Você está na página 1de 37

CAPÍTULO 3 - "A LÂMPADA DOS NOSSOS OLHOS": A CONSTRUÇÃO DO

MODELO DE VIRGINDADE E DE MULHER EM VSM.

3.1. MODELO DE CONDUTA FEMININA: A CONSTRUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO


DE MACRINA.

Como vimos anteriormente, a função da biografia antiga era de construção de


modelos de conduta, seja filosófica, ascética, política, etc. Ela tinha por pontos principais a
exaltação do caráter de personagens, coletivos ou individuais. O cristianismo se utilizou bem
desse gênero gráfico para transmitir seus ensinamentos, conselhos e ideais. A apropriação
cristã deste gênero chegou ao ponto de investir em um modelo biográfico próprio que tinha
por personagens principais indivíduos que começavam a ser venerados dentro da liturgia
cristã, os santos, herdeiros e sucessores dos antigos mártires, os quais suas representações
desenvolveram um imaginário complexo e até mesmo místico dentro da nova religião.
A hagiografia, desenvolvida e aprimorada a partir dos gêneros biográficos como
da bios e do economium, contraindo elementos temáticos da biografia filosófica e de ideais
das correntes filosóficas presentes no momento, serviram fortemente para o ensino de valores
e comportamentos para os monges e virgens cristãs.
A biografia em questão, Vida de Macrina, é fruto da transição entre o modelo
pagão e cristão de biografia, e que tinha, como era de se esperar, a intenção de elaborar uma
representação da mulher exemplar, ou melhor, da cristã exemplar. Para isso, o autor se
utilizou de elementos que distinguem esta como exemplo para as demais moças, mas que ao
mesmo tempo atraísse a essas outras a tentar se igualar a ela.
Monique Alexandre (1990) afirma que sobre a imagem da mulher existe uma
oscilação entre a condenação e a exaltação. Nessa ideia, duas figuras principais surgem nas
representações da mulher no contexto cristão, Eva e Maria. Contudo a relação entre esses
dois elementos é bem mais complexa do que se acreditava. Em uma mesma personagem pode
estar presente, por exemplo, as características de ambas as figuras representativas (Eva e
Maria).
Para além disso, temos que impor um aprofundamento que consiste na
diferenciação dos gêneros apresentados nas representações de mulheres na antiguidade.
Durante esse período houve uma polarização, uma contraposição entre as características
inerentes ao feminino e ao masculino, em que se associa ao feminino e à mulher com a
natureza, a fraqueza, a matéria, especialmente ao carnal, a resposta a estímulos sensoriais e a
passividade; enquanto o masculino, o homem, é identificado com a civilização, a força, o
espírito, a superação dos instintos e as paixões através do exercício da razão e da inteligência
e do humor ativo. Essas características determinam a inferioridade do feminino, em relação
ao masculino e, consequentemente, a sua dependência e sujeição. (PEDREGAL, 2005)
O uso da escrita, o poder sobre a escrita, esteve constantemente sobre a
dominação masculina. Na maioria dos casos, às mulheres eram, de forma geral, passivas no
campo da cultura escrita. Pelo menos era o que se esperava delas. Portanto a maior parte do
conhecimento acerca das mulheres e do feminino é dado à nós por fontes de origem
masculina, ou seja, a maior parte das fontes escritas (principal categoria de fonte utilizada
nesta pesquisa) sobreviventes é de autoria de homens.
Isso é um tanto problemático, pois a visão que temos sobre o feminino é
basicamente, idealizada e normativa, ou seja, tem objetivos de educar e controlar os
comportamentos, ações e posicionamentos das mulheres, refletindo um sistema ideológico
patriarcal dominante. Para alcançar tais objetivos, os autores cristãos se utilizaram de vários
elementos figurativos, ou representativos, para caracterizar a figura feminina ideal. Contudo,
numa análise aprofundada dessas fontes é possível perceber mais sobre os homens e suas
expectativas coerentes com seu tempo do que sobre as personagens representadas.
Essa representação “ideal” surge sobretudo a partir da definição de estereótipos e
de modelos, segundo os quais funções, status, práticas, etc., são ajustados. A construção
desses modelos é uma criação social, que reflete a certas coordenadas históricas.
(PEDREGAL, 2005). Grande parte dessas representações dão certo destaque as diferenças
sexuais e genéricas.
Gregório de Nissa, na produção de VSM também tenta construir esse ideal de
mulher, mostrando o exemplo de sua irmã. Suas intenções de apresentar um modelo a ser
imitado pode ser percebido ao se fazer uma leitura atenta ao texto e ao contexto de sua
produção. Dentro de nossa análise percebemos, evidentemente, a presença de não apenas uma
diferenciação sintética dos sexos, apresentando representações definidas de cada sexo, mas
algo mais parecido como uma teia de relações de elementos característicos de cada gênero,
que compõe uma complexa representação de personagens. Talvez Gregório não tivesse
consciente dessa teia de relações de gênero formada, nem fosse sua intenção construí-la, mas
movido por influências de seu tempo, ele produziu uma obra riquíssima para análise dessas
representações.
Nessa obra, os gêneros feminino e masculinos, estão presentes nos personagens,
independente de suas condições sexuais. Nosso enfoque portanto pode aparentemente está na
idealização de uma mulher composta por elementos masculinos, saudáveis a ela, e elementos
femininos, um conflito interno quanto a sua natureza, mas muito disto é fruto das discussões
sobre o feminino de seu contexto.
As sociedades patriarcais antigas normalmente definiam a situação das mulheres
em virtude de critérios biológicos, valorizando especialmente sua função como reprodutora,
ou sua vinculação sexual com o homem. Se configuraram, assim, os modelos da mãe, da
esposa, da prostituta, e da virgem, em que a ausência de atividade sexual também é
controlada pelo homem. As mulheres foram encaixadas nesses modelos, as quais tinham
funções genéricas específicas na sociedade. O cristianismo manteve esses modelos, mas
identificava a perfeição feminina no estado virginal, o que era, de certa forma, uma
transgressão às expectativas genéricas socialmente impostas a mulher na sociedade romana.
No começo do cristianismo a participação feminina aparenta ser bem maior que se
imagina. Vários são os exemplos de mulheres que participaram ativamente da organização do
cristianismo. Com o passar do tempo o protagonismo feminino começa a diminuir, surge
portanto formas de atuação femininas específicas, cargos destinados às mulheres. Nesse
contexto algumas alterações da representação de mulheres sugere a reformulação de dois
ideais para as mulheres, o ideal masculino e o ideal angelical, ambos ligados, de alguma
forma, a condição virginal da mulher.
O primeiro tem por objetivo a masculinização da mulher, normalmente sem
acesso a escrita (ou diminuto acesso) e sem possibilidade de participar ativamente na
hierarquia eclesiástica, a qual se quisesse ascender à virtude teria que se convertendo em um
varão, um homem. A mulher que superasse a debilidade de seu sexo era comumente chamada
de mulier virilis. Essa metamorfose, do feminino para o masculino, era tida como uma
evolução de uma condição inferior para uma superior. (PEDREGAL, 2005).
Para exemplificar como essa masculinização se mostra no texto aqui analisado, é
preciso recorrer a um trecho em que se torna evidente essa masculinização por meios simples,
como o uso de palavras no gênero masculino para representar uma mulher. No decorrer da
narrativa (12.2), o Nisseno trata de apresentar seu irmão caçula, Pedro, que nascera num
momento difícil para a família, que tinha acabado de perder o pai, e logo depois seria a mãe.
Por conta disso, Pedro foi educado quase que exclusivamente por sua irmã, que foi para ele
“pai, mestre e tutor1, mãe e conselheira em todo bem”(Greg., Vit. Macr., 12.2). Os três
primeiros substantivos indicam uma masculinidade na representação de Macrina, os
elementos destacados indicam que o papel de passar uma educação mais elevada é
aparentemente masculino, principalmente quando se trata da educação de um rapaz. A
legitimidade de Macrina como educadora de seus irmãos é quase sempre evocada com o uso
do gênero masculino, como também no caso de Sobre Alma e Ressurreição, quando, na
apresentação da personagem, o Nisseno a chama de sua mestre, no masculino.
O ideal angelical, por sua vez, é referente a vida assexualda dos anjos, portanto a
condição virginal e casta dos fiéis. A salvação é concebida, naquele imaginário cristão, como
a recuperação de um estado assexual, uma existência semelhante a vida dos anjos (bíos
aggelikós). Em todos os momentos que Gregório apresenta esse modo de viver de acordo
com os anjos em VSM (11.2; 11.3; 12.2; 15.3) ele está falando da vida em Anesi, portanto a
vida dos anjos está intimamente ligada, na visão de Gregório, à vida dos mosteiros. A
mensagem que se quer passar é que se alguém quiser ter uma vida mais divina, o mosteiro é o
lugar certo para isso. Apenas no momento em que este apresenta um verdadeiro economium
de Macrina, mostrando surpresa por sua irmã, bastante doente e perto da morte, apresentar
reflexões tão profundas sobre a natureza da alma e a ressurreição2 (22.3) é que ele compara a
sua irmã à figura de um anjo, o trecho é bastante ilustrativo:
Mais parecia como se algum anjo tivesse adquirido a forma humana com um tipo de
encarnação para quem isso não era nada [984]. Um estranho para quem a mente
permaneceria sem perturbação uma vez que não tinha nenhum parentesco ou apego
por essa vida da carne, e então a carne não levava a mente a pensar nas suas
aflições3. (Greg., Vit. Macr., 22.3)

Para além da comparação com a vida dos anjos Gregório continua sua construção
de um modelo de conduta Gregório demonstrado, a partir de vários elementos, sua irmã
como exemplo de vida. Observada como um todo a biografia é clara na sua intenção de
mostrar a personagem principal como um modelo exemplar e ideal de vida, contudo em dois

1
Em espanhol “maestro” e “pedagogo”, o mesmo em italiano. Em inglês, por conta da natureza da própria
língua não faz diferenciação de gênero usa “teacher” e “tutor”, o que pode ter acarretado confusão à tradução
para o português que usa “professora” e “tutora”, usado o gênero feminino. Na tradução latina é usado
“magistrum et custodem”, e em grego “diaskalos” (διασκαλος) e “paidagogos” (παιδαγωγός), cujo a terminação
é um indicador de gênero masculino.
2
Conversa que o inspirou a escrever o seu Diálogo com Macrina sobre Alma e Ressurreição.
3
Na versão espanhola fica mais enfático a ideia da angelical figura de Macrina: En efecto, no me parecía cosa
humana que ella, en su último alentar, no estuviese turbada ante la perspectiva de la muerte, ni sintiese miedo
de alejarse de la vida, sino que, con un alto sentir, estuviese meditando hasta el último suspiro en aquel modo
de vivir en la tierra al que se había entregado desde el comienzo de su vida. Era como si un ángel hubiese
tomado providencialmente forma humana y no tuviese ningún parentesco ni connivencia ninguna con la vida en
la carne; un ángel así no sería extraño que mantuviese imperturbable su pensamiento, ya que la carne no tiraba
de él hacia abajo, hacia sus pasiones. (Greg., Vit. Macr., 22.3)
momentos específico Gregório faz isso de maneira mais explícita (5.4; 12.2), não sabemos ao
certo se intencionalmente.
No primeiro momento (5.4), o autor descreve a aproximação de Macrina com sua
mãe Emélia, cuidado dela em todos os aspectos, e como esta a conduz para uma vida
filosófica e mais elevada. “[...], Macrina ofrecía a su madre un maravilloso ejemplo
mostrándole la dirección hacia el mismo ideal - me refiero al de vivir según la filosofía,
atrayéndola poco a poco hacia una vida pura y desprendida de todo.”4 (Greg., Vit. Macr., 5.4.
grifo nosso). Nesse momento Gregório apresenta explicitamente que sua irmã foi um
exemplo para sua mãe, essa passagem poderia facilitar as mulheres leitoras aceitarem
também ela como exemplo de vida para elas. Se Emélia, mulher tão valorosa, como
apresentada anteriormente (2.2), tomou sua filha como exemplo, as leitoras poderiam confiar
em tomá-la como exemplo também.
Mais a frente, enquanto o autor discutia sobre a importância de Macrina para
Pedro (12.2), ele expõe o seguinte:
Pedro despreció el estudio de las ciencias profanas, pero tenía un maestro apropiado
para la enseñanza de todo lo bueno; teniendo los ojos fijos en su hermana y
habiéndosela propuesto como ideal de todo bien5, alcanzó tal grado de santidad que,
en cuanto a virtud, no sería estimado inferior al gran Basilio. (Greg., Vit. Macr.,
12.2)

