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A Nocao de Tempo e o Ensino Da Historia - Ok PDF
A Nocao de Tempo e o Ensino Da Historia - Ok PDF
1, 1991
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“En fait, l’historien ne sort jamais du temps de l’histoire : le temps colle à as pensée comme la terre à la bêche du
jardinier.”1
1
BRAUDEL, Fernand. Écrits sur l’histoire. Paris: Flammarion, 1969. p.75
2
Vide VIEIRA, M. M. do Pilar et alii. A pesquisa em História. São Paulo: Ática, 1989.
3
Vide CARDOSO, Ciro Flammarion. Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1988 e ZAIDAN FILHO,
Michel. A crise da razão histórica. Campinas: Papirus, 1989.
4
Escolhi para discutir neste texto a questão do Tempo no ensino dos cursos de graduação em História, tanto por
estar no campo nos últimos anos, como pelo fato de que, apesar das dificuldades conceituais, Ernesta Zamboni e
Circe Maira Fernandes Bittencourt têm, nos últimos anos, dedicado alguns artigos à questão do ensino de 1o e 2o
graus.
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LPH - Revista de História, v.2, n. 1, 1991
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LANGLOIS, Ch.V. e SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Renascença, 1946. p.
74-172 (1a ed.1898).
6
BAUER, Wilhelm. Introducción al estudio de la historia. Barcelona: Bosch, 1970 (1a ed.1921);
7
BRAUDEL, Fernand. A longa duração. IN: História e Ciências Sociais. Lisboa:Presença, 1972. (1a ed. 1958).
8
CORDOLIANI, A. Comput, chronologie, calendries, e BEAUJOUAN, G.Les temps historiques. IN:
SAMARAN, Ch. (org). L’historie et ses mèthodes. Bruges:Gallimard, 1961, p.31-51 e 51-67.
9
LE GOFF, J. (org). Memória – História. Enciclopédia Einaudi, v.1, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1984. p.260, 293, 311, 370, 393 e 425.
10
Ver, entre outros, VILAR, Pierre. O tempo do Quijote; BAGU, S. Tiempo, realidad social y conocimientos;
ARIÉS, Ph. O tempo da história; e ainda, Le Goff, Duby, Foucault, Thompson, Taylor, etc.
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LPH - Revista de História, v.2, n. 1, 1991
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sendo, como em senso comum, o articulador dos atos humanos, fator explicativo em si
mesmo, inquestionável, pois é percebido sensível e empiricamente.
Falta aos especialistas a retomada da questão básica do tempo. Em alguns campos
já se está recolocando a questão como fundamental, para a compreensão do próprio
conhecimento científico.11
Não pode o ensino de História, nos cursos de graduação, ficar limitado a apresentar
a questão do Tempo como restrita a dois grandes debates teórico-ideológicos, como a
questão das periodizações europocêntricas ou etapistas,12 e, a questão da seleção dos
marcos simbólicos sociais, dos vencedores e dos vencidos.13
Ao fazer crítica a seleções ideológicas temporais, como a periodização e o marco
temporal do vencedor, não se deve jogar fora a questão do Tempo.
Mesmo os críticos mais acirrados das periodizações não abandonam o Tempo
tripartite.14 Afinal, para todos nós, é claro que o abandono do Tempo leva a História à
extinção. Na sociedade contemporânea, encharcada de informações e dados aleatórios, a
consciência histórica não pode deixar de ser um elemento articulador.
O descaso com a questão Tempo deixa a sociedade diante de uma perplexidade:
diversos Tempos/diversas Histórias levarão à incompreensão e à certeza de que o Tempo é
o solucionador das questões que o homem colocou em seu caminhar, e ele, o Tempo, é um
deus “ex-machina” que resolverá os problemas que os homens não puderam resolver.
A sacralização do passado, que tanto os historiadores combateram, retornará pela
sacralização do Tempo.
11
Vide POMIAN, K. L’ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984 e Current Sociology, 37 (3), winter 1989 – The
sociology of Time, org. Gilles Pronovost.
12
Vide CHESNEAUX, J. Hacemos tabla rasa del pasado? Madrid: Siglo Veintiuno, 1984 (1a ed 1976) e
FERRO, Marc. A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: IBRASA, 1983.
