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Maria de Fátima Lambert – Dardo Magazine

Rui Toscano – trajeto do Colosso entre a infinitude, as pequenas nebulosas [jornada além das
estrelas]

... “I prefer not to,” he replied in a flute-like tone. It seemed to me that while I had
been addressing him, he carefully revolved every statement that I made; fully
comprehended the meaning; could not gainsay the irresistible conclusion; but, at the
same time, some paramount consideration prevailed with him to reply as he did."
Herman Melville, "Bartleby" (1853)

Sou de uma geração que acreditou na conquista da lua, na “posse” crescente (inacabada) do
espaço, pois era criança pequena quando o colossal evento aconteceu. A grande aventura no
espaço coincidiu com a minha primeira aventura de televisão, aliás como muitas outras
pessoas de diferentes gerações. O espaço, a lua, o foguetão, a pegada irrevogável são
indissociáveis dos televisores gordos dom formato de caixa de bolachas em folha – objeto de
consumo e deleite que, aliás, pertence ao mesmo arquivo de memória em finais dos anos
1960. A televisão não apenas propiciava o acesso, como gerava a factualidade, do que até
então fora fantasmático, de um espaço até então inexpugnável e extravagante.
A televisão inventava o espaço sideral convergido na pregnância da lua, tornada algo de
palpável ainda que vagueando na imponderabilidade gravitacional.
A televisão inventava o espaço vazio enxertando-lhe corpos-astronautas.
A televisão antropomorfizava a abstração, corporalizava o vazio. Todavia, esse vazio, por
alguma razão maior, ficaria ainda mais ausente quando as imagens se banalizaram, pela
repetição, continuidade do programa das missões espaciais, diluída a sua importância quando
outros acontecimentos se sobrepuseram. No entanto, essas missões preencheram um arco
temporal significativo, potencializando novos imaginários, nesse “agora” realizados a partir de
concreções, de factualidades numa era em que tudo se alterava e o plausível subsidiava as
pragmáticas mais inesperadas. Providenciaram livros de ficção, séries televisivas, bandas
desenhadas, filmes de diferente qualidade e objetivo, destacando-se de forma inequívoca
2001 – Odisseia no espaço, de Stanley Kubrick. A obra deste realizador foi e é fulcral na
produção artística de Rui Toscano, ainda que, nalguns casos, possa não ser imediatamente
apreensível pelo espetador, pelo público. Relembre-se que, inicialmente, o título previsto para
o filme de Kubrick seria Journey Beyond the Stars. Toscano tomou exatamente esse título para
denominar a sua exposição na Travessa da Ermida (Lisboa, 2015), a partir da designação
também do seu vídeo de 2015, peça nuclear que integra Civilizações de Tipo I, II e III, recente
exposição no Museu do Chiado, patente até junho próximo no CIAJG [Centro Internacional de
Arte José de Guimarães] em Guimarães.
Como se lê, no texto curatorial [folha de sala] de Nuno Faria, quanto à escolha das obras, pois
“…há já mais de 20 anos, a saber, uma prática de apropriação e reutilização de imagens, de
colagem e/ou montagem de elementos que mantêm entre eles uma relação de vizinhança
temática ou conceptual, a evocação do cinema de ficção científica erudito ou visionário,
nomeadamente de duas obras clássicas a que recorrentemente regressa, "Blade Runner" de
Ridley Scott e "2001 - Odisseia no Espaço" de Stanley Kubrick, o lugar central da percepção na
construção da obra a partir da padronização do acaso, da tematização do invisível e do
atmosférico, a aproximação da escala incomensurável - o cosmos - e ínfima - a partícula de pó
que esvoaça no ar.”
A conquista do espaço em Toscana alimentou-se, portanto, por via dupla: quer pela
factualidade/efetividade do acontecido (tornado histórico), quer pelas fantasias
cinematográficas - alimentadas embora pelo “real”. Acresce, na minha opinião acrescentar,
quanto à lista de referências cinematográficas Stalker, filme de culto do realizador russo
Andrei Tarkovski (1979), como e nas perspetivas que adiante se desenvolvem.
Outra das motivações agregadoras na obra de Rui Toscano remete para La Grande Avventura
dello Spazio’, tendo assim designado – saliente-se ainda - a emblemática exposição individual
em 2013 na Galeria Cristina Guerra (Lisboa). Apercebe-se o diálogo entre produções literárias,
além das cinematográficas e seguindo os percursos da realidade historicizada. O título da
exposição, cujas obras itineraram a Itália, remetia para o título de uma coletânea (três
volumes), datada de 1973 e publicada em Itália pela editora Istituto geografico De Agostini
Novara. Com autoria de Giancarlo Masini, a obra abordava as explorações do espaço,
correspondendo ao interesse suscitado pelo evento convertido em tema/mote/enredo, no
