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Aentrevista clinica em neuropsicologia JONAS JARDIM DE PAULA DANIELLE DE SOUZA COSTA A entrevista clinica é 0 componente mais importante de um exame neuropsicolégico, de modo que é vista como 0 “cérebro” desse procedimento clinico. Juntas, as observacées coletadas ao longo do exame, a corre¢ao/interpretagdo de instrumentos de avaliago objetiva e a entrevista clinica compéem o tripé que sustenta o julgamento clinico e as decisdes acerca de um paciente (Mitrushina, Boone, & D°Elia, 1999). A entrevista clinica é fundamental para a definigao das hipdteses clinicas que serao testadas no exame neuropsicoldgico, do melhor delineamento para essa testagem e dos fatores que serao relevantes para 0 progndstico do caso (Strauss, Sherman, & Spreen, 2006). Trata-se de um processo com um objetivo especifico, que deve ser planejado e estruturado com antecedéncia, Antes de iniciar a entrevista, o neuropsicélogo precisa ter em mente os principais pontos a serem abordados e os conjuntos de informagdes que serio essenciais para o diagnéstico e 0 acompanhamento do caso. Embora nao exista consenso sobre a melhor estruturagao de seu processo, a entrevista clinica deve contemplar aspectos relacionados as queixas e aos sintomas atuais do paciente, 0 curso clinico de tais sintomas e suas repercussdes sociais e fimcionais, as historias de desenvolvimento e de saiide do paciente e os aspectos sociodemograficos, familiares e culturais (Lezak, Howieson, Bigler, & Tranel, 2012; Strauss et al., 2006). O foco da entrevista depende de caracteristicas do paciente. Por exemplo, a forma como as perguntas sio realizadas, o direcionamento da entrevista e a profindidade com que cada tpico deve ser abordado variam em fingao da idade do entrevistado. Na avaliagio de criangas, informagdes sobre gestagao, parto e primeiros anos de vida muitas vezes so determinantes para o julgamento clinico, enquanto para idosos essas informagées costumam ser escassas e nao necessariamente associadas aos transtornos sindromes mais comuns nesse estrato etario (Baddeley, Kopelman, & Wilson, 2004). O Quadro 3.1 sintetiza os topicos centrais da entrevista clinica e as principais observagdes a serem realizadas pelo neuropsicélogo. QUADRO3.1 * Sugestio de tépicos centrais para norteare entrevista clinica Topice Suges ties de aspec tos a serem abordados Tdentificagéo Coneto cadastio do paciente e de seus cuidadores, se foro caso, do profissional ou da instituipo que realizou o encaminhamento; realizagio do registio da pessoa a quemo laudo ou relatorio sera encaminhado. ‘Motive da consulta ‘Asolicitario que deve seratendida como emme newiopsicolbgico, emque contexto ela foisolicitada, quais sintomas ou camctenistices do paciente levaram-no ao encerinhamento Histona e progressiéo dos sintomas Os sintonas cognitivos, sensoriais, motores, comunicecionals, comportanentais ou funcionais Chssificar comm esses sintomas suigirame se desenvolverame emquais contextos so mais roeminentes; come comprometemou linitama adaptacio do sujeito a vida didn. Venificaro historico de tatamento ~ se farmmacologico ou néo — dos sintomas eo sucesso dessas intervenges Histone do desenvolvimento Gaavitez, parto, histéria neonatal desenvolvimento sensorial, da linguagem, motor intelectuale social Histone de saide geral contncia de doengas ou owtios transtomos ao longo da vida, bemcomo tipo de tatamento, proposito, dumagio e resposta terapeutica. Bxsténcia de doengas, transtomos atuais ou associados aos sinfomas centri que trowermo paciente a consulta Histon famsliar Principais doengas ou tanstomos comuns na familia do individuo, sobretudo em parentes de prineio giau Essa avalagio deve tercomo foco os transtomos comumente avalindos emnewopsicologia ou doengas que possamestar associadas a sua etiologia (p. ex, doengas cardiovasculaes e acidente vascular encefflico, transtomos psiquittricos, etc). ‘Vile escolar Excolasitade atual escolas nas quais estudou, desempenho geral por ano estudado desde o inicio da ediucacéo fomml, historco detalhedo de repsténcias (séries/anos, dominios, binesties/trimes ies, etc), necessidade de eclucacéo especial ou apoio