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O PRINCÍPIO DE INDIVIDUALISMO EM SUAS EXPRESSÕES DOUTRINÁRIAS

OU UM EXAME DOS ALICERCES DAS CRENÇAS BATISTAS

INTRODUÇÃO AO CONTEÚDO DESTE DOCUMENTO

No ano de 1974, na cidade de Uberaba, MG, quando exercia meu primeiro ministério
pastoral na única Igreja Batista existente ali, descobri num “Sebo” o livro que agora está aqui
digitado na íntegra. Foi uma jóia garimpada e mais preciosa pra mim do que eu mesmo podia
imaginar quando o encontrei. Li-o diversas vezes. Num português arcaico, que agora tentei
atualizar sem alterar o significado do original (que guardarei sempre comigo), esta obra é
como um clássico que nunca deveria ter saído de circulação no meio dos batistas. Não me
consta que tenha sido reproduzida recentemente por qualquer editora. Se o foi, que me
perdoem a ignorância do fato os editores. Mas achei que não poderia ficar com seu conteúdo
apenas para mim. Não considero um acaso a descoberta desse volume perdido naquela
livraria. Deus tinha um propósito e acredito que esse era justamente o de eu colocar seu
conteúdo à disposição de todos os interessados. A Internet está aí pra isso, permitindo que
meu desejo seja, agora, realizado, graças ao Senhor nosso Deus.
O ensino aí ministrado é de autoria de A.B. Langston. Precisa dizer mais alguma
coisa?

PREFÁCIO

O conteúdo deste livro foi dado, pela primeira vez, em aulas na “Chautauqua Baptista”
no Rio de Janeiro. A sua aceitação foi além das minhas esperanças e, devido à insistência dos
membros da classe, que as preleções tivessem maior divulgação, decidi publicá-las em forma
de livro.
E numa viagem aos Estados Unidos tive então o ensejo de reunir os materiais que
havia dado nas aulas, neste livro. Passando alguns meses no Seminário Batista de Lousville,
Ky., preparei-o e o apresentei ao corpo docente do dito Seminário para satisfazer as
exigências do grau de Doutor em Philosofia. A tese foi aceita e o grau conferido.
Julgando que o livro seria útil para o nosso trabalho no Brasil pedi licença ao
Seminário para publicá-lo em português. Voltei portanto dos E. U., já com o livro em Inglês e
recorri ao meu amigo Almir Gonçalves que tem muita prática em verter obras do Inglês para o
Português, conseguindo dele esta tradução. Examinando-a cuidadosamente, achei-a fiel ao
meu pensamento. Lanço aqui um voto de gratidão ao irmão Almir por mais este serviço
prestado, não particularmente a mim, porém, à Causa Batista no Brasil.
Em apresentar este livro ao público penso prestar mais um serviçozinho à Causa, a que
tenho dado os melhores anos da minha vida.
Rio de Janeiro, 21 de Outubro de 1932.
Ass. A.B. Langston

O ilustrado Amigo Dr. A. B. Langston honrou-me com o convite para traduzir a bela e
substanciosa tese que apresentou perante um dos maiores Seminários Batistas do mundo, na
América do Norte, e que versa sobre o importante tema O PRINCÍPIO DE
INDIVIDUALISMO EM SUAS EXPRESSÕES DOUTRINÁRIAS. Como indigno tradutor,
não podia deixar de ler e reler a tese como o máximo cuidado. E apesar disso, longe de se me
tornar enfadonha a tarefa, cada vez q empreendia com duplicado prazer.
Não obstante a minha incompetência para formular juízo em trabalhos de tal natureza,
tenho a presente tese como uma das melhores do gênero, talvez a que com maior clareza e ao
mesmo tempo distinção de conceitos apresenta o magno assunto sob o ponto de vista cristão,
ou melhor, bíblico. É uma exposição fiel aos princípios básicos que determinam as grandes
doutrinas da fé batista. Creio que a sua publicação em nossa língua será um dos melhores
serviços que o seu mui digno autor presta à Causa da evangelização e do doutrinamento
bíblico em nossa estremecida Pátria.
Assim possam tirar todos, da leitura desta obra, o proveito que logrei, apesar da
desvantagem, que só raramente se não verifica, em trabalhos traduzidos, – é o meu sincero
voto.
Vitória, 18 de agosto de 1931.
Ass. Almir S. Gonçalves

APRESENTAÇÃO

Honra-me muito apresentar ao público esta valiosa obra do professor Dr. Langston, “O
Princípio do Individualismo em suas Expressões Doutrinárias” . Há muito tempo que eu
esperava que o Dr. Langston escrevesse uma obra dessa natureza, e isso por diversos motivos.
Penso ser fundamental essa fase de doutrina na instrução religiosa e secular, e
ninguém mais do que os Batistas precisa enfatizar o princípio de Individualismo, e ninguém
mais competente para escrever sobre este assunto, eu penso, do que o Dr. Langston.
Essa fase de filosofia que deve ser ensinada ao indivíduo não somente como princípio
fundamental de doutrina, isto é, relativamente à religião, mas também como instrução básica
no preparo do indivíduo para poder assumir dignamente responsabilidade em qualquer fase de
atividade, é um estudo que há muitos anos vem ocupando a mente do Dr. Langston. Ele tem
estudado essa matéria apaixonadamente, examinando-a com perícia em suas múltiplas fases
de aplicação na vida do indivíduo, tanto em suas relações para com Deus como para com o
próximo e para com as coisas em geral, e nos apresenta nesta obra o estudo desta matéria com
uma expressão toda sua, muito original e simpática.
É uma excelente obra, fruto de um intelecto superior e de um coração piedoso,
trabalho de um grande mestre com longos anos de experiência em estudar e em ensinar. Este
trabalho do Dr. Langston é uma valiosa contribuição, e de valor crescente, que o grande
professor faz a um povo que lhe será sempre grato.

Rio de Janeiro, 22 de Setembro de 1932.


Ass. F.F.Soren.

UMA PALAVRA DE APREÇO

Esta obra da lavra do Dr. A. B. Langston, e que é dada à luz da publicidade com o
título – “O Princípio de Individualismo Em Suas Expressões Doutrinárias” – ou – “Um
Exame Dos Alicerces das Crenças Batistas”, constitui mais uma evidência de que o seu autor
tem, em grande medida, o dom de interpretar e originalidade para ilustrar as verdades divinas.
É um livro novo, cheio de coisas novas. Por isso, creio que os Batistas Brasileiros
terão na leitura desta obra original, vasto campo para proveitosa meditação. Que o Senhor seja
servido abençoar ricamente o autor, o “Fundo Htacher Pró Publicação de Livros” e a “Casa
Publicadora Batista” no grande serviço que estão prestando à nossa denominação.

Ass. - F. de Miranda Pinto.


CONTEÚDO

Introdução

Capítulo I
O Princípio de Individualismo verificado através do estudo da Doutrina da Criação do
Homem
Capítulo II
O Princípio de Individualismo em sua relação com a Doutrina do Pecado

Capítulo III
O Princípio de Individualismo em sua relação com a Doutrina da Salvação

Capítulo IV
O Princípio de Individualismo em sua relação com a Doutrina do Reino de Deus.

Capítulo V
O Princípio de Individualismo em sua relação com a Doutrina da Igreja

Capítulo VI
O Princípio de Individualismo em sua relação com a Doutrina da Interpretação
individual da Bíblia
Capítulo VII
Conclusão