(1a ed 1981) e FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
13
Vide VEZENTINI, C. & DE DECCA, E. A Revolução do vencedor. Contraponto. Rio de Janeiro: 1976 e DE
DECCA, Edgar. O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1981. Ver também BENJAMIN, Walter. Obras
escolhidas. São Paulo:Brasiliense, 1985, 1987, 1989.
14
CHESNEAUX, Jean. L’axe passé/présent/avenir. Espaces Temps. Paris, n. 29, 1985, p.13, onde diz:
“L’histoire c’est, d’une part, un esemble de tecniques: tout le monde ne peut pas’improviser spécialiste de la
connaissance historique ... d’autre part, représente la continuité interne de la dimension du temps, l’articulacion
d’une à une autre”.
FONTE
ANAIS DO VII ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH – MG – Crise de Ideologias – Mariana,
24 a 28 de setembro de 1990. Separata da Revista de História, vol.2 – número 1 – 1991 – Depto. de História da
UFOP, p. 38 a 41.
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IEA/USP - ESTUDOS AVANÇADOS Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - fevereiro 1991
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O TEMPO NA HISTÓRIA1
Raquel Glezer
Depto. de História - IEA/USP
Apesar de não ter combinado com o Bruni2por onde começaria, só posso mesmo
começar quando a Filosofia da História se separa da História e, o que chamamos de
História como um processo de conhecimento, uma forma de apreensão da realidade,
tornou-se possível ao ser humano, independente da Providência Divina, independente da
vontade divina, independente de algo transcendente aos homens, à natureza e à própria
História. A laicização do pensamento permitiu a existência da História e ela surge com
duas variáveis obrigatórias: o espaço e o tempo. O tempo da história, quando ela se
estrutura como conhecimento, é um tempo que chamamos tripartite. É o tempo que vem
do cristianismo, laicizado, mas a ligação com o futuro permaneceu forte e marcada. O
tempo da história inclui, obrigatoriamente, o passado, o presente e o futuro. Esse futuro,
quer seja o ideal de progresso, quer o ideal de liberdade, quer o ideal de razão, está
sempre ligado a uma idéia de progresso intelectual, material, de desenvolvimento, da
submissão da natureza à força humana, aos atos humanos, à vontade humana. A
separação da Filosofia da História, que permitiu a criação da História, a formulação do
pensamento histórico, fez com que o tempo, na história, passasse a ser encarado, pelo
menos naquele momento, como um absoluto. Não se discutiu a questão do tempo, porque
o tempo é o elemento organizador do passado da humanidade, permite o arranjo e a
comparação das diversas sociedades, permite a articulação de elementos aparentemente
desconexos. Se para a filosofia existe o problema do mundo material ser um mundo
degradado, para a História , quando se formula, ao se separar da Filosofia da História, na
qual a explicação de tudo o que o ser humano fez, faz ou fará, era dada pela
transcendência divina ou qualquer outro processo de explicação doa atos humanos, o
elemento tempo entrou como elemento de articulação, como uma conexão causal,
primária, extremamente elementar. Os fatos foram agregados por proximidade, mas é o
tempo que vai permitir ao homem explicar os fatos, independente da vontade divina. O
tempo também vai permitir a periodização, a criação dos recortes temporais e é estranho
que à medida que a História se separa da Filosofia da História, mantenha elementos da
própria Filosofia da História. Ela mantém, por exemplo, a idéia de uma história universal,
uma história católica. Essa história universal, na história laica, vai manter a periodização
em idades. É claro que a origem das idades, tal como as conhecemos, numa visão
europocêntrica, bem mediterrânea, é ligada ao Renascimento. É uma periodização que
tem sido bastante criticada pelos historiadores, porque, como se pretende uma
periodização universal, a história dos povos não mediterrâneos só passa por essa história
universal quando esbarra na história dos povos do Mediterrâneo. Entretando, essa
concepção europocêntrica que presidiu a todo o desenvolvimento do conhecimento
histórico, resiste a duras penas às críticas que vêm sendo feitas desde meados da década
de cinquenta, desde o início do processo de descolonização dos povos africanos e
asiáticos. Mesmo os autores europeus, a partir da década de sessenta criticam essa
periodização em idades universais definidas, estruturadas, iguais para todo o mundo.