A ideia de “ter os olhos fixos” em Macrina, talvez tivesse a mesma intenção da


situação anterior, mostrar que as mulheres deveriam estar atentas à observá-la como ideal de
todo bem. Se o interesses destas mulheres forem ser pessoas boas, o que é muito provável,
elas deveriam observar o exemplo da grande virgem, apresentado nesta biografia, e seguir,
assim como Pedro, depois bispo de Sebaste, e um dos líderes do mosteiro masculino perto de
Anesi. Daí a funcionalidade didática da biografia VSM, ela ensinava às leitoras como elas
deveriam ser.
Na representação de Macrina é mais marcante, nem a masculinização, nem a sua
assexualidade angelical, propriamente dita, mas sim na sua “desfeminilização”. Em outras
palavras fica mais evidente um processo de descaracterização feminina do que a própria
masculinização. Num dos trechos mais representativos da discussão genérica Gregório expõe:

4
Escolhemos a versão espanhola dessa vez, pois melhor demonstrava a ideia de que macrina era um exemplo
para sua mãe. Na versão portuguesa: “No mesmo momento, graças à proteção de sua mãe, ela estava vivendo
sua própria vida sem culpa, de modo que o olhar de sua mãe direcionou e testemunhou tudo o que ela fez; e
também por sua própria vida instruiu grandemente sua mãe, levando-a para a mesma marca, quero dizer, aquela
da filosofia, e gradualmente conduzindo-a para a vida imaterial e mais perfeita.” (Greg., Vit. Macr., 5.4)
5
Em italiano a expressão é “senza mai distogliere gli occhi dalla sorella per lui modello del bello”.Contudo no
grego e no latim as expressões utilizadas significam “bom”. Apesar do conceito de belo estar muitas vezes
intimamente ligado ao bom.
“Nesse caso, foi uma mulher que nos forneceu o nosso assunto; se, de fato, ela devia ser uma
mulher de estilo, eu não sei se é conveniente designá-la pelo seu sexo, a quem ultrapassou
tanto o seu sexo.”(Greg., Vit. Macr., 1.1)6
No trecho acima, fica destacado a superioridade de Macrina quanto ao sexo
feminino, mas o autor não a compara com o sexo masculino, não nesse momento. Fica
entendido a sua oposição ao feminino, o que está de acordo com a representação comum,
naquele momento, da mulher. Na versão espanhola, o tradutor escolheu a palavra “natureza”
e no lugar da palavra sexo7, no caso da italiana a palavra “natureza” também foi utilizada,
mas não com o sentido de sexo, mas relativo a “natureza humana”8. A natureza, de acordo
com a mentalidade cristã, era algo prejudicial e deveria ser substituída por uma elevação
espiritual que deixaria o indivíduo livre das conexões terrenas.
A grande virtude de Macrina, de acordo com o seu irmão, estava no seu
autocontrole pela razão, não se deixando agir de forma feminina. Falando da morte de seu
irmão Naucrácio e da recepção da notícia pela mãe o autor expõe:
E agora, a virtude da grande Macrina foi exibida. Enfrentando o desastre com
[970A] espírito racional, ela se preservou do colapso, e se tornou o suporte na
fraqueza de sua mãe, elevando-a do abismo da dor, e, por sua própria firmeza e
imperturbabilidade, ensinou à alma de sua mãe a ser corajosa. Em conseqüência, sua
mãe não foi oprimida pela aflição, nem se comportou de maneira ignóbil e de
modo feminino, como gritar à calamidade, ou rasgar seu vestido, ou lamentar sobre
o problema, ou principiar cantos fúnebres com melodias pesarosas. (Greg., Vit.
Macr., 10.1, grifo nosso)

A ideia de comportamento inconveniente, descontrolado ser associado à noção de


feminino, mostra o desprestígio do gênero. Macrina e Emélia, por sua vez conseguiram, nesse
momento, controlar-se, o que não era esperado para o seu gênero, mas era algo esperado das
mulheres elevadas. O controle é tido como próprio do gênero masculino, desde a cultura
romana pagã. A falta de controle era tida por “efeminada”, para o contexto antigo, até mesmo
quanto a violência dos homens era uma característica feminina a violência excessiva.
(BROWN, 1990)
O autocontrole era provindo de uma elevação filosófica-espiritual que dava
racionalidade ao comportamento das mulheres e homens. Era preciso, portanto, que as

6
Na versão inglesa: “In this case it was a woman who provided us with our subject; if indeed she should be
styled woman, for I do not know whether it is fitting to designate her by her sex, who so surpassed her
sex.”(Greg., Vit. Macr., 1.1, Grifo nosso)
7
“Una mujer era el objeto de nuestro relato, si se le puede llamar mujer, pues no sé si es comveniente designar
con una cualidad perteneciente a la naturaleza en quien llegó a estar sobre la misma naturaleza”. (Greg., Vit.
Macr., 1.1, Grifo nosso)
8
“Ce ne dava l'occasione una donna, se pure può dirsi donna una essere che fu in tutto superiore alla natura
umana.” (Greg., Vit. Macr., 1.1, Grifo nosso)
mulheres pudessem ser educadas pelos homens, para que soubessem se comportar.
(BROWN, 1990). No cristianismo a educação se dava pela constante leitura e reflexão nas
Escrituras e nos ensinamentos dos bispos. Por isso, Gregório faz questão de mostrar, que não
apenas a sua irmã, mas também as mulheres que aprenderam com ela, tinham uma séria
rotina de estudos bíblicos, alcançando assim uma elevação filosófica esperada. O lugar
principal de formação dessas mulheres eram os mosteiros.

3.??. A COMUNIDADE MONÁSTICA DE ANESI E CONDUTA FEMININA

7,1 11,1 16,1 26,1 26,2 34,2(male)

- Divisão espacial dos Sexos

- Hierarquia dos Gêneros e no mosteiro


- Valor dado a Macrina pelas virgens: Representação da figura de Macrina
como líder
- surgimento de dois nomes (Vestiana e Lampádia)
- Ordenações femininas
- Comportamento das virgens ante a Gregório
- Gregório e Macrina (respeito)

- Igualdade social, Macrina, Emélia e as Escravas


- Gregório opositor ao trabalho escravo
- Falar sobre Frontisterion

Adelphótes e Frontisterion, ambas são palavras de muito significado e que

Gregório utiliza para designar a comunidade de Anesi. Adelphótes que poderia ser traduzido

para fraternidade, é utilizada em quase todo o texto de VSM. Foi bastante utilizado tanto por

Gregório como por Basílio, recuperando um termo neotestamentário que se referia a

comunidade cristã primitiva. A denominação “irmão” era uma forma de identificação dos

cristão, mas que lentamente cai em desuso para se estabelecer como um quase que título que
os eclesiásticos dão um ao outro como representantes da vida eclesial, junto com as fileiras

emergentes dos monges. Ao longo do tempo o termo adelphós (irmão) se converteu em quase

que um sinônimo de monachós. (GIRARDI, 2006)9

Essa ideia de irmandade fica evidente quando o autor apresenta a seguinte

passagem:
Agora que todas as desordens da vida material haviam sido removidas, Macrina
persuadiu sua mãe a desistir da vida comum e todo o estilo de vida ostentoso e os
serviços domésticos aos quais ela estava acostumada antes, e trouxe a ela o seu
ponto de vista para aquele das massas, e partilhou a vida das servas, tratando todas
as suas escravas e criados como se eles fossem irmãos e pertencessem à mesma
condição social que ela. (Greg., Vit. Macr., 7.1. grifo nosso)

A idéia aqui é mostrar que o mosteiro em questão era uma comunidade

harmônica, sem distinções sociais, onde todos eram irmãos, uma comunidade tal qual a

comunidade cristã primitiva de Jerusalém descrita nos textos que hoje fazem parte do Novo

Testamento Bíblico. O resgate do termo tem essa intenção, associar a comunidade nascente

com a venerada comunidade do passado.

Esse é um modelo de monacato cenobítico proposto pelo próprio Basílio, que

propõe algo para além de uma junção de monges isolados, pois ele acreditava na formação de

uma verdadeira comunidade harmônica. Essa harmonia dependia também de uma igualdade

entre os irmãos, diminuindo as distinções, salvo o caso da liderança e dos membros do clero.

Gregório foi também um dos grandes opositores do escravismo de sua época.

Pois ele acreditava e defendia a ideia de que o homem era a imagem e semelhança de Deus,

então quem tenta escravizar uma pessoa atenta contra a Imagem do próprio Deus. Desta feita,

ao apresentar o mosteiro ele reitera sua posição contra o escravismo, mostrando a união

igualitária entre os irmãos, apresentando essa comunidade como exemplo. Nota-se a ênfase

que o autor dá a essa temática que ele reafirma mais a frente a ideia de igualdade no mosteiro

de sua irmã:
E, afastando-a de todos os luxos costumeiros, Macrina continuou dirigindo a mãe a
adotar o seu próprio ideal de humildade. Induziu-a a viver em pé de igualdade com o

9
GIRARDI, Mario. L’amore carattere proprio del cristiano»: le origini della spiritualità identitaria di S. Basilio
Classica et Christiana, 1, 2006, 127-144. http://cscc.uaic.ro/wp-
content/uploads/publicatii/cc/Classica_et_Christiana_1_2006.pdf
séquito de servas, também partilhava com elas a mesma comida, o mesmo tipo de
cama em todas as necessidades da vida, sem nenhuma consideração com as
diferenças de posição social (Greg., Vit. Macr., 11.1).

Chega a parecer até uma repetição, contudo a ideia é reforçar algo que para ele se

mostra importante, uma propaganda do que ele apresenta como um estilo de vida melhor. Na

Antiguidade, as matronas e senhoras romanas, não se misturavam ao séquito das servas, a

ideia de uma vida sem distinção entre esses grupos não era muito bem vista pelas mulheres

poderosas. Contudo, seria esse um gesto de extrema humildade, de desprezo das distinções

sociais tão quistas na vida mundana. Contudo, se analisarmos como se dá a representação de

várias virgens biografadas, fica aparente que a distinção ainda existente, mas dessa vez

alegando ser pela religiosidade e compromisso com o divino o motivo da discriminação.

Porém é difícil de não questionar a contribuição que a condição social dessas mulheres exerce

sobre a posição que estas passam a ter nos mosteiros.

O modelo basiliano de monacato distingue-se de outros modelos, como o tão

conhecido pacomiano, por entender que o isolamento por si só não teria tanto efeito na vida

dos monges, era preciso construir uma comunidade harmônica que somente existiria se

tivessem certos elementos essenciais para a coesão da comunidade: o estrito ascetismo vivido

pelos monges, o entendimento da necessidade de cumprimento dos deveres e da ordem por

parte dos membros da comunidade e a fundamental presença de um superior, um líder não

apenas administrativo, mas espiritual, que fosse o guia daquela comunidade. (FREITAS,

1997)

O Nisseno, em sintonia com Basílio, apresenta que a liderança dos mosteiros é

crucial para a manutenção da ordem e da harmonia, e chega à mencionados dois membros de

sua família, Pedro de Sebaste (substituindo o irmão Basílio) no comando do grupo masculino

e Macrina da ala feminina. Evidencia-se na narrativa da biografia a ação de Macrina, assim

como tantas outras mulheres distintas, como “protetora e guardiã” da viuvez, como também

da virgindade, das mulheres que viviam com ela, exercendo esse papel de liderança para

aquela comunidade. Por tanto, existe uma distinção entre essas mulheres, apesar do autor
afirmar não existir diferença de posição social entre elas, por conta, de acordo com ele, de um

ideal de humildade, que seria mais uma das qualidades da grande virgem.

