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Amazônia Real
06/02/2017 16:40
FÁTIMA GUEDES
“Puxando Cana”
A dinamicidade da linguagem possibilita infinitas variações de uso e flui da necessidade
cultural e também como instrumento facilitador da comunicação. É comum em
categorias condenadas a exclusões uso de códigos linguísticos inusitados. Provavelmente,
uma estratégia de resguardar ou preservar o que lhes resta de privacidade e ao mesmo
tempo contrastar aos estranhos ruídos articulados nas instâncias do Estado Democrático
de Direito, longes do alcance e compreensão de grupos excluídos. Esperança desgastara
parte da juventude puxando cana:
Fiquei dez meses presa. Saí e, um mês depois, voltei. Daí foram mais 3 anos. Meu ex-
marido me mandou pegar uma droga e a polícia me flagrou. Meus filhos eram pequenos
e minha mãe/avó foi quem cuidou deles. No presídio, aconteceu outro problema. Meu ex-
marido me bateu muito e eu não quis mais ele. Ele já tinha outra pessoa que visitava ele,
mas não me deixava em paz. Sempre tentava me agredir. E lá no presídio não havia
separação; era tudo misturado. Falava pra direção, mas ninguém tomava providência.
Nesse tempo, passei a trabalhar lá na cozinha. Tinha outro rapaz que tava preso por
tentativa de homicídio e também trabalhava na limpeza; o meu ex tinha ciúme de mim
com ele; naquela época, nós só era amigos; não tinha nada entre nós. Nisso, teve uma
briga feia entre eles. E esse rapaz que, bem mais tarde se tornou meu marido, furou meu
ex que foi mandado pra Manaus. Lá, pegou uma infecção generalizada e morreu. Depois
disso, eu e o rapaz ficamos juntos. Com esse, tenho dois filhos. Após os três anos de cana,
saí pra ter meu filho, esse que hoje tem cinco anos. Fui presa de novo, por mais três anos,
numa escuta telefônica. Nesse período, o meu filho mais velho, da primeira relação, tinha
16 anos e se envolveu com droga em Manaus. Aos 17, foi morto no meio de um tiroteio.
Eu sofri muito. Não pude ver. Sei que sou culpada porque eu me envolvi nesse mundo
errado e ele se envolveu também. Depois, saí do presídio e engravidei, mas tive que
retornar, pois eu tava numa prisão domiciliar que já tinha vencido. Foi uma gravidez
muito complicada. Nesses 5 anos, eu estudei lá mesmo, concluí o ensino médio e passei
no ENEM pra Serviço Social, em 2010. Na época, a direção do presídio era muito ruim
com os presos e não tinha quem fizesse minha matrícula e também eu ia precisar de
acompanhamento policial para ir e vir da faculdade. Aí, perdi. Hoje, eu já teria
concluído. Engravidei novamente desse meu bebê, que agora está com 03 anos, peguei 6
meses de prisão domiciliar.Precisava amamentar e não tem estrutura no presídio. Dona
Joelma, Assistente Social que atendia os presos, me ajudou muito e eu consegui
prorrogar a domiciliar por um ano. Venceu e eu tive que voltar. Na domiciliar, a direção
do presídio monitora. Só posso sair de casa pra levar o bebê no médico e o juiz cobra do
posto uma declaração. Vencida o período, voltei e fiquei mais 3 meses. Confesso:
ninguém se acostuma ali, mesmo ficando muito tempo presa. Nesse retorno, sofri muito…
Pensava na minha vida perdida… Não soube o que foi uma infância feliz. Nem sei se tive
infância… Pensava tudo isso, mas calada, só na minha, puxando minha cana, de boa,
como dizem… Sem problemas, sem reclamar de nada. Queria sair dali por causa do meu
bebê que tem problema de convulsão. É desesperador. Ninguém imagina o que eu sofria
calada. Até que um dia, o Dr. Fábio Olinto foi lá, no presídio, eu mostrei o laudo médico
e ele entendeu minha situação. Esse juiz é muito bom de coração e me deu mais uma
chance pra cuidar do bebê, mas com todas as regras, de novo. As pessoas diziam que eu
não ia conseguir porque eu já era complicada com a justiça, mas ele me deu essa chance
da domiciliar.
Rotina no Cárcere
A sociedade considerada ‘livre’ ignora ser refém do ‘legalismo democracida’ e,
consequentemente, prisioneira da ilusão do ‘ir e vir’. O fator diferencial entre
aprisionados ‘livres’ e presidiários são as regras e os métodos de controle. Sobre a
questão, com certa reserva, Esperança traça um rascunho:
Não é fácil a vida de presidiária… Às vezes, nós somos assediadas… Antes era pior, era
muito difícil… Preso é sempre o preso… A relação era complicada… Agora melhorou
bem. O Sêo Bosco conversa, tenta ajudar os presos da maneira como ele pode. Antes
dele, era muito difícil; ruim mesmo. A gente comia muita sopa de pé de galinha e
ossada… Era só. Agora, já tem até uma comida razoável – feijão, arroz, carne, frango…
Já tô mais de ano fora de lá. A minha domiciliar venceu, o advogado está tentando
prorrogar por mais um ano até conseguir meu semiaberto. Tá nas mãos do Juiz, eu voltar
ou não pro presídio. Nem gosto de pensar nisso…
Lá, dentro da cadeia, eu fui abusada sexualmente pelo meu ex-marido. Ele foi falar
comigo, na sela e, mesmo ele tendo outra pessoa, ele me jogou no chão e me violentou.