Entretanto, ela continua como referência, é um recorte, permite que o tempo se divida e é
1
Comunicação transcrita da mesa-redonda O Tempo na Filosofia e na História, auditório de Cinema da Escola
de Comunicação e Artes da USP em 29 de maio de 1989, páginas 14 a 19.
2
A autora refere-se ao Prof.José Carlos Bruni, professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP e
também autor nesta coleção.
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IEA/USP - ESTUDOS AVANÇADOS Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - fevereiro 1991
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IEA/USP - ESTUDOS AVANÇADOS Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - fevereiro 1991
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FONTE:
INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS
Universidade de São Paulo / FFLCH
Coleção documentos – Série Estudos sobre o tempo – vol.2
O Tempo na Filosofia e na História
Participantes: Maria Helena Oliva Augusto, José Carlos Bruni, Raquel Glezer e Milton
Santos.
Fevereiro/91
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IEA/USP - ESTUDOS AVANÇADOS Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1991
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“C’est dans le temps se déroule la vie de l’homme, c’est dans le temps que se succèdent les événements et les modes de
pensée dont le ensemble constitue l’histoire du monde, c’est à travers le temps que l’homme écrit l’histoire”. 2
Este texto é uma parte da reflexão sobre o Tempo na História como elemento de
ruptura e significação, discussão do ano em curso do Grupo de estudos sobre o Tempo do
IEA/USP.
Falar sobre o Tempo e História é ato de retomada de algumas questões básicas de
reflexão sobre o conhecimento histórico, tal como se tem concretizado em termos de
Epistemologia e Teoria da História.
O que significa Tempo para a História? A resposta clássica é que o Tempo é uma
das variáveis obrigatórias, ao lado de Espaço. Truísmo consolidado, repetido
mecanicamente no decorrer dos anos. A ninguém ocorre questionar a origem das variáveis,
percebidas como evidentes em si mesmas, verdade dada e inquestionável, tornando
desnecessária a preocupação com o significado delas e as suas relações com o
conhecimento histórico.
Quando retraçamos a relação da História com o Tempo, temos a oportunidade de
verificar que a questão é complexa, envolvendo facetas multiformes.
Tempo, para a História, além de ser uma variável obrigatória, é, fundamentalmente,
uma questão teórica.
O surgimento da História como campo de conhecimento, apreensão da realidade,
com teorias, métodos e técnicas de trabalho, tornou-se possível com a separação do
pensamento filosófico da Filosofia Cristã de História. Quando a História deixou de ser a
História da Humanidade (História Universal, isto é, Católica), distinguindo-se da Filosofia,
o processo de conhecimento histórico pode definir seu objeto: o estudo da ação dos
homens, a relação dos homens com a natureza, a relação dos homens entre si.
Na separação, a História manteve o conceito de Tempo cristão, que se era, até
então, sacro, escatológico, passou a ser laico, mas manteve a finalidade, qualquer que fosse
o nome atribuído a ela: Salvação pelo Juízo Final foi substituído por Liberdade, Razão,
Progresso, Evolução, Revolução, etc.
A noção de Tempo, apesar de laicizado, continuou sendo o do Tempo cristão:
passado, presente e futuro. Ocorreu apenas uma permuta de significados: Cristão e Queda
da Humanidade transformaram-se em Passado; Oferta da Salvação em Presente e Juízo
Final em Futuro.
Tempo deixou de ser a expressão da Providência Divina e tornou-se expressão da
vontade dos homens, direcionado por eles. Esse Tempo transformou-se em absoluto.
Para a História, Tempo acabou sendo utilizado como fator básico, elemento de
união, fator explicativo, coordenador do passado dos homens, que não estando mais
inseridos na caminhada para a Salvação, estavam imersos no Tempo, no caminhar dos
homens em direção ao Futuro, qualquer que fosse o nome dado a ele.
Tempo permitiu aos historiadores estabelecer relações entre as sociedades com
diferentes formas de contagem, diversos calendários, marcos desconexos. Surgiu a
Cronologia, como ciência auxiliar, que permitiu a formulação de tabelas cronológicas,
1
Texto retirado da Sessão de Grupos de Pesquisa “Grupo de Estudos sobre o Tempo do IEB/USP” realizado
em 3 de setembro de 1990 durante o X Encontro de História – Movimentos Sociais – do núcleo de São Paulo da
Associação Nacional dos Professores Universitários de História – ANPUH, em Franca/SP.
