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A nosso editor Reed Malcolm por seu apoio entusiástico.

A Jim Clark, Scott Norton e a equipe da editora Universidade


da Califórnia.
E por último, a você, leitor. Que possa apreciar os
ensinamentos deste livro, encarná-los e mantê-los vivos.

Mel Weitsman
Michael Wenger

8 de Abril de 1999
Aniversário de Buda

9
10
INTRODUÇÃO

Mel Weitsman

No verão de 1970 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI deu estas


palestras sobre o 參同会 SANDŌKAI de 石頭 希遷 SEKITŌ
KISEN. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI havia chegado à América em
1959, deixando RINSO-IN, seu templo em 焼津 YAIZU (Japão),
para servir como sacerdote da congregação americano-japonesa
no templo SOKOJI situado no Numero 1881 da Bush Street, em
São Francisco. Durante aqueles anos um grande
numero de pessoas afluíam para praticar com ele e nasceu o
Centro Zen de São Francisco. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI estava
rodeado por tantos estudantes americanos entusiasmados com o
禅 ZEN que em 1969 ele e seus estudantes tiveram que se mudar
para um edifício maior situado no numero 300 da Page Street e
fundaram lá o templo da Mente de Principiante. Dois anos
antes o Centro Zen havia adquirido a colônia de férias de
Tassajara com suas fontes termais, que se encontrava ao final de
uma poeirenta estrada de 22 quilômetros que serpenteava pelas
escarpadas montanhas do Parque Nacional de Los Padres perto
da costa central da Califórnia. Ali ele e seus estudantes criaram
禅心 時 ZENSHIN-JI (Mente Zen/ Templo do Coração), o primeiro
monastério 禅 ZEN budista da América. Começamos do
zero sob a orientação de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI.
Todos os anos no Zen Mountain Center de Tassajara há
duas temporadas de retiro nas quais se realiza uma prática
intensiva: de outubro a dezembro e de janeiro a março. Estas
duas temporadas de prática incluem diariamente muitas horas de
座 禅 ZAZEN (meditar sentado com as pernas cruzadas),
11
preleções, estudo e trabalho físico. Durante este período de retiro
os estudantes residem no centro durante todo o tempo. Nos
meses de primavera e verão (de maio a agosto) Tassajara está
aberto aos visitantes que desejam desfrutar das águas termais e
do tranqüilo ambiente que lá se respira. Desta forma, nos meses
dos visitantes se arrecadam os fundos necessários para
sustentar Tassajara e os estudantes. Durante a temporada estival
os estudantes se sentam em 座禅 ZAZEN pela manhã e à tarde e
o resto do dia se dedicam à prática do trabalho.
Durante o verão de 1970, quando ocorreram estas preleções,
os estudantes apareciam para as cerimônias e as sessões de
座禅 ZAZEN várias vezes ao dia, e além disso preparavam a
comida e trabalhavam nas numerosas tarefas que o edifício e a
conservação do mesmo requeriam. Durante o dia
鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI, de corpo pequeno e frágil na
aparência, dedicava-se a posicionar corretamente enormes
pedras nas margens de um córrego para evitar a erosão. E à
noite nos dava as preleções. Aos que tiveram a sorte de trabalhar
com ele, sempre era surpreendente a energia e destreza que
manifestava, mesmo na fase em que já era um ancião e se
encontrava doente. Passava o dia todo trabalhando sob um calor
de quase 40º. Através de seu trabalho nos transmitia sua enorme
energia. Podíamos passar o dia inteiro posicionando uma enorme
pedra num lugar que julgávamos adequado, mas se por acaso
não ficasse bem posicionada, voltávamos a retirá-la no dia
seguinte e a posicionávamos de novo.
Naquela época eu era assistente pessoal de
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI. No início de nossa prática diária de
座禅 ZAZEN e das cerimônias, eu o seguia até o 禅堂 ZENDŌ
levando uma oferenda de incenso. Em meio ao calor que às
vezes vazia, cobria sua cabeça com uma toalhinha molhada para
refrescá-lo. Naquele verão de 1970 MITSU-SAN, sua esposa,
chegou de São Francisco e estava muito preocupada com ele.
Sabia que apesar de estar muito enfermo, seu esposo prosseguia
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trabalhando em tarefas que requeriam um esforço excessivo. Às
vezes, quando ela passava próximo de onde ele estava
trabalhando, ele fingia estar descansando e quando ela se
afastava recomeçava a tarefa de mover pedras. Numa ocasião
ela o repreendeu dirigindo-se a ele com o familiar nome
reservado a um abade: “HOJO-SAN! Está a encurtar sua vida!”,
ao que ele respondeu: “Se não a encurtasse, meus estudantes
não cresceriam”.
Ainda que houvesse muitas coisas a fazer, ele nunca se
apressava. Era uma pessoa centrada tanto no equilíbrio como no
tempo. Sempre me dava a impressão de que se entregava por
completo à atividade que realizava. E encontrava sempre o
tempo para realizá-la com profundidade. Um dia, mostrou-me
como se lavava um 着物 KIMONO, movendo-se lentamente por
todo o perímetro da peça usando a parte que segurava com uma
das mãos para esfregar a parte que estava na outra até lavá-lo
por completo. Numa ocasião me disse: “Vocês têm o ditado
‘matar dois pássaros com um só tiro’, mas nossa forma de agir é
matar só um pássaro com cada tiro”.
Em 1969 os estudantes, com muito cuidado, haviam
construído a cozinha de pedra. Em Tassajara havia por todos os
cantos rochas e pedras de todos as formas e tamanhos.
Cortamos o teto de um automóvel velho e o usamos como trenó
para transportar as enormes pedras. Convertemo-nos em experts
na construção de muros e escadarias de pedra. Nossa equipe de
carpintaria era dirigida por um jovem carpinteiro chamado Paul
Discoe, que mais tarde foi estudar no Japão e se converteu em
expert na carpintaria japonesa. As obras de Edward Espe Brown,
“O livro do pão de Tassajara” e “Cozinha Zen”, também foram
escritos nesta época, assim como os livros clássicos de Bill
Shurtleff sobre o 豆腐 TŌFU, o 味噌 MISO e o TEMPEH2. Havia

