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DOSSIÊ
Elizabete Ribeiro Albernaz*
Este artigo analisa alguns paradoxos vivenciados por policiais militares evangélicos – mem-
bros ativos de congregações instaladas nos batalhões da Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro (PMERJ) – na busca por diálogo entre a sua fé, as prerrogativas de sua missão e os
valores que informam a prática policial dominante. O estudo apóia-se no conceito de “técnicas
de neutralização” de Sykes e Matza (1996), bem como na tipologia de Muir Jr. (1977) sobre as
respostas policiais dos chamados “paradoxos da coerção”. A análise mostra que a retórica
maniqueísta da “batalha espiritual” é transposta para o ambiente policial militar e apropriada
vigorosamente pela experiência da coerção. Esse resultado parece informar a construção de
padrões éticos evangélicos de atuação policial, em que os conflitos cotidianos são encaminha-
dos como expressões visíveis da influência nefasta do demônio, responsável pelo crime, pela
devassidão e por toda sorte de comportamentos socialmente reprováveis.
PALAVRAS-CHAVE: polícia militar, cultura policial, evangélicos, batalha espiritual, discricionariedade
policial.
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parte dos policiais frente à constatação de lacunas terminada ordem social, se preciso com o uso da
no funcionamento do sistema: a lentidão da justi- própria violência –, os policiais evangélicos elabo-
ça; a falta de equipamentos e treinamento; baixos ram justificativas complexas para suas escolhas,
salários; a perseguição da imprensa etc. buscando afirmar sua validade temporal (frente à
Com essa última afirmação, entretanto, não “lei dos homens”) e atemporal (frente à “lei de
pretendo negar a existência de tais problemas e Deus”). Tomadas como “técnicas de neutralização”
seus impactos sobre a ação policial. Retomo aqui (Sykes; Matza, 1996), tais justificativas temporais
as contribuições de Sykes e Matza (1996) acerca e atemporais, da “lei dos homens” e da “lei de Deus”
das chamadas “técnicas de neutralização” da cul- facultam acesso aos processos de aprendizado
pabilidade, em que os sujeitos acionam discur- subculturais que as informam (a relação com os
sos apreendidos culturalmente para justificar colegas, o engajamento em determinados tipos de
suas ações frente às normas e padrões sociais policiamento etc.), bem como aos valores sociais
2
A competência específica da polícia, segundo Bittner (2003), mais amplos a que se referem (o valor da vida hu-
está diretamente relacionada à prerrogativa de uso da for-
ça, a sua capacidade de ação decisiva no exercício da au- mana, concepções de honra, coragem, bem e mal).
toridade para subjugar qualquer oposição ao lidar com um Segundo Muir Jr (1977), a elaboração equi-
amplo espectro de situações emergenciais, que não se res-
tringem às ações de controle da criminalidade. vocada dessas tensões no exercício da coerção
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pode resultar em um amplo espectro de “res- foram realizadas visitas semanais a cinco deno-
postas não-profissionais”, que vão desde a nega- minações: Igreja Universal do Reino de Deus,
ção do recurso à força (omissão, evitação etc.) à Assembleia de Deus, Igreja Batista, Igreja
barganha da autoridade policial (corrupção, Adventista do Sétimo Dia e Nova Vida. Durante
privatização da segurança etc.), até à perda de esse período, consegui reunir um material bas-
referenciais éticos e à aquisição de uma visão tante interessante a partir da observação dos cul-
cínica dos dramas humanos ( expressa no abuso tos, acumulando um acervo significativo de pu-
de autoridade, violência policial etc.). blicações, folhetos e outros escritos distribuídos
Analisando as trajetórias evangélicas a durante as pregações.
partir da tipologia de Muir Jr (1977) e da contri- A segunda etapa da pesquisa de campo, cujos
buição de Sykes e Matza (1996), espero facultar resultados serão analisados mais detalhadamente no
ao leitor três registros possíveis de minha expe- presente artigo, foi levada a cabo entre os meses
riência de estudo da PMERJ. Uma primeira lei- de julho e dezembro de 2007. Nesse período,
tura se refere aos impactos da introdução de uma pude realizar um total de 37 entrevistas: 20 com
ética dualista exclusivista – que estabelece uma policiais militares evangélicos, sete com polici-
divisão clara e não-mediada entre o “bem e o ais não-evangélicos e dez com ex-policiais mili-
mal”, “o certo e o errado” – no ambiente cultu- tares, todos evangélicos, nas dependências do
ral da organização. Ao identificar as aproxima- Presídio Ary Franco.
ções e os distanciamentos entre o ethos policial e a As entrevistas, observações de campo e
moral cristã-evangélica, buscarei, em seguida, de- coleta de materiais foram realizadas nas seguintes
linear as estratégias e justificativas de que meus unidades policiais: BOPE (Laranjeiras), 5ºBPM
interlocutores lançam mão para responder a dois (Saúde), 13ºBPM (Centro), 14ºBPM (Bangu),
importantes focos de tensão da experiência evan- 24ºBPM (Queimados), 2ºBPM (Botafogo), Hos-
gélica: o uso da arma e o envolvimento com ativi- pital Central da Polícia Militar (HCPM-Estácio) e
dades de guarnição. E, por fim, espero produzir Batalhão Especial Prisional (BEP-Benfica).
um conjunto de inferências mais amplas acerca Sobre a amostragem de policiais milita-
dos limites e possibilidades institucionais na con- res, grande parte das entrevistas e observações
solidação de atitudes profissionais, a partir das so- de campo foi realizada entre os praças (solda-
luções encontradas pelos policiais na busca por al- dos, cabos e sargentos), não só porque são maio-
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maioria das entrevistas fosse realizada com poli- para as questões do campo fizeram dele um cola-
ciais em setores administrativos. Muitos possuí- borador importantíssimo, com quem eu discutia
am experiência de rua – algumas vezes, uma rica muitos dos resultados da pesquisa. Graças a ele,
e vasta experiência –, mas trabalhavam internos pude captar mais das percepções dos policiais
na época da pesquisa. Essa limitação levou-me a evangélicos que trabalhavam nas ruas da cidade
buscar meios alternativos para recolher depoimen- do Rio de Janeiro, aos quais tinha acesso limitado
tos junto aos policiais envolvidos em atividades em razão das especificidades do trabalho de cam-
ostensivas, in loco, durante os turnos de serviço. po. Suas entrevistas foram analisadas separada-
Como minha pesquisa se restringia ao am- mente na dissertação e, como veremos a seguir,
biente interno das unidades, decidi treinar um facultaram-me acesso a categorias importantes do
experiente sargento evangélico como meu assis- universo das ruas.
