutre
das suas .virtudes, e que procura a dis�
tinção e a estima. E' . um princípio de or­
gUlho e de vaidade que as eleva aos seus
próprios olhos, que as enche de si mesmas,
que � faz c ont ar com as suas próprias
forças, .e que as mantém numa segurança .
Col. Pop. 28 - 4

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Tratado das Tentaçõe!iJ

temerária e perigosa : veneno subtil que ,


muitas veze:3 infecta as ações mais santas .

em aparência.
As tentações são um remédio soberano
para ess e mal tão perigoso, e para as suas
consequências funestas. Elas desvendam
ao homem todo o seu coração : fazem-lho
conhecer tal qual é quando está entregue
a si mesmo, sem que ele poss a ocultá-lo
ou disfarçá -lo a si mesmo. Ao clarã o desse
triste facho ele vê todas as misérias des­
,

se coração, todas as :fraquezas, toda a cor­


rupção. Atacado alternativamente por di­
ferentes paixões de inveja, de ciúme, de.
ódio, de vingança, e por outras · ainda mais !
baixas e mais vergonhosas, ele vê no se u .
coração o germe de todas aquelas que ar­
rastam o.s h omens às maiores desordens,
e fàcümente se persuade de que natural­
mente nada tem acima deles.

O primeiro efeito que � visão p rod uz


numa alma cristã é inspirar-lhe uma hu­
mildade proporcionada à miséria em que
ela se acha : ela só vê em si motivos d e
humilhação e de desprezo. A estima que
poderia conceder a si por a lgumas boas ·
qualidades que vislumbra no seu coração,
l ogo é abatida por essa chusma de más in­
clinações contra as quais é obrigad a a lu­
tar incess antemente. Ela é a sell8 próprios
olhos o que seria · aos olhos dos homens

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Trata.do das- Tent!lof<Ões

se o seu coração, com todas as suas pai­


xões, lhes fosse desvendado. Já não tem
por si mesma senão os sentimentos de um
desprezo cristão, que a humilham d iante
de . Deus, e que fazem cessar de sua parte
toda pretensão diante dos homens.
Que vantagens uma alma não tiraria
desse conhecimento, sustentado pelo espl­
rito de religião? E' ela afligida? Sofre ?
SUbmissa à. Providência , pensa em que
mesmo assim, Deus ainda a poupa e não
a tráta .segundo a corrupção do seu cora­
ção. E' cons olada ? Recebe beneficios? En­
tão adora a bondade do seu Deus, que se
di.gna de tratá-la tão favoràvelmente. O
con traste entre a sua indignidade e a bon­
dade divina ex cita- lh e no coração a mais
viva gratidão, faz nascer nele os senti­
mentos do amor mais perfeito. Na convic­
ção em que está de ser indigna dos bens
que recebe, .de só os dever a uma miseri­
córdia infinita, ela aperfeiçoa a sua hu­
mildade, essa virtude tão necessária e o
reeurso de tantas virtudes.

Uma alma a quem as tentações fazem


conhece r toda a b aixez a do seu eoração,
sente diante de Deus a mesma confusão
que sentiria diante dos homens, se fosse
por eles conhecida. Confusão salutar, que
a esp era nça sustenta. Assi m sendo, guia-

••

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Tratado das Tentações

da pelo espirito de religião, ela j á não se


irrita: contra o procede r das criaturas a
seu respeito, por mais duro, por mais de­
sagradável que ele poss a ser. A luz da
fé' f�-lhe ver. que ela merece· ainda mais
desprezo do. que lhe é testemunhado ; e
9;u.e, . �e � pessoas não levam ainda mais
l�nge 1e...c;:se
. pesprezo, é que não a c onhe cem
tal como eia é no fundo, é que a caridaqe
Jhe.s oculta m�mo uma parte daquilo que
�:p�rece .e�:teriormente. S erá preciso mais
·

para lhe t.azer perder para se mpre toda


vã �tima de si mesma?