Aí, eu senti mais nojo dele e não quis mais saber dele definitivamente. Quando a gente
vai presa e entra pra parte das celas, os caras lá dizem assim: ‘Quem manda aqui são
vocês’. Aí, os presos que entram têm de obedecer as lideranças… Ninguém diz nada.
Mercado Inóspito
Quando o diálogo se arrisca decodificar o mercado da droga, Esperança se retrai e
desconversa… Respeito. É compreensível… Nos desabafos escapados, há nítidos
temores… Entendo como sequelas que comprometem a própria segurança:
A gente entra pra esse mercado por necessidade. Quando a gente não encontra trabalho,
quando não tem de onde tirar para matar a fome ou por causa de doença a gente faz de
tudo… Aí, se os lascados forem pedir ajuda dos financiadores da droga, a única ajuda
que eles dão é com droga; ajuda entre aspas… A ajuda que eles falam é só pra eles. Na
verdade, as ‘mulas’ ou os ‘aviões’, como chamam, são chamados de traficantes… Eles
não são traficantes. São trabalhadores do tráfico, porque o lucro é todo pros
financiadores. A única coisa que se ganha é cadeia. Os financiadores são invisíveis. O
contato com eles é só por telefone. Quando algum vendedor precisa falar com eles,
aquele número não existe mais.
Eu trabalhava vendendo pasta. Quando eu vendia, o quilo custava R$ 7.000,00 (sete mil
reais). A gente tinha que devolver esse valor inteiro. O que a gente ganhava era muito
pouco. E, se não pagar, a gente é cobrada, ameaçada… Aí tem que pagar. Só ficava pra
comer mesmo e mal pra vestir. É só.
Rompendo Grades
Fotos ilustrativas: Floriano Lins
Ecos de Esperança
As inquietações de Kinho com os soluços reprimidos da Mãe nos adverte que é
hora de poupar a ambos; dar uma pausa… Deixar que as circunstâncias proporcionem
momentos menos dolorosos… A ‘invasão’ ao arquivo privativo de Esperança é
consequência da conquista de confiança e do pleno entendimento sobre as intenções que
me levaram ao seu encontro. Deste amanho solidário, brotaram laços, trocas,
compromissos, sonhos e propósitos sinceros… São ecos de Esperança:
Nunca mais quero envolvimento com droga. Digo pra mim, pra jovens e mulheres que
pensam isso como futuro. Dinheiro de droga é amaldiçoado: vem fácil e vai fácil. Quando
a gente vai pra cadeia tudo acaba. E, às vezes, quando a gente cai na real, já é muito
tarde. É uma vida que se foi; uma família que se destrói. Eu não aconselho ninguém se
envolver com drogas, aliás, em nenhum mundo ilícito. Eu, particularmente digo: meu
mundo acabou. Se eu voltasse no tempo e com todas essas experiências, jamais teria
entrado nesse caminho… Nunca. Nunca. Eu já andei muito atrás de trabalho, até agora,
nada. Mas não perco a esperança; eu não desisto de procurar que alguém me dê essa
oportunidade. Dizem que as pessoas não mudam, que não tem mais chances… Mudam
sim; as pessoas mudam. Basta uma chance… Serem ajudadas… Só precisamos de uma
oportunidade. Quero poder estudar, fazer meu curso. Trabalhar dignamente… Acredito
que ainda tenha pessoas dispostas a acreditar em nós e estender a mão.
Ultrapassava o meio-dia… O que vi naquele barraco: condições subumanas de
sobrevivência e um Kinho, raquítico, oferendo consolo à Mãe; e ouvi: relatos pontuados
de violências… Reclamar por algo pessoal é injusto e mesquinho. Que as ‘reclamações’
se façam em coro, no mínimo, com força sensibilizadora e, mais ainda, com poder de
intervir sobre as estruturas do Estado Democrático de Direito produtoras de desigualdades
e exclusões.
Notas:
Kinho – Nome fictício para o filho mais novo de Esperança
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial
CETAM – Centro de Educação Tecnológica do Amazonas
IFAM – Instituto Federal do Amazonas
SEMED – Secretaria Municipal de Educação e Desporto
Sêo Bosco – Diretor da Unidade Prisional de Parintins/AM
Dr. Fábio Olinto – Juiz de Direito da Comarca de Parintins/AM
Chiqueiro Prisional – Expressão proferida pelo Promotor de Justiça, Dr. André Seffair,
referindo-se às condições subumanas do Presídio de Parintins/AM.
Legalismo Democracida – Pejorativo ao modelo produtor de desigualdades, exclusões,
barbáries…
Puxando cana – Relativo a grades. O termo vem do latino /crates/.Portanto, “grade feita
de canas entrelaçadas”. Origem da gíria ‘estar em cana’; ‘puxar cana’.