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O MONÓLITO ÂMBAR

CRÉDITOS
Autor: Monte Cook
Editora: Shanna Germain
Arte da Capa: Keiran Yanner

CRÉDITOS DA VERSÃO BRASILEIRA


Editores Chefes: Anésio Vargas Junior e Alexandre “Manjuba” Seba
Tradução: Helder Lavigne e Evelini Andrade
Revisão: Evelini Andrade, Anésio Vargas Junior e Alexandre “Manjuba” Seba
Diagramação: Felipe Headley e Natacha Castro
Todos os Direitos desta Edição reservados a New Order Editora.
© 2016 Monte Cook Games, LLC
Numenera e suas logos são marcas registradas de Monte Cook Games, LLC nos E.U.A. e outros países. Todos os jogos da Monte Cook personagens e nomes
de personagens, e as semelhanças distintivas dos mesmos, são marcas registradas de Monte Cook Games, LLC.

Este conto faz parte do Livro Básico de Regras de Numenera.

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O MONÓLITO ÂMBAR

O MONÓLITO ÂMBAR
O Catecismo da Tradição:
Toda glória aos criadores da verdade e do entendimento.
Louvor aos inovadores do aço e do sintético.
Louvor aos modeladores da carne, do osso e da mente.
Glória àqueles que reesculpiram a terra que dá sustentação e o sol que dá vida.
Louvor aos emissores dos sinais, que até hoje sussurram nos ouvidos das máquinas e dão vida ao inanimado.
Louvor àqueles que viajaram para as estrelas e para os reinos além das estrelas.
Toda glória aos criadores da verdade e do entendimento.

Vamos então retomar a recitação da Crônica Sagrada do Pai Altíssimo Calaval, Papa Âmbar e fundador da Cidadela do
Conduíte e da Ordem da Verdade, conforme escrita por sua sobrinha-neta, Doroa da Canção Silenciosa:

CAPÍTULO IX: VENTANIA DE FERRO Sacerdotes dos Éons e seu conhecimento de numenera
poderiam impedir incidentes como esse. Calaval procurou juntar-
Em que aprendemos a lição da dedicação. se às suas fileiras.
A história ensina que as antigas raças que habitaram a terra
Calaval subiu a colina, seu thumano de estimação ao lado.
antes do Nono Mundo detinham grande poder. Esse poder veio
Fragmentos de tijolos antigos viravam cascalho a cada passo. No
do conhecimento. Pode ser que não seja possível para Calaval,
topo, ele viu o obelisco âmbar sobre o qual a velha havia falado.
Estendia-se ao céu de forma impossível. A luz amarelo-avermelhada Sacerdotes dos Éons ou qualquer outro na terra do presente dominar
do velho e cansado sol capturada nos seus ângulos elevados acima todo esse conhecimento, mas certamente existem segredos perdidos
da planície da ruína. Mesmo após todos esses éons, a máquina no no passado sobre os quais eles poderiam construir um futuro.
coração do obelisco ainda vibrava com energia. Anéis orbitavam o Calaval tinha certeza disso. Só tinha de descobrir como. Ou
dispositivo, girando com precisão antinatural. melhor, redescobrir. Ele tinha um plano sobre como começar.
O thumano sentou-se em suas ancas, pernas multiarticuladas Uma nuvem vermelha surgiu no horizonte, além do obelisco
dobrando-se sob ele. Ele olhou para seu mestre com olhos no céu. Alguém se movendo pela planície ressequida? Certamente
negros e estreitos. Poeira vermelha cobriu a peluda crista no alguma coisa grande, se esse fosse o caso. Talvez um rebanho.
topo de sua cabeça. Talvez um bando de saqueadores.
Calaval colocou sua pesada mochila no chão, próxima a ele, Feddik ululou. A nuvem assomou, maior. Nenhum rebanho.
exausto. Ele se abaixou e limpou a sujeira e a poeira dela, e Nenhuma criatura, afinal — uma tempestade de areia.
então, de suas roupas. Finalmente, limpou a poeira vermelha do Calaval desembalou seu filtro do deserto e o colocou sobre a
thumano. “Não se preocupe, Feddik”, ele sussurrou. “Você não boca. Ajustou então outro sobre o nariz e a boca de Feddik. A besta
terá que entrar. Eu terei que fazer isso sozinho”. deu patadas nele algumas vezes, mas rapidamente o aceitou. Eles já
O olhar fixo de Feddik, como sempre, fez parecer como se ele haviam passado juntos por tempestades de poeira antes.
tivesse entendido. A planície árida oferecia pouco abrigo. Calaval continuou
Após um breve descanso, a dupla retomou sua jornada. As andando, pois havia poucas outras opções. O thumano ficou
pessoas da última vila, Cordilheira Nublada, tinham chamado
muito perto. A parede de vermelho crescente engolfou o obelisco
isso de Planície de Tijolos. A falta de criatividade não surpreendeu
e abateu-se sobre os exploradores como um monstro. Através de
Calaval. Um povo simples e sem uma clave, eles labutavam nos
campos com rebanhos de shereh em vales férteis ao sul. Mas deram seu filtro, um odor chamou a atenção do jovem. Refrescou uma
a ele comida em troca de algumas bugigangas e shins que ele memória. Provocou medo.
levava consigo, deram-lhe também um lugar para dormir, portanto “Ventania de Ferro!”
foi difícil sentir qualquer coisa além de gentileza em relação a eles. Calaval procurou, impotente, por algum tipo de abrigo. Mas não
Vilas isoladas de Sacerdotes dos Éons com frequência se tornam havia onde se esconder. Não da ventania.
perigosamente insulares e temerosas com estranhos. Uma vez, ele Ele permaneceria firme diante da destruição de uma tempestade
chegou a uma comunidade que tinha tropeçado em uma instalação de areia, mesmo que isso rasgasse sua carne, mas Ventania de Ferro
escondida de mundos anteriores enquanto escavava um poço. era algo completamente diferente. Ela não apenas rasgava a carne,
Eles inadvertidamente liberaram um gás nocivo, transformando a ela a alterava. Dentro da ventania existiam partículas produzidas pela
população inteira em canibais maníacos e super-humanos. Calaval
numenera, muito minúsculas para que um homem pudesse ver.
mal conseguiu escapar com vida.
Calaval não estava realmente certo de que “partículas” era a palavra