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CAPITULO XI

CONTINUAÇÃO DO CAPíTULO PREC� ·­

DENTE. UMA ALMA SUJEITA AS TENTA­


ÇõES, E QUE QUER OPERAR A SUA SAL­
VAÇAO APEGA-SE MAIS FORTEMENTE
,

fi DEUS, E YIVE � M�OR VIGILANCI4.

·o conhecimento da corrupção do cora�


ção .ela do pelas tentações a uma alma
c+ist�. pr oduz outro efeito, que, bem sus­
�ent�o. a conduz à perfeição. P'ma alma
suj eita, àS tentaçõe�. � que quer operar .a
�ua s.alvâção, apega-se .mais forteq:tente a
Deus; vive �m- maior vigilância sobre si
mesm.a : doi.s meios bem próprios para lhe
proporcionar grandes ptogressos na trilha
da santidade.
Essa alm� vê no seu coração uma mul­
tidão . de inimigos : con11.ece toda a. sua
fraq1]eza, e posto que sip.ta em si bastan­
te res.olução para, com as graça.S ordin�­
ri� ·.em .��.iões pouco urgentes e com
rela �o a obletos pouco interessantes, re­
sistir a a}guns, está convencida, tant o
pe­
la depravação do seu co:ração, como pc;>r
uma triste experiência e como pelos prin­
cipióis · da Religião, de que, sem graças es­
peciais, não terá bastante ân imo e força
.

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Tratado das Tentações

para resistir a ataques mai.s vivos. Que faz,


pois, uma alma cristã, esclarecida por es-·
Sa.s luzes, e espantada com um combate
tão desigual ? Procura um socorro pode­
roso, que possa sustentá-la :contra todos
os seus inimigos, e sobretudo contra os
mais temfveis. A Fé lhe ensina que só
j unto a Deus pode ela achar esse socorro
para si tão necessário, e que efetivamente
o achará se o· implor ar com ardor e per..;.
severança. E', pois, a Ele que ela se dirige
sem cessar, com confiança inteira.
Ao primeiro movimento que o inimigo
faz para atacá-la (SI 120) , ela ergue os
olhos para as montanhas santas, de onde
lhe deve vir o socorro : solicita-o pelas
suas _ preces; atrai-o pelos seus desejos :
todos os afetos do seu coração falam, ro­
gam para obtê-lo. Quanto mais esforço a
tentação faz para arrastá-la, tanto mais
ela se apega a Deus pelos seus sentimen­
tos. E' uma criança que, andando à beira
dos precipícios, ou achando-se cercada de
animais ferozes, agarra-se mais fortemen­
�e a seu pai (que é só quem pode garan­
ti-laL à medida que as passagens são mais
escorregadias e mais perlgosas1 e à medi­
da que ela está mais exposta a receber
ferimentos mortais.
Sob a proteção do seu Deus, como o
$-anto Rei profeta, ela não mais teme ini-

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Tratado das Ten�es

mígos sempre "fracos contra uma fé viva


que lhe desvenda bens eternoo, contra uma
esperança firme que lhe a tra i as graças
particulares que Deus prometeu à confian­
ça. Não os conta mais, esses inimigos que
ela considera va tão temiveis ; despreza -os,
ou ataca-os com .segurança ; e, nestas dis­
pooições, obtém de Deus a vitória. Esse
beneficio muitas vezes concedido faz-lhe
conhecer de maneira mais assinalada a
bondade, a misericórdia de Deus, de Deus
que tão especialmente .se interessa pela
sua felicidade ; e com iss o o seu amor a
Deu.s torna-se mais forte e mais ardente.
As tentações, se as encararmos e as su­
portarmos segundo as máximas da Reli­
gião, apegam pois a alma mais for te mente
a Deus pelas virtudes principais, pela Fé,
pela Esperança, pela Caridade, das quais
a obrigam a produzir atos mais frequen­
tes.
Mas, por outro lado, a convicção da .sua
fraqueza obriga a alma a viver em maior
vigilância sobre si mesma. O homem fra­
co é e o é na proporção da .sua
timldo,
fraqueza. Ess a timide z dá-lhe uma cir­
cun.specção singular para evitar tudo o
que lhe possa atrair inimigos, ou desper­
tar o ódio d os que ele já tem. E' atento
.sobre todos os seus passos , sobre todas as
suaas palavrM. Não ataca ninguém, porque

