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A falsa dicotomia “esquerda” versus

“movimentos identitários”
A dicotomia “esquerda” versus “movimentos identitários” é falsa
e só fortalece o que há de pior no conservadorismo brasileiro
Por Marcelo Hailer

Há pelo menos dois anos uma falsa dicotomia move corações


e debates: A esquerda versus os “movimentos identitários” –
entre aspas porque essa classificação está repleta de
problemas. De um lado argumenta-se que a agenda movida
por identidades é extremamente liberal e coloca em segundo
plano o principal objetivo dos grupos e partidos à esquerda: a
superação do capitalismo e a edificação de um Estado
socialista. Este argumento é risível, universal-eurocêntrico e
nos remete para o fim do século XIX e começo do XX.

Primeiro é preciso desmontar o argumento universalista que


iguala os movimentos da América Latina com aqueles
fundados na Europa e nos Estados Unidos. No velho
continente, as primeiras articulações começam no fim do
século XIX, três pautas marcam esse momento histórico: a luta
das operárias comunistas e anarquistas, o sufrágio universal e
o movimento homossexual (à época era assim que era
chamado, mas ele já era composto por lésbicas, gays,
transexuais e travestis) que inicia uma batalha para que a
homossexualidade deixe de ser crime. Nos EUA temos,
também, o movimento sufragista, a luta contra as políticas
racistas e o movimento homossexual contra a
despatologizaçao da homossexualidade e pela igualdade de
direitos civis.

Na segunda metade do século XX com a conquista do sufrágio


universal e da despatologização e descriminalização da
homossexualidade a pauta principal são os direitos civis.
Especificamente nos EUA, o movimento negro é quem toma a
dianteira e serão as feministas negras, muitas delas ligadas ao
Partido Comunista e movimentos de contracultura que irão
inaugurar a luta interseccional, ou seja, para por fim ao racismo
e outras formas de ódio, só derrubando o capitalismo. Notem
que estamos falando da década de 1950/1960. Mas, também é
preciso atentar para o contexto geográfico, pois, a formação
política e do Estado se dá de maneira completamente distinta
no velho continente e nos EUA, neste país começa a ganhar
força o chamado “feminismo liberal”, o mesmo se dá com o
movimento homossexual. Há uma passagem da luta por
direitos socais por direitos individuais, porém, não significa que
os movimentos à esquerda deixem de existir, pelo contrário.
Intensificam a luta e são fortemente perseguidos pelo Estado
estadunidense.

Outro fato que é preciso levar em consideração é a


composição partidária do velho continente e, principalmente,
dos Estados Unidos. No primeiro ainda temos uma tradição à
esquerda, ainda que os partidos surgidos no século XIX e XX
estejam em franca decadência, o que acabou por abrir espaço
para novas siglas à esquerda – França, Inglaterra e Espanha
são três ótimos exemplos disso. Já na terra do Tio Sam, ainda
que existam outras siglas para além dos partidos Democrata e
Republicano, não possuem, ainda, qualquer incidência no jogo
palaciano. E não é preciso dizer que as duas principais siglas
estadunidense são liberais, o que as separa são alguns pontos
na política econômica e nos direitos civis. Portanto, qualquer
aproximação entre os movimentos latinos com os europeus e
estadunidense está fadado ao equívoco.

A configuração dos “movimentos identitários” no Brasil

Na primeira parte deste texto tivemos por objetivo explicar,


ainda que de maneira rápida e generalista, a configuração dos
“movimentos identitários” na Europa e nos Estados Unidos
para que possamos compreender porque não é possível
aproximar ou igualar os movimentos brasileiros com os já
citados. Aliás, este tipo de narrativa tem uma explicação: por
sermos ex-colônia ainda carregamos – fortemente, diga-se –
em nossa formação epistemológica o pensamento universal
eurocêntrico, ou seja, de que fora do Norte Global tudo é
reprodução da metrópole colonialista e de que, ainda, somos
incapazes de produzir saberes e criatividades políticas.

Para tratar especificamente do Brasil, vamos fazer um recorte


para a década de 1970; a ditadura seguia firme e forte, porém,
neste momento histórico a contracultura efervescia e foi um
grupo de teatro que chamou a atenção para as questões da
política a partir dos corpos, no caso o Dzi Croquettes, que se
tornará uma febre no eixo Rio-São Paulo. No campo do
ativismo político mais stricto senso, é fundado, em 1977, o
Grupo Somos, idealizado pelo ativista e escritor João Silvério
Trevisan. E, será a partir deste coletivo, que, internamente
possuía membros ligados as ideologias anarquista e socialista,
que teremos o ponta pé inicial para aquilo que, alguns anos
depois irá se configurar enquanto Movimento Homossexual
Brasileiro (MHB, à época).