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certa. Criaturas? Máquinas? Isso ia além do entendimento. Calaval empurrou Feddik de cima de si e levantou. Sua postura
Sua mochila foi ao chão com um baque. Ele vasculhou seu não estava firme, mas nem se deu conta. Olhava apenas para seu
conteúdo enquanto o thumano ululava. Finalmente, ele achou uma velho companheiro se contorcendo, lentamente, no chão. A dor era
pequena sovela de ferro e um dispositivo que parecia ter sido feito para evidente em cada fibra da criatura, nova e velha.
encaixar com firmeza no punho cerrado de uma pessoa, se a pessoa Com um lamento, Calaval sacou, de sua bainha de couro, a
tivesse seis dedos. Em dois lugares através de sua superfície sintética, longa faca que estava ao seu lado.
pequenos fios ficavam expostos. Calaval se agachou. Prendeu a respiração. Lágrimas em torrente por seu rosto. Queria
Um pequeno painel de vidro em um dos lados exibiu símbolos fechar os olhos, mas temia que sua pontaria pudesse falhar. E
luminosos quando ele pressionou um pequeno botão em que seu então encarou Feddick. Observava os olhos de seu amigo enquanto
polegar se encaixou. Ele não sabia o significado dos símbolos, cortava pela parte não metálica de seu pescoço. O sangue formou
mas sabia que quando um símbolo que lembrava um pouco uma poça em volta da criatura. Que morreu em silêncio.
um pássaro voando piscasse, ele precisaria pressionar o botão Calaval não amaldiçoou os deuses que sua mãe lhe havia
novamente. Ele olhou para cima e viu a turva nuvem vermelha apresentado, nem rezou a eles por misericórdia. Não que ele não
se aproximar. Ignorando o suor no dorso de seu nariz, Calaval acreditasse nas vastas inteligências não humanas vivendo no céu
empurrou a sovela para cima, pela cavidade entre os fios expostos acima — ele os tinha visto orbitando, noite após noite, com o
perto da parte inferior. O dispositivo tremeu um pouco e surgiu telescópio de Yessai — só não acreditava que eles controlavam
um som crepitante e o cheiro de ar queimado. De repente, acontecimentos. Acreditava em causa e efeito. Não em deuses.
um zumbido engolfou Calaval e os nervos por toda sua carne Mesmo as coisas que habitam a esfera de dados foram criadas,
formigaram desagradavelmente. A sovela escorregou de sua mão. o resultado do conhecimento e do entendimento de alguém. Ele
Ele apertou o dispositivo na mão com força e puxou Feddik para acreditava no universo e suas leis, colocados em movimento
perto. O thumano se contorceu enquanto o ar em torno deles bilhões de anos atrás.
bruxuleava. Os pelos nos braços de Calaval se arrepiaram e sua Só porque as pessoas desse mundo chamavam isso de magia
pele formigou. O ar bruxuleante cheirava como uma tempestade. não significava que ele não podia ver além. Isso foi o que os
Ele sabia que vinha de um tipo de halo ao seu redor. Uma aura. Um Sacerdotes dos Éons fizeram, e — por mais difícil que fosse aceitar
campo. Ele não entendia, mas tinha a esperança de que o campo — é o que ele também faria. A numenera, assim os sacerdotes
repeliria as coisas invisíveis e perigosas na Ventania de Ferro. a chamavam, despertou por causa do intelecto dos povos de
A tempestade numenera que se aproximava não deu muito mundos anteriores. Parecia milagrosa.
tempo para que ele se perguntasse se isso funcionaria. O ar Parecia amaldiçoada.
tornara-se, repentinamente, vermelho, agitado. O gerador em sua
mão vibrou em uma terrível frequência. Isso entorpeceu sua mão
e, então, seu braço. Concentrou-se em se agarrar a ele, embora
não pudesse mais senti-lo. Disse a si mesmo que os bilhões de
guinchinhos na ventania eram apenas sua imaginação.
A Ventania de Ferro turvou ao seu redor, mas não o machucou.
Com um ulular que, rapidamente, tornou-se um uivo, Feddik se CAPÍTULO X: SOZINHO
contorceu no agarrão, escapando. Calaval gritou sem emitir som.
Os membros e a lateral esquerda da besta emergiram da distorção
Em que aprendemos a lição da perda.
bruxuleante e entraram na ventania. Lamentavelmente, o Capítulo X está perdido para nós. O
Calaval não podia ver o que aconteceu e nem podia, como antes, conselho acredita que continha detalhes do luto de Calaval
escutar seu companheiro. O corpo do thumano se debateu. Calaval por seu animal e, logo, descrevia sua compaixão e capacidade
agarrou um punhado de pelo do Feddik e segurou como pôde de amar. Provavelmente também detalhava sua inteligência
enquanto o dispositivo em sua outra mão entorpecia seu corpo fantástica (particularmente sua memória quase perfeita) e sua
cada vez mais, enfraquecendo cada músculo que ele tinha. grande sabedoria, frequentemente estando bem preparado para
Ele fechou os olhos. contingências que a maioria das pessoas jamais teria previsto.
A ventania passou mais rapidamente do que qualquer Em vez de seu conteúdo nos enriquecer, nos faz contemplar o
tempestade de areia o faria, mas não tão rapidamente para Calaval. significado do conhecimento perdido. Não existe perda maior.
O dispositivo caiu de seu punho contorcido e entorpecido no solo Toda glória aos criadores da verdade e do entendimento.
pedregoso. Ele desabou inconsciente, mas foi cuidadoso ao puxar
Feddick para cima de si em vez de cair por cima da besta.
Feddick soltou um gemido plangente, diferente de qualquer
coisa que Calaval já ouvira.
Quando pôde enfrentar o acontecido, Calaval levantou a cabeça
para olhar para seu animal de estimação. Centenas de minúsculos
tentáculos vermiformes se debatiam onde, antes, havia dois
CAPÍTULO XI: ENTRANDO NO OBELISCO
membros esquerdos de Feddik. A carne em torno daquelas patas Em que aprendemos a lição da perseverança.
e por todo o lado esquerdo tinha a aparência e aspecto de placas
metálicas. Orifícios que Calaval não conseguia compreender O Monólito Âmbar se erguia bem acima de Calaval. Quase
irrompiam e fechavam nas novas partes da besta. O lado esquerdo diretamente embaixo da máquina obelisco, o zumbido que o vasto
de sua face se contorcia com olhos que abriam e fechavam, como mecanismo giratório produzia abafava os sons de sua própria
se uma multidão de criaturas menores tivesse se instalado em sua respiração cansada. Os anéis rotatórios se moviam e vibravam
cabeça. em um ritmo que o animava. Era exatamente o que ele estava
A ventania tinha reescrito o thumano. Cada pedaço de sua carne procurando. A velha de Cordilheira Nublada tinha falado a verdade.
que a ventania tocou, mudou. Calaval tinha apenas um último truque em sua bolsa. O resto

