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A infância de Jesus - Análise Narrativa de Lucas 1-2

Júlio Paulo Tavares Zabatiero

Análise semiótica da narratividade

Na teoria semiótica greimasiana, o termo narrativa e seus derivados refere-se a duas


realidades distintas. Por um lado, pode se referir à narrativa enquanto gênero textual amplo com
suas características próprias e formas diversificadas. Por outro, refere-se à narratividade1,
concebida como uma dimensão da produção do sentido inerente a todo e qualquer tipo de
comunicação humana. Abordarei parte do texto de Lc 1-2 de acordo com esta segunda acepção do
termo.
Para realizar a análise do texto, “parte-se de duas concepções complementares de
narratividade: [a] narratividade como transformação de estados, de situações, operada pelo fazer
transformador de um sujeito, que age no e sobre o mundo em busca de certos valores 2 investidos
nos objetos; [b] narratividade como sucessão de estabelecimentos e rupturas de contratos entre um
destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a
circulação de objetos-valor. Em outros termos, as estruturas narrativas simulam a história da busca
de valores, da procura de sentido.”3
O olhar semiótico sobre o texto, na perspectiva da narratividade, conseqüentemente, irá
enfocar as dimensões social e psico-social do sentido. Os contratos de que fala a definição acima
(chamados de contratos de veridicção) correspondem aos princípios de validade e justificação das
comunicações efetuadas entre as pessoas e/ou grupos na sociedade. São eles que definem a verdade
de uma comunicação qualquer e especificam as formas aceitáveis de apresentação e argumentação
das idéias. A análise dos valores corresponde, grosso modo, à análise ideológica em metodologias
sociológicas, mas também visa compreender a ação humana em sociedade na sua dimensão
passional, ou psico-social. Ao agir, somos movidos não apenas por fins (socialmente delimitados),

1
"A narratividade apareceu, assim, progressivamente, como o princípio mesmo da organização de qualquer discurso
narrativo (identificado, num primeiro momento, com o figurativo) e não-narrativo. Pois, das duas uma: ou o discurso é
uma simples concatenação de frases e, assim, o sentido que veicula é devido somente a encadeamentos mais ou menos
ocasionais, que ultrapassam a competência da lingüística (e, de modo mais geral, da semiótica); ou então constitui um
todo de significação, estando seu caráter mais ou menos abstrato ou figurativo ligado a investimentos semânticos cada
vez mais fortes e a articulações sintáxicas cada vez mais finas.” GREIMAS, A. J. & COURTÈS, J. Dicionário de
Semiótica. São Paulo: Cultrix, s/data [original de 1979], p. 295.
2
Numa narrativa, aparecem dois tipos de objetos: objetos modais e objetos de valor. Os primeiros são o querer, o dever,
o saber e o poder fazer, são aqueles elementos cuja aquisição é necessária para realizar a performance principal. Os
segundos são os objetos com que se entra em conjunção ou disjunção na performance principal [...] Objeto-valor e
objeto modal são posições na seqüência narrativa. O objeto modal é aquele necessário para se obter outro objeto. O
objeto-valor é aquele cuja obtenção é o fim último de um sujeito ... o mesmo objeto concreto pode recobrir diferentes
objetos-valor ... É preciso estudar cuidadosamente cada narrativa para perceber que valores os objetos concretos
manifestam.” (FIORIN, J. L. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1989, p. 28s.
3
BARROS, D. L. P. de Teoria do Discurso. Fundamentos Semióticos. São Paulo: Atual, 1988, p. 28.
mas também por paixões4 (afetos ou sentimentos) que qualificam as nossas relações pessoais na
sociedade.
Tomemos o prólogo do Evangelho de Lucas como texto para nossa análise:
Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram ente
nós – conforme no-lo transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas
oculares e ministros da Palavra – a mim também pareceu conveniente, após acurada
investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre
Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste. (Lc 1,1-4 BJ)

O destinador é o eu (sujeito da ação de escrever) e o destinatário é o “ilustre Teófilo”,


sobre quem o destinador realiza um agir persuasivo, um fazer-saber, que visa dotar o destinatário de
uma competência para agir, um saber-fazer, neste caso um “crer”.5 O contrato de veridicção é
explicitado no texto por meio de (a) termos que ocorrem em obras de história e delimita, assim, o
gênero textual do Evangelho de Lucas: “compor uma narração dos fatos”, “testemunhas oculares”,
“acurada investigação”, “escrever-te de modo ordenado”; e (b) uma declaração de propósito:
“verifiques a solidez dos ensinamentos”.
Discute-se, na exegese lucana, se o prólogo representa uma versão helênica de prólogo
(especialmente porque a linguagem do prólogo é distinta da do Evangelho, sendo uma imitação do
grego literário clássico, além de o livro ser endereçado a Teófilo, um nome grego), ou se está mais
próxima da mentalidade judaica. Esta distinção, porém, não me parece adequada, pois supõe uma
distinção radical entre dois grupos culturais que viviam – no âmbito dos textos “literários” – em
estreito contato. Vejamos dois exemplos de textos de judeus que trazem marcas do diálogo intenso
com a mentalidade helênica: “Visto que a Lei, os Profetas e os outros escritores, que se seguiram a
eles, deram-nos tantas e tão grandes lições, pelas quais convém louvar Israel por sua instrução e sua
sabedoria, e como, além do mais, é um dever não apenas adquirir ciência pela leitura, mas, ainda
uma vez instruído, pôr-se a serviço dos de fora, por palavras e por escritos: meu avô Jesus, depois
de dedicar-se intensamente à leitura da Lei, dos Profetas e dos outros livros dos antepassados, e
depois de adquirir neles uma grande experiência, ele próprio sentiu a necessidade de escrever algo
sobre a instrução e a sabedoria, a fim de que os que amam a instrução, submetendo-se a essas