O divisor de águas do Movimento Homossexual Brasileiro se


dará com a Greve Geral deflagrada em 1980 no ABC paulista.
Os ativistas do Somos e membros da comunidade LGBT da
época se dividem entre participar ou não da greve. De um lado
havia a percepção de que a esquerda queria apenas se
aproveitar do incipiente movimento, no outro campo, ativistas
alegavam que era o momento certo para deflagrar a bandeira
dos direitos de gays, lésbicas, travestis e transexuais. Não
houve consenso e parte do grupo optou por um pique nique no
Parque Ibirapuera, enquanto outra parte participou da
Assembleia Geral realizada no Estádio da Vila Euclides. Ao
chegarem com as suas faixas foram aplaudidos pelos
trabalhadores presentes no ato.

Na mesma época outro fato histórico marcaria os próximos


passos do movimento LGBT, mas também das feministas e do
movimento negr@, que seria a fundação do Partido dos
Trabalhadores (PT), que surgia com o objetivo de ser um
partido de massas. Os “movimentos identitários” encontraram
guarida na nova legenda, que, desde o seu texto fundacional já
defendia as bandeiras pelos direitos civis das LGBT, mulheres
e população negra. Era um marco histórico no Brasil que
estava saindo da ditadura.

O contexto das redes sociais


Pano rápido para o século XXI e ascensão das redes sociais.
Com a explosão e acesso em massa das plataformas digitais,
surgiram inúmeros coletivos ligados as pautas feministas,
LGBT e negr@s. A principal diferença destes coletivos,
digamos, digitais para os grupos formados no fim do século XX,
é que eles vão entender e utilizar as redes para uma batalha
linguística, que as vezes se mostra efetiva e outras vezes nem
tanto, mas isso faz parte da política. Há também um choque de
gerações: parte do ativismo à esquerda insiste na ideia de que
as pautas “identitárias” mais dividem do que somam, mas, o
que esta parcela da esquerda ainda não entendeu é que a
demanda a partir das identidades não caminha separada das
questões de classe, antes o contrário.

É curioso notar que, boa parte dos detratores dos movimentos


LGBT, feminista e negr@ são fortes apoiadores do ex-
presidente Lula, que, quando presidente e contra tudo e contra
todos, como o próprio revelou, abriu a I Conferência Nacional
LGBT, realizada em Brasília, no ano de 2008. Já naquela
época o presidente Lula bradou que era preciso acabar com a
hipocrisia e a homofobia presente na esquerda (existem vários
registros deste momento). Foi também nos governos Lula que
tivemos a criação do Brasil Sem Homofobia, o Ministério das
Mulheres, e o Ministério da Igualdade Racial, e isso nunca
atrapalhou o foco da gestão petista: distribuição de renda e
justiça social. É o contrário que acontece: ações como a do
governo Lula, no que diz respeito as pautas identitárias são,
ainda hoje, pioneiras ao redor do mundo.
Outro argumento utilizado para atacar os referidos movimentos
é de que eles são liberais e anti-esquerda. Nada mais
equivocado e pior, este tipo de argumento vai ao encontro do
que há de pior na direita fundamentalista no Brasil. O grosso
dos movimentos LGBT, feminista e negr@s tem a sua
formação nas bordas do Brasil e, nos últimos anos, eles têm
sido responsáveis por modernizar a agenda da esquerda.
Outra questão é que: ao mesmo tempo em que parte da
esquerda fica bradando que os “movimentos identitários
dividem a esquerda”, na sala ao lado, a direita percorre o Brasil
vendendo a ideia de que as LGBT e feministas querem destruir
a família.

A dicotomia “esquerda” versus “movimentos identitários” é falsa


e só fortalece o que há de pior no conservadorismo brasileiro.
Os setores da esquerda que ficam rechaçando os movimentos
LGBT, feminista e negr@s – e achando que eles se resumem
às bolhas digitais – precisam se decidir: se assumem o seu
caráter preconceituoso e datado – a velha cantilena de que as
pautas identitárias devem ficar no segundo plano – ou passam
a defender, de fato, uma outra sociedade possível e livre do
ódio. Pois, enquanto eles acusam os “movimentos identitários”
de liberais e “anti-esquerda”, na mesma linha temos a extrema
direita pregando o retorno da eugenia.

Os fatos históricos e teóricos citados neste artigo podem


ser conferidos em:

Devassos no Paraíso, João Silvério Trevisan

Para além do carnaval, James Green


Mulheres, Raça e Classe, Angela Davis

Nascimento da Biopolítica, Michel Foucault

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