Gregório expõe, em um trecho de VSM, o caso de Vestiana, uma das viúvas de

destaque do retiro de Anesi, o que evidencia essa hierarquia entre essas mulheres: “Então,

quando seu corpo ainda era jovem, ela foi liberada do casamento, e escolheu a grande

Macrina como protetora e guardiã de sua viuvez, e passou seu tempo principalmente com as

virgens, aprendendo delas a vida de virtude.” (Greg., Vit. Macr., 28.1).

As transformações sociais do período da antiguidade tardia, principalmente no

século IV, foram decisivas para as mudanças dentro do próprio cristianismo “universal” que

produziu várias reformas na organização eclesiástica. O que antes parecia ser uma

comunidade harmônica, baseada no amor fraternal, mas pouco organizada, com o tempo

desenvolveu uma lógica hierárquica complexa, baseado nas experiências administrativas da

política romana imperial. Essa organização eclesiástica, mudou o lugar reservado às mulheres

no interior da Igreja (SIQUEIRA, 2004), dentro da hierarquia assim como suas

representações.

Desde o período apostólico as mulheres se mostraram essenciais para o

desenvolvimento da religião. Apesar de não ocuparem “ministérios”, elas se mostram hábeis

na organização de grupos de mulheres, como as viúvas (khêrai), que acabaram por se tornar

símbolo da atuação feminina no cristianismo. Além destas as profetas e mártires deram outra

visão sobre a religiosidade feminina e o seu contato com o divino, diversas dessas mulheres

foram representadas em textos cristão e temas de muitos dos ensinamentos. Dentro de vários

grupos heréticos, na visão dos católicos, as mulheres como estas ganharam maior destaque, o

que de certa forma, levou a muitos bispos a questionarem o papel da mulher e então controlar

e restringir o poder de liderança e de influência delas. (ALEXANDRE, 1990)

Com a igreja hierarquizada onde a autoridade estava sobre os bispos, que

transmitiam as palavras de ensinamentos e os sacramentos, sempre auxiliado pelos padres e

diáconos, na qual a distinção clero-leigos vinha se acentuando, as mulheres receberam um

espaço limitado de ação. As mais atuante pertenciam, normalmente, a dois grupos: as viúvas
e as diaconisas, no máximo as virgens mais velhas exerciam algum poder nos mosteiros.

Condicionadas, quase que exclusivamente aos serviços assistencialistas as viúvas, tanto no

Ocidente quanto no Oriente, aos poucos passaram a desenvolver suas atividades espirituais

nos mosteiros. As diaconisas, por sua vez, exerciam as atividades bem parecidas dos

diáconos, e ambos eram escolhidos pelos bispos. Contudo, a atuação delas estava

necessariamente no auxílio dos bispos nas atividades que envolvessem o público feminino da

comunidade. Elas eram muito mais presentes no Oriente e a partir do século IV multiplicou-

se a menção de exemplos de diaconisas10. Com o passar dos anos os bispos passaram a

consagrar a esse cargo, quase que exclusivamente mulheres pertencentes à comunidade das

virgens e viúvas dos mosteiros. (ALEXANDRE, 1990)

Lampádia é um dos exemplo de diaconisas desse período. Gregório dedica um

pequeno trecho mencionando a atuação dessa mulher, o qual ele chama de “líder do grupo

das irmãs” (Greg., Vit. Macr., 29.1). Com ele ele desenvolve um diálogo sobre as vestes e a

humildade de Macrina.

Interessante notar é que dos poucos diálogos apresentados na biografia, dois deles

são com mulheres. Talvez seja intuito de Gregório é mostrar sua proximidade com as

mulheres e como estas demonstram respeito para com ele.


Quando ela me viu próximo à porta, ela ergueu-se pelos cotovelos, mas não pôde
vir encontrar-me. Sua força tinha sido drenada pela febre. Mas, ao colocar suas
mãos no chão e inclinar-se do estrado o máximo que podia, ela mostrou o respeito
[978A] devido à minha posição.

Dentro do movimento monástico, mulheres como Macrina, exerciam uma ação de

liderança em suas comunidades, mas elas estavam, quase via de regra, sob orientação de

algum clérigo masculino. E mesmo aqueles que não fossem seus líderes, a estes homens elas

deveriam ter reverência e respeito. Vale ressaltar que “a organização da vida ascética

feminina era informal, possibilitando-lhes escolher como mentores e mestres quem elas

quisessem para lhe proporcionar orientação e proteção espiritual.” (SIQUEIRA, 2004). São

esses conselheiros e biógrafos que vão torná-las conhecidas, como Gregório de Nissa fez com

10
Exerceram cargos ministeriais até por volta do século X.
sua irmã, ao produzir VSM, essas representações, é preciso estar atento, novamente

alertamos, são idealizadas e normativas por clérigos e monges (ALEXANDRE, 1990).

A discussão que queremos levantar está na representação social dessas mulheres;

entender que elas representam dentro do contexto do cristianismo antigo o poder da ação

feminina, tentando ser controlado pelos escritores masculinos. Percebemos a importância

dessas mulheres quando observamos sua posição dentro de uma igreja que estava em tempos

de organização e estruturação hierárquica. Essas mulheres são representantes da religiosidade

feminina no cristianismo e que estas mesmas representações têm objetivos específicos de

controle comportamental das mulheres. Mostrando que na sua religiosidade elas deveriam se

manter abaixo dos homens.

O mosteiro era uma organização de tipo familiar que se ocupava habitualmente

em auxiliar os pobres. O monacato basiliano propunha também uma comunidade harmonica

que não se caracterizassem por ser completamente enclausurada, fechada para o mundo, mas

que fosse um modelo de integração com a comunidade externa, através de várias atividades

de suporte as populações que circuncidavam os mosteiros.

Essa interatividade entre a comunidade monástica e a comunidade externa acabou

por condensar nos arredores dos mosteiros pessoas que se aproveitavam das ações de

assistencialidade por parte dos monges, assim formava-se quase

a bondade de Pedro supriu com uma tal abundância de comida que o deserto
parecia uma cidade por causa do número de visitantes. (Greg. Vit. Macr., 12, 3)

Parecido com o comportamento das demais virgens modelos, Macrina e sua mãe

levaram uma vida de estrito ascetismo, dedicando-se à meditação sobre os textos bíblicos e às

orações. A cultura escrita sagrada era ensinada nesse local, e para tanto era necessário a

alfabetização dessas mulheres. De acordo com Peter Brown, as organizações femininas como

as de Macrina baseavam-se em laços de amizade e contavam com grandes grupos de virgens,

de cinquenta a cem, e seu alto contingente era ocasionado também por manterem no

conventio senhoras ricas que dedicavam seus recursos ao convento e também viviam ali

(BROWN, 1990).
Em algumas passagens Gregório apresenta um pouco sobre a vida e os costumes

dessas mulheres, assim como dos homens, já que ele também, em alguns momentos, fala

sobre o grupo de homens que viviam com seus irmãos, primeiramente com Basílio e depois

com Pedro. A descrição do autor sobre a vida no retiro de sua irmã, em VSM, é riquíssima

fonte sobre as práticas e costumes da vida monástica. Sobre esse o modo de vida das

mulheres ele descreve:

Assim era o modo de suas vidas, tão grande a altura de sua filosofia, e tão
sagrada sua conduta dia e noite faz a descrição verbal inadequada. Pois
somente como almas livres do corpo pela morte são salvas dos cuidados
desta vida, eram suas vidas removidas muito longe de todas as preocupações
terrenas e ordenadas com a visão de imitar a vida angélica. Pois nem raiva
ou inveja, ódio ou orgulho foi observado em seu meio, nem nada desta
natureza, já que elas abandonaram todos os desejos vãos por honra e glória,
todas as vaidades, arrogâncias e similares. A continência era o seu luxo, e a
obscuridade a sua glória.

Pobreza, e a retirada de todas as materialidades supérfluas de seus corpos


como poeira era a sua riqueza. De fato, todas as coisas que os homens
perseguem obstinadamente em suas vidas, não eram nada, elas podiam
facilmente dispensar. Tudo foi deixado, exceto o cuidado com as coisas
divinas e a incessante ladainha de orações e hinos, co-extensivas no tempo,
praticadas noite e dia. De forma que, para elas, significava trabalho, e o
resto era assim chamado trabalho. O que as palavras humanas podem te
fazer pretender com uma vida como esta, uma vida na fronteira entre
natureza humana e espiritual? (Greg., Vit. Macr., 11.2)

Essa é uma das primeiras descrições da comunidade de Anesi, ainda recém

formada, quando Macrina e sua mãe se junta ao conjunto das suas servas. De acordo com

Mateo-Seco, em nota, Gregório define, no trecho acima, os valores que considera mais

necessários para a vida monástica, pra vida ascética em si.

Elas deveriam “separar suas almas dos corpos através da sua morte”, por morte

deve se entender a escolha delas de reclusão, que seria uma morte para toda e qualquer

perspectiva de se casarem, apesar de muitas delas retrocederem em seus votos. Mas nisso está

a ênfase, uma espécie de advertência do autor, de que a escolha delas deveriam ser uma

escolha permanente, pois a morte é permanente, assim como deve ser a continência sexual.
Viver uma vida na fronteira entre natureza humana e a espiritual, é uma tarefa

demasiadamente difícil, mas nisto está a ascese, no seu sentido mais original, a prática de

exercícios e treino de um atleta, é essa a recompensa de todo esforço dessas atletas, o objetivo

de todo aperfeiçoamento espiritual. Contudo, ele afirma que por mais próximas que essas

mulheres estivessem de uma vida angelical, ou seja, celestial e virginal, elas estavam

impedidas por sua condição corporal e humana, mas talvez isso não seria de todo uma

desvantagem, nas palavras do autor:

Pois que a natureza esteja livre das fraquezas humanas é mais do que pode
ser esperado da humanidade. Mas estas mulheres não alcançaram a natureza
angélica e imaterial apenas na medida em que (estas) apareciam em forma
corporal, e estavam contidas numa estrutura humana, e eram dependentes
dos órgãos dos sentidos. Talvez alguns pudessem mesmo ousar dizer que a
diferença não lhes estava em desvantagem, já que, ao viver num corpo e
ainda ter semelhanças com seres imateriais, elas não haviam sido
submetidas ao peso do corpo, mas suas vidas eram exaltadas aos céus e
[972B] caminhavam para o alto na companhia dos poderes do céu.

O período coberto por este modo de vida não foi curto, e com um lapso de
tempo seus sucessos aumentaram, como sua filosofia cresceu continuamente
mais purificada com a descoberta de novas bênçãos (Greg., Vit. Macr., 11.3-
4).

Mesmo com todos as elogiosas afirmações e comparações feitas sobre essas

mulheres, elas ainda deveriam seguir a risco o comportamento desejado às mulheres. Essas

exigências são bem mais rígidas para aquelas que viviam em mosteiros. As diferenças de

tratamento e a separação rígida entre os sexos são as características principais desses lugares.

Na biografia em questão o autor apresenta algumas situações onde se evidencia essa

característica:

Mas quando eu cheguei ao verdadeiro mosteiro já havia rumores anunciando a


minha chegada para a irmandade. Então toda a companhia de homens correu de seus
cômodos para nos encontrar, porque era costume deles honrar os amigos indo
encontrá-los. Mas a associação das virgens na ala feminina esperava modestamente
na igreja pela nossa chegada (Greg., Vit. Macr., 16.1).

Nesse trecho, fica evidente que as mulheres deveriam esperar com modéstia, não

poderiam se direcionar diretamente a um bispo, esse seria o comportamento exigido para


elas. A ideia de que as mulheres não deveriam se intrometer nos assuntos e conversas onde

não fossem chamadas, se evidencia em outros momentos também:

Porém, quando as orações e as bênçãos haviam acabado, e as mulheres,


depois de reverentemente inclinarem suas cabeças para recebê-las,
retiraram-se para seus próprios aposentos, e nenhuma delas ficou conosco.
Eu adivinhei a explicação: a abadessa não estava com elas. Um homem
levou-me para casa onde estava a minha grande irmã, e [976D] abriu a
porta. Então entrei naquela morada sagrada (Greg., Vit. Macr., 16.1).

