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Afinal, que Quer a Música?

Afinal, que Quer a Música? *


Anchyses Jobim Lopes
Médico. Psicanalista. Bacharel em Filosofia pela UFRJ. Mestre em Medicina (Psiquiatria) pela UFRJ. Mestre em
Filosofia pela UFRJ. Doutor em Filosofia pela UFRJ. Sócio Efetivo e Psicanalista do Círculo Brasileiro de Psicanálise
(seção do Rio de Janeiro). Professor de cursos de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia desde 1984.

Os pássaros Os pássaros
retornam retornam
sempre e sempre e
sempre. sempre.
O tempo cumpre-se. Constrói-se O tempo cumpre-se. Constrói-se
a evanescente forma a evanescente forma
ser ser
e e
ritmo. ritmo.
Os pássaros Os pássaros
retornam. Sempre os retornam. Sempre os
pássaros pássaros
A infância volta devagarinho. A infância volta devagarinho.
CICLO (II) CICLO (II)
Orides Fontela Orides Fontela

Palavras-Chave: Psicanálise – Estética – Música – Linguagem – Tempo – Gozo

Resumo: A música como a arte menos interpretada pela Psicanálise. Algumas das idéias de
Didier-Weill sobre Psicanálise e música. A hipótese de que a linguagem musical seja a
origem da linguagem verbal. A questão do tempo na música. A hipótese contrária, a de
que a linguagem verbal seja a origem da linguagem musical e de todas as demais artes. A
música como fonte do sentimento oceânico mencionado por Freud e do gozo além do
fálico descrito por Lacan.

Introdução: sível, tanto pelo apego de Freud à pala-


vra, quanto por seu repúdio a qualquer
Freud não era amante da música, irracionalismo. Não verbal, produzin-
pelo contrário, o fundador da Psicaná- do emoções incompreensíveis e senti-
lise lhe tinha certa ojeriza. Compreen- mentos oceânicos, a música constitui a

*
Trabalho parcialmente apresentado na IV Jornada Centro-Sul do Círculo Brasileiro de Psicanálise – XXIII
Jornada do Fórum do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – I Jornada de Psicanálise e Arte do Círculo
Brasileiro de Psicanálise-Seção RJ, Belo Horizonte 22 a 24 de Setembro de 2005.

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antítese do temperamento reservado, A Psicanálise ter passado ao longo


