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Participação

em obras interativas: algumas reflexões estéticas


Participation in interactive artworks: some aesthetic thoughts
MAMEDES, Clayton Rosa
Doutor em Música, Universidade Federal do Paraná, claytonmamedes@gmail.com


RESUMO
A proposta deste ensaio é apresentar uma reflexão sobre participação em obras interativas, buscando
relacionar questões estéticas desta forma de produção artística a exemplos escolhidos dentre a produção do
autor. A proposta desta reflexão é destacar o potencial existente nas relações socioculturais que o visitante
estabelece com a obra, tendo como pano de fundo o objetivo de estimular a reflexão crítica individualizada de
cada participante. Apresentaremos algumas questões sobre a estrutura de obras participativas, preocupações
levantadas pela literatura da área de estética, seguidas pela discussão dos princípios de interação participativa
que buscamos explorar em nossa atividade criadora, especialmente em nossa produção recente, trazendo
exemplos de instalações audiovisuais interativas criadas entre 2015 e 2017.
PALAVRAS-CHAVE: estética, interação, participação, instalações.


ABSTRACT
The purpose of this essay is to present some thoughts about participation in interactive artworks, intending to
relate aesthetic questions of this artistic genre to selected examples among the portfolio of the author. The
purpose of this study is to highlight the potential that exists in sociocultural relations that visitors create with
the work. We have as our background an aim of motivating individual critical thinking of participants. We will
present some topics about the structure of participative artworks, considerations raised by literature about
aesthetics, following a discussion about the principles of participative interaction that we pursue in our creative
activity, specially among our recent works, bringing to analysis examples of audiovisual interactive installations
created between 2015 and 2017.
KEY-WORDS: aesthetics, interaction, participation, installation art.

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1 INTRODUÇÃO: DEFININDO NOSSO CAMPO DE REFLEXÃO

1.1 A forma e a estrutura de uma obra participativa

Podemos entender obras participativas como uma situação artística que compreende o processo de
realização desta obra pelo participante, ou seja, seu projeto conceitual prevê mecanismos de criação
colaborativa e associa parte de sua estruturação formal à realização particular de cada indivíduo. Tal
abordagem à participação se fundamenta na definição de obra aberta, proposta por Umberto Eco
para identificar obras artísticas que têm como característica a autonomia do intérprete em seu
processo de realização, autonomia esta que se manifesta pela possibilidade deste intérprete intervir
em sua forma, uma situação que Eco define como uma “improvisação criadora” (Eco, 1991, p. 37).

Para Eco, a abertura da obra seria uma questão de programa, de um objetivo conceitual, embora
possa-se observar que a subjetividade do processo de interpretação – seja pelo performer, seja pelo
público – faz com que a obra se manifeste diferentemente para cada ser humano envolvido; existe,
portanto, um fator inevitável de “abertura” em qualquer experiência artística. As referências
socioculturais e as experiências individuais de cada participante tornam o processo de interpretação
um fenômeno pessoal que não pode ser totalmente controlado pelo autor. Nas obras abertas,
aspectos estruturais são intencionalmente transformados em convite a uma “intervenção
orientada”, em que as possibilidades de interpretação de uma proposta de realização estão
controladas (Eco, 1991, p. 43). O autor observa que cada versão de uma obra aberta realizada é, ao
mesmo tempo, uma versão definitiva e uma versão provisória, pois uma interpretação sobre a obra
pode mudar entre sucessivas realizações pelo mesmo intérprete e será diferente de outras
interpretações1. Considerando que uma obra aberta permite diferentes interpretações, cabe
refletirmos sobre a percepção de unidade em sua realização; esta unidade pode ser abordada
através do conceito de indeterminação, tal como interpretado por John Cage, contraposto ao
conceito de invariância proposto por Valério Fiel da Costa.

