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Os pássaros Os pássaros
retornam retornam
sempre e sempre e
sempre. sempre.
O tempo cumpre-se. Constrói-se O tempo cumpre-se. Constrói-se
a evanescente forma a evanescente forma
ser ser
e e
ritmo. ritmo.
Os pássaros Os pássaros
retornam. Sempre os retornam. Sempre os
pássaros pássaros
A infância volta devagarinho. A infância volta devagarinho.
CICLO (II) CICLO (II)
Orides Fontela Orides Fontela
Resumo: A música como a arte menos interpretada pela Psicanálise. Algumas das idéias de
Didier-Weill sobre Psicanálise e música. A hipótese de que a linguagem musical seja a
origem da linguagem verbal. A questão do tempo na música. A hipótese contrária, a de
que a linguagem verbal seja a origem da linguagem musical e de todas as demais artes. A
música como fonte do sentimento oceânico mencionado por Freud e do gozo além do
fálico descrito por Lacan.
*
Trabalho parcialmente apresentado na IV Jornada Centro-Sul do Círculo Brasileiro de Psicanálise XXIII
Jornada do Fórum do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais I Jornada de Psicanálise e Arte do Círculo
Brasileiro de Psicanálise-Seção RJ, Belo Horizonte 22 a 24 de Setembro de 2005.
1
FREUD,Sigmund (2002), p.4.
2
KAUFFMANN,Pierre (1996), no Dicionário enciclopédico de psicanálise, verbete Psicanálise e Música,
apresenta a melhor síntese que conhecemos.
3
SPHOPENHAVER, Arthur (2005), p. 338; o trecho em maiúsculas é do próprio autor.
4
DIDIER-WEILL, Alain Os três tempos da lei, 1997, p. 237.
5
LACAN, J, Les Quatres Concepts Fondementaux de la Psychanalyse citado por Alain Didier-Weill.In Os três
tempos da lei, 1997, p. 238.
Além de cantar e dançar, o coro pas- zer de comemorar pelo ritmo a leveza
sou a falar, assim como da mímica pas- do corpo. Ou mesmo a embriaguez di-
sou o ator à fala. O diálogo surgiu quan- onisíaca, prazer que todas as crianças
do a skené passou a ser dividida com obtêm girando até perderem o equilí-
um segundo ator. O êxtase místico ori- brio. Do som original invocado, que
ginal, semelhante ao das bacantes, e com o crescer do infans é decomposto
que em sua contrapartida masculina os em fonemas e repetido em sílabas, ori-
participantes se vestiriam como sátiros, ginar-se-ia a linguagem. A mesma tri-
seria repleto de visões e sentimentos lha nietzschiana, da música até a pala-
oceânicos. Constituía uma ameaça ao vra. Palavra que pode colocar-se no
poder e à religião olímpica oficiais. O extremo de uma mera informação ou
nascimento do teatro surgiu como uma de um não-dizer a palavra vazia, sem
domesticação parcial. Mas o canto e a afeto, sem transferência , ou ir até o
dança, executados pelo coro vestido de outro extremo, a leitura literária, cujo
sátiros, alternavam sua função com a núcleo é a poesia a palavra plena, que
da fala, ora dirigida à platéia, ora aos reúne imagem e sentido, catarse e in-
atores. A música e da dança transfor- sight.
mando-se em fala e diálogo, o êxtase Há um substrato do mito judaico
original cedendo a breves momentos de no pensamento de Didier-Weill. No
catarse e gozo estético. O nascimento princípio era o Verbo (ou o Logos, como
do teatro comemoraria miticamente o foi traduzido na Septuaginta), não foi
próprio nascimento da palavra, perma- uma palavra, muito menos um signifi-
necendo a arte no terreno comum en- cado, mas o significante o mais puro de
tre o imaginário e o simbólico. todos, capaz de inscrever um traço no
A linha de pensamento estabele- Nada, dele invocar a luz e todo movi-
cida por Didier-Weill corre paralela a mento que nela se mostra. O verbo
este trilho. Sua grande contribuição é (com minúscula mesmo) só veio muito
desenvolver a questão da pulsão invo- depois, com a divisão do sujeito, já as-
cante, que fora apenas esboçada por sediado pelo verbal, que encobre tan-
Lacan. Por que se esta pulsão, que é to quanto desvela. Embora Didier-Weill
quem traz à tona o sujeito, é o traço deixe bem claro as raízes de suas idéias
unário, ele é inscrito primeiramente quanto ao judaísmo, sua intervenção
como uma forma musical. A voz ma- num dos últimos seminários de Lacan
terna não é invocante pelo que diz, mas (Linsu que sait de lune bévue saile à
pelo tom diga-se afeto do que diz. mourre) produziu resultados aparente-
E o invocado não permanece como mente opostos aos princípios do mes-
uma mera resposta informação ou re- tre (teria sido propósito de Lacan, ou
flexo , que fosse apenas uma voz, um criou um monstro à semelhança de
som, um movimento labial mã (que em Frankenstein?): o inconsciente se es-
todos os idiomas assemelha-se a pala- trutura como linguagem, não a saus-
vra que designa mãe), mas como toda surianamente verbal, a linguagem
uma abertura à existência. O que é in- nietzschianamente musical.