2
O TEMPEH é uma comida originária da Indonésia, feita a partir de uma
massa de soja parcialmente cozida, parcialmente fermentada e que é
usada como ingrediente principal de várias receitas. (N.T.)
13
no ar uma maravilhosa sensação de pioneirismo. O 禅 ZEN era a
meditação sentada, as cerimônias e o trabalho. Esta combinação
fez com que a prática proporcionasse uma sensação de
integridade. Encontrávamos-nos nas montanhas construindo um
monastério apenas com nossas mãos. Sentíamos-nos
imensamente agradecidos por este lugar, por cada um de nós,
por nosso mestre e por todas as pessoas que apoiavam nosso
esforço. Também sentíamos que não só estávamos fazendo algo
por nós, mas também para os demais.
Ainda que 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI tenha estudado inglês
durante muitos anos no Japão, demorou vários anos até que
conseguisse se comunicar com fluência na América. Durante os
doze anos em que esteve neste país, foi dominando cada vez
melhor o idioma, ainda que freqüentemente tivesse que ficar
procurando a expressão que justamente correspondesse a seu
pensamento, até que finalmente a encontrasse. Mas inclusive
enquanto a procurava, era sempre eloqüente. Na verdade, houve
um caso em que uma pessoa que o ouviu dar uma palestra em
japonês e outra em inglês no mesmo dia, achou que a preleção
em inglês havia sido mais inovadora e convincente, talvez até
pelo fato do inglês não ser sua língua materna.
鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI deu centenas de palestras.
Falando mais formalmente, uma palestra era uma espécie de
apresentação informativa, ao passo que um 提唱 TEISHŌ oferece
o próprio Dharma do mestre ou sua compreensão direta, usando
freqüentemente um 公案 KOAN ou um texto. 鈴木 老師 SUZUKI
RŌSHI raramente utilizava um texto, apesar de que com
freqüência citasse algum. As preleções de um mestre 曹洞 SŌTŌ
podem ser uma mescla na qual o mestre dá a palestra e também
expressa sua própria interpretação de determinado texto, como é
o caso de 鈴木 老 師 SUZUKI RŌSHI nesta obra. Durante a
preleção os estudantes estão sentados com as pernas cruzadas
na postura de 座禅 ZAZEN sem apoiar as costas em nada, com a
14
coluna alinhada e a mente aberta. É costume que o mestre dê
uma preleção toda a semana e às vezes até com maior
freqüência. Durante os compridos retiros, chamados
攝心 SESSHIN, 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI falou diariamente, e
em algumas ocasiões, mais de uma vez no mesmo dia.
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI pertencia a linha de transmissão
do mestre 禅 ZEN 道 元 DŌGEN (1200-1253) e se havia
comprometido a introduzir a forma de praticar de 道元 DŌGEN no
Ocidente. Ainda que recomendasse o estudo dos numerosos
textos de 道 元 DŌGEN (naquela época apenas uns poucos
haviam sido traduzidos), o que para ele era mais importante era o
espírito de 道元 DŌGEN. Da mesma forma que 道元 DŌGEN,
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI não considerava que o 禅 ZEN fosse
um ensinamento ou uma prática distinta do Buddhadharma3 ou
que a escola 曹洞 SŌTŌ do 禅 ZEN fosse superior ou inferior a
qualquer outra. Descreveu nossa Via como o Hīnayāna,
(o Pequeno Veículo), praticado com uma mente Mahāyanā
(o Grande Veículo).
Em meados dos anos sessenta começamos a gravar as
preleções de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI. Naquela época, ele ia
visitar os pequenos grupos 禅 ZEN afiliados ao Centro Zen que
havia em Mill Valley e Los Altos. Estava decidido a converter
algumas palestras que havia dado em Los Altos na base de um
livro, para que um número maior de pessoas pudesse conhecer
seus ensinamentos. Estas preleções se converteram no material
bruto utilizado para escrever a famosa obra “Zen Mind,

3
Os termos em sânscrito foram grafados em itálico, com os sinais
diacríticos mais comuns, que ajudam a obter uma compreensão melhorada
de sua pronúncia. (N.T.)

15
Beginner’s Mind” 4 , traduzida para vários idiomas e que na
atualidade está a ponto de chegar a sua quadragésima edição
em inglês. Nestas espontâneas palestras tratou de muitos temas.
Mas fundamentalmente sua mensagem foi a de como podemos
nos desprender de nosso egocentrismo e nos estabelecer na
大心 DAISHIN ( a Grande Mente ou grande eu), como praticar
de uma maneira formal e como aplicar e encontrar nossa prática
na informalidade de nossa vida cotidiana. A parte do título “Mente
de Principiante”, refere-se à singela atitude de simplesmente
estar presente a cada momento, aceitando a realidade não dual
de cada momento com uma mente clara e aberta, procurando
não cair em opiniões dualistas nem em idéias falsas e
permanecendo aberto a qualquer possibilidade.
As palestras foram gravadas por Marian Derby, que dirigia o
grupo 禅 ZEN de Los Altos e que teve a idéia de escrever este
livro. As transcrições foram revisadas por Trudy Dixon, uma
discípula muito próxima, e Richard Baker, que sucedeu a
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI convertendo-se no segundo abade do
Centro 禅 ZEN. Os editores de “Mente Zen, Mente de
principiante” recolheram as partes mais interessantes e únicas
das palestras de Los Altos e as publicaram em capítulos curtos.
Cada capítulo constitui uma jóia de sabedoria.
As preleções sobre o 參同会 SANDŌKAI, apresentam, ao
contrário, um contexto dos ensinamentos totalmente distinto e
portanto emanam uma sensação muito diferente. Nesta ocasião,
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI dedicou-se a falar sobre um antigo
poema chinês, linha por linha, palavra por palavra, durante umas
seis semanas (de 27 de maio a 06 de julho de 1970). O
參同会 SANDŌKAI de 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN é cantado na
liturgia do Centro 禅 ZEN e também nos monastérios japoneses

4
Editada em português como “Mente Zen, Mente de Principiante”, Editora
Palas Athena, 1994. (4ª edição – 2002) (N.T.)
16
da tradição 曹洞 SŌTŌ. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI quis que o
compreendêssemos com clareza. Para ele foi uma tarefa
prazerosa. Colocou uma placa de ardósia junto a seu assento e
no decorrer das preleções foi escrevendo e explicando os
ideogramas chineses. (Para que a leitura ficasse mais amena
foram eliminadas quase todas as detalhadas explicações de
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI sobre cada ideograma chinês). 5 As
preleções vespertinas se davam no 禅堂 ZENDŌ. À noite fazia
tanto calor que quando nos levantávamos, o 坐蒲 ZAFU estava
empapado de suor.
鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI deu no total doze preleções
sobre o 參同会 SANDŌKAI aos estudantes de Tassajara. Nesta
obra foi incluída uma preleção a mais que corresponde a que foi
dirigida a um grupo de estudantes de filosofia que foram visitar o
Centro, a qual adota uma forma de resumo ou perspectiva geral.
Também foi incluída uma pequena preleção que foi dada uma
manhã durante uma sessão de 座禅 ZAZEN.
Como estas preleções foram dadas em seqüência, foram
mais difíceis de publicar do que as de “Mente Zen, Mente de
Principiante”. A voz das preleções sobre o 參同会 SANDŌKAI
nem sempre soa como a voz de “Mente Zen, Mente de
Principiante”, em parte porque 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI fala
aqui sobre um texto, mas também pelo enfoque que os editores
deram ao apresentá-lo. A princípio queríamos que o texto fosse o
mais fiel possível ao original, mas a medida em que íamos
trabalhando com as preleções nos dávamos conta que às vezes
o relato textual devia ser modificado para que fosse coerente.