metódico, controlador e um tanto ob- da música também é explicável pelo
sessivo de Freud. Conheceu Mahler em fato que, tendo a palavra como fulcro,
uma curta análise, mas é certo que ja- o não-verbal ficasse em segundo pla-
mais ouviu alguma de suas composições. no. Mas só parcialmente explicável.
Em quase todos nós música é capaz de Dentre as qualidades universais do
causar êxtase. Quando indagado por homo sapiens está sua musicalidade. Não
Romain Rolland se o sentimento oceâ- há cultura sem ela, não há criança que
nico – do eterno, ilimitado, sem fron- não: cantarole, dance ou brinque com
teiras – não poderia ser a origem psico- sons. Mesmo um bebê no colo freqüen-
lógica das religiões, Freud responde que temente movimenta seu corpo todo,
não podia descobrir qualquer traço des- procurando acompanhar o ritmo de
te sentimento oceânico em si mesmo1. uma música. Onde fica, quando apli-
Quanto a Melanie Klein, embora cada ao fenômeno musical, a Lei de
tenha escrito sobre um romance, sobre Haeckel, tão adorada de Freud: a on-
uma trilogia da tragédia grega e sobre togênese segue a filogênese. Como
filmes, não conhecemos que alguma pode cada criança trazer em si o gosto
vez tenha procurado trabalhar sobre a aparentemente inato pela música? Se-
música. Lacan seguiu a trilha de seus ria o fenômeno musical parte integrante
ilustres predecessores, seu modelo de da antropogênese? Talento já é outra
arte e exemplificação para suas idéias é questão, ainda mais inexplicável pela
a literatura. Concessões feitas por La- Psicanálise. Dentre todos os autores que
can ao surrealismo nas artes plásticas, trabalharam ou trabalham sobre Arte
a obras como a de Joyce que penetram e Psicanálise, sobre os quais não nos
na própria construção da linguagem e deteremos, curiosamente encontramos
a alguns exemplos do cinema. apenas um, contemporâneo, dedicado
A repulsa ou indiferença dos prin- à compreensão da música pela Psicaná-
cipais nomes da Psicanálise em parte lise e que, talvez em ter se apercebido,
explica por que, apesar da enorme in- coloca tanto uma quanto outra diante
fluência que a Psicanálise teve para a de interessantes questões: Alain Didi-
compreensão de todas as outras artes, er-Weill (1997, 1997, 1998, 1999).
assim como serviu de fundamento para Utilizaremos algumas de suas formula-
novas propostas artísticas, como o sur- ções.
realismo, a música permaneceu-lhe um Obriga-nos uma outra confissão: os
continente negro. Ao longo dos mais grandes autores da Estética, como dis-
de cem anos da história da Psicanálise, ciplina de Filosofia da Arte, quando
contam-se nos dedos de uma mão os relidos com cuidado, também não con-
autores que se atreveram a tentar psi- seguiram explicar a música. Permane-
canalisar a música2. Há até duas déca- ce a mais enigmática, talvez por ser a
das, os autores que se atreveram a fazê-lo mais profunda, de todas as artes. Os que
foram pouco além da questão da catarse se aventuraram a desbravá-la – Hegel,
e da imaginação evocadas pela música. Schopenhauer, Nietzsche – não solu-

1
FREUD,Sigmund (2002), p.4.
2
KAUFFMANN,Pierre (1996), no Dicionário enciclopédico de psicanálise, verbete Psicanálise e Música,
apresenta a melhor síntese que conhecemos.

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cionaram o mistério e abriram mais um ao ser humano: da Vontade às idéias,


problema: a relação entre a música e a destas às obras de arte.
palavra. Entretanto, no sistema schope-
Entramos no domínio em que, por nhauriano a música se distingue de to-
bem ou por mal, Filosofia e Psicanálise das as outras artes, carece do duplo
se confundem. A ontogênese segue a movimento em direção à Verdade. A
filogênese, enunciado tão caro a Freud. música: trata-se de uma imediata obje-
Na Filosofia temos o conceito pré-so- tivação, de uma cópia direta de toda
crático de Arché – princípio, origem, vontade. A música, portanto, de modo
tanto no passado como o que sustenta algum é semelhante às outras artes, ou seja,
e une o todo no presente e o dirige ao cópia de idéias, mas CÓPIA DA VON-
futuro. É a música a Arché e o Haeckel TADE MESMA, cuja objetividade tam-
da palavra, ou o contrário? Quem veio bém são as Idéias3. Emanação direta da
primeiro: o ovo ou a galinha? A leitura Vontade, Schopenhauer postula a mú-
de Didier-Weill supõe que a música veio sica como uma linguagem universal
primeiro, o que talvez questione o pró- anterior a toda outra linguagem, plás-
prio inconsciente como linguagem. tica ou verbal. Todas as manifestações
Mas vamos pelo princípio. artísticas possuem o dom de momenta-
neamente liberar o ser humano do in-
O Ovo ou a Galinha? dividual, do querer, do desejar, que lhe
– No Princípio Era o Som é inato por também ser um ente causa-
do pela Vontade. Mas esse dom perten-
O primeiro pensador a considerar ce muito mais à música que às outras
a música como mais que um apêndice formas de arte. Neste estado de liber-
a sua teoria estética foi Arthur Scho- dade do desejar, de submissa passivida-
penhauer. Não apenas a levou em con- de, a obra é quem olha e penetra o es-
ta em seu sistema filosófico, mas a tor- pectador. Esta invasão, este sentimen-
nou o núcleo de sua metafísica. Em O to oceânico, ao qual benignamente
Mundo Como Vontade e Representação acedemos, possui o dom de revelar não
(2005), sua obra magna e o mais sólido apenas o que seria a fonte de todo exis-
pilar do pensamento romântico alemão, tir, como sua real intensidade. E então
que irá desembocar no Unbewusste de o espetáculo trágico da existência, as
Freud, a arte possui prioridade sobre a contradições externas e da própria Von-
ciência. Só através da arte atingem-se tade em si mesma podem ser contem-
as idéias, que sintetizam as representa- pladas e aceitas.
ções produzidas pela Vontade cega e Todas estas concepções foram re-
irracional. Contudo, a verdade atingi- tomadas por Didier-Weill a partir de um
da por meio de todas as manifestações prisma psicanalítico. A música não é
artísticas, excetuando a música, embo- escutada a partir de uma deliberação
ra superiores ao conhecimento da ci- interna que me permita dizer um não.
ência, necessitam um movimento de Trata-se de um sim absoluto que colo-
dupla mediação. A Vontade objetiva- ca-nos sobre a pista do que é o sentido
se através das idéias (platônicas), da verdadeiro da Bejahung 4. Constitui o
quais as obras de arte permitem acesso acesso a um Real que é intraduzível pela

