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57284-Texto Do Artigo-72686-1-10-20130624 PDF
57284-Texto Do Artigo-72686-1-10-20130624 PDF
O a t o r c o m p o s i t o rr,,
de Matteo Bonfitto
São Paulo, Perspectiva, 2002.
O
conceito de ação física encontra nesse li- que não deixam dúvidas sobre esse aspecto de
vro de Matteo Bonfitto trajetória explici- composição que deseja destacar e sobre a pró-
tada com rigor e objetividade. O pesqui- pria noção de partitura de gestos e ações, como
sador, que transita entre as fronteiras da obra em si.
prática e da teoria com a intimidade de O ator, detentor de um aparato técnico
quem estuda e cria em simultaneidade, com a que, mais e mais, se encarna nele mesmo, tor-
naturalidade daquele que observa, analisa, refle- nando-se como que um com ele mesmo, é ca-
te e concretiza seu objeto de estudo, nos oferece paz, com certeza, de estabelecer, conforme seu
um panorama completo do surgimento, apro- jeito próprio de preparar-se para a cena, uma
fundamento e inevitáveis mudanças que esse partitura de ações físicas que o conduz, instante
modo de trabalhar do ator sofre ao longo dos a instante, em direção ao contato com as outras
anos e das sucessivas e inusitadas poéticas às obras-atores circundantes, se os há, e ao conta-
quais se prestou e a partir das quais foi se trans- to de maior ou menor proximidade com o pú-
formando e igualmente transformando tanto blico com o qual pretende comunicar-se, sendo
seus utilizadores, quanto os espetáculos dos que é certo que de vários modos pode dar-se a
quais fazia parte intrínseca de processos e pro- conhecer e a comunicar-se.
dutos, de caminhos formais e formas finais. E essa obra carnalizada, em si mesma obra
Matteo Bonfitto, em busca de conceituar, de arte, obra à parte mesmo que do todo, se to-
definir e analisar o ator enquanto compositor, mada em separado, é matéria enformada nessas
ator como um criador que compõe, através da ações físicas, recipiente e forma, ao mesmo tem-
própria dissecção do termo composição e de po, onde já nem há razões para que se fale em
suas conseqüências trabalhosas, acaba por des- conteúdos, motivações, emoções, onde seguem
mistificar idéias ainda hoje vigentes sobre ta- movimentos, fatos, gestos como notas musicais
lento ou genialidade. A idéia de que o ator é, gravadas em corpos, como fisicalização do que
também ele, um compositor, confirma-se nos pode e também não pode ser dito. E são essas
caminhos que a pesquisa persegue, pois o pró- notas, momentos físicos compostos que se-
prio autor rastreia, na história de alguns dos guirão partes atuantes de um todo que, fluente,
grandes encenadores, processos de formatação não se deixa apanhar nunca inteiramente e, ao
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mesmo tempo, existe, material e temporalmen- reira” desse conceito, ao longo dos anos e mes-
te falando. mo séculos, nos mais diversos e diferenciados
E o que é, num relance, a partitura desse modus operandi, bem como em resultados esté-
ator compositor senão uma estrutura, como ticos que vão desde as propostas mais aproxi-
Laban já propunha para o estudo do corpo, tão madas do real, até o eixo formador de perfor-
aberta quanto segura para que se pudesse es- mances e performers.
tudar secamente, cientificamente o movimen- Assim Matteo trabalha nessa sua obra:
to, para que se pudesse pesquisar com liberda- mapeando caminhos, antevendo interseções
de o movimento a partir de alguns princípios. téoricas e práticas, pontuando seus extraordiná-
No entanto, a partitura de que trata Matteo vai rios achados, ora aqui, ora ali, caminhando com
além de um estudo, mesmo que profundo, do a segurança dos grandes teóricos, abordando
movimento/pensamento, chega a caracterizar o tanto o teatro ocidental quanto o oriental, pas-
próprio ato da criação que se compõe e pode sado e presente. Trabalha compondo um con-
ser composto como que numa execução mu- sistente tecido dialógico que interessará, sem
sical, sempre atualizada, sempre reapresentada dúvida, a todo aquele que lida com o teatro ou
e nova. com qualquer das artes que se apoiam no sóli-
E Matteo, em seu estudo, conta com en- do, e ao mesmo tempo inconstante e líquido
volver o leitor numa rede de matrizes da cria- corpo da cultura contemporânea.
