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Colóquio Internacional “Artífices da Correspondência”


Novembro 2016
Instituto de Estudos Brasileiros – Universidade de São Paulo

Conversa de “africanistas”:
a correspondência entre Mário de Andrade e Arthur Ramos (1934-1944)
Comunicação : Profa. Dra. Ligia Fonseca Ferreira

Ainda hoje, pouco se conhecem as relações e afinidades intelectuais que uniram,


no contexto de renovação ideológica da década de 1930, dois pensadores emblemáticos
da cultura brasileira: o escritor, musicólogo, etnólogo, folclorista e gestor cultural Mário
de Andrade e o médico psiquiatra, e psicólogo social antropólogo e “africanista” Arthur
Ramos, nascido em Pilar, Alagoas em 1903 e falecido em Paris, em 1949, seis meses
depois de assumir o então recém-criado Departamento de Ciências Sociais da
UNESCO.

Se Mário o primeiro fincara seu nome como símbolo de vanguarda estética,


encabeçando o movimento modernista nos anos 1920, ao segundo coube um lugar
pioneiro e de inflexão nos estudos sobre o negro e a presençaa cultura de matriz
africana no Brasil, bem como na na institucionalização da das ciências sociais no
paísantropologia no país.

Mário e Arthur Ramos possuíam como traço comum o espírito fecundo, inquieto,
polivalente, dotado de vasta erudição e de uma forte sensibilidade interdisciplinar a que
hoje chamaríamos, com Edgar Morin, de “pensamento complexo”; conciliaram o talento
como pesquisadores, professores, polígrafos e escritores profícuos com a atuação na
gestão pública e na vida acadêmica; ambos são igualmente donos de arquivo epistolar
volumoso e de incontestável interesse para a história da cultura e das ciências sociais.

Nesta comunicação, pretendo comentar alguns elementos presentes na pesquisa


que venho desenvolvendo sobre a correspondência que os dois homens mantiveram por
quase dez anos, quando residiam, respectivamente, em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Surpreende, portanto, a escassez de trabalhos sobre a correspondência de Arthur


Ramos. Por ora, verificou-se um único trabalho, Cartas de Édison Carneiro a Artur
Ramos (1987), organizado pelos pesquisadores baianos, Waldir Freitas de Oliveira e
2

Vivaldo da Costa Lima, que apresenta somente a correspondência anotada de Edison


Carneiro a Arthur Ramos. Não há menção à localização das fontes consultadas. No
entanto, 42 (quarenta e duas) cartas de Edison Carneiro a Arthur Ramos, e 7 (sete)
deste último ao notável estudioso e defensor do candomblé na Bahia encontram-se no
Arquivo Arthur Ramos (FBN). Os organizadores selecionaram 35 documentos, a fim de
destacar o papel desempenhado pelos correspondentes no âmbito dos “estudos
africanistas” da Bahia nos anos 1930, especialmente no tocante às pesquisas e à defesa
dos cultos afro-brasileiros como o candomblé, num período em que o povo-de-santo
lutava para praticar livremente sua religião, àquela altura severamente reprimida
(IBIDEM). Sendo este o único conjunto de cartas da correspondência (passiva) de Arthur
Ramos publicada até o momento, o público de especialistas e demais interessados
continuam privados das trocas epistolares em mão dupla que, sem dúvida,
acrescentariam outros significados à interpretação dos documentos. Mais recentemente,
temos, de Antonio Sérgio Guimarães, professor titular do depto de sociologia aqui da
USP, o artigo “Comentários à correspondência entre Melville Herskovits e Arthur Ramos
(1935-1941)”, no qual o autor tece considerações sobre a volumosa correspondência
entre os dois cientistas - e o intercâmbio de informações no campo da antropologia e
dos estudos dedicados ao negro no Brasil e nas Américas 1.