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Tratado. das . Tentações

não tem confiança de poder resistir. E'


este C) procedimento que, com mais cui..:
dado ·ainda, observa a alma cristã. Evita
tudo o que possa desper tar as tentações
a qu e é suj eita, tudo o que possa propor- '
cionar-lhe novas. Pelos oráculos do Espí� �
rito Santo, sabe que aquele que se expõe
t-emeràriamente ao combate merece pe- ·
recer .nele (Ecli 2, 27) . No te mor de experi­
m entar toda a sua fraqueza se se tornar ·
indigna do socorro do Céu pela sua pre­
sunção, está conti-nuamente atenta sobre
a sua mente e sobre o seu coração, · com
medo de que se insin'ue neste algum novo
inimigo ; ou de que os que nele estão es­
condidos, aproveitando�e da sua negli­
gência, se apod·erem dos seus sentimentos,
lhe façam provar a doçura envenenada
da paixão, e a arrastem ao precipício.
A vigil ância parece-lhe tanto mais ne­
cessária .quanto a tentação nem sempre
age à força aberta. Toma desvios; engana
por pretextos, seduz pela aparência do
bem, para de mansinho conduzir a alma
às armadilhas. As paixões nem sempre se
mostram a descoberto, para se não dei­
xarem reconhecer. Há umas.· que �e insi­
nuam insensivelmente, que se .. disfarçam,
para se introduzirem no coração sem que
a gente o desconfie. Uma alma pouco
atenta dá-lhes . tempo de se fortalecer, ou

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Tra.tado das Tentações 55

só fracas barreiras opõ e à sedução. Pelo


contrârio, a alma que pelos -combates que
tem de sustentar conhece toda a conse ­
quência que há em sentir novas inclina­
ções, ou em ter a men or complacência
para com as antigas, está tão alerta, que
vi81umbra os menores movimentos que se
operam no seu coração. Procura-lhes a
causa, para remediá-los. Mal reconhece o
inimigo·, afasta-o, p recata se contra os
-

seus ataques.
Assim, a vigilância que ela emprega é
um baluarte seguro que a defende contra.
as tent aç ões de fora e de dentro Ela. .

nunca é pegada desprevenida : a paixão·


acha-a sempre em estado de defesa.
Muitas vezes nós procedemos sem pre­
eaução em tempo de paz e duran te a.
calma. Mas, em tempo de guerra e durante
a tempestade, estamos muito atentos a
tudo, se não queremos sucumbir e nau­
fragar. A vigilância entretém a u niã o com·
Deus : esta união confere docilidade às
inspirações do Espírito Santo, e esta doci­
lidade conduz à perfeição.

Col. Pop. 28. - 5

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CAPITULO xn

FELIZES EFEITOS DAS TENTAÇõES NAS


ALMAS NEGLIGENTES

As tentações, que parecem dever per­


der as almas negligentes, muitas vezes
têm sido um meio de que Deus se tem
servido para retirá-las do estado de dis­
plicência em que elas viviam, e para lhes
fàzer praticar a virtude com um ferior
rfiado. Há almas que levam uma vida
morecida nas vias da piedade. Na ver-
ade,' não há desordem assinalada na con­
't
duta delas; mas também elas não dão
atenção à sua perfeição. Se não cometem
dessas faltas graves que as afastariam dé
Deus, fazem pouco bem, pelo pouco cui­
dado que têm de praticar a mortificação
dos sentidos e das paixões mesmo hones­
tas e, em certo sentido, inocentes, ou que
lhes parecem tais; e de agirem habitual­
mente num espírito de fé . A sua vida,
todo natural na maioria das suas ações,
bem pouco mérito tem perante Deus. Elas
são como uma nau que, em tempo de
calmaria, quase não faz camll;lho.
Por misericórdia, Deus perturba essa
calmaria por tempestades. A tentação des-

