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Universidade Federal da Paraíba


Centro de Comunicação, Turismo e Artes
Departamento de Educação Musical

NETTL, Bruno. “Ethnomusicology and the teaching of world music”. In: Music education:
sharing musics of the world. LEES, Heath (ed.). Seoul: International Society for Music Edu-
cation, 1992.

A ETNOMUSICOLOGIA E O ENSINO DAS MÚSICAS DO MUNDO

Bruno Nettl
Tradução de Jacqueline Alves

O poeta Longfellow disse em Outre-mer (1833) que a "música é a linguagem universal do


gênero humano." Embora ele não tivesse pretendido isto, é claro, de algum modo esta declaração tem
sido o centro dos debates etnomusicológicos, durante muitas décadas.
Eu me sinto mesmo honrado em ter sido convidado por vocês, mas sinto que estou “trazendo
carvão a um novo castelo [sujando uma área intocada]”. Eu estou aqui porque a direção do evento me
designou para fazer um painel com recomendações para introduzir as músicas das culturas do mundo
na educação musical do mundo. Para fazer isto nós temos que primeiro desenvolver uma concepção
da natureza do mundo musical e determinar nossa atitude estética e crítica para sua totalidade.
Deixe-me sugerir três posições possíveis:
1. nós podemos ver a música como um universal humano, um sistema único de comunicação no
qual todos os humanos podem participar igualmente, basicamente uma linguagem única.
2. a pessoa pode ver a música como um domínio cultural, tal como a agricultura ou transporte, que
tem tarefas específicas a executar – alimentando e levando as pessoas ao redor. Cada cultura tem
seu próprio domínio, mas não há dúvida que algumas culturas têm uma agricultura ou um trans-
porte mais efetivo que outras; por que algumas culturas não deveriam ter desenvolvido uma
música mais efetiva do que outras, música então, que deve ser promulgada para o resto do mun-
do?
3. Uma terceira abordagem sustenta que cada pessoa tem seu próprio sistema musical, que reflete e
expressa os valores fundamentais e estruturas culturais de sua sociedade. Com a finalidade de jul-
gar, como Judith Becker diz em sua obra “A música ocidental artística é superior?” (Becker,
1986), músicas são incomensuráveis e nós não chamaríamos uma música de melhor, intrinsica-
mente, que outra qualquer, ou dizer que uma linguagem seja melhor do que outra.
Claramente, os etnomusicólogos têm preferido a terceira dessas posições, e eu pensaria que
nós aqui, também, deveríamos nos inclinar para essa última. Não obstante, as primeiras duas aborda-
gens podem ser merecedoras de um pouco de consideração.
Como professor universitário de etnomusicologia, não sou perito no campo da educação mu-
sical e, principalmente, no ensino de música para crianças e na pedagogia dos sistemas musicais. Eu
acredito que o modo através do qual uma sociedade ensina sua música é um problema de importância
enorme, por entender que música é aquela que fornece um ponto de contato principal para nossas dis-
ciplinas. Eu estou muito impressionado pelos modos com que a profissão de educador musical vem
examinando suas atitudes fundamentais no que se refere às músicas do mundo e acredita que os etno-
musicólogos possam ser úteis. Deixe-me tentar contribuir hoje com três caminhos: primeiro, contar
algumas coisas que os etnomusicólogos como um todo, com exceções importantes, acreditam; coisas
que podem ser pertinentes ao conceito de compartilhar as músicas do mundo. Segundo, tocar uma co-
lagem curta de excertos de músicas do mundo, como um modo de auxiliar, eu digo, enquanto uma
elevação da nossa consciência. E terceiro, falar um pouco das questões práticas relacionadas a este
conceito de compartilhamento que os professores, músicos e membros do público musical têm levan-
tado.
Etnomusicologia é o estudo comparativo das culturas musicais do mundo, desde uma pers -
pectiva relativística. Simplesmente isto não é o estudo de etnomúsica, ou música étnica. Muito de
nossa pesquisa diz respeito à música de sociedades tribais, aldeãs, e a música cultivada por músicos
profissionais em áreas geograficamente restringidas. No passado se evitou o estudo baseado na músi -
ca europeia, que agora serve como o paradigma internacional da música artística. Mas do modo que
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Alice Lumi Satomi
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eles se autodefinem, os etnomusicólogos têm tentado olhar para as músicas do mundo inteiro – inclu-
