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E QUANDO AS MULHERES ESTÃO NO PODER?

Luara Pinto Minuzzi1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar as protagonistas femininas de dois romances
angolanos: primeiro, Lueji, de Lueji: o nascimento de um império, de Pepetela; depois, Ginga,
personagem do livro A Rainha Ginga e de como os africanos inventaram o mundo, de José Eduardo
Agualusa. A unir as duas mulheres, além de serem os seus nomes a darem títulos às duas obras, está
o fato de elas assumirem o poder em uma sociedade bastante machista, na qual as figuras de
liderança eram, em sua esmagadora maioria, homens. A primeira, Lueji, de acordo com lendas e
mitos, torna-se rainha do Império Lunda no século XVII. Tal império compreendia o que hoje é o
nordeste de Angola e uma parte do Congo. Já a Rainha Ginga, figura histórica, era a monarca dos
reinos do Ndongo e da Matamba, também no século XVII. A partir das teorias do Imaginário e,
principalmente, do que dissertam Gilbert Durand, Gaston Bachelard e Mircea Eliade acerca dos
símbolos, o foco do artigo recairá sobre a construção simbólica das duas personagens. O fato de elas
deterem o poder as diferencia das outras mulheres das tramas? As aproxima dos homens, já que são
eles os que comumente ocupam posições de comando? Ou suas lideranças são construídas nas
narrativas de uma forma diferente?

Palavras-chave: Literatura Angolana, Rainha Ginga, Lueji, História de Angola.

Lueji foi rainha do Império Lunda no século XVII e Ginga, monarca dos reinos do Ndongo e
da Matamba mais ou menos nesse mesmo período histórico. Todos esses três povos localizavam-se
no território que, após a violenta partilha da África na Conferência de Berlim, transformou-se no
que hoje é Angola. Ademais, tanto os lundas, quanto os matambas e os ndongos fazem parte do
grupo etnolinguístico banto - e, como ressalta Raul Altuna (1985), os banto, apesar de seguirem o
sistema matrilinear, no qual a descendência é passada através das mulheres e da família da mãe,
possuem uma cultura extremamente patriarcal, centrada na figura do homem, que é tomado como
forte e como central na vida da comunidade. Quem detém o poder são os homens, seja esse poder
limitado ao espaço familiar, seja um poder mais abrangente, como o de um chefe de estado. Dessa
forma, é muito interessante notar como, no mesmo intervalo de cem anos, duas mulheres assumiram
o poder em distintos grupos dessa cultura eminentemente masculina - e não é à toa que essas duas
figuras históricas transformaram-se em material literário e serviram como inspiração a grandes
escritores angolanos como Pepetela e José Eduardo Agualusa para escreverem seus romances Lueji:
o nascimento de um império e A Rainha Ginga e de como os africanos inventaram o mundo,
respectivamente.

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Doutoranda em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil.