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Trotado das Tenta<:ões 57

perta a piedade adormecida nessa alma,


que Deus ilumina nesse momento e que
atrai a si por sua graça. Ela se vê de
repente à borda de um prec1p1cio que
lhe faz horror. Vê-se a braços com 1niml­
gos que empregam alternativamente a do­
çura e o terror para seduzi-la ou intimidá­
·
la. A Religião age então no coração dela
com mais força. Assustada com o perigo,
ela recorre ao seu Deus, em quem põe
toda a sua confiança, para sair vitorioSa
do combate. Se os assaltos se renovam,
para evitar perder-se ela pensa sêrlamen­
te em se fortificar contra os ataques rei­
terados dos seus inimigos, por todos os
meios que a Fé lhe fornece.
Destarte, aplicada à oração, que deve
alcançar-lhe as graças de força de que ela
precisa para resistir ; unida a Deus, a
quem o perigo em que ela se acha a re­
conduz sem cessar; vigilante sobre si mes­
ma, para não cair nas ciladas que �e
são armadas, ela não age mais senão por
motivos de piedade, coloca-se num exerci­
cio continuo de virtude. Tudo o que dese­
j a, tudo o que faz, quer que sej a uma
homenagem que o seu coração preste a
Deus. Quanto mais premida se sentir pe­
las paixões que a atacarem, tanto mais se
firmará na determinação de nunca se afas­
tar dessa trilha, a única que pode pô-Ia

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Tentaçõet/
58 Tratado das

a coberto dos ataques dos seus inimigos.


Assim, de uma vida negligente ela passa
logo a uma vida de fervor, em que todos
os seus momentos são consagrados a Deus.
Essa mudança deve ocorrer se essa al'­
ma, até então tíbia e displicente, for fiel
à sua graça. Porquanto, assim atacada pe­
la tentação, vendo a sua salvação em pe­
rigo, querendo evitar· a desgraça irrepa­
rável da sua perdição, por pouco que ·ra­
ciocinar segundo os princípios da Fé ela
logodn
compreenderá desde pres que haveria pre­
- ção
sunção, e uma �
Deus ,bem culpada, se
ésperasse de vitória sem em­
pregar, para alcançá-la, nenhum dos meios
a que Deus a ligou. Uma alma que, a pre­
texto da misericórdia <le Deus, pretendesse
ter os socorros para resistir às paixões
que a atacam embora levasse uma vida
dissipada e omitisse ou cumpriss e com ne­
gligência os exercícios de piedade; embora
se aproximass e dos sacramentos ou rara­
ménte ou com pouca preparação, e não
quisesse incomodar-se para evitar as fal­
tas leves; essa alma tentaria a Deus:
tornar:-se-ia indigna do seu socorro; me­
receria que Deus permitisse que ela expe­
rimentasse toda a sua fraqueza, que se
tornasse escrava de todas as suas paixões.
Com tais disposições, poder-se-ia dizer
com. verdade que essa alma tíbia e covar-

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de não quereria sinceramente resistir :


p orquanto querer o fim sem empregar os
meios é realmente não o querer. Deus lhe
diria com justiça, como dizia ao seu povo:
A vossa perdição vem de vós, 6 Israel ( Os
13, 9) . Não falo, pois, de uma alma desse
caráter : falo daquela que, apesar d a sua
negligência, teme bastante o pecado, ama
bastante o Senhor, para estar na disposi­
ção sincera de não o ofender mortalmente
e, conseguintemente, de e·mpregar os meios
que Deus lhe deu para obter a sua prote­
ção. A tentação é utilissima a essa alma
pa ra tirá-la da sua indolência e para lhe
fazer renascer o seu fervor.
Os Padres, na vida espiritual, convêm
que Deus permite às vezes que uma alma
que está na tibieza caia em alguma falta
grave, para tirá-la do seu torpor pelo
horror que ela sente dessa falta.