indo até mesmo a arte musical ocidental – sem fazer julgamentos de valores interculturais. É difícil.
A maioria de nós vem de uma estrutura da música artística ocidental, onde a retórica padrão é sobre
música "boa" e a "ruim". A pessoa fala sobre criações, compositores, desempenhos, artistas, constan-
temente afirmando quanto um é melhor que o outro. Mas os etnomusicólogos têm, como crença, a
convicção de que, fundamentalmente, todos os músicos são bons e que nós não deveríamos compará-
los em termos de como nós gostamos deles, mas quais as mensagens que eles trazem de sua socieda -
de. Esta abordagem pode ser usada por educadores musicais como uma base para ensinar a música da
humanidade.
Geralmente, os etnomusicólogos têm lutado contra o princípio da “universalidade da músi-
ca”, argumentando que o mundo da música consiste em um corpo de músicas discretas. E a história
de música do século XX tem envolvido um confronto de extensão substancial entre estas músicas.
Mas nestes anos recentes nos inclinamos a um interesse em relação à universalidade da música, expe -
rimentando descobrir coisas que podem ser a verdade para todas as músicas. Nós viemos enfatizar o
fenômeno musical que resulta da mistura de culturas, os resultados de confrontações entre músicas e
a participação do indivíduo em muitas músicas. E a visão do mundo como um grupo de músicas nos
trouxe questões de bimusicalidade, do papel da performance e mesmo do estudo de composição na
pesquisa.
Eu penso que eu tenho razão ao dizer que todos os etnomusicólogos acreditam que a música
pode ser melhor entendida como um aspecto da cultura da qual é uma parte, e, em troca, compreen-
der a música pode nos ajudar a entender as culturas do mundo e a sua diversidade. A pergunta funda-
mental para os etnomusicólogos é: por que é que diferentes sociedades do mundo têm estilos musi -
cais diferentes? Não há nenhum consenso na resposta para essa pergunta, mas eu penso que nós, ge-
ralmente, acreditamos que algo sobre o caráter da cultura determina coisas tais como o respeito euro-
peu por conjuntos complexos, como por exemplo, a orquestra sinfônica, a preferência dos povos pig-
meus Manbuti para cantar em conjuntos altamente misturados, ou o interrelacionamento hierárquico
complexo do índio Kacceri do Sul.
Os etnomusicólogos também acreditam que eles deveriam aprender a entender tudo da músi-
ca em uma cultura: arte, folclore e música popular, em qualquer taxonomia que a cultura forneça. En-
quanto a música não for uma linguagem universal e toda a música não seja imediatamente acessível
para todo o mundo, nós pensamos que seja possível para o de fora da cultura aprender uma música,
entendê-la e até mesmo executá-la dentro de sua estrutura. Não obstante, o etnomusicólogo trabalha
arduamente para persuadir seu público que aprender, por exemplo, a tocar gamelão, um americano ou
europeu pode ensinar a estrutura, mas não necessariamente a compreensão cultural. Com esforço, es -
tudo e prática, o outro pode penetrar numa música, mas ele provavelmente nunca entenderá como
isto seja compreendido pela cultura local. O paralelo com aprendizagem do idioma é óbvio.
Quem tem o direito para controlar a música, sua performance, aprendizagem e disseminação?
Essa é a maior preocupação dos etnomusicólogos. Um italiano, um canadense e um inglês têm o di-
reito de estudar, escrever sobre e ensinar a música do asiático, do africano e das sociedades nativas
americanas? A música é apropriada por sua sociedade primária, ou é propriedade humana livre-flutu -
ante? Isto também deveria ser uma preocupação para os pedagogos de música.
Um dia os etnomusicólogos viram a si próprios como preservadores da música tradicional na
forma primitiva. Eles evitaram contato com formas musicais misturadas, tais como os muitos tipos de
música popular encontrados em todo o mundo. Esta atitude deriva da preocupação ocidental com a
pureza e também do seu interesse na evolução cultural. Mas hoje eles tendem muito mais tipicamente
a ver a cultura musical como algo que muda constantemente, estudando tanto os processos quanto os
produtos, e a enfatizando que a troca musical intercultural é uma das características principais da
música de nosso tempo.
É nesta última linha de pensamento que eu direciono meu próximo trabalho. Com o que a
música do mundo se parece? Eu quis fazer isso no começo deste congresso para despertar nossa
consciência sobre sua natureza esplendorosa e para poupar um pouco de palavreado, eu gostaria de

