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Resumo: Este artigo aborda o movimento con- Abstract: This article addresses a contempo- Maria José Lima
temporâneo da psicologia clínica no Brasil, em rary movement of the clinical psychology in Bra- Psicóloga pela USP, terapeuta
seus entrelaçamentos com as questões sociais. zil, on its twists with social questions. It presents familiar, doutora pelo Núcleo
Traça um percurso que parte de críticas e preo- a path from the criticism and worries about the de Família e Comunidade
cupações com a distância entre suas práticas e da PUC-SP, mediadora pelo
distance of its practices from the population, in
a população, e aponta as terapias pós-modernas Conversações e professora
direction of the postmodern therapies, pointing da pós-graduação em
como possibilidade de superação dessa separa-
out the different conceptions of the social that Intervenção Familiar pela
ção ao pontuar as diferentes concepções do so-
emerges thence. It advocates the designation of UNITAU.
cial presentes nessa discussão. Assim, defende E-mail: majo.sjc@gmail.com.
psychological clinic as social action, based on
a designação de clínica psicológica como ação
social, resultante da (re)significação tanto da clí- revised concepts of the clinic and of the social,
derived from the systemic theory in accordance Rosa Maria Stefanini
nica como do social, com base no pensamento
with the post-modern paradigm of science. de Macedo
sistêmico novo-paradigmático.
Pós Doutora em Terapia
Palavras-chave: pensamento sistêmico no- Keywords: systemic theory, new paradigm of Familiar, coordenadora
science, contemporary psychological clinic, so- do Núcleo de Família e
vo-paradigmático, clínica psicológica contempo-
Comunidade da Pós-
rânea, compromisso social. cial commitment.
Graduação em Psicologia
Clínica PUC-SP.
Introdução
O
movimento vivido pela psicologia nas últimas décadas propicia, a nos-
so ver, uma nova concepção de sua prática à medida que se abre para
ações coletivas e para novas atitudes e ações do profissional psicólogo.
Este artigo busca tratar deste movimento através de um recorte realizado na tese
de Lima (2015), norteado pela proposta de Macedo (2004), aceita pelo Conselho
Federal de Psicologia, de uma nova conceituação para a clínica psicológica que
busca ampliar o campo da clínica para além da dimensão intrapsíquica do sujeito
conforme desenvolvido no corpo deste artigo.
Não se trata, portanto, de um relato de pesquisa, mas é necessário dizer que –
embora cientes da grande importância do movimento gerado na saúde pública
desde a luta antimanicomial, como resposta ao preconizado pela Lei Orgânica de
Assistência Social (LOAS), no tocante a uma atuação profissional mais próxima
das necessidades e prioridades da população. A abordagem desta pesquisa diri-
giu-se aos institutos privados e não governamentais, cujas práticas e produções
teóricas, apoiadas no pensamento sistêmico novo-paradigmático, concebiam sua
ação social como transformadora.
Defendemos neste artigo a qualificação das ações desenvolvidas por esses ins- Recebido em: 30/12/2015
titutos como sendo uma ação clínica, desenvolvida como ação social transforma- Aprovado em:10/05/2016
destes encontros uma ação em cons- uma das suas ressonâncias, impor-
trução, buscando por novos embasa- tantes questionamentos a respeito da
mentos e novos recursos, ao percebe- conceituação e designação da ação
rem que o exercício clínico aprendido psicológica, especialmente em sua
em suas formações não respondia às abordagem clínica. Isso contribuiu
demandas construídas em contextos para o que chamamos neste artigo de
de vida em situação de vulnerabilida- um segundo momento de confluência
de*. Um fazer psicológico que levou de preocupações e críticas com rela-
as psicólogas participantes do estudo ção às ações profissionais neste novo
citado a questionarem a designação e contexto de atuação, de ações junto às
significação de seu trabalho: “Conti- instituições públicas e privadas. Um
nuamos psicólogas?” movimento que tem se construído, a
Um questionamento que favoreceu nosso ver, como cuidado científico e
reflexões sobre as competências pro- ético perante o novo.