2
CORDOLIANT, A. Comput, chronologie, calandriers, In: SAMARAN, Ch. (org.) L’histoire et ses méthodes.
(Bruges) Gallimard (1961), p. 31-51.
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1991
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LANGLOIS, Ch. V. & SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Renascença, 1946, p.
74 e 172 (1a ed.1898).
4
BAUER, Wilhelm. Introducción al estudio de la historia. Barcelona:Bosch (1970). (1a ed. 1921)
5
BRAUDEL, Fernand. A longa duração. In: História e Ciências Sociais. (Lisboa) Presença, 1972. (1a ed. 1958).
6
CORDOLIANI, A. op.cit., e BEAUJOUN, G. Les temps historiques, op.cit. p.51-67.
7
LE GOFF, Jacques (org.) Memória-história. Enciclopédia Einaudi, v.01 (Lisboa) Imprensa Nacional-Casa da
Moeda (1984), ver. p. 260, 293, 311, 370, 393 e 425.
8
Ver, entre outros, BAGU, Sergio. Tiempo, realidad social y conocimiento; VILAR, P. El tiempo del Quijote;
TOULMIN, S. y GOODFIELD, J. El descubrimiento del tiempo; também LE GOFF, THOMPSON, TAYLOR,
CHESNEAUX, etc.
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1991
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1991
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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dar sentido ao Tempo, pois com a certeza da possibilidade de Salvação, trazida pelo Cristo,
a realização dela foi transferida para a história coletiva ou para a individual.
Santo Agostinho, em suas reflexões, explicou a ambivalência pelo fato de que no
âmbito da Eternidade, os homens, subordinados à Providência, dominam seu próprio e o da
Humanidade simultaneamente.
Nos séculos seguintes, do VI ao XI, a sociedade medieval praticamente congelou a
reflexão histórica, retirando o Tempo da História ao assimilá-la à História da Igreja,
renegando a História, preferindo como gêneros a epopéia e a canção de gesta, provocando
o esvaimento da historicidade, resultante da atuação dos pensadores políticos ligados ao
agostinianismo.
A questão do Tempo só foi retomada posteriormente, quando o tema do “final dos
tempos”, que ressurgira nas heresias escatológicas e no milenarismo dos grupos oprimidos
e esfomeados, aos quais o Apocalipse surgira como esperança e alimento, se esgotara em si
mesmo.
Sem o contrapeso do milenarismo, no século XII, o Tempo apareceu instalado na
Eternidade, isto é, como Tempo linear, com sentido, direção, caminhando para Deus, e as
transformações econômicas propiciaram a retomada da reflexão sobre a História,
principalmente à partir do desaparecimento do Império Romano, da barbarização do
Ocidente, da restauração carolíngea e da restauração otoniana. O cristianismo, inserido na
evolução histórica, dominada esta pela Providência, e ordenada pela Salvação, precisava
esclarecer as causas segundas, estruturais ou contingentes. Havia a necessidade de
ultrapassar um duplo obstáculo: a visão judaica da Eternidade estática e o simbolismo
medieval, que não permitiam a investigação e a sistematização da realidade concreta do
tempo da História, para se obter uma concepção de tempo maleável.
Hugues de Saint-Victor, segundo Le Goff na obra citada, recuperou a história:
“historia est rerum gestarum narratio”, uma narração seriada, com sucessão organizada,
continuidade, articulação, elos de um sentido – iniciativas de Deus, fatos de Salvação. Esta
História retomou uma das vias que já fora outrora trilhada: a teoria das idades, dos
clássicos gregos, que então passou a ser semelhante aos Dias da Criação da Bíblia. História
que desde então passou a usar a noção de transferência, “translações”, a história das
civilizações percebida como uma história de transferências, tanto no campo intelectual – o
conhecimento se transferiu de Atenas para Roma, de Roma para Paris, como no campo
político, onde o Império fizera também uma transferência. A ligação entre sentido do
tempo e sentido do espaço aparece como uma novidade revolucionária, a qual se soma a
concepção organicista do Estado de João de Salisbury.