final da década de1960. Isolam-se várias das imagens que se contam na impossibilidade de
miríades, tratadas numa dinâmica viral. Se atendermos àquelas que Rui Toscano usa, não são
assim tantas as imagens cinematografadas, televisionadas, mercê da infindável
reprodutibilidade que os meios de comunicação expandiram. Progressivamente, essa panóplia
iconográfica seria acrescida pelo desfolhar de dados arquivados, tornados bem mais acessíveis
pelo desenvolvimento das tecnologias e disponibilização online. As imagens da lua hoje estão
ao alcance e na posse de qualquer um de nós. Tornaram-se parte integrante de um património
visual, imaterial embora tangível na sua equivocidade antropológica, societária, ideológica,
estética…situável bem além de quaisquer consignações apenas científicas e/ou técnicas.
Desde finais dos anos 1990, a produção artística de Rui Toscano foi-se apropriando do
imaginário-real da conquista do espaço, assumindo-o num processo desconstrutivo que
demonstra ser incessante, inesgotável porque pertinente, quer artisticamente, quer em
termos culturais (ideológicos) e socio-antropológicos.
As odisseias pequenas no espaço foram por certo, extremamente, inspiradoras para os
autores, mas assinale-se que muito provável, quando alguém assistia a um desses registos de
caminhadas na lua – não em tempo real da realidade na era do digital – pudesse sentir, de
forma projetiva, o peso do seu próprio corpo sem peso como se estivesse a ver-se, como se
tocasse com os seus pés o solo da lua em 1967…Hoje, passados tantas décadas, o confronto
com estas convocações retrospetivas contribui para uma nova assunção de acontecimentos
que já estão bastante distanciados da atualidade.
Num trajeto, onde se mapeiam várias séries exemplares, destacam-se aquelas em que
subjazem fios/eixos condutores e recorrentes/transversais. O percurso poder-se-ia iniciar pelo
vídeo “Infinnity”, assinalando a tomada de posse da metrópole paulista – S. Paulo 24 Set 01
[2001] - pela asserção da imagem vertiginosa e incontinente. O conteúdo das letras alimenta-
se de arranha-céus, num apocalíptico e antropofágico mergulho, marcado pela
irreversibilidade do tempo contemporâneo, na sequência do ataque às torres gémeas no
hemisfério Norte. O mundo tampouco foi mais o mesmo, à semelhança do que sucedeu
quando da primeira pegada na lua. As imagens absorveram a tragicidade embora possuída da
incredulidade primeira difundida nos canais de televisão…”agora” por cabo. A contemplação
das imagens reverte na infinitude que se lê em português. A paisagem urbana e cinemática foi
também abordada na plenitude desmedida e luxuriante do Rio Janeiro - Rio 09/Mai/2002.
Ambas videoscapes mantêm-se aéreas e quase omnipotentes, malgrado a impossibilidade de
controlo sobre o estado do mundo. A redenção da paisagem urbana, assim como da paisagem
natural (em conivência à urbana) pontuam uma das dualidades que persistem ao longo da sua
produção: arcaico/natural versus contemporâneo/tecnológico, encarados numa assunção
complexa e singular, onde as variantes consignam depoimentos oposicionais, imersos no
desígnio de redenção para o humano dividido, ainda que plasmado como todo. Em Lisbon
Calling (2004) entenda-se um certo ponto de chegada do périplo pelas grandes metrópoles,
aqui tratando-se de um vídeo plasmado, planificado num desenho extremo.
Pela mediação das imagens obsessivas, assimiladas para a contemporaneidade em regressão
contrariada, os discursos críticos sobre a sociedade encontram um estado em “sucedendo”,
em devir atravessado pela imisericórdia de futuro. As imagens, o recurso às “imagens de
mesmeidade” adquiriram qualidade de imagens obsessivas, são metáforas obsessivas,
parafraseando Charles Mauron, autor de Des métaphores obsédantes au mythe
personnel. Introduction à la psychocritique (1963).
As imagens televisas apresentando incursões humanas na lua, os desempenhos e movimentos
de técnicos e espetadores em terra, nos centros de controlo, laboratórios e cápsulas de
experimentação, converteram-se em imagens performatizadas. Todos os lugares apresentados
estavam habitados (ou neles se induzem presenças) por corpos/pessoas. Numa certa
perspetiva, assumem valor e função de cenários que integram pessoas, organizando-lhes e/ou
subsidiando-lhes auras. Transportaram-nas além do tempo que foi presente, tempo-lugar
onde esses protagonistas foram captados nos registos. Persistem essas pessoas/corpos
derivados em figuras, sustentadas pela espessura da memória coletiva, perdida alguma da sua
identificação pessoal (nominada), mediante a sua extrapolação nos suportes, dispositivos de
visionamento repercutido em que são apresentam. Apesar da impermanência, pela repetição