vocado, também é gesto, que com o Que a música seja uma linguagem,
crescer do infans torna-se dança, o pra- não há dúvida6. Altamente sofisticada,
6
Apesar de nossa tese incondicional da música como linguagem, há controvérsias; consultar: S. R. de
Oliveira, (2002)
7
LANGE, Suzanne K. (1981), p. 33-56.
8
HEGEL, G. W. F. (1997), p.169.
9
HEGEL, G. W. F. Curso de estética o sistema das artes (1997), p. 363-364.
sobre a psicologia do século XX, o des- como o único capaz de domar as inva-
tino foi-lhe ingrato. Heidegger sempre sões permanentes do Real e também
teve por meta o Ser, o ontológico em furar o narcisismo primário. O Simbó-
distinção ao ôntico. Mas até terapia lico como lugar do verbal, sabe-se das
existencial-humanista (apesar desta ter conseqüências desastrosas se é danifi-
muito mais é de gestaltista) virou está- cado em sua formação primordial: a for-
gio básico de currículo mínimo de cur- clusão. Dano de dentro ou de fora? É
so de graduação em Psicologia no Bra- uma dopamina demais, como quer a
sil. Um dos motes principais de Heide- velha psiquiatria, ou o Nome-do-pai
gger é o de que a linguagem verbal é de menos, que a experiência clínica
que estrutura o ato de pensar e não o com psicóticos, com suas famílias e com
ato de pensar que origina a linguagem seu meio social nos leva a deduzir? Um
verbal. Usualmente acreditamos que, buraco na teia do Simbólico produzido
quando a criança mais grandinha já por um buraco na linguagem, a qual já
pensaria bem direitinho, então come- antes de nascer está imerso o pequeno
çaria a balbuciar as primeiras palavras. ente, buraco em que: nem sujeito, nem
Trata-se de uma idéia ingenuamente barra, nem outro, nem Outro podem
naturalista, como a idéia trazida pela se configurar. Diria Didier-Weill, em
observação empírica mais óbvia, de que continuação ao último Lacan, que tam-
o sol é que gira em torno da Terra. Para bém pode não ter ocorrido o chama-
Heidegger é a palavra que origina o mento da pulsão invocante.
pensamento e não ao contrário, como Aranhas saudáveis podem cons-
ainda pensa a velha metafísica10. Palavra truir teias de geometria e nodulação
que em seu fundamento ontológico é impecáveis, uma excelente metáfora
palavra poética (poesis=criação). para a noção de estrutura. Aranhas ali-
Dito em psicologês, nascemos imer- mentadas experimentalmente com alu-
sos em um mundo de linguagem ver- cinógenos produzem teias sem qualquer
bal. Talvez até antes, uma vez que cada rigor, ora muito densas, ora com bura-
vez mais a Psicanálise dirige-se ao pré- cos enormes. Constituído um buraco
natal. O infans intui que se trata de um ou um ponto opaco numa teia caótica,
universo de sons repetidos, articulados tudo se continua de modo falho: o
ao longo do tempo e capazes de comu- mundo externo (com a inserção de alu-
nicar quase tudo. Noam Chomsky e cinações e delírios), corpo (com surgi-
seus seguidores, notadamente Steven mento dos sintomas catatônicos, de
Pinker (1995), embasaram pelo biolo- transformações corporais schreberianas
gismo americano, que as estruturas ce- e kafkianas), pensamento abstrato (com
rebrais da linguagem, apesar de todo o a regressão ao pensamento concreto ou
inatismo que possam ter, conduzindo desagregado). Coisa alguma se estrutu-
até a certas estruturas universais da lin- ra de modo satisfatório, ou quando dá
guagem, necessitam deste universo cir- a aparência de ter se estruturado, basta
cundante da palavra para não se atro- um peteleco para se desfazer. Tal uma mos-
fiarem: a palavra como alimento bási- ca, ora o Real é afugentado pelo nó opa-
co para o crescimento dos neurônios. co, ora passa pelo furo exagerado da teia.