4
“As paixões, neste trabalho, devem, por conseguinte, ser entendidas como efeitos de sentido de qualificações modais
que modificam o sujeito do estado [...] A descrição das paixões se faz, quase exclusivamente, em termos de sintaxe
modal, ou seja, de relações modais e de suas combinações sintagmáticas [...] Para explicar as paixões, é preciso,
portanto, recorrer às relações actanciais, aos programas e percursos narrativos [...] O sujeito do estado ... mantém laços
afetivos ou passionais com o destinador, que o torna sujeito, e com o objeto, a que está relacionado por conjunção ou
por disjunção, O estudo das paixões reabilita, no seio da semiótica, o sujeito do estado, posto de lado durante bom
tempo.” (BARROS, D. L. P. de. op. cit., p. 61 e 62) A semiótica toma bastante cuidado para não fazer uma leitura
psicologizante do texto.
5
Os comentaristas deste texto se dividem entre os que afirmam ser Teófilo um cristão (então o Evangelho serviria para
edificar sua fé) e os que entendem que ele ainda não era um cristão, e o Evangelho de Lucas visaria levá-lo à conversão.
Do ponto de vista da narratividade, o fazer-saber instaurado pelo destinatário, ou seja, o crer de Teófilo, pode ser
qualquer um desses dois tipos de crença – a inicial, ou o desenvolvimento de um crer já existente. Esta decisão
semântica deve ser tomada com outras bases metodológicas que não as da análise da narratividade.
disciplinas, progridam muito mais no viver segundo a Lei. Sois, portanto, convidados a ler com
benevolência e atenção e a serdes indulgentes onde, a despeito do esforço de interpretação,
parecermos enfraquecer algumas das expressões: é que não tem a mesma força, quando se traduz
para outra língua, aquilo que é dito originalmente em hebraico; não só este livro, mas a própria Lei,
os Profetas e os outros livros têm grande diferença nos originais. Ora, no trigésimo oitavo ano do
falecido rei Evergetes, indo ao Egito e sendo-lhe contemporâneo, encontrei uma vida segundo uma
alta sabedoria, e eu julguei muito necessário dedicar cuidado e esforço para traduzir este livro.
Dediquei muitas vigílias e ciência durante este período, a fim de levar a bom termo o trabalho e
publicar o livro, para os que, fora da pátria, desejam instruir-se, reformar os costumes e viver
segundo a Lei.” (Eclo 1,1-34)
As diferenças com Lucas são notáveis, mas ainda mais notáveis as semelhanças no tocante
ao contrato veridictório e à finalidade do escrito. Outro texto judeu é relevante também: “Em minha
história de nossas antigüidades, excelentíssimo Epafrodito, eu deixei, penso, suficientemente clara
... a extrema antigüidade de nossa raça judaica ... Entretanto, observo que um número considerável
de pessoas ... não dão crédito a declarações em minha história ... por isso considero meu dever
devotar um breve tratado a todos esses pontos ... para instruir a todos que desejam conhecer a
verdade acerca da antigüidade de nossa raça. Como testemunhas de minhas declarações, proponho
chamar os escritores que, na avaliação dos gregos, são as autoridades mais confiáveis sobre a
antigüidade como um todo” (Josefo, Apionem 1.1-4). E mais, “no primeiro volume desta obra, meu
estimado Epafrodito, demonstrei a antigüidade de nossa raça ... agora, procedo a refutar o resto dos
autores que nos atacaram.” (Josefo, Apionem 2.1s) As semelhanças ressaltam: uma obra em dois
volumes, endereçada a um “nome grego”, pessoa ilustre, a preocupação com a verdade, a ligação
com o passado.
Fugiria ao escopo deste artigo analisar comparativamente as obras helênicas com as quais
o prólogo de Lucas mantém relações intertextuais. Tal análise tem sido feita por vários autores,
desde o clássico de Cadbury, em 1922, que vinculou Lucas à historiografia helenística. Ao invés
disso, recorrerei às conclusões de um ensaio mais recente e, a meu ver, mais adequado que
pesquisas afins. Alexander formulou a seguinte hipótese: “Todos esses fatores apontam a uma
conclusão que, de todos os prefácios gregos disponíveis para comparação, o de Lucas está mais
próximo daqueles que pertencem à tradição científica; e que não há um único ponto em Lucas 1,1-4,
ou Atos 1,1; em que seja necessário invocar qualquer outra tradição literária grega.”6 Após
examinar possíveis objeções à hipótese, Alexander concluiu: “Em suma, portanto, argumentarei que
o conteúdo biográfico do Evangelho e de Atos, de modo algum é um obstáculo insuperável para a
visão de Lucas como um escritor pertencente ao contexto da tradição científica. E, do lado positivo,
6
ALEXANDER, L. “Luke’s preface and Greek preface-writing” Novum Testamentum, XXVIII, 1, Leiden: Brill, 1986,
p. 60.
o crítico do Novo Testamento só pode se beneficiar de uma investigação mais ampla desse
contexto. A tradição científica provê a matriz dentro da qual podemos explorar os aspectos social e
literário da obra de Lucas, tanto o homem em si, quanto a natureza de seus escritos.”7
O único reparo que eu faria às conclusões de Alexander, é que o prólogo não pertence
apenas à tradição científica grega, mas também à tradição apologética judaica, conforme os
prólogos ao Eclesiástico e Apionem, acima, indicam. Parece-me que o grande mérito de Lucas foi,
neste meta-texto,8 conjugar duas valiosas tradições culturalmente distintas, mas igualmente voltadas
para o mesmo objeto-valor: a verdade. O prólogo lucano, enquanto meta-texto, explicita o objeto-
valor e o objeto-modal9: a verdade do Evangelho é o objeto-valor, e a própria narrativa lucana é o
objeto-modal necessário para a realização do objeto-valor virtual - verdade. Todo valor é virtual
enquanto não apropriado por um sujeito quando, então, torna-se um valor realizado.
Na sociedade em que o texto foi produzido e lido, a validade científica de um relato sobre
fatos dependia de, cumulativamente: acesso a testemunhas oculares, respeito à tradição, descrição
pormenorizada e em ordem, investigação cuidadosa. O Evangelho de Lucas, segundo o prólogo,
preenche tais requisitos. Naquela sociedade, poderia ser considerado uma obra histórica com as
marcas da validade – ou, nos termos semióticos: é um texto que passa pelo teste do contrato de
veridicção. As discussões da exegese histórica moderna relativas à historicidade do Evangelho são
pertinentes, mas não podem desqualificar o texto lucano. Em seu próprio contexto, o Evangelho de
Lucas é obra científica-histórica. Não atende, é certo, os padrões modernos de cientificidade e
historiografia, mas atendeu plenamente os padrões de cientificidade e historiografia de seu tempo.
E quanto às paixões, que podemos concluir a partir do Prólogo? Lembrando que a análise
semiótica das paixões não é psicológica, mas textual, e depende das relações do sujeito com os
objetos, no texto, precisamos verificar que paixões estão ligadas à verdade. Como o prólogo é uma
declaração de intenção do destinador (autor) em relação ao destinatário (leitor, Teófilo), e propõe a
Teófilo que este tenha certeza do que aprendeu, com base na obra científica que está prestes a ler,
podemos dizer que a paixão presente no prólogo, do ponto de vista do destinador, é a da confiança.
A confiança, semioticamente falando, é uma paixão do campo das paixões vinculadas à “esperança
e segurança”. Na linguagem formal da semiótica, este campo é preenchido pelas paixões da “aflição
e insegurança” (de dois tipos), “satisfação e confiança” (também de dois tipos) e “insatisfação e
decepção” – o oposto da “esperança e segurança”.10 Em linguagem não-formal, Lucas demonstra