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Alice Lumi Satomi
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tocar vinte, quinze-segundos de excertos. Eu não estou certo se é uma amostra boa, mas exibe tanto o
puro quanto o misturado. De qualquer maneira, estas são algumas de minhas músicas favoritas.
1) uma canção coral da Sardênia;
2) música de Gamelão da Indonésia;
3) Gagaku, a música da Orquestra da Corte Imperial japonesa;
4) também do Japão, algum Vivaldi, tocado pelo novo Conjunto Koto de Tóquio;
5) Kalpana svaran, algum vocal pirotécnico de Madras;
6) o magnífico Bobby McFarrin com as próprias pirotecnias vocais dele;
7) grande arte vocal de um coro folclórico Búlgaro;
8) Kayageum sanjo, música de nossa nação hospedeira, Coréia;
9) o famoso coro zulu sul-africano, Ladysmith Black Mambazo;
10) Chahar mezrab em santour, música clássica Iraniana que pretendeu mostrar o virtuosismo do in-
térprete;
11) um estudo de Chopin, com o mesmo propósito básico;
12) canções tradicionais indígenas arranjadas em uma peça de rock por Jim Pepper, um músico ame -
ricano nativo;
13) Charangos dos altiplanos peruanos, música rural transportada para a cidade;
14) uma orquestra de cordas húngara que também toca um tipo de música folclórica urbana moderna
15) highlife da Nigeria, novamente uma confluência do mais velho tradicional e moderno urbano;
16) uma canção Peyote indígena Kiowa, um gênero que combina uma variedade de estilos america-
nos indígena;
17) ketjak balinês, o coro de macaco de Ramayana, no limite entre a canção e fala
18) o didjeridu australiano, um instrumento nativo que se tornou um tipo de símbolo da Austrália;
19) "Uma bolsa bordada", uma peça chinesa em Yang-chin, um instrumento de origem asiática Cen-
tral;
20) a concepção de um músico americano da concepção de um compositor russo da música hindu a
"Canção de Tommy Dorsey de Índia"