fissionais necessárias para uma efetiva Um importante apontamento neste
ajuda a quem busca por atendimento sentido foi construído por Yamamo-
no serviço público, assim como as re- to (2009) que, ao questionar a forma
flexões articuladas por Macedo (2001), como vem se dando a construção da
que, ao desenvolver sobre as ações extensão da atenção psicológica a uma
em situações de diversidade cultural, camada mais ampla da população, fa-
apontaram a necessidade de cons- lou do risco de se estar desenvolven-
trução de novas competências, como do uma prática que seria “apenas uma
resposta a esse novo desafio profissio- extensão das práticas convencionais”
nal. A autora então construiu o termo (p. 49). Classificou como “urgente” a
“competência cultural”, referindo-se à necessidade de busca de alternativas
importância de um constante autoes- na abordagem do fenômeno psicoló-
crutínio do psicólogo, no sentido de gico, e acrescentou a esse alerta a ne-
uma autoavaliação a respeito de suas cessidade de ampliação dos “limites
lentes culturais. Conhecidas as lentes, da dimensão política” (p. 50) da ação
o próximo passo seria o de não estar profissional do psicólogo.
com o outro como representante de A demanda de inclusão de questões
um saber ou de um modo de vida a ser político-sociais nas práticas psicológi-
seguido, deixando-o, com suas dife- cas levou Campos (2001) a se preocu-
renças, no lugar de desviante. par com as práticas clínicas desenvol-
A partir destas reflexões de Macedo vidas nos serviços de Saúde Mental,
e de outros autores que vinham tra- apontando o risco de a clínica tornar-
tando das genuinidades das ações em -se uma “palavra negada” por sua pos-
contextos de vulnerabilidade (Mejias, sível “redução ao social” (p. 99). Como
1984; Andrade, 1999; Antunes, 2004; Yamamoto (2009), esta autora tam-
Lefevre; Lefevre, 2004; Barreto, 2010), bém apontou o risco de se viver com *
Vulnerabilidade Social: noção
Lima (2010) usou o termo “competên- essas ações apenas uma “mudança de construída como alternativa
às noções normativas de
cia social” para dar voz aos recursos e escala”, em movimentos de transferên- classificação e avaliação da
habilidades que vinham sendo desen- cia do privado para o público. Com extensão da pobreza, por
contemplar a complexidade
volvidos como respostas ao que se vem essas considerações, defendeu a neces- do fenômeno das condições de
qualificando como “novas demandas” sidade de se “ampliar o debate sobre a vida da população.
truir prática e teoria a esse respeito, (Neubern, 2001) como objeto de sua
Macedo (2004) elaborou a proposta ação. Designada como ampliada pelo
de que a psicologia mantenha a clíni- fato de estender-se para além do in-
ca como um campo específico, porém trapsíquico, a clínica psicológica ga-
“com um significado próprio”, diferen- nha um novo comprometimento, que
te da ação clínica do modelo médico constrói, a nosso ver, a responsabilida-
justamente para que possa contemplar de social deste profissional. Responde-
sua ampliação ou extensão. Acolhen- -se aqui à demanda de um maior com-
do a demanda de um alargamento do prometimento social em nossas ações,
campo da psicologia clínica para além conforme vem preconizando nossas
da dimensão intrapsíquica, conside- leis (LOAS) e nossos órgãos represen-
rando a importância do contexto só- tativos (CFP). Uma designação que se
cio-econômico-político-cultural como coloca como uma resposta ao necessá-
um “elemento fundante” da identidade rio movimento de expansão.
(p. 03), propôs outra denotação para o Vemos aqui um movimento que
termo clínica. O autor o compreende vem dando espaço, em nosso entender,
como uma “postura profissional, uma não só a uma nova concepção da clí-
atitude diante do objeto de estudo...” nica psicológica, mas também a uma
que se configuraria em uma “postura nova concepção do social que, quando
ética básica” não presa a um determi- associada ao Pensamento Sistêmico
nado setting de atuação, mas aplicável Novo-Paradigmático (Vasconcellos,
a diferentes contextos. 2005), dá lugar às terapias pós-mo-
Para essa escuta/atitude e para o dernas tal como as define Grandesso
encontro com as diversidades em di- (2001), favorecendo “uma prática so-
ferentes contextos de trabalho, Ma- cial transformadora” (p. 15).
