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Divórcio, repúdio e a Igreja

Por Roney Ricardo

Vários textos bíblicos precisam ser considerados quando falamos de divórcio.


Na literatura apócrifa e em textos de Flavio Josefo também encontramos
referências ao divórcio, inclusive em textos talmúdicos. Deuteronômio 24.1-4 e
Mateus 19.1-9 são dois textos que estão estritamente relacionados, haja vista que
este está discutindo o assunto à luz daquele. Um ponto muito debatido com
relação aos textos é a expressão “algo que ele reprova” (NVI), ou “coisa feia[1]”,
conforme a ARC, que aparece em Deuteronômio 24.1. O que seria essa coisa
feia? De Vaux comenta que a “expressão é muito genérica e, na época rabínica,
discutia-se vigorosamente sobre a abrangência dese texto”[2]. Dois importantes
rabinos que viveram antes de Jesus, Hilel e Shammai, deram suas
interpretações para o que viria a ser “coisa feia”, porém com perspectivas bem
diferentes. Conflitantes mesmo. Hilel, mais liberal[3], entendia que “coisa feia”
poderia ser até mesmo coisas triviais do dia a dia da convivência da mulher
com o marido, como queimar a comida, por exemplo, e que isso seria uma
justificativa suficiente para o homem dar carta de divórcio à sua
esposa. Sammai, mais conservador, entendia que “coisa feia” era uma
referência à infidelidade conjugal e má conduta e que nesse caso sim, o homem
era livre para dar carta de divórcio à sua esposa. Todavia, se a interpretação de
Hilel era abrangente demais, a de Shammai também errava na interpretação de
“coisa feia”: “Certamente não pode significar adultério, pois isto acarretava a
pena de morte” (THOMPSON, 1982, p. 233).
Em Mateus 19.1-9, quando os fariseus interpelam Jesus sobre tal problemática,
são surpreendidos com Sua resposta, pois Ele não se preocupa em “entrar na
discussão”, ou favorecer a escola de Hilel ou a escola de Shammai. Antes, Ele
vai acima da discussão e toma o Gênesis como base para explicar a
problemática do divórcio. O que era entendido pelos fariseus como uma espécie
de dever, Jesus mostra que se tratava de uma concessão: “Perguntaram eles:
‘Então, por que Moisés mandou dar uma certidão de divórcio à mulher e
mandá-la embora?’” (Mt 19.7). Jesus retruca afirmando que Moisés na verdade
“permitiu” e isso por causa da “dureza de coração de vocês”. Assim, já
podemos concluir com isso queuma permissão não indica, necessariamente,
uma aprovação ou incentivo. O divórcio é visto por Jesus como uma anomalia
ao que Deus estabeleceu: “Vocês não leram que, no princípio, o Criador ‘os fez
homem e mulher’ e disse: ‘Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá
à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne’?” (vv. 4,5), e no versículo oito
Jesus é categórico: “Mas não foi assim desde o princípio…”. A causa-raiz do
divórcio, indubitavelmente, é o pecado! Tal exposição de Jesus evidencia a
maneira como os homens judeus lidavam com as mulheres. O interessante é
considerar que o casamento era altamente valorizado pelos judeus, todavia, a
realidade da sociedade judaica no primeiro século era bem diferente dessa
valorização que se dava ao casamento. Barclay comenta:

[…] para a lei judaica a mulher era uma coisa. Pertencia a seu pai ou a
seu marido, segundo o caso. Portanto, do ponto de vista técnico,
carecia de todo direito legal. A maioria dos casamentos judeus eram
arranjados pelos pais ou casamenteiros profissionais. Uma menina
podia estar comprometida a casar-se desde a infância e em geral
estava comprometida com um homem a quem jamais tinha visto.
Tinha uma oportunidade: quando chegava aos doze anos podia
repudiar o marido escolhido por seu pai. Mas quando se tratava de
divórcios, toda a iniciativa devia ficar em mãos do marido. A lei
estabelecia: “O homem pode divorciar-se de sua mulher com ou sem
seu consentimento, mas a mulher só pode divorciar-se de seu marido
com o consentimento dele”. A mulher nunca podia iniciar o processo
de divórcio, não podia divorciar-se, tinha que seu marido divorciar-se
dela. Havia algumas novidades. Se um homem se divorciava de sua
mulher com qualquer pretexto, exceto o de imoralidade flagrante,
devia lhe devolver o dote, e isto deve ter sido uma barreira para o
divórcio irresponsável… na maioria dos casos, a lei estabelecia que a
mulher não tinha nenhum direito legal e que o direito ao divórcio
cabia totalmente a seu marido (BARCLAY, Mateus, p. 625).
É inegável que essas leis judaicas em muitos aspectos eram, notadamente,
machistas. É inegável também que o discurso de Jesus vai contra, ainda que
indutivamente, as práticas egoístas e desumanas dos homens judeus contra
suas mulheres. Num certo sentido, Mateus 19.1-9 não é apenas um texto contra
o repúdio, é também um texto a favor da dignidade da mulher.
Assim, o homem judeu despedia sua mulher por qualquer razão, baseado numa
prescrição mosaica, ou melhor, na compreensão indevida que tinha a respeito
dela. Como dito anteriormente, a pergunta pelo que viria a ser essa “coisa feia”
era importantíssima por ser justamente o que justificava essa atitude em relação
à mulher. É justamente no meio de uma complexa discussão e discordância
rabínica que os fariseus queriam incluir Jesus ao lhe fazerem as perguntas de
Mateus 19.3,7. Shammai entendia que “coisa feia”, indubitavelmente, era
fornicação e essa seria a única razão para a permissão de um divórcio. Hilel, na
outra extremidade, entendia que “coisa indecente” permitia ao homem:

[…] repudiar a sua mulher se lhe arruinava a comida, se não recolhia


o cabelo, se falava com os homens na rua, se falava em forma
desrespeitosa a respeito de seus sogros em presença de seu marido, se
era uma mulher escandalosa cuja voz se podia ouvir da casa vizinha.
O rabino Akiba ia mais longe e afirmava que a frase se ela não for
agradável aos seus olhossignificava que um homem podia repudiar a sua
mulher se encontrava outra de quem gostava mais e a considerava
mais bonita (BARCLAY, Mateus, pp. 627,28).

Jesus, respondendo então aos fariseus, afirma que a única exceção para o
homem repudiar sua mulher era em caso de “imoralidade sexual” (NVI), que a
ARC traduz por “prostituição”, em Mateus 19.9. Mas aqui urge fazer uma
interrogação que geralmente é ignorada ou mesmo desconhecida por muitos
que abordam a questão do divórcio em Mateus 19.1-9: repúdio é a mesma
coisa que divórcio? É interessante considerar a rigidez de Jesus com a
flexibilidade de Paulo em 1 Coríntios 7.15 onde ele abre um precedente para a
separação do casal. Esse precedente para o divórcio é pontual: quando se trata
de uma relação mista entre um cônjuge crente e o outro não e que o não crente
opta por se separar. Mas não há nada neste capítulo que verse sobre o segundo
casamento. Isso é fato e não podemos negar.
Um autor que tem trabalhado a questão da distinção entre repúdio e divórcio é
Walter L. Callison. Basicamente, esse autor entende que as palavras nos
originais para divórcio e repúdio são distintas, indicando também práticas com
especifidades e propósitos distintos[4]. Abaixo, com base no que defende
Callison, e em outros autores, segue de forma sintética o que seria o repúdio e o
que seria o divórcio, à luz da Bíblia e da cultura judaica:

O repúdio

 A mulher era despedida sem receber a carta de divórcio, uma espécie de


documento que garantia alguns direitos à mulher, dentre eles o de casar
novamente. Assim, sendo ela repudiada, era despedida sem direito a nada.
Com efeito, Thompson comenta que por meio do divórcio, “o marido tinha que
abrir mão do dote e talvez tivesse ainda que se envolver com outras restituições
monetárias para sua ex-esposa” (THOMPSON, 1982, p. 234).
 A palavra “repúdio”, no hebraico é shalach, diferente da palavra para
“divórcio” que ékeriythuwth. Assim, na compreensão de Callison, houve falha
na tradução da palavra “repúdio”, como explica Brito:

Callison conclui… que a leitura das passagens que afirmam: “aquele


que repudiar ou abandonar sua mulher”, por “aquele que divorciar de
sua mulher” começou onde apoluo[5] foi traduzido erroneamente por
“divórcio”. Isso ocorreu pela primeira vez, em 1611. A versão
Standard Americana corrigiu o erro em 1901, mas nunca chegou a ser
suficientemente popular para fazer muita diferença (BRITO, 2005, p.
77).
Considerações sobre o divórcio

 Em hipótese alguma, o divórcio, à luz das Escrituras, é sequer


incentivado. Por mais que admitamos que a tratativa de Jesus em Mateus 19.1-9
seja referente ao repúdio e não ao divórcio (admitindo assim a distinção entre
as duas práticas), é inegável que Ele sai em defesa da indissolução da união
conjugal, deixando claro que a vontade de Deus é que o casal permaneça unido,
até o fim da vida: “Não tendes lido que, no princípio, o Criador os fez macho e
fêmea e disse: Portanto, deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher, e
serão dois numa só carne? Assim não são mais dois, mas uma só carne.
Portanto, o que Deus ajuntou não separe o homem” (vv. 4-6).