O PRINCÍPIO DO INDIVIDUALISMO EM SUAS EXPRESSÕES DOUTRINÁRIAS

A.B. LANGSTON

INTRODUÇÃO

Os Batistas sustentam muitas doutrinas em comum com as demais denominações


evangélicas, Copioso é o elemento doutrinário comum a todas elas. Podemos mesmo dizer
que grande parte das doutrinas cristãs é propriedade comum de todas as corporações
evangélicas. Basta mencionarmos algumas dessas grandes doutrinas para verificarmos a
razão do nosso asserto
-. Os Batistas sustentam, paralelamente com as outras denominações evangélicas, a
doutrina da Trindade, a da Deidade de Cristo, a do Espírito Santo, a do Pecado, a da Salvação,
a da Segunda vinda de Cristo, etc., etc. Outras ainda se poderiam mencionar. Estas, porém,
são suficientes para mostrar quão vasto é o campo de fé comum.
Ora, mesmo por causa deste vasto campo doutrinário comum, os Batistas são muitas
vezes e em muitos casos, erroneamente julgados, e até duramente criticados; como, por
exemplo, na sua atitude para com o batismo, a Ceia do Senhor, e a união formal da igreja. A
crítica é, por vezes, tão áspera e imerecida quão injusta. E tem larga repercussão! Surge de
todos os cantos. Crentes e não-crentes se revezam na tarefa de criticar a posição dos Batistas,
em relação ás questões mencionadas.
Importa dizer que eles muito se regozijam nas varias relações doutrinárias com as
outras Denominações evangélicas. E se fora meramente, uma questão de doutrina, em geral,
poderia e devia mesmo haver uma relação mais intima entre eles e todas as demais
corporações evangélicas. Efetivamente se fosse uma questão meramente doutrinária,
poderiam os Batistas justificar-se do seu isolamento ou de sua indiferença, aos apelos de
outros ramos evangélicos no sentido de se chegar a uma formal união de todos os crentes?
Não digo que não poderiam justificar-se doutrinariamente; digo, porém, que seria difícil
tornar a justificação efetiva nas mentes alheias. De fato, acham os outros que os Batistas têm
tanta crença em comum com eles que não há justificativa para separação.
Mas o que separa os Batistas das outras denominações evangélicas não são as
doutrinas; são os princípios em que se fundam as doutrinas, muitos dos quais, como se sabe,
lhes são peculiares. E' um fato histórico que os Batistas sustentam princípios que nenhuma
outra denominação evangélica sustenta. E não somente os sustentam, como têm, através de
sua longa e honrosa história, coerente e destemidamente aplicado estes princípios a todas as
suas relações na vida. De modo que se separam de todas as demais denominações evangélicas
pelos princípios que defendem.
Convém notar, contudo, que estes princípios peculiares, não são, por sua natureza,
separatistas. E é tão verdade esta assertiva que esses mesmos princípios, e somente eles,
conservam unida uma universal comunhão de crentes. Falam os Batistas todas as línguas. Há
por conseguinte, nos princípios que lhes são peculiares lugar para essa unidade de todos os
crentes, a qual Cristo nosso Senhor e Mestre tão ardentemente desejava e por que tão
fervorosamente orou. Permanece, pois, o fato de que são os princípios, e não as doutrinas, que
os mantém separados das outras denominações. Numa palavra: Os princípios Batistas definem
a posição dos Batistas.
Assinalemos antes a diferença que realmente existe entre princípio e doutrina. O fato
de não percebermos esta diferença tem trazido, não raramente, confusão sobre o assunto. E
talvez por meio de contraste se faça clara a distinção entre princípio e doutrina. Se
comparássemos doutrina a um diamante, princípio seria, então, a mina de onde se extraiu o
diamante. Se doutrina fosse a lei, princípio seria a constituição; se doutrina fosse o rio,
princípio seria a fonte de onde nasce o rio; se doutrina fosse o edifício, princípio seria a base
ou fundação; se doutrina fosse o sangue, princípio seria a vida; se doutrina fosse a luz,
princípio seria o fogo; se doutrina fosse o calor, princípio seira o sol; se doutrina fosse a
criatura, princípio seria o Criador; se doutrina fosse o fruto, princípio seria a árvore de onde
provém o fruto. O princípio é que dá forma e força à doutrina. São diferentes e contudo são
intimamente relacionados. A relação é orgânica, vital. Princípio é de onde nasce a doutrina.
As doutrinas surgem dos princípios. Doutrina é a revelação e glorificação do princípio. Tal
como o sol, que dá luz, e a luz dá vida e vigor à planta, assim o princípio lança luz sobre a
doutrina, e esta, por seu turno, ilumina a humanidade.
Ora, diante disso, os Batistas desejam ser julgados à luz dos seus princípios e não por
meras diferenças de doutrinas. Este pedido é tão justo como necessário. Talvez não haja
denominação evangélica mais erroneamente julgada que a dos Batistas. Alguns os reputam
acanhados e centralizados em si mesmos; outros acham que eles exaltam exageradamente o
modo de batismo e a quantidade de água empregada na observância do rito. Seria,
efetivamente longa a lista de juízes injustos, se quisermos catalogar todos os que se proferem
contra os Batistas. Mas, em se tratando de juízos superficiais, e fundados, muita vez, na
aparência e não na essência das coisas, eles fatalmente serão divergentes e injustos. É, pois,
razoável que os Batistas desejem que os julguem à luz do seus princípios. O seu testemunho,
em separado, quanto à verdade toda e quanto a Jesus Cristo descansa num princípio, e não em
diferença de opinião sobre doutrinas. Os Batistas, mais que quaisquer outros ramos
evangélicos, são a expressão de um princípio. Martinho Lutero é a explicação da Igreja
Luterana; João Calvino, da Presbiteriana; João Wesley, da Metodista; e Alexandre Campbel,
da chamada Igreja Cristã; mas não é uma pessoa, são princípios que fazem dos Batistas aquilo
que eles são. Eles não são pois a sombra de qualquer homem projetada. São antes a expressão
histórica e vital de um princípio grande e fundamental na própria criação do homem. Há tanta
injustiça em julgarem os Batistas do ponto de vista de doutrina, como na tentativa de explicar
os movimentos de um automóvel sem se considerar a explosão da gasolina. É justo, pois, que
os Batistas exijam que os julguem não pelo prisma meramente doutrinário, mas sob o ponto
de vista dos seus princípios, para que sejam compreendidos.
O princípio por excelência em que se aprofundam a vida e o pensamento batistas, é o
princípio do Individualismo. Toda a sua vida e todo o seu pensamento advém deste princípio.
É, efetivamente, este o princípio operativo na sua vida. Se alguém quiser saber o que é que os
Batistas pensam no tocante a algum assunto, - religioso, social, político ou econômico, - terá
de examinar o seu pensamento em qualquer destas relações à luz deste princípio, a saber:
“Individualismo”. Semelhantemente, se alguém quiser saber como ou por que os Batistas
agem de uma determinada maneira, terá igualmente de buscar a causa neste mesmo princípio
de Individualismo. Muita coisa que distingue a vida e o pensamento batistas pode ser
diretamente atribuída ao princípio de Individualismo; este é o princípio que dá forma ao seu
pensamento e vida ao seu método de operação.
O significado de Individualismo, expresso nos termos mais simples, é a liberdade,
competência e responsabilidade do indivíduo em todas as relações da vida. Naturalmente
não é nossa intenção incluir em “todas as relações da vida” aquelas que são determinadas “a
priori” ou antes do seu nascimento. Sabemos que o homem não é livre quanto à escolha de
sua etnia, de sua ascendência, ou nacionalidade; não obstante, num sentido real, todas essas
relações podem ser vitalmente afetadas pela sua liberdade, competência e responsabilidade.
Prevalece, desse modo, a nossa definição. Quer dizer, então, que Individualismo é a liberdade,
a competência e responsabilidade em todas as relações do indivíduo. Sem liberdade não há
responsabilidade. Sem responsabilidade não há liberdade. Nem uma nem outra, - liberdade ou
responsabilidade, - têm significação à parte de uma certa competência. Os Batistas, portanto,
sustentam que o indivíduo é livre; e que o verso de sua liberdade é a sua responsabilidade. De
igual maneira sustentam também que Deus dotou o ser humano de suficiente competência
para agir por si próprio, em todas as relações da vida.
A fim de chagarmos a uma melhor compreensão do princípio do Individualismo, é
necessário definir os termos usados na definição. Que devemos, então, entender por liberdade,
competência e responsabilidade? Comecemos pois, pela definição de liberdade.
O Deão Inge dizia: “O homem deve ser seu próprio centro, mas não a sua própria
circunferência”. Isto é verdade. O homem ó centro do seu próprio eu. A circunferência, neste
caso, refere-se ao lado social do indivíduo. E o que por agora nos interessa, não é a
circunferência, mas o ponto central da personalidade, que é o ego. Dentro de si mesmo, no
íntimo da sua alma, o homem é livre, é soberano. Aí é ele mesmo quem dirige e domina. É o
único lugar no universo onde o homem se encontra só, sem mais ninguém. Esta intimidade do
ego é o “santo dos santos” da personalidade. Aí o homem é seu próprio sumo sacerdote. Aí só
ele penetra livremente. O próprio Deus não invade esse santuário da personalidade sem o
consentimento e o convite daquele que nele reside. A Bíblia nos apresenta Cristo de pé à
porta, batendo. “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta,
entrarei em sua casa, e cearei com ele, e ele comigo.” (Apoc.3.20) O homem é um soberano
dentro dos limites da sua própria alma. Esta soberania define o termo liberdade, na presente
discussão. No centro mais íntimo do eu somente o homem domina. É ele o único agente
dentro de si mesmo. É ele o mestre, é quem determina o seu próprio destino. Liberdade é o
reinado do homem dentro da própria alma. É a soberania do homem dentro do centro dos
centros da sua personalidade.
Responsabilidade é o verso de liberdade. Se, dentro dos limites deste ponto central só
existe uma pessoa, claro está, neste caso, que o que ali ocorre só é atribuível a uma pessoa, a
saber, a que nele habita. Não importa quantas ou quão grandes sejam as influências externas.
É o próprio indivíduo que determina o que ele mesmo deve fazer. Não há, portanto, desculpa
para o homem de nenhum dos seus atos. Ele, e somente ele, age. Pode não agir isoladamente,
pois há inúmeras influências externas, mas é ele mesmo quem age. É sua, portanto, a
responsabilidade, e isto resulta da própria natureza do caso. O homem é não somente
responsável pelo que se passa na sua personalidade, como também o é por todas as
conseqüências que decorram dos atos da sua alma. Liberdade e responsabilidade são
exatamente as duas faces ou aspectos de uma mesma coisa. E esta “mesma coisa” é o
isolamento do homem, é o homem a sós, dentro de si, o próprio ego, agindo por conta própria.
Competência, por sua vez, pode ser definida: Competência é a capacidade do homem
para agir. É parte inerente da personalidade. É constitutiva, e não meramente descritiva da
personalidade. E assim como não pode haver personalidade sem liberdade e responsabilidade,
também não pode haver personalidade sem competência. De modo que, competência é a
capacidade, dada por Deus ao homem, para agir por si mesmo e consigo mesmo em todas as
relações da vida.
Reconhecemos que competência é um elemento variável na personalidade, mas, no
mínimo, tanto salvaguarda a liberdade quanto a responsabilidade. Nunca se pode reduzir a
competência a ponto de perde a personalidade, porque é um dos seus atributos essenciais.
Deus, ao outorgar liberdade ao homem, fazendo-o responsável pelo uso que dela faz, deu-lhe
também a capacidade necessária para alcançar o máximo dessa mesma liberdade. Deus criou
o homem competente para agir por si mesmo e consigo mesmo.
A base, o fundo filosófico do princípio de Individualismo é a existência da um Deus
pessoal, que criou o homem à sua própria imagem e semelhança. Nenhuma forma de
materialismo ou panteísmo nos daria, por algum tecido de lógica, o princípio de
Individualismo, tal como se definiu acima. Mas, tendo, como temos, um Criador amoroso,
sábio e benévolo, desejoso de fazer o homem à sua própria imagem, é então fácil atermo-nos
ao princípio de Individualismo.
Certamente as Escrituras não nos deixam sem garantia de uma base para esta princípio
de Individualismo. Encontramo-lo fartamente e freqüentemente do Gênesis ao Apocalipse.
Quando Deus admoestou o homem a não comer da árvore da ciência do bem e do mal, fê-lo
no pleno reconhecimento da sua liberdade, competência e responsabilidade. Todos os apelos
da Bíblia, e os há muitos, acham-se baseados na liberdade, competência e responsabilidade do
homem. Notemos apenas dois dos mais insistente. Em Isaías 55.1-3, encontramos as seguintes
belas palavras: “Ó vós, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro,
vinde, comprai e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço vinho e leite. Por que
gastais dinheiro naquilo que não é pão? E o produto do vosso trabalho naquilo que não pode
satisfazer? Ouvi-me atentamente, e comei o que é bom, e deleitai-vos com a gordura. Inclinai
os vossos ouvidos, e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei um
pacto perpétuo, dando-vos as firmes beneficências prometidas a Davi”. E em o Novo
Testamento encontramos, no Evangelho de Mateus 11.28-30, as maravilhosas palavras de
Jesus: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei. Tomai sobre
vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis
descanso para as vossas almas. Pois o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve”. Em toda a
Bíblia, mas com especialidade no Novo Testamento, encontra-se aprovado e aplicado o
princípio de Individualismo. Qual fio de ouro, a idéia de individualismo corre o livro do
princípio ao fim. Nosso único propósito em assinalar o fato aqui, é provar, baseados na
Escrituras, este princípio. Fora de tosa e qualquer dúvida é um princípio bíblico.
Propomo-nos a tratar do princípio de individualismo da seguinte maneira: Fazemos no
primeiro capítulo, uma tentativa no sentido de verificar este princípio baseado num estudo
sobre a doutrina da Criação do Homem. Estabelecido o princípio, tentaremos aplicá-lo ou
mostrar como ele influi na doutrina do Pecado, na da Salvação, na do Reino de Deus, na da
Igreja e finalmente na doutrina da Interpretação individual da Bíblia. Estamos assim
procurando fazer a apologia da posição batista em geral, através do estudo, e da aplicação do
princípio de Individualismo às doutrinas acima mencionadas. É uma tentativa no sentido de
dar uma razão da fé que há em nós. Queremos fazer deste trabalho o estudo duma “seção
transversal” do pensamento e da vida batista; estudo este feito no campo da teologia. É como
se fosse um exame da estrutura do pensamento batista, exame, não da “fachada” do edifício,
mas dos seus alicerces. E o que aqui dissermos relativamente às doutrinas já mencionadas,
aplicar-se-á a todas as fases do pensamento e da vida batista. As conclusões serão gerais, mas
a aplicação do princípio será específica.
Neste tempo de mudança e confusão tudo se discute, – até as próprias coisas que
sempre foram consideradas sacratíssimas e permanentes, – urge que nós os Batistas
examinemos de novo os fundamentos da nossa fé. Urge que nos sintamos fortalecidos em
nossa fé e confiantes de que os nossos pés descansam sobre sólida rocha, sobre fundamento
bem firme e seguro. Uma vez assim firmadas, as nossas convicções, ajudar-nos-ão a
convencer outros, e a nossa certeza constituirá poderoso apelo àqueles que sentem como que a
fugir o solo sob os pés. Num dia como o presente, os Batistas devem estar firmes, estáveis,
inabaláveis, e sempre abundantes na obra do Senhor. E neste sentido suplico que queira o
Senhor abençoar este estudo.
Como facilmente se verá, o presente estudo não é doutrinário no estrito sentido do
termo, e sim, um exame da base ou alicerce das nossas doutrinas. Por esta razão só
mencionaremos de doutrinas o suficiente e necessário para assegurar a compreensão clara das
aplicações do princípio de Individualismo. O ponto em questão não é tratar de doutrinas; é,
pelo contrário, apresentar o princípio de Individualismo em suas relações com as doutrinas;
pelo que não haverá um desenvolvimento lógico destas, mas uma exposição lógica do
princípio envolvido. Algumas tendências atuais no pensamento e na prática dos Batistas
realçam a necessidade, senão a urgência, de que eles examinem de novo o fundamento das
suas doutrinas, para que não aconteça resvalarem da sua antiga ancoragem e se perderem
afinal no labirinto, ou no turbilhão da moderna confusão e incerteza. Em dias tais como os em
que vivemos, se os Batistas se desviarem dos seus princípios fundamentais, e se os perderem
de vista, eles se espalharão ao sabor da correntes que os acometerão de todo lado. Os
princípios são as balizas luminosas que lhes servem de guia através das brumas e da cerração
que obscurecem a sua visão do eterno Reino de Deus. Foi princípio que os trouxe até aqui e é
princípio que os há de guiar daqui por diante. Estou certo de que se os Batistas não se
esquecerem do “porque” e do seu “de onde”, ele ainda hão de dar, em toda plenitude, a sua
mensagem ao mundo inteiro.