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Nesse sentido, é importante perceber como essas figuras foram construídas literariamente: se
apenas os homens chegavam ao poder, elas também acabam por se aproximar do mundo masculino
ou acabam por se opor a ele? Como as suas lideranças são representadas e como os outros
personagens da trama enxergam-nas? Elas possuem voz nessas narrativas ou são alguém de quem se
fala, mas que nem sempre fala?
Apesar de as duas personagens assumirem o poder em um território e em um tempo
próximas, há diversos aspectos que diferenciam suas construções nos romances de Pepetela e de
Agualusa - e uma, que logo salta à vista, é o grau de protagonismo das soberanas em cada uma das
narrativas. A Ginga de Agualusa dá título ao romance e esse inicia com o momento no qual o
narrador conhece a soberana. Isso pode levar o leitor a concluir que a africana seria o foco da
história e sua personalidade, o centro da discussão. Apesar disso, a personagem fica um pouco
esquecida em alguns momentos da narrativa, visto que a história acompanha as peripécias de seu
narrador, um padre a serviço da coroa portuguesa. Esse religioso, Francisco José da Santa Cruz é,
na verdade, um brasileiro nascido em Olinda, filho de uma índia e de um mulato - por sua vez, filho
de um comerciante branco com uma negra.
Por outro lado, em Lueji, o narrador heterodiegético focaliza justamente a soberana, desde o
momento do falecimento de seu pai e do seu coroamento. O leitor entra no mundo da mulher,
conhece seus medos, suas angústias, sonhos e alegrias. A figura histórica transforma-se, pela mão
de Pepetela, em uma figura humana, palpável, que ri e chora, teme e enfrenta. Sobre Ginga, já não
temos tantos detalhes e informações.
O que sabemos sobre a rainha Ginga é que, apesar de não ocupar a maior parte das páginas
do romance de Agualusa, ela é bastante complexa. Ela é uma mulher negra, logo duplamente
estigmatizada: por ser mulher, gênero considerado inferior ao masculino em muitos aspectos, tanto
na cultura europeia quanto na africana; por sua condição de negra, raça igualmente colocada como
abaixo da branca. Isso explica um personagem português ao narrador, muito surpreso com a
inteligência da soberana: "É coisa sobrenatural, disse-me, a fluência com que ela fala. No juízo dele,
a inteligência, quando manifesta numa mulher, e para mais numa mulher de cor preta, de tão
inaudita, deveria ser considerada inspiração do maligno" (AGUALUSA, 2015, p. 33).
Sendo assim, a necessidade de autoafirmação da rainha Ginga, quando assume o poder, é
igualmente duplicada. Ela precisa ser duplamente ardilosa, como quando, supostamente, mata o
irmão e o sobrinho, a fim de assumir o trono, mas ninguém consegue provar a suspeita. Ela precisa
ser duplamente enfurecida, como quando é recebida pelo governador português em Luanda, que lhe

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oferece uma almofada para sentar. Esse gesto é seguido pelo da rainha forçando uma escrava a se
ajoelhar e sentando em cima da mulher, como se ela fosse um banco. Ela precisa ser duplamente
homem, trajando-se como tal quando vai para a guerra, coagindo todos os seus súditos a lhe
chamarem de "rei", e não de "rainha", e mantendo uma espécie de harém, homens escolhidos por
ela para serem seus amantes e obrigados a passarem seus dias vestidos de mulher. Ela precisa ser
duplamente poderosa e, por isso, pede para ser batizada na Igreja Católica, ganhando o nome de
Ana de Souza, a fim de se tornar capaz de transitar pelos dois mundos e aproveitar o melhor de cada
um para conquistar mais povos, pessoas, terras.
A figura feminina, como explica o antropólogo francês Gilbert Durand (2002), pode ser
vista como uma das representantes da temporalidade maléfica - e tal característica pode auxiliar na
reflexão acerca da Ginga de Agualusa. Para o teórico, há duas formas de o homem se relacionar
com o tempo: uma, combativa, no Regime Diurno da Imagem; outra, pacífica, no Regime Noturno.
Assim, no Regime Diurno, o homem procura, com todas as suas forças e armas disponíveis, vencer
o tempo e a sua passagem e, portanto, também precisa lutar contra a mulher com seus ciclos
menstruais a ligá-la irremediavelmente aos dias que correm. Ginga procura afastar-se desse perigo
ao esconder sua identidade feminina e ao procurar sempre se relacionar com o sexo oposto. Fala-se
constantemente do seu porte altivo e quase amedrontador. Sobre ela, afirma-se, por exemplo: "[...]
aquela capa parecia fazer refulgir seu rosto, como se um incêndio a consumisse" (AGUALUSA,
2015, p. 12); "Ginga discutia em voz alta com o irmão" (AGUALUSA, 2015, p. 15); "Parecia que
haviam acendido uma fogueira dentro do seu parco peito. Era quase bela, assim, por uma justa ira"
(AGUALUSA, 2015, p. 77); "A rainha não se tinha por vassala de ninguém" (AGUALUSA, 2015,
p. 79). Todos esses trechos acabam por criar um vívido quadro de como é a rainha Ginga de
Agualusa: áspera, dura, inflamada, confiante, altiva, guerreira - todas características, na opinião do
narrador e de seus contemporâneos, não ligadas à condição feminina.
E Ginga não se pode dar ao luxo de uma existência pacífica justamente porque ela deseja
vencer a morte e, nesse Regime Diurno, combativo e polêmico, a mulher é a representação
justamente da temporalidade que leva ao fenecimento - e, por esse motivo, ela precisa identificar-se
com o mundo dito masculino. E, assim, ela guerreia: para vencer o tempo e entrar para a história.
São inúmeros os momentos nos quais a personagem encontra-se em meio a uma batalha ou se
preparando para ela, como quando o seu povo combate os portugueses: "Encontrei-a vestida à
maneira de um homem, como rei que se arvorava ser, tão macho quanto os demais, ou mesmo mais,
e armada de arco e flechas" (AGUALUSA, 2015, p. 60). Essa monarca, portanto, é guiada pelo