John Cage formalizou seu pensamento sobre a indeterminação na composição musical em uma
palestra proferida no curso de Darmstadt de 1958 (Cage, 1968, p. 35-40). O compositor define
aspectos essenciais para estruturação de uma composição musical2 e propõe que qualquer destes
aspectos está sujeito a determinação ou indeterminação, de maneira isolada ou conjunta. As
características desta indeterminação é que vão definir qual a função a ser desempenhada pelo
intérprete durante o processo de realização da obra. Por exemplo, a Arte da Fuga de J. S. Bach3 pode

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ser considerada um obra indeterminada quanto ao timbre, uma vez que não há indicação de seu
efetivo instrumental; este aspecto deverá ser determinado pelo intérprete a partir da análise sobre a
extensão das vozes, delimitando as formações instrumentais possíveis. Mas os detalhes deste
fechamento, dentre o conjunto de possibilidades de combinações instrumentais disponíveis, é
efetivamente realizado pelo intérprete. Entretanto, esta abertura tímbrica não é capaz de eliminar o
reconhecimento da obra entre diferentes versões; os aspectos determinados desta obra permitem-
nos reconhecê-la entre diferentes interpretações com uma margem de incerteza consideravelmente
reduzida. Portanto, há um nível de invariância entre as diferentes interpretações desta obra que não
se esvai apenas pela indeterminação do aspecto tímbrico. Tais limites de invariância foram estudados
por Valério Fiel da Costa (Costa, 2016), aprofundando a hipótese de Eco segundo a qual o elemento
de unidade entre diferentes realizações de uma obra seriam as marcas pessoais de seu autor.

Costa propõe uma definição de invariância que não é baseada em limites rígidos, mas em regiões de
tolerância morfológica na interpretação dos objetos musicais. Para o autor, as estratégias de
invariância constituem-se como recursos que permitem estabelecer os elementos essenciais de uma
obra musical. Esta estabilidade morfológica, segundo Costa (2016, p. 79), seria a verdadeira
responsável por delimitar a invariância em uma obra. A partir deste ponto de vista, os elementos de
uma obra poderiam ser compreendidos dentro do contínuo estrito - flexível. Por estrito entende-se
os elementos de construção do discurso musical que, entre diferentes performances da obra,
indicam uma instrução que deve ser realizada de maneira específica, pouco sujeita a variações
contextuais4. Já os elementos flexíveis são aqueles que possuem alguma forma de imprecisão em sua
representação; esses elementos partem do princípio que o intérprete deve tomar decisões que
modificam o resultado entre diferentes interpretações5. De maneira similar às afirmações de Eco,
podemos interpretar que Costa considera existir níveis de indeterminação nos materiais flexíveis,
mas que estes desempenham uma função específica dentro do contexto proposto pelo projeto
conceitual da obra. Portanto, podemos falar em erro quando se ultrapassa este “limite de
imprecisão”, aquele que nos permite reconhecer um objeto musical como uma entidade com um
papel definido no contexto global da obra. Contextualizada a organização estrutural da obra
enquanto forma artística e as características de unidade que permitem reconhecer seu projeto entre
diferentes realizações, podemos agora complementar nossa reflexão com o potencial social e político
apresentado pela mudança nas relações hierárquicas entre autor, obra e público.

1.2 A estética da participação em obras interativas

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Claire Bishop (2006) associa a participação em arte a um desejo de se produzir um ambiente
democrático, onde a coletividade da experiência artística vai adquirir primeiro plano. A autora define
três perspectivas que guiam o processo criativo de obras participativas:

1) “A primeira compreende o desejo de se criar um sujeito ativo, que será habilitado com a
experiência de participação física ou simbólica” (Bishop 2006, p. 12). A proposta é que estes sujeitos
ativos sejam capazes de construir suas próprias experiências estéticas com as obras; estas
experiências são alcançadas através da relação entre a ação individual ou coletiva do público e sua
percepção da obra influenciada por aspectos de ordem sociocultural.

2) A segunda compreende a autoria da obra em questão, em que “o gesto de ceder o controle –


parcial ou total – do processo autoral é convencionalmente observado como mais igualitário e
democrático que a criação de uma obra por um único artista”6. De um ponto de vista conceitual, a
proposta é que a obra se construa em um modelo social menos hierárquico, enquanto seus objetivos
estéticos privilegiam a imprevisibilidade do projeto artístico, que resulta da autoria coletiva.