ção, no seu entender são essas matrizes que pas- Escrito com rara fluência, o livro que se
sam a conduzir um trabalho que, se por um lado propõe, desde seu início, “a ajustar o olhar “
mostra-se a nós tão impalpável, por outro é la- rumo ao objeto de sua pesquisa tem trajeto cer-
buta diária, percurso da matéria, história onde teiro: Matteo investiga o tema escolhido em
se inscrevem os primeiros pesquisadores que a profundos traços, através do exame acurado de
ela o autor associou, como Delsarte e Dalcroze, um ator que pode e precisa compor. Mas é pre-
por exemplo, ainda pouco estudados entre nós. ciso que nos detenhamos nesse trajeto, capítulo
Além do mais, todo aquele que já teve oportu- a capítulo para melhor situar o leitor.
nidade de assistir Matteo em cena constata que Como o autor nos explica já na Introdu-
o teórico e o artista dialogam em uníssono, pois ção, sua análise partirá de três pilares referen-
a metodologia de criação com base nas ações fí- ciais: François Delsarte, Émile Jacques-Dalcroze
sicas proposta em seu livro é matriz fundante e os teatros orientais.1 Se o primeiro capítulo
também de sua prática de intérprete de palco. define os materiais envolvidos na composição
E tal fato tem visibilidade inquestionável. do ator criador, situando diversos modos pelos
Partindo do termo em questão, trazido quais essa codificação poderia ser buscada e de-
desde Stanislavski, Matteo investiga as origens senhada no corpo do intérprete, definindo-se
e continuidade do mesmo, como que procuran- nele por meio de padrões de conduta posturais,
do nesse passado histórico utilização que corro- ritmo e energia utilizados em cada gesto, em
bore e incremente sua existência no teatro con- cada movimento, e na partitura elaborada a par-
temporâneo, com seus tantos e disparatados tir delas para configurar sua movimentação, o
eventos cênicos presentes nessa pós-modernida- segundo capítulo se deterá no exame exaustivo
de na qual nos movemos. E consegue satisfazer das ações físicas definidas pelo autor como eixo
seu intento já que o fundamenta e prova a “car- central desse ator que compõe.
1 O autor aprofunda temas pelos quais nutro especial interesse, tais como as codificações propostas por
Delsarte, a rítmica de Dalcroze e o teatro oriental com sua vital importância na cena dos nossos dias,
conforme abordei em O papel do corpo no corpo do ator, Ed. Perspectiva, 2002.
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Com base no Método das Ações Físicas refletir sobre as múltiplas e multifacetadas ques-
de Stanislavski, o conceito é analisado com um tões que envolvem o teatro do ponto de vista
enfoque que caminha na trilha de alguns de textos e pretextos, de personagens, tipos e
encenadores escolhidos pelo autor, destacando- actantes, pensando as relações entre cada uma
se exemplarmente Barba, Grotowski e Pina delas e os modos improvisacionais que lhes cor-
Bausch. Procurando as matrizes de trabalho de respondem.
cada um, Matteo lança uma hipótese: serão as Como presença, o tempo todo sublinha-
ações físicas parte estrutural, e nesse sentido, da pelo escritor em texto e subtexto, está o ator,
fundantes do jogo teatral? a quem caberá sempre, nas mais diversificadas
Essas ações, consideradas pelo inigualável situações, o ofício de carnalizar essas promessas
mestre russo como parte importante do treino de cena idealizadas, seja nas personagens-indi-
do ator e um indispensável auxiliar na criação víduo, seja nos tipos mais caricaturais, seja em
da máscara atoral, mostram, em diferenciados textos que não indicam qualquer sujeito a ser
processos de trabalho e épocas estudadas, um desvendado pelo agente de palco e, mesmo as-
aprimoramento técnico rumo à sua própria e sim, ambicionam a cena; seja em textos que pe-
mais clara definição, por meio de sucessivas in- dem vários atores, nos quais não há qualquer
vestigações centradas no corpo, terminando por rubrica ou indicação de ações ou intenções.
sofrer um ajuste definitivo enquanto método de E Matteo vai além: unifica a nomencla-
busca criativa, mesmo que os produtos decor- tura e estabelece, além dos actantes-espaço e
rentes de sua utilização sejam poéticas da maior actante-texto, o actante-máscara que engloba
diversidade. personagens e tipos, apontando na seqüência os
O fato é que, com a leitura, acabamos por três tipos de prática improvisacional passíveis de
concluir que essas ações que visam instaurar o auxiliar o ator nesses desafios criativos que o tea-
corpo do intérprete como o grande compositor tro contemporâneo impõe, para muito além de
e emissor de sinais compostos e conclusivos, não definição de personagem, ações temporais e si-
são somente um meio de se configurar o invisí- tuações espaciais especificadas pelo autor do tex-
vel, mas parte intrínseca dos processos de cria- to, isso quando há texto.