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de seu conteúdo era de suprimentos mundanos, ferramentas um fôlego que não conseguia obter. Sua mente vacilou e ele teve
e equipamentos. Mas ele tinha guardado um pedaço menor de que lutar para manter o foco. Finalmente, pois se não o fizesse,
numenera exatamente para este momento. De sua bolsa, ele sabia que em breve desmaiaria e cairia, ele soltou o próprio pulso
puxou um cinto de tela metálica e o prendeu em torno de sua e bateu na escotilha para tentar encontrar uma forma de abri-la.
cintura. Um dispositivo metálico na lateral do cinto tinha alguns Essa tarefa, pelo menos, foi surpreendentemente simples. Uma
controles simples. Às vezes, pedaços de tecnologia como esse — alavanca facilmente movida produziu um sibilo repentino, e então,
cifras, como a maioria das pessoas os chamam — pareciam ter a escotilha se abriu lentamente. Calaval lutou para se pendurar
sido partes de outros dispositivos maiores. Aqueles que vieram à escotilha em movimento. Quando ela parou, ele girou o corpo
antes acharam um modo de usá-las de um jeito temporário e para olhar pela abertura que surgira. Estava escuro, mas uma
geralmente uma só vez, de modo precário e correndo alguns escada metálica oferecia um caminho poço âmbar adentro. Com
riscos. Calaval conhecia um monte de truques. Ele não entendia sua mão livre ele se agarrou no degrau inferior, mas quando fez
totalmente como eles funcionavam. Ninguém que ele conhecia isso seu outro braço se soltou.
entendia. Mas ele conhecia o bastante para tentar esse interruptor, Novamente, uma dor terrível percorreu seu corpo, do ombro ao
ou cruzar aqueles fios, ou procurar por uma tela exibindo esse quadril. Ele mordeu a língua, o que pode ter sido a única coisa que
símbolo. O bastante para, às vezes, conseguir o efeito que queria. o manteve consciente. Seu braço pendia inútil. Ele não tinha ideia
Algo que pudesse usar. Como agora. de como escalaria a escada.
Exceto que o cinto não era assim. O cinto, Calaval tinha certeza, Ele fez a única coisa que poderia conceber, ergueu-se o máximo
fora planejado precisamente para o propósito para o qual ele estava que pôde e jogou uma perna para cima para enganchá-la em um
prestes a usar. O único porém fora a forma como o vestia. O cinto foi degrau. Após algumas tentativas, teve sucesso. Mas quando o
obviamente projetado para ser usado por uma criatura não humana. fez, sua mochila afrouxou e despejou seu conteúdo pelo longo
Calaval manipulou os controles. Silenciosamente, seus pés caminho até o chão.
deixaram o chão. Pairando, ele flutuou para cima. Gentilmente, Pensamentos sobre amaldiçoar os deuses vieram outra vez à
o cinto o removeu do domínio da gravidade. Ele planou ainda sua mente. Novamente, ele os rejeitou.
mais alto. A paisagem de tijolos vermelhos alargou-se abaixo
dele. Um vento quente repuxou suas roupas de couro curtido —
seu casaco, seu chapéu. Roçou contra seu rosto exausto e com
a barba por fazer.
Acima dele, o Monólito Âmbar se aproximava, e ele pôde
ver que, como o próprio nome indicava, a estrutura castanho-
amarelada apresentava uma superfície translúcida em contraste CAPÍTULO XII: CAÇADO NO ESCURO
com o mecanismo metálico prateado em seu coração. O
obelisco apresentava um topo e fundo pontiagudos, mas Em que aprendemos a lição da engenhosidade
o centro era um maciço dispositivo mecânico com anéis
