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O que estaria ocorrendo com os antigos valores sociais da religião pentecostal? Durante
décadas, essa modalidade religiosa foi reconhecida pelo meio científico e pelos media
como sendo uma instituição que dera suporte sagrado ao gemido dos pobres e, através
do rito, criara uma teodicéia compensatória às ausências materiais vividas pelos
socialmente desfavorecidos. Como essa identidade de classe estaria sendo quebrada de
modo que a crença gradativamente deixa de ser exclusiva dos excluídos, passando a
exercer contínua atração sobre gente oriunda de setores que estão além da zona da
pobreza?
De outro lado indaga-se: o que aconteceu com os ideais religiosos dos segmentos
médios da população? Os grupos que estão para além da faixa da pobreza tendiam a ser
religiosamente orientados por determinações racionais, menos afeitos ao emocionalismo
e mais aptos à reflexão. O que mudou nos horizontes culturais de um número
considerável de membros desses grupos sociais que se deslocam aos recintos
pentecostais a fim de consumir bens mágicos e encontrar no misticismo religioso
subsídios para satisfação de demandas existenciais?
As instituições religiosas são de natureza histórica e se estabelecem historicamente em
função do diálogo com a cultura geral da sociedade. As alterações que acometem as
formas institucionais de uma crença ao longo de sua existência não são acontecimentos
exclusivamente particulares ao campo religioso. Não existe comunicação nem práticas
religiosas sem contexto; as formas de crer são respostas que nascem da interação das
pessoas com os ambientes. Sendo um acontecimento humano de natureza coletiva, a
crença é resultado de conjunturas sociais dispostas em etapas inter-relacionadas, dentro
de processos cumulativos, numa rede de fatos que exercem influência nas formas de
simbolização religiosa dos indivíduos (James, 1995 e Houtart, 1994). Evidentemente
que as alterações na produção e no consumo de bens pentecostais no Brasil não ocorre
fora de uma conjuntura cultural que em parte as explica.
Há possivelmente uma explicação mais ampla para os vínculos que associam o culto
pentecostal a determinados segmentos das camadas médias: o desencadeamento de
transformações nas características gerais da produção e do consumo social de bens de
salvação, sob influência de novas tendências de consumo do mercado[4]. Nesse
contexto de análise, a cultura do máximo consumo teria a sua versão pentecostal
traduzida pela teologia da prosperidade[5]. Isto aponta para uma possível interseção de
fatores envolvendo a natureza fluída da crença pentecostal e os novos anseios do
consumo social. A teologia da prosperidade é o mais recente produto da racionalidade
pentecostal e consiste num tipo de materialização do sucesso e da proeminência social.
Sua ética tem promovido um considerável deslocamento da ênfase doutrinária
pentecostal, subtraindo o acento direcionado à felicidade do espírito no porvir celestial e
priorizando as benesses do corpo no tempo presente. Sob a bandeira da prosperidade, os
segmentos médios estariam sendo atraídos, não mais em proporções numericamente
reduzidas, como ocorria antes da década de 80, na qual o convertido das camadas
médias renunciava aos valores próprios de sua classe e assimilava os valores das classes
populares sacralizados pela doutrina pentecostal:
Você pode escrever o que vou lhe dizer: Deus vai virar este país pelo avesso; usará
para isso, de maneira poderosa, uma multidão de homens de negócio. Deus está
libertando muitos homens de negócio, resolvendo muitos problemas de casais,
convertendo famílias. Quando atingirmos o Brasil de norte a sul esta nação vai mudar.
Muitos pequenos empresários se tornaram grandes empresários. Aprenderam o segredo
para que suas finanças crescessem. Sendo fiéis no dízimo e nas ofertas, as janelas do
céu são abertas, isto é, novas portas de negócios surgem à nossa frente. São incontáveis
os empresários que são abençoados, pelo fato de estarem agindo em harmonia com a
Palavra de Deus. É que ela não falha! E foi justamente isso que progressivamente foi
acontecendo. A Adhonep é hoje uma instituição nacional conhecida e respeitada de
norte a sul [6].
Eu tenho nível superior, sou formado em administração de empresas. Tive tudo. Fui
diretor do Grupo ... até o ano de 91, quando entramos em concordata. Passei por
diversos problemas financeiros, montei uma empresa e depois de quatro anos ela
quebrou. Foi quando eu tive um encontro com Jesus em 96. Separei-me da minha
esposa por dois anos e sete meses e Deus operou maravilhas e me deu meu lar de novo,
reconstruído. E hoje eu estou passando um processo de restauração. Estou recuperando
tudo aquilo que eu perdi, o que o devorador levou, Deus está me dando de volta. Então
a minha vida hoje, profissionalmente, está sendo restaurada dentro do princípio da
palavra de Deus[7].