tente de campo, em razão de sua intimidade com
o tema e da facilidade de trânsito entre os colegas
nas ruas. O Sargento Carlos Fernandes4 já colabo- OS “POLÍTICOS DE ESQUINA”
rava ativamente com diversas pesquisas e era ins-
trutor do Curso de Aprimoramento da Prática A partir do final dos anos 60, a literatura
Policial Cidadã desde 2002, ano em que iniciei sociológica americana, impulsionada pelos des-
como estagiária de monitoramento do projeto, dobramentos políticos dos movimentos de defe-
desenvolvido pelo então Programa de Ações em sa dos direitos civis, dedicou-se a investigar
Segurança Pública da ONG “Viva Rio”. Quando empiricamente a questão da discricionariedade
decidi trabalhar com o tema do movimento evan- policial e da eficácia dos mecanismos de contro-
gélico na PMERJ, em 2006, Fernandes foi meu le e responsabilização sobre as ocorrências de
primeiro entrevistado e me auxiliou na organiza- desvios de conduta. As pesquisas levavam em
ção inicial de ideias para a pesquisa. Para que pu- consideração dois planos de análise, avaliados
desse realizar um conjunto de cinco entrevistas segundo a sua adequação às expectativas da so-
(além das 37 realizadas por mim), conversamos ciedade e aos parâmetros de legalidade vigentes:
longamente sobre meus interesses teóricos, pro- os procedimentos adotados pela força policial e
blemas práticos, público-alvo, bem como sobre a os comportamentos individuais de seus mem-
metodologia e o roteiro de perguntas. Antes de bros em situações reais do policiamento. A prin-
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engajar-se totalmente na pesquisa, Fernandes fez cipal preocupação de gestores públicos e pes-
uma entrevista-piloto, cujos pontos fortes e fra- quisadores era medir o impacto das reformas
cos foram trabalhados entre nós. Seu ótimo de- institucionais (criação de estruturas, sistemas,
sempenho como entrevistador e o olhar apurado emissão de regramentos e procedimentos) sobre
as práticas policiais concretas, transformando as
mais ajustada à demanda de trabalho de um dirigente.
Depois de mais de 15 anos de serviço, muitos sargentos prioridades e estratégias levadas a cabo nas
adquirem mazelas de saúde ou acabam buscando um ser-
viço mais tranquilo para encerrar a sua carreira; outros interações cotidianas com as comunidades.5
assumem a chefia ou a assistência de alguma seção, den-
tro do perfil funcional previsto para o segmento na estru- Diversos estudos se propuseram a desen-
tura hierárquica da corporação (Albernaz, 2009, p.149). volver tipologias detalhadas das diferentes ori-
4
“Nascido em lar evangélico”, em 2006, na época de nossa
primeira entrevista, Fernandes tinha 48 anos de idade e
24 anos de serviço, com uma vasta experiência no polici- 5
Duas linhas teóricas dominaram o cenário acadêmico da
amento ostensivo. Em 1996 sofreu um acidente, sendo época: os interacionistas, cujas análises centravam-se nas
realocado em setores administrativos de seu batalhão. “Afas- relações sociais e na existência de uma “cultura policial”;
tou-se do evangelho” pouco antes de ingressar na PMERJ e os estruturalistas, que afirmavam a necessidade de uma
e retornou aos 40 anos, cerca de dois anos depois do aci- análise profunda do lugar estrutural do exercício do po-
dente que o levou a se afastar da “rua”. Carlos Fernandes der discricionário na organização legal do Estado. Embora
é um cristão altamente engajado, pastor da Igreja Cruzada existissem essas ênfases teóricas diferenciadas, muitas
Mundial de Missões e responsável pela congregação evan- pesquisas transitavam entre esses dois níveis de análise,
gélica do 2ºBPM, em Botafogo, bairro da zona sul da cida- micro e macrossociológicos. Uma linhagem importante
de do Rio de Janeiro. desses estudos sociológicos atribuiu especial atenção ao
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entações e estilos de ação policial. Um deles, em Para desenvolver sua discussão, o autor
especial, ateve-se ao caráter eminentemente po- se vale de dois pressupostos fundamentais: o efei-
lítico do policiamento, atribuindo a cada polici- to corruptor do poder e a natureza moral dos
al um papel fundamental como “políticos de es- seres humanos. Segundo afirma, dentre as téc-
quina”, mediadores microscópicos das relações nicas de exercício do poder disponíveis – coer-
de poder dentro da sociedade. “Streetcorner ção, reciprocidade e exortação –, a coerção pare-
Politicians” (1977), do cientista político William ce exigir qualidades humanas e atributos indivi-
Ker Muir Jr., é uma obra de referência obrigató- duais incompatíveis com qualquer noção civili-
ria na sociologia das instituições policiais norte- zada de bem e de bondade (Muir, 1979, p.48).
americanas. Tributário das técnicas de observa- De modo a apreciar a natureza da coerção
ção participante da chamada “Escola de Chica- de forma mais profunda, dando conta de suas
go” – o título de seu livro remete ao clássico formas autorizadas e não-autorizadas, Muir
trabalho de William Foote Whyte, “Street Corner (1979) desenvolveu um modelo simplificado das
Society: The Social Structure of an Italian Slum” relações de coerção, chamado por ele de
(1943)6 –, Muir imergiu no cotidiano profissio- “extortionate transaction” (“transação extorsiva”).
