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CONSTITUCIONALIZAÇÃO: TEORIAS, FORMAS E ATORES 39

3.2 SCHUPPERT/BUMKE

Em trabalho recente, Gunnar Folke Schuppert e Christian Bumke


dedicam-se exclusivamente à análise da "constitucionalização do
ordenamento jurídico" e identificam cinco formas principais desse
processo: (1) reforma legislativa; (2) desenvolvimento jurídico por
meio da criação de novos direitos individuais e de minorias; ..,.
Çapítulo 3 (3) mudança de paradigma nos demais ramos do direito; (4) irradia-
ção do direito constitucional - efeitos nas relações privadas e deveres
CONSTITUCIONALIZAÇÃO: de proteção; (5) irradiação do direito constitucional - constituciona-
TEORIAS, FORMAS E ATORES lização do direito por meio da jurisdição ordinária. 2 Nem todas as for-
mas interessam ao presente trabalho, especialmente porque nem
todas elas podem ser simplesmente importadas para o sistema jurídi-
co brasileiro, que tem uma Constituição mais abrangente do que a
3.1 lntroduçüo - 3.2 Schuppertl/3umke: 3.2. I Reforma le~islativa;
3.2.2 lrradiaçiio do direito constitucional; 3.2.3 Os atores da cons- Constituição alemã, especialmente no seu catálogo de direitos funda-
titucionalizaçüo: 3.2.3. J O legislador; 3.2.3.2 O judiciário; 3.2.3.3 mentais, e porque não existe, no sistema brasileiro, um antagonismo
A doutrina - 3.3 Louis Favoreu: 3.3. I Tipos de constitucionaliza- tão marcado entre jurisdição constitucional e jurisdição ordinária, já
çüo: 3.3. l. I Constitucionalizaçi'io-juridicizaçi'io; 3. 3.1. 2 Constitu-
cionalizaçi'io-elevaçüo; 3.3.1.3 Constitucionalizaçiio-tran.~forma­
que, ao contrário do que ocorre na Alemanha, o sistema de jurisdição
çi'io; 3.3.2 Efeitos da constitucionalizaçtio; 3.3.2. I Unificaçi'io da constitucional no Brasil não é um sistema concentrado. Por isso, pre-
ordem jurídica. 3.3. 2. 2 Simplificaçi'io da ordem jurídica. tendo dedicar-me, nos próximos tópicos, somente àquelas formas de
constitucionalização que mais interessam ao objeto desse trabalho.
3.J INTRODUÇÃO
Quando se fala em constitucionalização do direito, a idéia mes- 3.2.1 Reforma legislativa
tra é a irradiação dos efeitos das normas (ou valores) constitucionais A mais efetiva e, ao menos em tese, a menos problemática forma
aos outros ramos do direito. Mas essa irradiação é um processo e, de constitucionalização do direito é realizada por meio de reformas,
como tal, pode se revestir de diversas formas e pode ser levada a cabo pontuais ou globais, na legislação infraconstitucional. É parte da tare-
por diferentes atores. Neste breve capítulo pretendo expor e discutir fa legislativa, adaptar a legislação ordinária às prescrições constitu-
duas das principais análises doutrinárias exclusivas sobre o fenôme- cionais e, nos casos de constituições de caráter dirigente, realizá-la
no da constitucionalização do direito: a de Gunnar Folke Schuppert e por meio de legislação. 3
Christian Bumke, de um lado, e a de Louis Favoreu, de outro. Essas
não são as únicas análises que abordam a questão. De uma certa Mas, embora esse processo de constitucionalização seja o menos
forma, todo trabalho que se ocupe com a vinculação de particulares controvertido, não é ele necessariamente o mais rápido de todos. A
aos direitos fundamentais acaba também por fazê-lo. Mas como aná- lentidão com que os princípios da Constituição brasileira de 1988 e as
1ises do fenômeno em si, esses trabalhos são pioneiros. 1 tarefas que ela impõe são concretizados pela legislação ordinária é

1. Cf., para alguns outros trabalhos, Pierre Bon, "La constitutionnalisation du 2. Cf. Gunnar Folke Schuppert e Christian Bumke, Die Ko11stitutionalisierung
droit espagnol", Rev11e Française de Droit Constitutionnel 5 ( 1991 ), pp. 35-54 e Joa- der Rechtsord111111g: Überlegungen zum Verhiiltnis von ve1fassungsrechtlicher Aus-
quim de Sousa Ribeiro, "Constitucionalização do direito civil", /Joletim da Faculda- strahlungswirkung und Eigenstiindigkeit des "einfachen" Recllfs. pp. 9-23.