giratórios orbitando em seu entorno de forma distorcida, mas, A subida foi longa e agonizante. Cada superfície ao redor de
de alguma forma, em ângulos precisos. Calaval vibrava ligeiramente com um constante tamborilar em
Conforme ele foi se aproximando — provavelmente a centenas de harmonia com os anéis giratórios do coração central do monólito.
metros acima do solo — o ponto mais baixo do obelisco flutuante
Até o ar parecia se agitar, ainda que ligeiramente. Exatamente o
apresentou uma escotilha metálica para Calaval. Controlar sua
ritmo que ele tinha memorizado. Aquele que estivera procurando.
posição horizontal mostrou algumas dificuldades. Mais uma vez,
a posição do painel de controle do cinto sugeriu um usuário com O topo do poço âmbar oferecia uma meia-luz muito tênue
um tipo físico muito diferente do dele. Seu braço ficou dolorido para se poder enxergar, e Calaval tinha perdido seus globos
ao se esticar para baixo e para os lados para tocar os minúsculos luminosos quando sua mochila caiu. Com a mão boa, ele puxou
painéis luminosos. O vento tornava as coisas ainda mais difíceis. uma caixa de fósforos do bolso e riscou um. Ele confirmou que
Calaval manobrou para a escotilha, mas então a brisa o carregou suas proximidades estavam seguras, e então jogou o fósforo fora,
novamente na direção errada. A situação insinuava o quanto podia desabando inconsciente por um longo tempo. Ele sabia que tinha
ser difícil ser uma folha ao vento com um objetivo. Ou mesmo que recolocar o braço de volta na posição certa. Quando era jovem
uma borboleta. Calaval se atrapalhou com os controles do cinto na fazenda, viu seu pai em uma situação parecida. Teve que ajudá-lo
repetidamente, ávido pela escotilha a cada vez que se aproximava, e a consertar seu ombro.
falhando em alcançá-la cada vez. Hoje Calaval teria que fazer isso por conta própria. Ele lutou
Ele começou a se preocupar com quanto de energia o cinto
para ficar em pé. A dor fez sua cabeça girar e ele quase caiu.
tinha. Quanto tempo a duração do efeito de nulificação da
Apalpou a parede na meia-luz âmbar. Ele usou seu braço
gravidade oferecia.
bom para posicionar seu membro deslocado. Respirou
Com seus braços doloridos, cada um por se esticar em direções
diferentes, em incômodas posições diferentes, ele tentou uma entrecortadamente três vezes. Sem parar para pensar, se jogou
última vez e finalmente manobrou próximo o bastante para passar contra a parede.
o braço pela alça da escotilha como um gancho. O som incoerente Uivou e caiu no chão, contorcendo-se em agonia.
que ele produziu foi um gemido de exasperação e um brado de Uivou mais alto na segunda tentativa. Após perceber que esta
triunfo a um só tempo. tentativa tampouco tivera sucesso, apagou por um tempo, sem
Então a energia do cinto acabou. fazer ideia de quanto.
Seu próprio peso repentino puxou bruscamente seu braço, A terceira tentativa teve um resultado parecido.
torcendo-o com um estalo doloroso. A agonia alastrou-se por seu Finalmente, a quarta tentativa deu resultado. Não apagou,
ombro e por seu lado. Agarrou o pulso com a mão livre para tornar mas desabou, repousando em seu próprio suor pelo que pareceu
mais ou menos uma hora. Uma vez recuperado, se forçou a ficar
mais difícil que ele escorregasse, mas quase desmaiou com a dor.
novamente em pé. Firmou um pouco melhor a postura. Respirou
Pendurado na parte inferior do obelisco, ele ofegou em busca de
fundo três vezes para se recompor mental e fisicamente. Por fim,