extaclasse e sucesso das intervengées; historco de alfebetimcéo (leitualescrita), habilclades matemsticas, atenco, comportamento, motivagao para os estudos e adaptacéo social, historco do desenvolvimento de habildlades escolares primatias ‘Vida profissional ‘Atividades profissionais que desempenha ou jé desempenhou, como os sintomas interferemna vida profissionale processos ou anbientes especificos emque essa dificuldade ocone, provével aptiiéo pam realizar essas atividades. Vida social ‘Aspectos da vida social efetados pelos sintomms, relacionanento coma familia, amigos, colegas, figures de autoridace ou subordinados; rmdancas sociais que oconeramantes, duante ou depois do inicio dos sintomas, empatia e adequacio social Menoua Esquecientos cotidianos, como a penta de objetos ou compronissos, dificulades emmendra prospectiva; défiits no aprendizado de conteido novo; desorientagio temporale espacial (memetia episode), comprometinento dos habitos; perias e rotinas forfemente consoldladas (memena ndo declrativa) Linguagem ‘Agramatisin, anomia, eletia, agrafia, dislexa, dificuHdade em localiza palavias, sensagio de “tera palavia na ponta da lingua”, parefasias semintices e fonémicas, dificuldades de compreenséo de omens simples ou complems; dificuldades na exticulagio de palavies inconmns ou inegulres, dificudades de repetigio. ‘Matematica ‘Acaleulia, discaleuli difculdades no aprendizado da tabuada (adipfo, subtmagio, multiplicagio e divisio), diiculdade para resolver problemas mateméticos, prejuizn na memorizagao de fungGes natemsticas, menor faniiarelade como vocabulério de matemstica, probleras para medias coisas, dificuldedes para estimar custos ao fazer compres e para aprender conceitos matemiticos mais, complems (elémdos fatos nunéricos); menor habiliiade no gerenciamento financeino, problemas para estimara passagemdo tempo (0 que pode levara problemas para seguir cronogranas ou estimar a duragéo das atividedes); dificuldade para realizar célculos mentais (semauzlio de calculador ou lapis ¢ papel); dificudade para achar mais de una solugfo par ummesno problema ou na resolugao de problemas complems (commmitas opemgées simlténeas, p.ex), dificuldade para estimar velocidades ou julgerdistancias com precisfo (p ex, ao diigir ou praticar esportes) Habilidades visuoespaciais Desorientagio espacial, dificuldades pare aprender novas rotas ou tajetos, epsddios de apagio, dificuldedes para montar desenhos ou diagranas, dificuldades de perceprio visual (agnos). Fungdes executivas, Comportanento persevezativo e estereotipado, impulsividade; decisdes inadequadas, dificuldades na peweprio e na compreensio de emogGes e regins sociais, dificuldade na resolugio de problemas e autonegulagéo ‘Atengéo evelocdade de processamento Baia responsividede, passividede quanto ao anbiente, apatia, ntificagio psiconotom, desatengio, dificuldede para mantero ténus atencional por periodos prolongados, déficits de alteragdo do foco atencional emdiferentes estinmlos; reduefo da eficiéncia da busca visual aucitiva; ampulsividade atencional, © modelo mais utilizado nas entrevistas clinicas em neuropsicologia é o semiestruturado, no qual 0 clinico parte de um conjunto predeterminado de perguntas e conduz a entrevista com a flexibilidade necesséria para abordar outros tépicos ou questées que possam surgir durante 0 processo. Entrevistas fechadas, questi onarios ou escalas raramente contemplam 0 conjunto de sintomas, 0 curso clinico, 0 comprometimento fimcional, 0 sofrimento psicolégico e os diagnésticos de exclusio necessérios para a detecg’o correta dos transtornos mais atendidos pelo neuropsicdlogo. Em contrapartida, entrevistas abertas, sem estruturagao prévia, roteiro ou topicos a serem abordados, devem ser reservadas a profissionais mais experientes, tendo em conta a maior probabilidade de erro em sua condugio. Geralmente, as entrevistas abertas sio mais confortaveis tanto para o profissional quanto para o paciente e seus cuidadores, além de permitirem grande flexibilidade em termos clinicos. No atendimento de criangas e adolescentes, recomenda-se que a entrevista seja realizada primeiramente com os pais ou responsaveis, sem a presenga