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Revista DR- Número 1 / 9 de março de 2015

Entrevista com Isabelle Stengers e Vinciane Despret


www.revistadr.com.br

GOSTOSAS DA VEZ

Entrevista DR
com Isabelle Stengers e Vinciane Despret

Por Oiara Bonilla e Tatiana Roque.

“Faire des histoires” é uma expressão difícil de ser traduzida para o português. No uso
coloquial, quer dizer criar caso, criar problema onde não tem, implicar, encher o saco,
pegar no pé. Um pai pode dizer para o filho: pare de “faire des histoires!”, se o filho
estiver fazendo birra, gritando, rolando no chão. Um homem diz para a mulher: não
invente histórias, não crie caso, pare de reclamar à toa! No livro de Vinciane Despret e
Isabelle Stengers, Les faiseuses d’histoires, a expressão remete ao papel das mulheres
na universidade e a todas as pequenas diferenças em relação às posições ocupadas
pelas mulheres: ao fato de que não chegar ao topo da carreira se deve, em muitos
casos, a uma repartição desigual das tarefas familiares, à opção de ter ou não filhos,
por exemplo. A inspiração vem de Virginia Woolf, que sempre desconfiou da oferta
feita às mulheres para que entrassem na universidade: não devemos, dizia Woolf,
engrossar essas fileiras de homens cultos, cheios de honras e responsabilidades. A
universidade diz para as mulheres: vocês são bem-vindas, pois este é um espaço
democrático, mas desde que não criem problema, não criem caso com essas questões
menores (vous êtes les bienvenues à condition de ne pas faire des histoires...). No
livro, as autoras transformam esse lugar, designando-se como as “fazedoras de
histórias”, “as criadoras de caso, de situações”, o que pode ter um papel afirmativo
como constituição de um novo lugar, uma nova relação com o pensamento: o que as
mulheres fazem com o pensamento?

DR - Bonjour.
Essa entrevista é sobre mulheres e política. Aqui no Brasil, desde as manifestações
de junho de 2013 até recentemente, no período da Copa do Mundo,
experimentamos algumas dificuldades em criar uma continuidade para os
movimentos. Nessas manifestações, além dos movimentos organizados, estavam
presentes também muitos outros sujeitos, que não pertenciam a nenhuma
organização política. Em seguida, nas tentativas de organização que surgiram
dali, tornou-se um problema a quantidade de disputas, de brigas. Nesse cenário,

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experimentamos algumas dificuldades, que acabamos associando à posição das


mulheres. Acabou que nós, que nunca fomos feministas, de repente tivemos esta
ideia de fazer uma revista só com mulheres. Porque começamos a sentir
dificuldade em discutir política com homens.

Vinciane - Concretamente, que dificuldades eram essas?

DR - Eles parecem dar lição o tempo todo. Se você concorda tudo bem, mas se
quer colocar um ponto que não está na pauta, não prestam atenção.

Vinciane - Não há como discutir...

DR - E tem todo o lado afetivo, que queríamos colocar em certo momento… Por
exemplo, houve uma grande repressão aos protestos durante e depois da Copa,
com pessoas presas, e quisemos escrever uma carta para a Dilma [Roussef].
Queríamos adotar um tom mais afetivo. Para a gente, a questão do tom era
importante. Escrevemos a carta, circulou muito, achamos que até a Dilma leu,
mesmo que não tenha respondido. Mas, durante o processo, foi difícil dar um tom
afetivo à tal carta. Escrevemos junto com homens que partilhavam totalmente da
nossa posição política, mas não eram sensíveis à questão do tom.

Vinciane - Quais eram os argumentos para recusar o tom afetivo? Chegaram a dizer
"não, não podemos falar assim”?

DR - Não exatamente, mas disseram que não teria efeito político se não fosse mais
argumentativa. Se não trouxesse um discurso mais sólido.

Vinciane- Sim, isso pra eles não tem efeito pragmático. O argumento é "falar
afetivamente não tem efeito político".

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DR - Isso mesmo, é preciso explicar, dar "argumentos", mobilizar "a história" ou


"a teoria".