3
SPHOPENHAVER, Arthur (2005), p. 338; o trecho em maiúsculas é do próprio autor.
4
DIDIER-WEILL, Alain Os três tempos da lei, 1997, p. 237.

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palavra. Se dependesse apenas da mú- lutar contra a natureza última do mun-


sica não viveríamos em um mundo cli- do. Nietzsche criticou tendências que
vado entre palavra e música, não ha- refletiam tanto preceitos da filosofia
veria um sujeito sempre barrado. An- grega, quanto de influências orientais
terior à palavra, a música exprime uma em Schopenhauer. Mas quanto à músi-
linguagem universal. E no infans é a ca, Nietzsche pode ser visto como seu
pulsão invocante, a mais próxima da melhor leitor e principal discípulo. Tan-
experiência do inconsciente5, que ao mes- to que sua primeira grande obra, para
mo tempo permite emergir o sujeito do muitos a mais importante, deu-lhe o
inconsciente, que existia em potência, título de O Nascimento da Tragédia a
mas não em ato, e também causa que Partir do Espírito da Música (1992).
seja dito um segundo sim, interior, em Mais conhecida como A Origem da
resposta ao chamamento do Outro. Ao Tragédia, neste livro a música é scho-
longo de toda sua existência, a música penhauriamente a origem de todo exis-
relembra esta Bejahung primordial, re- tir, é ela que se objetivando em ima-
lembra que há um parentesco entre o gens, através do sonho cria as figuras
sujeito e o Outro, por meio do qual a das quais nasceram os dois deuses gre-
mais desconhecida das canções, por gos originais: Apolo e Dioniso. Corpo-
exemplo, recupera a comemoração ini- rificada por deuses que sintetizam for-
cial do sim e a banda moebiana de uma ças antagônicas e contraditórias – um
Arché universal. Para Didier-Weill a da forma e do equilíbrio perfeito, o ou-
experiência trazida pela música é pró- tro do sentimento oceânico e do arre-
xima da experiência mística, na qual batamento – a música desvela a diver-
sou oceanicamente contemplado pelo sidade e o conflito que se desdobra a
Outro, mas de modo oposto ao da in- partir do que Nietzsche denominou Uno
vasão do Outro e de seu olhar medúsi- Primordial. Do confronto entre Apolo
co como psicose. A música permite que e Dioniso ocorre não a soma, mas a
me contemple e me reconcilie com as multiplicação do Trieb originário.
contradições, os conflitos, do trágico Em sua teoria sobre a origem do
universal, em uma grande celebração teatro grego, Nietzsche defendeu que:
da existência. primeiro existiria um êxtase místico em
Na seqüência da filosofia alemã do honra da Dionísio, no qual toda a polis
século XIX, embebida no Romantismo participava, depois o êxtase místico tor-
e cada vez mais transformando o Trieb nou-se uma procissão, onde só uma
- termo muito utilizado por Kant - ora minoria cantava e dançava, enquanto
na direção do irracional, ora na daqui- a maioria teria sido reduzida ao papel
lo que está aquém ou além da consci- de espectadora, até que finalmente a
ência, Friedrich Nietzsche foi o grande procissão foi confinada entre monta-
leitor e crítico de Schopenhauer. Críti- nhas. Das encostas nasceu a platéia,
co quanto à apologia schopenhauria- que assistia a um coro que continuava
na do deixar-se abandonar à contem- com a função de cantar e dançar, en-
plação da Vontade. Crítico quanto à quanto um ator passou a representar os
passividade e o nihilismo do procurar arquétipos em que se desdobram os in-
não desejar, assim como também o não finitos conflitos do Uno Primordial.