Mas, até então, Tempo era percebido como Dom, isto é, doação de Deus para
usufruto dos homens, da mesma forma que ele doara o usufruto de outros elementos da
natureza, como o sol e a água. Claramente, o Tempo como Dom não poderia ser submetido
ao controle dos homens, não poderia ser utilizado de forma a permitir ganho material aos
homens, pois tal fato significaria a exploração de algo que não pertencia aos homens.
De maneira quase imperceptível, o desenvolvimento econômico dos séculos XI e
XII, o processo de aceleração econômica e as transformações das condições mentais,
introduziram uma nova percepção de Tempo.
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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Vide GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa:Arcádia, 1963.
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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urbano do trabalho e das transações, medido como o espaço, pela duração de um trajeto,
pela maleabilidade de outros caminhos.
Le Goff exemplificou a profunda alteração que a nova relação Tempo e Espaço
trouxe pela introdução da perspectiva.
As transformações trazidas pela introdução da vida urbana, pela formação de uma
sociedade urbana, provocaram a divisão do Tempo em três esferas, o que acabou
contribuindo para transformar a relação dos homem com ele.
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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THOMPSON, E.T. Tiempo, disciplina y capitalismo. In: Tradición, revulta y consciencia de clase. Estudios
sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelon: Crítica, 1979.
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Vide CHESNEAUX, Jean. De la modernité. Paria: La Découverte-Maspero, 1983.
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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Hoje, todos nós somos serviçais e prisioneiros do Tempo: pelo modelo econômico,
pela lógica do capitalismo, pelas exigências da ordem social, as cadeias do tempo
invadiram a vida privada dos indivíduos.
Mesmo o tempo fora do trabalho, o tempo pessoal, foi submetido ao mesmo
tratamento: a sociedade de consumo invadiu, programou, sincronizou tudo: zonas
turísticas, residências secundárias, artigos culturais.
O homem de hoje possui “fome de tempo”, não pode perdê-lo, dispendê-lo.
“Ganhar tempo” literalmente significa ganhar algo sobre alguém: não pode haver ganhos
de tempo sem que ocorra perdas de tempo – o tempo dos conflitos de interesses.
Na sociedade contemporânea os seres humanos introjetaram um relógio interior,
que serve de instrumento de servidão temporal. “Gerir o tempo”, ter “tempo livre”
transformou-se em anseio e pesadelo, tanto para os aposentados, como para os
desempregados; também para uma classe ociosa em busca de lazer, e para as classes mais
favorecidas.
O ser humano está preso ao Tempo: há uma forte pressão social para a programação
rígida: planos, programas, estratégias – atos asseguradores, mas também invasores.
Tudo é dominado pelo Tempo efêmero e instantâneo, até o próprio tempo pessoal –
a própria vida afetiva mascara mal a relação com o modelo econômico dominante.
A sociedade superprogramada, supersincronizada, foge à realidade profunda do
tempo vivido pelos homens, escamoteando o deslocamento unívoco no eixo da vida do
indivíduo em direção à morte. Não há o reconhecimento dos tempos diferenciados, tais
como o tempo da doença, o da juventude, o da “terceira idade”. Não há
complementaridade entre os diversos tempos, nem há relação de continuidade.
Entretanto, devemos destacar que o tempo individual é profundamente diverso do
tempo do equipamento mecânico, criando novos problemas médicos, decorrentes de: uso
incorreto da visão; ritmo de trabalho em vinte e quatro horas, atravessando dia e noite;
inversão do uso do organismo humano através das estações, que até recentemente
repousava no inverno e aproveitava o verão para o trabalho, ritmo invertido em nossos
dias, com o verão utilizado como tempo de férias, e inverno como máximo de atividade.
Desta maneira, o Tempo transformou-se em senhor dos homens.
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Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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IEA/USP - ESTUDOS AVANÇADOS Coleção DOCUMENTOS
Série Estudos Sobre o Tempo - maio 1992
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FONTE:
Instituto de Estudos Avançados
USP/S.Paulo
Série Estudos sobre o tempo – número 6
Tempo e Poder
maio de 1992
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Anais do III Encontro Nacional de Pesquisadores do ensino de História setembro 1997
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Para nós, historiadores do final do século XX, a variável tempo deixou de ser um
simples elemento explicativo de casualidade, na qual um fato era explicado por outro, em
seqüência temporal, cronológica, linear, teleologicamente direcionado, e se transformou,
sob a influência das mutações que os estudos históricos sofreram, na segunda metade
deste século, em sua prática e teoria, em um elemento complexo, reconhecidamente
etnocêntrico, não linear, não teleológico, fragmentado, e podendo ocorrer em velocidades
diferentes, as temporalidades, segundo os fenômenos estudados.