Isabelle - Como se as manifestações que permitiram que muitos homens teorizassem


sobre elas não tivessem sido afetivas...

Vinciane - Ou talvez haja uma separação. Para a manifestação é o gesto do corpo.


Depois se racionaliza.

DR - E não foi só aí, experimentamos a mesma dificuldade em outros grupos.


Então decidimos criar um grupo de mulheres e fazer uma revista chamada DR,
que quer dizer "discutir a relação". Se há um problema no casal, por exemplo, e
se quisermos discutir a relação, isso costuma ser mal visto pelos homens. Eles
dizem “Ah! Lá vêm essas mulheres querendo discutir a relação”, “Que chatas...”

Isabelle - Achei o Brasil mais machista que outros países. Na Europa não se ousaria
dizer "ah, as mulheres", talvez entre homens, mas nunca na frente de outras mulheres.

Vinciane - O machismo, no nosso caso, passaria por questões acadêmicas. A diferença


também seria ressaltada, mas não com um homem dizendo “ah, as mulheres”, pois os
poderes se deslocaram. Por outro lado, seria ainda mais forte nas questões acadêmicas,
porque um homem diria “academicamente não se pode escrever assim”. Nesse caso,
lida-se com uma força ainda maior pois se trata da exclusão produzida pelo bom
academicismo.

DR - Então, uma de nossas inspirações para pensar esse problema é o livro de


vocês, Les faiseuses d’histoires - que font les femmes à la pensée?1. Agora surge a

1 Paris: La Découverte.

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questão sobre os modos de se discutir e de se fazer política, depois de todos os


movimentos que ocorreram no Brasil. Fazer política como universitárias, mas
fora da academia. Não conseguimos mais fazer nosso trabalho do mesmo modo
que antes. Achamos uma excelente ocasião que a primeira entrevista seja com
vocês...

Isabelle - Vamos em frente!

DR - Passemos às perguntas então. Até que ponto, o fato de sentirmo-nos


solicitadas pela necessidade de prestar atenção ao “modo de dizer” em um
discurso político significaria “ocupar um lugar de mulher”? Para nós, não basta
que um discurso político seja justo para que mobilize o engajamento de todo
mundo, é preciso também um trabalho sobre o tom, sobre os modos de dizer. Mas
como conseguir o reconhecimento de que essa é uma questão política em si? Essa
dificuldade nos parece ligada a uma longa tradição na qual a discussão política é
uma atividade reservada aos homens.

Vinciane - Eu começaria assim, mas é realmente uma maneira de começar pelo


exterior. A reflexão sobre o modo de interpelar o outro é uma discussão psicológica ou
uma discussão política? Começaria por aí. Se a psicologia se apropriou das emoções,
por exemplo, e dos modos de afetar, de sentir, de expressar, ela moldou os modos de
ser do povo que se expressam nas manifestações e nas revoltas. Os "homens
civilizados"2 se expressam através de uma racionalidade sobre a qual, invariavelmente,
todo mundo deveria estar de acordo, pois todo mundo é racionalizado. De um lado,
isso é um pensamento masculino, pois a psicologia segue com "os homens veem de
marte e as mulheres de vênus". Quero dizer, mesmo na Europa, supõe-se que ninguém
use argumentos machistas, mas ainda devemos nos submeter aos discursos sobre um
estilo. Nas revistas pretensamente emancipadoras femininas, ainda há "as mulheres

2 Referência a Virginia Woolf.

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são mais sensíveis" ou “as mulheres pensam mais em um discurso afetivo”, o que é
muito perigoso de dizer, pois se se faz disso uma psicologia, torna-se uma maneira de
desvalorizar e de dar razão aos que detém a racionalidade. Então, como tomar um
discurso afetivo para fazer dele um discurso? Não um discurso afetivo, um discurso
sobre a afetividade, sobre o corpo, sobre os modos de fazer, de maneira que isso se
torne um modo político de engajamento? É a primeira coisa que eu diria, enquanto os
homens não aceitarem, e mesmo as mulheres, aliás, pensar que a própria maneira de
caracterizar os modos de fazer são questões políticas, ou seja, maneiras construídas,
nas quais nos construímos pensando pragmaticamente no que é eficaz, no que dá
forma a uma outra política, ainda não começamos realmente, pois essa questão será
sempre rebatida para o lado da psicologia, "bem, são mulherzinhas, ora!”.