3) A terceira perspectiva foca especificamente no aspecto coletivo/comunitário que sustenta sua


produção. Bishop localiza a origem desta perspectiva em meio a uma “crise no senso de comunidade
e de responsabilidade coletiva”7. A proposta desta abordagem é reatar os laços sociais que
sustentam o viver em comunidade através da arte, tendo como objetivo uma construção coletiva de
significados – como forma de alcançar níveis mais altos de socialização.

Em sua essência, as reflexões de Bishop expandem a definição de obra aberta de Eco ao incorporar o
potencial social e político que a arte possui. Eco apresenta as sementes desta reflexão ao empregar o
exemplo do teatro épico de Bertolt Brecht, mas não aprofunda a questão da função social da arte,
aspecto que se tornou foco de reflexão na literatura recente sobre estética. Para localizar
conceitualmente o pensamento de Bishop, nos apoiaremos em duas de suas fontes referenciais: a
estética relacional de Nicolas Bourriaud e a teoria da arte crítica de Jacques Rancière.

A estética relacional, que fundamenta tanto os trabalhos de Bishop quanto as reflexões mais
recentes de Rancière, é um conceito8 desenvolvido a partir de obras participativas que consideram as
interações humanas com seu contexto social (Bourriaud, 2009, p. 19). Esta abordagem, de certa
forma, se contrapõe à análise estética situada sob o ponto de vista do espaço simbólico privado; ou
seja, se opõe a uma experiência individualizada da arte. Tais obras já não se ligam por aspectos
estilísticos, temáticos, iconográficos ou técnico-formais; cada artista constrói seu próprio mundo de
formas e o que as agrupa é a interação social entre os visitantes.

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Bourriaud argumenta que a o contexto urbano atual generalizou as experiências do encontro e da
proximidade, que teriam sido impostas à população pelas próprias condições de vida que assumimos.
Como consequência desta nova relação com o espaço e com o tempo, a arte contemporânea passou
a priorizar o período de tempo que será experienciado, gerando uma forma de arte que se baseia na
intersubjetividade: estar junto, elaborar significados coletivamente (Bourriaud, 1999, p. 19-21). Os
espaços da arte se estabelecem, então, como espaços designados para criar oportunidades de
relações humanas. A arte assume um caráter político ao problematizar este contexto relacional
(Bourriaud, 1999, p. 23). Considerando que toda visão política em arte compreende uma dimensão
crítico-reflexiva, Rancière explorará este aspecto em suas análises sobre a arte crítica.

Jacques Rancière, em uma tentativa de definir o que seria a arte crítica, identifica seus traços
fundamentais através de seu objetivo: “transformar o espectador em um agente consciente na
transformação do mundo” através da “conscientização dos mecanismos de dominação” social
(Rancière, 2006, p. 83). A partir desta definição, o autor aponta problemas neste conceito de arte
crítica pela simples conscientização dos participantes, argumentando que o público não precisa de
uma explicação das leis de exploração às quais estão sujeitos e que a reiteração de temas conduz à
permanência do status quo9. Para Rancière, o regime estético da arte possui uma política própria
baseada nas lógicas 1) de se integrar à vida abolindo-se enquanto arte ou 2) de fazer política fingindo
não fazê-la. A dificuldade da arte crítica está neste conflito interno, que a conduz em direção à vida
real e que, ao mesmo tempo, a separa das experiências cotidianas. O autor apresenta a hipótese de
que a arte da década de 199010 é marcada pela indecisão entre assumir o papel de retomar os laços
sociais ou o de criticar a sociedade ao assumir uma posição política (Rancière, 2006, p. 86).

Rancière vai além em sua argumentação ao levantar uma segunda hipótese, de que o apagamento
do aspecto político da arte recente seria resultado de uma época de consenso social (Rancière, 2006,
p. 92). Se por um lado o autor conclui pela pertinente ideia de um contínuo entre arte e política na
reflexão estética atual, a qual permite atitudes contraditórias e conduz a um espaço de indecisão, por
outro lado, a ideia do apagamento da inventividade em tempos de consenso social valoriza uma
postura política explícita em projetos artísticos. Este aspecto será retomado em nossa discussão.