5
O que certamente constitui um empobrecimento da obra, e que na
medida do possível procurei desfazer nesta tradução, colocando a maioria
dos termos chineses e japoneses também em ideogramas, o que não foi
feito no original. (N.T.)
17
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI de vez em quando apresentava os
mesmos temas durante uma série de preleções, mas nem
sempre o fazia com o mesmo enfoque. Por isso os editores
tiveram que escolher dentre as diferentes formas em que
começou uma frase em distintas ocasiões. Às vezes tiveram que
preencher os vazios que apareciam entre frases vagas ou
expressas com pouca clareza. E com certa freqüência também
tiveram que decidir se deixavam sem correção uma frase
expressa com a forma de falar peculiar de 鈴木 老師 SUZUKI
RŌSHI ou se a corrigiam para que a frase fosse mais clara e
coerente.
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI também inventava suas próprias
frases para se expressar de uma forma menos dualista. Por
exemplo, podia usar a frase “As coisas tal como é” para
expressar a natureza fundamental da realidade, algo que está
além das palavras. Mas também usava a frase “As coisas tal
como são” para se referir à nossa habitual forma diferenciadora e
dualista de pensar e perceber (bom/mau, correto/incorreto). Em
“As coisas tal como é”, ao usar o singular e o plural na mesma
frase, fazia que nossa corriqueira forma de pensar se ampliasse.
Também foi inventada a palavra “independency”, que foi
utilizada para expressar a natureza dependente, e ao mesmo
independente de nossa vida. Quando em certa ocasião perguntei
a ele sobre isso e lhe disse que em inglês havia as palavras
“independent” (independente), “dependent” (dependente) e
“interdependent” (interdependente), mas que nunca havia
ouvido a palavra “independency”, ele se pôs a rir e me disse que
somos totalmente independentes e, ao mesmo tempo, totalmente
dependentes. Se alguém crê ser totalmente independente,
incorre num erro. E se crê ser totalmente dependente, também se
equivoca. Aparentemente a palavra adequada neste caso seria
“interdependent” (interdependente), mas 鈴 木 老 師 SUZUKI
RŌSHI usou “independency” para expressar esta qualidade

18
ambivalente. Disse que o segredo do 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN era:
“Sim, mas...”
Procuramos fazer a edição de forma que a linguagem de
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI fosse a mais clara e fluida possível
sem modificar ou trair sua forma pessoal de se expressar. Numa
preleção 禅 ZEN - um 提唱 TEISHŌ - a presença do orador influi
poderosamente na experiência do estudante. Os editores ao
trabalhar somente com as palavras devem tentar acima de tudo
não passar por cima desta qualidade ambivalente quando ela
ocorre e não eliminá-la em favor de uma apresentação
gramaticalmente perfeita. Com freqüência, as expressões pouco
convencionais de 鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI exercem mais
impacto do que se ele houvesse se expressado de forma
“correta”.6
Em vários casos conservou-se o uso que 鈴木 老師 SUZUKI
RŌSHI fazia dos pronomes masculinos. Ainda que procedesse
de uma cultura que tradicionalmente favorecia os homens, ele era
inusitado no sentido de que se esforçava muito em respeitar
igualmente a prática dos homens e das mulheres sem discriminá-
las em absoluto. Também respeitava os valores de longa tradição
e a relação que existe entre as mulheres e os homens. Ainda que
em suas preleções normalmente usasse o “ele” ao se referir a um
estudante, fazia-o assim simplesmente porque naqueles tempos
era costume, já que freqüentemente dizia que ainda que
fossemos um homem ou uma mulher, deveríamos ser totalmente
nós mesmos, e que quando cada um é o que é, o 禅 ZEN é o
禅 ZEN.

6
Esta tradução procurou manter este espírito, principalmente tentando
manter ao máximo o clima coloquial que “tempera” estas preleções. (N.T.)
19
鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI faleceu em 04 de dezembro de
1971 de um câncer, um ano e meio depois de oferecer seus
ensinamentos sobre o 參同会 SANDŌKAI. Tinha sessenta e sete
anos. Quando disse que os mestres da tradição 曹洞 禅 SŌTŌ
ZEN davam as preleções sobre o 參同会 SANDŌKAI no ocaso de
suas vidas, devia pressentir que ia morrer proximamente.

20
石頭 希遷 SEKITŌ KISEN
e o 參同会 SANDŌKAI

石頭 希遷 SEKITŌ KISEN (em chinês, Shitou Xiqian, 700-790),


autor do 參 同 会 SANDŌKAI, nasceu na província de
广东 7 Guangdong, no sul da China, no princípio do século VIII.
Aquela foi uma época de formação na qual o 禅 ZEN se fez mais
popular e na qual se expressou, a princípio, como uma escola e
uma linguagem únicos. As questões sobre a natureza e as
origens do 禅 ZEN e os relatos que se conservaram sobre
Bodhidharma,8 o Primeiro Patriarca chinês do 禅 ZEN (470-543),
remontam a esta época.

7
Em chinês tradicional, 廣東. (N.T.)

8
Em japonês, 菩提達摩 BODAIDARUMA, Putidamo em chinês.
(N.T.)
21
Foi também durante este período que o 禅 ZEN ficou conhecido
por destacar a experiência direta da realidade e a prática da
meditação sentada. Mas surgiram disputas sectárias entre a
Escola 禅 ZEN do Norte, que ensinava a doutrina de uma prática
gradual e paulatina, e a Escola 禅 ZEN do Sul, que ensinava que
a obtenção da Iluminação é súbita e imediata. Cresceram os
debates acerca de qual linhagem era superior. Do ponto de vista
atual, as diferenças entre as duas escolas parecem exageradas,
já que ambas enfatizavam tanto uma realização abrupta como
uma constante cultivação, sobretudo através da meditação
sentada. Na realidade, a Escola do Norte originalmente foi muito
popular e influente, mas ao cabo de várias gerações sua
influência e identidade como escola distinta foram decaindo.
Não se sabe grande coisa da vida de 石 頭 SEKITŌ. O
primeiro evento registrado é um encontro que teve, com a idade
de doze anos, com 大鑑 慧能 DAIKAN ENŌ (em chinês, Dajian
Huineng, 638-713), o Sexto Patriarca. Quando este precoce
jovenzinho se aproximou de 慧 能 ENŌ, o mestre lhe disse
zombeteiro: “Se você se converter em meu discípulo, ficará [tão
feio] como eu”. 石頭 SEKITŌ sorriu e respondeu: “De acordo”. Ao
cabo de dois anos era um dos discípulos presentes no leito de
morte de 慧能 ENŌ.
Aparentemente, 石頭 SEKITŌ se dedicou basicamente a
praticar sozinho nos quinze anos seguintes e depois deste
período decidiu estudar com 青 原 行 思 SEIGEN GYŌSHI
(Quingyuan Xingsi, 660-740), um dos principais discípulos de
慧能 ENŌ. Depois de entabular seu primeiro diálogo com ele,
青原 SEIGEN disse de seu novo discípulo: ”No meu grupo já
tenho muitos animais de dois cornos, mas tudo o que eu
precisava era de um unicórnio”.
No ano 742, 石頭 SEKITŌ construiu uma choça sobre uma
grande saliência rochosa do Monte 衡山 Hengshan, na província