ção e de composição, sejam esses processos li- A improvisação será então uma improvi-
gados a personagens ou tipos, seja na modulação sação que necessariamente passará pelo corpo
formal de um actante (como quer o autor), seja daquele que improvisa, será fundamental e evi-
até mesmo em apresentações nas quais o dente, através de suas diversas possibilidades
performer identifica-se com sua própria e mais práticas, e o autor aponta três dessas possibili-
ordinária vida, apresentando-a com maior ou dades: aquelas que caracterizam atitudes ligadas
menor realismo, num palco ou em qualquer à busca do desconhecido, que lançam pergun-
outro espaço que lhe convenha, até mesmo em tas físicas e vocais na busca de concretizar, car-
sua própria casa, como vem ocorrendo em várias nalizar um texto – chamadas de espaço mental e
partes do mundo. que são, nas palavras do autor, um “canal de in-
O terceiro e último capítulo trata própria vestigação”, de uma investigação que se quer
e amplamente da Composição, objeto final do prática. Em segundo lugar vêm as que funcio-
estudo, nos diferentes tipos de exercício teatral nam como eixo para construção de personagem,
e das várias poéticas expostas. Intenta levantar cenas e espetáculos, nomeadas método, e por fim
elementos visíveis presentes na interpretação do as que vêm auxiliar o intérprete na busca de per-
ator, a partir do exame da Improvisação, onde sonagens textuais e seus universos ficcionais, em
descreve as principais formas em que ela pode contextos de certo modo já delineados; serão,
ocorrer: espaço mental, método ou instrumen- nesse caso, instrumentos que auxiliam na con-
to. A partir desse momento da escrita passa-se a figuração da máscara cênica, instrumentos de
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trabalho. Importa destacar que essas ações in- o caos pós-modernos tão bem se faz expressar
ventadas, construídas, vivificadas ou preenchi- e representar.
das através de diferentes modos de improvisa- E é nesse momento de sua escrita que nos
ção podem “ser geradas por diferentes matrizes detemos. Para perguntarmo-nos sobre esses
e constituídas por diferentes elementos e pro- actantes que não sendo tipos nem personagens
cedimentos de confecção”. têm diferentes trajetos de corporificação, até se
Ao refletir sobre os diferentes modelos de tornarem seres carnalizados e espacializados,
improvisação viabilizadores de seres ficcionais, correndo contra o tempo ou vivendo o tempo
o autor continua aprimorando os conceitos que da cena teatral. Torna-se inevitável também
embasam seu discurso, num esforço de preci- pensar nas diferenças perceptivas entre uma ins-
são, como que a finalizar um solo seguro para talação e um espetáculo de teatro, quando essa
suas últimas conclusões, definindo e separando instalação não agrega a figura humana e suas
cada vez mais as espécies de actantes, relacio- possíveis relações com o espetáculo que depen-
nando-os ao trabalho que espera pelo ator na de, de forma intrínseca, dessa figura, desses cor-
execução de cada modalidade representacional. pos. Pensar nisso é igualmente lembrar da pos-
Por meio de uma classificação, que cada sibilidade de existência de atores humanos e
vez mais se esmiuça, dos diversos actantes na “atores” não-humanos que, de modo tão diver-
relação com as diferentes improvisações que es- so contudo, podem conviver com seus diferen-
peram pela ação trabalhosa do ator – actante- tes públicos. E igualmente poder pensar que, no
estado, actante-texto e actante-máscara –, Bon- trajeto que vai de um texto a uma cena, da
fitto pretende sistematizar as exigências do primeira idéia a uma concretização, há um ca-
teatro atual e de outras artes da cena, naquilo minho que é invenção sim, mas que vai se com-
que se refere ao ator, dividindo e especificando pondo em corpos, tecido em humanização cres-
diferentes modos de construção dessa atuação cente. A importância do exercício do ator atual
que lhe é própria. reside também no fato de que precisa saber ga-
Sua análise final considera os três tipos de rantir existência a seres ficcionais impalpáveis,
actantes na relação com as diversas maneiras de dando conta da destemporalização e a des-
se improvisar, além de levar em consideração materialização apresentadas em alguns textos
níveis maiores ou menores de ambigüidade, contemporâneos.
graus bastante diferenciados de clareza ou ocul- Lembrei-me de um pequeno livro de
tamento. E essa sua reflexão, urdida em concei- Gianni Rodari, chamado Gramática da Fanta-
tos claramente apresentados e que perpassam sia 2 através do qual, pela primeira vez, ouvi fa-
caminhos mais ou menos definidos do mundo lar de Wladimir Propp, que Matteo cita ao tra-
do teatro, nos indica ações práticas e modos de tar do actante. E de que trata essa misterioso
abranger as tão diversas interpretações, intérpre- livro? Das muitas e maravilhosas formas de se
tes e actantes que o teatro dos nossos dias aco- tentar materializar o imaterializável, de se com-
lhe, diferenciando formalizações que partem de parar coisas incomparáveis, de se concretizar
textos dramáticos e não-dramáticos, daquelas absurdos e outros pensamentos imponderáveis;
que não têm texto escrito, das que pressupõem trata de crianças que inventam e representam
apenas presenças corporais mesmo que indefi- histórias com palavras, com objetos, com obje-
nidas, presenças objetais ou animais, presenças tos e palavras igualmente, fala das muitas for-
andróginas, ambíguas e mutantes com as quais mas e possibilidades de criação a partir de todo
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da cena, por meio de corpos treinados e capaci- Ator-Compositor enriquece o panorama dos es-
tados a deixar-se investir do outro, de outros, tudos teatrais realizados no país e instiga novas
de todas as possíveis e impossíveis invenções. pesquisas, novas perguntas, um sem-número de
De leitura obrigatória para todo aquele perguntas e respostas, respostas contraditórias,
que investiga os fenômenos da cena teatral, O ambíguas, quem sabe até divergentes entre si.
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