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espírito guerreiro e seu casamento com Casa Gangola, chefe dos jagas, povo famoso pela sua
crueldade e força no combate, não poderia ser diferente. Se, para ela, o casamento foi uma
importante aliança para obter um poderoso exército para combater seus muitos inimigos, o interesse
do jaga na aliança é mais complicada de ser desvendada e o narrador reflete: "Creio que o velho
jaga se deixou encantar por aquela mulher que se batia de armas na mão, tão viril quanto o homem
mais macho. Uma mulher que nunca se vergava; que não tinha amo nem Deus. Uma mulher que
conhecia as artes da guerra, as suas armadilhas e danações [...]" (AGUALUSA, 2015, p. 84). Ao
fim da narrativa, o leitor é informado de que Ginga acaba por abandonar seu esposo para casar com
um jaga mais poderoso e mais temido do que o primeiro. Sentimentos bem diferentes daqueles
sentidos por Lueji e por seu amado quando se casam, como veremos.
Lueji, assim como Ginga, também sente a necessidade de se afirmar e de fazer e acertar
mais por sua condição de mulher - e de mulher jovem. Após uma reunião com um membro
importante de sua família, a personagem questiona-se: "Por que hão-de sempre pensar eu sou uma
criança?" (PEPETELA, 2015, p. 66). Além disso, logo após assumir o poder, há a questão da seca:
apesar de já haver passado o tempo do início das chuvas, o clima segue aberto e com sol, sem
nuvens. Como, na tradição do povo Lunda, o responsável pela chegada das chuvas era justamente o
monarca, todos apontam Lueji como a responsável pelo problema: "[...] a chuva não aceita ser
chamada por uma mulher" (PEPETELA, 2015, p. 57 e 58); "[...] agora punham em causa a decisão
do Conselho de ter escolhido uma mulher, contra todas as tradições" (PEPETELA, 2015, p. 58). Por
isso, a jovem reflete: "Mas Lueji sabia, começava a reinar num momento difícil. Logo no primeiro
mês o povo duvidava das suas capacidades. Tinha de jogar forte. Arriscar e ganhar" (PEPETELA,
2015, p. 59). Ou: "E, o poder está concebido para os homens. Terei que ser mais esperta que eles"
(PEPETELA, 2015, p. 37). Nem sua descendente Lu, vivendo em uma Angola do século XXI,
consegue escapar à estrutura patriarcal e machista da sociedade e conclui: "Era uma mulher e o
mundo era feito para homens" (PEPETELA, 2015, p. 147).
Ao mesmo tempo, seus aliados procuram reforçar o seu poder aproximando-a com o mundo
masculino - assim como Ginga, que, para governar, sente a necessidade de se parecer com um
homem. Um conselheiro seu, por exemplo, enumerando as artes e ciências que a rainha precisaria
dominar para ser uma boa soberana, ele cita a caça e pesca e afirma: "De caça e pesca tu sabes,
sempre ouvi dizer eras a única rapariga que ousava acompanhar os rapazes" (PEPETELA, 2015, p.
48). Se as suas características não se aproximam daquelas tidas como próprias do mundo masculino,
Lueji ainda poderia escolher um marido, "que a ajudará a reinar" (PEPETELA, 2015, p. 25), visto