5
LACAN, J, Les Quatres Concepts Fondementaux de la Psychanalyse citado por Alain Didier-Weill.In Os três
tempos da lei, 1997, p. 238.

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Além de cantar e dançar, o coro pas- zer de comemorar pelo ritmo a leveza
sou a falar, assim como da mímica pas- do corpo. Ou mesmo a embriaguez di-
sou o ator à fala. O diálogo surgiu quan- onisíaca, prazer que todas as crianças
do a skené passou a ser dividida com obtêm girando até perderem o equilí-
um segundo ator. O êxtase místico ori- brio. Do som original invocado, que
ginal, semelhante ao das bacantes, e com o crescer do infans é decomposto
que em sua contrapartida masculina os em fonemas e repetido em sílabas, ori-
participantes se vestiriam como sátiros, ginar-se-ia a linguagem. A mesma tri-
seria repleto de visões e sentimentos lha nietzschiana, da música até a pala-
oceânicos. Constituía uma ameaça ao vra. Palavra que pode colocar-se no
poder e à religião olímpica oficiais. O extremo de uma mera informação ou
nascimento do teatro surgiu como uma de um não-dizer – a palavra vazia, sem
domesticação parcial. Mas o canto e a afeto, sem transferência –, ou ir até o
dança, executados pelo coro vestido de outro extremo, a leitura literária, cujo
sátiros, alternavam sua função com a núcleo é a poesia – a palavra plena, que
da fala, ora dirigida à platéia, ora aos reúne imagem e sentido, catarse e in-
atores. A música e da dança transfor- sight.
mando-se em fala e diálogo, o êxtase Há um substrato do mito judaico
original cedendo a breves momentos de no pensamento de Didier-Weill. No
catarse e gozo estético. O nascimento princípio era o Verbo (ou o Logos, como
do teatro comemoraria miticamente o foi traduzido na Septuaginta), não foi
próprio nascimento da palavra, perma- uma palavra, muito menos um signifi-
necendo a arte no terreno comum en- cado, mas o significante o mais puro de
tre o imaginário e o simbólico. todos, capaz de inscrever um traço no
A linha de pensamento estabele- Nada, dele invocar a luz e todo movi-
cida por Didier-Weill corre paralela a mento que nela se mostra. O verbo
este trilho. Sua grande contribuição é (com minúscula mesmo) só veio muito
desenvolver a questão da pulsão invo- depois, com a divisão do sujeito, já as-
cante, que fora apenas esboçada por sediado pelo verbal, que encobre tan-
Lacan. Por que se esta pulsão, que é to quanto desvela. Embora Didier-Weill
quem traz à tona o sujeito, é o traço deixe bem claro as raízes de suas idéias
unário, ele é inscrito primeiramente quanto ao judaísmo, sua intervenção
como uma forma musical. A voz ma- num dos últimos seminários de Lacan
terna não é invocante pelo que diz, mas (L’insu que sait de l’une bévue s’aile à
pelo tom – diga-se afeto – do que diz. mourre) produziu resultados aparente-
E o invocado não permanece como mente opostos aos princípios do mes-
uma mera resposta – informação ou re- tre (teria sido propósito de Lacan, ou
flexo –, que fosse apenas uma voz, um criou um monstro à semelhança de
som, um movimento labial mã (que em Frankenstein?): o inconsciente se es-
todos os idiomas assemelha-se a pala- trutura como linguagem, não a saus-
vra que designa mãe), mas como toda surianamente verbal, a linguagem
uma abertura à existência. O que é in- nietzschianamente musical.
vocado, também é gesto, que com o Que a música seja uma linguagem,
crescer do infans torna-se dança, o pra- não há dúvida6. Altamente sofisticada,