As atividades dentro dos mosteiros envolvia muitas orações e celebrações,

diurnos e noturnos, seria uma prática exigida para essas virgens, assim como para qualquer

asceta:

Tudo foi deixado, exceto o cuidado com as coisas divinas e a incessante


ladainha de orações e hinos, co-extensivas no tempo, praticadas noite e dia.
(Greg., Vit. Macr., 11.2).

Em outro momento o biógrafo relata a presença de um coro, que tinham o papel

de convocar a comunidade o início das celebrações.

Assim ela falou, e desejei que a duração do dia se estendesse além, que ela
nunca cessasse de encantar nossos ouvidos com a sua doçura. Mas a voz do
coro estava nos convocando para o serviço noturno, e me enviando à igreja,
(ficando) a grande dama mais uma vez isolada para rezar a Deus. E assim
ela passou a noite. (Greg., Vit. Macr., 22.1).

De acordo com Mateo-Seco, era costume entre os cristãos antigos celebrarem

cantos de ações de graças, no momento em que se escurece e são acendidas as luzes, pois

celebram a Cristo a “Luz do Mundo”, existem alguns relatos que mencionam essa tradição

dos cantos lucernários entre os séculos IV e V. Em vários outros momentos ele apresenta o

elemento musical presente em meio as celebrações cristãs:

Quando a vigília de toda a noite por ela acompanhada pelo cantar de hinos,
como no caso (da morte) de mártires, e as festividades tinham acabado, a
noite veio, e a multidão de homens e mulheres que havia chegado de todas
as regiões vizinhas interrompiam os salmos com lamentações. (Greg., Vit.
Macr., 33.1).
Ele chega a mencionar um hino entoado durante o cortejo fúnebre de sua irmã.

Esse hino, de acordo com Mateo-Seco é mencionado no texto bíblico do livro de Daniel,

capítulo 3, a partir do verso 51, seria o hino cantado pelos três companheiros de Daniel, que

foram lançados à fornalha:

Tudo lembrava uma procissão mística e do início ao fim as vozes se


misturavam no canto de salmos, como, por exemplo, aqueles que vem no
hino das Três Crianças. (Greg., Vit. Macr., 34.2).

A maioria dos relatos das práticas musicais que Gregório menciona estão

contidos no processo do ritual fúnebre de sua irmã, e estão sempre associados a tristeza da

multidão

Então o resto das virgens gritou o mesmo, e uma desordenada confusão


perturbou o ordeiro e solene canto dos salmos, e todos ficaram entristecidos
com as lamentações das virgens. (Greg., Vit. Macr., 34.4).

A outra palavra utilizada por Gregório para descrever o mosteiro de Anesi é o de

Frontisterion (37.1). O uso de um termo como esse mostra a intenção do autor de promover

aquele lugar e as pessoas que habitavam nele, além de mostrar também seu conhecimento da

cultura literária grega. O termo fora utilizado anteriormente por Aristófanes, na comédia As

Nuvens. O personagem principal da obra dramatúrgica chama a escola, ou casa, de Sócrates

de frontisterion. Seria um termo que sua origem vem do verbo φροντιζω (pensar), remeteria a

um lugar onde se pensam ou discutem os alunos de Sócrates, talvez uma criação do

dramaturgo. Na narrativa ele apresenta que na tentativa de convencer a seu filho a largar a

vida de regalias e irresponsabilidades Estrepsíades, personagem principal da comédia, aponta

para a casa de Sócrates e afirma:

Esse é o Pensatório de sábias almas. [95] Lá vivem homens que, ao falarem,


convencem que o céu é uma tampa de forno que nos envolve e que nós somos os
carvões. E, se alguém lhes der dinheiro, eles o ensinam a vencer falando tanto
coisas justas quanto injustas. [fazer referência]

O termo foi utilizado por Aristófanes com uma conotação cômica, mas acabou

perdendo essa conotação na obra do Nisseno. A intenção do autor é demonstrar que o

mosteiro era um lugar de discussões filosóficas importantes. Até Mesmo Gregório de


Nazianzo, de acordo com Mateo-Seco em nota, considera os mosteiros de Basílio um

Frontisterion. Comparar os mosteiros de Basílio e Macrina um Frontisterion é entender que

esses são locais de formação filosófica, locais de evolução pela filosofia. A muitos de nós

pode soar estranho a comparação, mas para esses bispos não. Devido a sua formação e

contexto a filosofia e cristianismo pareciam de alguma forma terem propósitos parecidos eles.

No entendimento deles a filosofia e ascese seriam as formas de elevação espiritual. Claro que

o entendimento de filosofia deles era distinto do nosso. A comparação é tão clara para o

Nisseno que ele deixa isso evidente em seu texto.

Uma das maiores constantes na narrativa de VSM é a ideia de “viver filosófico” e a


figura do “filósofo” que se repetem cerca de 15 vezes ao longo da biografia. O ideal de vida
que Gregório propõe é o que ele chama de “ideal filosófico”, que representa a vida retirada,
ascética. A expressão “viver filosófico” é utilizada na obra para designar a vida cristã levada
com total pureza e desprendimento: o modo de viver filosófico é o caminho para elevar-se ao
mais alto estado da vida humana. Gregório acreditava que viver de acordo com o estilo de
vida ascética - controlando a si mesmo e as suas paixões, em castidade e pobreza,
desprezando as coisas mundanas, etc - era a verdadeira sabedoria.
Não é inovador esse pensamento, pois mesmo entre os textos filosóficos gregos os
ideais de controle de si estavam bem presentes, bem como a campanha pela elevação do
espírito pela ascese. A filosofia estóica é um exemplo de construção do ideal de controle de si
anterior ao cristianismo. Entendiam que entregar-se aos prazeres seria um impedimento para
o domínio de si, e assim seria equivalente a falta da razão. A capacidade de dominar a si, para
eles, é o que distingue o sábio do estúpido. (ASSMANN, 1995)
O ascetismo cristão toma muito elementos presentes nessa filosofia. Gregório como
homem letrado muito próximo da filosofia grega, assim como seu irmão Basílio que estudou
na escola de Atenas, demonstra em seus textos a influência de teorias como essa. Não há
como afirmar como ele teve acesso a essa filosofia, se por leitura direta das obras, se por
ensinamentos do seu irmão ou se por outros contatos que a família teve, como o caso de
Eustáquio de Sebasta, por exemplo. Mas é claro que ele traz algumas influências dessa para a
sua concepção de ascetismo.
Assim como o filósofo estóico, o asceta cristão deveriam praticar a continência e o
abandono dos prazeres. Esse denominador comum levou a Gregório formular comparações
entre o filósofo e o asceta. Fica evidente esse pareamento entre essas figuras em alguns de
seus textos, mas em VSM é mais que evidenciado essa comparação. Dessa forma fica
explicado a constante do ideal de filosofia e do “viver filosófico” no texto. Mas essa não seria
evidentemente uma representação das práticas ascéticas filosóficas do estoicismo, mas do
ascetismo cristão, que apesar de ter bases nesse pensamento tem um tanto de originalidade.
No íntimo da questão do “viver filosófico” para o autor está na capacidade de
crescimento definido na contemplação de Deus e na virtude. Na biografia ele utiliza com
frequência ao termo filosofia para se referir à Contemplação de Deus, a sabedoria contida na
atitude cristã ante ao mundo e a vida monacal. O uso deste termo é intencionado e tem uma
mensagem clara: o relevante valor a vida ascética e monástica. O monge aparece aqui como o
verdadeiro filósofo.
Voltando ao uso do termo Frontisterion (37.1), o autor se utiliza da voz de um
personagem estranho a seu contexto de vivências, um soldado que havia o encontrado,
quando este voltava do ritual fúnebre de sua irmã, para mostrar que essa era não era uma
criação sua, mas do soldado, talvez para não dizer que ele é que está elogiando o local. Este
homem relata um momento em que recebeu assistência dos irmãos de Gregório e então ele
assim denomina o local: “mi mujer y yo tuvimos un día el deseo de acercarnos al
frontisterion de la virtud11. Frontisterion: así pienso que debe llamarse - dijo - a aquel lugar
en el que tenía su morada aquella bendita alma” (Greg., Vit. Macr., 37.1).
Macrina por ser a mentora, protetora e guardiã, daquelas virgens, além de ajudar a

cada uma delas a se desenvolver espiritualmente, se tornou essencial para educação e

formação filosófica daquelas mulheres, daí a ideia de escola da virtude, um espaço de

educação espiritual e de vida. Em comparação com a obra de Aristófanes, Macrina e Basílio

poderiam ser comparados a Sócrates, o filósofo apresentado na comédia grega. Exerceriam

papel de liderança de guias.

O papel de lideranças dessa mulher deveria ser representado de forma elogiosa,

não deveria representar uma liderança carrasca o qual impõe autoridade pela força, mas por

suas qualidades e virtudes. Em todo o texto o autor, apresenta essas qualidades e virtudes

dela, mas nos dá uma noção da importância dela para as mulheres que viviam sobre a guarda

dela a partir da forma em que elas reagiram perante a morte dela, dando, de certa forma, voz a

11
A versão portuguesa tem é traduzido por “escola da virtude”.
elas, seria mais um forma de mostrar que os outros valorizavam ela e o elogio não parte

somente dele. O trecho é bastante demonstrativo do valor que as virgens davam a ela:

De fato, a causa do pranto das virgens parecia-me justo e razoável,


pois elas não estavam lamentando a perda de um guia e companheiro
humano, ou qualquer outra coisa que faz os homens sofrer quando o
desastre acontece. Mas parecia como se elas estivessem perdido sua
esperança em Deus e na salvação de suas almas, e por isso elas
choravam e gritavam dessa maneira:

“A luz dos nossos olhos foi embora


A luz que guiava nossas almas foi levada
A segurança de nossas vidas foi destruída
O selo da imortalidade foi removido
O vínculo da prudência foi retirado
O suporte dos fracos foi quebrado
A cura dos doentes removida
Em vossa presença a noite se tornou para nós como dia
Iluminada com a pura vida,
Mas agora mesmo o nosso dia se tornará escuridão” (Greg., Vit. Macr.,
26.2).

Por mais que essas palavras tivessem possivelmente sido ditas por essas mulheres

e têm muito a nos dizer sobre a suposta idealização feita sobre essa virgem, são palavras do

próprio Gregório e portanto seguem o seu ideais e intencionalidades. É interessante dissertar

minimamente sobre esses elementos apresentados no clamor acima: a luz, é uma expressão

que pode significar, os ensinos bíblicos e a leitura da bíblia, pode intencionar passar a ideia

do papel de mestre e pedagogo da grande virgem; A segurança, lembra que Macrina é

representada como a protetora e “guardiã”, dessas mulheres, uma representação que mostraria

a segurança que as mulheres teriam ao se associar aos mosteiros liderados por mulheres

virtuosas como a biografada; o selo da imortalidade estaria conectada a noção de que essa

virgem seria a conexão entre esse mundo e o mundo espiritual, entre o céu e a terra, por sua

vida angelical; O “vínculo da prudência”, seria uma forma de delegar a sua mestre a

responsabilidade da unidade do mosteiro, de acordo com Mateo-Seco, essa mesma afirmação

é feita sobre Basílio, lembrando que para a lógica monacal basiliana o líder do mosteiro era
essencial para a manutenção da unidade e harmonia do espaço; O suporte para os pobres,

logo se associa a prática da caridade, prática quase obrigatória das virgens consagradas; a

cura dos doentes é como o autor relaciona às ações milagrosas de sua irmã, que discutiremos

mais a frente.

Consideramos esse trecho, da oração das virgens, como uma espécie de lista das

qualidades essenciais das mulheres consagradas feita pelo autor. Um modelo que deveria ser

seguido por todas aquelas que quisessem se tornarem consagradas, um exemplo. Seria o alvo

dessas atletas.

Dentre todas as características essenciais a essas mulheres, uma se destaca dentre

as outras, a humildade que por sua vez é, no pensamento dos padres capadócios, alcançado

pelos trabalhos manuais. E a esse tema o autor faz questão de dedicar várias passagens,

sempre mostrando a importância dos trabalhos manuais para a elevação da alma, como uma

forma de ascetismo.