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que o caráter provisório e precário do seu mandato, justamente pelo fato de ela ser uma mulher, é
constantemente retomado e citado pelos demais. Até a própria Lueji, apesar de suas conquistas
como soberana recém entronizada, assume o discurso masculino quando surgem dúvidas e
inseguranças: "Queria estar sozinha, ali, no lago, colher umas rosas de porcelana, e pensar no
homem que ia sair da Lua e lhe dar a calma e confiança necessárias para acordar no dia seguinte"
(PEPETELA, 2015, p. 138). Ela mesma, portanto, assume a ideia de que apenas um homem poderia
salvá-la - ela não poderia fazer isso sozinha. Essa visão de um homem a sair da lua é uma
premonição do que irá ocorrer: ela conhecerá Ilunga, caçador de uma outra etnia, por quem se
apaixonará e casará.
Lueji ainda reflete que é seu irmão Tchinguri, e não ela, quem deveria assumir o poder: "Ele
devia ser o rei, tinha forças para isso, não exércitos mas sim forças dentro dele. E ela devia estar ao
seu lado, apoiando-o a cumprir o seu destino. Assim devia ser" (PEPETELA, 2015, p. 113). O fato
de a personagem utilizar a palavra força para se referir ao irmão é interessante - na verdade, o maior
atributo de Tchinguri é a sua força, que, por vezes, é bruta e completamente irracional, o que fez
com que o pai dos dois contrariasse a tradição passando o comando para uma mulher. Lueji, por
outro lado, pode não ter força física, mas conquista o povo ao privilegiar a paz à guerra. Ela
também perde seu trunfo ao contar ao irmão que nunca iria atacá-lo - mesmo que a dúvida sobre
essa questão pudesse ser muito favorável a ela, ela prefere seguir seu coração. (PEPETELA, 2015,
p. 36). Assim, a narrativa para reforçar um estereótipo de gênero: homens são fortes e mulheres são
frágeis e delicadas.
Outro fator, ligado à feminilidade, que a condena é a menstruação: enquanto a soberana
estivesse menstruada, ela estava proibida de usar o lucano, a pulseira símbolo do seu poder, assim
como de sair de seus aposentos e de receber os súditos. Ela ainda perderia todos os seus poderes
durante esses dias. E Durand (2002) comenta justamente sobre a ligação da menstruação com a
temporalidade maléfica. De acordo com o teórico, como mostra o folclore universal, a lua está
intimamente relacionada ao ciclo menstrual: para os homens de sociedades tradicionais, haveria
uma relação entre os ciclos menstruais da mulher e os ciclos da lua. Somado a isso, na França,
chama-se de “o momento da lua” ao ciclo menstrual e, entre os maori, a menstruação é considerada
uma “doença lunar” (DURAND, 2002, p. 103). Portanto, é através do ciclo menstrual, característica
distintiva da feminilidade, que se aproximam a mulher da lua e, consequentemente, a mulher da
temporalidade. Por essa ligação, Ginga finge-se de homem - pois, como mulher, os outros poderiam
considerá-la como incapaz. Igualmente por essa ligação, Lueji perde seu poder ciclicamente.