6
Apesar de nossa tese incondicional da música como linguagem, há controvérsias; consultar: S. R. de
Oliveira, (2002)

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representada por um número finito de Logo, a ontogênese apenas recupe-


sinais gráficos cuja combinatória é in- ra a filogênese.
finita, a música verdadeira não é aque-
la da canção da dor de cotovelo (em- O Ovo ou a Galinha?
bora para isso seja muito útil), nem a – No Princípio Era o Verbo
cria uma historinha na cabeça do ou-
vinte. Da canção popular ao mais abs- Na Estética de Hegel a poesia é
truso dodecafonismo, a música verda- descrita como ápice da arte romântica
deira é a mais abstrata das linguagens: a qual, por sua vez, após a arte simbóli-
matemática e da lógica dos sentimen- ca e a arte clássica, constrói o cume de
tos e das paixões. Os pitagóricos há mais mais uma das tríades características de
de dois mil anos trabalharam a relação sua filosofia. Para Hegel a poesia está
entre música e matemática. No século ontologicamente acima da música. In-
XX Susanne Langer7, filósofa neokan- sistimos neste ponto: o que caracteriza mais
tiana especialista em lógica moderna, particularmente a poesia é o poder de sub-
trabalhou sobre a relação entre lógica meter ao espírito e às suas representações
e música. Foi Langer também, e não o elemento sensível de que a arte já tinha
algum freudiano, quem formulou a hi- começado a ser libertada pela pintura e
pótese de na pré-história da humani- pela música8. Deste modo a poesia é a
dade (ainda em uma pré-humanidade) arte mais despojada de um elemento
terem sido o canto e a dança origem da material, a música ainda se utiliza do
linguagem verbal. As expressões cole- som, assim como tendo sua origem na
tivas da sexualidade e a agressividade, arte romântica, a música assume a ên-
originalmente desagregadoras, torna- fase cristã no valor infinito do indiví-
ram-se instrumentos a serviço da coe- duo e do livre-arbítrio. A arte da poe-
são do grupo. Com os séculos (quantos sia é a arte universal do espírito que se
milênios?) a música foi decomposta em tornou livre e cuja interioridade preten-
sons, os sons viraram fonemas e come- de realizar-se completamente, confundin-
çaram a ser repetidos com a finalidade do assim dizer com o pensamento, tal como
de designarem objetos e ações. As ações se forma na fantasia (...) de modo que a
motoras da dança diminuíram de in- realidade exterior dê lugar à realidade in-
tensidade e foram transformadas em terior e que a objetividade exista apenas
gesto e mímica. A laringe humana com na própria consciência (...)9.
sua infinita possibilidade de emitir sons, É patente a influência da leitura
sofisticação de laringe que primo pri- das obras de Hegel na obra de Martin
mata algum possui sequer vestígio, cor- Heidegger, e de ambos sobre as idéias
responde à gigantesca área cortical, que de Lacan, o qual, inclusive, foi um dos
junto com as áreas de controle das mãos primeiros tradutores do filósofo existen-
e do rosto tornam grotesco o homún- cial alemão para o francês. Apesar de
culo de Penfield, figura que é uma re- Heidegger ter procurado ao máximo
presentação gráfica de nossa humani- distanciar-se da força de atração que
dade, extensas áreas corticais utilizadas suas idéias – assim como as da fenome-
para: o canto, o gesto e a mímica facial. nologia e do existencialismo – tiveram