nal de 28 jovens policiais americanos, todos en- Esse modelo – construído a partir de circuns-
volvidos em atividades de patrulha, pertencen- tâncias típicas da rotina de patrulhamento – per-
tes ao Departamento Policial da Cidade de mitiria visualizar as armadilhas implicadas no
Lacônia, no início da década de 70. exercício da coerção, encarnadas no que o autor
Em sua pesquisa de campo, Muir dedicou- denominou “paradoxos do poder coercitivo”:
se à observação das habilidades e atributos de
um “bom policial”, analisando as atitudes de seus 1. The paradox of dispossession: the less one has,
the less one has to lose; 2. The paradox of
interlocutores em relação aos dilemas e parado- detachment: the less the victim cares about
xos do exercício autorizado do poder coercitivo. preserving something, the less the victimizer
cares about taking it hostage; 3. The paradox of
face: the nastier one’s reputation, the less nasty
What is a good policeman, and what does he one has to be; 4. The paradox of irrationality: the
think and do differently from a bad one? Does more delirious the threatener, the more serious
police work corrupt, or does it expand a the threat, the more delirious the victim, the less
policeman’s horizons and magnify his soul? Can serious the threat (p. 44).8
anything be done to avert the potential for his
moral breakdown?7 (Muir, 1979, p.3).
A coerção exerce um papel crucial na
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zes diante dessa assimetria de meios para lidar não pela reconciliação, mas pela rejeição das pre-
com os paradoxos da coerção, os policiais pas- ocupações éticas da civilização, da adoção de uma
sam a reconhecer o uso do poder coercitivo como atitude intelectualmente cínica. Para Muir, três
estratégia legítima, reconciliando seus padrões fatores seriam cruciais no desenvolvimento das
de moralidade e as prerrogativas associadas à sua qualidades morais e intelectuais do “bom polici-
atividade profissional (p.224). al”: o cultivo da eloquência, que habilita o poli-
Para analisar o desenvolvimento dos atri- cial a construir alternativas ao uso da força coer-
butos constitutivos de um “bom policial”, Muir civa, transmitir esses conhecimentos e elaborar
recorre à sociologia de Max Weber, em seu texto emocionalmente as suas vivências; a relação com
clássico “A Política como Vocação”,9 em que o os colegas, especialmente com seus supervisores;
autor analisa os processos históricos e sociológi- e a liderança de seu chefe, no que se refere à
cos que possibilitaram o surgimento da figura definição de diretrizes institucionais e na con-
do “político profissional”. Em sua leitura de dução de processos de reforma.
Weber, Muir afirma que – assim como o “políti-
co profissional” – o “bom policial” deve desen-
volver duas virtudes para atingir um padrão ade- NA FRONTEIRA ENTRE O BEM E O MAL
quado de respostas aos paradoxos da coerção:
intelectualmente, deve desenvolver uma com- É bastante difundida, nos meios policiais,
preensão trágica compartilhada do sofrimento e a concepção de que sua missão envolve o conta-
da natureza humanos, que lhe permita susten- to diário com “o que existe de pior na socieda-
tar níveis aceitáveis de empatia por aqueles a de”, com o que há de mais obscuro na alma hu-
quem deve coibir; moralmente, deve resolver a mana. Muitos concebem o lugar de polícia como
contradição de obter fins justos por meios coer- um lugar de fronteira entre a legalidade e a ile-
civos, permitindo que o seu envolvimento com galidade, entre o bem e o mal, a “tênue linha
a violência seja eivado de princípios (Muir Jr, azul” que salvaguarda a ordem social da barbárie
1979, p.50-51).10 (Reiner, 2004a, p.137).
Para a tipologia de Muir, os policiais, como No decorrer dessa pesquisa, a religião apa-
resultado de suas respostas aos “paradoxos do receu como um tipo de instrumento poderoso de
poder coercitivo”, podem desenvolver atitudes negociação das realidades conflitivas e frustrações
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morais “integradas” ou “conflituosas”. Uma vi- da experiência policial militar, atribuindo senti-
são moralmente integrada torna a coerção con- do às inconsistências vivenciadas pelos sujeitos e
sistente com os códigos que regulam e dão valor oferecendo conforto ou mesmo suporte emocio-
à conduta de vida do policial, dissipando senti- nal. No caso dos policiais militares evangélicos, a
mentos de culpa e conflituosidade. A ética da experiência da conversão também faculta um novo
violência com princípios, entretanto, não é sufi- entendimento para a situação da segurança pú-
ciente. Uma moral integrada pode ser atingida blica no Rio de Janeiro, que se fundamenta na
9
Conferência proferida em 1919, na Universidade de Mu-
ideia de “batalha espiritual”.11 A violência, as dis-
nique, pouco tempo antes de falecer. putas territoriais do tráfico de drogas, as milícias,
10
Derivado de seu modelo profissional, Muir definiu três
tipos de atitudes não-profissionais: o “fujão” (avoider), a letalidade, a vitimização policial etc., seriam re-
de perspectiva cínica e moral conflituosa, se esquiva das flexos temporais da batalha celestial entre Deus e
obrigações e evita as circunstâncias em que deve usar a
coerção; o “alternante” (reciprocator), de perspectiva trá- o diabo pelas almas humanas, que finalmente es-
gica e moral conflituosa, hesita em usar o poder coerciti-
vo, mesmo quando é apropriado; o “sancionador” taria chegando a seu termo. O tempo profético
(enforcer), com perspectiva cínica e moral integrada, age
no calor do conflito e sem compreender a necessidade de do juízo, previsto no livro do Apocalipse, é imi-
controle. Para a tradução dos perfis não-profissionais de nente, o que produziria a intensificação das estra-
respostas os dilemas da coerção, foi utilizada uma suges-
11
tão oferecida por Reiner (2004a, p.154). Para maiores informações ver Mariz (1999) .
