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Atrás da porta- o filme

A possibilidade do cinema dentro do mundo escolar1

Gislene Natera Azor


gigiazor@uol.com.br

Resumo: O presente artigo relata o olhar de uma educadora musical, na experiência de alunos
do 2º ano do Fundamental em transformar um livro com adaptação de Ruth Rocha em um
filme. Nele, procura-se relatar o projeto artístico-pedagógico proposto pela pedagoga, os
desafios, os medos, os obstáculos, a ousadia e as parcerias criadas por esta, para poder
contemplar e assegurar a imaginação infantil, incluindo também o processo pedagógico-
musical na construção da trilha sonora do filme.

Palavras-chave: cinema, música, parcerias.

Relato de Experiência
O presente artigo relatado por uma educadora musical, busca refletir sobre as
possibilidades que podem ser criadas por um pedagogo ao conhecer todos os alunos da sua
nova classe, seus relacionamentos, seus desejos e os possíveis desafios que estes poderiam
enfrentar. Através de uma proposta ousada, a professora do 2º ano, Andréia Toledo, de uma
escola particular de Florianópolis, busca trazer o cinema para dentro da sala de aula,
desenvolvendo com ele, reflexões sobre mídia, cinema, imaginação infantil, comunicação e
parcerias.
Seis meses já haviam se passado, e a professora titular da sala saiu de licença a
maternidade. Andréia Toledo, também professora do 2º ano desta mesma escola, porém em
turno oposto, assume a classe, como professora substituta. Dentro do grupo de crianças, pais
envolvidos com cinema e arte: Chico Faganello, Luiza da Luz Lins e Haenz Gutierrez. Surge
neste contexto, a proposta da pedagoga em realizar um filme.
Andréia (pedagoga) em parceria com a bibliotecária da escola, Marli Goulart,
escolhem um livro: “Atrás da porta”- adaptação de Ruth Rocha. Em um primeiro momento,
foi chamado em reunião, Chico Faganello (diretor de cinema) e Luiza da Luz Lins
(coordenadora da “Amostra de Cinema Infantil de Florianópolis), para trocarem alguns
“olhares”, sugestões e maneiras de se driblar os problemas. Em uma conversa informal, a
Luiza coloca o desafio proposto pela escola, e a sugestão de seu marido, Chico, em incluir o
trabalho musical no filme. Arrepiada com a idéia, espero receber a notícia oficial, vinda da
escola.

1
Trabalho apresentado no XVII Encontro Nacional da ABEM. “Diversidade Musical e compromisso social: O
papel da Educação Musical”. São Paulo, 08 a 11 de outubro de 2008.
Surpreendo-me em perceber que a pedagoga e a coordenação se animam em saber dos
desafios e começam realmente a buscar parcerias. Justificando a busca da pedagoga e da
coordenação em buscar novos caminhos, Ribas (2001, p.11) comenta:
...o profissional deve se desenvolver continuamente, adquirindo
conhecimentos pela experiência aliada a estudos teóricos, num processo de
reflexão. É na prática, e com reflexão sobre ela, que o professor consolida ou
revê ações, encontra novas bases e descobre novos conhecimentos. A
reflexão conduz o professor a produzir um saber que o acompanha como
referência, como parte da experiência e identidade, o que é muito importante
para a construção da competência pedagógica profissional.