3.4. TRABALHOS MANUAIS, IDEAL DE HUMILDADE E IGUALDADE SOCIAL.

“Ora et labora”, de acordo com Eugênio Marotta, seria a base das normas de vida
da comunidade de Anesi12. A expressão ficou conhecida nas famosas Regras Monásticas de
São Bento, no século VI. Apesar do distanciamento temporal dos escritos de Gregório, a
intenção do tradutor e comentador italiano era apenas destacar a importância do “trabalho” no
pensamento monástico de Basílio e Gregório, mesmo antes da expressão se popularizar. De
acordo com Andrew Dinan (2009), assim como as práticas ascéticas orientais, os
ensinamentos monásticos de Basílio influenciaram decisivamente as regras de Bento, que por
sua vez foram muito difundidas na Europa medieval.
Dentro do pensamento cristão antigo um dos valores mais quistos era o da
humildade, esse deveria ser cultivado em toda a comunidade dos fiéis. Essa virtude estava,
por sua vez, dentro do pensamento cristão, associado aos pobres e as suas atividades. No
mundo romano, os trabalhos reservados às classes dominantes estavam relacionados a

12
O autor dedica um tópico de sua introdução da publicação para o assunto, e intitula com a famosa frase.
administração política e econômica, como também as atividades de cunho cultural e
educacional, atividades que não exigiam muito esforço físico, mas necessitava de grande
habilidade intelectual e uma oratória admirável. Dessa forma, o campo de trabalho dos
indivíduos menos favorecidos estavam conectados às atividades manuais. Aos escravos,
servos, artesãos, agricultores, etc. era reservado os trabalhos de maior esforço físico. O
discurso cristão, passou então a associar o trabalho manual com os ideais de humildade,
associando o pobre como um ideal de comportamento, mas não o pobre a qual entendemos,
mas uma representação construída de um pobre modelo.
No pensamento dos Capadócios a ideia de trabalho manual é um importante
elemento que compõe a vida de um asceta, pois esse seria um elemento revelador da
humildade dos indivíduos. Se tornou quase que sinônimo da vida ascética (DINAN, 2009).
Ao longo de várias obras deles a expressão, ou a ideia, se fizeram presente, inclusive em
VSM, onde Gregório tenta descrever as características da principal asceta, a virgem Macrina.
Em vários momentos o autor apresenta as qualidades dos ascetas de sua família
também, e a todos eles o autor revela a importância do trabalho manual. Fica implícito em
seu discurso que este seria um exercício para o aperfeiçoamento dos indivíduos. No trecho
que diretamente se refere ao irmão mais velho (7,1), o autor apresenta um certo salto
qualitativo do caráter do personagem quando Macrina “o tomou pela mão”13 - veja ai o
símbolo manual - o elevando pela “filosofia”, atraindo o irmão a escolher um estilo de vida
mais simples. De acordo com a versão espanhola:
Ella advirtiendo que él estaba exageradamente engreído con sus conocimientos de
oratoria, que (con soberbia) despreciaba todas las dignidades y que se sentía por
encima de todos los notables en el gobierno de la provincia, le atrajo con tal rapidez
al ideal de la filosofía que él renunció a la gloria mundana, despreció la admiración
que podía recibir por su elocuencia, y se entregó a una vida de trabajo manual,
buscando a través de una pobreza perfecta una vida libre para la virtud.(Greg. Vit.
Macr., 7, 1)

Nesse trecho o autor aparentemente põe em conflito a habilidade oratória e os


trabalhos manuais. Os conhecimentos oratórios de Basílio, assim como sua bagagem de
estudos, o transformaram em alguém envaidecido, orgulhoso. Com a intervenção de sua irmã
e a sua mudança de vida este se entrega a uma vida de trabalhos manuais e para uma
“pobreza perfeita”14, assim este seria livre para o aperfeiçoamento em direção à virtude.

13
De acordo com a versão portuguesa e inglesa.
14
Lembremos que o ideal de pobreza é algo construído dentro dos discursos cristãos com intuito de ensinar os
elementos de humildade a comunidade cristã. Eles se atribuem alguns elementos aos pobres associados a valores
cultivados dentro do cristianismo, mas que nem sempre eram coerentes com o cotidiano das massas de
necessitados. Essa representação dos pobres vai se tornando algo tão rico e sofisticado, que vai se impregnando
Dessa forma, os trabalhos manuais estariam contidos no processo de aperfeiçoamento do
ascetas. Não que Gregório estivesse condenando as habilidades retóricas, pois em vários
outros momentos ele a destaca como um elemento louvável, mas o que ele talvez queira
destacar é a importância da combinação “fala” e “ação”, a união destes dois elementos era
muito louvada entre os cristãos da época. Para ele os ensinamentos deveriam associar a
“palavra” com o “exemplo”, como evidenciamos no capítulo anterior.15
Outro personagem em que o Nisseno aplica a ideia de abandono dos trabalhos
retóricos e oratórios em direção do aperfeiçoamento pelos trabalhos manuais é Naucrácio.
Esse irmão, assim como os demais homens de sua família16, também era habilidoso no falar:
com 22 anos17 ele se apresenta publicamente em um teatro, comovendo a todos (Greg. Vit.
Macr., 8,1). Movido por Deus, e não por Macrina18, ele decidiu abandonar “tudo que tinha
em mãos”, ou seja, o seus trabalhos mundanos, para se retirar a uma vida de solidão e
pobreza. Nesse retiro, de acordo com o Nisseno, além de se afastar das preocupações
cotidianas e viver uma vida reta, ele se dedicou a cuidar “com suas próprias mãos” de alguns
idosos pobres e doentes que viviam próximos da floresta em que se retirava. O texto é claro
em explicitar que este cuidado era feito com as próprias mãos, aliás é um dos momentos em
que Gregório deixa bastante claro a sua concepção da importância dos trabalhos manuais para
a ascese dos indivíduos.
“Dada su habilidad en todo género de caza, se dedicaba a ella (también a la pesca) y
proporcionaba (con los animales cazado) alimento a los ancianos; con este ejercicio,
además, domaba su juventud [...] Con estas dos cosas llevaba una vida recta.
Dominando la juventud con los trabajos y con el cuidado en lo que concierne a su
madre, observando los mandamientos divinos, se encaminaba derechamente hacia
Dios.” (Greg. Vit. Macr., 8, 2, grifo nosso)

Como dito no capítulo anterior, a ideia de exercício estava fortemente associada


ao conceito de ascese. Portanto o controle de si seria aperfeiçoado pela prática de exercícios,

no imaginário ocidental, ganhando associações, símbolos e tantos outros artífices que ainda hoje se fazem
presente em nossa sociedade.
15
Lembremos dos constantes momentos em que este apresenta sua irmã como “exemplo” prático, mas também
como este a apresenta esta educando aos outros com suas palavras.
16
É importante percebermos a questão dos gêneros nesse elemento. A mulher que fora designada ao lar não
importa suas habilidades oratórias, seria até melhor que esta não as tivesse. A expressão oral era de direito do
homem. Gregório como indivíduo inserido nesse contexto de relações de gênero deixa bastante claro isso.
Dotando os seus personagens masculinos de grandes habilidades oratórias e às personagens femininas modelo
lhes caracteriza por passivas e silentes, nunca tomando o direito de fala dos homens.
17
As versões portuguesa e inglesa afirmam que ele tinha 21 anos.
18
É interessante notar que no caso de Naucrácio, Macrina não teve envolvimento na sua conversão a vida
ascética. Ele é o único exemplo de renunciador da família que não é apresentado interferência da irmã mais
velha. Ele também é o único dos ascetas da família que não se envolveu com o monacato, se caracterizando
mais com um eremita, como apresentamos no capítulo anterior. A ação da virgem parece conduzir os outros a
vida monacal especificamente, e não apenas ao ascetismo.
nesse caso o autor enfatiza que os trabalhos manuais ajudariam nesse aperfeiçoamento. Com
o domínio de si por meio dos trabalhos e a obediência a sua mãe Naucrácio caminhava
diretamente para Deus, o que demonstra que pelo esforço próprio o asceta alcançava o divino.
Tanto na Representação de Basílio quanto de Naucrácio, Gregório destaca a
intenção pela pobreza. A “pobreza perfecta” de Basílio, pela qual ele conseguiria alcançar a
virtude (Greg. Vit. Macr., 7, 1) e o fato de Naucrácio ter se retirado para uma “vida de
solidão e pobreza” (Greg., Vit. Macr., 8.2), demonstram estar em sintonia com o pensamento
cristão daquele contexto de valorização do ideal de pobreza construído pelos discursos
cristãos. Embora, essas atividades e ações, fossem vistas por muitos, tanto cristão ou não,
como incoerente com a posição social que eles pertenciam(DINAN, 2009), pois mesmo que
se fizessem de pobres, nunca o seriam efetivamente.
No contexto romano da antiguidade tardia, a sociedade romana estava dividida, a
grosso modo, entre os honestiores e os humiliores19, representavam as classes mais abastadas
e os grupos mais pobres, respectivamente. As distinções entre esses grupos não se limitava
apenas a condição econômica, mas a uma série de características culturais e
comportamentais, que eram delimitadas nitidamente pelas classes dominantes, estes faziam
questão de que as diferenças fossem evidenciadas (ZÉTOLA, 2009). Essas distinções
culturais não eram facilmente desvinculada a partir de uma mudança de posição social, de
ascensão ou declínio. Um indivíduo por ter adquirido melhores condições de vida, não
significava a imediata aceitação pela comunidade, ou assimilação de culturas específicas a
cada estrato social, mesmo com intensiva educação, isso valia para o inverso também.
Dentro da sociedade romana tardo-antiga a figura do pobre não tinha tanta
representatividade social quanto ganharia com as influências do cristianismo. Estes eram
indivíduos com certa carência de recursos financeiros20 que na sua maioria dependiam de
outros para sua proteção e sustento. Com o cristianismo foi construído um imaginário novo
para a pobreza, que passou a ser tida como uma virtude devidamente marcada pela
humildade. (ZÉTOLA, 2009, p. 27)

19
Dentre as várias nomenclaturas utilizada para dividir as classes sociais no império romano, essas seriam as
mais comuns entre os textos jurídicos da época. Essa divisão é muito simplista, pois dentro desses grupos
existiam vários outros estratos (ZETOLA, 2009).
20
Não existia um padrão, ou qualquer forma de classificação, para determinar quais os recursos que um
indivíduo deveria ter para ser considerado pobre ou rico, o que torna difícil o traçado de um perfil do que era ser
pobre naquele contexto. Existiam casos onde alguns que tinham até relativa renda, mas que se consideravam
pobres. Os pobres poderiam ser os necessitados em condições miseráveis, mas também poderiam ser os ricos,
menos ricos.
A construção da representação dos pobres, por conta dos bispos cristãos, está
contida em um contexto político específico. O cristianismo vinha galgando espaço junto aos
imperadores, que por sua vez, percebiam que a caridade cristã tinha igual ou maior eficiência
do que a tradicional prática do evergetismo romano21. A construção da representação social
do pobre servia, talvez, de legitimação da prática assistencialista cristã, que constantemente
recebia incentivos monetários imperiais. Além do apoio imperial, os bispos conquistavam a
simpatia dos mais pobres, maioria da população, agregando assim um maior número de fiéis.
Na concepção cristã a humildade espiritual fazia alcançar o divino, baseado no
Sermão da Montanha22, e para muitos cristãos essa humildade estava associada a humildade
material. Por isso, muitos deles se desfaziam de suas riquezas, passando a viver uma vida
simples, desprovida de luxo, para contemplarem a glória divina. (ZETOLA, 2009)
As riquezas rejeitadas por esses cristãos tinham duas destinações principais:
ofertas para a Igreja, financiando obras de novos templos e mosteiros; e as esmolas para os
mais pobres. O contexto da antiguidade tardia foi propício ao desenvolvimento da prática da
caridade, pois as várias vicissitudes devido as constantes guerras e intempéries naturais a
população romana, principalmente a urbana, vinha a tempos empobrecendo e passando por
graves necessidades. Aproveitando desse momento os cristãos praticavam a caridade como
uma forma de demonstrar cuidado e carinho para com os necessitados, com intuito de se
mostrar mais parecidos com Cristo. Como resultado temos o desenvolvimento de uma série
de discursos que ligavam as práticas de caridade com as práticas ascéticas. Sobre a caridade
cristã foi se desenvolvendo um longo imaginário construído a partir dos escritos dos bispos
com intuito de fomentar a prática.
Gregório em vários momentos apresenta o cuidado que sua família tinha sobre os
mais pobres. A começar pelo tratamento de igualdade que Macrina e Emélia tratavam as
escravas, ou depois com o cuidado de Naucrácio aos idosos necessitados. Pedro, o irmão
mais novo, é um dos mais significativos exemplo desse cuidado os mais pobres. Sobre sua
prática da caridade o autor destaca:
Uma vez, quando uma severa fome ocorreu e as multidões de todos os quarteirões
estavam freqüentando o retiro onde elas moravam, dirigidas pela fama de sua
benevolência, a bondade de Pedro supriu com uma tal abundância de comida que o
deserto parecia uma cidade por causa do número de visitantes. (Greg. Vit. Macr.,
12, 3)