Uma visão geral da correspondência de Arthur Ramos atesta de sua importância


no Brasil bem como sua projeção no exterior, suas redes de colaboração e de mútua
influência. Dentre os correspondentes do médico e antropólogo brasileiro, destacam-se,
entre os brasileiros Edison Carneiro, Mário de Andrade e Dante de Laytano; mas seus
principais correspondentes são estrangeiros o que permite medir solidez dos laços de
amizade e o prestígio de Ramos junto a renomados scholars, como ele voltados para os
temas “africanistas”, como o porto-riquenho Richard Pattee, estudioso de culturas
negras nas Américas e principal divulgador da obra de Arthur Ramos nos EUA 2 [ Pattee
traduziu O Negro Brasileiro para o inglês em 1939 e no arquivo A. Ramos existem 54
cartas de Pattee [ maior correspondência passiva] e 24 rascunhos de cartas de Arthur
Ramos para ele; ainda em relação à correspondência passiva, em segundo lugar

1 A respeito dos manuscritos e do acervo consultado, escreve o autor: “Nos arquivos da biblioteca
da Northwestern University, em Evanston, Illinois, estão os papéis de Melville Herskovits; entre eles, a
correspondência trocada entre este e Arthur Ramos, no período que vai de 31 de dezembro de 1935 a 24
de julho de 1941. São 22 cartas escritas por Ramos, em português, conservadas no papel de carta original
e 25 escritas por Herskovits, em inglês, conservadas em cópia de carbono” (p. 3).
2
Dados colhidos no levantamento de correspondências em Arquivo Arthur Ramos..., op. cit.
3

encontra-se Melville Herskovits3, considerado o pai fundador dos estudos afro-


americanos em seu país, discípulo de Franz Boas e autor de estudos pioneiros e
interdisciplinares sobre o negro americano, bem como sobre as culturas africanas e afro-
americanas, estudos que se tornarão forte referência para Ramos que recebeu 46
cartas4 [no arquivo existem 25 rascunhos] ; e, por fim, é preciso ainda mencionar a
Roger Bastide (25 cartas na correspondência passiva e 7 rascunhos de cartas de AR),
conjunto praticamente inexplorado [orientei um TCC na UNIFESP em que uma aluna analisou
as cartas de Bastide a AR no ano de 1938].

Nos colóquios anteriores apresentamos comunicações sobre a correspondência


de RB a Mário de Andrade, de 1938 a 1944, a partir da consulta feita aos documentos
conservados no IEB e da pesquisa de Iniciação Científica desenvolvida por uma aluna
na UNIFESP. E achamos bastante curioso o fato de Bastide então, poucos meses após
sua chegada ao Brasil, em carta de 6 de julho de 1938, pede a Mário de Andrade o
endereço de Arthur Ramos, ao qual ele escreve em 20 de julho, solicitando informações
biográficas para a redação de um artigo sobre os trabalhos do antropólogo alagoano; na
carta, Bastide se diz interessado sobre como AR – eu cito – “foi levado ao estudo dos
negros brasileiros” depois de “[começar] pelas pesquisas médicas e psicanalíticas” [fim
da citação]5; nesta mesma mensagem, o professor recém-chegado, anuncia seu
interesse por temas de pesquisa no Brasil, para os quais Arthur Ramos era referência
fundamental, razão pela qual não poderia prescindir de suas orientações : [eu cito]

Durante a minha permanência no Brasil, eu gostaria (...) de dedicar a


maior parte de minhas horas de folga ao estudo dos negros e em
particular sobre a vida religiosa deles. É um tema fascinante e a leitura
de suas obras [acabaram] reforçando em mim esta paixão. Só que
neste mundo das coisas afro-brasileiras, um guia é necessário e se [não]
o incomodar demais ser de vez em quando para mim este guia
experiente e perspicaz, seria para mim uma grande honra e [eu] lhe
ficarei muito grato.

3
GUIMARÃES, Antonio Sérgio. “Comentários à correspondência entre Melville Herskovits e Arthur Ramos
(1935 -1941).
Fonte:http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Coment%E1rios%20%E0%20correspond%EAncia%20entre
%20Herslovits%20e%20Ramos.pdf (consulta feita em 01/03/2013)
4
GUIMARÃES, Antonio Sérgio. “Comentários à correspondência entre Melville Herskovits e Arthur
Ramos (1935-1941; ver Referências Bibliográficas).
5
Tradução nossa.
4