7
LANGE, Suzanne K. (1981), p. 33-56.
8
HEGEL, G. W. F. (1997), p.169.
9
HEGEL, G. W. F. Curso de estética o sistema das artes (1997), p. 363-364.

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sobre a psicologia do século XX, o des- como o único capaz de domar as inva-
tino foi-lhe ingrato. Heidegger sempre sões permanentes do Real e também
teve por meta o Ser, o ontológico em furar o narcisismo primário. O Simbó-
distinção ao ôntico. Mas até terapia lico como lugar do verbal, sabe-se das
existencial-humanista (apesar desta ter conseqüências desastrosas se é danifi-
muito mais é de gestaltista) virou está- cado em sua formação primordial: a for-
gio básico de currículo mínimo de cur- clusão. Dano de dentro ou de fora? É
so de graduação em Psicologia no Bra- uma dopamina demais, como quer a
sil. Um dos motes principais de Heide- velha psiquiatria, ou o Nome-do-pai
gger é o de que a linguagem verbal é “de menos”, que a experiência clínica
que estrutura o ato de pensar e não o com psicóticos, com suas famílias e com
ato de pensar que origina a linguagem seu meio social nos leva a deduzir? Um
verbal. Usualmente acreditamos que, buraco na teia do Simbólico produzido
quando a criança mais grandinha já por um buraco na linguagem, a qual já
pensaria bem direitinho, então come- antes de nascer está imerso o pequeno
çaria a balbuciar as primeiras palavras. ente, buraco em que: nem sujeito, nem
Trata-se de uma idéia ingenuamente barra, nem outro, nem Outro podem
naturalista, como a idéia trazida pela se configurar. Diria Didier-Weill, em
observação empírica mais óbvia, de que continuação ao último Lacan, que tam-
o sol é que gira em torno da Terra. Para bém pode não ter ocorrido o chama-
Heidegger é a palavra que origina o mento da pulsão invocante.
pensamento e não ao contrário, como Aranhas saudáveis podem cons-
ainda pensa a velha metafísica10. Palavra truir teias de geometria e nodulação
que em seu fundamento ontológico é impecáveis, uma excelente metáfora
palavra poética (poesis=criação). para a noção de estrutura. Aranhas ali-
Dito em psicologês, nascemos imer- mentadas experimentalmente com alu-
sos em um mundo de linguagem ver- cinógenos produzem teias sem qualquer
bal. Talvez até antes, uma vez que cada rigor, ora muito densas, ora com bura-
vez mais a Psicanálise dirige-se ao pré- cos enormes. Constituído um buraco
natal. O infans intui que se trata de um ou um ponto opaco numa teia caótica,
universo de sons repetidos, articulados tudo se continua de modo falho: o
ao longo do tempo e capazes de comu- mundo externo (com a inserção de alu-
nicar quase tudo. Noam Chomsky e cinações e delírios), corpo (com surgi-
seus seguidores, notadamente Steven mento dos sintomas catatônicos, de
Pinker (1995), embasaram pelo biolo- transformações corporais schreberianas
gismo americano, que as estruturas ce- e kafkianas), pensamento abstrato (com
rebrais da linguagem, apesar de todo o a regressão ao pensamento concreto ou
inatismo que possam ter, conduzindo desagregado). Coisa alguma se estrutu-
até a certas estruturas universais da lin- ra de modo satisfatório, ou quando dá
guagem, necessitam deste universo cir- a aparência de ter se estruturado, basta
cundante da palavra para não se atro- um peteleco para se desfazer. Tal uma mos-
fiarem: a palavra como alimento bási- ca, ora o Real é afugentado pelo nó opa-
co para o crescimento dos neurônios. co, ora passa pelo furo exagerado da teia.
Lacan, dentre suas formulações, Nesta direção da trilha a linguagem
colocou inicialmente o Simbólico verbal é que seria o protótipo de qual-