2 APRESENTANDO A INTERAÇÃO EM UMA PERSPECTIVA POIÉTICA

Iniciaremos esta seção apresentando três instalações do autor, explicando brevemente o projeto
conceitual de cada obra. Dentre as características comuns a estes projetos, todas as obras
apresentam experiências pessoais do autor sobre os temas abordados, todas empregam o mesmo

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modelo de captura de movimento dos visitantes11 e todas são obras audiovisuais. Por sua
similaridade estética e técnica, consideramos este grupo de obras como parte de uma mesma série.

2.1 Caminho das águas

A obra Caminho das águas (2015) aborda a estiagem ocorrida no verão e outono de 2014 no Estado
de São Paulo, questionando o uso da água e a poluição de rios e mananciais. As referências visuais e
sonoras da obra compreendem o repertório imagético de seca e cursos d'água minguantes,
contrapondo a paisagem audiovisual natural a interferências humanas no ambiente. Estas
referências aparecem revisitadas por edição e processamentos em tempo real, as quais
desconstroem o conteúdo original e remetem às características essenciais do material audiovisual
que inspira sua realização. O desenvolvimento da obra, apesar de influenciado pelos padrões de
interação dos visitantes, apresenta uma progressão da água em abundância a paisagens de seca.


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Figura 1: Caminho das águas. Galeria de Arte da Unicamp .
22 de outubro a 6 de novembro de 2015.

A proposta deste projeto artístico é estabelecer um ambiente de remissão ao estado aquático,


inserindo imagens com graus variados de referencialidade à fontes originais. A intenção autoral é
que os visitantes construam sua própria interpretação da obra a partir da combinação discursiva dos
elementos audiovisuais. Entretanto, como a ordem de sequenciamento dos materiais audiovisuais é
diretamente influenciada pela interação gestual, cada participante se deparará com uma estrutura
formal individual. A experiência estética, portanto, molda-se pela conjunção entre o material que
aparece em cada experiência interativa e o discurso global da obra, caracterizado por uma certa
indeterminação resultante das possibilidades de construção formal de cada experiência.

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2.2 O que vai com o vento

O que vai com o vento ( 2017) aborda poeticamente o vento a colocar as coisas em movimento, um
suspiro sonoro e visual de continuidade permanente. As referências visuais e sonoras da obra
compreendem o repertório imagético do vento colocando em movimento nuvens, flores, árvores,
grama, água, pipas, exaustores, fios elétricos, sacos de lixo, dentre outros. Assim como na obra
anterior, todo o repertório audiovisual aparece processado com a intenção de transformar o material
originário em texturas, caracterizadas por diferentes níveis referenciais. O desenvolvimento formal
da obra também é influenciado pela interação dos visitantes.


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Figura 2: O que vai com o vento. Sala de exposições do DeArtes-UFPR .
9 a 13 de janeiro de 2017.

A ideia conceitual do projeto é que os visitantes estabeleçam relações pessoais com este material
com base em suas experiências individuais. Neste sentido, estabelece-se um campo interpretativo
que escapa ao controle do autor da obra, já que cada imagem carrega um potencial afetivo que
compete ao criador sugerir, mas que é impossível de controlar.

2.3 As estrelas que posso te dar

As estrelas que posso te dar (2017) é inspirada no mapa estelar, propondo um ambiente lúdico onde
a luminosidade das estrelas, o deslocamento de nuvens sintetizadas que cobrem o céu, sons de
instrumentos musicais processados e texturas sonoras sintetizadas reagem aos movimentos de
toque do visitante e a seu deslocamento pelo espaço.

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Figura 3: As estrelas que posso te dar. Sala de exposições do DeArtes-UFPR .
16 a 20 de janeiro de 2017.

A proposta para o modelo interativo é estabelecer referências audiovisuais a analogias inspiradas nos
conceitos gestuais de tocar estrelas e arrastar nuvens. A intenção conceitual é intensificar a imersão
do visitante, criando uma relação de sintonia com a realidade. A escolha do material tímbrico para a
parte sonora emprega sons de instrumentos tradicionalmente utilizados em gêneros boêmios.