As pessoas que estão se deslocando para as igrejas pentecostais, oriundas das camadas
médias, constituem as categorias sociais mais expostas às crises econômicas do que
quaisquer outras. No caso da Adhonep, seu quadro de associados é marcantemente
constituído de micro e médioempresários e de prestadores de serviços autônomos. Estes
estabelecem uma substancial identificação com a nova forma religiosa do discurso
pentecostal. A retórica sobre o sagrado segundo a visão teológica da prosperidade
contempla, portanto, pessoas situadas nos ramos da atividade produtiva e que vivem
intensamente sob estresse e sob uma luta em prol da conquista por espaços estáveis na
economia brasileira. Não é por acaso que a Associação de Homens de Negócio do
Evangelho Pleno agrega, sobretudo, os contingentes mais estressados da economia
brasileira. Para Costa (1974), os setores médios vivem sob o emblema do sacrifício, em
decorrência da necessidade de fortalecimento de sua ética ascensional. Na tentativa de
maximizar o seu poder socioeconômico, esses setores sociais se impõem pesados
sacrifícios em dinheiro, tempo, prazeres e emoções. Mas, se tais posturas contribuem
como suportes psicológicos de sua ética ascensional, por outro lado produzem toda uma
gama de traços de natureza depressiva e revelam um certo grau de indigência
emocional.
Os novos rumos que o mercado capitalista tem adotado nas últimas décadas, inspirados
na ideologia neoliberal, têm fragilizado cada vez mais os setores médios da sociedade
brasileira. Como fora dito, esses setores, em sua grande maioria, subsistem de capitais
investidos por terceiros na economia do País oriundos de investimentos nacionais e
internacionais. Fundamentada em privilegiar a consolidação dos monopólios mundiais,
a política capitalista vigente pouco contempla as demandas de investimento local,
antevê um plano de pagamentos de baixos salários e importa a tecnologia industrial,
reduzindo o uso local do quadro de técnicos de alta especialização (Costa, 1974).
[3] Jean-Pierre Bastian (1990) assevera que os adeptos pentecostais eram recrutados das
classes marginalizadas latino-americanas. Mendonça (1997) afirma que os atores do
movimento pentecostal nos Estados Unidos eram negros e mulheres das camadas
populares nacionais e estrangeiras; no Brasil, o movimento nasce no meio popular
(Belém-PA) e entre imigrantes (São Paulo).
[4] A partir dos anos 70, a sociedade ocidental agonizou sob o signo do desencanto com
os referenciais consagrados pela modernidade (Harvey, 1993). A crise dos modelos de
gestão institucional afetou as diversas áreas da vida social, inclusive a religiosa. As
instituições pareciam ter perdido o lugar, se descobriram anacrônicas e todas buscaram
refazer sua conexão com o novo tempo (Bauman, 1999). Esse ensejou um novo papel às
religiões e aquelas que alcançaram essas novas aspirações foram as que assimilaram as
novas regras de consumo da sociedade do espetáculo (Baudrillard 1995). No Brasil,
Júlia Miranda (1995) vê os novos cursos da vida religiosa marcados pelos diversos
movimentos inovadores, de natureza emocional, pela secularização e desafios políticos,
pressionando a adoção de estratégias de sobrevivência adequação das religiões..
[5] O surgimento da Teologia da Prosperidade data dos anos 1960 e possui berço norte-
americano. O seu mais destacado mentor é um pastor pentecostal da Igreja do
Evangelho Pleno, Kenneth Hagin, texano, da cidade de McKinney. Essa teologia afirma
que a prosperidade financeira é regida por leis espirituais; quando essas leis são
cumpridas realizam o sucesso e a prosperidade. A teologia da prosperidade produziu um
recente interesse no fiel pelas coisas do mundo, diferenciando-o da época em que o seu
interesse estava mais centrado no além. Essa nova tendência da crença refaz a imagem
social daquele fiel humilde e segregado, fixando a imagem de um fiel com vocação para
ser importante socialmente. Essa nova construção ética alicerçada na crença de que ao
crente fiel está reservado ocupar posição de destaque na vida social chegou ao Brasil na
década de 1970, introduzida inicialmente pela mão das novas igrejas pentecostais,
dentre as quais se destaca a Igreja Universal do Reino de Deus, e pela Adhonep
[6] Custódio Rangel Pires – Presidente da Adhonep - Declaração à imprensa de
Anápolis – Ibid, 2000.
[8] Felipe Patury e Luís Henrique Amaral – O quadro explica tudo: estudo do IBGE
mostra que, após uma fase de crescimento, a renda média real dos brasileiros diminuiu –
Revista Veja, edição 1745, ano 35, nº 13, de 03.04.2002.
[9] Adriana Negreiros, Pelipe Patury e outros – Como e por que eles venceram: o
sucesso dos pequenos empresários que conseguiram superar as altas taxas de
mortalidade dos novos negócios no Brasil - Revista Veja, edição 1745, ano 35, nº 13, de
03.04.2002.
[10] Marcos teóricos que podem ser úteis para a análise do evento: Weber (1992),
Tawney, (1971), James, (1995).
[11] Brandão demonstra que a cultura das organizações empresariais nas últimas
décadas do século XX passou a trabalhar com um forte apelo místico - Axiologia,
Religião e Secularização nos Negócios: Uma Análise da Competitividade em Pequenas
e Médias Empresas Brasileiras, 2000.
Bibliografia
COSTA, Bolivar. O Drama da Classe Média, Rio de Janieor, Paz e Terra, 1974.
HARVEY, David. A Condição Pós – Moderna, Sâo Paulo, Edições Loyola, 1993.
PIRES, Custódio Rangel. Fidelidade traz Sucesso, Rio de janeiro, Adhonep, 2000.
Revista Veja, O QuadroExplica Tudo, Editora Abril, Edição 1745, Ano 35, nº 13,
03.04.2002.
Revista Veja, Como e Porque eles Venceram, Editora Abril, Edição 1745, Ano 35, nº 13,
03.04.2002.