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expressao “sistema histérico” nao costuma ser usada nas ciéncias so- ciais. Na verdade, em geral a maioria dos cientistas sociais a considera- ria anémala. OS que enfatizam o histérico minimizam em larga medida ou negam o sistémico. Os que enfatizam 0 sistémico normalmente ignoram 0 hist6rico. Nao que, na qualidade de questao abstrata, nao se reconhega a im- portancia de reconciliar essa dicotomia ou distingéo padrao entre 0 estatico e o dinamico, o sincrénico e 0 diacrénico, Feita a reveréncia, na pratica tem havido forte pressdo institucional para seguir numa ou na outra diregao daquilo que, no final do século XIX, foi chamado de 0 Methodenstreit entre as formas idiografica e nomotética de saber académico no dom{nio da vida social. Mesmo assim, parece Gbvio, ao menos a meus olhos, que tudo aquilo que € histdrico é sistémico e tudo aquilo que é sistémico é histérico. Todos os fend- menos complexos tém suas regras, restrigdes, tendéncias ou vetores, isto é, suas estruturas, Toda estrutura real (em oposigao as imaginadas) tem suas particula- ridades, decorrentes de sua génese, de sua histéria de vida e de seu ambiente, tendo portanto uma histéria que é central a seu modo de funcionamento. Quanto mais complexa a estrutura, tanto mais crucial sua histéria. A dificuldade nao é afirmar isso como alguma verdade metaffsica, mas manipular essa verdade em nosso estudo de todo fendmeno complexo real. Minha maneira de resolver isso é conceber o mundo social como uma sucesso e uma coexisténcia de muiltiplas en- tidades de larga escala e longa duragao que chamo de sistemas historicos. Esses * Edigdo original:1987. N-T. 266 © A ANALISE DOSSISTEMAS-MUNDO COMO IMPENSAR sistemas exibem trés caracteristicas definidoras: sao relativamente auténomos, isto é, funcionam primordialmente em termos das conseqiiéncias de processos de seu préprio interior; apresentar fronteiras temporais, quer dizer, tm um comeco eum fim; tém fronteiras espaciais que, no entanto, podem mudar no curso de sua histéria de vida. Isso parece simples, talvez 6bvio. Traz consideraveis problemas quando se deseja operacionalizar esses critérios e, na verdade, a historiografia dos uiltimos 150 anos esta cheia de debates sobre fronteiras sistémicas de sistemas histéricos particulares, embora essa linguagem costume ser evitada. Tenho tentado abordar a questo das fronteiras partindo da divisao social do traba- Tho, das condigdes de garantia da sobrevivéncia social. Suponho que um siste- ma histérico tem de representar uma rede integrada de processos econémicos, politicos e culturais cuja soma mantém {ntegro o sistema. Isso presume que, se os parametros de algum processo particular mudarem, os outros processos tém de alguma maneira de ajustar-se. Essa banalidade nos permite, nao obs- tante, localizar aquilo que est fora do sistema histérico. Se algo pode aconte- cer ou acontece na zona X, uma zona considetada ou suspeita de ser parte de um dado sistema histérico no tempo Y, ¢ o resto do sistema na verdade ignora esse acontecimento, ou evento, a zona X esté fora desse sistema histérico, em- bora possa parecer haver alguma interacio social visivel entre a zona X e esse sistema. Talvez se eu traduzir essa afirmacao na discussdo de uma questio concreta, a idéia fique mais clara. No meu livro sobre a economia-mundo eu- ropéia no longo século XVI, aleguei que a Polénia pode ser considerada parte de sua divisdo social do trabalho, mas que a Riissia, nao. A bem dizer tanto a Polénia como a Rissia tinham vinculos de comércio marftimos com varios paises da Europa Ocidental (e a Polénia, também vinculos terrestres com os germanicos). Mas a diferenca entre os dois casos é que, a meu ver (e apresento algumas provas empiticas disso), toda interrupgao mais que momentanea dos vinculas entre a Polénia e, digamos, 0s Paises Baixos (uma possibilidade séria mas nao realizada em 1626-29) teria resultado numa relevante alteracao dos processos de producao em ambos os locais, ao passo que os esforcos concretos feitos pelo czar Ivan IV, nos anos 1550 e 1560, para cortar esses vinculos tal como existiam na época nao resultou, na verdade, numa tal alteracdo. Assim, podemos considerar que a Polénia e os Paises Baixos estavam localizados na OS SISTEMAS HISTORICOS COMO SISTEMASCOMPLEXOS-@ 267 época numa tnica divisao social do trabalho, mas que a Russia estava fora desse sistema histérico.! Se usarmos entéo uma escala de medidas, creio ser verdade que essas divi- sdes sociais do trabalho de carater autonomo s6 podem ser encontradas historica- mente em entidades bem pequenas, tanto em termos espaciais como temporais — denomino-as “mini-sistemas” — e em entidades de escala relativamente longa e de prazo longo — chamo-as de “sistemas-mundo”. Além disso, divido os sis- temas-mundo em duas grandes variantes estruturais: os que dispdem de uma ‘Ginica estrutura politica abarcadora, os impérios-mundo, e os que nao dispéem dessa estrutura, as economias-mundo (WALLERSTEIN, 1979, cap. 9; WALLERS- TEIN, 1984, cap. 14). Creio que, em nossos dias, nao sabemos quase nada sobre os modos de funcionamento dos mini-sistemas. A causa disso é que na minha opinido eles ja nao existem. Por outro lado, creio que a maioria de que tem sido descrito como mini-sistemas tém sido na verdade meros componentes locais do sistema-mun- do, dado que um dos pré-requisitos de seu estudo parece ter sido até o momento sua inclusdo num sistema-mundo. Por fim, creio que esses mini-sistemas tiveram vida curta e, quase por definicéo, eram desprovidos de meios para registrar sua histéria de vida. Por conseguinte, vemo-nos diante de um problema que os fisicos enfrentaram ao tentar estudar as particulas, entidades extremamente diminutas de curta existéncia. Talvez um dia criemos formas de perceber essas particulas (os mini-sistemas), que ocupam uma parcela tio grande da historia social da hu- manidade, mas nao parecemos capazes disso no momento presente. Logo, 0 que tenho a dizer refere-se primordialmente a sistemas-mundo. Comeco observando a ocorréncia de uma mudanca histérica na relagéo dos impérios-mundo com as economias-mundo. De mais ou menos 10000 a.C. a mais ou menos 1500 d.C., existiu (e coexistiu) um nimero amplo mas computavel desses sistemas-mundo (assim como um numero desconhecido, provavelmente muito grande, de mini-sistemas). Nesse perfodo, a forma império-mundo parecia “mais forte” do que a forma sistema-mundo, dado que, com alguma regulari- » Para os detalhes de minha discussdo, ver Wallerstein (1974, cap. 6, passim € esp. P. 304- 05, 315). Para uma concepgao que discute comigo empiricamente sobre se a Rissia era ou nao, no longo século XVI, parte da economia-mundo européia, ver Nolte (1982, p. 32-48). oO

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