Isabelle - Sim, acredito que em uma assembleia esteticamente masculina, e


eventualmente também majoritariamente masculina, uma mulher sozinha que tente
transmitir o afeto será irremediavelmente psicologizada, não vai conseguir. Por outro
lado, isso seria possível com um grupo de mulheres que tenha se preparado para fazer
uma intervenção, justamente porque é um coletivo, porque elas juntas se tornaram
capazes de fazer essa intervenção. Poderíamos dizer “fazer disso toda uma história”,
“criar um caso”, “criar uma situação”. Não digo que assim terão sucesso
necessariamente, mas não se poderá dizer que é simplesmente um problema
psicológico. Pois essa dimensão da produção coletiva de um afeto tem relação com a
dimensão política. Acredito que o feminismo começou quando as mulheres
conseguiram produzir grupos consistentes para intervir com um estilo que era o delas e
que se tornou, então, irredutível à psicologização.

Vinciane- E que passa explicita e claramente por um estilo escolhido e construído.


Logo, todos os termos como “autenticidade” e “espontaneidade” são termos
venenosos. Se as pessoas imaginam, por exemplo, que vocês têm um discurso
espontâneo, vocês estão ferradas! Porque o discurso espontâneo pode permitir remeter

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à natureza das pessoas ou à psicologia. Eu continuaria então o que a Isabelle disse: a


forma como a gente se produz é uma aprendizagem, de modo que aquilo que estamos
produzindo não possa, em nenhuma hipótese, passar por algo que emanaria da
natureza das mulheres, da natureza das dominadas. Tem que aparecer realmente como
algo combinado, algo construído e elaborado conjuntamente.

Isabelle – E é por isso que nos momentos em que o feminismo foi inventivo, a ideia
de mulheres bruxas estava tão presente. No sentido em que as bruxas são também
aquelas que sabem se reunir para preparar coisas. Sair. São aquelas que sabem que é
preciso se proteger da interferência para serem capazes de sair, de produzir uma
diferença.

DR – Queríamos falar também de algumas pequenas armadilhas que sentimos na


discussão. Vocês falam de uma recusa ativa de um gênero de pensamento que
desconfia das mulheres, como se elas fossem incapazes de levar a sério os
problemas que transformam o pensamento em campo de batalha, uma recusa em
deixar que um “falar verdadeiro” barre o caminho de um “falar bem”. Em que
medida esse “falar verdadeiro” se infiltra, às vezes de modo muito sutil, nos
discursos irônicos, indignados, e perpassam as polêmicas que estão na moda em
toda discussão política. Esses modos, disfarçados de “maus modos”, porque
revoltados, não levam também a reafirmar posições já constituídas, paralisando
justamente a capacidade que o falar pode ter de estabelecer conexões?

Isabelle – Que sempre estiveram na moda nos grupos estritamente militantes. Quer
dizer que toda intervenção que complique, que abra, é difícil. Qualquer ação para
complicar as coisas, a fim de permitir que outras coisas entrem em jogo, que não estão
na pauta, será vista como algo que pode enfraquecer a causa.

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DR – Sentimos que isso acontece muito nos discursos de intelectuais. Não somente
militantes, mas intelectuais sofisticados, que fazem hoje um monte de discursos
irônicos e indignados, o que é também um modo de criar um grupo fechado no
qual ninguém mais pode entrar, sobretudo os que não são suficientemente
inteligentes para entender ironia.

Isabelle – Sim, mas a ideia de grupo militante, a ideia de militância, tem sempre
intelectuais à frente. Quando se tem um coletivo de trabalhadores em greve, é
diferente. Grupos militantes têm sempre ideólogos no comando. Logo, não se pode
produzir diferença, o intelectual está sempre pronto para tomar o comando e dar a boa
direção.

Vinciane – Dar o tom.