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decidiu explorar. apenas vez ou outra. Mas suas quedas eram mais longas, seus
Afinal de contas, ele tinha um motivo para estar lá. movimentos mais habilidosos.
Ele se viu em uma rede labiríntica de túneis que levava a vastas Calaval chegou ao fundo do poço, mas sabia que a coisa o
e incompreensíveis máquinas. Ou talvez, pensou, partes de uma alcançaria dessa vez.
única máquina maior. Resolveu que o último pensamento parecia Na verdade, contava com isso.
ser o mais provável. Ele agarrou o tubo de sintético de extensão serrilhada e voltou
Após desperdiçar metade de seus fósforos em suas explorações, sua ponta para cima, uma extremidade fincada no chão.
encontrou uma pilha de sucata de sintético de vários tamanhos A besta caiu em cima do tubo sem demora, seu peso
e cores. A maioria canos, sendo alguns ocos e, outros, cheios de partindo-o em dois e arremessando Calaval ao chão. A cabeça de
cabos e fios. Alguns estavam quebrados e serrilhados. Calaval Calaval bateu na parede. Na escuridão, a visão se anuviou.
encontrou um cano oco de sintético branco de mais ou menos Ele se encontrou deitado sobre o trêmulo chão metálico,
sessenta centímetros. Ele usou sua faca para cortar seu chapéu de incapaz de enxergar. O som de sua própria respiração foi abafado
por outro som — arquejos ritmados, úmidos, gorgolejantes, que
couro em tiras. Criou uma tocha de improviso colocando uma tira
não estavam muito distantes.
dentro do cano. Ela não duraria muito e produzia muita fumaça,
Calaval acendeu um fósforo. Sob a luz, ele viu a coisa-primata,
mas duraria mais do que um fósforo e ele tinha muitas tiras de
com placas de metal e partes carnosas integradas em um todo
couro e de tecido para usar.
remendado. Não havia nada de bonito, caprichoso ou elegante
Ele escalou outro poço, e após vagar um pouco, mais outro. A na feitura daquela coisa. Nem mesmo suas partes orgânicas
cada subida, sua tocha falhava e ele tinha de reacendê-la na meia-luz pareciam seguir qualquer tipo de ordem natural. Gavinhas que
quando chegava ao topo. Logo após a terceira escalada, um som pareciam pelos retorciam-se por seu corpo, suas extremidades
alto em staccato irrompeu, estupefazendo-o. Ele deixou a tocha cair terminadas em minúsculas bocas esfincterianas. E cada boca
e a tira de couro mal acesa se soltou. minúscula ululava em agonia.
O estranho zumbido irregular vinha acompanhado de luz Pelo centro de seu extenso torso se projetava o tubo quebrado.
piscante de um azul pálido. E outra vez. O impulso da descida da criatura cravou a haste quase um metro
Nessas breves ocasiões iluminadas, ele viu algo se mover. Um em suas vísceras. A besta não se moveu. Cada respiração era
painel se abriu em uma parede. Mais luz de dentro. Com um difícil e cheia de fluido. Sangue misturado a algum líquido leitoso,
sibilar profundo, uma silhueta emergiu. Retiniu. Zumbiu. Rangeu. empoçado ao redor de seu corpo caído de bruços.
Membros antigos se estenderam para a vida. Metal, carne e O medo de Calaval virou remorso. Pena. Ele achou que a melhor
fiação oscilante na forma de um primata que se agigantava. Pelos coisa que poderia fazer era colocar um fim no sofrimento da besta.