22
de 湖南 Hunan. O nome de 石頭 SEKITŌ, que significa “cabeça
de pedra”, vem de ficar sentado em 座禅 ZAZEN na saliência
rochosa. 永 平 道 元 EIHEI DŌGEN, que introduziu o
曹洞 禅 SŌTŌ ZEN no Japão cinco séculos mais tarde, escreveu
o seguinte sobre 石頭 SEKITŌ:

“O grande mestre Shitou ( 石 頭 SEKITŌ) praticou


座禅 ZAZEN numa saliência rochosa sobre a qual construiu uma
choça de palha. Permaneceu dia e noite sentado em 座禅 ZAZEN
sem dormir. Ainda que não tenha se esquecido de trabalhar, ao
longo do dia não deixou de fazer 座禅 ZAZEN um só momento.
Agora os descendentes de seu mestre Qingyuan
(青原 SEIGEN) disseminaram-se por toda a China beneficiando
tanto os humanos como os devas 9 . Isto foi possível graças a
sólida e contínua prática e a grande determinação de Shitou
(石頭 SEKITŌ).”

Conservaram-se vários intercâmbios dialéticos entre


石 頭 SEKITŌ e seus discípulos. Em um destes encontros,
天 皇 道 悟 TENNŌ DŌGO (Tian Huang Daowu, 748-827),
discípulo de 石頭 SEKITŌ, perguntou a seu mestre quem era o
herdeiro adequado do Sexto Patriarca:

“Quem alcançou o ensinamento essencial do Sexto


Patriarca?”, perguntou 道悟 DŌGO.
“Aquele que compreende o Buddhadharma”, respondeu
石頭 SEKITŌ.

9
Deuses dos paraísos celestiais. (N.T.)

23
“Você logrou alcançá-lo?”, inquiriu 道悟 DŌGO.
“Eu não compreendo o Buddhadharma”, respondeu
石頭 SEKITŌ.

Em outra ocasião, um monge perguntou a 石頭 SEKITŌ:


“Como se alcança a emancipação?”
石頭 SEKITŌ respondeu:
“Quem te aprisionou?”
O monge perguntou:
“O que é a Terra Pura?”10
石頭 SEKITŌ respondeu:
“Quem te submergiu na ignorância?”
O monge perguntou:
“O que é o Nirvāna?”
石頭 SEKITŌ respondeu:
“Quem te embrulhou no nascimento e na morte?”

10
Terra Pura: 浄土 JŌDO. Nos séculos I e II d. C., a especulação
Mahāyāna desenvolveu uma cosmologia que era muito mais extensa
do que qualquer outro tema discutido nos primeiros tempos do
Budismo. Os Mahāyanistas propunham a existência de mundos sem
fim, cada um dos quais albergava Buddhas e Bodhisattvas. Estes
“territórios de Buddha” são reinos paradisíacos e cada um deles é
presidido por um Buddha, sendo o mais célebre o paraíso ocidental
conhecido por Sukhavati (極楽 GOKURAKU), a terra “feliz” ou “pura”.
Esta é a morada do Buddha Amitabha 阿弥陀仏 AMIDA-BUTSU ou
無量光仏 MURYŌKŌBUTSU. Trata-se de um paraíso onde “não há
dores físicas nem mentais, cheio de deuses e de homens que nunca
renascem exceto como Bodhisattvas.” (N.T.)

24
Falava-se na época que um monge seguiria sendo um
ignorante a não ser que visitasse o Sul do Lago, o lugar onde
vivia mestre 石頭 SEKITŌ, e o Oeste do Rio, o lugar onde vivia
mestre 馬 祖 BASO (em chinês, Mazu, 709-788). As cinco
escolas do 禅 ZEN 11 se desenvolveram a partir destes dois

11
Retornando um pouco no tempo, dentre os sucessores do Sexto
Patriarca, 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ e 青原行思 SEIGEN GYŌSHI são de
especial importância para a história subseqüente do 禅 ZEN, pois a partir
de suas linhagens foram produzidas todas as posteriores tradições da
corrente chinesa, conhecidas coletivamente como “As Cinco Casas”. Estas
por sua vez são assim conhecidas:
1) 臨 濟 RINZAI (Linji), fundada por 臨 濟 義 玄 RINZAI GIGEN
(f. 866), descendente de 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ; existe até
hoje.
2) 潙仰 IGYŌ (Guiyan), fundada por 潙山 靈祐 ISAN REIYU (711-
853) e seu discípulo 仰 山 慧 寂 KYŌZAN EJAKU (807-883),
também descendentes de 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ. Declinou e
desapareceu após cerca de 150 anos;
3) 曹 洞 SŌTŌ (Caodong), fundada pelos descendentes de
青原 行思 SEIGEN GYŌSHI e de 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN,
洞 山 良 价 TŌZAN RYŌKAI (807-869) e seu discípulo
曹山 本寂 SŌZAN HONJAKU (840-901). Desapareceu na China
durante a dinastia Ming (1368–1644), permanecendo ativa no
Japão até hoje;
4) 雲 門 UNMON (Yunmen), fundada por 雲 門 文 偃 UNMON
BUN’EM (864-949), também descendente de 青原 行思 SEIGEN
GYŌSHI. Depois de florescer durante séculos principalmente
entre membros da elite educada, passou por um lento processo
de decadência, desaparecendo na era Yuan (1280-1368);
5) 法眼 HŌGEN (Fayan), fundada também por um descendente de
青原 行思 SEIGEN GYŌSHI, 法眼 文益 HŌGEN MON’EKI (885-
958). Devido a tendências sincréticas, após alguns séculos
desapareceu como escola distinta, tendo sido absorvida pelas
demais.

25
grandes mestres que, em sua época, encarnaram realmente a
Via do 禅 ZEN. Ainda que não haja qualquer informação
registrada de que tenham chegado a se conhecer pessoalmente,
cada um deles enviava seus discípulos a estudar com o outro.
O seguinte exemplo mostra como se relacionavam com
藥山惟儼 YAKUSAN IGEN (em chinês, Yueshan Weiyan, 745-
828), que mais tarde se converteu num dos sucessores de
石頭 SEKITŌ. 藥山 YAKUSAN foi visitar 石頭 SEKITŌ e lhe
pediu:
“Compreendo os ensinamentos das escrituras budistas, mas
ouvi dizer que no sul [os praticantes do 禅 ZEN] se concentram
diretamente na mente humana. Percebem sua natureza e se
convertem em Buddhas. Mas não terminei de compreender. Peço
humildemente que me explique”.
石頭 SEKITŌ respondeu-lhe:
“Este método não serve e o outro tampouco adianta. Não
servem ambos e nem um só. Que tal lhe parece?”
藥山 YAKUSAN não soube o que responder.
石頭 SEKITŌ disse-lhe:
“Vá ver 馬祖 BASO.”
藥山 YAKUSAN, depois de apresentar seus respeitos a
馬祖 BASO, formulou a mesma pergunta.
馬祖 BASO respondeu-lhe:
“Às vezes consigo que “ele” arqueie as sobrancelhas e
pestaneje, e outras vezes, não. Que te parece?”
Ao ouvir estas palavras, 藥山 YAKUSAN experimentou o
Grande Despertar e se prosternou.