Falando francamente!

Diante de tudo o que foi exposto acima, sobre o divórcio e o repúdio à luz das
Escrituras, concluo que:

 Muito do que hoje é ensinado em nossas denominações sobre como


proceder com pessoas divorciadas não está de fato alicerçado nas Escrituras. A
Bíblia não dá, definitivamente, uma “fórmula” pronta dizendo “faça assim” ou
“faça isso” no que tange às inúmeras situações que envolvem um
divórcio. Nosso dever é tratar a Bíblia com seriedade e honrá-la, observando
seus princípios e procurando aplicá-los, mas reconhecer que os divorciados
estão entre nós. Privá-los da comunhão com Deus e com a igreja local seria a
saída diante dessa problemática? Há igrejas que não recebem casais que se
uniram depois de um divórcio e privam-nos até da santa ceia do Senhor. Penso
que tais medidas não encontram suporte bíblico algum e acabam por afastar
ainda mais as pessoas nessa condição de uma vida na presença de Deus. É
muito fácil dizer “não pode”, “não venha” ou “volte para o primeiro cônjuge”,
até que você se senta de frente para um casal numa situação de divórcio, olha
nos olhos e literalmente sente a complexidade da coisa…
 Deus odeia o repúdio, permite o divórcio, no entanto o vê como uma
anomalia ao Seu padrão estabelecido, não o ordena e perdoa os divorciados
quando há arrependimento sincero! O divórcio, encarado assim, não é uma
solução, não é uma saída; antes, é resultado do pecado humano e da
desobediência aos preceitos do Senhor. Todavia, uma vez ocorrido na vida de
uma pessoa, Deus por Sua imensa graça pode sim perdoar e abençoar essa
pessoa, mesmo numa nova relação.
 A Bíblia fala muito pouco sobre o segundo casamento. 1 Coríntios
indica a separação, mas nada fala sobre o segundo casamento. Portanto, as
“medidas” que são tomadas em muitas igrejas hoje no que tange a isso, não
encontram suporte bíblico; são o resultado de adoções mais de cunho
denominacional. Por exemplo: como afirmar com base bíblica que um casal que
veio de um divórcio não pode tornar-se membro de uma igreja e ali servir a
Cristo fielmente? Que texto bíblico posso usar para justificar tal medida? Com
efeito, os únicos textos que indicam que o segundo casamento implica em
adultério são os casos de Mateus 5.32 e 19.1-9, Marcos 10.11,12 e Lucas 16.18
que, em minha compreensão, estão lidando com a questão do repúdio e não do
divórcio. Uma vez que a mulher era repudiada pelo marido, ela não estava
legalmente separada dele, e daí Jesus dizer que quem casasse com a mulher
repudiada cometia adultério (porque tecnicamente ela ainda estava casada!).
 Atualmente, o divórcio vem sendo banalizado. As pessoas trocam de
cônjuges sem considerarem a fundo as implicações disso para si mesmas, para o
outro e para os filhos, que geralmente são os que mais sofrem com uma
separação.
 A Igreja de Cristo, definitivamente, deve desestimular o divórcio,
sempre!Precisamos lutar pela família, nos moldes bíblicos e trabalhar pela sua
consolidação. Nessa hora, o ensino bíblico sadio, ministrado na congregação,
funciona como um importante aliado, no sentido de trazer sabedoria e instrução
para as famílias viverem melhor, na presença de Deus.
 Os casos de divórcio devem ser tratados pela liderança cristã caso a caso.
As situações que envolvem o divórcio são muitas: abandono, adultério,
violência doméstica, vícios, relacionamento misto (crente com não crente), entre
outros. Em linhas gerais, deve-se considerar sempre se o divórcio se deu na
condição de cristão ou não, pois uma vez cristão, a responsabilidade face a essa
questão é, sem dúvida, muito maior.
 Estou convencido de que, no caso de líderes cristãos, como pastores e
obreiros, deve haver maior rigor na questão do divórcio. Aqui, faço minhas as
palavras do Reverendo Augustus Nicodemus:

Afinal, qual a importância de um casamento sólido e duradouro para


o ministério pastoral? Paulo escreveu que “é necessário que o bispo…
sejaesposo de uma só mulher” (1 Tm 3.2). Podemos interpretar essa
passagem de duas ou três maneiras diferentes, mas todas elas, ao
final, falam da necessidade de um casamento exemplar para os líderes
cristãos. Creio que há vários pontos que podem ser mencionados aqui.
O primeiro é a paz e o sossego que um casamento estável oferece e
que se refletem inevitavelmente na lide pastoral. O segundo ponto é o
exemplo, para os filhos, se houver, e para os casais da igreja que
pastoreia. Todos esperam que o casamento do pastor seja uma fonte
de inspiração e exemplo. Casamentos que dão certo e duram a vida
toda funcionam como uma espécie de referencial para os demais
casamentos, especialmente se for o casamento do pastor.
O terceiro ponto é a questão da autoridade. Não era esse o receio de
Paulo, que após ter pregado a outros não viesse ele mesmo a ser
desqualificado? (1 Co 9.27). Qual a autoridade de um pastor
divorciado já pela segunda ou terceira vez para exortar os maridos da
sua igreja a amarem a esposa e a se sacrificar por ela? Essa história
aconteceu com um pastor que foi colega meu de seminário. Certo dia,
falando na igreja sobre os deveres do marido cristão, sua própria
esposa se levantou no meio do povo e disse, “É tudo mentira, ele não
faz nada disso em casa!”. O pastorado daquele colega acabou ali
mesmo[6].

Se um líder cristão sofre uma tragédia como o divórcio e vem a se arrepender e


deseja servir a Cristo, não temos o direito de impedi-lo disso. Aliás, nem
deveríamos cogitar tal coisa! Todavia, convém que ele sirva como membro do
corpo de Cristo, não liderando, pois do líder se requer mais. E isso é claro nas
Escrituras. Mas mesmo aqui, é preciso retomar o que foi dito acima: o que
ocasionou o divórcio desse líder? Conheço o caso de um pastor idôneo que foi
traído grostescamente por sua ex-esposa, mais de uma vez, inclusive, e partiu
para um segundo casamento, por entender que não seria possível conviver com
a ex-esposa depois de tais fatos. Hoje, vive bem em seu atual relacionamento e
pastoreia uma igreja, sendo aceito por suas ovelhas. A questão do divórcio,
como vemos, não pode ser reduzida e tratada de maneira simplista, tipo 2 + 2 =
4. É sem dúvida um tema espinhoso para a Igreja, mas precisamos aceitar o fato
de que os divorciados estão entre nós e a Igreja precisa recebê-los, acolhê-los,
com amor e sabedoria e tratá-los. Aos divorciados que me lêem, peço que não
se sintam ofendidos com a comparação que agora faço, mas penso que ela
retrata bem essa questão: o divórcio na Igreja pode ser comparado a uma
enfermidade que nos atinge, que não podemos evitar em todos os casos, mas
nem por isso deixamos de tratar e algumas vezes, aprendemos a conviver com
ela da melhor maneira possível.

Que Deus abençoe a todos os leitores!


Em Cristo,
Roney Ricardo.
[1] Ou “coisa indecente”, em outras versões.
[2] de VAUX, 2002, p. 57.
[3] Ou mais “abrangente” em sua definição de “coisa indecente” (cf. De VAUX,
2003, p. 57.
[4] cf. BRITO, 2005, p. 74s.
[5] A palavra grega apoluo significa “deixar de lado ou repudiar” é a palavra
que os autores do NT, segundo Callison, usaram para referir-se à prática dos
homens judeus de repudiarem suas esposas sem lhes dar carta de
divórcio. Apoluo, portanto, é o equivalente do hebraicoshalac, para “deixar” ou
“repudiar”. Callison entende que Jesus usou a palavra “repúdio”, como está em
Dt 24.1-4, e não “divórcio” (cf. BRITO, 2005, pp. 76,77).
[6] NICODEMUS, Augustus. Pastores, divórcio e novo casamento. Blog O
Tempora, O Mores. Link: <http://tempora-
mores.blogspot.com.br/2013/05/pastores-divorcio-e-novo-casamento.html&gt;
Acesso em 29 nov. 2015.

REFERÊNCIAS
BRITO, Eurípedes P. Interação dos ritos e símbolos cristãos com a terapia
narrativa no acompanhamento pastoral da família recasada. 2005. 252 f. Tese
(Doutorado em Teologia) – Escola Superior de Teologia: Rio Grande do Sul:
2005.
de VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. Trad.: Daniel
de Oliveira. São Paulo: Editora Teológica, 2003.
THOMPSON, J. A. Deuteronômio: introdução e comentário. Série Cultura
Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 1982.

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