desgrenhados tremulavam sobre aquilo, como se cada filamento Quis dar uma morte rápida a ela.
preênsil tivesse vida própria. Olhos brancos fitaram de cima de um Ele não tinha ideia de como fazer isso. Sua faquinha, agora em sua
focinho largo, símbolos rolando por eles de um lado para o outro. mão, parecia ridiculamente pequena e frágil para a tarefa. Ele chegou
Calaval não esperaria para ver mais. Ele saltou poço abaixo, se mais perto sob a luz de um novo fósforo, mas a criatura uivou e lutou
jogando pelos degraus, deixando a gravidade fazer o seu trabalho. para se mover, o que lhe causou ainda mais dor.
Calaval suspirou. Seus pensamentos vagaram para Feddik.
Seu ombro ainda estava frágil, mas ele o ignorou.
Sentou-se no chão. Ficou com a criatura até seu último suspiro.
Um uivo vindo de cima o fez tremer até os ossos. A forma
sombria encobriu a luz que vinha de cima.
Ele desceu mais rápido. Imprudente, ele se deixou cair poço
adentro. A cada queda ele arriscava deslocar o braço, mas se
guiava pelo terror, não pela dor.
No fundo do poço, ele refez seu caminho pelo tortuoso labirinto CAPÍTULO XIII: CORAÇÃO DA MÁQUINA
de conduítes de acesso à máquina. Ele ouviu a coisa pousar atrás
de si com um rosnar vigoroso. Estava certo de que também podia Em que aprendemos a lição da compreensão
sentir o cheiro da besta. Almíscar e óleo de máquina misturados a
alguma coisa que não conseguiu identificar.
e do entendimento.
Na escuridão quase total, ele disparou pelos corredores, uma
Nas partes mecânicas do guardião morto, Calaval encontrou
das mãos percorrendo as paredes. A coisa guardiã que despertara
alguns pedaços facilmente removíveis que, com algumas
estava atrás dele, rastreando-o. Talvez pelo som? Calaval tentou ser
pequenas modificações e adaptações, poderia usar. Se não
o mais silencioso que podia, mas logo desistiu e deu preferência
tivesse deixado cair a maioria de suas ferramentas com o resto
à velocidade. A coisa podia farejá-lo. Podia até seguir o rastro de
de seu equipamento, talvez pudesse ter feito mais.
calor de seus passos. Ele sabia que tais coisas eram possíveis.
Talvez a mais importante delas fossem os módulos
Finalmente, ele alcançou a pilha de sucatas de tubulação.
luminosos nos olhos da criatura que, uma vez removidos,
Depois que os pegou, alguns canos, no entanto, pareciam muito
proporcionariam bem mais luz que sua pequena tocha. Ele sabia
leves para que fossem usados como armas. Em vez disso, pegou
que sua iluminação desapareceria, mas, nas condições de suas
um quase de seu tamanho e voltou a correr. A coisa bestial
necessidades, duraria até que deixasse de ser importante.
cambaleou cada vez mais perto.
Com essas novas cifras, subiu de volta pelos mecanismos
Calaval se esticou poço abaixo e jogou o tubo. Depois, o
internos do obelisco. Agora, se arrastava lentamente.
seguiu, novamente mais em uma queda mal controlada do que
Silenciosamente. Mais nenhum guardião apareceu.
em uma descida. Parou para descansar e lamentou não ter comida.
A criatura veio atrás dele. Dessa vez mais perto, aproximando-
Dormiu.
se. Como Calaval, ela estava se jogando, usando os degraus
Gradualmente, subiu por todo o maciço monólito, até que o