do paciente, e deve ter como foco 0 desenvolvimento cognitivo, motor e comportamental, a relagio desse desenvolvimento com os sintomas atuais do paciente e os prejuizos deles decorrentes (Yeates, Ris, Taylor, & Pennington, 2009). A crianga ou adolescente pode, entao, ser abordada em sessdes individuais de entrevista ou durante os demais procedimentos do exame neuropsicolégico. Em se tratando de adultos ou idosos, a entrevista deve ser conduzida com o proprio paciente, mas ¢ altamente recomendavel a consulta a mais um informante — geralmente um familiar ou outra pessoa que conviva com o paciente -, de forma a se obter um segundo relato, uma vez que o paciente pode apresentar dificuldades ou limitagées para relatar seus sintomas ou o curso clinico (Anderson & Tranel, 1989). Durante a entrevista, é importante que o paciente esteja informado e tenha clareza do objetivo da avaliagao, do modo como sera realizada e de como ela podera beneficia-lo, seja em termos de diagnéstico, seja de prognéstico. Um bom acolhimento do paciente e de seus cuidadores, assim como a formagio de um bom rapport/alianga terapéutica, é de grande importincia para a condugao do caso. Além disso, 0 profissional deve ser capaz de traduzir o relato informal, geralmente pouco estruturado ¢ leigo, do entrevistado para uma formulagao clinica, tal como ¢ feito tradicionalmente em qualquer area da saiide, sobretudo nas relacionadas 4 satide mental (Berrios & Hauder, 1988; Berrios, 1996). Na pratica como docentes e supervisores em neuropsicologia clinica, percebe-se tal dificuldade — transformar o relato em um conjunto de sintomas e 0 conjunto de sintomas em uma hipétese diagnéstica — como o processo mais complexo e mais limitador da pratica clinica, A partir dessa experiéncia, observa-se que ha uma tendéncia, nos cursos de formagio em neuropsicologia nos alunos que os procuram, pela busca de foco em métodos de testagem objetiva (questi onarios, escalas ¢ testes), havendo pouco conhecimento e investimento nos campos de epidemiologia e semiologia clinica. Embora os métodos de testagem objetiva sejam importantes, nao sao definidores da neuropsicologia ou de sua aplicagao clinica (Haase et al., 2012). Quando o profissional carece dessas habilidades, ocorre uma tendéncia a supervalorizagéo dos resultados da avaliagéo quantitativa (geralmente feita por meio de testes) e ao direcionamento das conclusdes do processo de avaliagao apenas pelo uso dessas informagdes. Essa pratica é problematica em neuropsicologia. Efetivamente, os testes cognitivos sio necessarios para o diagnéstico de poucas condigoes clinicas: deficiéncia intelectual, transtorno especifico da aprendizagem, transtorno neurocognitivo maior e transtorno neurocognitivo leve, segundo os critérios diagndsticos propostos no Manual diagndstico e estatistico de transtornos mentais (DSM-5) (American Psychiatric Association [APA], 2014). Embora certamente existam transtornos e sindromes nfo compreendidos de forma direta pelo DSM-5, e estes dependam da avaliacgao objetiva das fimgdes cognitivas para sua compreenso (como o transtorno nao verbal da aprendizagem, a variante tempo cognitivo lento do transtorno de déficit de atengao/hiperatividade), 0 uso dos testes neuropsicoldgicos ¢, em geral, secundario @ observagio clinica dos sintomas. A avaliagao por meio de testes deve ser compreendida meramente como um método para a testagem de hipoteses clinicas, e esse proceso deve conciliar perspectivas de natureza tanto nomotética — comparagéo do paciente com o referencial normativo — quanto idiografica — interpretagao dos sintomas e particularidades do paciente em um contexto individual, consi derando suas particularidades e caracteristicas especificas (Haase, Gauer, & Gomes, 2010). Nas proximas segdes, serio detalhados caracteristicas, comportamentos e sintomas especificos a serem avaliados na entrevista clinica, os quais podem ser iiteis para o diagndstico e 0 prognéstico nos contextos de desenvolvimento infantil/aprendizagem, doengas e sindromes neuroldgicas, transtornos mentais e deméncia/comprometimento cognitivo leve. Aspectos mais especificos

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