A escola 臨濟 RINZAI (Linji) posteriormente dividiu-se nas linhagens


de 楊岐 方會 YOGI HŌE - (992-1049) e 横龍 慧南 ORYŌ E'NAN
(1002-1069), as quais, conjuntamente com As Cinco Casas,
perfazem As Sete Escolas. (N.T.)

26
馬祖 BASO perguntou-lhe:
“Que verdade que você viu que te impulsionou a se
prosternar?”
藥山 YAKUSAN respondeu-lhe:
“Quando eu estava com 石 頭 SEKITŌ, era como um
mosquito se lançando contra um boi de ferro.”
馬祖 BASO disse-lhe:
“Já que você alcançou a Verdade, guarde-a bem dentro de ti.
Mas seu mestre é 石頭 SEKITŌ.”

Outro intercâmbio dialético entre 石 頭 SEKITŌ e


藥山 YAKUSAN mostra um verdadeiro encontro entre mestre e
discípulo. Um dia, ao ver que 藥山 YAKUSAN estava sentado em
座禅 ZAZEN, 石頭 SEKITŌ lhe perguntou:
“O que você está fazendo aqui?”
藥山 YAKUSAN respondeu-lhe;
“Não estou fazendo nada.”
石頭 SEKITŌ disse-lhe:
“Neste caso, está sentado ociosamente.”
藥山 YAKUSAN argumentou:
“Se estivesse sentado ociosamente estaria fazendo algo.”
Ao que 石頭 SEKITŌ replicou:
“Você diz que não está fazendo nada. Em que consiste este
‘Não fazer’?”
藥山 YAKUSAN respondeu-lhe;
“Nem sequer os dez mil sábios o sabem.”

O 參同会 SANDŌKAI (em chinês, Cantongqi) trata sobre a


divisão que surgiu entre a Escola do Norte e a Escola do Sul, e
sobre outras dicotomias como a unidade e multiplicidade, a luz e
a escuridão, a identidade e a diferença. (No clima científico atual,

27
石頭 SEKITŌ poderia ter escrito sobre ondas e partículas). O
poema, composto de quarenta e quatro versos pareados dois a
dois, segue freqüentemente a pauta de distinguir primeiro a
descontinuidade, depois a continuidade e, por último, a
complementaridade.
Um texto anterior taoista sobre o 易經 Yi Jing (I Ching) se
chamava 參同会 SANDŌKAI e o poema de 石頭 SEKITŌ faz
alusão aos temas taoistas referentes à natureza e à mudança.
Também mostra a influência da escola 華嚴 KEGON (a escola de
budismo japonês correspondente à escola chinesa Huayan, ou a
Escola do Ornamento Floral) que ensina a igualdade e a
interdependência de todas as coisas.
É evidente que para a linhagem 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN o
參 同 会 SANDŌKAI é fundamental. O poema é cantado
diariamente nos templos da escola 曹洞 SŌTŌ de todo o mundo
e quase sempre que se celebra a cerimônia para comemorar o
aniversário da morte do fundador de um templo. Três gerações
depois de 石頭 SEKITŌ, 洞山 良价 TŌZAN RYŌKAI (em chinês
Dongshan Liangjie, 807-869), escreveu o 寶 鏡 三 昧 HOKYŌ
ZANMAI (em chinês Baojing Sanmei)12, que desenvolve idéias do
參同会 SANDŌKAI. O ensinamento dos Cinco Estágios13 também
procede do 參同会 SANDŌKAI.

12 O título completo do poema é 寶 鏡 三 昧 歌 HŌKYŌ ZANMAI KA


(Baojìng Sanmei Ge), e se encontra no T48n2004-p0279a12. Veja também
a nota nº 18. (N.T.)

13
Em japonês, 五位 GO I. Correspondem aos princípios fundamentais da
lógica 禅 ZEN, articulando os silogismos em cinco etapas sendo A o
primeiro termo, relacionado com os fenômenos (色 SHIKI), a noção de

28
obliqüidade ou de diferença; e B o segundo termo: a essência ou o vazio
(空 KŪ), a noção de retidão ou de igualdade.

Temos assim, sucessivamente:


I. A entra em B.
II. B entra em A.
III. B é B.
IV. A é A.
V. A e B se interpenetram.

Em japonês, teríamos:
I. 正中偏 SHŌ CHŪ HEN.
II. 偏中正 HEN CHŪ SHŌ.
III. 正中來 SHŌ CHŪ RAI.
IV. 兼中至 KEN CHŪ RAI.
VI. 兼中到 KEN CHŪ TŌ.

正 SHŌ significa substância do cosmos, o Poder Cósmico


fundamental, o reto, o justo, a essência. Corresponde a 空 KŪ, a
Vacuidade. 偏 HEN designa os fenômenos, o curvo, o oblíquo, o parcial.
É 色 SHIKI, os fenômenos.

Podem ser estabelecidas assim as seguintes similaridades:

29
Gostaria de concluir este texto com o último par de versos
do 參同会 SANDŌKAI, cuja mensagem pode estar escrita no
板 HAN, a tábua de madeira com a qual se anuncia - ao ser
percutida ritmicamente - o inicio e o fim da sessão de meditação
nos templos e monastérios 禅 ZEN:

偏 HEN 中 CHŪ 正 SHŌ


O oblíquo, a diferença. entra em o reto, a igualdade.
色 SHIKI. 即 是 SOKU ZE 空 KŪ
Os fenômenos são em si a essência.
正 SHŌ 中 CHŪ 偏 HEN
O reto, a igualdade entra em o oblíquo, a diferença.
空 KŪ 即 是 SOKU ZE 色 SHIKI.
A essência é em si o fenômeno.
兼 KEN 中 CHŪ 至 RAI
O oblíquo, a diferença. entra em (é) o oblíquo, a diferença.
色 SHIKI. 即 是 SOKU ZE 色 SHIKI.
Os fenômenos são os fenômenos.
正 SHŌ 中 CHŪ 來 RAI
O reto, a igualdade entra em (é) o reto, a igualdade.
空 KŪ 即 是 SOKU ZE 空 KŪ
A essência é a essência.