21
Como dito no capítulo anterior… [EXPLICAR melhor]
22
Mt. 5; Lc. 6.
Em um outro momento, num formato de diálogo com um militar, Gregório relata
que Pedro teve o cuidado de servir a estes “com a próprias mãos”, mostrando o compromisso
em ajudar era próprio dele e não de ordenar seus subordinados (38.1). No mesmo trecho que
Gregório destaca para elogiar a vida do irmão caçula, anteriormente supracitado, ele fala que
este fora criado por Macrina e que ela foi tudo para ele. De acordo com o Nisseno, ele havia
desprezado os estudos das “ciências profanas” e se dedicou a uma “vida angélica”. Tinha,
também, dotes naturais para executar todo tipo de trabalhos manuais, que conseguia realizar
com perfeição qualquer coisa que normalmente demoraria muito para alguém aprender. Com
essa representação do irmão, o autor quer elogiar a vida prática e simples de Pedro,
apresentando ele como mais um exemplo de conduta, mas também defendendo-o como um
grande bispo, que cuida dos necessitados de sua região23.
Contudo, sem dúvida, o personagem em que o autor mais enfatiza sua
simplicidade, humildade de espírito, caridade e suas habilidades manuais é Macrina, apesar
das riquezas da família herdada. Em toda a sua dissertação sobre a sua irmã ele sempre a
apresenta como alguém verdadeiramente humilde e sem pretensões de orgulho, mesmo sendo
de família abastada.
É importante deixar bem claro que os elogios que o biógrafo faz de sua irmã é
cheio de idealizações e representações do ideal de conduta do feminino, baseado em
influências da literatura filosófica greco-romana. lembrando que este é um texto didático que
objetivava o ensino das virgens consagradas e de convencer novas mulheres a aderirem ao
movimento.
De acordo com o autor, depois que o patrimônio da família fora dividido entre os

filhos (Greg., Vit. Macr., 11.1), Macrina e Emélia se afastam das preocupações mundanas e se

juntam a outras mulheres, formando um retiro nas proximidades de Anesi. Um parte deste

patrimônio foi utilizada para construir dois mosteiros nessa região, um masculino e outro

feminino, e outra parte foi vendida para auxiliar os pobres (ZIERER, 2013). Não será

possível precisar o quanto foi gasto, pois ele não afirma quais partes foram usadas para isso.

Ele só afirma, mais a frente, que Macrina não usufruiu do que herdou da divisão da

propriedade, fazendo nos pensar que a parte desta foi usada para tais fins. Contudo, poderia

ter sido usado a parte de Basílio e Pedro também.

23
Pedro fora consagrado bispo de sebaste em 381, ano em que possivelmente Gregório escrevia VSM.
Dentre os principais poderes das mulheres naquele contexto é o das doadoras,

patrocinadoras e fundadoras, na sua maioria herdada de sua família ou dos maridos

(ALEXANDRE, 1990). Os bens e as riquezas dessas mulheres era assunto de muitas cartas

de bispos, os quais aconselhavam a elas se desfazerem para alcançar o ideal de humildade e

pobreza. No trecho que Gregório evidencia essa atitude de sua irmã, afirma:

Mas quando chegaram à própria Macrina, ela não conservou nada das coisas que lhe
foram atribuídas na divisão eqüitativa entre irmãos e irmãs, porém toda a sua parte
foi entregue aos homens da Igreja24 de acordo com o mandamento divino. Além
disso, sua vida tornou-se tal pelo auxílio divino que suas mãos nunca cessaram de
trabalhar de acordo com o mandamento (Greg., Vit. Macr., 20.3. grifo nosso)

Na leitura do trecho percebe-se que o destino das riquezas era aos homens da Igreja,

ou seja aos padres e sacerdotes, muitas vezes ligados a educação dessas mulheres. Pode ser,

devido a isso o surgimento de incontáveis cartas de bispos que tratavam de angariar mulheres

com tal ‘prestígio’ para os seus cuidados. Mas não era apenas pelo dinheiro, pois muitas

dessas mulheres eram membros de importantes famílias e por isso seria também uma forma

de legitimação do poder do sacerdote. Não que esteja acusando de aproveitadores os autores

das cartas (que em algumas vezes eram escritas por outras mulheres), ou que só tinham essa

intenção ao convidar tais mulheres, mas que evidentemente esses eram os bônus de serem os

supervisores delas, portanto seria, digamos, um efeito incentivador.

A renúncia das riquezas foi um fator decisivo para o desenvolvimento do

cristianismo, principalmente do monasticismo, pois foi com as grandes ofertas dos

renunciadores e das patrocinadoras que foi financiado a construção de novos mosteiros e

igrejas ao longo do império. De acordo com Siqueira,

A economia eclesiástica fundava-se nas contribuições por meio de doações e de


esmolas, mais do que qualquer outra atividade. As clarissimae feminae e os
especuladores eram as principais fontes econômicas para a comunidade da Vrbs. As
mulheres de boas famílias senatoriais eram fartamente exortadas a não gastar seu
dinheiro com maquiagens, joias e luxuosos vestidos, antes deveriam preferir a vida
eterna e para alcançá-la deve-se adotar um estilo de vida austero. (SIQUEIRA,
2013, p. 3)

24
Somente na versão portuguesa é escrito “homens da Igreja”, em italiano, espanhol e inglês é usado
“sacerdote”, ou “padre”, como também sugere a tradução de “priest”.
Na Ásia Menor a participação da família de Macrina é fundamental, pois como já

fora dito, era uma família de muitas posses, e que fomentou a construção de pelo menos dois

mosteiros. As riquezas da família de Gregório é fruto de um contexto peculiar aos demais. A

Antiguidade tardia, produziu uma elite muito mais rica do que a elite romana dos primeiros

séculos de nossa Era, por exemplo. [tentar continuar a discussão… ver o livro o Fim do

Mundo Clássico]

Com intuito de evidenciar a humildade da sua irmã o autor, assim como nos outros

personagem acima mencionados, ele apresenta suas habilidades manuais. Desde a infância da

personagem é apresentado seus dotes e suas habilidades quanto ao trabalho manual (3,1 e

4,1), normalmente ligados ao trabalho feminino, como o trabalho com a lã. As habilidades do

lar de Macrina são apresentadas de forma indireta: em nenhum momento específico Gregório

expõe que sua irmã é uma boa dona de casa, mas vai ao longo do texto apresentando suas

qualidades de “mulher do lar”, com habilidades específicas das esposas, [tem mais discussão

a ser feita sobre os trabalhos manuais femininos do lar] como quando esta decide nunca se

apartar da mãe e cuidar do corpo dela, mas o que chama atenção é a ênfase que Gregório

atribui ao cuidado que Macrina tem de produzir o alimento, o pão, com as “próprias mãos".

As mãos de Macrina aparentam ser um elemento especial, sagrado ou mesmo


divino. A expressão “com suas próprias mãos”25 está associada com um dos ensinamentos
paulinos aos tessalonicenses (1 Tess. 4,11) - o qual exorta que estes deveriam viver
comportadamente e tratarem de trabalhar com suas próprias mãos para se mostrarem honestos
e não passem por necessidades - e que se repete na representação de Macrina. É perceptível
que o autor tem a intenção de dar ênfase a ideia de que as mãos de sua irmã são
sagradas/consagradas, pois nos dois momentos em que expressão surge (5,3; 31,2), um
elemento sagrado está alí associado. No primeiro caso o autor destaca:
Muchas veces incluso preparaba con sus propias manos el pan para la madre. Esto,
sin embargo, no constituía su ocupación principal; solo después de haber
consagrado sus manos al servicio divino, en el tiempo restante, con su propio
esfuerzo, ella preparaba el alimento para su madre, estimando que esta ocupación
convenía a su género de vida. (Greg. Vit. Macr., 5, 3)

25
O grego para a expressão é tais idiais chersi (DINAN, 2009)
Esse destaque do autor é bastante intrigante, é quando ele mostra que a
personagem principal fazia questão de produzir o pão/alimento para sua mãe, pois julgava ser
uma atitude conveniente a seu estilo de vida (ascético). O pão é um dos elementos simbólicos
mais significativos para o cristianismo. Este não só representa o alimento físico, natural,
como o alimento espiritual, em algumas alegorias cristãs, inclusive nos textos bíblicos. Este
símbolo de alimento é associado à vida, corpórea ou espiritual. Sem ele não se pode viver.
Quando o autor trata de que sua irmã está interessada na produção do pão de sua mãe, ele
intenta dizer que esta quer cuidar da vida de sua mãe. Ser responsável por ela. Não somente a
vida natural, mas a espiritual principalmente.
Mesmo depois de ter consagrado suas mãos para o serviço divino, Macrina, de
acordo com o irmão, busca continuar a fazer os pães para sua mãe. O elemento da
consagração das mãos da personagem mostram uma certa santificação das mãos, depois com
o julgamento desta de que o trabalho manual de produção dos pães era algo coerente com a
sua vida consagrada, demonstra uma associação entre a sacralização de não somente das
mãos dela, mas de toda a sua pessoa, e isso é em parte fruto dos trabalhos manuais e do
trabalho de produção artesanal dos pães. Lembrando a constante associação que o autor faz
dos trabalhos manuais com elevação espiritual do indivíduo.
De acordo com Mateo-Seco, alguns autores e tradutores tratam desse trecho como
se este fosse uma confirmação da participação de Macrina nos trabalhos litúrgicos. Ele afirma
que J. Danielou se apoia nessa passagem para testificar que ela exercia a função de diaconisa,
produzindo o pão da Eucaristia. Mas nesse assunto ele tende a concordar mais, assim como
em vários outros tópicos, com a posição de Pierre Maraval, que acha difícil essa ideia de um
possível diaconato de Macrina. Apesar de muito coerente a posição de Danielou, acredito que
seja uma evidência muito diminuta. A ideia de consagração das mãos poderia significar uma
várias outras atividades, mas que evidentemente é um demonstrativo da distinção dela e uma
atuação decisiva ao serviço divino.
Em outro momento a expressão ressurge, nesse caso, é incontestável a
sacralização das mãos de Macrina, pois são descrições dos dois milagres, realizados por ela,
relatados na biografia. O primeiro é bastante didático, descrito por Gregório em forma de um
diálogo que este tem com Vestiana, a qual apresenta a ele uma marca no peito da santa, sobre
isso ele comenta:
Pois ali cresceu uma vez uma doença cruel, e havia perigo que o tumor exigisse uma
operação ou que a enfermidade se tornasse incurável, se ela se espalhasse para
próximo do coração. Sua mãe implorava-lhe freqüentemente e pedia-lhe que
recebesse a atenção de um médico, uma vez que a arte médica, ela [992B] disse,
havia sido enviada por Deus para salvar os homens. Mas ela julgava pior do que a
dor descobrir qualquer parte de seu corpo aos olhos de um estranho.

Então, quando a noite chegou, depois de cuidar de sua mãe como sempre, ela foi para
o santuário e suplicou por toda a noite a Deus a cura. Uma torrente de lágrimas caiu
de seus olhos no chão, e ela utilizou a lama feita de suas lágrimas como um remédio
para sua doença. Quando sua mãe sentiu-se desanimada e outra vez insistiu que ela
permitisse que o médico viesse, ela disse que seria suficiente para a cura de sua
doença se sua mãe fizesse o sinal sagrado no local com sua própria mão. Mas
quando a mãe colocou sua mão em seu seio para fazer o sinal da cruz, o sinal agiu e o
tumor desapareceu.