Isabelle - Logo, não se surpreendam, quero dizer, desse ponto de vista que falamos, os
intelectuais estão sempre no seu lugar, não para abrir, mas para mobilizar e dar a
verdade. A verdade sobre o que está acontecendo. E é sempre assim: “nós não somos
cegos, somos os que veem a verdade!”, “devemos cassar as ilusões que levam a pensar
de outras maneiras!”. Assim, é um tipo de radicalização que atua como se o fato de
não ser cego, de enxergar a verdade, fosse a força do movimento, como se a verdade
contra a cegueira fosse a arma principal daqueles que se revoltam. É também uma
velha teoria da alienação, o intelectual é aquele que luta contra a alienação que faz
com que as pessoas aceitem suas amarras, suas correntes. Ele é então aquele que
quebra as correntes. E aí, efetivamente, o sentimento, a intuição, o afeto, não entram, é
como se não tivessem nada a ver.

DR – Não sabemos se vocês observam algo particular com respeito à indignação.


Nas redes sociais, por exemplo, há muito discurso indignado, e sua repercussão é

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muito fácil, discursos com esse tom se reproduzem com uma facilidade incrível.
Mas já é diferente nos movimentos, por exemplo, o movimento dos indignados...

Isabelle - Há diversos tipos de indignação. No movimento dos indignados, na Europa,


há realmente uma indignação afetiva: “Assim não dá!”, “Esse mundo não dá mais!”. E
isso permitiu reunir todos aqueles que, por seus pontos de vista, eram mais pluralistas
do que indignados, ao menos na Europa. Já a indignação na boca de uma só pessoa se
torna rapidamente “designar a verdade por trás da indignação”. É verdade que pode
haver uma...como dizer? Algo que não está no coletivo, só no orador, em quem pode
acontecer uma escalada da indignação: quanto mais ele fala, mais ele goza da
indignação que o toma! Acho que há uma possibilidade bizarra de construção de uma
posição mais e mais indignada. Nos movimentos, por exemplo, no movimento dos
indignados foi muito diferente. Era uma tentativa de produção de transversalidade, de
todas as razões de se estar descontente. E foi frágil por isso: porque depois da
indignação, é preciso criar relações que permaneçam, que se segurem. É preciso
mostrar uma consistência, um movimento ou relações que possam durar. Então, os
intelectuais dizem: é a verdade que faz durar... (risos).

Vinciane – Para completar o que diz Isabelle, o que observo nos discursos indignados,
não no sentido da indignação afetiva, é que a verdade é um tipo de discurso que só faz
denunciar a mentira. É incrível o número de “mentem para nós!” etc. Como se
esperassem que nos digam a verdade. Como se esperassem, por exemplo, que as
companhias petrolíferas nos digam a verdade. Claro, e aqui acho que é onde a
esquerda não faz seu trabalho, no sentido de Deleuze: denunciar a mentira pode ser
uma etapa necessária, mas parar aí é se recusar a pensar. Ao passo que, o que eu gostei
naquilo que Isabelle diz em La Sorcellerie Capitaliste, livro escrito com Philippe
Pignarre, é que não é exatamente a mentira que devemos visar, pois, à mentira só
poderemos responder com uma verdade. Isso é problemático. Se há uma mentira, é
porque há uma verdade correspondente. Logo, a gente permanece em um sistema

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binário que não faz pensar. Por outro lado, no belo movimento de que falava Isabelle,
encontra-se o tempo todo questões como “o que é uma captura capitalista?”, “o que é
estar em um dilema infernal?”. Encontramos o tempo todo essas frases, “ou
deslocalizar3 ou diminuir seus salários”, mas não se trata de uma questão de mentira
ou verdade. É verdade, ou se deslocalizam (as empresas) ou... Não vamos dizer que
são mentirosos. Assim, podemos dizer que não há mentira, mas há uma alternativa que
não permite escapar, e a maneira de lutar não é denunciar a mentira por trás da
alternativa, e sim não cair na armadilha que a alternativa coloca. Logo, o discurso
indignado pode ser perigoso na medida em que se focaliza em uma relação
estritamente binária entre verdade e mentira, que remete de novo à racionalidade. A
indignação está aí para dar força à iluminação da verdade.