兼 KEN 中 CHŪ 到 TŌ

A CHEGADA DE AMBOS À UNIDADE.

Este quinto princípio resume, sintetiza e supera os quatro anteriores .


(N.T.)

30
謹んで参玄さの人にもうす、
TSUTSUSHIN DE SANGEN NO HITO NI MŌSU,

Vocês que estudam o mistério,


respeitosamente e com urgência eu os exorto:

光陰虚しく度ることなかれ。
KŌ IN MUNA SHIKU WATARU KOTO NAKARE.

Não passem os dias e as noites em vão!

NOTAS PARA O LEITOR

31
Como 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI usava várias traduções do
參同会 SANDŌKAI disponíveis naquela época - principalmente a
de R.H. Blyth e a de Reiho Matsunaga - e também traduzia
diretamente do original em caracteres chineses, seu comentário
não corresponde a nenhuma tradução existente e nem se ajusta
por completo a qualquer uma destas enumeradas. No texto que
apresentamos a seguir foi utilizada como fonte a tradução inglesa
da 曹 洞 宗 SŌTŌ SHU (Escola SŌTŌ) Liturgy Conference
oferecida em Green Gulch Farm, em Sausalito (Califórnia) em
1997, ainda que com algumas pequenas correções. Tão pouco
encontramos um título que traduzisse perfeitamente o significado
de 參同会 SANDŌKAI. O título proposto pela 曹洞 宗 SŌTŌ SHU
Liturgy Conference é “A harmonia entre o diferente e o igual”14.
Os problemas inerentes a qualquer tradução de um texto tão
profundo recordam uma linha do 寶鏡三昧 HOKYŌ ZANMAI15: “O
significado não se acha nas palavras, mas elas encorajam àquele
que procura”.
Ainda que 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI não tenha feito por
completo sua própria tradução do 參同会 SANDŌKAI, em suas

14
Outras traduções possíveis:
“Harmonia entre a diferença e a igualdade”.
“Fusão da diferença e da igualdade”. (Thomas Cleary)
“Identidade do relativo e do absoluto”. (Dennis Genpo Merzel)
“Ode à identidade”. (D.T. Suzuki).
15
A citação em questão corresponde a seguinte passagem:

意不在言 來機亦赴

意言にあらざれば、來機またおもむく。
KOKORO KOTO NI ARAZAREBA, RAIKI MATA OMOMUKU.

A mente não se expressa em palavras,


mas elas encorajam àquele que procura. (N.T.)
32
preleções foi-nos traduzindo passo a passo cada um dos
caracteres do poema. Depois de depurar estas preleções e
outras fontes que não foram incluídas na obra (por exemplo,
discussões privadas que 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI manteve com
os estudantes), criamos uma outra versão do 參同会 SANDŌKAI
que foi incluída no final deste livro. Como 鈴木 老師 SUZUKI
RŌSHI traduziu os mesmo caracteres e frases de formas
distintas, dependendo do contexto de sua preleção, a versão que
compusemos é apenas uma aproximação daquela que poderia
ter sido escrita por ele.
Os mestres chineses citados no livro foram apresentados
com o nome equivalente em japonês 16 acompanhado do nome
original chinês entre parênteses. Para tanto, os nomes chineses
receberam sua transliteração no sistema 拼音 Pinyin. Segundo
este sistema, 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN, o autor do poema, é
Shitou Xiqian. Mas no sistema Wade-Giles, mais antigo, seria
Shih-T’ou Hsi -Ch’ien17. Para ajudar o leitor a seguir os diversos

16
Sempre que possível, os termos em japonês foram grafados em
ideogramas (漢字 KANJI) ou nos silabários auxiliares (平仮名 HIRAGANA e
片仮名 KATAKANA), seguidos da transliteração fonética ou romanização
(ローマ字 RŌMAJI) no Sistema Hepburn (ヘボン式 HEBON SHIKI), um
dos principais sistemas de romanização do japonês, desenvolvido pelo
reverendo James Curtis Hepburn para seu Japanese-English Dictionary,
editado em 1867. Este sistema foi subseqüentemente revisado e chamado
修正ヘボン式 SHŪSEI HEBON-SHIKI 修正ヘボン式. Esta versão revisada
às vezes também é chamada de 標準式 HYŌJUN-SHIKI, “estilo padrão”. A
versão original e as variantes revisadas deste sistema permanecem sendo
o mais popular método de transcrição do japonês, permitindo uma
compreensão mais exata da pronúncia do idioma. (N.T.)
17
拼 音 Pinyin significa literalmente, “colocar sons juntos”. Em chinês
geralmente se refere ao 汉 语 拼音 Hànyǔ Pīnyīn, que é o sistema de
romanização do mandarin, aprovado em 1958 e adotado a partir de 1979
33
mestres e linhagens mencionados na obra, incluímos ao final do
livro uma tabela das linhas de transmissão.
A transcrição dos caracteres do 參 同 会 SANDŌKAI em
japonês, tão habilmente realizada foi-nos brindada amavelmente
por KAZUAKI TANAHASHI. A versão chinesa do
參同会 SANDŌKAI, foi reproduzida do 大正新脩大蔵経 TAISHŌ
SHINSHŪ DAIZŌKYŌ, uma edição do cânone completo sino-
japonês publicada por 順次郎 高楠 JUNISHIRŌ TAKAKUSU e
海旭 渡部 KAIGYOKU WATANABE.18

pela Republica Popular da China. Este sistema substituiu outros sistemas


mais antigos, entre eles o Wade-Giles. (N.T.)
18
Entre os anos de 1924 e 1934 um consórcio de eruditos japoneses sob
a direção de 順 次 郎 高 楠 JUNISHIRŌ TAKAKUSU (1866-1945),
海旭 渡部 KAIGYOKU WATANABE (1872-1932) e 亦妙小野 GEMMYŌ
ONO (1884-1939) produziu uma edição crítica do cânone budista Sino-
Japonês que desde então tem servido como edição padrão para as
citações de textos budistas. Seu nome completo,
大正 新脩 大蔵経 TAISHŌ SHINSHŪ DAIZŌKYŌ ( Grande Coletânea de
Escrituras Recentemente Compiladas Durante a Era TAISHŌ, [1912-1925])
é freqüentemente abreviado para 大正 TAISHŌ ou “T.” Compreende um
total de 100 grossos volumes que contém um total de 3360 obras,
compiladas a partir das edições anteriores dos cânones chineses,
coreanos e japoneses, além de obras que não constavam nestas versões,
como obras compostas no Japão e excluídas de versões mais antigas do
cânone japonês, textos ilustrados das tradições esotéricas japonesas e
reimpressões de setenta e sete catálogos de cânones anteriores. O
參同会 SANDŌKAI está relacionado no Volume 48 obra 2006, e recebe a
identificação T48n2006p0327a14-b07. Uma reprodução do
參同会 SANDŌKAI no formato digitalizado do 大正 TAISHŌ se encontra
reproduzida no APÊNDICE 01, ao final do livro. (N.T.)