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'i
I

CAPITULO xm

O TEMPO EMPREGADO EM COI\IIBATER


A TENTAÇAO NAO E' TEMPO PERDIDO.

O que aflige muitas pessoas s uj eit as às


tentações é imaginarem perder o seu tem­
po nesses combates. Dizem elas: Raramen­
te posso viver no recolhimento. Se quero
aplicar-me à meditação, recitar orações,
passa r algum tempo j unto de Jesus Cristo
residente no Sacramento do seu amor,
não posso ocupar-me de Deus : é esse quase
sempre o tempo. em que as tentações vêm
assediar-me ; e pass o -o quase todo intei­
ramente ocupada em me defender con­
tra a impressão delas. Topo com esses
inimigos importunos e encarniçados até
na Mesa santa, onde vou receber meu
Salvador e nutrir-me do Deus das vir­
tudes. Que fruto pode tirar-se de exerci­
cios de piedade feitos nessa agitação?
Este pen.samen to lança essas pess oas
assim tentadas num abatimento perigoso.
Para cÍlrá-las, tranquilizá-las e consolá­
las, é importante pôr-lhes debaixo dos
olhos os princípios e as reflexões que de­
vem fazer-lhes conhecer o seu erro, e toda

I'
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'fratado das Tentações Gl

a vantagem que esse estado penoso Ih�


proporciona quando elas são fiéis.
E' uma máxima universalmente reco­
nhecida que não devemo-s servir a Deus
segundo as noss as idéias e os noss os gos�
tos: devemos servi-lo como ele o exige, e
tal como lhe apraz. Deus liga suas gra­
ças e suas recompensas não precisamente
às boas obras que nos impomos, porém, às
que Ele autoriza ou que pede de nós. N�te
principio é que se funda a decisão de que,
se a obediência vos · aplica a algum em­
prego que vos impede de estar na medi­
tação, satisfazendo esse emprego com �­
pirito interior sois tão agradável a Deus
quanto se estivéss eis na meditação. E, se
tiráss eis de vós m�ma o exercício desse
emprego, para orar e para ·meditar, não
servirieis o Senhor como Ele quer : falta­
rie:ts para com Ele, ao invés de o honrar.
Este prir\cipio bastaria para vos conven­
cer de que não perdeis o voss o tempo quan­
do, durante os ex;erciclos de piedade, estais
ocupada em combater o inimigo da salva­
ção. O demônio só tem poder contra os
homens na medida em que Deus lho per­
mite. Ele não pôde pOr Job em tantas
provações e tentá-lo de tantas maneiras,
senão por permiss ão expressa do Senhor.
Deus permite, pois, esse estado de ten­
tação em que vos achais; e, como as dis-