Em sala de aula, a pedagoga constrói um roteiro junto com todos os alunos. Freire
apud Ribas (2001, p. 17,18) afirma que, “sem o sonho a história não caminha e sem história o
sonho não se realiza: quem nunca sonha, não faz história. Um atributo que distingue o homem
dos animais é a capacidade de ser sujeito da própria ação”. Em busca de caminhos para
realizar o sonho, as crianças junto com a pedagoga e a bibliotecária, começam ampliar suas
parcerias.
Nas aulas de artes (plástica) com parceria com a professora Monique Rodin, inicia-se a
construção do cenário. Rafael Boeing (professor da rádio da escola e o único com domínio
técnico para filmagem) entra no projeto como diretor, orientando as crianças em todos os
passos da filmagem. Sérgio Anacleto (professor de física do Ensino Médio) colabora com a
animação do filme e as aulas de música, na construção da trilha sonora.
Nas aulas de música do 1º semestre, o trabalho desenvolvido com este grupo, focou-se
na busca refinada das experimentações dos instrumentos, onde procuravam escolher que
timbres combinavam com outros timbres, que diferença rítmica acontecia para a música se
tornar mais animada ou desanimada, como se pode criar uma música incluindo diferentes
instrumentos, quais instrumentos podem ou devem fazer o pulso, quais podem realizar um
ostinato rítmico ou melódico e assim por diante. O resultado destas experiências foi o
surgimento de uma composição coletiva, a qual as crianças chamaram de “música de
propaganda”, pois na época, as crianças desenvolviam o projeto com a professora Ângela
Mota, onde criaram diferentes sabores de sabonetes e os venderam na Feira Literária da
escola.
Naquele momento, ficava claro para o educador musical, que a mídia estava presente
no cotidiano infantil, fosse ela representada pela música, pela imagem, pela TV ou pelo
cinema, e que aquele grupo, de alguma forma, não buscava uma imitação pura, e sim, a
utilização da imaginação infantil, para criar, ampliar e construir idéias novas.
Segundo Fantin (2006), a mídia pode ser utilizada como socialização, transmissão
simbólica, pois é um elemento importante da nossa prática sócio-cultural, necessitando de
mediações pedagógicas e... “que é possível não só ensinar com, sobre e através dos meios,
mas formar espectadores críticos que negociam os significados, que constroem conhecimento
e que interagem de diversas formas” (ibidem, p.66).
Várias questões foram levantadas pelas crianças nas aulas de música: Podemos criar
um som ou até uma música para cada personagem? Podemos criar uma música de medo, pois
é a sensação que temos ao entrar na biblioteca? Vamos sonorizar todos os sons da história?
Podemos colocar músicas conhecidas (midiáticas)? Com estas e muitas outras questões,
fomos alimentando-os e deixando-os perceberem a diferença entre sonorização de história e
construção de um filme.
Foi necessário trazer informações sobre o cinema, como apresentado por Carvalho
(.....p.2) , onde nos relata o surgimento do cinema mudo porém, nunca “não sonoro”, pois no
início sempre existiu intervenções musicais com um pianista ao vivo, pequena orquestra, ou
música gravada. Desde o surgimento do cinema “falado”, temos duas divisões: a sonora e a
visual. Na sonora, temos música, efeito sonoro e voz (fala e narração), que são integrados à
linguagem cinematográfica.
Procurando mediar, mas respeitando as características próprias das crianças e
pensando-as como atores sociais, fomos deixando-as perceberem que seria muito trabalho
realizar todos os efeitos sonoros, e que podiam se utilizar de músicas da mídia para fazer um
“fundo musical”, onde a imagem e o texto estariam em primeiro foco. A criação musical
poderia ser algo que contemplasse os diferentes momentos, e que marcassem de alguma
forma a exibição “daquele” filme e não de outro, se tornando assim uma referência.
Segundo Martin-Barbero2 apud Borba (2005, p.9)
As relações das crianças com os meios de comunicação de massa e com a
cultura do consumo são mediadas pelos processos de sociabilidade que as
constituem, pelas instituições em que se inserem, pelos movimentos sociais
que defendem seus direitos, pelo acesso que tem a tecnicidade e pelas
ritualizações e relações simbólicas construídas nos seus processos de
comunicação. Podemos pensar, portanto, que, entre a cultura de massa e do
consumo e a criança, existe um espaço de elaboração possível que nos
permite vislumbrar um caminho para além da reprodução, em outras
palavras, um caminho para a produção do novo a partir da reinterpretação do
já dado.

2
Martin-Barbero, J.- Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro:Editora UFRJ,
2ª edição, 2001.
Toda a movimentação das gravações, das preparações do cenário entre outras,
ajudaram as crianças a se decidirem em realizar primeiro a trilha sonora, para depois re-
pensarmos nos efeitos. Montamos então, um cronograma para a criação, onde no primeiro
momento as crianças seriam divididas em subgrupos, criariam um pequeno trecho musical,
que representaria um determinado momento da história. No segundo momento, apresentariam
para os amigos e ouviriam possíveis críticas ou sugestões, e para amarrar todos os trabalhos,
em um terceiro momento, escolheríamos a melhor seqüência.
Como o grupo já havia realizado a composição de uma música, apesar de muito
menor, conseguiram se organizar usando a comunicação verbal com fluência e trazendo suas
imaginações nas transformações musicais. Mas de qualquer forma, o trabalho é árduo e
demorado, e nossos “tempos” de trabalhos musicais se reduziam a 50 minutos semanais,
fazendo assim, acontecer naturalmente à opção em não realizar os efeitos sonoros do filme.
Para a escolha das músicas midiáticas, que fariam o “fundo” musical do filme, as
crianças trouxeram para a pedagoga várias opções, onde praticamente ficaram duas manhãs
ouvindo e escolhendo quais entrariam no filme.
Fica perceptível ao educador musical, que as mediações tem a função também de
autorizar as imaginações infantis, possibilitando-as em perceber, diagnosticar, investigar e
experimentar diferentes sensações para poderem fazer uma melhor escolha. Evidenciam-se
neste trabalho, que as parcerias criadas pela pedagoga, de alguma forma, tornaram muito mais
respeitoso as relações das crianças, tanto com as disciplinas envolvidas como as relações
interpessoais, tornando assim o trabalho muito mais dinâmico, rico e comprometido.
O presente artigo buscou valorizar e refletir sobre a responsabilidade da pedagoga em
permitir muitas parcerias no mundo escolar, acreditando-se que esta exerce o grande
referencial para as crianças, assim como a reflexão dos cursos de pedagogia ou de formação
continuada, confirmada por Bellochio (2001b, p. 19) quando cita:
Entendo que essa prática educativa crítica no ensino de Música escolar,
somente poderá ocorrer a partir de um maior engajamento e um maior
exercício reflexivo entre os participantes da construção escolar, ou seja,
entre as unidades que formam professores e a escola, entre teoria e prática da
ação educativa, entre formação inicial e formação continuada.

Com o possível retorno obrigatório da música na escola, o presente artigo buscou


contribuir com algumas sugestões, mas, além disso, de refletirmos no quanto nós, educadores
musicais, devemos estar abertos a muitas propostas e devemos também ter a função de
apresentar as mais diferentes e variadas propostas da música estar (de uma forma mais
significante para as crianças) no mundo escolar, trabalhando o máximo possível em parceria
com a pedagoga.

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