3 DISCUSSÃO

O que todas as obras expostas acima exploram é a interpretação do visitante sobre os temas
levantados: seja pelo uso indiscriminado dos recursos hídricos, pela experiência do movimento do
vento em meio a nossa atividade cotidiana ou pela contemplação da dimensão do espaço celeste. O
discurso adotado por estas obras partem de uma postura de não empregar uma abordagem didática,
com a intenção fazer o significado ser acessado pela reflexão crítica dos visitantes.

A estrutura formal das obras se constrói pela remissão a um repertório imagético limitado. Mesmo
que o conteúdo audiovisual esteja processado (seja previamente, seja em tempo real), é possível
extrair uma unidade referencial que, aparecendo recorrentemente entre diferentes fontes
audiovisuais, permite ao visitante construir um senso de invariância, mesmo que o ordenamento
estrutural e formal da obra esteja indeterminado, sendo criado como consequência da interação dos
visitantes com o sistema de captura de movimento por vídeo.

O ideal conceitual que guiou o desenvolvimento de cada obra é sugerido pela mesma coerência
entre os materiais audiovisuais selecionados, o que garante um nível mínimo de invariância e
caracteriza a unidade de cada projeto artístico. Isoladamente, nenhuma das imagens ou sons

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empregados é capaz de fazer transparente a intenção do autor. O problema, então, passa a ser como
relacionar estas obras ao contínuo entre estética e política proposto por Rancière, assim como sua
relação aos anseios manifestos pela literatura. Caminho das águas, por exemplo, apresenta um
programa crítico bastante claro em momentos de racionamento de recursos hídricos, como o
experienciado durante o primeiro ciclo de exibições da instalação; entretanto, em períodos em que
tal preocupação não aparece como uma urgência, esta interpretação intencionada pode tomar
direções completamente distintas. No caso específico de nossa poética, embora tenha servido como
fundamento conceitual para o processo criativo, não há a intenção de uma linha interpretativa
estritamente determinada; a ambiguidade é parte de nossa abordagem. Dentro do âmbito proposto
por Rancière, nos interessa mais as relações estéticas que o público estabelece com a obra. Caso
houvesse uma intenção política mais explícita, os materiais deveriam ter sido trabalhados utilizando
estratégias distintas, de forma a transmitir a intenção crítica de forma clara.

Partindo desta escolha poética exemplificada por Caminho das águas, um aspecto incômodo em
nossa interpretação da literatura sobre arte participativa recente é o abandono progressivo da
subjetividade da experiência artística. O discurso estético predominante que procura valorizar as
relações sociais entre participantes acaba passando ao largo de uma reflexão sobre os motivos e usos
(Kaprow, 2003, p. 182) que levam o público a se engajar em uma obra participativa. Consideramos
que estes motivos e usos se baseiam na interpretação crítica sobre a experiência estética, ou seja, a
experiência do participante com a obra em diálogo com seu universo sociocultural particular. Claire
Bishop levanta este questionamento sobre a experiência com a arte sob um aspecto um pouco
diferente, a partir de sua leitura de Rancière (2004): a autora preocupa-se com um retorno da arte a
uma função exclusivamente social, uma visão oriunda da Grécia antiga (Bishop, 2012, p. 28-29). Para
a autora, a experiência estética comporta tanto a dimensão crítica e política da arte quanto a
dimensão autônoma do sensível; portanto, não faria sentido propor a predominância dos aspectos
críticos como forma de valoração da arte participativa15, princípio com o qual concordamos.

O que propomos é um retorno à visão interpretada da participação inspirada pelo teatro épico de
Bertolt Brecht (Eco, 1991, p. 49), (Bishop, 2006, p. 11): o potencial social e participativo reside no
público, este é apenas viabilizado ou potencializado pela experiência estética com a arte. As micro-
utopias que Bourriaud (2009, p. 163) localiza no contexto de comunidade, nesta perspectiva
proposta, ocorrem também em nível subjetivo: uma revisão de valores e de experiências que
modificam nossa relação com o mundo. A arte, neste contexto, seria o canal potencializador desta
abordagem crítica, um sistema reflexivo quando em nível individual (Leydesdorff, 1994, p. 224),

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viabilizando a tão almejada fusão entre arte e vida, na medida em que estas se realimentam
mutuamente. Tal afirmação não objetiva desvalorizar as experiências sociais coletivas mediadas pela
arte, apenas propõem recuperar o papel da subjetividade na experiência estética; afinal, a síntese
interpretativa ocorre individualmente, mesmo quando influenciada pela coletividade.