Lacan, dentre suas formulações, Nesta direção da trilha a linguagem
colocou inicialmente o Simbólico verbal é que seria o protótipo de qual-
10
Citação nossa de M. Heidegger.
quer linguagem, inclusive daquelas das sobre uma sucessão temporal, que po-
diversas expressões artísticas, mesmo a demos sentir o efeito de sons cuja fina-
música. Não existe uma música primor- lidade pode ser apenas a de fornecer
dial que escutamos e, depois, muito novas disposições temporais, benignas
depois, é que passamos a falar. Qual- (em oposição às malignas da depressão
quer tipo de linguagem é constituído e do tédio, em que o tempo pára). A
por um número finito de elementos, Bejahung inicial, re-comemorada pela
combinados de acordo com um núme- música, é a da instauração deste tempo
ro mínimo de regras, mas criando uma primordial, em que os signos instantâ-
combinatória infinita. Para qualquer neos passaram a significantes deslizan-
linguagem as regras podem ser acresci- do ao longo do tempo. Que os signifi-
das ou transgredidas, mas sempre dis- cados sejam: o conceito concreto de
põe os elementos ao longo do tempo. cadeira, uma fria formalização matemá-
No caso da linguagem verbal, a sinta- tica ou todo o potencial dos afetos e
xe constitui a disposição das palavras paixões; tudo isto é secundário à ins-
na frase e das frases no discurso, bem tauração do tempo e do Ser. Nesta tri-
como da relação lógica das frases entre lha, apesar de a música possuir por Ar-
si. Discurso, termo que provém do la- ché a palavra, torna-se invocadora da
tim discurrere: percorrer, atravessar. forma de todas as disposições afetivas,
Bem, leva-se algum tempo para percor- o que traz em si o bônus de não dividir
rer ou atravessar o que quer que seja. o sujeito, vantagem que é aproveitada
Para Igor Stravinsky (1996): a música por todas as outras artes. Principalmen-
pressupõe, antes de tudo, certa organiza- te aquelas formas artísticas que a con-
ção no tempo, uma cronomia, se me per- jugam novamente com a palavra: o
mitem esse neologismo11. Se o termo cro- canto e a poesia. De modo mais gené-
nos é traduzido por tempo, nomos pode rico, a não divisão do sujeito justifica-
ser traduzido por: parte, divisão do ter- ria que a música: o reconcilie e o inte-
ritório, lei, canto. Utilizar os conceitos gre com o trágico inerente ao mundo
de sintaxe e ou de cronomia é apenas externo, que integre corpo e mente por
dizer que, tudo o que não for apenas meio da dança e do canto e que, em-
imagem e totalidade instantâneas, por- bora perfeitamente abstrata, seja a mais
tanto constituindo uma linguagem, só íntima e sensual de todas as artes.
pode ser construído por que há tempo.
Heideggerianamente: tempo é Ser, ins- Conclusão: Contra Jacobus
taurado pela palavra.
Sendo assim, é por que falamos que Consideramos a trilha que parte de
podemos escutar música, que podemos Hegel a mais consistente com o pensa-
intuitivamente compreender a impor- mento de Lacan. Quanto à trilha de
tância de uma linguagem que não su- Didier-Weill, fica patente que segue
cumbe ou reforça um sujeito dividido aquela oposta, a que se inicia por Scho-
mas sim o faz se sentir em casa penhauer. Como já foi mencionado,
sem estranheza. Nunca três minutos são parece-nos curioso que tenha sido o
tão aproveitados quanto através de uma próprio Lacan quem solicitou de Didi-
música que nos atraia. É por que fala- er-Weill uma intervenção no seminá-
mos, e todo discurso verbal constrói-se rio Linsu que sait de lune bévue saile à
11
STRAVINSKY, Igor (1996), p.35.