CAPÍTULO I

O PRINCÍPIO DE INDIVIDUALISMO
VERIFICADO ATRAVÉS DO ESTUDO DA DOUTRINA DA CRIAÇÃO DO HOMEM

Deus é uma pessoa. Ele pensa, sente e quer. Ele tem consciência própria e direção
própria. Todos estes poderes pessoais em Deus são perfeitos e perfeitamente coordenados.
Cada um em particular e todos em geral preenchem perfeitamente o seu lugar na
personalidade. Esses poderes também se destinam aos mais elevados objetivos possíveis. E
assim, temos não somente um Deus pessoal como também um Deus santo. Santidade
caracteriza tanto a personalidade toda como cada elemento que a constitui. Deus é uma pessoa
perfeita.
Muito mais se poderia dizer com respeito à personalidade de Deus; porém o que mais
nos interessa aqui é a personalidade como tal e não a interpretação dela. Com já dissemos na
Introdução, o fundamento filosófico do princípio de Individualismo é o fato da existência de
um Deus pessoal, que criou o homem à sua imagem e semelhança. Isto nós presumimos. São
infinitas as proporções da sua personalidade. Ele é a fonte de vida, de modo que existe por si
mesmo. Ora, esta Personalidade infinita, santa, existente por si mesma, consciente, voluntária,
que sente, pensa e dirige-se, propôs-se a criar uma personalidade finita à sua própria imagem
e semelhança.
Encontramos em Gênesis 1.26-27 a seguinte declaração: “E disse Deus: Façamos o
homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar,
sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que
se arrasta sobre a terra. Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou;
homem e mulher os criou. O homem é, portanto, uma criatura de Deus, mas semelhante a Ele.
A Bíblia vai além da mera declaração do fato da criação. Ela nos fala de como Deus criou o
homem. Lemos em Gênesis 2.7: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou-
lhe nas narinas o fôlego da vida e o homem tornou-se alma vivente.” De sorte que o homem é
uma alma ou espírito incorporado. É o elo de ligação entre o universo físico e o espiritual. O
corpo o liga ao universo físico, ao passo que a alma o liga ao universo espiritual. Mui
maravilhosa criatura! A coroa da criação! Não admira que o Salmista exclamasse: “sou
assombrosamente e maravilhosamente feito”
Ora bem, a semelhança do homem com Deus não se descobre no corpo. Este é do pó, é
da terra. É material, mas material elevado e consagrado ao mais nobre objetivo que é possível
existir. Devido a sua relação com a alma, o corpo recebe algo da santidade que nas priscas
eras se atribuía às coisas intimamente relacionadas com Deus. Deus chegou até a proferir
solene maldição sobre quem quer que deitasse mãos violentas neste material altamente
reputado! Ver Gên. 9.5-6. O corpo é a morada da alma. A glória do corpo provém do fato de
que ele é a habitação e o instrumento de uma alma feita à imagem e semelhança de Deus. É a
alma humana que projeta luz sobre o seu corpo material.
Não obstante, porém, o fato de se diferirem radicalmente, profundamente mesmo,
entre si, a alma e o corpo, sendo este matéria e aquele espírito, há ainda assim uma íntima
relação entre eles. Esta intimidade de relação, todavia, não chega nunca ao ponto de
identificação. Corpo e alma não se identificam. O homem foi criado alma e então colocado
num corpo material. Talvez não fosse exatamente esta a ordem da criação mas o fato em sei
permanece o mesmo. Damos ao corpo toda a majestade e glória que lhe são próprias, mas,
repetimos, não encontramos nele vestígios de semelhança a Deus.
Onde é, então, que se verifica a semelhança do homem a Deus? É na alma. É na
natureza espiritual do homem. Deus é espírito, e na alma é que encontramos a semelhança
entre o homem e Deus.
Permita-se-me uma digressão, suficiente para chamar a atenção à imperiosa
necessidade que há de se pensar de Deus em termos espirituais. Nunca pensaremos
corretamente acerca do homem enquanto não pensarmos corretamente acerca da Deus. E vice-
versa, nunca pensaremos corretamente acerca de Deus enquanto não pensarmos corretamente
acerca do homem. Ambos, Deus e o homem, são espíritos. E devemos pensar de cada um
deles em termos do espírito. Em nossos pensamentos não damos forma, cor ou peso à
eletricidade. Costumamos pensar de eletricidade em termos de poder ou ação. E por que não
pensarmos de Deus e do homem em termos de pensamento, vontade, sentimento, consciência-
própria e direção-própria ? Perdemos a verdadeira noção de espírito quando o caracterizamos
numa forma qualquer ou o localizamos no espaço. O espírito, como outras coisas invisíveis, é
conhecido por suas manifestações. E espírito se manifesta por si mesmo, pode ser conhecido e
deseja ser conhecido. E a maior manifestação do espírito, de Deus mesmo é o espírito
humano. O homem foi criado à semelhança de Deus. Esta semelhança a Deus está no homem.
O homem é semelhante a Deus.
Ora, a bem da clareza, ainda que não encontraremos na criação tal distinção,
apresentaremos esta semelhança do homem a Deus de dois pontos de vista: a semelhança
natural e a semelhança moral do homem a Deus. Digo que não existe tal distinção na criação
simplesmente pela razão de que a primeira criação, como bem sabemos, não se completou até
que Cristo veio e fundou seu Reino. Todavia, as divisões acima sugeridas levar-nos-ão à
clareza em nossa apresentação do assunto: a semelhança do homem a Deus.
Antes, porém, de discutirmos a semelhança natural e moral do homem a Deus,
desejamos acentuar uma verdade relativamente à criação, verdade sobre que passamos por
alto muitas vezes: a saber, a parte que Cristo tomou na primeira criação, sua natural relação
com a raça humana. É da pena do Dr. Mullins, em seu livro A Religião Cristã em sua
Expressão Doutrinária, o seguinte: “O Novo Testamento claramente ensina que Cristo era não
somente o meio, mas também o fim de toda a criação. ‘Pois n’Ele foram criadas todas as
coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, quer sejam tronos, quer dominações, quer
principados, quer potestades; todas as coisas têm sido criada por Ele e para Ele. Ele é antes de
todas as coisas e n’Ele subsistem todas as coisas’.(Col.1.16-17); “...por quem criou
igualmente os mundos” (Heb. 1.2) É Ele a fonte e o alicerce de todos os poderes naturais do
homem. “...a verdadeira luz que, vinda ao mundo, alumia a todo o homem” (João 1.9). A
imagem divina na constituição original do homem deriva-se de Cristo. Cristo sustém a
natureza em geral e o homem em todas as suas atividades. D’Ele provém os nossos poderes
naturais de razão, vontade, consciência e emoção.”
O fato da participação de Cristo na primeira criação tem um efeito mui decisivo sobre
o seu trabalho na segunda criação. Como prontamente se pode ver, a primeira criação é
natural; a segunda criação é espiritual. Cristo é o cabeça natural da velha raça, exatamente
como é, agora, o cabeça espiritual de uma nova raça. Como afirmei, o fato da autoridade
(headship) natural de Cristo sobre a raça é de tão grande significação na sua obra como
Salvador da humanidade que não poderíamos tocar no assunto sem acentuá-lo de modo
especial. Como bem disse o Dr. Mullins, “Esta é a chave da significação de muitas coisas na
história e experiência humanas.”
Passemos agora à discussão da semelhança natural e moral do homem a Deus.
Comecemos pela semelhança natural, em nosso estudo.
Semelhança natural a Deus quer dizer que o homem foi criado uma pessoa finita
exatamente como Deus é uma pessoa infinita. Não levantaremos aqui a questão sobre se a
essência do espírito finito é a mesma do espírito infinito, mesmo porque ninguém jamais
descobriu a essência de qualquer espírito. Mas o que afirmamos é que o homem, espírito
humano, finito, é semelhante ao espírito divino e infinito. Vimos já que Deus quer, pensa,
sente; Ele tem consciência-própria e direção-própria. E o homem também quer, pensa e
sente. O homem também é consciente de si mesmo e dirige-se. Os dois espíritos são
semelhantes no sentido de se manifestarem do mesmo modo. No tocante à natureza de cada
um deles em sua essência, não se sabe, mas o homem é uma pessoa da mesma maneira que
Deus o é. Todavia, um é finito, o outro infinito; um é humano, divino o outro; um é limitado,
o outro absoluto.
Ora, a semelhança natural do homem a Deus tem, com o seu ser, a sua natureza, a
mesma relação que as cores dum quadro têm com o mesmo quadro. Não é possível
separarem-se as cores e ainda conservar o mesmo quadro. O homem é por natureza imortal
porque foi criado semelhante a Deus. Ele não pode perder a semelhança natural a Deus
porque faz parte da sua natureza. Uma pessoa é uma unidade indivisível. A morte, que é a
separação da alma, não tem poder sobra a pessoa. Assim a nossa semelhança natural a Deus,
que existe por si mesmo, salvaguarda a nossa imortalidade. Deus é uma pessoa, o homem é
uma pessoa, mas não são iguais, apenas semelhantes.
Em segundo lugar consideraremos a semelhança moral do homem a Deus. Daí, a
pergunta: Foi, na primeira criação, o homem de fato feito moralmente semelhante a Deus?
Vejamos. Quando se considera a criação mora, ou a criação de um ser moralmente bom,
depara-se imediatamente um novo método na criação. A semelhança natural do homem a
Deus é o resultado direto da vontade de Deus. A única vontade envolvida em todas as coisas,
inclusive o homem na sua semelhança natural a Deus, é a vontade de Deus. Mas não se pode
fazer o homem bom por este método, de “uma só vontade”. Um homem bom é a decorrência
ou conjunto de duas vontades, a saber, a do Criador e a da criatura. Quando Deus chegou ao
ponto de fazer o homem moralmente semelhante a Ele, mudou de método na criação –
consultou a vontade do homem. Deus levou a criação ao mais elevado progresso e ao último
ponto possível, e então ficou à espera de cooperação do homem, a criatura mais alta, a fim de
coroar a obra toda por um ser moralmente bom. O Criador, pode-se dizer, tomou a criatura
como participante ou sócia no trabalho da criação espiritual. Desse momento em diante
deveria haver mútua associação, mútua comunhão e mútua compreensão entre ambos. Como
isto é simultaneamente condescendência divina e enobrece ao homem!
Em verdade, nem podia ser de outra maneira. Para elevar a criação ao mais alevantado
nível, – o nível espiritual, – dizemo-lo reverentemente, era preciso que Deus esperasse pelo
homem; o Criador teria de esperar pela cooperação da criatura , porque só assim é que se
podia fazer o homem bom moralmente. É este o plano divino; não o de descer ao plano em
que se achava o homem, mas ao contrário, o de erguer o homem ao elevado plano de
companhia espiritual com Deus. Este fato lança abundantíssima luz, tanto a respeito da
natureza do homem, como também da de Deus. Porque é o esforço do infinito para trazer o
finito à sua presença, sem destruí-lo. É o esforço do Criador para trazer a criatura à sua íntima
companhia, sem consumi-lo. É o esforço de um Deus amoroso e todo sábio para trazer o
homem à sua comunhão, sem que este perdesse a própria individualidade. Uma graciosa
condescendência, mas também é uma maravilhosa exaltação!
Dizendo, pois, que o homem foi moralmente criado à semelhança de Deus, não
fazemos significar que a bondade inerente ao homem estava na mesma base da sua
semelhança natural a Deus. Este era, certamente o alvo em vista, mas ainda não fora
realizado. A semelhança moral do homem a Deus não tem com o seu ser a mesma relação que
as cores têm com o quadro. As “cores” na semelhança moral do homem a Deus só poderiam
tornar-se “fixas” por um ato da livre vontade do homem. Este é o ponto crucial de tudo. Será
assim? Fará o homem uma decisão acertada? Cooperará ele com Deus? Corresponderá ele à
vontade de Deus? Escolherá a natureza moral semelhante à natureza moral de Deus?
Desse modo a criação tornou o pecado necessário? Não; porém possível. Todas as
probabilidades eram contrárias à hipótese do homem deixar de cooperar com Deus; todas as
suas tendências eram, por assim dizer, “para Deus”; eram agradáveis todas as perspectivas.
Todo o impulso da personalidade era para o bem; tudo apontava, tudo tendia para uma
escolha boa e feliz e consequentemente para a elevação do nível da criação ao nível espiritual,
– alvo e mira da criação toda. (* Ver sobre este ponto o nosso raciocínio em “O Ser
Antropológico” – nota do copista deste livro). E isto foi tão longe até onde Deus podia
coerentemente chegar, em fazer o homem moralmente bom, como Ele próprio. Deus deu ao
homem boas tendências, mas o homem podia cair. A alma não estava ainda estabelecida,
firmada na sua moralidade. Somente em Deus de infinitos recursos se arriscaria a tanto. E por
que se arriscou? É o preço tributado à liberdade; Deus o pagou se hesitação. Escolha é a mãe
do caráter.
Parece evidente, então, que esta semelhança moral do homem a Deus pode perder-se.
É possível ao homem abusar dessa oportunidade, que Deus lhe deu, de se tornar seu
cooperador na obra da sua própria criação e na de outros, à semelhança moral do Criador? É
possível a ele inverter a tendência “ascendente” da criação e resultar daí uma tendência
descendente, uma queda. É possível a ele negar todas as tendências da sua natureza. É
possível ao homem, filho “por natureza” de Deus, perder seu direito espiritual à filiação e
tornar-se um pródigo, desperdiçar os recursos herdades de seu pai, numa vida desenfreada.
Estou certo de que a criação toda esperou ansiosamente, como que sem respirar, até que o
homem fizesse a sua momentosa decisão.
O Apóstolo Paulo, no oitavo capítulo de sua Carta aos Romanos, falando de quanto
sofreu a natureza como conseqüência da momentosa decisão do homem, assim se expressa:
“A ardente expectativa da criação, aguarda a manifestação dos filhos de Deus. Pois a criação
ficou sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou, na
esperança de que também a própria criação será libertada do cativeiro da corrupção para a
liberdade da glória dos filhos de Deus. Ora, sabemos que toda a criação juntamente geme e
está com dores de parto até agora.” Rom. 8.19-22 . A decisão do homem envolveu toda a
criação. Como já mostramos, Deus operando só, já elevara a criação a um nível
excessivamente nobre. Mas para elevá-la ainda mais e colocá-la em o nível espiritual, Ele
precisava da cooperação humana. Obteve-a? Qual foi a decisão do homem? Foi esta a hora
crucial na criação. O peso ou equilíbrio da vontade humana poderia levar a criação a um
glorioso término ou fazê-la retroceder em ignominiosa derrota. Que seria, então? A resposta a
esta momentosa pergunta será dada no capítulo seguinte.
Assim o homem foi criado naturalmente semelhante a Deus por ter sido feito um
pessoa tal como Deus é. Ele foi também criado moralmente semelhante a Deus, de modo que
todas as suas tendências morais se dirigiam para Deus. O homem foi criado com propensão
para o bem. Convém notar, todavia, que essas tendências e essa propensão para o bem
precisavam de confirmação de sua parte. Uma vez confirmadas por ele, tornar-se-iam tão
inerentes na sua personalidade como a semelhança natural a Deus já o era. Gên.3.22 é uma
passagem bíblica que sustenta vigorosamente esta idéia: “Disse Deus Jeová: Eis que o homem
se tem tornado como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Agora para que ele não estenda a
mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente, Deus Jeová o enviou para
fora do jardim do Éden, a fim de cultivar a terra de que havia sido tomado. Assim expulsou ao
homem, e ao oriente do jardim do Éden pôs os Querubins e o chamejar de uma espada que se
volvia por todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida”. O homem não foi
criado santo como Deus é santo. Mas foi criado um pessoa com todos os seus decorrentes
atributos e com todas as tendências da sua alma voltadas para Deus.
Antes de prosseguirmos a verificar os fatos que constituem o princípio de
Individualismo tal como elucidado no estudo da doutrina da Criação do homem, façamos uma
digressão suficiente a fim de examinar dois dos atributos fundamentais da personalidade, os
quais são: consciência-própria e direção-própria. Torna-se necessário notar, embora
ligeiramente, estes dois atributos da personalidade, e isto por causa de sua relação direta com
o princípio de Individualismo.
Consciência própria é a habilidade ou faculdade que a pessoa tem de reflexão própria
do eu, sobre si mesmo ao seu íntimo; atributo este que o faz competente e eficaz explorador
das vastas regiões de sus própria alma. Como resultado deste peculiar atributo da
personalidade, ele pode realizar longas incursões dentro dos limites de seu próprio ser,
observando-lhe o conteúdo, ficando ao par da sua natureza, e informando-se das suas
possibilidades. É isto que alicerça e sustenta todo o progresso não só da matéria como do
espírito. O progresso da alma é a alma do progresso. E se a alma for o que é, digamos, o que
deve ser, só pode progredir, por se tornar ciente de seus próprios poderes, necessidades e
possibilidades. Assim, a consciência-própria fornece ao homem esta oportunidade de se
conhecer. É uma dádiva áurea de Deus. Tiremos, pois, dela a melhor vantagem!
A consciência-própria tem ainda uma relação muito interessante com a salvação. Só ao
ser, dotado de consciência-própria, é possível a salvação. Nas suas observações introspectivas
chega o homem à conclusão de que é perdido. Ele vê a sua própria condição de ruína. Aspira
por alguma coisa melhor. Busca um Salvador na base do conhecimento que tem da sua
condição de perdido. Ver Lucas 15.17-20.O “pródigo”, “tornando em si”... levanta-se
arrependido e volta à casa paterna.
O segundo atributo da personalidade que vamos considerar, de passagem, por causa da
relação vital que tem com o princípio de Individualismo, é o de direção-própria. Direção
própria, quer dizer, a habilidade que o homem tem de orientar as múltiplas forças e atividades
da própria alma para uma finalidade elevada e definida. O homem é autômato. Em certo
sentido como é um automóvel. Ambos são feitos de peças. O “volante” do automóvel
corresponde, num certo sentido, à vontade humana. Para qualquer lado que se dirija a
vontade, a acompanha o homem, exatamente como o automóvel obedece à rota da roda de
direção. É maravilhosa a combinação, tanto no homem como no automóvel, especialmente
quando todas as peças cooperarem harmoniosamente. Todavia, é fatal a ausência dessa
cooperação. Divisões na personalidade são tão fatais à sua direção como é no automóvel uma
roda de direção que não funcione regularmente. O homem, porém, tal qual saiu da mão de
Deus, se acha no pleno domínio de si mesmo. E isto é direção própria.
De igual maneira, esta direção-própria se relaciona de modo interessante e definido
com a salvação. Se a consciência-própria desperta o desejo da salvação, por sua vez a direção-
própria, com a ajuda de Deus, consegue-a. Somos salvos pela graça, por meio da fé.
Mas, que tem tudo isto a ver com o princípio do Individualismo? Muito, na verdade. O
que se tem dito neste Capítulo se relaciona com o princípio do Individualismo de duas
maneiras distintas, pelo menos. Primeiramente, porque o verifica. É relativamente fácil
deduzir-se dos fatos decorrentes da criação do homem, os que constituem o princípio de
Individualismo. O princípio de Individualismo surge da semelhança natural do homem a
Deus. Vimos Deus reconhecendo a liberdade do homem quando bem pudéramos desejar que
tal não se desse. E visto que responsabilidade sempre é correspondente com liberdade, torna-
se claríssimo que Deus não só criou o homem livre e responsável como também o trata nesta
mesma base. Igualmente, a competência do homem decorre da sua semelhança natural a
Deus. Seir então difícil entender realmente liberdade e responsabilidade à parte de alguma
espécie de competência. Um estudo da doutrina da Criação do homem, portanto, verifica
claramente o princípio de Individualismo.
Recebemos também deste estudo uma concepção clara de como este princípio opera
nas doutrinas de Pecado, Salvação, Reino, Igreja e a da Interpretação Individual das
Escrituras. O estudo da doutrina da Criação do homem não só nos dá o princípio como
também a chave para a sua aplicação a todas as relações da vida.
De pé, pois, estão as condições em que nos vão revelar as ações intermediárias, e as
interações das duas vontades, a de Deus e a do homem. Estamos certos de que Deus
reconhece todos os homens como livres e iguais em sua presença. Não resta dúvida de que Ele
reconhece todos os homens estritamente responsáveis pelo uso que fazem de sua liberdade. É
claro também que a competência da alma, para entender-se diretamente com Deus, não pode,
razoavelmente, ser negada.
Como irão estes fatos influenciar na futura relação entre Deus e o homem? De onde,
de que princípio partirá a história? Haverá, daqui para a frente, conflito ou cooperação entre a
vontade de Deus e a do homem? A fim de prosseguir em seu plano, levará Deus sempre em
consideração a liberdade humana ou arrepender-se-á de haver dado ao homem a liberdade?
Cancelará Deus a liberdade do homem e retornará ao nível natural da criação? Haverá uma
queda em Deus, ou no homem, ou em nenhum deles? Porque, se Deus vier a cancelar a
liberdade humana e regressar ao nível natural da criação, haverá então uma queda, senão em
Deus, pelo menos da parte de Deus. Mas se o homem conservar a sua liberdade, poderá cair.
Momentosos problemas, pois, acham-se envolvidos na liberdade do homem. Ainda assim, o
homem é verdadeiramente livre. Deus o criou livre, responsável e competente.