10
Citação nossa de M. Heidegger.

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quer linguagem, inclusive daquelas das sobre uma sucessão temporal, que po-
diversas expressões artísticas, mesmo a demos sentir o efeito de sons cuja fina-
música. Não existe uma música primor- lidade pode ser apenas a de fornecer
dial que escutamos e, depois, muito novas disposições temporais, benignas
depois, é que passamos a falar. Qual- (em oposição às malignas da depressão
quer tipo de linguagem é constituído e do tédio, em que o tempo pára). A
por um número finito de elementos, Bejahung inicial, re-comemorada pela
combinados de acordo com um núme- música, é a da instauração deste tempo
ro mínimo de regras, mas criando uma primordial, em que os signos instantâ-
combinatória infinita. Para qualquer neos passaram a significantes deslizan-
linguagem as regras podem ser acresci- do ao longo do tempo. Que os signifi-
das ou transgredidas, mas sempre dis- cados sejam: o conceito concreto de
põe os elementos ao longo do tempo. cadeira, uma fria formalização matemá-
No caso da linguagem verbal, a sinta- tica ou todo o potencial dos afetos e
xe constitui a disposição das palavras paixões; tudo isto é secundário à ins-
na frase e das frases no discurso, bem tauração do tempo e do Ser. Nesta tri-
como da relação lógica das frases entre lha, apesar de a música possuir por Ar-
si. Discurso, termo que provém do la- ché a palavra, torna-se invocadora da
tim discurrere: percorrer, atravessar. forma de todas as disposições afetivas,
Bem, leva-se algum tempo para percor- o que traz em si o bônus de não dividir
rer ou atravessar o que quer que seja. o sujeito, vantagem que é aproveitada
Para Igor Stravinsky (1996): a música por todas as outras artes. Principalmen-
pressupõe, antes de tudo, certa organiza- te aquelas formas artísticas que a con-
ção no tempo, uma cronomia, se me per- jugam novamente com a palavra: o
mitem esse neologismo11. Se o termo cro- canto e a poesia. De modo mais gené-
nos é traduzido por tempo, nomos pode rico, a não divisão do sujeito justifica-
ser traduzido por: parte, divisão do ter- ria que a música: o reconcilie e o inte-
ritório, lei, canto. Utilizar os conceitos gre com o trágico inerente ao mundo
de sintaxe e ou de cronomia é apenas externo, que integre corpo e mente por
dizer que, tudo o que não for apenas meio da dança e do canto e que, em-
imagem e totalidade instantâneas, por- bora perfeitamente abstrata, seja a mais
tanto constituindo uma linguagem, só íntima e sensual de todas as artes.
pode ser construído por que há tempo.
Heideggerianamente: tempo é Ser, ins- Conclusão: Contra Jacobus
taurado pela palavra.
Sendo assim, é por que falamos que Consideramos a trilha que parte de
podemos escutar música, que podemos Hegel a mais consistente com o pensa-
intuitivamente compreender a impor- mento de Lacan. Quanto à trilha de
tância de uma linguagem que não su- Didier-Weill, fica patente que segue
cumbe ou reforça um sujeito dividido aquela oposta, a que se inicia por Scho-
– – mas sim o faz se sentir em casa penhauer. Como já foi mencionado,
sem estranheza. Nunca três minutos são parece-nos curioso que tenha sido o
tão aproveitados quanto através de uma próprio Lacan quem solicitou de Didi-
música que nos atraia. É por que fala- er-Weill uma intervenção no seminá-
mos, e todo discurso verbal constrói-se rio L’insu que sait de l’une bévue s’aile à