de de Direito da Universidade de Coimbra 74 ( 1998), pp. 729-755. 3. Cf. Schuppert e Bumke, Die Konstitutionalisienmg der Rechtsordnung, p. l O.
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exemplo claro disso. Mas, ao contrário do que o lugar comum faz pen- paradigma não muda para a sociedade e, também, para os operadores
sar, isso não é um problema de falta de "vontade política" do legisla- do direito.
dor brasileiro, mas uma característica inerente à lentidão do legislador Quando os juristas não percebem, ou não querem aceitar uma
para se adaptar a novos paradigmas. E isso em todo o Mundo.
mudança de paradigma, pode ocorrer que, embora o processo de
Schuppert e Bumke utilizam um exemplo do direito de família adaptação da legislação se realize rapidamente, essa rapidez não é
para ilustrar a possível lentidão desse processo de constitucionaliza- acompanhada por uma mudança de paradigma na aplicação da legis-
ção. A Constituição alemã, promulgada em 1949, garante, em seu art. lação "constitucionalizada". Muitas vezes a prática jurisprudencial se ••
3, II, a igualdade entre homens e mulheres e, no seu art. 117,-dava um mostra refratária a mudanças e se mantém presa a paradigmas supe-
prazo de quatro anos para que a legislação ordinária se adaptasse a rados não somente pela constituição, mas também pela legislação
esse novo paradigma. 4 A mudança legislativa exigida não encontrou ordinária diretamente aplicável ao caso. Talvez o maior exemplo
um ambiente favorável na conservadora sociedade alemã do início disso, no Brasil, sejam as mudanças introduzidas pelo Código de
dos anos 1950. 5 Uma lei sobre igualdade entre homens e mulheres foi Defesa do Consumidor. 8
promulgada somente em 1957, mas, mesmo assim, os efeitos dos dis-
positivos constitucionais na reforma legislativa não foram dos maio-
res. O papel da mulher no matrimônio pouco mudava: ela poderia tra- 3.2.2 Irradiação do direito constitucional
balhar apenas se essa atividade fosse comprovadamente compatível Segundo Schuppert e Burnke, no início do processo de irradiação
com o seu papel de dona-de-casa; o homem continuava a ser o chefe
do direito constitucional pelos outros ramos do direito, um dos obje-
da família, e responsável pela educação dos filhos em caso divergên-
tivos principais era simplesmente a solidificação da submissão desses
cia de opiniões; a mulher deveria adotar o sobrenome do marido e os
ramos aos ditames constitucionais. 9 Ainda que essa submissão soe tri-
filhos não poderiam receber o sobrenome materno. A igualdade entre
vial para o jurista contemporâneo, nem sempre foi assim, especial-
homens e mulheres permanecia, como se vê, uma promessa, especial-
mente por causa da milenar tradição do direito privado como área do
mente no âmbito familiar. 6 Somente em 1976 - vinte e sete anos após
direito reservada à autonomia privada, não submetida às previsões do
a promulgação da Constituição e vinte e três anos após o prazo esti-
direito público. 10 Assim, segundo Schuppert e Bumke, por mais que
pulado em seu art. 117 - foi abolido, definitivamente, o primado mas-
hoje essa submissão seja ponto quase pacífico, no início da década de
culino como princípio estruturante da família. 7
1950, na Alemanha, sua fundamentação era difícil e seus efeitos
É possível perceber, portanto, que uma mudança de paradigma incertos. E é por isso que, segundo eles, tanto Nipperdey, o maior
imposta pela constituição e uma decorrente necessidade de adaptação expoente da tese de aplicabilidade direta dos direitos fundamentais
da legislação ordinária por imposição constitucional, ainda que con- nas relações entre particulares, 11 quanto Dürig, o principal represen-
figurem, em tese, a forma mais segura e menos controvertida de cons-
titucionalização do direito, não implicam mudanças rápidas quando o
8. São inúmeros os exemplos de decisões em que juízes recusam a aplicação,
por exemplo, do art. 51. § 12 , do Código de Defesa do Consumidor com base no
4. Art. 117 da Constituição alemã: "'( ... ) O direito que contrariar o art. 3, II, per- pacta sunt servanda. Cf.• apenas como ilustração. o voto do relator na Ap. 42.486/96.