O pedido feito em caráter privado por um estrangeiro que, embora docente de uma
universidade, na carta se coloca humildemente em posição de aprendiz perante o
reconhecido mestre brasileiro, subjaz, de certa forma, na declaração de caráter público
presente vinte anos depois, em 1958, no prefácio de RB para obra póstuma de AR -
Estudos de Folk-lore: Definição de Limites Teorias de Interpretação. Ele diz:

“À peine arrivé au Brésil en 1938, je lui avais écrit, puis j'étais allé le
voir, et tout de suite une grande amitié était née. Ce maître des études
africanistes fut toujours pour moi le plus précieux des inspirateurs et le
plus sûr (sic) guides”.6

Portanto, de a declaração de Bastide apenas reforça uma evidência : Arthur Ramos, que
àquela altura já havia publicado trabalhos importantes – conforme vimos rapidamente
em sua bibliografia - é, sem dúvida, tido como o maior – e incontornável - “africanista”
brasileiro.
Eu ainda teria uma surpresa, examinando os livros de Bastide no acervo de
Mário, na Biblioteca do IEB, quando me deparei com a dedicatória inscrita na obra
Éléments de sociologie religieuse (Paris, 1935) – : “Ao grande romancista e africanista
brasileiro, Mário de Andrade, como prova de admiração, Roger Bastide”. Vemos, então,
que se Mário admitiu ter trezentas, trezentas e cincoenta facetas, Bastide lhe agregou
mais uma, que raramente, para não dizer quase nunca, lhe é atribuída. E é essa
percepção de um olhar francês que me inspirou o título da minha comunicação, pois,
para mim, a correspondência entre Mário e Arthur pode ser “ouvida” como uma
conversa de “africanistas”.

No total, durante a pesquisa, levantamos, entre 1933 e 1944,

6
RAMOS, Arthur. In: Estudos de Folk-lore: Definição de Limites Teorias de Interpretação. Prefácio de
Roger Bastide. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1958 – 2ª edição, p. 7.
5

CORPUS qtde local25 correspondências (cartas, bilhetes, telegramas, cartões


postais), de Arthur Ramos a Mário de Andrade localizadas no Arquivo IEB-USP e 21
correspondências (cartas, telegramas, cartão), de Mário de Andrade a Arthur Ramos
localizadas na Biblioteca Nacional.
- o que está efetivamente disponível na BN Digital não reflete a realidade do
acervo : equívocos a que podemos ser induzidos; comparação com o inventário ; acesso
aos documentos;
- microfilmagem; manuseio dos documentos; materialidade do documento um
pouco comprometida; fotografia : só da tela do microfilme e não do documento;
- não há “regra” - ao menos não obtive explicação – sobre os critérios para
disponibilização das peças digitalizadas na BN digital
- tudo isso, a meu ver, contribui para que o Arquivo Arthur Ramos continue sendo
um tesouro submerso
- sem querer puxar a sardinha para nossa brasa, e guardadas as devidas
proporções, acredito que temos condições excepcionais para consulta de documentos
conservados no IEB, e acho que estas condições influenciam diretamente as condições
para o preparo de edições como tem sido o caso da correspondência de MA e de outros
escritores, artistas e intelectuais cujos arquivos se encontram aqui ao lado.

A reconstituição desse diálogo epistolar é fecunda sob vários aspectos:


primeiramente por revelar que a temática afro-brasileira, ou seja, os estudos pioneiros
sobre o negro e as culturas negras desenvolvidos por Arthur Ramos ocupam um lugar
central e nutrem o interesse profundo e genuíno de Mário pelo tema sobre o qual ele se
debruça desde os anos 1920, como o apontam os trabalhos de Ângela Grillo sobre o
dossiê “Preto” e o negro na perspectiva e através de iniciativas concretas empreendidas
por Mário. Portanto, nesses bastidores epistolares é possível observar mais
detalhadamente como se constrói a colaboração entre ambos, especialmente no período
em que Mário encontra-se à frente do Departamento de Cultura, entre 31 de maio de
1935 e 9 de maio 1938; esta última data tem um simbolismo agravado não só pela
maneira dramática com que Mário é afastado do cargo pelo Estado Novo, mas pelo fato
de sua exoneração ter abortado o conjunto das manifestações previstas para os festejos
do Ccinquentenário da Abolição, que previa a participação ativa de Arthur Ramos7.