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Porém, ao contrário de Ginga, Lueji preza pela paz em seu reino e procura evitar a guerra ao
máximo. Seu temperamento já a levava a abominar o conflito e isso acaba por se acentuar quando
ela trava uma conversa com um humilde pescador, seu súdito. O homem, apesar do receio de estar
falando com sua soberana, confidencia ser a guerra apenas positiva para os ricos, que podem
adquirir fama, poder, escravos e riquezas caso saiam vitoriosos. As pessoas simples, grande
maioria, portanto, não beneficiam em nada com esses conflitos - muito pelo contrário, tempos de
guerra impossibilitam o trabalho, como a pesca e a agricultura; obrigam a fugas para outros
territórios e o recomeço de tudo; levam embora membros queridos da família chamados a combater
pelo seu povo. Isso comove Lueji, que promete utilizar a guerra apenas como último recurso - e
realmente cumpre a promessa, quando, por exemplo, consegue resolver os problemas com seu
furioso irmão Tchinguri e, consequentemente, evitar a iminente guerra pelo poder da Lunda através
do diálogo.
E seu conselho para o filho prestes a assumir o trono é o seguinte: "Muitos vão querer te
levar a guerras de conquista para saquear territórios e vender escravos aos árabes. Tem cuidado. O
território deve ser tomado com carinho, sem destruições, para poder render" (PEPETELA, 2015, p.
454). A diferença para Ginga, constantemente envolvida em conflitos e responsável pela morte até
mesmo de crianças que ameaçavam o seu poder, é gritante. Logo, ao contrário de Ginga, a
personagem Lueji de Pepetela situa-se no pacífico Regime Noturno da Imagem, pois, nesse
domínio, o homem faz as pazes com a temporalidade e acaba por enxergar os benefícios trazidos
pelo passar do tempo: com a passagem dos dias e dos anos, não só envelhecemos e nos
aproximamos da morte; caso o tempo fosse imóvel, nós igualmente seríamos incapazes de evoluir,
de crescer. Também no Regime Noturno, há a descoberta do tempo circular: como na natureza, os
seres humanos podem nascer, crescer, morrer e nascer de novo, visto que a morte passa a não ser
mais definitiva. E é isso que Lueji consegue, a vitória sobre o fenecimento, quando decide impor
uma nova tradição ao seu povo, inspirada nas crenças trazidas por seu marido: seu filho Yanvu,
sucessor do trono, não seria apenas descendente dos deuses criadores do mundo, mas sua
encarnação; além disso, o primogênito de Yanvu seria igualmente Yanvu e, como o pai, um deus a
caminhar pela terra e assim sucessivamente. Dessa forma, a rainha consegue obter a imortalidade
através da imortalidade da sua linhagem e da entronização de todos os seus descendentes. Sua
morte, portanto, não é definitiva e a temporalidade passa a ser circular.
Ademais, no Regime Noturno da Imagem, a figura da mulher, antes temida por carregar em
si o tempo que não pode ser detido, passa a ser um símbolo de extrema positividade. Aqui, a mulher

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é a mãe geradora de vida, a deusa da fertilidade, a fonte de calma e de segurança - como é Lueji
que, apesar de sua infertilidade, toma o filho da segunda esposa de seu marido como seu próprio
filho e transforma-o em seu legítimo sucessor. Ela engana até mesmo a natureza, que queria lhe
impedir a possibilidade de uma continuidade indefinida através da descendência - assim como seus
súditos, que nunca descobrem não ter sido ela a verdadeira geradora dessa vida, visto que, assim
que a outra ficou grávida, as duas esconderam-se em um local afastado da aldeia até o parto.
Outro aspecto a ser ressaltado na construção literária dessas duas figuras históricas são suas
caracterizações físicas. Ginga, por um lado, apresenta-se como não sendo uma figura agradável aos
olhos do narrador: "Era uma mulher pequena, escorrida de carnes e, no geral, sem muita existência,
não fosse pelo aparato com que trajava e pela larga corte de mucamas e de homens de armas a
abraçá-la" (AGUALUSA, 2016, p. 9). Descrições semelhantes sucedem-se ao longo do romance,
que sublinha a pequenez da soberana que ela tenta compensar com os trajes mais suntuosos e com a
sua postura altiva e quase feroz - assim como ela tenta compensar uma feminilidade, que, ao seu
ver, não se adequaria ao papel de um líder. Sua constituição pequena e frágil em oposição à sua
vontade e força de espírito imensas é ressaltada em outro trecho que já foi citado, mas que é
importante de ser retomado: "Achei-a mais magra, mas não desfalecida, muito pelo contrário.
Parecia que haviam acendido uma fogueira dentro do seu parco peito. Era quase bela, assim,
iluminada por uma justa ira" (AGUALUSA, 2016, p. 77). Em outro momento, após alguns anos
passados no Brasil sem ver Ginga, o padre reflete: "Ela parecia ter remoçado, não de corpo, pois
estava igual, talvez um pouco mais seca, mas de espírito. Retorquia às dúvidas dos mafulos com
tiradas vivas, precisas, deixando todos assombrados" (AGUALUSA, 2016, p. 201). Portanto, apesar
de suas parcas formas - que, porém, é importante ressaltar, são secas, pontiagudas, repelentes, e não
redondas e pacíficas -, seu espírito combativo é capaz de se impor.
A beleza e juventude de Lueji, por outro lado, são ressaltadas a todo momento. Fala-se, por
exemplo, em relação a seus "seios jovens e rijos" (PEPETELA, 2015, p. 23) e à sua "beleza
perturbada" (PEPETELA, 2015, p. 237). Sua juventude igualmente é ressaltada ao longo de toda a
narrativa - em contraposição à rainha Ginga, que já é uma mulher madura quando assume o poder.
Esse fator é mais um para tirar lhe tirar credibilidade: o narrador, assim como os outros
personagens, todos homens, referem-se a Lueji constantemente como criança, menina, miúda,
irmãzinha - seja para se surpreenderem pelo seu discernimento apesar da pouca idade, seja para
duvidar da sua capacidade. Em um momento, por exemplo, o narrador comenta que a rainha "[...]
parecia ainda mais jovem com a inquietação de não conseguir convencer Kakele" (PEPETELA,