Retratar a separação da História do mito, momento em que a dinâmica superou a
estática, em que os homens assumiram o lugar dos deuses como construtores de sua
história, em que a circularidade do tempo, estagnado, fixo, eterno, foi substituída pela
linearidade não é mais necessário.
Da mesma forma, a nosso ver, é redundante, já que não explica como nós
trabalhamos e concebemos o tempo histórico: retomar a temporalidade sublunar e a
presentificação dos fatos dos gregos; a Retórica romana como “mestra da vida”; a
introdução do eixo passado/presente/futuro da tradição judaico-cristã; a Filosofia Cristã
de História, tendo a História Sagrada como eixo condutor dos homens e a teleologia
escatológica do Juízo Final no horizonte; o processo de desacralização da História; a
substituição da teleologia sagrada pela profana (Razão, Progresso, Revolução); a História
como ciência, preocupada com o devir, pensando o tempo linear de casualidade primária,
disputando espaço com a História cíclica, de tempo repetitivo; a substituição do tempo da
natureza pelo tempo social; do tempo do trabalho natural pelo tempo do trabalho
industrial ; o domínio do tempo pelo homem e o domínio do homem pelo tempo.1
No processo de construção da disciplina História e da ciência no século XIX
consolidou-se a laicização, processo que vinha desde o século XVIII, houve o abandono
da Filosofia Cristã de História como processo explicativo da história da humanidade, os
homens foram vistos como direcionados pelo seu devir, mas o tempo continuou sendo a
variável controladora, elemento explicativo da casualidade.
Para os historiadores da História metódica, denominados “positivistas”,
“cientificistas”, “empíricos”, tempo era uma questão de calendário, tabelas cronológicas,
contagens comparativas. Boas fontes, tratadas de forma adequada, dariam boas datas. Ele
1
Ver:
AUERBACH, Eric. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva,
1971;
CARDOSO, Ciro Flammarion. O tempo das ciências naturais e o tempo da História. IN: Ensaios racionalistas.
Filosofia, Ciências Naturais e História. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p.25-40;
CHAUNU, Pierre. De l’histoire à la prospective. Paris: Robert Lafont, 1975;
DONATO, Ernani. História do calendário. São Paulo: Melhoramentos/INL/MEC/EDUSP, 1976.
GLEZER, Raquel. O tempo e os homens: dom, servidor e senhor. IN: CONTIER, Arnaldo D. História em
debate. São Paulo: INFOUR/CNPq, 1992;
_______. A noção do tempo e o ensino da História. LPH – Revista de História, Mariana:MG,
Dep.História/UFOP, 2 (1): 38-41, 1991;
_______. O tempo na História. IN: O tempo na Filosofia e na História. São Paulo: IEA/USP, fev. 1991, p.14-
19;
_______. Tempo & História: a variável inconstante. IN: Uma proposta interdisciplinar. São Paulo: IEA/USP,
maio 1991, p.10-13;
ROSSI, Paolo. Os sinais do tempo. História da terra e história das nações de Hooke a Vico. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992;
TOULMIN, S. y GOODFIELD, J. El descubrimiento del tiempo. Buenos Aires: Paid[os, 1968.
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1
Anais do III Encontro Nacional de Pesquisadores do ensino de História setembro 1997
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era percebido e tratado como linear, progressivo e homogêneo. Não era um problema,
mas ao contrário, a explicação dos fatos. O encadeamento das datas e dos fatos era a
História e se explicava por si mesmo.
Todos nós conhecemos os livros que estruturaram sua organização em causas
próximas e remotas. Estas, de tão remotas, lembravam a preocupação com as origens:
como tudo começou? Estávamos a um passo de Adão e Eva, a um passo do Gênesis.
Há numerosas, famosas e repetidas anedotas sobre historiadores tão preocupados
em conhecer como tudo havia começado que passaram a vida nos arquivos, pesquisando
e juntando documentos, sem nunca escrever uma linha sobre o assunto, pois não
conseguiram atingir as causas iniciais.