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tremor em cada superfície alcançasse de sua mão.


uma poderosa intensidade. Ao chegar ao Ele a empurrou na direção do painel,
topo do vigésimo terceiro poço que subiu, que se deformou com um estrondo alto
ele determinou que tinha encontrado e criou vincos como papel. Guiando o
o coração da máquina. Nesse nível, dispositivo que servia como um punho
começou a explorar a sério, observando invisível, ele recuou e o painel foi
cuidadosamente tudo o que encontrava. arrancado de seus suportes.
O cilindro luminoso alongava- Calaval jogou o dispositivo no chão
se seis metros de um lado a outro, próximo aos suportes com satisfação.
a nove metros de altura. Feito de A placa de vidro recém-exposta chamejou
metal azul, emitia uma luminosidade luz e vida, exibindo símbolos e diagramas.
branco-azulada. Flutuava a sessenta Calaval não reconheceu quase nada,
centímetros do chão e pairava a sessenta mas após algumas tentativas, tocando
centímetros do pé-direito. Nada de a tela e movendo os símbolos como se
todo o maquinário que o cercava estava fossem objetos em vez de pedaços de luz,
conectado a ele, mas Calaval sabia que rapidamente achou um jeito de ativar a porta
ele estava conectado por campos de do cilindro.
força e energia invisíveis. Virando-se para encará-lo, ele assistiu
Ele secou o suor da testa. O interior do a parte quadrada do coração da máquina
monólito era quente e úmido. O ar era simplesmente sumir de vista.
viciado. Sufocante. Ele precisava entrar Ele revelou um interior vazio, mas bem
naquele cilindro. iluminado.
Ele estudou sua superfície por horas, Sem hesitar, Calaval entrou no cilindro.
procurando por um painel de acesso ou uma escotilha oculta. E então estava em outro lugar.
Nada encontrou. Sem realizar transição ou se deslocar, Calaval tinha se movido por
Dormiu novamente. Irregularmente. vastas distâncias. Como esperava. Há muito tempo ele aprendeu
Vasculhou as paredes da extensa câmara ao redor do cilindro. sobre esse lugar.
Ele as examinou em busca de mecanismos que pudessem abrir Bem acima dele se estendia um domo transparente. Através
ou dar acesso ao seu interior. Finalmente, retornou ao cilindro dele, olhou para o mundo, exibido diante dele como a joia central
e esquadrinhou novamente sua brilhante superfície vibratória. de uma vasta paisagem de céu noturno. Ou melhor, raciocinou,
Após muito esperar, ele descobriu que havia um painel em sua olhava o mundo de cima. Pois sabia que estava em uma cidadela
superfície — uma porta — quase impossível de perceber. Mas não criada em éons passados por mãos inumanas e colocada no alto,
havia uma forma óbvia de abri-la. permanentemente no céu.
Guiado por essa nova descoberta, ele voltou ao perímetro Lendas falavam de uma cidadela no céu, tão alta que mal era visível
da sala que estava repleta de máquinas. Ele seguiu linhas de da terra. Calaval a tinha visto no telescópio de Yessai. E a velha em
conduítes que corriam por todas as suas superfícies, do teto ao Cordilheira Nublada tinha lhe dado o segredo de como acessá-la.
chão. Verificou que os controles de alguma função importante Aqui, Calaval sabia, estavam os verdadeiros segredos da numenera.
estavam por trás de um largo painel de metal, mas quando tentou Talvez — apenas talvez — pudesse, aqui, falar com uma das vastas
levantá-lo com sua faca, a lâmina de ferro se partiu. inteligências surgidas nos mundos anteriores. Se pudesse fazer com
Sentou-se no chão, exausto e faminto. que suas perguntas fossem compreendidas, poderia encontrar o
“É claro”, disse em voz alta. Sacou um dos componentes que conhecimento que buscava para se juntar ao Sacerdócio dos Éons e,
removera da criatura guardiã: uma arma que fora construída talvez, até se tornar um membro proeminente em suas fileiras.
em um de seus braços. Ele poderia realinhar seu poder para Assim termina a segunda parte da Crônica Sagrada do Papado
fazer um uso diferente para si. Deslizando para abrir um Âmbar. Mal sabia Calaval que o conhecimento que adquiriria o tornaria
pequeno painel em uma extremidade do dispositivo, moveu um não um Sacerdote dos Éons, mas o maior entre eles: o pai altíssimo, o
pequeno interruptor apontando-o para o painel. Ele nada viu, maior dos Sacerdotes dos Éons e fundador da Ordem da Verdade.
mas sentiu a coisa do tamanho de um punho quase escapulindo