manece em vigor até a sua adaptação às disposições desta Constituição, cujo prazo do TJDF (RDC 23-24/271).
não poderá ultrapassar 31 de março de 1953". 9. Cf. Schuppert e Bumke, Die Konstitutionalisienmg der Rechtsordnung, p. 18.
5. Cf. Schuppert e Bumke. Die Konstitutionalisierung der Reclusordmmg, p. 1O. Embora seja difícil encontrar atualmente autores que sustentem a indepen-
10. dência do direito privado nesses termos e a não-submissão desse ramo aos ditames
6. Cf. Ute Sacksofsky, Das Grundrecht auf Gleichberechtig11ng, pp. 119 e ss. constitucionais, é ainda possível encontrar opiniões em sentido semelhante. Cf..
7. Cf. Schuppert e Bumke. Die Konstitutionalisierung der Rechtsordnung. p. sobretudo, 5.4.1. abaixo.
11. 11. Cf. 5.6.1, abaixo.
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tante da teoria dos efeitos indiretos, 11 recorreram a estratégias seme- constitucional diante do direitq privado. 18 Mas, como os autores
lhantes, especialmente ao conceito de constituição como ordenamen- salientam, e como será visto no capítulo 5, essa base comum não
to não somente estatal, mas da sociedade como um todo. 13 Como trouxe um consenso sobre a forma como esses valores constitucionais
decisão fundante dess~ concepção - por muitos considerada como a deveriam ser recepcionados nas relações entre particulares.
decisão mais importante de toda a história do Tribunal Constitucional
alemão - é sempre mencionada a decisão do caso Lüth, também
3.2.3 Os atores da constitucionalização 'J
usada como paradigma por Schuppert e Bumke. 14 Nessa decisão, o
tribunal, embora conceda que os direitos fundamentais sejam; em pri- Schuppert e Bumke identificam três atores principais que dão
meira linha, direitos de defesa dos cidadão contra o Estado, desen- impulso à constitucionalização do direito: o legislador, o judiciário e
volve uma função complementar que, durante décadas, suscitou as também a doutrina jurídica.
maiores controvérsias no âmbito da dogmática dos direitos funda-
mentais, 15 nos seguintes termos: "A Constituição, que não pretende
3. 2.3. 1 O legislador
ser uma ordenação axiologicamente neutra, funda, no título dos direi-
tos fundamentais, uma ordem objetiva de valores, por meio da qual O principal papel do legislador como ator da constitucionaliza-
se expressa um ( ... ) fortalecimento da validade ( ... ) dos direitos fun- ção do direito já foi mencionado acima 19 e se desenrola na sua tarefa
damentais. Esse sistema de valores, que tem seu ponto central no de adaptar a legislação ordinária às prescrições constitucionais e, nos
livre desenvolvimento da personalidade e na dignidade humana no casos de constituições de caráter dirigente, realizá-las por meio de
seio da comunidade social, deve valer como decisão fundamental legislação. Mas é preciso ter cautela, segundo Schuppert e Bumke, e
para todos os ramos do direito; legislação, administração e jurispru- não ver em toda e qualquer atividade legislativa uma expressão do
dência recebem dele diretrizes e impulsos". 16 processo de constitucionalização do direito. E os autores vão ainda
Essa fórmula, especialmente o recurso - na maioria das vezes além: nem mesmo toda atividade legislativa que, para resolver coli-
meramente retórico 17 - a um sistema de valores que valeria não são entre direitos fundamentais, implique um sopesamento entre os
somente para o direito constitucional e para o direito público, mas direitos consagrados pela constituição, pode ser considerada como
para todos os ramos do direito, foi reproduzida em um sem número um ato de constitucionalização do direito. Isso porque, ainda segun-
de decisões do tribunal constitucional e, como afirmam Schuppert e do Schuppert e Bumke, tal pressuporia que as soluções para essas
Bumke, serviram para solidificar, ainda que lentamente, a supremacia colisões já estariam pré-definidas na própria constituição e ao legis-