Desde o final do século XIX e início deste, várias correntes interpretativas de
História questionaram a causalidade temporal primária, valorizando a relatividade da
observação, da percepção, do espírito do tempo, da construção do objeto e portanto da
cronologia, desligando a explicação do fato histórico do tempo seqüencial cronológico.
Na segunda metade deste século, os historiadores, que já haviam se definido como
cientistas sociais, separaram-se totalmente da Filosofia na questão do tempo, trabalhando
com tempo social, compreendido como o tempo construído, o tempo histórico relativo. O
problema tempo/eternidade foi abandonado. Filósofos ainda hoje discutem como os
historiadores devem/deveriam discutir e atuar na questão do tempo. Mas na prática a
discussão não nos atinge mais.
Nós abandonamos a concepção de tempo linear contínuo e homogêneo, com
calendários, cronologias e causalidade primária.
Se os problemas políticos das décadas de vinte e trinta levaram vários
historiadores a questionar o devir, a noção de progresso contínuo e homogêneo, a
Segunda Guerra Mundial com a destruição sistemática de bens e valores dos inimigos (de
ocasião), o subsequente processo da Guerra Fria e a descolonização da África e Ásia
encaminharam o processo de autocrítica da percepção temporal, do etnocentrismo
europeu e da homogeneização temporal teleológica.
A desmontagem dos impérios coloniais levou ao questionamento da periodização
clássica européia, que havia sido imposta como parte do processo colonizador e
civilizatório. As idades, eras e impérios correspondiam à herança cultural da civilização
ocidental cristã mediterrânica, significativas para seus formuladores, mas extemporâneas
para outras civilizações e outras culturas.
As experiências políticas das nações que na segunda metade deste século se
libertaram do domínio imperialista (quer europeu quer asiático) encaminharam outras
questões sobre o devir da História, até então pensado como uniforme e direcionado.
A crítica ao etnocentrismo, ao caminho unívoco da humanidade se de um lado
destruiu certezas e criou inseguranças, por outros possibilitou novos olhares, novas
perspectivas, novas interpretações.
Para os historiadores, os estruturalismos trouxeram angústias e questionamentos.
O tempo deixou de ser percebido como uniforme, unívoco e homogêneo. A relatividade
do tempo como fenômeno científico, a fragmentação do tempo que a literatura absorvera
nas décadas iniciais do século, que outras ciências já haviam introjetado, atingiu a
História.
Braudel formulou as temporalidades, velocidades diversas de tempo conforme os
fenômenos estudados: tempo curto/fatual, tempo médio/conjuntural, tempo
longo/estrutural. Com ele a História reabsorvia a noção de ciclos, vinda da Economia, de
duração variável, de percepção complexa.2
2
Ver:
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2
Anais do III Encontro Nacional de Pesquisadores do ensino de História setembro 1997
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BRAUDEL, Fernand. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Phipippe II. Paris: Armand
Colin, 1949;
_______. La longue durée. IN: Écrits sur l’histoire. Paris: Flammarion, 1969;
_______. O tempo do mundo. Lisboa: Teorema, 1996 (v.3 de Civilização material, economia e capitalismo,
séculos XV-XVIII).
3
Ver:
BATRA, Ravi. 1990. A grande depressão. São Paulo: Cultura, 1988.
4
Ver a quatrilogia de I.Asimov. Fundação, e a trilogia de F.Herbert. Duna.
5
Ver:
WEHLING, Arno. Tempo e história nas diferentes culturas. IN: A invenção da História: estudos sobre o
historicismo. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho/Ed.Universidade Federal Fluminense, 1994. p.51-58.
DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo:Iluminuras/Belo
Horizonte: Ed.UFMG, 1996.
REIS, José Carlos. Tempo, história e evasão. Campinas/SP: Papirus, 1994.
6
Ver:
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3
Anais do III Encontro Nacional de Pesquisadores do ensino de História setembro 1997
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FONTE:
ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES DO ENSINO DE
HISTÓRIA; realizado em 15 a 17 de setembro de 1997, Campinas, SP, com a
coordenação geral de Ernesta Zamboni. Campinas/SP: Gráfica da FE/UNICAMP, 1999,
p. 37 a 43.
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. São
Paulo:Contraponto/EDUNESP, 1996.
HOBSBAWM, Eric.J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
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