CAPÍTULO II

O PRINCÍPIO DO INDIVIDUALISMO EM SUA RELAÇÃO COM A DOUTRINA DO PECADO

No estudo da doutrina da criação do homem verificamos que, chegando Deus ao ponto


de fazer o homem bom, moralmente semelhante ao próprio Deus, adotou novo método na
criação. Este novo método não foi como que um pensamento tardio, alguma resolução
extemporânea da parte de Deus, mas, ao contrário, Ele o planejara desde os primórdios. Era
parte componente do seu eterno propósito. Fora sempre a sua intenção, chegada que fosse a
ocasião, que a vontade da criatura humana cooperasse. E assim o processo da criação foi por
um momento sustado. Não resta dúvida de que o propósito divino era continuar até elevar a
criação ao nível espiritual. Mas para consegui-lo importava que Deus esperasse pela vontade
humana. Uma vez que criara um mundo onde existiam outras vontades além da sua própria,
Deus, pelo próprio ato da criação, sentia-se preso ao respeito à vontade humana. Isto foi, da
parte de Deus, uma auto-limitação de profundo alcance; recompensado porém por uma
criação muito mais gloriosa.
Verificamos também que Deus, ao criar o homem, foi tão longe quanto era possível,
em fazê-lo bom, sem, contudo, privá-lo de sua liberdade, do seu direito de escolha, o qual já
possuía em virtude de sua semelhança natural a Deus, e tanto quanto possível predispôs todas
as tendências da alma humana de modo que propendessem para o Supremo Bem que é Deus
mesmo. Todas as probabilidades eram que o processo da criação continuaria sem solução de
continuidade até que o nível chegasse ao sublime da criação – o nível espiritual. As cores da
semelhança moral do homem a Deus estavam todas misturadas e combinadas em proporções
exatas e adequadas. Só lhes faltava a elas a ação da vontade do homem para “fixá-las”. Deste
modo a eterna justiça com todo o seu tesouro riquíssimo de bênçãos foi posta ao alcance
humano. Deus esperou. A Criação esperou. Que espetáculo! E que grande carga de bênção ou
maldição, de vida e morte, de céu ou inferno estavam na escolha que o homem estava prestes
a fazer! Recordemos, mais uma vez, que Deus já havia feito o mais que podia fazer; o resto
dependia do homem.
Atingiu, afinal, o homem o nível que seu Deus lhe privilegiara para tornar-se seu
cooperador? Satisfez ele à solene exigência do momento? Cumpriu as profecias e as elevadas
esperanças da criação? Não. A despeito das boas influências, tanto internas como externas, o
homem malogrou, o homem caiu. E com ele caíram também as mais luzentes esperanças da
primeira criação. Com isto permitiu o homem que se perdessem por hora as “certezas” da sua
semelhança moral a Deus. Essas certezas fugiram, desapareceram. E assim, o que estava ao
alcance do homem por um simples ato de sua vontade, terá agora de ser comprado por grande
preço, sim, o preço do próprio sangue precioso do Filho unigênito de Deus.
Exatamente por que foi ou como foi que o homem caiu, ninguém sabe. Não se explica
tamanha catástrofe. O mistério deste acontecimento permanece profundamente soterrado por
debaixo das multiformes possibilidades de uma vontade livre em um ser livre. Se uma criança
num lar de amor e conforto, resolvesse de repente a abandonar casa, pai, mãe, irmãos e irmãs,
para bandear-se com assassinos e ladrões, como se poderia explicar o caso? Ainda mais
misteriosa e inexplicável é a Queda do Homem. Permanece, porém, o calamitoso fato: ele
caiu.
Apresenta-se, todavia, uma circunstância atenuante, e daí alguma esperança em meio
do naufrágio e ruína da mais bela esperança da criação. Refere-nos a Bíblia que a provocação
para o pecado veio de fora. O homem foi tentado e cedeu à tentação. Se o pecado fora
inteiramente subjetivo, isto é, sem qualquer provocação externa, do mundo fora, já não
haveria esperança para ele. Resta, portanto, uma esperança, a de que ainda apareça alguma
força externa que opere, com igual ou maior poder, no seu coração e destarte salve-o de seus
pecados. Esta esperança, como sabemos, realizou-se em Cristo Jesus. Paulo diz: “Assim, pois,
como por uma só ofensa veio o julgamento sobre todos os homens para a condenação, assim
também por um só ato de justiça veio o julgamento sobre todos os homens para a justificação
da vida; porque assim como pela desobediência de um só homem, foram todos constituídos
pecadores, assim também pela obediência de um só todos serão constituídos justos”
(Rm.5.18-19)
É bom notar que tudo quanto descrevemos ocorreu dentro da alma humana. A Queda
precedeu ao ato manifesto de desobediência. O ato externo era apenas a expressão ou
exteriorização do que já se passara no mais íntimo da alma humana. O pecado antecede a
pecados. O homem, de algum modo misterioso, contrariou as tendências de sua alma e
perverteu-se, e se encheu de pecado. Suas obras más eram então meramente a revelação da
natureza pecaminosa que adquirira. O fracasso do homem foi um fracasso do coração. Foi um
fracasso do ponto central da personalidade, sobre o qual só ele mesmo exerce domínio. O
fracasso se deu no “santo dos santos” da personalidade. Se se tivesse ocorrido em algum outro
ponto, de alguma maneira a salvação teria sido assunto menos complicado; mas fora no centro
da personalidade humana. Foi no recinto privativo da alma que o homem caiu, tornando-se
assim a salvação mais difícil e mais custosa. A Igreja Católica erra gravemente neste ponto,
concernente ao seu método de salvação. Para ela o pecado, depois do batismo, é praticamente
externo, é uma obra praticada, de forma que é de fácil remoção. Mas a Bíblia apresenta o
pecado como um mal interno, do coração mesmo, e por isto é sempre de dificílimo alcance
(para ser tirado – nota do copista).
Por mais interessante que fosse a discussão sobre a Queda, basta a simples designação
do fato e passemos adiante, a considerar os seus efeitos dentro deste “santo dos santos” da
personalidade. Queremos saber o que aconteceu dentro da própria alma do homem. É ele
ainda um ser livre? É ainda responsável perante Deus? Em que ficou a sua competência. Que
mudança se operou na sua consciência? De que modo foi a sua determinação própria
atingida? A resposta a estas interrogações nos ocupará a mente até o fim deste capítulo.
Todavia, já foi estudada suficientemente a doutrina do Pecado, de modo a nos dar bases
bastantes para a aplicação do princípio do Individualismo à referida doutrina.
Incapazes embora de descobrir como o homem caiu, já assim não se dá quanto aos
efeitos da Queda, pelo menos em parte. Aqui não nos interessa investigar todos os efeitos
dela, mas somente aqueles que dizem respeito diretamente com o problema em vista, e
também nos preparam para o que se seguir. Notemos, pois, os resultados da Queda sobre a
liberdade, a responsabilidade e a competência do homem.
Para evitar confusão convém recordamos a definição da liberdade, dada no capítulo de
Introdução. Ali, definiu-se liberdade como a soberania do homem dentro dos limites de seu
próprio ser. O homem foi criado soberano sobre si mesmo na essência do seu eu. Ora, a
Queda não modificou este fato. O homem, depois dela, ainda permanece livre. Não resta
dúvida de que ela trouxe sérios problemas à personalidade humana; mas, ainda assim,
permanece a liberdade do homem. Demonstramos já, que a liberdade é um elemento essencial
e constitutivo da personalidade. Ela se relaciona com a personalidade da mesma maneira que
as cores, no quadro, se relacionam com o próprio quadro. Esta liberdade está na semelhança
natural do homem a Deus. O homem não pode perder sua liberdade e continuar a ser ainda
uma personalidade, como não pode perder a liberdade e ainda permanecer livre. A liberdade é
parte constitutiva e não meramente descritiva da personalidade. De modo que, em meio do
naufrágio e ruína provenientes da Queda, permaneceu inalterável a liberdade humana. O
homem continua a ser um ser moral.
Ora, a sua natureza permanece; a Bíblia fala do homem como escravo do pecado.
Paulo chega a dizer: “Porém agora não sou eu mais o que faço isto, mas o pecado que habita
em mim” (Rm 7.17) . Muitas outras passagens se poderiam citar no mesmo pensamento. Jesus
disse aos Fariseus: “Em verdade, em verdade vos digo: Todo o que comete pecado, é escravo
do pecado.”
Duas observações são necessárias para se esclarecer a situação. A primeira é que esta
personificação do pecado produz uma certa confusão, a não ser que se tenha cuidado ao
pensar no assunto. Esta referência a pecado, em termos pessoais, é perfeitamente correta
desde que não se confunda pecado com personalidade. As duas coisas, pecado e
responsabilidade, são separadas e distintas. Pode haver personalidade sem pecado. Jesus foi
assim. Nas não há pecado sem personalidade. Paulo no seu fortíssimo testemunho não
pretende negar a sua liberdade em fazer o mal, mas está simplesmente acentuando o poder do
pecado na personalidade. Jesus igualmente acentua o mesmo fato. Nem Jesus, nem Paulo
atribuem ao pecado quaisquer elementos de personalidade. O pecado não é uma pessoa, nem
possui qualquer dos atributos de personalidade. É necessário pensar do pecado tal qual ele
efetivamente é, e não como não é.
A segunda observação, é que um rei ou soberano pode tornar-se escravo. E este é o
âmago, o coração da tragédia do pecado. O direito do homem à soberania, a ser rei dentro de
sua própria alma, é um direito inalienável, é um direito divino que lhe não pode ser
confiscado. É como a filiação, que não pode ser mudada. É aqui exatamente que se nos depara
mais um dos paradoxos que se encontram na religião cristã. E há muitos destes paradoxos:
morremos para viver; perdemos a vida a fim de achá-la; damos para nos enriquecer; somos
livres e não obstante somos escravos.
Para reforçar o que dissemos, suponhamos por um momento que a liberdade do
homem fosse atingida ou afetada pela Queda. Suponhamos que o homem realmente não seja
livre. Que teremos então? Teremos não só uma responsabilidade minorada, mas também que
continuará sempre diminuindo. Note-se que a responsabilidade é proporcional à liberdade.
Diminui-se a responsabilidade quando se diminui a liberdade. Neste caso, um homem podia
pecar até ficar livre de toda a responsabilidade. Adviria deste caso, o absurdo do muito pecado
impune, e do pouco pecado eternamente punido. Não se transtornem os ensinos das Escrituras
neste ponto. Para o muito pecar, muitos acoites, dizem as Escrituras: “E aquele servo, que
soube a vontade do seu senhor, e não se preparou, nem fez conforme a sua vontade, será
castigado com muitos açoites; aquele, porém que não soube, e fez coisas que mereciam
castigo, será punido com poucos acoites” (Luc. 12.47-48)
Visto como responsabilidade é o verso de liberdade, e uma vez que esta permaneceu
inalterada depois da Queda, é inútil supor qualquer variação na responsabilidade. E este é o
caso. O homem é tão responsável por suas más obras, quanto o é pelas boas. Todas as obras
do homem têm a mesma relação para com a responsabilidade; esta chama-se a si como suas
próprias. A responsabilidade assume para com os feitos da alma a mesma atitude que uma
mãe virtuosa assume para com os seus filhos, quer bons quer maus. Ela, a liberdade,
reconhece todas esta obras como sua peculiar possessão.
Em nossa definição dos termos usados em estabelecer o princípio do Individualismo,
demos competência como sendo a habilidade do homem de agir por si e consigo. Aí também
não há alteração. O homem, mesmo como escravo do pecado, age consigo e por si. No tocante
à competência, porém, há uma alteração que podemos sim observar: depois da Queda, o
homem tornou-se mais frutífero na prática do mal. Quer dizer que ele se tornou mais
competente para a prática do mal do que para a da justiça. O fato, porém, permanece, quer na
justiça quer no mal: o homem ainda é um ser capaz d agir por si e consigo.
Ora bem, interrogará alguém, em que o homem foi mudado pela Queda? A mudança