lador somente caberia a tarefa de irradiá-las. 20 Como é possível, e
mesmo provável, que para a mesma colisão entre direitos fundamen-
12. Cf. 5.5, abaixo.
13. Sobre as semelhanças dessa visão com a idéia de constituição total ou cons- tais existam diferentes soluções compatíveis com a constituição, o
tituição-fundamento, cf. 6.2.2. legislador, ao decidir por uma dessas soluções, não está dando ense-
14. Cf. Schuppert e Bumke. Die Konstitutionalisierung der Rechtsordnung, p. jo a uma constitucionalização do direito, mas simplesmente exercen-
19. do sua competência decisória e legislativa ordinária.
15. Boa parte das controvérsias sobre a função da constituição no ordenamen-
to jurídico, discutidas no capítulo 6, são reflexos dessa decisão do caso Lüth. Como Assim, uma edição de lei não passa a integrar o processo de
se pode perceber pela leitura do capítulo mencionado. a polêmica permanece até constitucionalização do direito pelo simples fato de se submeter às
hoje.
16. BVerfGE 7. 198 (205) - tradução livre, sem grifos no original.
17. Cf., sobre isso. Bernard Schlink, "The Dynamics of Constitutional Adjudi- 18. Cf. Schuppert e Bumke, Die Konstitwionalisienmg der Rechtsordnung, p. 19.
cation", Cardo::.o Law Review 17 (1996), pp. 1.234-1.235; cf. também Horst Dreier, 19. Cf. 3.2.1.
Dimensionen der Grundrechte, p. 22. 20. Cf. Schuppert e Bumke. Die Konstitwionalisienmg der Rechtsordmmg. p. 46.
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disposições constitucionais, caso contrário toda e qualquer atividade do direito não é algo uniforme e varia sensivelmente de acordo com o
legislativa seria expressão desse fenômeno. Nesse sentido, Schuppert campo do direito de que se trata. No caso alemão, objeto do estudo de
e Bumke reservam a qualidade de legislação constitucionalizadora Schuppert e Burnke, a participação da doutrina constitucional foi deci-
somente àquelas leis que se destinam à eliminação de situações infra- siva, enquanto que a doutrina civilista, por exemplo, atuou mais como
constitucionais inconstitucionais ou àquelas que, por exigência uma força balanceadora, que tendia à direção oposta - isto é, à manu-
expressa e específica da própria constituição, complementam a eficá- tenção de uma máxima desvinculação do direito civil das normas cons-
cia de algumas normas constitucionais. 21 Esse seria, para usar um
termo difundido no direito brasileiro, o caso das normas constitucio-
titucionais.23 Segundo os autores, "quanto mais antiga e significativa
forem as tradições dogmáticas, menor será a disposição de se modifi-
"
nais de princípio institutivo. 22 car as estruturas dogmáticas já consolidadas", razão pela qual os civi-
listas sempre representaram a força oposta à tendência constitucionali-
3.2.3.2 O judiciário zadora impulsionada pelo Tribunal Constitucional. 24
Mas essa explicação baseada na simples tradição, ainda que pro-
O papel do judiciário é fundamental na constitucionalização do
direito. Bumke e Schuppert discorrem, por isso, longamente sobre cedente, não me parece suficiente para explicar eventuais idéias refra-
como os juízes e tribunais, especialmente o tribunal constitucional, se tárias ao processo de constitucionalização do direito. No âmbito da
inserem nesse processo. Essa discussão não será aqui reproduzida por doutrina jurídica há um embate que tende a não existir para os outros
duas razões principais: em primeiro lugar, porque se baseia em um atores da constitucionalização do direito, que é a luta pela preserva-
sistema concentrado de constitucionalidade que difere, em pontos ção da autonomia de cada disciplina. Nesse sentido, mesmo que a tra-
essenciais, do sistema misto brasileiro; mas, mais importante do que dição civilista não fosse uma tradição consolidada há tanto tempo,
isso, essa é uma discussão que permeia todo o resto do trabalho, já ainda assim poderia haver a tendência refratária mencionada, já que
que, como será visto, ao contrário do que ocorre com a atividade uma constitucionalização do direito civil pode não somente implicar
legislativa, diretamente vinculada à constituição, é na atividade judi- uma mudança de paradigma, uma mudança de racionalidade, mas
ciária, especialmente na aplicação, na interpretação e no controle dos também uma submissão metodológica do direito civil ao direito cons-
atos entre particulares que envolvam direitos fundamentais, que todas titucional.25 Esse é o centro do embate, não um mero problema de tra-
as dificuldades e peculiaridades da constitucionalização do direito se dição versus não-tradição.