34
35
參同会
SANDŌKAI

36
A HARMONIA ENTRE
O DIFERENTE E O IGUAL

37
A mente do grande sábio da Índia,
tem sido transmitida intimamente
de Oeste para Leste.

Apesar de que as faculdades humanas possam ser


inteligentes ou tontas,
na Via não há Patriarcas do Norte ou
Patriarcas do Sul.

A fonte espiritual brilha claramente na luz,


os afluentes fluem na escuridão.

Apegar-se aos fenômenos é uma ilusão,


aceitar a identidade não é a Iluminação.

Os objetos dos sentidos interagem


e ao mesmo tempo não interagem.

A intenção produz implicação.


e, sem embargo, cada fenômeno
mantém-se em seu próprio lugar.

38
As imagens variam em qualidade e forma,
os sons podem ser prazerosos ou
desagradáveis.

As palavras refinadas e as ordinárias


não se diferenciam na escuridão,
as frases claras e as obscuras
distinguem- se na luz.

Os quatro elementos regressam à sua natureza,


tal como uma criança regressa à sua mãe.

O fogo aquece, o vento move,


a água molha, a terra é sólida.

Olhos e imagens, ouvidos e sons,


nariz e odores, língua e sabores.

Cada um e todos os fenômenos


dependem destas raízes,
são como as folhas de uma árvore.

O tronco e os ramos compartilham

39
a mesma essência,
o venerado e o vulgar se expressam
de sua própria maneira.

Na luz há obscuridade,
mas não a veja só como obscuridade.

Na obscuridade há luz,
mas não a veja só como luz.

A luz e a escuridão se opõem uma a outra,


como o pé direito e o esquerdo ao caminhar.

Cada um das miríades de fenômenos


tem seu próprio mérito,
expresso de acordo com sua função e lugar.

Os fenômenos existem como uma caixa que


perfeitamente se ajusta à sua tampa,
princípio igual a quando duas flechas se
encontram em pleno vôo, ponta com ponta.

40
Ao ouvir estas palavras, você deve
compreender seu significado;
não estabeleça suas próprias normas.

Se não for capaz de compreender


a via que tem diante de si,
como poderá reconhecê-la
ao caminhar por ela?

A prática nada tem a ver com longe ou perto,


mas se você se confundir,
montanhas e rios obstruirão seu passo.

Vocês que estudam o mistério,


respeitosamente e com urgência eu os exorto:
não passem os dias e as noites em vão!

Traduzido a partir da versão em inglês da 曹洞 宗 SŌTŌ


SHU (Escola SŌTŌ) Liturgy Conference oferecida em Green
Gulch Farm, em Sausalito (Califórnia) em 1997; foram feitas
algumas pequenas correções
VERSÃO ORIGINAL EM CHINÊS

41
參同会
竺土大仙心 東西密相付
人根有利鈍 道無南北祖
霊源明皎潔 枝派暗流注
執事元是迷 契理亦非悟
門門一切境 迴互不迴互
迴而更相渉 不爾依位住
色本殊質象 聲元異樂苦
暗合上中言 明明清濁句
四大性自復 如子得其母
火熱風動搖 水濕地堅固
眼色耳音聲 鼻香舌鹹醋

42
然依一一法 依根葉分布
本末須歸宗 尊卑用其語
當明中有暗 勿以暗相遇
當暗中有明 勿以明相覩
明暗各相對 比如前後歩
萬物自有功 當言用及處
事存函蓋合 理應箭鋒哘
承言須會宗 勿自立規矩
觸目不會道 運足焉知路
進歩非近遠 迷隔山河固
謹白參玄人 光陰莫虚度