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2015, p. 237). Portanto, juventude, insegurança e inexperiência estão relacionadas na narrativa.
Outro personagem sentencia: "Precisas de ver a rainha. Muito nova e bonita" (PEPETELA, 2015, p.
248). Muitos dos lundas poderosos que a apoiam estão apaixonados por ela e por sua beleza -
portanto, o leitor pode questionar-se se esse apoio deve-se ao reconhecimento desses homens das
capacidades da mulher como rainha ou simplesmente da esperança de Lueji escolhê-los para
marido, por exemplo.
Por fim, deve-se tratar da questão da transformação dessas figuras em mitos. Primeiro, sobre
a narrativa de Agualusa, apesar da identidade complexa da rainha Ginga - africana, mas convertida;
mulher, mas soberana, mas guerreira, mas política, mas homem - não há uma humanização da
figura histórica. O leitor conhece Ginga, sua força e seus feitos; faltam, porém, as inquietações, o
medo, os amores, as angústias, as fraquezas, os sonhos. A rainha é mais alguém de quem o padre
fala e de quem comenta as proezas, do que uma personagem que vive, ri, chora.
Em determinado trecho, porém, o narrador cita uma frase do livro Tratado em louvor das
mulheres, escrito pelo médico e naturalista português Cristóvão da Costa: "Quanto mais matéria
têm as formas menos têm de perfeição, e quanto mais apartadas da matéria, tanto mais perfeitas
são" (p. 89). E a perfeição, para a Ginga como a conhecemos através de Agualusa e de seu romance,
seria o poder e a força totais. Também em relação aos jagas, grupo de guerreiros africanos com o
qual a rainha alia-se, Francisco cita os inúmeros rumores acerca de crueldades supostamente
cometidas por esses homens - rumores que, apesar de o padre não ter sido capaz de confirmar a
partir da convivência, os próprios jagas não desmentiam, pois o mito em torno deles aumentava o
medo dos inimigos e, consequentemente, a força dos jagas ao combatê-los. Ao final do romance, o
padre ainda sentencia: "Ali, naquele breve instante, enquanto o sol recuperava o fôlego, [a rainha
Ginga] parecia imune a tudo, inclusive ao próprio tempo" (p. 219) - reforçando o caráter mítico da
personagem, que parecia ser imortal como os deuses. Assim, a falta de aprofundamento da
personalidade da soberana contribui para a continuação da lenda ao redor da sua figura. O
conhecimento, por outro lado, levaria à imperfeição e à desconstrução do mito - o que a vaidosa e
orgulhosa africana com certeza não teria desejado.
Já a rainha do romance Lueji é construída de uma forma completamente distinta: se Ginga,
em alguns trechos, acaba tornando-se periférica na trama que acompanha seu narrador em viagens
ao redor do mundo, o livro de Pepetela centra-se na soberana e apresenta não só seu aspecto físico e
aquela persona que ela dá a conhecer para seus súditos, inimigos e pessoas próximas: o narrador
onisciente revela seus segredos mais profundos, seus medos e inseguranças, seus planos e