revelam com clareza e profundidade. Como esse debate será travado
ao longo de todo o trabalho e, além disso, pressupõe alguns concei-
23. A mesma contraposição de forças pode ser sentida também na Suíça. Cf.,
tos ainda não firmados, não seria razoável introduzi-lo neste passo. sobre isso, especialmente Suzette Sandoz, "Effets horizontaux des droits fondamen-
taux: une redoutable confusion", Revue Suisse de Jurisprudence 83 ( 1987), pp. 214-
215 e Eugen Bucher, "DritJwirkung der Grundrechte?", Schweizerische J11risten-Zei-
3.2.3.3 A doutrina tung 83 ( 1987), p. 38. E necessário aqui salientar que essa é uma análise da
experiência alemã. Há casos, e o brasileiro é um deles, em que a doutrina civilista foi
Segundo Schuppert e Bumke, ainda que os atores principais da precursora do debate sobre a constitucionalização do direito. Cf., nesse sentido. espe-
constitucionalização do direito sejam o legislador e os juízes, o impres- cialmente as coletâneas de Gustavo Tepedino (coord.) Problemas de direito civil
cindível alicerce teórico para o processo só pode ser desenvolvido pela constit11cional, Rio de Janeiro. Renovar, 2000 e Judith Martins-Costa (org.). A
doutrina. Mas a sua participação no processo de constitucionalização reconstrução do direito privado, São Paulo. Ed. RT. 2002.
24. Cf. Schuppert e Bumke. Die Konstitutionalisierung der Rechtsordn11ng. p.
57. Cf.. nesse sentido, Eugen Bucher, "Drittwirkung der Grundrechte?", SJZ 83
21. Cf. Schuppert e Bumke. Die Konstitutionalisierung der Rechtsordnung, p. 47. ( 1987), p. 38, especialmente notas 4 e 5, que afirma que os civilistas. na Suíça e tam-
22. Cf.. sobre esse conceito. José Afonso da Silva. Aplicabilidade das nomzas bém na Alemanha. não se ocupam nem se preocupam com o tema.
constitucionais. pp. 121 e ss. 25. Cf., sobre esses pontos. especialmente 5.4.1, 5.4.2 e 5.6.3.2. abaixo.
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3.3 LOUIS FAVOREU Contrariando - conscientemente - o que o próprio autor havia


defendido em obras anteriores, quando afirmava que a constituição
Outro importante autor que se dedicou ao tema "constitucionali- era "um catálogo de receitas políticas de caráter vagamente obrigató-
zação do direito" foi Louis Favoreu. Ainda que o enfoque seja, como rio", na qual a ciência política teria mais importância do que o pró-
se perceberá, distinto e, principalmente, que muitos pontos estejam prio direito, 27 Favoreu afirma que a constituição passou a ser lenta-
intimamente ligados a peculiaridades do direito constitucional fran- mente "juridicizada" sob a influência do Conselho Constitucional. 28
cês que não estão presentes no sistema brasileiro, alguns tipos de A partir desse processo, os dispositivos constitucionais passaram a 'J•
constitucionalização e suas conseqüências, na forma como identifica- poder produzir plenamente seus efeitos nos outros ramos do direito.