“Mas isto”, ela disse, “é um minúsculo traço da marca; apareceu no local da terrível
[992C] chaga e permaneceu até o final o que poderia ser, como imagino, uma
memória da visita divina, uma ocasião e lembrança da perpétua ação da graça de
Deus.”(Greg., Vit. Macr., 31.2)

O interessante dessa passagem está na motivação a qual levou Macrina a procurar


o milagre, pois esta não queria expor nenhuma parte de seu corpo a um estranho, mesmo um
médico26. Apesar do mal estar incomodando muito a santa, ela prefere esta do que permitir
que um homem, provavelmente, toque ou mesmo veja uma parte do corpo tão íntima como
esta. A fim de eliminar o tumor mamário, ela repete a ação de Cristo[citar a passagem], ao
juntar com a terra algum líquido expelido pelo corpo - enquanto ele usa a saliva, ela utiliza as
lágrimas27 - para produzir uma lama com poderes de cura. Essa é, claramente, uma forma de
equiparação de sua irmã a Cristo, uma testificação da santidade dela. Nesse caso, o uso das
mãos é para sinalizar com símbolo da cruz o local, como uma forma de consagração da lama
que ela pôs em seu peito, para que esta tivesse alguma ação milagrosa. A expressão nesse
caso está ligado a um milagre, algo que mais que testifica, no imaginário cristão, a santidade
de um indivíduo.
Pelo menos cinco membros da família de Gregório (Emélia, Macrina, Basílio,
Naucrácio e Pedro) abraçaram a vida ascética. É interessante que em cada caso o autor fala
dos trabalhos manuais com termos similares, sempre com a mesma forma da palavra grega
cheir (mão) e frequentemente relaciona com a palavra ergon (trabalho). Além das possivel
associação com a exortação de Paulo aos Tessalonicenses, Dinan acredita que essa linguagem

26
O qual parece, numa leitura nossa, que Gregório tenta tomar os devidos cuidados de não considerar uma
profissão inútil. A posição de Emélia é como se fosse uma forma de mostrar que tais profissionais, não só são
importantes, mas são divinamente conduzidos para salvar os homens, para não desagradar algum desses
homens.
27
Até nesses elementos pode se perceber a questão genérica, pois a saliva vem da boca, e ao homem (Cristo) é o
poder da fala, e a mulher (Macrina) o dever da observação, daí as lágrimas. As lágrimas são um elemento
efetivamente feminino, principalmente para o pensamento exposto em VSM pelo Nisseno. Pois em vários
momentos ele associa às mulheres o choro e o pranto. Por mais que Macrina fosse superior ao seu sexo, esta
ainda estava suscetível às vicissitudes de seu gênero.
também envolve a descrição do ascetismo egípcio, onde os trabalhos manuais eram uma
proeminente parte da vida dos padres do deserto. De fato, a expressão “com as próprias
mãos” parece ter se tornado uma expressão relacionada à vida ascética (DINAN, 2009, p.
141). Dessa forma, se torna evidente que a intenção do autor na representação de Macrina é
torná-la um paradigma da vida monástica.
Os trabalhos manuais e a humildade são elementos essenciais à comunidade
monástica. As intenções de Gregório em toda sua apresentação dessas expressões é a
disciplina das virgens consagradas que se enclausuravam nos mosteiros para que estas
mantivessem viva a prática do trabalhos manuais, como uma forma de elevação espiritual.
Outra forma de educação dessas virgens sobre o comportamento delas está na representação
que o Nisseno faz das mulheres membros da comunidade de Anesi.

3.3. O BELO E O BOM NA REPRESENTAÇÃO DE MACRINA

Como dito, o autor tem o objetivo na biografia de traçar, de alguma forma, o


desenvolvimento do caráter de sua irmã e a forma como esse caráter alcança e transforma
outras vidas. Uma de suas intencionalidades é tentativa de convencer outras mulheres a
buscar a mesma vida para elas, para isso ele se utilizará de vários recursos retóricos e
literários, uma dessas formas, ao nosso ver, está na apresentação da beleza como um atrativo
às leitoras.
O uso do belo nas representações biográficas de santas é muito comum naquele
contexto. Esse é um uso muito presente nas representações do feminino na Antiguidade, tanto
literárias como pictóricas. Contudo dentro do Cristianismo a noção do belo é um tanto
distinta da tradição clássica, pois os referenciais são distintos.
A tradição cristã concebia o Universo como belo e perfeito, pankalia, pois todas as
coisas foram feitas por Deus, o qual é perfeito e que, portanto, sua obra também é perfeita.
Essa noção está presente tanto nos textos bíblicos como nos escritos dos Pais da Igreja, os
quais também foram muito influenciados pela filosofia platônica. A hibridação entre essas
linhas de pensamento fundaram as bases do pensamento cristão medieval, assim como de
outros períodos da tradição cristã.
Contudo o pecado havia corrompido a natureza da criação, e então surge as coisas feias
do mundo, mas o belo deveria existir tanto como uma lembrança do princípio, como um
oposto ao feio para que este continuasse a ser feio28.
Gomes (2014) afirma que o “belo” entre os gregos estava associado às divindades, e
que mesmo depois, no cristianismo esse ideal continua, mas com certas diferenças
determinantes, pois a divindade cristã tanto pode ser associada ao belo como ao feio. Pois a
noção de belo entre os cristãos não está apenas associado ao belo físico, mas, principalmente,
ao espiritual, assim como este espiritual está ligado à conduta e comportamento dos
indivíduos. No caso das representações dos santos, assim como acontece nas representações
das virgens consagradas, a maior beleza está relacionada ao divino, ao espiritual e à conduta
comportamental.
Se pensarmos em Macrina, em sua biografia ela é constantemente apresentada como
alguém que têm uma “vida angélica”, esse tratamento está relacionado a uma série de
imagens da mulher ideal, mas no caso dela há uma exagerada valorização da opção pela
virgindade, considerado pelos cristãos como um estilo de vida mais puro, que ela decidiu
seguir. O comportamento da personagem é mais válido para os valores ideais dos cristãos do
que a beleza física.
Gregório, como filósofo e teólogo que era, chega a diferenciar os conceitos de “beleza
divina” e “beleza corpórea” afirmando que a “beleza divina” se manifesta através das
características opostas a “beleza corpórea”, pois a “beleza divina” é incorpórea e
incomensuravelmente superior à corpórea. Para Gregório o belo está intimamente ligado à
Deus, pois Ele é verdadeiramente Bom e Belo (Agathos e Kalos), somente Ele e aquilo que
criou poderia ser bom e belo. (RAMELLI, 2010, p. 356-363)
Não apenas na concepção cristã que existe uma correlação entre a noção de Belo com a
noção de Bom, até mesmo em distintos contextos históricos a relação entre esses dois
conceitos é estreita (ECO, 2010, p. 8). De certa forma uma expressão, na maioria das vezes,
significava a outra. Assim como a noção de feio passa a ter relação íntima com o mal.
Ramelli (2010) estudando as bases do pensamento do Nisseno sobre o conceito de belo
e bom em seus escritos apresenta vários exemplos de autores que foram importantes para a

28
Agostinho de Hipona explicava que a existência dessas deformidades são consequências de uma corrupção.
Essa corrupção só seria dano se acaso existisse um bem precedente, portanto a criação divina deve ter perdido
parte de seu valor original. Contudo, de acordo com ele, para que isso fosse realmente um castigo era necessário
que esse dano não fosse total, caso contrário deixaria de existir tanto o belo quanto o feio, pois se acaso apenas
existisse o feio, esse deixaria de ser feio, um dano, pois não haveria nada para se comparar, seria um absoluto
nada. (ECO, 2007)
construção do pensamento deste que, assim como ele, trocavam o uso dessas palavras, como
se tivessem o mesmo significado. Plotino é um dos exemplos que em muitos aspectos tem um
pensamento comum com Gregório sobre a noção de belo, e de acordo com Gomes, para ele:

[...], o belo é a vontade da alma de voltar ao Uno sendo guiada pelas ideias contidas
no intelecto. A alma sente-se atraída pelo belo e não pelo feio, visto que a alma
conhece o belo e não o feio. O que não é belo causa estranhamento à alma. O feio é
desordem, erro e falta. O feio é ausência, não ser e, portanto, mal. (GOMES 2014, p.
26)

Diferentemente, da perfeição da beleza dos deuses clássicos, a representação do Cristo


foge da ideia de belo fisicamente, para se aproximar, de acordo com o discurso cristão, da
beleza interna, espiritual. A horrenda morte de Cristo é celebrada como a mais bela cena de
amor para com os homens. A beleza não está, portanto, no externo, no aparente, mas no
significado intrínseco do ato. “No mundo cristão, a santidade nada mais é do que a imitação
de Cristo”(ECO, 2007, p. 56). O sacrifício sanguinolento e doloroso do “mestre” se tornou o
ideal aspirado pelos cristãos, principalmente aqueles que tiveram que suportar períodos de
perseguições, em que se tornavam mártires da causa, ou seja, tinham o mesmo fim que Cristo
teve. Esse ato foi louvado por aqueles que sobrevieram a esses mártires e por isso esses
indivíduos passaram a ser venerados entre os cristãos. A beleza desses indivíduos não estava,
necessariamente, no seu aspecto físico, mas na profundeza de sua espiritualidade ao ponto de
negar a sua vida em prol da causa cristã.
Porém isso de modo algum quer dizer que a beleza física não fosse louvada, apenas era
posta em segundo plano, é o caso da beleza de algumas virgens cristãs. Com o fim das
perseguições, os sacrifícios da forma que acontecia com os mártires não seriam tão comuns,
mas ainda se era necessário “sacrificar-se” por Cristo de alguma forma. Portanto, surge então
outras formas de sacrifício, um deles era a virgindade, o qual Macrina é um dos destaques na
prática dessa forma de ascese na Igreja Oriental. De acordo com Siqueira:

A prática da virgindade e da continência significava uma restauração da perfeição


originária em um movimento circular, cujo qual objetivo era a salvação por meio da
qual se retornava ao início da criação, ao passo que sua motivação ascética seria a
separação do mundo e sequela de Cristo. (SIQUEIRA, 2004, p. 96)

Fica, portanto, claro no trecho acima citado que a virgindade, e de acordo com grande
parte dos Clérigos do período, inclusive Gregório de Nissa, era considerada como um
sacrifício que restauraria o indivíduo a sua condição original da humanidade e que o
aproximaria com o divino. Seria então onde estar a real beleza das mulheres que decidiam por
esse estilo de vida. Usando as palavras de Gregório: “La venerable figura de la virginidad,
honrada por todos los que estiman que la belleza se encuentra en la pureza, sólo se da en
quienes la gracia de Dios ayuda a conseguir este buen deseo.”( Greg. de Nissa De Virginitate:
1, 1)
Contudo, percebe-se que nas representações escritas de muitas das virgens outro
elemento se repete continuamente é a beleza física. É bastante comum encontrar nas
biografias dessas mulheres elogios a suas belezas. Em História Lausíaca de Paládio
encontramos a representação biográfica de algumas monjas que “Lembradas como piedosas,
generosas, belas, obedientes e laboriosas, as mulheres sem dúvida apresentam um conjunto
de atributos que fazem delas monjas excelentes e, em alguns casos, exemplos de virtude para
os próprios homens” (SILVA, 2007, p. 95). De acordo com uma tabela construída pelo autor
do texto acima citado, Asela, Taor e “a virgem de Atanásio”, ganham destaque
principalmente por sua beleza. A beleza de Marcela também é lembrada em uma carta de
Jerônimo para Principia, de acordo com ele sua beleza era tão distinta que sempre atraía os
homens. (Jerônimo, Epist., 127)
Macrina também é representada tanto por sua beleza corpórea como sua beleza divina,
sua espiritualidade. Depois de descrever sobre o crescimento e educação de Macrina,
Gregório continua apresentando sobre o período em que ela já estava com idade para casar e
destaca sobre a sua beleza física: “Com relação a isso, é digno de nota que a beleza da
menina não podia ser ocultada, apesar dos esforços para escondê-la. Nem em todo o campo,
parece, existia algo tão maravilhoso quanto a sua beleza, em comparação com a das
outras”(Greg. Vit. Macr., 4, 1). Assim como no caso de Jerônimo quando este representa
Marcela em uma outra biografia, Gregório descreve que a beleza de sua irmã atraía a atenção
de muitos homens, pretendentes para pedi-la em casamento:

Tão justa era ela que mesmo as mãos dos pintores não podiam fazer justiça à sua
[964B] graça; a arte, que inventa todas as coisas e tenta as grandes tarefas, mesmo
como modelar uma imitação e figuras dos corpos celestes, não poderia reproduzir
com precisão a beleza de sua forma. Em conseqüência, um grande enxame de
pretendentes, propondo casamento, ajuntavam-se ao redor de seus pais.(Greg. Vit.
Macr., 4, 1)

A Beleza de Macrina também é exaltada mesmo estando esta já morta, no processo de


preparação do seu corpo para as celebrações fúnebres. O trecho é bastante emblemático e
digno de análise:
Quando nosso trabalho chegou ao fim e o corpo foi embelezado com o melhor que
tínhamos no lugar, a diaconisa falou de novo, insistindo que não era correto que ela
fosse vista aos olhos das virgens vestida como uma noiva. “Mas eu coloquei”, ela
disse, “um dos vestidos negros de tua mãe que acho que ficaria bem posto nela, para
que essa beleza santa não fosse adornada com o desnecessário esplendor da roupa.”
Seu conselho prevaleceu, e o vestido foi posto no corpo. Mas ela estava
resplandecente, mesmo naquele vestido negro, o poder divino sendo acrescentado,
penso, por esta graça final do corpo, de forma que, como na visão de meu sonho,
raios pareciam realmente brilhar de sua beleza. (Greg. Vit. Macr., 32, 1-2)

Fica bastante explícito na passagem acima que a grande beleza de Macrina era divina,
fruto de sua vida, de seus comportamentos. O que é bastante coerente com a ideia de “beleza
divina” proposta por Gregório. Mesmo com a simplicidade de um vestido negro, que
provavelmente não era muito comum de uso fúnebre, mas que em nada atrapalhou que a
beleza da grande mulher resplandecesse. O termo “beleza santa” está intimamente ligado ao
estilo de vida tomado pela virgem, a essa beleza não poderia está associado à indumentárias
luxuosas que visavam dar mais esplendor ao corpo. Isso se assemelha ao discurso comum
entre os bispos cristãos às mulheres, exortando a elas que evitassem os enfeites e adornos de
embelezamento, elas deveriam aprender a se vestir com humildade. É esse mais um dos
ensinamentos intrínsecos na representação da grande virgem.
Ainda é representado outras duas mulheres como belas na narrativa: Emélia (2.2) e
Vestiana (28.1). A primeira, mãe do autor, famosa por sua beleza e órfã de pai e mãe, teve
que contrair casamento, mesmo que sua vontade real era de se manter virgem, por conta do
perigo de se manter solteira. De acordo com o seu filho: “havia muito perigo nisso, se ela não
tivesse um companheiro de boa vontade, ela poderia sofrer algum fato não desejado, vendo
que alguns homens, inflamados pela sua beleza, estavam prontos para seqüestrá-la”. O
sequestro de jovens, aparentemente era muito comum na antiguidade. Lembrando que o
elemento da opção pela vida virginal está presente, a pesar de não ter conseguido, por conta
dos perigos, mas isso não impediu que mais tarde, como viúva, ela se juntaria a sua filha no
retiro em Anesi. Assim como Macrina representa a virgem ideal, Emélia representa que
mesmo que por algum motivo, uma mulher não conseguisse seguir a vida virginal, esta
poderia, ma sua viuvez, guardar-se e alcançar a elevação filosófica. Era uma segunda chance
para as mulheres.
O relato que Gregório dedica a Vestiana é bem singelo comparada a outros
personagens, ela é apenas a mulher que acompanha Gregório em todos os afazeres do ritual
fúnebre. Na sua apresentação o autor faz questão de apresentar a origem desta.
Entre estas, estava uma senhora de nascimento nobre, que tinha sido famosa na
juventude pela riqueza, boa família, beleza física e todas as outras distinções. Ela
havia se casado com um homem de alta posição e vivido com ele um curto
período. Então, quando seu corpo ainda era jovem, ela foi liberada do casamento,
e escolheu a grande Macrina como protetora e guardiã de sua viuvez, e passou seu
tempo principalmente com as virgens, aprendendo delas a vida de virtude. O nome
da senhora era Vestiana, e seu [988D] pai29 era um dos que compunham o
Conselho de Senadores. (Greg. Vit. Macr., 28, 1)

Sua representação está também associada a viuvez. A figura da viúva poderia está
associada tanto a uma pessoa carente de ajuda, o que constantemente aparece nos textos
sagrados, mas no contexto da expansão do cristianismo além da figura da pobre viúva, surge
a figura da rica viúva, normalmente muito rica e donas de grandes propriedades. A essas
mulheres foi produzida inúmeras homenagens algumas em forma de biografias ou elogios
fúnebres. A maior parte dos textos cristãos sobre elas dizia que a viúva deveria ter apenas um
casamento. Dentre as atividades exercidas pelas viúvas, a sua principal estava ligada a oração
nas comunidades, mas as atividades destas estavam submetidas aos bispos e diáconos, elas
deveriam sempre pedir permissão aos líderes locais. (ALEXANDRE, 1990) Sobre a
personagem, o caráter bem frizado é sua origem social abastada, tanto pai como o marido,
tinham altas posições sociais. Com essa personagem Gregório incentiva a outras viúvas ricas
a escolherem a vida casta e a acompanharem as virgens nos mosteiros. Com o exemplo de
Vestiana, Gregório talvez queira mostrar a importância do trabalho das viúvas paras as
comunidades monásticas. Além de apresentar um modelo de mulher invejável, bela, rica, de
boa família, bem sucedida, etc.
A beleza física dessas mulheres não deve ser entendida como mera coincidência, ao
pensarmos nas intencionalidades de seus escritores, baseado em seu contexto sociocultural.
Portanto, a representação dessas mulheres é baseada num discurso masculino idealizado que
visa a criação de modelos para as mulheres. Apesar de um tanto exagerada a afirmativa de
Wolf é bastante significativa em nosso estudo: “O mito da beleza não tem absolutamente
nada a ver com as mulheres. Ele diz respeito às instituições masculinas e ao poder
institucional dos homens.” (WOLF 1992: 16-17) Não que necessariamente a beleza apenas
diga respeito ao poder institucional masculino, as relações entre os gêneros não é algo muito
simples e é cheio de particularidades, mas o que queremos destacar é que o masculino, na
maioria das situações, aplicava relações de dominação sobre o feminino e no caso das
representações biográficas do feminino isso era uma realidade.
Na biografia VSM o autor também destaca a beleza masculina de Naucrácio, seu irmão,
que morrera jovem. De acordo com a versão espanhola: “El segundo de los cuatro hermanos,
el que venía después del gran Basilio -se llamaba Naucracio-, era superior a los demás por la

29
Na versão espanhola e italiana os tradutores apontam que o pai de Vestiana era Araxio, talvez não seja o
mesmo Araxios, sacerdote responsável pela Igreja dos Mártires, onde Macrina, junto com seus pais, fora
enterrada.
buena disposición de su naturaleza, por la belleza de su cuerpo, por su fuerza, por su rapidez
y por su habilidad para todo. ” (Greg. Vit. Macr., 8, 1)
Na representação de Naucrácio é apresentado uma diferença da noção de beleza
feminina. Às outras personagens Gregório sempre apresenta a figura dos maridos e do
casamento de alguma forma associado. Em todas, a beleza é louvada antes da menção do
casamento, ainda em sua condição virginal. A Naucrácio, apesar deste também ter escolhido
pela castidade, o elemento da virgindade ou do casamento não é mencionada, não de forma
explicita30. A beleza da mulher parece estar relacionada a visão masculina sobre ela, e a
beleza masculina está associada a “força, rapidez e habilidade para aprimorar sua mão para
qualquer coisa” (versão portuguesa). Estes elementos tidos por tipicamente masculinos estão
associados a uma figura que representa a masculinidade. Naucrácio, não apenas por sua
beleza, representa a beleza aventureira masculina: força, rapidez, habilidoso nas atividades
manuais, hábil em caça e pesca, hábil na arte retórica (discurso que apresentou ainda com 22
anos), humilde, ajudador dos mais frágeis (um grupo de idosos que viviam próximo a floresta
em que vivia), generoso, eremita, etc. Além de um “belo” homem era um “bom” cristão.
O belo (Kalos), por estar associado muitas vezes ao bom (Agathos), potencializa o valor
da imagem construída pelos padres em biografias e difundidas nas comunidades cristãs. Se
eles tinham a intenção de construir modelos normativos para a conduta das mulheres (ou
homens), eles deveriam ser os mais próximos da perfeição, que fizesse os leitores desejar ser
igual. De acordo com Eco (2010) aquilo que consideramos bom não apenas gostamos, mas é
algo que também queremos ter, possuir, ser. Algo bom é aquilo que nos produz desejo de ter.
No caso dos modelos femininos ascéticos é essa a intencionalidade dos escritores, a imagem
das virgens representadas nas biografias deve ser algo almejado, desejável para se tornar um
modelo. E nada mais interessante para isso do que algo que seja bom e belo. Lembrando que
a noção de beleza principal para os cristãos estava nas atitudes e no exemplo de vida e um
dos elementos mais importantes e presente na representação do ideal de comportamento
feminino estava na humildade e no valor dos trabalhos manuais.

30
Se acredita que este tenha seguido a vida casta por conta das afirmações que Gregório faz sobre a vida que
ele tomava nesta floresta, “llevando el género de vida de los filósofos y haciendo feliz a su madre con este
género de conducta”(Greg. Vit. Macr., 9,1). Lembrando a comum associação entre o viver filosófico e a vida
virginal. Em outros momentos é afirmado que ele vivia dominando a sua juventude (espanhol), o calor da
juventude (italiano), o que dá a entender de sua condição casta. Na versão portuguesa é explicitado a sua
conduta casta: “tanto pelo modo no qual adornou sua própria vida pela continência”. (ibidem, 9,1, grifo nosso)
3.5. A LEGITIMAÇÃO DE PODER POR MEIO DE MACRINA [conclusão]

BIBLIOGRAFIA

ASSMANN, Selvino José. Estoicismo e helenização do cristianismo. Revista de Ciências


Humanas (CFH/UFSC), Florianópolis, v. 11, n.15, p. 24-38, 1995

PEDREGAL, Amparo. La Mulier Virilis como modelo de perfección en el cristianismo


primitivo. In: GOMEZ-ACEBO, Isabel (ed.): La mujer en los orígenes del cristianismo.
Bilbao: Desclée de Brouwer, 2005.

FREITAS, Edmar Checon de. As regras monásticas de São Basílio de Cesaréia e as relações
de poder no Oriente Romano do século IV.. Revista de História (UFES), Vitória-ES, v. 5, p.
128-134, 1997.

GOMES, Josiene L. A Estética das Virtudes: a relação entre beleza e virtude na obra A
Cidade das Damas de Christine de Pizan. Monografia (graduação) – Universidade de Brasília,
Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Filosofia, 2014.

SILVA, Gilvan Ventura da. “Ascetismo, Gênero e Poder no Baixo Império Romano: Paládio
de Helenópolis e o status das Devotas Cristãs”. HISTÓRIA, SÃO PAULO, 2007, pp. 82-97.

ECO, Umberto (Org.). História da Feiura. Rio de Janeiro, 2007.

ECO, Umberto (Org.). Historia de la Belleza. Traducción de Maria Pons Irazazábal.


Barcelona, 2010.

WOLF, Naomi. O Mito da Beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as
mulheres. Rio de Janeiro, 1992.

GIRARDI, Mario. L’amore carattere proprio del cristiano»: le origini della spiritualità
identitaria di S. Basilio Classica et Christiana, 1, 2006, 127-144. http://cscc.uaic.ro/wp-
content/uploads/publicatii/cc/Classica_et_Christiana_1_2006.pdf

Você também pode gostar