7
A. Grillo. Sambas Insonhados, p. 43-45.
6

Observamos também que os dois correspondentes se mantêm atualizadíssimos em


relação às produções recíprocas no campo da literatura, da etnografia, do folclore, da
música e da psicanálise, lembrando que Arthur Ramos é considerado um dos
introdutores desta última no Brasil – a biblioteca de Mário possui mais de 20 obras do
antropólogo alagoano, a maioria com dedicatórias, e embora não ; Mário de Andrade,
enquanto chefe do departamento de cultura, solicita a colaboração do amigo na Revista
do Arquivo Municipal, promove ainda palestras do amigo antropólogo no âmbito da
Sociedade de Etnografia e Folclore por ele criada com o apoio da etnóloga Dinah Lévi-
Strauss, sempre no intuito de garantir que os estudos sobre o negro fossem abordados
pelo principal especialista brasileiro. Nas entrelinhas transparece também a figura da
esposa de Arthur Ramos, Luíza Ramos (viúva do músico e musicólogo Luciano Gallet,
amiga e ex-aluna de Mário que a apresentou ao antropólogo alagoano) que tem um em
filigrana, detecta-se o papel discreto porém fundamental, na formaçãona qualidade do
vínculo estabelecido entre os dois homens. , da esposa de Arthur Ramos, Luísa Ramos
(viúva do músico e musicólogo Luciano Gallet, amiga e ex-aluna de Mário que a
apresentou ao antropólogo alagoano), etc. Do início ao fim, não há estranhamentos e a
correspondência entre Mário e Arthur Ramos, além de refletir uma frutuosa parceria, se
tece de admiração , galhardia e reverência mútuas.

O encontro de Mário de Andrade com Arthur Ramos ocorre nos anos 1930 que
dão ensejo a eventos marcantes, como os Congressos Afro-Brasileiros de 1934 (Recife)
e de 1937 (Bahia), bem como a produção de obras seminais que destacam a
contribuição africana para a formação da diversidade racial e cultural do país. O
surgimento de Casa-grande & senzala (1933) inscreve um dos mais persistentes
paradigmas de interpretação do Brasil, o da “democracia racial”, da qual Gilberto Freyre
aparece em geral como autor emblemático. Apesar de polêmica, a repercussão da obra
freyriana encobriria parcialmente, ao longo do tempo, outras visões e o papel de
estudiosos que produziram trabalhos pioneiros sobre o negro e as tradições afro-
brasileiras, denunciando e combatendo “preconceito”. Arthur Ramos é um dos mais
dinâmicos “líderes da mudança”8 num período em que o “desenvolvimento dos estudos
africanistas” é visto como uma das “manifestações mais significativas da atividade
intelectual e da produção científica” do país9. Reconhecido nacional e
internacionalmente, é considerado o precursor, a “alma” do “estudo científico” do negro

8
Thomas Skidmore, Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1976, p. 209.
9
“Introdução de Richard Pattee”. In: Arthur Ramos. O negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro:
Casa do Estudante do Brasil, 1956, p. 5.
7

no Brasil, na afirmação de Richard Pattee, um dos principais divulgadores de Arthur