43
VERSÃO DA 曹洞宗 SŌTŌ-SHŪ EM JAPONÊS,
COM A CORRESPONDENTE
TRANSLITERAÇÃO FONÉTICA EM RŌMAJI

參同会
SANDŌKAI

竺土大仙の心、
CHIKUDO DAISEN NO SHIN,

東西密に相附す、
TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU,

人根に利鈍あり、
NIN KON NI RIDON ARI,

道に南北の祖なし、
DŌ NI NAN BOKU NO SO NASHI,

霊源明に皓潔たり、
REI GEN MYŌ NI KŌ KETTA RI

44
支派暗に流注す、
SHIHA NA NI RUCHŪ SU,

事を執するも元これ迷い、
JI O SHŪ SURU MO MOTO KORE MAYOI,

理に契うも亦悟にあらず、
RI NI KANAU MO MATA SATORI NI ARAZU,

門門一切の境、
MON MON ISSAI NO KYŌ,

回互と不回互と、
EGO TO FU EGO TO,

回してさらに相渉る、
ESHITE SARANI AI WATARU,

しからざれば位によって住す、
SHIKARA ZAREBA KURAI NI YOTTE JŪ SU,

45
色もと質像を殊にし、
SHIKI MOTO SHITSU ZŌ O KOTONI SHI,

声もと楽苦を異にす、
SHŌ MOTO RAKKU O KOTO NI SU,

暗は上中の言に合い、
AN WA JŌ CHŪ NO KOTO NI KANAI,

明は清濁の句を分つ、
MEI WA SEI DAKU NO KU O WAKATSU,

四大の性おのずから復す、
SHIDAI NO SHŌ ONOZU KARA FUKUSU,

子の其の母を得るがごとし、
KONO SONO HAHA O URU GA GOTOSHI,

火は熱し、風は動揺、
HI WA NESSHI, KAZE WA DŌYŌ,

水は湿い、地は堅固、
MIZU WA URUOI, CHI WA KENGO,

46
眼は色、耳は音声、
MANAKO WA IRO, MIMI WA ONJŌ,

鼻は香、舌は鹹酢、
HANA WA KA, SHITA WA KANSO,

しかも一一の法において、
SHIKA MO ICHI ICHI NO HŌ NI OITE,

根によって葉分布す、
NE NI YOTTE HABUNPU SU,

本末すべからく宗に帰すべし、
HON MATSU SUBE KARAKU SHŪ NI KISU BESHI,

尊卑其の語を用ゆ、
SONPI SONO GO O MOCHI YU,

明中に当って暗あり、
MEI CHŪ NI ATATTE AN ARI,

暗相をもって遇うことなかれ、
AN SŌ O MOTTE AU KOTO NAKARE,

47
暗中に当って明あり、
AN CHŪ NI ATATTE MEI ARI,

明相をもって覩ることなかれ、
MEI SŌ O MOTTE MIRU KOTO NAKARE,

明暗おのおの相対して、
MEI AN ONO-ONO AITAI SHITE,

比するに前後の歩みのごとし、
HISU RUNI ZENGO NO AYUMI NO GOTOSHI,

万物おのずから功あり、
BANMOTSU ONOZUKARA KŌ ARI,

当に用と処とを言うべし、
MASANI YŌ TO SHO TO O IU BESHI,

事存すれば函蓋合し、
JI SON SUREBA KANGAI GASSHI,

理応ずれば箭鋒さそう、
RI Ō ZUREBA SENPŌ SASŌ,

48
言を承てはすべからく宗を会すべし、
KOTO O UKETE WA SUBE KARAKU SHŪ O ESU BESHI,

みずから規矩を立することなかれ、
MIZUKARA KIKU O RISSURU KOTO NAKARE,

触目道を会せずんば、
SOKU MOKU DŌ O ESSE ZUNBA,

足を運ぶもいずくんぞ路を知らん、
ASHI O HAKOBU MO IZU KUN ZO MICHI O SHIRAN,

歩をすすむれば近遠にあらず、
AYUMI O SUSU MUREBA GON NON NI ARAZU,

迷て山河の固をへだつ、
MAYŌTE SEN GA NO KO O HEDATSU,

謹んで参玄さの人にもうす、
TSUTSUSHIN DE SANGEN NO HITO NI MŌSU,

光陰虚しく度ることなかれ。
KŌ IN MUNA SHIKU WATARU KOTO NAKARE.
49
Como esta versão corresponde à utilizada nas
liturgias da 曹洞宗 SŌTŌ-SHŪ, está acompanhada
das marcações dos sinos que são percutidos
durante a leitura.

GATSU
KESU
KORIN

50
51
PRIMEIRA PRELEÇÃO

“AS COISAS TAL QUAL É”

52
53
竺土大仙心
竺土大仙の心、
CHIKUDO DAISEN NO SHIN,

A mente do grande sábio da Índia,

東西密相付
東西密に相附す。
TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU.

é transmitida intimamente de Oeste a Leste.

Sinto-me muito grato por ter a oportunidade de falar sobre o


參同会 SANDŌKAI, um dos ensinamentos mais importantes. O
poema foi expresso com tanta fluidez que talvez vocês não sejam
capazes de captar seu profundo significado ao lê-lo. Seu autor,
石頭 希遷 SEKITŌ KISEN (ou SEKITŌ MUSAI DAISHIN, seu
nome póstumo) foi o neto no Dharma do Sexto Patriarca chinês
大 鑑 慧 能 DAIKAN ENŌ (em chinês, Dajian Huineng) e
descendente direto de 青原 行思 SEIGEN GYŌSHI (em chinês,
Quingyuan Xingsi), considerado o Sétimo Patriarca. Entre os

54
numerosos discípulos do Sexto Patriarca, os mais destacados
foram 青原 行思 SEIGEN GYŌSHI e 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ.
Mais tarde, o mestre 洞山 良价 TŌZAN RYŌKAI continuou a
linhagem de 青原 SEIGEN como escola 曹洞 SŌTŌ e o mestre
臨濟 義玄 RINZAI GIGEN (em chinês, Linji Yixuan), continuou a
linhagem de 南 嶽 NANGAKU como escola 臨 濟 RINZAI. As
escolas 曹洞 SŌTŌ e 臨濟 RINZAI acabaram sendo as escolas
mais influente do 禅 ZEN.
As formas de agir de 青原 SEIGEN e de 石頭 SEKITŌ foram
mais suaves que a de 南嶽 NANGAKU. No Japão a chamamos
de forma de atuar própria do irmão maior. A de 南嶽 NANGAKU é
mais parecida com a forma de agir do segundo ou terceiro filho,
que podem ser mais travessos. O irmão maior talvez não seja tão
hábil ou brilhante, mas é muito doce. Ao falar das escolas,
曹洞 SŌTŌ ou 臨濟 RINZAI, consideramos-nas deste modo. Às
vezes, o 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN é denominado NENMITSU NO
KAFU, “um estilo muito cuidadoso e de consideração”. O método
de 青原 SEIGEN consiste em encontrar tudo quanto existe no
interior de alguém. Em realizar a grande mente que tudo inclui e
praticar de acordo com tudo isso.
Nosso esforço no 禅 ZEN se baseia em observar tudo tal
qual é. E, sem embargo, ainda que digamos que devemos fazê-lo,
não significa forçosamente que observemos tudo tal como é.
Dizemos “Aqui está meu amigo, ali está a montanha e no alto do
céu, a lua”. Mas seu amigo não é apenas seu amigo, a montanha
não é só a montanha e a lua não é só a lua. Se pensarmos “eu
estou aqui e a montanha esta ali”, estamos observando as coisas
de uma maneira dualista. Para ir a São Francisco temos que
cruzar as montanhas de Tassajara. Assim é como normalmente
compreendemos. Mas no Budismo as coisas não são observadas
assim, pois encontramos a montanha, a lua, nosso amigo ou São
Francisco em nosso interior. Aqui mesmo. Esta é a grande mente
que tudo contém.

55
Analisemos agora o título 參 同 会 SANDŌKAI. 參 SAN
significa literalmente “três”, mas aqui quer dizer “fenômenos”.
同 DŌ é a identidade. Identificar uma coisa com outra é 同 DŌ.
Também se refere à unidade, ou a “um único Ser”, que aqui
significa “mente maravilhosa” ou “grande mente”. Ou seja, que se
interpreta que há um único Ser que inclui tudo e que a
multiplicidade de fenômenos está incluída nele. Ainda que
digamos “muitos seres”, estes são na realidade as numerosas
partes que compõe este único Ser que tudo inclui. Se dizemos
“muitos”, são muitos, e se dizemos “um”, é um. “Muitos” e “um”
são duas formas distintas de descrever o único Ser. 会 KAI
significa “dar a mão”. Uma sensação de amizade. Sentir que dois
amigos são uma só pessoa. Do mesmo modo, este único e
grande Ser e a multiplicidade de fenômenos são bons amigos,
porque originalmente são um só. 会 KAI é como dar a mão a
alguém, como dizer “Ola! Como Vai?” O título do poema significa
isto. O que é muitos? O que é um? E o que é a unidade do
múltiplo e do um.
Originalmente, 參同会 SANDŌKAI foi o título de um livro
taoista. 石頭 SEKITŌ pôs o mesmo título em seu poema, que
descreve o ensinamento de Buddha. Que diferença há entre os
ensinamentos taoistas e os ensinamentos budistas? Ambos
guardam muitas similitudes. Quando um budista os lê, é um texto
budista, e quando um taoista os lê, é um texto taoista. Mas na
realidade são o mesmo. Quando um budista come uma verdura,
é uma comida budista e quando um vegetariano come a mesma
classe de verdura, é uma comida vegetariana. Mas a verdura
continua sendo apenas comida.
Em nossa qualidade de budistas, não comemos uma
determinada verdura por que ela tenha alguma propriedade
nutritiva especial nem a escolhemos porque seja 陰 yin ou
陽 yang, ácida ou alcalina, mas pelo fato de que comer é
simplesmente nossa prática. Não comemos apenas para subsistir.
Como dizemos na invocação que entoamos antes das refeições:

56

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