ocorreu em outras províncias da personalidade, na consciência e na direção própria do
homem. Visto que estes dois elementos da personalidade se estribam diretamente no que
estamos a considerar e o que se segue, examinemo-los ligeiramente.
Quando o homem caiu, operou-se profunda modificação em sua consciência-própria, a
qual é um dos elementos psicológicos da personalidade. Refere-se à consciência que cada um
tem do eu, que é um dos conteúdos constitutivos da personalidade. Esta consciência de si, no
homem, foi grandemente aumentada. Depois da Queda ele começou a sofrer imediatamente
de um ego ultra-exagerado. E por cauda da divisão, da confusão, da luta e do cisma que
concorreram dentro de sua própria alma, ele se viu constantemente face a face consigo
mesmo. Nunca mais pode esquecer o seu eu por um momento sequer, e, note-se, o eu nos
seus aspectos menos agradáveis. Esta situação agravou-se cada vez mais. Já não era possível
encontrar paz. Davi, no Salmo 51.2, 3 descreve vividamente a situação. “Lava-me
completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado; pois as minhas
transgressões eu as reconheço, e o meu pecado está sempre diante de mim.” Isolar-se dentro
de si seria o cúmulo da miséria. Abismar-se caca vez mais em pecado era como ajuntar lenha
no braseiro. Era como se todas as extremidades no nervo moral estivessem expostas e o
homem se visse torturado de mil maneiras. Completa aniquilação lhe seria como a mais
preciosa dádiva da vida, mas a própria morte escapava à cena. O homem é imortal. Não
importa para que lado se havia de virar; aí se lhe deparava, face a face, o seu eu pecaminoso,
revestido, não das roupagens da realeza, senão dos farrapos e da imundície dum escravo do
passado. Não é de admirar que Paulo exclamasse: “Infeliz homem eu! Quem me livrará do
corpo desta morte?” (Ro 7.24). O pecado reduziu o centro mais íntimo da personalidade
humana a um estado de completa desordem, como se tudo fora revolvido. O pecado
desenvolveu-se grandemente, exatamente no ponto onde devia ter diminuído e diminuiu onde
devia ter acrescido. Fixou-se; avivou a consciência do homem de todas as suas omissões e
fracassos. Não vale a pena negar o inferno enquanto se não puder remover essa triste verdade.
Além disso, também afetou grandemente a direção-própria do homem. Esta direção-
própria necessitava de ser ampliada, mas o pecado diminuiu-a. Se bem que um administrador
por natureza, por direito divino, viu-se cada vez menos capaz de dirigir. O pecado estabeleceu
a anarquia e a rebelião na alma humana. Não cessaram as lutas e contenções. E Paulo
expressa vividamente o caso: “Porque o que faço não entendo; pois não pratico o que quero,
mas faço o que aborreço.” (Rm7.15). (Note-se o emprego do pronome na primeira pessoa do
singular.) Viu0se o homem cada vez mais impossibilitado de dominar as suas forças internas.
Tornaram-se, mesmo, imanejáveis. Ele se tornou vítima de si mesmo. Nascido para dirigir e
dominar, veio a servir a duro e cruel patrão!
Notemos, contudo, que diminuição em direção-própria não envolve liberdade, não
envolve o direito de dirigir. Só envolve a habilidade para essa direção. O problema aqui é: que
no homem vai ele dirigir? A perda de direção-própria envolve antes competência do que
liberdade. Este ponto já foi discutido.
O pecado produziu um cisma na personalidade e arregimentou o eu contra si mesmo.
Torna-se, então, a alma humana o campo de batalha mais importante no mundo. É aqui que se
estabelecem problemas da vida e de morte. Trava-se uma batalha sem tréguas. É uma luta de
morte. Em Lucas 9.23, há estas palavras de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a
sim mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me.” A cruz é um instrumento de morte; mas de
quem? De que? E, note-se ainda, que esta batalha se fere dentro da mais íntima arena da
personalidade, o sítio mais estratégico do universo. Vencer aqui, é vencer em toda a linha.
Mas perder aqui, é perder tudo. Alguma coisa desta verdade tinha Jesus em mente quando
disse: “Que aproveitará o homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”. Qual será
o fim de tudo? Quem, afinal, possuirá a alma humana: o pecado no homem ou Deus no
homem? E a batalha no mundo trava-se da mesma maneira como se tem travado na alma
humana.
Concluindo este capítulo sobre o princípio do individualismo em sua relação com a
doutrina do Pecado, considera-se mais adiante a liberdade, competência e responsabilidade no
que elas se relacionam de modo mais geral com o problema do pecado e sua introdução na
raça humana. Esse estudo ulterior dos fatos que constituem o princípio do Individualismo
reforçarão e tornarão mais claro ainda o que já se disse. De sorte que a doutrina do Pecado é
de tão grande alcance, exerce tamanha influência em muitos dos problemas discutidos nesta
tese, que valerá a pena todo o labor em elucidá-la, se provier daí, como esperamos, uma
melhor compreensão da mesma.
A liberdade do homem é não somente verificada como também exemplificada na
escolha má que ele fez. Como já vimos, em Deus já ter ido tão longe quanto lhe fora possível,
na obra da criação do homem, à sua semelhança e imagem, Ele esperou pela vontade do
homem, aguardou a sua cooperação e a sua decisão. Deus até indicou-lhe o que devia e o que
não devia fazer, assinalando-lhe as conseqüências que adviriam de fazer o mal. Mas a
despeito de tudo, o homem fez uma escolha má; decidiu não cooperar com o seu criador.
Usamos a expressão “escolha má” ao invés de “escolha do mal”, por três motivos.
A primeira razão de fazê-lo é que assim se fixa a atenção na escolha como tal, ao invés
de fixá-la no objeto da escolha. A Bíblia mui claramente ensina que o pecado descansa na
própria escolha, não no objeto da escolha. Não há nisto alusão de qualquer espécie, nem há
interesse em fazê-lo, ao sofisma de que “não há nada de mau por si mesmo”, sofisma por onde
se quer tornar justificáveis todos e quaisquer procedimentos. Mas o que interessa é ser fiel a
cada palavra e inferência das Escrituras Sagradas. A Bíblia não ensina que o pecado é inerente
à matéria. O pecado está no homem. E a coisa importante a respeito dele é a escolha, e não o
objeto dessa escolha.
A segunda razão por que uso a expressão “escolha má” é que ela não permite divisão
da responsabilidade pelo pecado. Se se fizer tanto a escolha como o objeto da escolha, partes
do pecado, então também se dividirá a responsabilidade pelo pecado, debitando parte ao
homem, – talvez a maior parte, e parte, debitando ou imputando ao objeto da escolha. E isto a
Bíblia não faz. A Bíblia declara que o pecado entrou na raça pelo homem, não através da
matéria. A Bíblia em lugar nenhum divide a responsabilidade do pecado entre a matéria e o
homem. E Paulo, em Romanos 8.20, expressamente declara: “Porque a criação ficou sujeita
à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou.”
A terceira razão para o uso da frase “escolha má” em lugar de ”escolha do mal”, é para
que se evite um desnecessário dualismo na criação. Não se nega com isto a objetividade da
tentação. A Bíblia é muito clara a este respeito também. A tentação veio de fora. Mas a
questão é, quando o homem decidiu o problema sobre se cooperaria com Deus ou iria
sozinho, que fez ele? Fez uma escolha má ou escolheu o mal? Parece evidente que o fazer
uma escolha má é suficiente para explicar o que ocorreu. E também, isto não levanta o sério
problema de um dualismo na criação.
Mas, o que é que há de significação especial na frase “escolha do mal”? Talvez seja
mais satisfatório responder por meio duma analogia. Suponhamos o caso duma menina de
tenra idade. Ela cresce no meio da família, inconsciente das diferenças fundamentais entre si e
seu irmão. Até à idade de cinco ou seis anos ela mal compreende a necessidade de roupa para
se apresentar no meio da família. Mas, gradativamente ela se transforma. Nada perde da sua
inocência infantil, mas vai se tornando cada vez mais reservada e esquiva. Esta tendência
naturalmente se desenvolve numa reserva que se torna sagrada como a própria vida.
Atingindo a idade adulta essa menina, então, no modo por Deus determinado, por ser mãe,
encontra resposta a centenas de questões que lhe surgiram na mente desde a infância até à
época de ser mãe. Mas, a beleza de tudo isto é que ela as aprendeu no próprio tempo que Deus
determinou e no próprio modo por Deus indicado. O conhecimento desses fatos na maneira
apropriada a elevou, enobreceu e purificou. Tudo isto é perfeitamente natural e é exatamente
o que se devia ocorrer. Esta era intenção divina. É assim que deveria ter acontecido com o
primeiro homem. Estamos absolutamente certos de que, se Adão e Eva tivessem esperado o
“tempo e a maneira” de Deus, eles teriam “visto” muito mais e muito melhor do que “viram”
quando seus olhos foram abertos pelo pecado.
Por outro lado suponhamos que essa mesma menina de que falamos, à idade de
quatorze ou quinze anos, no intuito de encontrar solução para as muitas interrogações que
diariamente a assaltavam, tivesse escolhido, não esperar o tempo e a maneira indicados por
Deus, mas se dirigisse à esquina da rua, adquirindo informações do primeiro indivíduo sem
escrúpulos que por ali passasse. Ela poderia adquirir exatamente o mesmo conhecimento que
adquirira pelo modo divino; mas que diferença faz na vida duma pessoa os conhecimentos
assim adquiridos! Eis o que seria uma escolha má. Ela talvez não tenha ainda escolhido o mal,
mas uma escolha má é um passo precipitado e bem diferente da escolha do mal. A escolha do
mal se dá primeiramente através de uma escolha má.
Haja em mente que este pouco de analogia é usado não numa tentativa de explicar
como o homem caiu, mas somente para mostrar as conseqüências remotas de uma escolha má.
Inúmeras vidas têm sido danificadas e arruinada por uma escolha assim, ainda nos casos em
que não houvera má intenção. A má escolha é mais fundamental, de mais largo alcance, do
que a escolha do mal. A má escolha gera uma tendência. A escolha do mal gera uma obra.
Assim como a escolha má revela a liberdade do homem, assim a punição que lhe
coube revela a sua responsabilidade. Ao pecar o homem, foi pronunciada sobre ele uma
maldição, foi-lhe dada a punição. Esta punição é eloqüente no testemunho que dá quanto à
responsabilidade em haver trazido o pecado ao mundo. E quanto mais se considera a
quantidade e a qualidade desta punição, tanto mais se fica aterrado pela soma de
responsabilidade atribuída ao homem. No seu senhorio sobre a criação parece ter tido também
responsabilidade por toda ela. Certamente a punição recebida não foi maior que a
responsabilidade atribuída a ele. A linguagem de Caim, (ver Gênesis 4,13) é muito expressiva
nesta conexão: “A minha punição é maior que a que possa suportar.”
Mas tão depressa o homem caíra, já Deus revelava a este pobre decaído um plano de
redenção, um plano, um plano de salvação. Este plano, pela sua própria existência, e natureza
pressupõe a existência no homem, ainda, de certa competência para o bem. Deus crê ainda
que o homem pode e de fato cooperará com Ele em erguer a criação no nível espiritual. A
primeira batalha foi perdida, mas ainda não terminou a guerra. O Inimigo ainda a não ganhou.
Recordando o que se disse neste capítulo vêm-nos à lembrança as palavras dum
escritor Puritano do Século XVII, que, referindo-se à alma humana, disse: “Ainda se vê o
suficiente da admirável estética e da estrutura para concluir-se que a Divina Presença de fato
ali residiu... As lâmpadas apagadas, os altares derribados, a luz e o amor desvanecidos;
aquela, que antes brilhava com resplendor celestial; este, que ardia com fervor tão pio.” Mas
esta não é a conclusão da história do homem. Ela prossegue. O propósito eterno de Deus não
pode falhar. Deus prevalecerá.