Ramos nos Estados Unidos onde a primeira publicação sobre o negro brasileiro foi o seu
The Negro in Brazil (1939)10. O próprio Gilberto Freyre, cujos métodos de análise e
interpretações eivadas de um “lirismo regressivo [e] proustiano” foram severamente
criticados pelo colega alagoano (RAMOS, 1937:9), admitiria em 1950 que, desde 1934,
considerava Arthur Ramos o “maior africanologista brasileiro” (FREYRE, apud CAMPOS,
2002:36). Esses anos de mudança contam com o impulso decisivo de Arthur Ramos e
coincidem com mudanças em sua própria carreira: formado em Medicina (psiquiatria) em
1926, volta-se mais tarde para a etnologia-antropologia e, por alguns anos, se dedicará
quase exclusivamente a pesquisas sobre o negro, produzindo trabalhos que logo se
tornam referências sobre o tema. De 1934 a 1939, Arthur Ramos lança quatro obras 11 -
O negro brasileiro: etnografia religiosa (1934); O folk-lore negro do Brasil (1935); As
culturas negras no Novo Mundo (1937); O negro na civilização brasileira (1939) - nas
quais se propõe a recensear e analisar influências africanas na religião, na música, nas
crenças, nos contos, na língua e na própria expressão corporal dos brasileiros, aspectos,
segundo ele, reveladores de um “sincretismo” observado em outras regiões das
Américas. Em geral, o erudito antropólogo expõe, em suas obras, as novas teorias,
métodos e abordagens das correntes a que se afilia, da psicanálise à antropologia
cultural, com as quais busca ampliar o escopo e a dimensão científica dos campos
estudados. Vale lembrar que, do ponto de vista teórico, os anos 1930 marcam-se pela
introdução da antropologia cultural norte-americana no Brasil. Conceitos como
“aculturação” e “sincretismo” passam a ser usados para dar conta de fenômenos da
multiétnica sociedade brasileira. Os trabalhos de Melville Herskovits, discípulo de Franz
Boas e autor de estudos pioneiros e interdisciplinares sobre o negro americano, bem
como sobre as culturas africanas e afro-americanas em geral, tornam-se uma forte
referência para Ramos que com ele manteve um intenso diálogo epistolar 12.
Paralelamente aos seus próprios trabalhos, Arthur Ramos contribui igualmente para o
desenvolvimento dos estudos africanistas por meio de seu papel de editor: em 1934,
dirige a coleção “Biblioteca de Vulgarização Científica”, na Civilização Brasileira, onde
publica O animismo fetichista dos negros da Bahia e outras obras de seu antigo mestre,
Nina Rodrigues; Costumes africanos no Brasil, de Manoel Querino; Religiões Negras e

10
Ibid., p. 11 e 12. The Negro in Brazil foi publicado nos EUA em 1939, quando Arthur Ramos lecionava
na Universidade de Louisiana e só mais tarde sairia em português. A título de comparação, a tradução em
inglês de Casa-grande & senzala (The Masters and the slaves) foi publicada em 1946.
11
Este ciclo se completa, na década seguinte, com A aculturação negra no Brasil (1942).
12
GUIMARÃES, Antonio Sérgio. “Comentários à correspondência entre Melville Herskovits e Arthur
Ramos (1935-1941; ver Referências Bibliográficas).
8

Negros Bantus, de Edison Carneiro; Xangôs do Nordeste, de Gonçalves Fernandes; O


português do Brasil, de Renato Mendonça que destaca os africanismos presentes em
nosso idioma, Novos estudos afro-brasileiros: trabalhos apresentados ao 1º Congresso
Afro-brasileiro do Recife, entre outros.
Gostaria, então, de mostrar e comentar alguns trechos de cartas:

(Power Point)

Justificativa
Em 1946, um ano após a morte de Mário de Andrade, Antonio Candido antevê
que um dos legados mais importantes do escritor será a sua epistolografia, de caráter
excepcional dentro da literatura brasileira. Segundo o crítico, “[aquela] correspondência
encherá volumes e será porventura o maior monumento do gênero, em língua
portuguesa: terá devotos fervorosos e apenas ela permitirá uma vista completa da sua
obra e do seu espírito”13. A correspondência de Mário de Andrade, lacrada em 1945, a
pedido do próprio escritor, só foi dada a público em 1995, cinquenta anos após a sua
morte.
Dentro das cartas ou mesmo em outros escritos, desde os anos 1920 Mário tece
reflexões sobre o gênero epistolar e seu lugar na produção intelectual do país. Para ele,
assim como o Modernismo representa uma reviravolta em vários aspectos, o escritor
paulista atribui a este movimento a emergência da epistolografia como prática entre
escritores. No ensaio “Amadeu Amaral”, constata: “(...) a literatura brasileira só principiou
escrevendo realmente cartas, com o movimento modernista. Antes, (...) os escritores
brasileiros só faziam 'estilo epistolar' (...) Mas cartas com assunto, falando mal dos
outros, (...), contando coisas, (...) discutindo problemas estéticos e sociais, (...) só
mesmo com o modernismo se tornaram uma forma espiritual de vida em nossa
literatura”14. Pode-se dizer que foi o próprio Mário de Andrade quem deu às cartas essa
“forma espiritual de vida”, confessando ele próprio sofrer de “gigantismo epistolar” 15,

intuindo que as cartas constituiriam parte considerável de sua obra.