DR – Para pensar os desafios políticos de nosso tempo, reconhecemos a


pertinência e mesmo a urgência de recorrer a conceitos filosóficos ou teóricos que
não são evidentes. Às vezes isso significa sobrecarregar a linguagem, torná-la
incompreensível. Alguns conceitos se tornam quase clichê, como rizoma,
multidão, ou mesmo antropoceno. E são ideias de que gostamos, conceitos
potentes que se tornam, muitas vezes, palavras de ordem vazias, assunto de
iniciados. Como conciliar esse excesso da linguagem com a necessidade política de
se fazer compreender por todos? Notamos um desinteresse dos intelectuais por se
fazer compreender que não é proporcional à importância que fingem atribuir aos
“outros”.

Isabelle – Mas esse é todo o problema! Quando conheci Félix Guattari, ele trabalhava
com psiquiatria alternativa e quando ele falava, não usava slogans. Toda a inteligência
que os conceitos que ele inventava lhe tinham dado era colocada em prática na
situação. Deleuze dizia que os conceitos devem ser instrumentos, é preciso se

3 Deslocalizar é o que muitas empresas de países desenvolvidos fazem hoje, levando, por exemplo, seus

telecentros para países nos quais a mão de obra é mais barata.

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apropriar deles, mas é a situação que dá sentido aos conceitos. Não são os conceitos
que dão sentido às situações. Nesse momento, a inteligência que se pode criar em uma
situação, pertence a todos. E depois podemos dizer “peraí, isso é o que Deleuze
chama...”, mas ninguém liga porque se tornou algo que pertence à situação. Quando
escrevo textos, tento citar muito pouco. Em La Sorcellerie Capitaliste sabia que, se
citasse, se dissesse “como disse Deleuze etc.”, as pessoas pensariam “ah, não li
Deleuze, então não vou entender”. Então, às vezes, tentei transmitir os gritos, mas
nunca algo como “é preciso saber que Deleuze… etc.”. Há um uso dos conceitos que
separa as pessoas, mas se usarmos os conceitos na situação, não precisaremos mais
citar o autor. Nunca deveríamos citar.

DR – Nem empregar os termos, as palavras que eles usam...

Isabelle – Depende das palavras. Porque há palavras que são simples e que
aprendemos, graças a certo autor, a utilizar de um modo em que elas se tornam
potentes. Então podemos empregá-las, mas não “rizoma”, não palavras que as pessoas
não conhecem. Por exemplo, quando Deleuze diz: a diferença entre a direita e a
esquerda é que a esquerda precisa que as pessoas pensem e a direita precisa que elas se
submetam, que confiem. Isso, todo mundo pode entender (risos). Há palavras que são
“para os que leram”. Mesmo em um colóquio como este para o qual viemos4 não
deveríamos empregar todas aquelas palavras, pois isso separa. É como se tivéssemos
dado a solução antes mesmo de começar a compreender a situação. Acho, por
exemplo, não para criticar, mas se falamos de guerra, todas essas máquinas de guerra
de Deleuze e Guattari aparecem. Mas surgem como uma conclusão. A questão seria
fabricar a máquina de guerra e só então dizer “peraí, é o que Deleuze e Guattari
chamam máquinas de guerra...”. É quem usa o conceito que tem que pagar primeiro.
Pagar no sentido de tornar interessante o conceito que permite pensar. Mas a academia
fabrica papagaios.

4 Os Mil Nomes de Gaia. Do Antropoceno à Idade da Terra. Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 2014.

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DR – Chamar nossa revista de DR é uma maneira de dizer, de algum modo, que


nós, as mulheres, estamos “criando caso”, “inventando histórias” (“faire des
histoires”, como vocês dizem). “Pare de inventar histórias”, “parem de criar caso”,
nos dizem os homens. E eles são avessos à DR, discutir a relação é coisa de
mulher...

Isabelle – Mas as mulheres vieram de Vênus, elas adoram discutir a relação !!! (risos
fortes).