Portanto, o que propomos é uma visão ampliada do conceito de função política da obra de arte neste
contexto da estética relacional e da arte crítica: a arte não precisa desempenhar uma função didática
neste processo de reflexão sobre aspectos de nossa cultura. Tal aspecto surge a partir da experiência
do sensível. Em sintonia com Rancière e Bishop, a estética em si comporta o contraditório e esta é
uma característica que oferece um grande potencial para o desenvolvimento de projetos conceituais
em arte. Neste sentido, estamos defendendo assumir que o campo interpretativo escapa ao controle
do autor da obra (podemos considerar este aspecto como óbvio), já que cada imagem emprega o
sensível para transmitir um potencial significante que compete ao criador sugerir, mas que é
impossível de controlar. A representação de uma pipa a voar no céu carregará significados
expressivos distintos para quem teve a experiência de soltá-la na infância, de quem nunca teve a
oportunidade de fazê-lo e de quem, tendo-a, não conseguiu reproduzir a experiência com seus filhos.

4 AGRADECIMENTOS

O autor agradece aos valiosos comentários de Roseane Yampolschi e ao apoio da Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, processo 1593232/2016.

5 REFERÊNCIAS

BISHOP, Claire. Participation: Documents of Contemporary Art. Cambridge: MIT Press, 2006.
______ Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship. Londres: Verso, 2012.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CAGE, John. Silence: lectures and writings. Londres: Marion Boyars (2ª ed., 8ª reimpressão), 1968.
COSTA, Valério Fiel da. Morfologia da obra aberta. Curitiba: Ed. Prismas, 2016.
ECO, Umberto. Obra aberta. 8ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1991.
KAPROW, Allan. Participation Performance. In: KELLEY, Jeff (Org.). Essays on the Blurring of Art and Life.
University of California Press, 2003. p. 181-194.
LEYDESDORFF, Loet. The Evolution of Communication Systems. In: Systems Research and Information Science,
no. 6, 219-230, 1994. Disponível em <http://ssrn.com/abstract=2236680>. Acesso em 11 ago. 2017.
RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l'esthétique. Éditions Galilée. 2004.
______ Problems and transformations in critical art. In: BISHOP, Claire (ed.). Participation. Cambridge: MIT
Press, 2006.

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NOTAS
1
Idem p. 64-65
2
São eles: 1) estrutura, a divisão do todo em partes; 2) método, os processos para a criação da relação nota-a-nota; 3)
forma, o conteúdo expressivo e a morfologia da continuidade; 4) frequência; 5) duração, lembrando que frequência e
duração são o par que define o conceito tradicional de nota musical; 6) amplitude e 7) timbre.
3
Exemplo citado pelo compositor em sua análise (Cage, 1968, p. 35).
4
Idem, p. 82-92.
5
Ibidem.
6
Ibidem.
7
Ibidem.
8
O livro L'esthétique relationnelle de Nicolas Bourriaud foi originalmente publicado em 1998, mas os conceitos lá
desenvolvidos já aparecem em artigos do autor deste o início da década de 1990. Nossos trabalhos se baseiam na tradução
brasileira (Bourriaud, 2009).
9
Ibidem.
10
O texto original foi escrito em 2004 e reeditado em 2006, versão que consultamos. Vide referências.
11
Para estes projetos, empregamos o dispositivo Microsoft Kinect.
12
Excerto da obra pode ser visualizado em: <http://www.youtube.com/watch?v=YJblR-nS5Gw>. Acesso em 28 set. 2017.
13
Excerto da obra pode ser visualizado em: <http://www.youtube.com/watch?v=svMyHKESXXQ>. Acesso em 28 set. 2017.
14
Excerto da obra pode ser visualizado em: <http://www.youtube.com/watch?v=2JeYyYmNcRc>. Acesso em 28 set. 2017.
15
Ibidem.

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