CAPÍTULO III

O PRINCÍPIO DO INDIVIDUALISMO EM SUA RELAÇÃO COM A DOUTRINA DA SALVAÇÃO

Antes de iniciar a discussão do princípio do individualismo em sua relação com a


doutrina da Salvação, deve-se recordar muito brevemente a condição a que o homem ficou
reduzido após a Queda. Ficou demonstrado que depois da Queda, ele era ainda livre e
responsável perante Deus pelo uso que fizesse da liberdade. Também demonstramos que sua
competência não sofreu alteração, salvo no caso de lhe haver sido dada nova direção. Tornou-
se inteiramente competente na prática do mal. As tendências de toda a sua natureza se
inclinaram para baixo, não para Deus. Também se demonstrou que o pecado produziu um
cisma ou separação na alma humana. Destruiu-se a paz de vida no homem. Viu-se ele
arregimentado em desumanas relações contra si e contra o universo. Viu-se cada vez mais
incapaz de dominar os problemas que lhe surgiam na vida. Tudo ia de mal a pior.
Não obstante, no meio de toda a tragédia ainda havia suspiros e anelos por aquela
plenitude e unidade de vida, que desfrutara na sua comunhão com Deus antes da Queda. Há
no Salmo 42.1-2 uma bela expressão desse anelo natural por Deus, por parte do homem:
“Como uma corça suspira pelas correntes das águas, assim a minha alma suspira por Ti, ó
Deus. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando virei e comparecerei diante de
Deus?” Tornou-se qual águia engaiolada, que, por natureza, não se afaz a nenhum cativeiro.
O “montes”, os “lugares altos”, de contínuo, o chamavam. Embora pecaminoso, ele se enchia
de esperança. Consideremos então o cumprimento das mais belas esperanças do homem.
Já foi visto que Deus não podia criar o homem bom sem adotar um novo método na
criação. Até criá-lo Deus seguira método direto na obra criadora. Ele quis ou falou e as coisas
tornaram-se tais como Ele as queria. Disso temos exemplo na criação da luz: “Disse Deus:
Haja luz; e houve luz” (Gênesis 1.3). Chegado ao ponto em que teria de coroar a criação, a
saber, de criar o homem bom, uma raça à sua própria imagem e semelhança, Ele alterou o
método de criação, que se tornou indireto, nos sentido de envolver tanto a ação da vontade da
criatura como a da vontade do Criador. Foi sustada então a Criação, interrompida por um
momento. E foi exatamente quando entrou o pecado. Ora, a salvação continua a criação, sim a
criação de um homem bom, uma raça de homens bons, exatamente no ponto onde o pecado
interrompera o processo com a Queda do homem. O pecado entrou por intermédio do
indivíduo em oposição a Deus, e terá de sair por intermédio do mesmo indivíduo em
cooperação com Deus. O homem falhou, deixando de cooperar com Deus na primeira criação,
mas de maneira maravilhosa Deus obtém essa cooperação na segunda criação ou na salvação.
Urge notar ainda que o processo de se criar um homem bom, tanto na primeira como na
segunda criação, é sempre individual e cooperativo.
Assim o problema da salvação, ou a continuação da criação espiritual é um processo
que envolve duas vontades, a de Deus e a do homem. O pecado não alterou em nada o método
divino em criá-lo à sua imagem. O processo tornou-se mais difícil, mais complicado, e a
salvação foi grandemente enriquecida; mas o método permaneceu o mesmo – a criatura
cooperando com o Criador. De forma que a salvação é altamente mora, pois é sempre um
processo dependente da vontade, seja a de Deus seja a do homem, ou melhor ainda,
dependente dessas duas vontades. Todo o processo da salvação é voluntário, é espiritual.
Este processo de salvação se eleva acima, muito acima do plano natural. Nele não há
nada natural. As leis naturais operam no domínio da criação em que só opera “uma vontade”,
ao passo que as leis da salvação operam em nível mais elevado, a saber, no domínio de
criação em que atuam “duas vontades”. A salvação ocorre acima do plano da natureza, com
geralmente se entende o termo natureza. Esta afirmação talvez exija uma ilustração. Por
exemplo: Crescimento no mundo natural independe da vontade humana. Desenvolve-se o
corpo natural em obediência a certas leis e influências mesológicas. Onde houver uma
vontade forte para crescer, aí cresce o homem espiritualmente. Jesus uma vez fez a seguinte
interrogação: “E qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode acrescentar um cúbito à sua
estatura?” (Mateus 6.27). Aqui ele se referia naturalmente à vida física. Mas quando se chega
a considerar a vida espiritual, vê-se que a única maneira de lhe acrescentar estatura espiritual
é anelar por esse crescimento. É necessário pensar e meditar nessas coisas. Cresce-se por estar
atento ao crescimento, desejando mesmo obtê-lo. E só se cresce “quando se quer”. De sorte
que a salvação é altamente moral. Pode-se reduzi-la a termos de interação de duas vontades –
a de Deus e a do homem. Não se nega, com isto, os aspectos sociais da salvação; fala-se,
porém, da essência, do âmago da Salvação. É a união do indivíduo com Deus. E é tão
impossível ao homem salvar-se a si mesmo ou ser salvo pelo próprio homem, como teria sido
impossível a ele criar-se a si mesmo ou ser criado por outrem. A segunda criação é ainda mais
difícil que a primeira. Salvação é simplesmente a criação continuada; e criação continuada no
sentido de envolver ou abranger as vontades divina e humana.
Vê-se, pois, que a salvação é por natureza um processo. É como o tornar a glande do
carvalho e transformá-la no majestoso arvoredo; tomar o grão de trigo e transformá-lo em pão
ou bolo; tomar um ovo e convertê-lo em travesso passarinho. A ave em sua atividade é um
ovo salvo tanto como o pão é um grão de trigo salvo ou um carvalho é uma bolota que se
salvou.
A salvação é apanhar um pecador e transformá-lo em um santo. Contudo, não nos
esqueçamos de que, em se tratando da salvação do homem, o processo se acha inteiramente
acima do plano natural, é sobrenatural. É exatamente quando muitas vezes há êxtase diante do
pode de Deus. Se Ele pode tomar um ovo e fazê-lo cantar, como só o tordo sabe fazê-lo, o que
não fará o homem, - criatura feita à sua própria imagem?! Quem dera que o homem fosse tão
fiel ao propósito de Deus quanto o mundo natural o é.
Árduo e profundo problema é o da salvação. É o problema de retornar o homem pecador e
pecaminoso a um estado de retas relações com Deus sem destruir a sua liberdade nem fechar
os olhos às sua responsabilidade por haver trazido pecado ao mundo. Como já se verificou, o
problema da criação espiritual se tornou mais complexo com a entrada do pecado. Na
primeira criação a solução do problema só exigia a sanção da vontade do homem para
resolvê-lo, ao passo que agora já não é suficiente a sanção da vontade humana somente. O
homem é responsável pela entrada do pecado no mundo e esta responsabilidade não pode ser
ignorada ou desprezada. É exatamente neste ponto que se desvia muita teologia moderna. A
salvação tem que incluir algum modo de satisfazer esta responsabilidade. De alguma maneira
o homem tem que ser capacitado a enfrentá-la, se é que ele há de reatar com Deus este
processo de criação moral no ponto em que o pecado o interrompeu.
O problema da responsabilidade pelo pecado é talvez o mais profundo da natureza
humana. Removido que fosse este problema, o próprio pecado impeliria muitas almas
ansiosas da volta para Deus. Mas como se enfrentará o problema? Quem assumirá tamanha
responsabilidade? Só há UM – JESUS CRISTO. A expiação realizada por Jesus não somente
enfrenta, mas resolve o problema. Mediante em Deus sofredor, oferecendo-se a Si mesmo em
santo sacrifício pelo pecado da raça, é que o problema da responsabilidade do homem pelo
pecado é resolvido. Eis um belo desdobramento deste pensamento: “Verdadeiramente foi Ele
quem tomou sobre si as nossas enfermidade, e carregou com as nossas dores; e nós o
reputávamos como aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas Ele foi ferido por causa das nossas
transgressões, esmagado por causa das nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz, caiu
sobre Ele, e pelas suas pisaduras fomos nós sarados. (Is.53.4,5). A expiação de Cristo satisfaz
exatamente o problema da responsabilidade humana pelo pecado. Não há outra solução.
Ora, a responsabilidade é tão pessoal, é tão individual que só a completa identificação
de Cristo com a raça pode supri-la. Não pode ser transferida, pode apenas ser assumida, e
assumida sob condição de identidade. Se Cristo tomou a nossa responsabilidade, Ele também
se tornou pecado por nós. E isto Ele o fez. O Verbo se fez carne. E aquele que não conhecia
pecado tomou sobre Si os pecados da raça. E Pedro no-lo confirma nestas palavras: “Levando
Ele mesmo os nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro, a fim de que, mortos para os
pecados, vivamos para a justiça; por cujas feridas fostes sarados” (I Ped. 2.24). E Paulo
também apresenta testemunho igualmente claro e forte: “Àquele que não conheceu pecado,
Deus o fez pecado por nós, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (II Cor.5.21).
O problema da salvação, porém, envolve não somente a liberdade e a
responsabilidade do homem, mas também a sua competência. Na primeira criação certamente
ele era suficiente competente para ter cooperado com Deus em completar a criação. Uma vez,
porém, que o pecado veio, já não resta dúvida de que muito competente se tornou no mal, mas
incompetente para cooperar com Deus. Disto surge outro grande problema na salvação, a
saber: Como será dominada a incompetência humana? Como pode o homem cooperar com
Deus? Pode ele fazê-lo com suas próprias forças? A resposta é NÃO! Isto é feito pela graça.
“Minha graça é suficiente” são as palavras com que Deus anima tanto o pecador incompetente
como o santo mais competente. É só a graça, aquele peculiar dom de Deus, que atrai à sua
presença, pelos gloriosos resultados que alcança. A graça aumenta tão sutilmente a força do
homem que se ele não for muito cuidadoso, atribuirá tudo exclusivamente à sua própria força.
Mas “é Deus que opera em vós tanto o querer como o efetuar”. Assim como Cristo
crucificado e ressuscitado resolve o problema da responsabilidade humana, assim também a
graça resolve o problema da incompetência do homem para cooperar com Deus na obra da
salvação.
Evidencia-se do que já se disse que o único meio eficaz de salvação é o apelo, a
persuasão. Ninguém pode ser impelido nem na salvação nem para a salvação. Isto é claro no
apelo de Jesus em Mat. 11.28-30. Note-se ainda que um dos últimos versículos da Bíblia é um
apelo: “E o Espírito e a noiva dizem: Vem. E quem ouve, diga: Vem. E o que tem sede,
venha; e quem quiser, receba de graça a água da vida.” (Apoc.22.17)
É bom recordar um fato que foi acentuado no capítulo em que se tratou da criação do
homem. Onde se chamou atenção especial para participação de Cristo na primeira criação.
Quando se citaram as palavras do Dr. Mullins: “A imagem divina na constituição original do