Toda glória aos criadores da verdade e do entendimento.


Louvor aos inovadores do aço e do sintético.
Louvor aos modeladores da carne, do osso e da mente.
Glória àqueles que reesculpiram a terra que dá sustentação e o sol que dá vida.
Louvor aos emissores dos sinais, que até hoje sussurram nos ouvidos das máquinas e dão vida ao inanimado.
Louvor àqueles que viajaram para as estrelas e para os reinos além das estrelas.
Toda glória aos criadores da verdade e do entendimento.

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O NONO MUNDO É CONSTRUÍDO SOBRE OS OSSOS DOS
OITO ANTERIORES E, PARTICULARMENTE, DOS ÚLTIMOS
QUATRO. TOQUE O PÓ, E VOCÊ DESCOBRIRÁ QUE CADA
PARTÍCULA FOI MANUSEADA, MANUFATURADA OU
CULTIVADA E, ENTÃO, TRITURADA DE VOLTA A DRIT — UM
SOLO FINO E ARTIFICIAL — PELO PODER INEXORÁVEL DO
TEMPO. OLHE PARA O HORIZONTE — AQUILO É UMA
MONTANHA OU PARTE DE UM IMPOSSÍVEL MONUMENTO
PARA O IMPERADOR ESQUECIDO DE UM POVO PERDIDO?
SINTA ESSA SUTIL VIBRAÇÃO SOB SEUS PÉS E SAIBA QUE
ESSES MOTORES ANTIGOS — VASTAS MÁQUINAS DO
TAMANHO DE REINOS — AINDA OPERAM NAS ENTRANHAS
DA TERRA. O NONO MUNDO É SOBRE DESCOBRIR AS
MARAVILHAS DE MUNDOS QUE VIERAM ANTES, NÃO POR
CAUSA DELES EM SI, MAS COMO MEIOS DE MELHORAR O
PRESENTE E CONSTRUIR UM FUTURO.

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