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tégias ardilosas do demônio, empenhado em afas- que resiste à autoridade policial, como repre-
tar o máximo de almas possível das graças de Deus sentante do mal, da desordem, do crime e da
antes de sua inevitável derrota. violência.12
O policial militar evangélico, ao desdobrar
Depois que eu aceitei Jesus, eu comecei a enten-
der que aquela pessoa [o traficante] é um igual. E o confronto para o plano espiritual, acrescenta
nós aprendemos que nossa luta não é contra car- uma dimensão diferenciada na compreensão do
ne nem contra sangue, mas contra Principados e
Potestades. Potestades são poderes; Principados fenômeno, em que seu opositor (o traficante, o
são principais, tá? Demônios! São Demônios. E bandido) aparece como mero “instrumento”. O
nós brigamos muito com Demônios e eu passei a
entender isso. Que aquele irmão que está me ata- mal a ser combatido é o pecado, bem como a
cando ele não está me atacando porque ele quer
me atacar. Ele está sendo induzido a fazer aquilo. indiferença que torna os sujeitos suscetíveis aos
O traficante, aquelas pessoas que estão à mar- “ardis do demônio”. Diferente das concepções
gem da lei, eu comecei a ver comecei a aprender,
comecei a ser revelado pelo Espírito Santo que maniqueístas culturalmente aceitas como justi-
aquilo são potestades, são Demônios que atuam ficativas para neutralizar a culpabilidade dos
naquelas pessoas. Na falta de buscar Deus, a pes-
soa fica na indiferença, então, acaba sendo alvo policiais, a ideia de “batalha espiritual” cria difi-
fácil pras obras do Maligno; fica na indiferença, culdades extras para a elaboração evangélica da
não busca Deus, não dá crédito na palavra de
Deus, não obedece a Deus, vive no mundo do experiência da letalidade: matar, nesse caso, sig-
pecado, então, a pessoa acaba sendo usada, aca- nifica privar não só o corpo da vida material,
ba sendo escrava do pecado, né? E cometendo
várias coisas abomináveis aos olhos dos homens mas a alma da vida eterna. No tópico seguinte,
aí, os casos de violência que a gente vê hoje em
dia, né? O Maligno atua na vida dele. tratarei de modo mais detalhado das técnicas
(Cabo evangélico, 33 anos, 8 anos de polícia, 5 retóricas de neutralização que permitem aos
anos de conversão).
evangélicos elaborarem a experiência do uso da
O inesgotável potencial explicativo da re- arma de forma moralmente integrada.
tórica maniqueísta da “batalha espiritual” é trans- Para os policiais militares evangélicos, o
posto para o ambiente policial militar e apropri- imperativo de trilhar o caminho da salvação em
ado de modo bastante vigoroso pela experiência um campo impregnado de maniqueísmos tende a
da coerção. Em parte, isso se deve às concepções submeter os sujeitos a um amplo espectro de ten-
beligerantes de bem e mal que já circulam no sões entre seus valores religiosos e condutas pro-
ambiente institucional e no debate público so- fissionais concretas. Evidentemente, nem tudo no
bre segurança (Sento-Sé, 1997; Zaluar, 1997). Em cotidiano de um policial militar tensiona a expe-
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estruturam vastos campos de controvérsias entre que reluta em utilizar sua arma e evita expor-se
evangélicos e não-evangélicos, na corporação. Ao a situações de conflito. Quando se deparam com
expor os sujeitos a essas controvérsias, a partir um evangélico cujo comportamento não se en-
das entrevistas, busquei explorar o intenso po- quadra nesse estereótipo, alguns chegam a colo-
tencial criativo acionado pelas dimensões car em dúvida sua seriedade como cristão. Por
conflitivas de suas experiências. Para a análise outro lado, quando o policial procura seguir
proposta no presente artigo, escolhi ater-me a dois muito à risca os fundamentos cristãos, pode pas-
pontos de controvérsias: a suposta predileção dos sar a ser questionado em seu “profissionalismo”,
policiais evangélicos por serviços administrativos pois não estaria conseguindo separar sua reli-
e a aparente contradição entre o uso da arma de gião das exigências de sua profissão.
fogo e o mandamento bíblico “não matarás”. Lidando com expectativas conflitantes so-
bre seu comportamento – dentro e fora da Polícia
Militar –, os policiais evangélicos entrevistados pa-
USO DA ARMA DE FOGO: a “legitima defesa” recem acostumados aos questionamentos sobre a
e o “não matarás” suposta incoerência entre o exercício da autorida-
de policial, o uso da arma e os padrões de vida
Um exemplo bastante paradigmático do cristã. Sobre isso, desenvolvem uma argumenta-
potencial criativo das tensões entre a experiência ção muito interessante, que articula a figura jurídi-
religiosa e profissional dos policiais evangélicos é ca da legítima defesa, personagens bíblicas e a ideia
a polêmica sobre o uso da arma. Para o público de outorga divina das autoridades terrenas. Com
em geral, parece irreconciliável o fato de um evan- base nas Escrituras, os policiais militares evangéli-
gélico portar uma arma de fogo e, ao mesmo tem- cos entrevistados, quando questionados sobre esse
po, cumprir o mandamento sagrado de “não ma- ponto, foram unânimes em invocar a passagem de
tarás”. Entretanto, a situação traduz com bastan- Romanos (13:1-4)13 e a figura do Rei Davi, para
te propriedade a condição dos policiais militares demonstrar os precedentes bíblicos da autoridade
evangélicos na corporação, que precisam lidar com policial, mesmo quando seu exercício coloca a ne-
expectativas conflitantes em torno de seu com- cessidade de tirar a vidas.
portamento como evangélicos e como policiais.
Como pude identificar, são bastante comuns ma- A Bíblia fala, no livro de Romanos, capítulo 13,
“Que as autoridades são constituídas por Deus”.
CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 60, p. 525-539, Set./Dez. 2010
nifestações de incompreensão acerca das razões Entendeu? Então, não há autoridade que não seja
de um evangélico sentir-se atraído pela profissão constituída por Deus e a autoridade não traz em
vão a espada. Mas o que é a espada? A correção.
policial; ou, ao contrário, que um policial venha a Então, a Bíblia fala que “Se Deus não guardar a
cidade, em vão vigiam os seus sentinelas”. A ci-
converter-se ao Evangelho. Para aqueles que nu- dade precisa de policiais? Precisa de autorida-
trem uma imagem da Polícia Militar como uma des? De segurança pública? Precisa, mas tem que
estar em Deus em primeiro lugar. Eu acho que é
instituição corrompida e violenta, a descrença por causa do tipo de serviço que é praticado, tem
quanto à existência de “verdadeiros cristãos” na muita gente que não conhece a lei por falta de
entendimento bíblico, e até mesmo do Código
corporação tende a se acentuar. Penal, eles não leem e não sabem que o policial,
Se, junto ao público externo, o policial tal como outro, pode prender em flagrante delito
evangélico luta para desvincular-se da imagem 13
“Toda a alma esteja sujeita às potestades superiores; por-
de truculência associada à sua profissão, afirman- que não há potestade que não venha de Deus; e as
potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso
do-se como cristão, internamente é incitado a quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os
que resistem trarão sobre si mesmos a condenação. Por-
demonstrar que pode exercer sua autoridade com que os magistrados não são terror para as boas obras, mas
para as más. Queres tu, pois, não temer a potestade? Faze
energia, afirmando-se como policial militar. o bem, e terás louvor dela. Porque ela é ministro de Deus
Muitos de seus colegas de farda teriam uma ima- para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz
debalde a espada; porque é ministro de Deus, e vingador
gem do evangélico como um pacifista radical, para castigar o que faz o mal.“ (Romanos, 13:1-4).
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e também qualquer pessoa pode se defender dade, no sentido atribuído por Sykes e Matza
matando a outra na sua defesa, legítima defesa.
Na bíblia tem várias ocorrências do Antigo Tes- (1996), é a caracterização da situação de “vida e
tamento de batalhas onde morreram muitas pes- morte”. Mesmo quando legal e tecnicamente
soas e todas eram servos do Senhor. [...] Nós,
quando invadimos um morro ,ou quando a gen- amparada, a ação policial que resulta em morte
te investe contra um meliante qualquer, nós, além
de estarmos em obediência ao próprio serviço – uma das vivências mais extremas da atividade
em si, nós estamos defendendo a população que policial – tende a acionar justificações que unifi-
é um juramento que se faz quando se entra. [...]
Nós não tínhamos esta violência, na hora do con- quem moralmente as ambiguidades desse resul-
flito, daquele caos todo, que a gente está vendo, tado dramático da atividade coerciva. “Só não
que está na eminência... que a gente está vendo
que o bandido vai aparecer e que você vai ter que pode começar a gostar disso”, alerta o entrevis-
eliminar ele. Naquela hora, passa na sua cabeça tado, reconhecendo a possibilidade de que as téc-
a mãe, o filho, irmão, entendeu? Pode ser um cris-
tão que está afastado, que está naquele mundo e nicas de neutralização contidas na retórica da
está na beira de sair e você vai tolher ele, porque situação de “vida e morte” podem ter como efei-
ele vai aparecer ali na brecha e você vai ter que
combater ele. Isso é muito difícil, foge ao contro- to a banalização do valor da vida humana.
le e a obrigação vem em primeiro lugar, mas se
você não atirar nele ele vai atirar em você. Aí você Submetido a uma situação de vida ou mor-
passa a pensar nos filhos, na mãe, na parentela te, o policial militar evangélico entende que, ao
toda. Então, você acaba compensando esta frus-
tração que você sente na hora, esse receio, essa tirar uma vida, ele está privando uma alma da
sensação estranha, compensando com o que se salvação e entregando-a nas mãos de satanás.
não for ele vai ser você. Só não pode começar a
gostar disso. Você se torna disponível para tirar Como evangélico, ele sabe que sua principal bata-
a vida dos outros quando você, na sua folga ou lha é espiritual e que seus oponentes são pessoas
no seu serviço, tem este tipo de pensamento,
porque você, antes de qualquer coisa, tem que que se deixaram usar pelas forças do mal. Como
imaginar que tem solução para aquela crise ali. policial, ele sabe que essa constatação não deve
(Cabo evangélico, 34 anos de idade, 10 anos de
polícia, 6 anos de conversão). impedi-lo de tomar as medidas cabíveis, dentro
dos limites da lei e da técnica. Apesar disso, é
Como agente da autoridade – temporal e bastante comum que policiais militares evangéli-
atemporal –, o policial militar evangélico, ao cos evitem se envolver com determinadas ativi-
revidar uma injusta agressão, estaria em obediên- dades operacionais, em que a possibilidade de uma
cia ao preceito legal e ao fundamento bíblico. Para ação com resultado fatal é mais pronunciada. A
preservar a sua vida ou a de terceiros, esgotadas morte, nesse sentido, representa o fracasso da
todas as alternativas de uso da força disponíveis, missão evangelizadora do povo cristão, que não
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quem pude conversar foram unânimes em ates- banco que eu reagi no setor que eu trabalhava,
que eu matei lá os dois marginais, me destaquei
tar as dificuldades encontradas pelos que pro- naquilo ali e o comandante me chamou pr’eu fa-
fessam sua fé em relação aos “serviços de rua”.14 zer outro tipo de serviço. Uma vez que também
era perigoso eu ficar ali parado sozinho depois
À medida que o trabalho de campo ga- de ter participado de uma ocorrência desse tipo,
né? Aí fui parar na RP [Rádio Patrulha], que a
nhava profundidade, a questão mostrou-se mais gente diz que é a escola da polícia, né, porque ali
complexa, desdobrando aspectos bem mais su- se atende todo o tipo de ocorrência possível. Ali
eu comecei a conhecer o tráfico de drogas, inva-
tis e interessantes. Uma primeira conclusão foi a dir favelas, abordagem de saída de favelas, vári-
de que os evangélicos não evitam o serviço de as trocas de tiro, autos de resistência,15 depois
de fazer alguns autos de resistência eu fui convi-
rua, mas evitam aquilo que chamam de “pista”. dado pra trabalhar na Patamo [Patrulhamento
Ao que parece, o emprego dessa categoria esta- Tático Móvel], por causa do meu desempenho,
que eu era um cara que a gente diz ‘operacional’.