metamórfica ultrapassam a fugacidade, afirmando a condição evenemencial de seus
conteúdos fatuais admitidos pela polissemia, sujeitos a interpretações, desconstruções ou
dogmatismos. Ao serem projetadas em ecrãs mínimos que dizem ser “The right stuff”,
acredita-se pois e que talvez tenha sido melhor assim. Que seja preferível a credulidade
minimizada expondo foguetões em subidas paradas pela moldura; que sejam, porventura
totems bidimensionais, metaforizando a guerra-fria e o depois daí adveio.
Quando da exposição The Great Curve, pensada e concretizada no espaço Chiado 8 em 2009,
foram apresentadas peças que se destacavam – num jogo estético de forma-fundo –
confirmadas na arquitetura, estranhamente, neutra do espaço.
No texto, escrito na ocasião por Bruno Marchand, lê-se quando e como em Rui Toscano “…a
exploração espacial remonta ao ano de 1993, data em que o artista produziu, juntamente com
Rui Valério, a obra The Space Experience. Tratava-se de uma pintura de grandes dimensões
onde, sobre um fundo uniforme azul-escuro, se desenhavam e sobrepunham os contornos de
diferentes modelos de naves espaciais.” Além da nitidez iconográfica das naves validadas
como objetos estéticos, portadores de simbologias complementares, destacava-se a
materialidade das peças mencionadas, assim como a “imaterialidade” das imagens, cujos
conteúdos direcionavam para o primado do elemento “ar”, parecendo este albergar os
demais. Ou seja, as naves subiam, atravessando a atmosfera: evocação moderna das catedrais
medievais que se elevavam para os “céus”. As catedrais-naves demonstravam o poder do
homem, assim transpondo umbrais teocêntricos para mesmidades antropocêntricas –
sublinhe-se o que se convencionou designar por “naves das catedrais”, parecendo quase
premonitório. Depois, considere-se a necessidade de combustão para impulsionar “ao voo”,
leia-se a primazia do fogo. O fogo, que era suscetível de ser dominado pelos homens-técnicos,
sucessores de Prometeu que o roubou aos deuses para usufruto dos humanos…Todavia, o
fogo destruiu vidas de astronautas, persistindo esses episódios de tragédias na nossa memória.
O fogo consumiu as vidas, com a mesma pregnância quanto as potenciou e expandiu, elevando
os tópicos civilizacionais. O fogo entende-se então como símbolo civilizacional, além da
consignação mítico-cultural e mitológica evocada. Ainda a terra, local de onde as naves, nas
estações espaciais se erguem, local marcado numa posse de território delimitado e inviolável
àqueles que não sejam partícipes dos projetos/processos espaciais. Locais de acesso restrito,
delimitando figuras e objetos monumentais na paisagem vasta, celebrando visões de
sublimidade ondulante, quando as evanescências da força de ar se exerce pelo aquecimento
das naves e rampas de lançamento. A noção de território carateriza primordialmente a
retenção, terra-base-chão. Não é mais a terra numa genuína receção telúrica, antes a terra
dominada/dominadora pelas razões da tecnologia, ideologia, determinismos políticos e
económicos…entre tantos fatores primordiais a acrescentar.
A História das civilizações pretendia constituir-se, agregando os elementos, sabendo-se que o
derradeiro – no processo destas missões, convergia, mergulhava, visava-se redentor na água.
As cápsulas desprendidas da naves, úteros subvertendo-se em si mesmos, eram coletivos,
permitindo um re-nascimento, cumpridas as exigências iniciáticas dos astronautas/corpos. Os
astronautas/corpos haviam vivenciado, transitoriamente, a duplicidade de serem corpos
terrestres e corpos “celestes”, irmãos dos Corpos Celestes efetivos, conhecidos da Astronomia,
da Física e demais ciências acopladas.
Em particular, relembro as molduras circulares onde as nuvens se moviam na maior lentidão.
Círculos perfeitos com segmentos de céu, endossando para a sublimidade que Rui Toscano
atinge mediante a remoção de convicções gratuitas. Uma das formas que predomina na sua
obra é precisamente o círculo, quer como conteúdo, quer como continente. Sendo seccionado
pelo olhar do visitante, caso da peça que intitulava a exposição, The great curve, rodeava-se o
telescópio adentrado no espaço que não sideral embora sinalizando alvos invisíveis. Tratava-se
da assunção de uma outra plataforma de espaço, uma extensão, uma dimensão oculta
(lembrando Edward T. Hall, no livro homónimo de 1966) revolteando aforismos, derrubando
silogismos e alucinando outras consignações, porventura impositivas em excesso. A
composição da mostra como todo, falava acerca do que pudesse ser o futuro, em devir, sobre
o dia de amanhã do humano - neste caso, mediado pela visão do passado cosmogónico,
mitopoético quase, dir-se-ia…

Das esculturas [ditas] sonoras emana a música das esferas.

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