11
STRAVINSKY, Igor (1996), p.35.

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mourre12. Assim como a questão de que mento primordial do sonoro com o femi-
o inconsciente estruturado como lin- nino13. Portanto estamos no continente
guagem coloca a questão, qual lingua- negro de Freud – que diagnosticamos
gem? Uma linguagem saussurianamen- como “o racional” – um iluminista do
te verbal? A música como mãe de século XVIII, atirado no caos do sécu-
t o das as linguagens? Uma matriz lo XX, e tentando compreender a bar-
chomskyana biopsicossocial para todas bárie tecnológica.
as estruturas possíveis da mente? Através de sua capacidade de atin-
O problema de que a música seja a gir um gozo estético, seja a música ori-
origem da palavra, na trilha Scho- gem da palavra ou o oposto, ovo ou
penhauer-Nietzsche-Didier-Weill, ou galinha torna-se uma questão um tan-
de que a palavra seja a origem de todas to bizantina; importante é se pergun-
as outras linguagens, na trilha Hegel- tar em termos psicanalíticos: qual gozo?
Heidegger-Lacan, pode muito bem ser O termo gozo estético pertence à Filo-
um falso problema, uma antinomia. A sofia da Arte há dois séculos, sendo seu
primeira trilha pode seguir a linha do estudo o objeto principal das doutrinas
tempo cronológico, tanto no sentido da estéticas a partir de Kant, contudo po-
antropogênese, quanto de sua recupe- demos assimilá-lo ao de gozo feminino
ração no tornar-se humano de qualquer em Lacan, gozo mais-além do falo,
infans. Neste caso conseguimos uma aquém ou além da clivagem do sujeito,
conciliação com a tão querida Lei de semelhante à experiência mística. Mas,
Haeckel: a ontogênese segue a filogê- apesar de existirem semelhanças, há um
nese. A segunda trilha, uma vez instau- diferencial entre o gozo estético da
rada a linguagem, pode referir-se ao música e o gozo feminino, a cronomia,
tempo lógico, descrevendo as etapas em a instauração do tempo, mesmo de um
que a compreensão de qualquer tipo de tempo primordial, conduz ao início de
linguagem tanto pressupõe a linguagem toda falta. Todo tempo instaura o mo-
verbal, como pode a ela retornar. mento seguinte, toda nota conduz à sua
Uma questão aparentemente ane- sucessora. Mesmo que houvesse uma
dótica, que reduz o problema que a música cronologicamente infinita, o
música formula para a Psicanálise ape- tempo constrói o surgimento da expec-
nas ao biográfico, também pode ser tor- tativa e só se espera algo que falta, don-
cida de modo a nos dar uma pista im- de a música, mesmo que o sujeito e o
portante. A ínfima escuta do apelo Outro se identifiquem ou fundam, tal-
musical na obra de Lacan, em que pese vez não existisse se em si não conti-
a formulação nodal da pulsão invocan- vesse também um objetinho a. Talvez
te, parece seguir a não escuta do mes- o gozo conduzido pela música seja o
tre Freud em sua incapacidade de ex- único em que a e tempo estejam re-
perimentar algum sentimento oceâni- conciliados, em que o gozo não fálico
co. Refletindo sobre a origem da tragé- escape de sucumbir à pulsão de morte,
dia segundo Nietzsche, sobre o êxtase à dor e à aniquilação a que o dionisía-
dionisíaco e o das bacantes, Didier- co conduz em sua invocação do Uno
Weill aponta para o laço desse enraiza- Primordial.

12
DIDIER-WEILL, Alain (A nota azul, 1997), p.85-104
13
DIDIER-WEILL, Alain (1999), p. 48.

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Afinal, que Quer a Música?

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