O autor de Pauliceia desvairada foi um grande missivista, talvez o maior até o
momento, como comprovam as 7688 mil cartas trocada, entre 1914 e 1945 (ano de seu
falecimento) com cerca de 1400 remetentes, conjunto no qual pessoas comuns figuram

13
CANDIDO, Antonio. “Mário de Andrade”, Revista do Arquivo Municipal, n. 106. (Ed. fac-similar nº 198.
São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico, 1990, p. 69) apud ANDRADE, Mário. Correspondência
de Mário de Andrade & Manuel Bandeira, op. cit., p. 19.
14
ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho.São Paulo: Martins; Brasília: INL/MEC, 1972, p. 182-
3.
15
ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade.
Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 23.
9

ao lado dos nomes mais representativos da vida intelectual brasileira (LOPEZ, 2000:
276). Mário correspondia-se com escritores, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond
de Andrade; artistas plásticos como Tarsila do Amaral; músicos como Heitor Villa-Lobos
e Camargo Guarnieri; cientistas sociais como Arthur Ramos e Roger Bastide. As cartas
atestam a influência que exerceu em vários campos ao longo de mais de vinte anos, nas
trocas com destinatários que se dirigiam ao escritor, ao musicólogo, ao folclorista, ao
gestor cultural, ao professor, ao ...amigo. Várias de suas correspondências - passiva e/
ou ativa, em mão única ou mão dupla - foram e continuam sendo editadas e/ou
reeditadas, e seu baú guarda ainda muitos inéditos.
O Arquivo Arthur Ramos, vendido pela viúva Luiza Ramos em 1956, é um dos
maiores hoje abrigados na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional e permanece
inexplicavelmente inexplorado. Reúne cerca de 5000 documentos, em sua maioria
manuscritos: correspondência passiva e ativa; originais de estudos sobre medicina legal,
psiquiatria, antropologia, folclore, etnografia; fotografias; recortes de jornal, etc. Com
base no levantamento publicado em 200416, a correspondência ativa é formada por
cerca de 510 cartas, inúmeras delas redigidas em inglês; a correspondência passiva é
superior a 2600 cartas recebidas de amigos, autoridades, instituições, pesquisadores e
colaboradores estrangeiros. O conjunto demonstra a habilidade de Arthur Ramos em
criar laços e multiplicar seus interlocutores, habilidade explicável por tratar-se,
igualmente, de um epistológrafo compulsivo. Suas cartas parecem menos uma “paixão
sublime”17 do que um recurso eficaz de trabalho. Desconhecem-se estudos que tenham
efetuado uma análise geral da correspondência de Arthur Ramos que atesta, além de
sua importância no Brasil e sua projeção no exterior; através das cartas pode-se
igualmente observar suas redes de colaboração e de mútua influência. Dentre os
correspondentes do médico e antropólogo brasileiro, destacam-se, no plano nacional,
Mário de Andrade, Edison Carneiro, Dante de Laytano, Câmara Cascudo; no plano
internacional, além do exemplar único de uma carta de Freud e uma do fundador da
antropologia cultural, Franz Boas, pode-se medir, através das trocas epistolares, a
solidez dos laços de amizade e o prestígio de Ramos junto a renomados scholars, como
ele voltados para os temas “africanistas”: Melville Herskovits18, pai fundador dos estudos