belece uma importante diferenciação nos tipos Ai quando você cai na Patamo já é o fim do mun-
de serviços de rua. As atividades consideradas do, você já está absolutamente desviado. Eu não
tinha como ser evangélico. Apesar de eu estar
mais “pista” são também as mais problemáticas, desviado, eu sabia que aquilo ali que eu fazia es-
tava errado, mas uma força maior não permitia
no sentido de que podem expor o policial a situ- que eu voltasse para aquela minha origem inici-
ações de violência, conflito armado e risco de al. Fui convidado pelo comandante para acom-
panhar ele para outro batalhão, o que eu fiquei
morte. Segundo os evangélicos entrevistados, essa muito orgulhoso, porque eu era da Patamo do
vivência extremada da atividade policial tende a comandante, que são os homens de confiança
dele. Aí o trabalho da Patamo, foram mais autos
brutalizar os agentes, tornando-os cínicos, insen- de resistência, mais autos de resistência. O meu
síveis, exaurindo-lhes progressivamente a capa- batalhão da época foi o primeiro a receber essa
gratificação lá de 500 reais e eu fui o primeiro
cidade de demonstrar empatia pelos dramas hu- policial a receber esse prêmio de 500 reais. Na-
manos e sociais com que se deparam. quele ponto, a Polícia Militar já tinha entrado no
meu sangue (Ex-cabo, 33 anos de idade, 15 anos
Segundo meus interlocutores, muitos po- de polícia, nascido em lar evangélico. Entrevista
realizada no Presídio Ary Franco).
liciais evangélicos se afastam de algumas modali-
dades de policiamento “pista” para evitar esse pro-
A postura destemida presente no relato
cesso de “embrutecimento”, bem como a influ-
acima se tornou objeto de admiração de colegas
ência negativa de colegas com estilos menos orto-
e de avaliações positivas de supervisores, que
doxos de trabalho. São bastante emblemáticos os
passaram a recomendar o entrevistado para fun-
relatos de evangélicos que se “desviaram do cami-
ções de grande prestígio para um policial com o
nho da santificação” à medida que foram se
perfil “operacional”. Além do reconhecimento
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meios policiais, através do qual uma organiza- tre aqueles policiais de sua unidade que com ele
ção retrospectiva da experiência destaca uma guardam afinidades doutrinárias e profissionais.
relação inversa entre os parâmetros de “reconhe-
cimento institucional” e a manutenção de pa- Os serviços mais problemáticos são aqueles que
trabalham muito policial junto. Você manda na
drões éticos de comportamento – no caso, for- sua cabeça, mas não manda na dos outros. Ago-
necidos pela fé cristã-evangélica. À medida que ra, acontece também de o grupo não te querer ali.
Já aconteceu comigo e o que eu fiz foi o seguinte:
“a polícia entra em seu sangue”, parece tornar- eu orei a Deus e pedi pros colegas pra sair, “Olha
companheiros, eu vou pedir pra sair, porque eu
se inviável para o entrevistado permanecer no sou cristão, não vou fazer as mesmas coisas que
“caminho da santificação”. vocês, sou cristão”. Conversei com eles pra não
ficar suspeita de que eu ia caguetar. Que passa a
Segundo as minhas observações, os servi- ser suspeito, né? Um policial evangélico numa
ços de rua considerados tranquilos para os evan- guarnição convencional realmente vai trazer con-
flitos de interesses. Porque o policial evangélico
gélicos, tendem a ser também os mais solitários, não vai aceitar que haja desvio de condutas, que
não só os menos expostos à violência armada, haja isso; principalmente se ele for superior aos
outros. Se ele for um grau hierárquico inferior
por exemplo. O trabalho na “pista” tende a en- ele vai pedir pra sair ou até a guarnição não vai
globar atividades normalmente executadas por aceitá-lo. Agora, o verdadeiro evangélico não vai
se corromper e se eu sou um sargento, coman-
guarnições, em que o grupo precisa estar muito dante de Patamo e sou evangélico eu não vou me
corromper e eu vou procurar botar pessoas que
afinado em torno de uma determinada forma de pensem igual a mim, porque se eu sou sargento e
trabalho. Quando um policial não se ajusta ao comandante da guarnição, eu boto quem está den-
tro da minha filosofia de pensamento. Hoje, na
perfil de atuação da guarnição, ele tenta conse- minha condição de antigo, se botarem um garoto
guir a sua transferência para outro grupo, com o desses na minha mão, ele vai ter que fazer o que
eu quero, então a gente é que tem um dinamis-
qual guarda maior afinidade. mo, uma liderança, é o elo entre o oficialato e a
Quando o dissidente é um soldado ou um praça. Você consegue como graduado até condu-
zir quatro, seis homens... Mas, no serviço de rua,
cabo – via de regra, um inferior hierárquico –, a tu vai se indispor muito, tem muitas pessoas tei-
tendência é que ele deixe o grupo e busque en- mosas, entendeu? A dificuldade é ter uma guar-
nição pra me acompanhar na minha linha de ra-
contrar uma guarnição mais afinada com o seu ciocínio e fidelidade, não é isso? (Sargento evan-
gélico, 39 anos de idade, 20 anos de polícia, 17
perfil de trabalho. A estrutura de guarnição é de conversão).
típica do policiamento ostensivo regular, sendo
formada por um número variável de praças – Na relação com o grupo, existe ainda mais
em sua maioria, soldados – e comandada por um aspecto que afastaria o policial evangélico
535
NA FRONTEIRA ENTRE O BEM E O MAL ...