dos por Favoreu, são perceptíveis também em outros países e têm
aplicação na discussão brasileira, especialmente aqueles relacionados
ao que Favoreu chama de constitucionalização-transformação e ao 3.3.1.2 Constitucionalização-elevação
que ele chama de unificação da ordem jurídica. A seguir, embora de A chamada constitucionalização-elevação caracteriza-se, no caso
forma bastante resumida, passo à exposição dos três tipos de consti- francês, por um "deslizamento" de matérias na repartição de compe-
tucionalização mencionados por Favoreu, para, em seguida, expor, tências entre a Constituição, a lei e o regulamento. Muito do que
também brevemente, algumas das conseqüências que ele atribui a antes era matéria regulamentar passou a ser matéria reservada à lei, e
esse fenômeno. muito do que era reservado à lei passou a ser matéria constitucional.
Houve, nesse sentido, um movimento ascendente nessa repartição
3.3.J Tipos de constitucionalização material. 29 E essa "elevação" na definição das competências legislati-
vas acaba por diminuir o poder do legislador ordinário, que perde
Ainda que não explicitamente assim caracterizados pelo autor, parte de sua liberdade de conformação da legislação ordinária, 30 e é o
parece ser possível afirmar que os três tipos estão em uma relação pro- Conselho Constitucional que surge como novo ator nesse processo.
gressiva, sendo um sempre uma espécie de condição para o tipo
seguinte. Com isso, como será facilmente perceptível, os dois primei-
ros tipo' 1l-m um significado mais histórico e mais vinculado ao siste- 3. 3.1.3 Constitucionalização-transformação
ma fr~11 Wl''· e podem parecer pouco significativos para o objeto deste
O que Favoreu chama de constitucionalização-transformação é o
estudo. f\.las o simples fato de terem servido como condição de surgi-
que mais propriamente se aproxima do que chamo de constituciona-
mento do terceiro tipo já justifica uma brevíssima explanação aqui. 26
lização do direito. E, por isso, ao contrário dos outros dois fenôme-
nos acima brevemente explicados, que tinham uma vinculação íntima
3.3. J. l Constitucionalização-juridicização com a evolução constitucional francesa, esse terceiro tipo de consti-
tucionalização tem um caráter mais universal e descreve um fenôme-
A constitucionalização-juridicização a que se refere Favoreu é,
na linha do que acaba de ser afirmado, mais uma criação de condições
para o processo de constitucionalização do direito do que uma cons- 27. Cf. Louis Favoreu e Loic Philip, Le conseif co11stitutio1111ef, p. 120.
titucionalização real. Com o termo, Favoreu pretende apontar, na ver- 28. Cf. Louis Favoreu, "La constitutionnalisation du droit", p. 36.
29. Cf. Louis Favoreu, "Rapport introductif', in Bernard Chenot et ai., Le
dade, um processo de juridicização da própria constituição. domaine de la foi et du reglement, p. 37. Cf. também, do mesmo autor, "La consti-
tutionnalisation du droit", p. 37.
26. Favoreu, além do mais, salienta que os diversos tipos de constitucionaliza- 30. Nas palavras de Favoreu. o parlamento perde o poder de autodefinição de
ção estão intimamente ligados e as interações entre eles não podem ser relegadas a sua competência, e a "reserva de lei" passa a se impor ao próprio legislador. Cf.
segundo plano. Cf. Louis Favoreu. ··La constitutionnalisation du droit"', p. 38. Louis Favoreu. "La constitutionnalisation du droit", p. 37.