DR – Estamos cansadas de trabalhar na universidade com se nada estivesse


acontecendo, como se não tivéssemos nenhum papel, o que é uma tentação forte
hoje em dia. Na linha das mulheres que “cultivam a raiva e o humor para resistir”,
como vocês dizem no livro, decidimos fundar essa revista, apostando em uma
reversão pelo riso. Dissemos, “tem que ser engraçado!”, senão não tem força.
Quando dizemos DR, queremos reverter essa posição que nos é atribuída, mas
pelo riso. Não sabemos aonde vai nos levar essa experiência, nem se vai nos levar
mais longe do que esse “rir juntas”, porque é verdade que quando nos reunimos
gargalhamos muito, e ainda nem lançamos o primeiro número! Queríamos
terminar então falando do riso e do papel do humor em relação à ironia, que está
associada ao falar-verdadeiro masculino.

Isabelle – Acho que cultivar o riso sempre foi uma grande força dos movimentos
feministas. Mas também de mulheres juntas, independente dos devires políticos,
porque o “rir juntas” é um riso rico. Um riso de compartilhamento, onde um monte de
coisas, que podem ter sido vividas por umas ou por outras de modos diferentes, se
encontram no riso. Quando discutimos com as mulheres que participaram da segunda
parte do livro, em Paris, e que alguém, não sei mais quem, disse que sempre se sentiu
uma impostora, foi uma explosão de risos, e uma enxurrada de “eu também!”, “eu

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também!”. Às vezes era diferente, “eu assim”, “eu assado”, mas não era uma crítica, e
sim um enriquecimento. Havia uma espécie de “se sentir juntas”, não em nome de
uma verdade, mas por causa de uma experiência da qual nos dávamos conta de a que
ponto era compartilhada, e que podia dar consistência a esse grupo. Ou seja, o fato de
não se reunir por obrigação, mas sim porque esse “rir juntas” nos alimenta. Isso é
extremamente importante.

Vinciane – A respeito do riso, estou pensando que faz anos que trabalho em uma
universidade e não me sinto no meu lugar, sou impostora e serei descoberta! Vão me
pegar! É isso que desperta o riso. É aí que o riso é extremamente saudável, pois não
temos mais medo de fazer rir. E se há algo nos meios acadêmicos e/ou masculinos que
toca os homens, e ao que eles são extremamente vulneráveis, é que um homem tem
medo de provocar o riso sem intenção, sem que seja de propósito. Mas quando digo
“vou ser pega!” não estou tentando fazer rir, eu falo desse medo real. E logo, risos
enlouquecidos! De repente isso desloca a situação, pois no lugar de ser vítima desse
terror de ser uma impostora, eu me torno... A gente se produz como alguém que cria o
humor na situação, que é capaz de fazer humor sem querer, sem fazer de propósito.
Nos damos conta então que fazer rir é uma alegria, pois é um riso de confiança. Os
homens têm medo de fazer rir porque o riso é associado ao ridículo, ao fato de que as
pessoas, os que riem, vão se juntar contra aquele de quem se ri. Mas no nosso caso,
cria-se uma cumplicidade com aquela de quem se ri e ela pode “rir junto”. Muda tudo.
Nos demos conta, as mulheres, que um monte de coisas acontecia nas nossas vidas por
motivos sociais etc. E dissemos: “peraí, podemos fazer algumas coisas que os homens
jamais teriam a liberdade de fazer”, colocar as coisas rapidamente em uma relação
pessoal, por exemplo.

Isabelle - Mudar a relação.

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Vinciane - Mudar a relação mesmo nas transações comerciais, por exemplo. Uma
anedota. Uma de minhas amigas que faz transações comerciais (ela é antiquária)
reconhece imediatamente pela internet quando lida com uma mulher porque aparecem
frases como “ah, uma caixa de bombons, minha avó tinha uma”. Um homem nunca
diria isso dessa forma e, imediatamente, a comunicação toma outro rumo, e depois
volta. Essa flexibilidade, a capacidade de ultrapassar fronteiras e não considerá-las
como verdadeiras fronteiras. Acho que o riso é isso, essa capacidade.