pode isso, não pode aquilo’. Como se eu não sou- der coercitivo de Muir fornece alguns recursos
besse né? ‘Não pode pegar isso não’. Eles faziam
e ‘Você não pode participar não, não sei o que...’. teóricos interessantes para refletir sobre os es-
Até aí eu levava na flauta, mas o convívio era forços dos policiais evangélicos em conciliar os
ruim, porque numa guarnição você faz parte dela
e se algo acontece ali está todo mundo enrolado, princípios morais de sua religião e o seu papel
independente do que for, você não foi o ativo,
mas vai junto. ‘Você não tomou atitude nenhuma como agentes da violência do Estado.
não?’. Era complicado. Uma guarnição toda evan- Entre os evangélicos, a visão maniqueísta
gélica seria mais fácil com certeza. Então, existe
até comandantes que preferem, veladamente, co- de bem e mal é inclusiva, englobando todas as
locar cristãos em certos lugares, pra ver se eles figuras do universo policial – “cidadãos de bem”,
controlam os índices de corrupção. Na minha
opinião, se for um cristão que ele colocar lá e for bandidos, prostitutas – em uma mesma com-
o mais antigo, se for o comandante, vai melhorar preensão trágica da natureza humana. Ninguém
(Sargento evangélico, 37 anos de idade, 11 anos
de polícia, 10 de conversão). está livre do pecado, nem mesmo o próprio po-
licial. Toda a criatura dotada de livre-arbítrio,
Independentemente do tipo de serviço de segundo esta visão, está sujeita aos seus ardis, à
rua com o qual o policial se envolva, inevitavel- sanha corruptora do demônio, que busca afastar
mente ele tomará contato com toda sorte de in- as almas de Deus e lançá-las à eterna danação.
consistências associadas ao lugar da polícia na “Nossa verdadeira luta não é contra a carne, nem
organização do Estado: um lugar de fronteira, contra o sangue, mas contra principados e
em que a estrutura estatal formal, igualitária, potestades do mal”, afirmam os evangélicos. Os
encontra o mundo das práticas sociais concre- antagonistas da autoridade policial são pessoas
tas, desiguais e hierárquicas. Na tentativa de que fraquejaram frente às influências malignas.
equacionar os desajustes entre a letra da lei, as Entretanto, quando a perspectiva trágica
desigualdades sociais e as expectativas de efici- oferecida pela ideia de “batalha espiritual” não é
ência em torno de seu trabalho, o policial está acompanhada de uma moralidade integrada em
mais sujeito a cometer erros, desagradar alguém relação à coerção, os policiais militares evangéli-
e ser punido. Os policiais militares conhecem cos podem relutar em exercer o poder coercitivo,
bem as diversas armadilhas produzidas pelo fun- mesmo quando apropriado e legalmente respal-
cionamento dessa estrutura esquizofrênica, e dado, caracterizando o perfil não-profissional que
muitos deles – não só os evangélicos – procuram Muir chamou “reciprocator” ou “alternante”
evitar seus desdobramentos, dando preferência (Reiner 2004a, p.154). O tipo de respostas ofere-
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policial nega terminantemente a possibilidade do eloquência17; a relação com seus colegas (especi-
exercício ético da coerção. Nesse tipo, enqua- almente com seus supervisores); e a liderança
dram-se as estratégias empregadas por policiais de seu chefe ou comandante na consecução dos
evangélicos que “se escondem em funções admi- objetivos institucionais (1977, p.146).
nistrativas”, pois veem como inviável uma exis- Ao legitimar as respostas não-profissionais
tência que articule, simultaneamente, referenciais aos dilemas do exercício da autoridade e da coer-
identitários policiais e evangélicos. Para este tipo, ção, a instituição policial oferece estímulos
o abismo entre ser um homem bom e ser um diametralmente opostos ao desenvolvimento dos
bom praticante da coerção parece intransponível atributos morais e intelectuais de um “bom polici-
(Muir Jr, 1977, p.49). al”. Ao contrário, omite-se da tarefa de construir
Por fim, o perfil do policial que encontra uma sistemática organizacional de internalização
unidade moral no ato da coerção por meio da de referenciais éticos, legais e profissionais ade-
desumanização do outro e da violação das regras é quados aos princípios de atuação das forças po-
chamado por Muir de “enforcer” ou “sancionador” liciais em contextos democráticos.
(Reiner, 2004a). Para realizar sua missão, ele Quando os policiais militares evangélicos
desconsidera os constrangimentos e assimetrias reivindicam conexões entre a legítima defesa e a
de meios para responder aos “paradoxos do po- derivação divina da lei e da autoridade, buscam
der coercitivo”, oferecendo respostas ilegais e ile- uma justificativa moral integrada para o exercí-
gítimas aos que se rebelam contra a sua autori- cio da coerção e os padrões de vida cristã. Infor-
dade. Esse tipo de resposta não-profissional mados pela ideia de “batalha espiritual”, esses
corresponde aos policiais que, ao se deixar enre- agentes adquirem uma compreensão trágica do
dar pela “lógica da pista”, afastam-se dos padrões mundo, das relações humanas e de seu papel na
de vida cristã-evangélica, passando a ser consi- sociedade. Essa busca, entretanto, não é peculi-
derados “evangélicos desviados”. ar aos evangélicos. Todo policial, ao refletir so-
Para Muir, o desenvolvimento de tipos de bre suas escolhas, tomadas na emergência do aqui
respostas profissionais e não-profissionais ocor- e agora, busca algum nível de coerência entre
re diariamente, a partir de técnicas que os poli- seus princípios morais, as expectativas sociais e
ciais elaboram para defender-se frente aos “pa- os referentes legais que constrangem a sua ação.
radoxos da coerção”. Essas decisões ativas se acu- O desenvolvimento de atitudes profissionais, se-
537
NA FRONTEIRA ENTRE O BEM E O MAL ...
O lugar da religião no exercício da coer- ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jor-
ge Zahar Ed., 1994. v.1.