homem, deriva-se de Cristo.” É Cristo, pois, o único em condições de fazer este apelo ao
homem perdido. A sua participação na primeira criação, o capacita eminentemente para
prosseguir na obra de salvação ou na segunda criação. Ele é o bom pastor e o rebanho ouve a
sua voz. A relação que o liga ao homem é única. Só Ele está em condições de iniciar a
chamada, só Ele pode fazer o apelo.
Este apelo é o do pastor às ovelhas; é a chamada das rochas alcantiladas e dos bravios
penhascos à águia prisioneira; é o convite o lar à alma em nostalgia; é o convite da paz ao
coração vexado de lutas; é o apelo da mãe ao filho; é a atração de arrebatadora beleza à alma
dum artista; é o apelo de um Salvador aos perdidos; é o apelo de Cristo crucificado no
Calvário ao Cristo crucificado no homem. Em uma palavra, é a mais profunda chamada às
mais profundas regiões: o mais profundo amor em Deus apelando à mais profunda
necessidade no homem. É o Infinito apelando ao finito; É Deus apelando ao homem. Quão
maravilhoso é o apelo, e quão gloriosa a resposta! É a atração de Cristo, é o impulso da graça
e a insistência da fé que tornam efetivo o método persuasivo do apelo na salvação do homem.
Não é Cristo que faz tudo; nem o faz a graça; nem ainda a fé; mas as três cooperam e logram
o seu objetivo.(Um breve comentário do copista: Na verdade, estas três coisas procedem de
Cristo. Portanto, em última análise, é Cristo sim quem faz tudo. Até a própria fé é produto da
graça. O autor aqui está fazendo uma divisão didática, tão somente, colocando a fé como
resposta do homem à chamada de Deus.)
Este apelo de Cristo reforçado pela graça faz três coisas: Primeiramente salvaguarda a
liberdade do homem, elemento indispensável na salvação. Quando o homem vê realmente a
Cristo tal qual Ele é, não é tanto que ele se entrega a Cristo, mas sim é conquistado por Cristo.
Há aqui uma diferença como também uma distinção. O homem não se rende a Cristo; ele é
conquistado por Cristo. E Cristo, no próprio ato de o conquistar, o faz vitorioso. O artista, que
realmente o é, não se entrega tanto ao magnífico cenário do poente, mas antes é por ele
vencido. E ainda mais, por estranho que pareça, liberdade e vitória são os resultados do
cativeiro do homem. Nunca foi Paulo mais livre do que ao ser sua alma escravizada,
totalmente conquistada, por sua visão de Jesus Cristo. A resposta ao seu clamor (“Infeliz
homem eu! Quem me livrará do corpo desta morte?”- Rom.7.24) , acha-se na estrada de
Damasco, quando exclama: “Quem és tu, Senhor?” – Atos 9.5). Logo que contemplamos a
Cristo, nossa mente se desvia de nós mesmos e projeta-se n’Ele. Ele nos vence antes que
tenhamos tempo de a Ele nos entregar. Os momentos de maior liberdade para o verdadeiro
artista são justamente aqueles em que ele se acha preso ao seu cavalete. Colocar um artista na
cela dum presídio e dar-lhe ali pincel e tintas, tela e cavalete, não é aprisioná-lo mas dar-lhe
liberdade. E Paulo é disse um brilhante exemplo. Nas palavras introdutórias de sua pequena e
maravilhosa carta a Filemon, ainda que prisioneiro dos Romanos, se intitula “prisioneiro de
Jesus Cristo”, isto é, um homem livre. Paulo era exímio artista na arte do viver cristão. A mais
elevada liberdade no homem encontra-se no fato de ser ele conquistado por Cristo. Cristo, tal
como a Verdade (e Ele é a Verdade), deve vencer-nos e conquistar-nos para que sejamos
verdadeiramente livres.
Em segundo lugar o apelo de Cristo deve despertar fé no homem. A fé, em parte, é a
expressão da competência do homem. Dizemos “em parte”, porque ela também é uma das
graças divinas. Não obstante, ele tem uma certa base natural no próprio homem. Não fosse,
porém, o apelo grandioso e efetivo de Cristo, ficaria a fé inativa e mesmo infrutífera.
Todavia, ela não é mero assentimento intelectual. Envolve mais que o intelecto,
envolve mesmo a personalidade toda. Talvez seja melhor descrita da seguinte maneira:
Separem-se todas as coisas existentes em dois mundos: um, a que se chame o mundo
subjetivo; o outro, o mundo objetivo. Ora, no mundo subjetivo encontram-se necessidades,
desejos, ambições, certos poderes pessoais e assim por diante. Mas não há coisa alguma neste
mundo subjetivo que satisfaça quaisquer das suas necessidades ou aspirações. Ainda mais,
sob o ponto de vista do mundo subjetivo, não há justificação para estes poderes pessoais que
aí se encontram.
É no mundo objetivo que se encontra a satisfação para essas necessidades e aspirações
do mundo subjetivo. É nele também que se encontra maravilhoso campo para os poderes
pessoais que haviam ficado sem justificativa, vistos pelo prisma insulado do mundo subjetivo.
Como é que se vão unir estes dois mundos? De que maneira as satisfações ou
provisões do mundo objetivo corresponderão às necessidades do mundo subjetivo? E como
será que os poderes pessoais do subjetivo se transmitirão ao objetivo e o transformarão? É
pela fé. Destes dois mundos a fé faz um só universo. Une a necessidade e a sua
correspondente provisão e satisfação; e por conseguinte é a base de toda a vida, fale-se de
vida física, ou intelectual ou espiritual. O homem vive pela fé e na extensão da fé que possui.
“Seja-vos feito segundo a vossa fé”, disse Cristo. Ora, este apelo da parte de Cristo deve
despertar e efetivamente desperta no homem o poder que une o Salvador ao pecador, a
satisfação com a necessidade. É fé que ajunta o corpo ao pão, eliminando a fome. É fé que
liga a mente à verdade, eliminando deste modo a ignorância. É fé que reúne o pecador e o
Salvador, eliminando assim o pecado e a morte. Somos salvos por fé, em todos os domínios
da vida. E ela não é somente o meio da salvação; é também o de viver (N.C.- “Mas o justo
viverá, pela sua fé”- Rom.1.17b).
Em terceiro lugar, este apelo de Cristo deve despertar o homem ao arrependimento.
Arrependimento é a confissão que ele faz da sua responsabilidade pela vinda do pecado e pela
continuação do mesmo no mundo. A única coisa que o homem pode fazer no tocante a esta
responsabilidade é arrepender-se dela. Isto é o que se requer dele. A primeira palavra do novo
evangelho foi: “Arrependei-vos”. O arrependimento é fundamental. É necessário que nos
arrependamos. E Cristo tomará cuidado do resto.
Para que o arrependimento seja genuíno, note-se, deve ser “para com Deus”, não
“apenas para com o pecado” ou mero remorso. Quantos criminosos lamentam os seus pecados
e continuam a viver neles! Mas o apelo de Cristo desperta um arrependimento que fixa a
atenção do homem em Deus e sua justiça, e não sobre si ou no pecado. Arrependimento
genuíno não olha tanto para o que se tem feito e o que se tem sido, mas para o que se devia
fazer e o em que se devia tornar. No arrependimento olha-se em direção a Deus, certificando-
se assim de que as costas se voltam para o pecado. Estas considerações não pretendem
amesquinhar a tristeza pelo pecado, mas simplesmente acentuar o que é essencial no
verdadeiro arrependimento; não pretendem insinuar que deva existir menos tristeza pelo
pecado, porém que deve haver mais atenção para com Deus e seu grande plano em nosso
favor.
Discutindo embora brevemente os resultados da salvação dentro do indivíduo, teremos
de tratar principalmente com os resultados que se encontram na consciência e na direção-
própria do homem. Já se viu como a salvação atinge a liberdade, a responsabilidade e a
competência. Notem-se então muito brevemente os resultados da salvação na consciência do
homem e na sua direção-própria.
Considere-se primeiramente os resultados da salvação na consciência. No estudo dos
resultado do pecado na consciência se viu uma exagerada consciência de si oriunda do cisma,
da confusão e da luta dentro da alma. Viu-se também que esta exagerada consciência do eu
produziu no espírito a mesma condição que uma unha encravada produziria no corpo. Por
natureza tudo cresce par fora. Viu-se, porém, o pecado invertendo a ordem ou o processo e
tornando-o “para dentro”. E assim estava o homem em mau caminho. Além da luta e contenda
estava também perdendo o alvo da vida. As coisas destinadas à vida produziram a morte. Mas
quando a salvação se aproxima, pela fé em Cristo e pelo auxílio da graça divina, as coisas
tomam uma direção exterior ao invés de interior. As tendências do homem já não são “para
dentro de si”, mas “para Cristo”. Reina portanto a paz dentro da alma e o cisma ou separação
vais sanando. E o homem, por Cristo, toma a ascendência sobre as forças internas, as quais,
anteriormente, se achavam num estado revolucionário e indomável. Resultado: a exagerada
consciência do eu torna-se uma consciência normal da relação para com outros,
particularmente para com Cristo. Paulo, tendo em mente isto, disse: “Já não sou eu que vivo,
mas Cristo vive em mim.” O constante interesse pelo bem dos outros é um dos mais evidentes
testemunhos da salvação. O pecado é como o acanhamento, próprio da juventude, que a faz
sempre preocupada das suas altitudes, maneiras e aparências, enquanto a salvação dá aquela
gravidade ou equilíbrio que domina algumas pessoas. Se se transferirem estas coisas para o
domínio espiritual, tem-se verdades de muito alcance e importância. A salvação, pois, cura o
cisma da alma e a alivia dessa exagerada consciência e preocupação com o eu. Ela produz paz
no homem e restabelece as suas relações com Deus.
Passando-se a considerar a questão de direção-própria vê-se que a salvação aí também
alcança alguns resultados maravilhosos. A salvação restaura o homem no trono da sua própria
alma. Ele pode agora dirigir as forças interna. Até aqui elas se conservavam dispersas e
rebeldes, mas agora são unidas e obedientes. É possível que agora ele prossiga para o alvo da
soberana vocação que está em Cristo Jesus. Pode palmilhar a vereda da salvação certo de que
no fim alcançará o alvo. Cada dia que passa, está mais perto da sua salvação. Cada passo para
a frente é uma transformação numa sempre crescente semelhança e imagem de Deus. Cada
vitória sobre o pecado e sobre e eu faz a vitória final cada vez mais certa. Onde o homem se
achava antes, só e dividido, ei-lo agora com Cristo, e unido. O processo da nova criação no
homem se acha agora em pleno surto. E, embora ele ainda não pareça o que há de ser, está
certo de que será semelhante a Deus, pois que o verá tal qual Ele é. “Amados, agora somos
filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de ser. Porém sabemos que, quando
se manifestar, seremos semelhantes a ele: porque assim como é o veremos” – I João 3.2
O homem para salvar-se deve reduzir a questão de salvação ao ponto em que ele se
veja como se fora o único ser humano em todo o mundo. Então, face a face com Cristo,
estabelece-se a comunhão e resolve-se o problema. É a direta interação de duas vontades, a do
Criador e a da criatura. Salvação é a primeira criação aperfeiçoada. De um lado á Deus em
Cristo, de outro é o homem só. E a salvação ocorre num secreto encontro entre os dois.