Isabelle - É um dos motivos pelos quais essa ideia de bruxas é importante. É preciso
criar espaços: não espaços protegidos, mas espaços onde nos protejamos para poder rir
juntas, fabricar a força desse riso. E logo sair, isto é, transformar essa força em algo.
Mas foi um escândalo, nos anos 70, as reuniões que eram só para mulheres, e é por
isso que se falava em bruxas. Não era para excluir os homens, mas porque quando um
homem chega, imediatamente tudo muda (risos). Depois, pode até haver grupos
mistos, mas nos quais as mulheres cheguem com a força que acumularam juntas.
Então, acho que o riso é realmente um alimento para as mulheres entre elas. E isso é
muito sério.

Vinciane - Pensando ainda na pergunta que você acaba de colocar: por que uma
mulher que participa de um grupo de homens assume posições que não são de
destaque, por que ela se conduz como um homem, ou faz tudo pra isso? É porque ela
está só. Ao passo que, quando um homem entra em um grupo de mulheres, ele não
passa por nada disso, alguns sim, e é com eles que se pode compor, mas geralmente o
homem vai dizer “que história é essa?”, etc. Em vez de pensar “estou numa situação
particular, o que se espera que eu produza aqui?”

DR - E aqui eles sexualizam a situação também, dizendo ”ahhhh” …

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Isabelle - Me lembro de uma reunião feminista, bastante tardia, na qual muito do que
tínhamos aprendido já havia sido esquecido. Havia um homem e, de repente, ele
tomou a palavra e disse “eu gostaria que me explicassem os fundamentos do
feminismo”. Imediatamente as mulheres se dividiram. Algumas queriam explicar para
ele. Outras diziam “claro que não, não vamos parar tudo porque este senhor pede algo
que ele pode aprender em outro lugar”. E pronto, ninguém mais ria. Bastou a
intervenção daquele homem para que todo o humor que podia se desenvolver ali
parasse. É a capacidade dos homens de dizer “tenho o direito de me informar”…

Vinciane - “……do meu modo”

Isabelle - ... “do meu modo”, “não preciso tentar entrar no evento do jeito que ele é,
participar do evento, surfar nele (risos)” . Não, “eu paro as ondas, construo um muro,
fico ao pé dele e faço perguntas!”. Há algo aí que é preciso retomar. A mistura de
gêneros é algo que se prepara entre mulheres! (risos).

DR - Justamente, na revista haverá homens, mas apenas convidados...

Isabelle - Isso. Mas é preciso saber que existem povos, já que falamos muito em
antropologia nos últimos dias [em Os Mil Nomes de Gaia], onde há o povo das
mulheres e o povo dos homens, e os encontros são preparados.

Vinciane - Mas “DR” é ótimo como nome de revista. É muito bonito porque se
alguém me dissesse “vamos discutir a relação”, eu ficaria horrorizada, subiria pelas
paredes se alguém me dissesse isso, seriamente. Já discutir, para mim… se levado
muito a sério, é horrível. Mas é muito interessante a forma como vocês invertem essa
expressão horrível para torná-la objeto de humor.

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Isabelle - E as bruxas, pessoas como Starhawk, que eu li muito, as ativistas em geral,


aprenderam algo que inclusive os africanos sabem: nunca remeter - quando se discute
a relação - à intenção. Sempre tentar dizer “aqui você me feriu”. Isso não quer dizer
“você quis me ferir”. Mas se apresentar dizendo “aqui, o que você disse me feriu”.
Colocar essa ferida “com”, e não dizer “você quis me ferir” e colocar o outro na
defensiva.

DR – Por isso que o humor é interessante. Dizemos DR e as pessoas reconhecem


“discutir a relação”, pois utilizamos essa abreviação que todo mundo conhece.
Mas dizemos também: DR de Divas Revolucionárias... (risos gerais)

Isabelle - Em todo caso é muito interessante e lhes desejamos muitas experiências


belas.

Vinciane - Longa e risonha vida para DR, pronto!

Isabelle - Ah, e por favor, nunca com espírito de sacrifício ! Obstinação, coragem, mas
que seja sempre uma alegria! (risos)

DR - Obrigada!!!

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