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estratégias. Se Lueji decide que seu filho não iria comer na frente dos outros a fim de preservar uma
aura de mistério que ajudaria a manter o poder em sua linhagem, a narrativa realiza justamente o
contrário: o poder da mulher não provém do distante, do desconhecido, do misterioso e quase
divino, mas justamente da sua humildade, humanidade e da proximidade da soberana em relação
aos seus súditos, mesmo os mais simples e os mais pobres. Sua força está relacionada com a força
do amor, da afetividade e com a potência do pequeno: como Joseph Campbell (2007) explica acerca
da jornada do herói, ela é a irmã mais nova e mais frágil no início da narrativa, a menina insegura.
Contudo, é justamente a esse ser frágil que o destino reserva os maiores feitos e, assim, a
personagem cresce ao longo da difícil jornada de liderar um reino quando não se foi preparado para
isso e quando a maioria das pessoas opõem-se à sua liderança.
Além disso, Lu, bailarina e descendente de Lueji a viver em Luanda no final do século XX,
ao inventar um bailado contando a história dessa figura, reflete sobre o mito, sua construção,
reconstrução e destruição. A dançarina explica a um colega o que fez com a figura de Lueji e com
as narrativas contadas a seu respeito: "Até deformei [o mito]. Mas não a esse ponto. Deixa de ser
mito" (PEPETELA, 2015, p. 455). Depois, ao final do romance, Mulaji, simples pescador súdito de
Lueji, assume a narração e sentencia acerca da rainha: "Por que culpá-la da sua humanidade?"
(PEPETELA, 2015, p. 458). Com essa frase, o homem elucubra sobre algumas decisões tomadas
por Lueji com a melhor das intenções, mas que acabaram se apresentando como prejudiciais aos
Lundas no futuro. Portanto, se Lu manteve o mito, Pepetela, com sua narrativa, destrói-lhe em favor
da humanidade. Assim, é possível afirmar que a Ginga de Agualusa é muito mais mitificada, porque
misteriosa e distante, do que Lueji de Pepetela, que ganha em complexidade e humanidade.

Referências

AGUALUSA, José Eduardo. A rainha Ginga e de como os africanos inventaram o mundo. Rio de
Janeiro: Foz, 2015.

ALTUNA, Raul Ruiz de Asúa. Cultura tradicional banto. Luanda: Secretariado Arquidiocesano de
Pastoral, 1985.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

PEPETELA. Lueji: o nascimento de um império. São Paulo: Leya, 2015.

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And when women have the power?
Astract: This paper aims to analyze the female protagonists of two Angolan novels: first, Lueji,
from Lueji: o nascimento de um império, by Pepetela; and, Ginga, character of the book Rainha
Ginga e de como os africanos inventaram o mundo, by Jose Eduardo Agualusa. Uniting the two
women, besides being their names to give titles to the two works, is the fact that they assume the
power in a very male chauvinist society, in which the figures of leadership were, in overwhelming
majority, men. The first, Lueji, according to legends and myths, becomes queen of the Lunda
Empire in the seventeenth century. This empire included what is now the northeast of Angola and a
part of the Congo. The Queen Ginga, a historical figure, was the monarch of the kingdoms of
Ndongo and Matamba, also in the seventeenth century. Based on the theories of the Imaginary, and
especially on what Gilbert Durand, Gaston Bachelard and Mircea Eliade write about the symbols,
the focus of the article will be on the symbolic construction of the two characters. The fact that they
have the power make them different from the other women in the plot? Does it bring them closer to
men, since they are the ones who usually hold positions of command? Or are their leaderships built
on these two narratives in a different way?
Keywords: Angolan Literature, Queen Ginga, Lueji, History of Angola.

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