16
Arquivo Arthur Ramos: inventário analítico. Organização Vera Lúcia M. Faillace; introdução Luitgarde O.
Cavalcanti Barros. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.
17
ANDRADE, Mário de. Correspondência de Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Organização,
introdução e notas Marco Antonio de Moraes. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 20.
18
GUIMARÃES, Antonio Sérgio. “Comentários à correspondência entre Melville Herskovits e Arthur
Ramos (1935 -1941).
Fonte:http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Coment%E1rios%20%E0%20correspond%EAncia%20entre
%20Herslovits%20e%20Ramos.pdf (consulta feita em 01/03/2013)
10

afro-americanos em seu país, o porto-riquenho Richard Pattee, estudioso de culturas


negras nas Américas e principal disseminador da obra de Arthur Ramos nos EUA, ou
ainda Donald Pierson, autor de pesquisas seminais sobre as relações raciais na Bahia e
em São Paulo19. Pode-se assim imaginar as estratégias usadas por Ramos a fim de
divulgar suas pesquisas “científicas” sobre o negro brasileiro e as culturas africanas, de
entabular uma verdadeira troca de ideias, de métodos, de teorias, tendo como
consequência a valorização do objeto principal sobre o qual constrói, ainda em vida, sua
legitimidade e reputação no Brasil e para além de suas fronteiras.

Até o momento, registra-se apenas 1 (uma) obra dedicada à edição de uma


correspondência passiva: as Cartas de Edison Carneiro a Arthur Ramos (1987). Este
elucidativo e riquíssimo trabalho realizado por dois eruditos pesquisadores baianos,
Waldir Freitas de Oliveira e Vivaldo da Costa Lima, não se propunha, como esclarecem
os organizadores, a ser um “trabalho exaustivo de epistolografia crítica” (OLIVEIRA e
LIMA, 1987: 39). Segundo o prefaciador, Thales de Azevedo, o propósito da obra, que
nascera por “iniciativa oportuna da viúva Madalena Carneiro”, era apresentar a
correspondência anotada “somente [por parte] do estudioso baiano”. Não há menção da
localização das fontes consultadas. No entanto, 42 (quarenta e duas) cartas de Edison
Carneiro a Arthur Ramos, e 7 (sete) deste último ao notável estudioso e defensor do
candomblé na Bahia encontram-se no Arquivo Arthur Ramos (FBN). Desse conjunto,
Freitas e Lima selecionaram 35 documentos, a fim de destacar o papel desempenhado
pelos correspondentes no âmbito dos “estudos africanistas” da Bahia dos anos 1930, em
particular no tocante às pesquisas e à defesa dos cultos afro-brasileiros como o
candomblé, num período em que o povo-de-santo lutava para praticar livremente sua
religião, àquela altura severamente reprimida (IBIDEM). Sendo este o único conjunto de
cartas da correspondência (passiva) de Arthur Ramos publicada até o momento, o
público de especialistas e demais interessados continuam privados das trocas
epistolares em mão dupla que, sem dúvida, acrescentariam outros significados à
interpretação dos documentos.
Conclusão:

19
Dados colhidos no levantamento de correspondências em Arquivo Arthur Ramos..., op. cit.
11

As cartas de Arthur Ramos a Mário de Andrade são uma peça importante do


“monumento” epistolar do polígrafo paulista. O mesmo valor têm as cartas deste ao
médico e antropólogo alagoano. A edição da correspondência entre esses dois nomes,
ligados pelo interesse por novos temas, abordagens e interpretações relativas aos
estudos sobre o negro e o combate ao “preconceito de cor”, espera, por um lado, revelar
temas diferentes dos que habitualmente se encontram nas cartas até agora conhecidas
de Mário de Andrade; e, por outro, descortinar este “monumento” da história da cultura e
das ciências sociais brasileiras que é a epistolografia, tão pouco explorada, de Arthur
Ramos.
Presume-se que este fértil diálogo epistolar trará, subsidiariamente, informações
pertinentes à atual conjuntura na qual se busca ampliar o conhecimento da história e da
cultura africana e afro-brasileira, conforme previsto na lei 10.639/03.

Descrição do Corpus
O corpus da pesquisa compõem-se de:
- 21 correspondências (cartas, telegramas, cartão), de Mário de Andrade a Arthur
Ramos; de [s.m.]1933 a 04/04/1944. Localização: Arquivo Mário de Andrade (IEB-USP)
- 25 correspondências (cartas, bilhetes, telegramas, cartões postais), de Arthur
Ramos a Mário de Andrade; de 26/12/1933 a 10/04/1944. Localização : Arquivo Arthur
Ramos (FBN)*
- Total : 46 documentos.
*: Apenas 09 (nove) cartas de Mário de Andrade encontram-se disponíveis na BN-Digital.

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