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62 Tratado das Tentaçõ�

trações são ·uma espécie de tentação, dev'e­


se aplicar-lhes o que aqui dizemos.
Como quer então Deus que. o sirvais?
Será por uma meditação seguida e inin­
terrupta das coisas santas? Será por coló­
quios amorosos com Ele, colóquios que ne­
nhum afeto terreno venha perturbar? Não:
Ele quer que o sirvais. por uma resistênCia
fiel e constante a tudo o que o inimigo
vos inspira para vos seduzir e para vos
fazer renunciar ao seu divino amor; quer
que, a exemplo dos Judeus ao reergue­
Jt\rusalém,
rem os muros de
\espadaempunheis
com uma das mãos a para resistir
aos inimigos (2 Esd 4, 17) que vos ata;eam,
e com a outra trabalheis em elevar o
edifício espiritual da vossa perfeição pelos
sentimentos de uma fé viva e de uma es­
perança firme: digo firme na vontade, em­
bora, a contragosto vosso, seja ela vaci­
lante na imaginação. Tendes tido. essa fi­
.delidade? então tendes cumprido a von­
tade de Deus, e . o tendes ho,nrado como
Ele o pedia de vós nesse· momento; ten­
des-lhe sido tão agradável na vossa sub­
missão, na vossa paciência, na vossa fide­
Íidade em resistir às tentações, como .se
tivésse is feito uma meditação animada de
fervor o mais sensível, cheia de sentimen-
'
tos os mais afetuosos.
Pergunto-vos: perdemos o nosso tempo

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\�tado das Tentações 63

quando procedemos · de maneira tão assi ­


nalada e tão �ólida ? Deveis, pois, ficar
tão satisfeita após um exercicio em que,
pela mi.sericórdia de Deus, houve rd es su­
portado coraj osamente os ass altos dos ini­
migos da .salvação, como .se a houvésseis
.feito na maior tranquilldade. Tereis tido
nela menos doçura e gosto; porém o fruto,
bem longe de ser com isso dimin uido, sO
terá feito aumentar. Tereis f eito a von­
tade de Deus : Deus reconhecê-lo-á pelas
graças de que vos cumulará. O cumpri­
mento d essa vontade .santa ter-vos-á sido
mais penoso: essa pena não será esque­
cida na recompensa que receberdes. O Es­
pírito Santo ass egura-nos d isto pelo ór­
gão do Apóstolo : Deus não é �nj usto para
esquecer as nossas penas e os noss os tra­
balhos (Heb 6, 10) .

O tempo que empregamos em combater


as tentaç õ� não .é, pois, um tempo per­
dido para a alma fiel, não sõmente por­
que prestamos a Deus a honra e a home­
nagem que Ele exige, e pela maneira como
a exige, como ainda porque nesses comba­
tes adquirimos méritos que se multipli­
cam a cada instante. As perseguições, mul­
t iplicand o os sofrimentos dos Mártires, au­
mentavam-lhes a coroá : as tentações são
uma perseguição que tem o mesmo efeito
quando .somos fiéis.

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64 Tratado das

No Eclesiástico, c�pitulo XXXI, o Espí­


rito Santo declara feliZ o homem que pôde
violar o mandamento de Deus e não o vio­
lou; que pôde fazer o mal e não o tez. A �
sua felicidade corresponde ao mérito que
ele adquiriu pela �ua fidelidade. Baseado Baseada
neste principio, quando obedeceis à lei de de
Deus, e quando c�mpris a sua vontade
de uma maneira que é penosa para a na­
tureza, tendes um duplo mérito: haver­
des obedecido, e o haverdes feito com
esforço, resistindo e combatendo. O sacri­
fício que fazeis do natural que vos
impele e que vos é recompensado
tanto no tempo, por novas graças, como
na eternidade, por um aumento de glória
e de felicidade.
Argumentando com fundamento no mes­
mo principio, que tesouro de méritos não
deve amontoar uma alma que, atacada
por diferentes tentações, as combate ge•
nerosamente para não se separar de Deus!
E' certo que cada saçrificio que fazemos a
Deus tem o seu merecimento e terá a sua
recompensa. A cada vez que a alma fiel
resistiu à tentação, pode-se dizer: Ela pô­
de violar o mandamento, pôde fazer o mal,
e não o fez. Porém que número de sacrifi­
I •
' •

clos não faz uma alma que, frequentemen­


te atacada, solicitada pela paixão, desa­
prova-a constantemente, renuncia ao ob-