7
idem, p. 70
8
Um meta-texto é um texto que tematiza a própria textualidade. Um texto sobre si mesmo.
9
Nem todos os textos explicitam os seus objetos-valor e modais. Em muitos casos é necessário garimpar para encontrá-
los.
10
Para detalhes, ver BARROS, D. L. P. de Teoria do Discurso. Fundamentos Semióticos. São Paulo: Atual, 1988, p.
60-69
confiança em que a sua obra poderá realizar o fim desejado; está seguro de que Teófilo irá verificar
a solidez do ensino cristão após a leitura da obra a ele dirigida.
Como contrapartida textual, as paixões de Teófilo, ao receber e ler a obra, poderiam ser, ou
as da “satisfação e confiança”, ou as da “insatisfação e decepção”. Se do primeiro caso, a confiança
de Teófilo quanto à verdade da fé cristã cresceria. Se, do segundo, porém, a fé de Teófilo seria
abalada pela não demonstração da verdade dos ensinos cristãos. Como a resposta de Teófilo não
está textualizada, não podemos senão especular qual teria sido sua reação. Para manter a
especulação dentro de limites razoáveis, fico com a mera dedução lógica: ou confiança, ou
decepção teriam sido a reação do leitor da obra lucana – então, e agora!
Concluindo minha análise de forma meta-textual, espero que este breve exemplo estimule
colegas da leitura da Bíblia a acrescentar o olhar semiótico da narratividade às suas perspectivas de
interpretação.

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