ção, como espero ter conseguido demonstrar, diz MARIZ, Cecília. A teologia da batalha espiritual: uma revi-
muito sobre a sutil fronteira entre o arbítrio e a são da bibliografia. Revista Brasileira de Informação Biblio-
gráfica em Ciências Sociais (BIB),São Paulo, v.47, n.1, p.33-
arbitrariedade policial, nem sempre negociados 48,1999.
em termos formalmente reconhecidos. Sua ba- MUIR JR., K.W. Police: streetcorner politicians. Chicago:
Chicago University Press, 1977.
talha diária contra o pecado traduz, em termos
MUNIZ, Jaqueline. A crise de identidade das polícias mili-
atemporais, o dilema de produzir respostas poli- tares brasileiras: dilemas e paradoxos da formação educaci-
onal. Security and Defense Studies Review: Center for
ciais eficientes sem, entretanto, sucumbir aos efei- Hemisphrtic Studes. Washington, DC, v.1 mayo, p.22-25,
tos corruptores do poder – que, no que podemos 2001.
chamar de “cultura cristã-evangélica policial”, é _______; PROENÇA JR., D.; DINIZ, E. Uso da força e
ostensividade na ação policial. Conjuntura Política: bole-
representado pelos ardis do demônio. Em razão tim de análise, Belo Horizonte, UFMG, n.6, p.22-26, 1999.
do caráter cumulativo das decisões policiais con- REINER, Robert. A cultura policial. In: REINER, Robert. A
política da polícia. São Paulo: Ed. USP, 2004a. p.131-160.
cretas na conformação das diversas “subculturas
_______ . Os poderes da polícia e a responsabilização. In:
policiais” (Muir Jr, 1977; Reiner, 2004b), quanto ______. A política da polícia. São Paulo: Ed. USP, 2004b.
p. 239-280.
menos institucionalizados os parâmetros de atua-
SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal a cultura católica bra-
ção profissional, mais difusos e obscuros se tor- sileira. In: ANTONIAZZI, A. (Ed.) Nem anjos nem demôni-
os: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis:
nam os processos de tomada de decisão policial. Vozes, 1994. p.34-63.
Impossibilitada de influenciar ativamente as con- SENTO-SÉ, João Trajano. Criminalidade, violência e ima-
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Regina; CRESPO, Samira (Org.). O mal à brasileira. Rio de
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perversos e preconceituosos de construção da sus- SYKES, Gresham M’Gready; MATZA, David. Técnicas de
neutralización: uma teoria de la delincuencia. Caderno CRH:
peita e de inscrição de indivíduos, grupos e terri- revista do Centro de Recursos Humanos da UFBA, Salva-
dor, v.21, n.52, jan./abr., p.163-170, 2008.
tórios em seu campo de vigilância.
VALLADARES, Licia. Os dez mandamentos da observação
participante. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo,
v.22, n.63, p.153-155, 2007.
(Recebido em agosto 2010) VERANI, Sérgio. Assassinatos em nome da lei. Rio de Janei-
(Aceito em outubro 2010) ro: Ed Aldebarã, 1996.
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo:
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Brasil. In: BIRMAN, Patrícia; NOVAES, Regina; CRESPO,
Samira (Org.) O mal à brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ,
1997. p.109-134.
538
Elizabete Ribeiro Albernaz
This paper examines some paradoxes Cet article analyse le paradoxe conflictuel
experienced by evangelical military police actions de l’action des policiers militaires évangéliques -
- active members of congregations located in the membres actifs de congrégations existantes au
barracks of the State of Rio de Janeiro Military sein des bataillons de la Police Militaire de l’État
Police (in Portuguese, PMERJ), in the search for de Rio de Janeiro (PMERJ), à la recherche d’un
dialogue between their faith, the prerogatives of dialogue entre leur foi, les prérogatives de leur
their mission and the values that inform the mission et les valeurs de la pratique policière
dominant police practice. The study is based on dominante. L’étude est basée sur les “techniques
the concept of "techniques of neutralization" of de neutralisation” (Sykes et Matza, 1996) ainsi
(Sykes and Matza, 1996) as well as the typology que sur la typologie de Muir Jr. (1977) concernant
of Muir Jr. (1977) on police responses of the so- les réponses de la police appelées “paradoxes de
called “paradoxes of coercion”. The analysis la coercition.” L’analyse montre que la rhétorique
shows that the Manicheist rhetoric of “spiritual manichéenne de la “guerre spirituelle” est
warfare” is transposed to the police environment transposée au sein de la police militaire et
and vigorously appropriated to the experience appropriée vigoureusement à l’expérience des
of coercion in police practices. This result seems pratiques policières coercitives. Ce résultat
to show the construction of evangelical ethical semble montrer l’élaboration de normes éthiques
standards for police action, in which daily évangéliques pour l’action policière, où les
conflicts are conducted as visible expressions of conflits de tous les jours sont considérés comme
the nefarious influence of the demon, responsible des expressions visibles de l’influence néfaste du
for crime, debauchery and all sorts of socially démon, responsable du crime, de la débauche
disapproved behaviors. et de toutes sortes de comportements socialement
désapprouvés.
K EYWORDS : military police, police culture, MOTS-CLÉS: police militaire, culture policière,
evangelical churches, spiritual warfare, police évangéliques, combat spirituel, pouvoir
discretion. discrétionnaire de la police.
Elizabete Ribeiro Albernaz - Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. Assessora Técnica de
Gabinete da Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública de São Paulo. Principais publica-
ções: ALBERNAZ, Elizabete; CALDEIRINHA, Daniela. Mídia e Segurança Pública: um balanço. In.:
Mídia e Segurança Pública. Cadernos Temáticos da Conseg, nº 1, Ano 01, 2009. Ministério da Justiça.
Brasília-DF. 52p.; ALBERNAZ, Elizabete; SUTTON, Heather. Controle de armas e munições: um desafio
para a segurança pública do Brasil. In.: Controle de Armas e Munições. Cadernos Temáticos da Conseg,
nº 2, Ano 01, 2009. Ministério da Justiça. Brasília-DF. 48p.; ALBERNAZ, Elizabete. Uso progressivo da
força: dilemas e desafios. In: Cadernos Temáticos da Conseg, nº 5, Ano 01, 2009. Ministério da Justiça.
Brasília-DF. 64p.
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