cedo (2004) destacou a “valorização Lima (2015), ao narrar a história
da subjetividade do profissional” no da convivência da Clínica Psicológica
desenvolvimento de sua “competência com metáforas e designações que in-
cultural”, do cuidado com seus vieses cluem o conceito social em seu campo
e possíveis ressonâncias pessoais. De- de ação, distinguiu diferenças na con-
paramo-nos aqui com o fato de que cepção deste social, as quais classificou
ao se ampliar um campo de ação ou se em três grupos (p. 17). O primeiro de-
rever um conceito, devemos nos guiar les acolhe as ações que usam o termo
pelo cuidado ético profissional. É este social apenas como sinônimo de ações
o movimento que observamos nas re- com grupos ou comunidades, diferen-
flexões de Figueiredo (2004), quando ciando-as das ações com indivíduos
também se abre, a partir da psicanálise, em contextos privados.
para uma clínica não presa a um lugar O segundo grupo refere-se ao uso
(p. 57), não presa aos sistemas classifi- do social como sinônimo de atenção
catórios, definida sim por sua ética que à população que vive em situação de
estaria comprometida com a “escuta vulnerabilidade social. Neste grupo
do interditado” ou do “excluído”. incluiu as ações assistencialistas, que
Trata-se de uma concepção que, correm o risco de um cunho pura-
dentro da “virada teórico-clínica”, con- mente paliativo, e as ações do chama-
forme designada por Féres-Carneiro do “novo voluntariado”, definido por
p. 61), abre espaço para uma visão rela- ações com as redes sociais, uma metá-
cional do self (Gergen, 2010), pondo em fora de largo uso nas terapias pós-mo-
questão a visão essencialista deste. Uma dernas, que foi construída a partir do
visão em que o individual e o social pas- pensamento sistêmico. Ela concebe “o
sam a ser compreendidos como em in- universo como rede” (Najmanovich,
terconstituição, no sentido de Maturana 1998, p. 59), dando lugar para o “sujei-
(2014, p. 49) de “mutuamente generati- to complexo”, não mais compreendido
vos”, sendo o social “o meio onde os in- isoladamente, e sim como aquele “que
divíduos se realizam como indivíduos”. emerge como tal na trama relacional
Sob este guarda-chuva convivem de sua sociedade” (p. 64). Uma metá-
ações que “não oferecem soluções de fora que sustenta e é sustentada por
um especialista que tudo sabe sobre uma concepção do social que implica
determinada pessoa ou realidade, que e responsabiliza a todos na construção
não mais agirá sobre o social, e sim, ou dissolução dos significados e ações
compondo o social, cuja interconsti- que neles se apoiam.
tuição com o individual na construção As implicações desta posição epis-
intersubjetiva traz o poder – de mu- temológica – construtivista/constru-
dança ou transformação – para o en- cionista social – constroem, portanto,
contro” (Lima, 2015, p. 25). Surge um para os profissionais da psicologia, e
especialista que não abdica das teorias para os profissionais de outras áreas de
que o formaram, mas que as reposi- atuação que assumam uma visão sistê-
ciona como “construções sociais úteis” mica do mundo, sua responsabilidade
(Grandesso, 2006, p. 61), não mais social. Uma responsabilidade vivida
sendo usadas de forma reificada. Um não como uma ação ou posição que se
especialista em estar com o outro de preconiza ou se institui, mas como uma
forma reflexiva e colaborativa. implicação de nos concebermos como
Vê-se, portanto, que ao contemplar indivíduos em interconstituição com o
a interconstituição uma ação se be- meio social; assim como por conceber-
neficia com a não polarização indivi- mos que a realidade é construída por
dual/social, no sentido de dar espaço nós no “entrecruzamento de nossas
e voz para a coconstrução, de forma subjetividades” (Vasconcellos, 2005,
legitimada, de significados e conheci- p. 84). A responsabilidade profissional
mentos. São construções que norteiam ganha aqui a adjetivação de social por
tanto a vida dos indivíduos e comuni- concebermos a coautoria de nossas vi-
dades como a condução e criação do das e seus significados preferidos.
ambiente terapêutico, seja ele em um
contexto privado ou não. Fica aqui
evidente a força político-social desta A clínica como ação social
visão que dá lugar central para a co-
laboração, da forma como a concebe A postura ou atitude profissional
Maturana (2004, p. 207), como tendo construída e sustentada por esses pres-
um “papel fundante” no fenômeno supostos tem se revelado profícua nas
social, estando este intimamente re- ações em contextos de vulnerabilidade
lacionado à “aceitação e respeito pelo social. Distinguimos seu potencial de
outro” (p. 208). ajuda primeiramente na construção