mourre12. Assim como a questão de que mento primordial do sonoro com o femi-
o inconsciente estruturado como lin- nino13. Portanto estamos no continente
guagem coloca a questão, qual lingua- negro de Freud que diagnosticamos
gem? Uma linguagem saussurianamen- como o racional um iluminista do
te verbal? A música como mãe de século XVIII, atirado no caos do sécu-
t o das as linguagens? Uma matriz lo XX, e tentando compreender a bar-
chomskyana biopsicossocial para todas bárie tecnológica.
as estruturas possíveis da mente? Através de sua capacidade de atin-
O problema de que a música seja a gir um gozo estético, seja a música ori-
origem da palavra, na trilha Scho- gem da palavra ou o oposto, ovo ou
penhauer-Nietzsche-Didier-Weill, ou galinha torna-se uma questão um tan-
de que a palavra seja a origem de todas to bizantina; importante é se pergun-
as outras linguagens, na trilha Hegel- tar em termos psicanalíticos: qual gozo?
Heidegger-Lacan, pode muito bem ser O termo gozo estético pertence à Filo-
um falso problema, uma antinomia. A sofia da Arte há dois séculos, sendo seu
primeira trilha pode seguir a linha do estudo o objeto principal das doutrinas
tempo cronológico, tanto no sentido da estéticas a partir de Kant, contudo po-
antropogênese, quanto de sua recupe- demos assimilá-lo ao de gozo feminino
ração no tornar-se humano de qualquer em Lacan, gozo mais-além do falo,
infans. Neste caso conseguimos uma aquém ou além da clivagem do sujeito,
conciliação com a tão querida Lei de semelhante à experiência mística. Mas,
Haeckel: a ontogênese segue a filogê- apesar de existirem semelhanças, há um
nese. A segunda trilha, uma vez instau- diferencial entre o gozo estético da
rada a linguagem, pode referir-se ao música e o gozo feminino, a cronomia,
tempo lógico, descrevendo as etapas em a instauração do tempo, mesmo de um
que a compreensão de qualquer tipo de tempo primordial, conduz ao início de
linguagem tanto pressupõe a linguagem toda falta. Todo tempo instaura o mo-
verbal, como pode a ela retornar. mento seguinte, toda nota conduz à sua
Uma questão aparentemente ane- sucessora. Mesmo que houvesse uma
dótica, que reduz o problema que a música cronologicamente infinita, o
música formula para a Psicanálise ape- tempo constrói o surgimento da expec-
nas ao biográfico, também pode ser tor- tativa e só se espera algo que falta, don-
cida de modo a nos dar uma pista im- de a música, mesmo que o sujeito e o
portante. A ínfima escuta do apelo Outro se identifiquem ou fundam, tal-
musical na obra de Lacan, em que pese vez não existisse se em si não conti-
a formulação nodal da pulsão invocan- vesse também um objetinho a. Talvez
te, parece seguir a não escuta do mes- o gozo conduzido pela música seja o
tre Freud em sua incapacidade de ex- único em que a e tempo estejam re-
perimentar algum sentimento oceâni- conciliados, em que o gozo não fálico
co. Refletindo sobre a origem da tragé- escape de sucumbir à pulsão de morte,
dia segundo Nietzsche, sobre o êxtase à dor e à aniquilação a que o dionisía-
dionisíaco e o das bacantes, Didier- co conduz em sua invocação do Uno
Weill aponta para o laço desse enraiza- Primordial.
12
DIDIER-WEILL, Alain (A nota azul, 1997), p.85-104
13
DIDIER-WEILL, Alain (1999), p. 48.
Bibliografia
DIDIER-WEILL, A. Invocações - Dionísio, Moi-
sés, São Paulo e Freud. Rio de Janeiro: Compa-
nhia de Freud, 1999, 158 p.
DIDIER-WEILL, A. Lacan e a clínica psicanalí-
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DIDIER-WEILL, A. Nota azul. Rio de Janeiro:
Contra Capa, 1997. 118 p.
DIDIER-WEILL, A. Os três tempos da lei o
mandamento siderante, a injunção do supereu e a
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1997. 341 p.
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artes. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 634 p.
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NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou
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