Ensinar música do mundo pode requerer mudanças no sistema de ensino mundial. Aqui estão algu-
mas das perguntas que este prospecto levantou entre meus próprios colegas e algumas respostas.
1. pergunta: Eu posso aprender bastante apenas sobre minha própria música; como eu posso ser
competente em várias outras músicas, em coreano, em indiano, em africana ocidental, em nativo
americano, peruano?
– Claro que não se pode, no sentido estrito da palavra, ser "competente". Mas a pessoa pode
aprender algo, a etnomusicologia tem um arsenal de um curso de um ano de música do mundo, ou
dois ou três semestres de curso, cada uma lidando de uma forma introdutória, mas de um modo razo -
avelmente compreensivo com uma área de cultura principal, ou seminários curtos proferidos por pro-
fessores das várias sociedades do mundo. Não é difícil adquirir um mínimo de treinamento. Saber
bastante para ensinar um assunto será sempre um problema com o qual todos nós temos que convi-
ver.
2) pergunta: Se no tempo limitado que nós temos disponível tentarmos apresentar a música
africana, a do oriente médio, a música dos aborígenes australianos e a música japonesa, nós não va -
mos estar propiciando aos nossos estudantes apenas um conhecimento superficial? Não seria melhor
não fazer nada do que fazer um trabalho inadequado?
– Minha resposta seria um definitivo "não". A idéia não é ensinar A música destas culturas,
nem fazer que os estudantes as conheçam, mas ensinar algo sobre elas e para os estudantes saberem
que elas existem e são dignas de atenção e respeito. Enfaticamente, é melhor saber um pouco do que
nada. A primeira coisa que nossos estudantes precisam adquirir é um senso de “o que há lá fora."
3) outra pergunta: Eu toquei música gamelã africana e indígena americana e norte africana para
meus estudantes, mas eles simplesmente não gostaram delas.
– Um problema. Mas a convicção de que a música é, simplesmente, algo para se gostar ou não é
um fenômeno peculiar do ocidente moderno, e é importante para nós impormos a noção de que músi -
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Alice Lumi Satomi
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ca é algo a ser entendido, algo a ser visto como parte da sociedade. A palavra código é contextualiza -
ção, eu acredito.
4) e outra pergunta: Os estudantes não deveriam dominar a própria música deles/delas primeiro,
e então passar para outras?
– Claro que, por definição, as pessoas sempre aprendem primeiro a sua própria cultura, e eles
aprendem as outras comparando-as com a que eles já conhecem. Mas para se deixar claro desde o
princípio que a música que se aprende primeiro é tido como nossa música “normal”, mas esta não é
enfaticamente a música normal de todo o mundo. E a variedade musical do mundo pode ensinar mui -
to de uma natureza musical geral, o universo de formas, timbres, instrumentos, texturas; os usos e
funções da música; processos como composição, improvisação, e transmissão. Além disso, o modo
como uma sociedade ensina sua própria música – oral e de transmissão escrita, relações entre aluno e
professor, vários tipos de cânones – pode revelar o que seja importante sobre aquela música. Nós te-
mos que aprender, para citar o título do livro excelente de Patricia Campbell, Lições do mundo
(1991).
5) um político iraniano perguntou a um colega meu americano "por que ter música de camelo na
idade do jato?" E um americano me perguntou "Por que não concentrar na música Ocidental? É outra
a música que todo o mundo está adotando."
– Para mim, onde concentrar não é a questão. Mas enquanto os etnomusicólogos, normal-
mente, desejam ser os observadores e analistas imparciais, nos seus corações eles sentem que em
causa da humanidade, eles têm que encorajar a preservação e, realmente, o desenvolvimento da di -
versidade musical. Nós não precisamos insistir para que os povos, uma vez isolados em ilhas e em
florestas tropicais, necessitam preservar a sua música intacta da influência estrangeira, mas nós senti-
mos que esta música deveria ser preservada em algum lugar, por alguém.
6) e finalmente; por que nós deveríamos renunciar nossa maravilhosa música ocidental, com sua
complexidade, sua enorme variedade, e nosso uso disto como um pináculo da realização musical? –
Por que não ensinar o melhor, como nós ensinaríamos a todo o mundo o melhor em medicina e enge-
nharia?
– Porque arte não é nenhuma tecnologia, mas uma relação íntima para o sentimento de cultura.
O modo como uma sociedade relaciona sua vida emocional com sua música pode ter pouco a ver
com as tecnicalidades da música. Um professor Blackfoot me contou algo assim: a música branca
(Ocidental) "é difícil, a pessoa tem que aprender a ler música e entender teoria para executa-la, ela
tem uma variedade incrível comparada à música indígena. Mas para as pessoas brancas música é
muito menos importante que para nós." E então ele disse, "nossas canções estão entre as coisas mais
importantes que nós temos."
Como pedagogos no campo de música nós temos que empreender uma missão nova para al-
guns de nós: conduzir os estudantes a uma compreensão de música como um fenômeno mundial e
variado que os ajudará a compreender todos os tipos de música e também prover uma entrada para
entender outras coisas sobre as culturas do mundo, e ajudar os membros de todas as sociedades a en -
tender a sua própria música, contudo definida. A motivação não deveria dissolver os problemas po -
líticos nacionais inter-étnicos e sociais ou condescendentemente para prover entretenimento para a
classe inferior para atraí-lo aos princípios ocidentais. Preferivelmente, nós temos que fazer isto por-
que estas músicas estão lá, e as estudando vai estendendo, infinitamente, à ambos: à nossa música e à
nossa compreensão cultural. Tudo isso pode parecer uma utopia, mas dizer que não pode ser feito ou
não pode ser válido o grande esforço e, até mesmo, algum sacrifício das mais velhas “leis” tradicio-
nais seria negligenciar as implicações completas do título de "professor de música" ou "pedagogo de
música".
Deixem-me terminar com algumas palavras escritas pelo recente John Blacking uns vinte
anos atrás: "em um mundo como nosso é necessário entender por que um madrigal de Gesualdo, ou
uma paixão de Bach, uma melodia de cítara indiana, ou uma canção da África, Wozzeck, de Berg, ou
Réquiem de Britten, um gamelão balinês, ou uma ópera cantonesa, ou uma sinfonia de Mozart, Bee-
thoven, ou Mahler, podem ser profundamente necessária para a sobrevivência humana”.

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