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Tratado das Tentações

j eto que ela apresenta, resiste-lhe com


perseverança ! Há poucos momentos . que
não sej am assinalados por uma vitória. Os
esforços reiterados e diversificados do ini­
migo só fazem aumentar o número das vi­
timas que a alma fiel oferece ao seu Deu.s.
Que tesouro de méritos não acharâ ela
nessas espécies de combates singulares
com a paixão? Nem sempre ela percebe
todos os .seus sacrificios ; mas não há ne ­
nhum deles que escape à vigilância do
Senhor ; nenhum que não tenha a sua
recompensa. Serâ preciso mais para con­
solar uma alma n�e estado, e para ani­
má-la à perseverança ? Se o combate é
penoso, a co�oa é brilhante ; é imortal ; é
um momento de pena, e um peso imenso
de glória (2 Cor 4, 1 7 ) . E quereríamos
perdê-lo por uma satisfação de um mo­
mento?
o mérito. não se cinge a esses sacrifícios
tão amiúde reiterados ; essa alma acha no­
vos tesouros dele nas virtudes interiores
que pratica durante esse estado de tenta­
ção. Ela bem sente que não pode resistir
com constância sem o socorro do Céu, sem
se tomar atenta às vistas e aos obj etos da
Fé, sem se entregar aos sentimentos da
Esperança e do Amor divino. O seu cora­
ção está então num exerclcio continuo
de oração e dos atos dessas excelentes

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Tratado das Tentações

virtudes. Se um ato de Amor de Deus tem


um . mérito tão assinalado que pode
reconciliar o pecador com Deus, quantos
'
méritos não adquire uma alm:a que, para
se sustentar nos combates da tentação,
produz tão amiúde esses atos tão meritó­
rios? E', pois, à mingua de reflexão que
se acredita num estado de inação para o ·
Céu e para a virtude quando se está ocu­
pado em co m ba ter as tentações. Ao con­
trário, evidente é, pelo qu e acabamos de
.dizer, que se estâ na maior ação, e num
exercício continuo, para merecer um e pa­
ra praticar a outra. -

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1 N D I O E

Capítulo I. As tentações não são · uma. prova


de abandono da parte -de Deus. Se
uma prova da sua cólera, é de uma cólera di-
. rígida . pela sua -misericórdia · . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
.
C api tulo n. � tentações não são sinal do
mau estado de uma alma em relação a Deus
e à. sua salvação .. ... ...... .................. 10
Capítulo m. E' precis o recorrer a Deus nas
tentações. Ele nos sustenta n o meio do com­
bate ; e nós não reparamos nisso por falta
de atenção .................................. 14:
Capítulo IV. Meio para reconhecer que não
se consentiu ·na tentação .................. ... 17
Capítulo V. Sobre as tentações curtas e pas-
sageiras. .................... .................. 21
Capítulo Vl. Sobre as tentações duradouras
e importunas; e sobre a.s qu e produzem im­
p�são nos sentidos . .......... ...... ........ 24
Capitulo v1I. Sobre as tentações que nos
perturbam no exercício das virtudes. Não se
deve deixar a boa obra a pretexto dos efeitos
ou dos maus motivos que podem entremear-se
nelas. Cumpre renunciar a uns e perseverar
na outra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
Capítulo VIII. Não se deve discutir com a
tentação. Meios de se des.viar dela . . . . . . . . . . . . 32
Capítulo IX. Sobre as tentações frequentes.

E' nos intervalos da paz que nos d e vemos


preparar para a guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . �

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68 tnd1oe

Capitulo X. As vantagens das tentações 46


Capitulo XI. Continuação do capitulo prece­
dente. Uma alma sujeita às tentações, e que
quer operar a sua salvação apega-se mais for­
temente a Deus, e vive em maior vigilância 51 1

Capitulo xn. Felizes efeitos das tentações


nas almas negligentes .. ... ..... . CS6 1
. . . . . . . . . . • .
,

Capitulo XW. O tempo empregado em com·

bater a tentação não é tempo perclldo 60

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