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no ocorrido ou em vias de ocorrer em diversos países. 31 Segundo (a) As nonnas constitucionais tornam-se progressivamente o
Favoreu, a constitucionalização-transformação é caracterizada pela fundamento comum dos diversos ramos do direito. Favoreu toca aqui
"constitucionalização dos direitos e liberdades, que conduz a uma em um ponto central do processo de constitucionalização, de especial
impregnação dos diferentes ramos do direito e, ao mesmo tempo, à interesse para a interpretação do direito infraconstitucional. Segundo
sua transformação. Mas isso diz respeito também às instituições, ele, a impregnação dos diversos ramos do direito pelas normas cons-
especialmente as instituições administrativas e jurisdicionais ( ... )". 32 titucionais teria como efeito uma tendência à perda de importância
É a partir dessa transformação, ainda segundo Favoreu, que, com dos chamados princípios gerais do direito em favor das normas cons- ~

a mudança no conteúdo dos outros ramos do direito provoc"ada pela titucionais, efeito que, segundo o próprio Favoreu, ainda não foi ple-
constituição, que se passa a falar em direito constitucional social, namente assimilado pela jurisprudência.
direito constitucional penal, direito constitucional civil, entre outros. (b) A distinção entre direito público e direito privado é relativi-
Esse aspecto será discutido no fim deste trabalho. 33 zada. Com a unificação da ordem jurídica, Favoreu vê também uma
tendência à relativização da clássica distinção entre direito público e
3.3.2 Efeitos da constitucionalização direito privado. Essa tendência seria reforçada pela tendência men-
cionada acima, referente à perda de importância dos princípios gerais
O que aqui tratarei como "efeitos da constitucionalização" é o do direito em favor dos princípios constitucionais, já que a difusão
que Favoreu chama de "efeitos indiretos", já que os efeitos diretos desses "novos princípios gerais", porque desenvolvidos pelo Conse-
seriam os tipos de constitucionalização acima expostos. A mudança lho Constitucional, não é obstada pela dualidade de jurisdições exis-
se justifica pelo fato de que não me parece razoável denominar o pró- tente na França, ao contrário do que ocorre com a aplicação dos prin-
prio processo de constitucionalização e seus tipos como "efeitos da cípios gerais tradicionais, cujos desenvolvimento e aplicação sempre
constitucionalização". Os efeitos propriamente ditos são aqueles que ficaram compartimentados por causa dessa dualidade. 35
decorrem da constitucionalização em si e que serão analisados a
seguir. 34 3.3.2.2 Simplificação da ordem jurídica

3.3.2. 1 Unificação da ordem jurídica Por fim, Favoreu identifica a simplificação da ordem jurídica
como uma decorrência direta do processo de constitucionalização do
A unificação da ordem jurídica, como produto da constituciona- direito, pois, entre outras coisas, recoloca a constituição como inegá-
lização do direito, ocorre, segundo Favoreu, em duas frentes: vel "norma de referência" do ordenamento jurídico. Nesse sentido, o
eixo essencial da ordem jurídica deixa de ser a lei e passa a ser a cons-
31. O próprio Favoreu sublinha que sua análise foi fortemente influenciada por tituição e, mais importante, uma constituição com um regulador cha-
um trabalho de Michel Fromont sobre o direito alemão. Cf. Michel Fromont. "Les mado Conselho Constitucional que, como visto, ao superar a dualida-
droits fondamentaux dans l'ordre juridique de la RFA", in Recuei/ d'éwdes en hom- de de jurisdições do sistema francês, unifica e, ao mesmo tempo,
mage à Charles Eise11111a1111, pp. 59 e ss. simplifica o direito. 36
32. Louis Favoreu. "La constitutionalisation du droit", p. 37 (sem grifos no ori-
ginal).
33. Cf. 8.2.
34. Essa mudança é meramente metodológica. mas a justificativa se faz neces- 35. Cf. Louis Favoreu. "La constitutionnalisation du droit", p. 40.
sária porque esses tópicos são dedicados à exposição das idéias de Favoreu e não a 36. Além desses dois efeitos, Favoreu indica mais um: a moderni::.ação do direi-
uma crítica delas. Por isso é importante ressaltar que, a despeito da mudança na estru- to. Mas tal efeito se confunde com a própria idéia de constitucionalização e se
tura de sua apresentação, o conteúdo das idéias não sofre qualquer modificação subs- expressa basicamente nas mudanças nas práticas jurisdicionais administrativa. penal.
tancial. trabalhista e fiscal com vistas a se adaptar aos preceitos constitucionais.

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