CAPÍTULO IV

A DOUTRINA DE INDIVIDUALISMO EM SUA RELAÇÃO COM A DOUTRINA DO REINO DE DEUS.

A criação espiritual se completa na salvação. É quando o homem se torna em toda a


realidade semelhante a Deus; não Deus, mas semelhante a Deus. Semelhança não implica
identidade, mas somente o q a própria palavra indica. É conformidade. Deus é infinito, o
homem é finito. Deus é divino, o homem é humano. Deus não tem princípio nem fim. O
homem teve princípio, mas nunca cessará. O homem vai do tempo à eternidade, mas Deus é
de “eternidade a eternidade”. Na salvação Deus atinge os resultados que colimara na primeira
criação: uma criatura, o início duma nova raça, feita em sua própria imagem e semelhança.
Como já foi demonstrado, a semelhança natural do homem a Deus fora atingida na primeira
criação, mas a semelhança moral só se atingiu na segunda criação, na salvação pela fé em
Cristo Jesus.
Convém agora acompanhar esta “nova criatura”, um pouco mais, de maneira a
verificar de que modo ela se atém aos novos problemas e relações desta nova vida. O homem
foi criado livre, e no uso dessa liberdade alcançou a sua salvação. Permanecerá ele livre?
Tratará Deus com o homem sempre nessa base de liberdade e responsabilidade humana? Estas
interrogações indicam a linha de pensamento que se segue neste capítulo.
No desdobramento desta tese chega-se onde se torna necessário ver que o homem não
é um mero indivíduo. Não é um ente isolado, sem parentesco. É, por natureza, um ser social,
parte componente da raça humana. Individualidade pura é desconhecida e inconcebível. Há,
até na Deidade, o Ser perfeito, uma trindade.
Dizer que o homem é simples indivíduo seria a mesma coisa que supor um ponto no
espaço sem nenhuma relação com outro ponto no espaço. A mente não pode ter tal
pensamento. É inconcebível. Assim, em tudo o que se pensa sobre o indivíduo e o
Individualismo, é necessário não esquecer que o homem, por natureza, é um ser social.
Isolamento ou segregação entre pessoas é a própria morte. Só se pode ser o que se é; só se
pode constituir a personalidade que se constitui, mediante relações com outras coisas e
pessoas. O “outro” é elemento importantíssimo no desenvolvimento da personalidade. O
indivíduo é, pois, um membro de uma raça; é um entre muitos. O eu e o não-eu.
Chama-se também a atenção para um fato muitas vezes esquecido tanto por teólogos
como por estadistas, aliás por todos, a saber: a unidade da raça humana. Unidade da raça é
fato tão importante quanto o é a unidade da Deidade. Uma falta de unidade na raça é tão fatal
à mais elevada forma de religião quanto o seria a falta de unidade na Deidade. A raça humana
é uma. Este é talvez o fato de mais largo alcance em relação à raça humana. Disse-o Paulo:
“E de um só fez todo o gênero humano para habitar sobre toda a face da terra...” (Atos
17.26). A unidade da raça é o alicerce sobre que Deus colocou todos os planos para o
melhoramento da humanidade. A unidade da raça, como a existência de Deus, é fato básico e
de primeira importância. Deve-se lembrar isto. É necessário que esta verdade venha sempre
colorir o que se pensa sobre a humanidade.
Esta maneira fragmentária por que se costuma pensar acerca da raça humana é
facilmente explicável. É resultante das observações cotidianas. Nação arregimenta-se contra
nação, povo contra povo, cor contra cor, oriental contra ocidental e assim por diante. Todavia
esta diversidade é mais aparente que real. E a unidade é um fato mais profundo do que a
alegada diversidade. Foi o pecado que criou esta noção fragmentária da raça humana. O
pecado é por natureza separatista, ele segrega. E o único uso que ele faz do fato de ser o
homem um ser social é fomentar os seus próprios fins perversos com prejuízo da
personalidade e da sociedade. O pecado reduziu a raça a uma massa de unidades que
mutuamente se guerreiam. Tiago pergunta: “Donde vem as guerras, e donde vem as
contendas entre vós? Não vem, porventura, disto, dos vossos deleites que combatem nos
vossos membros?” (Tiago 4.1). Estas coisas provêm do pecado, que obscurece o fato de que
todos são irmãos por sangue. E isto já se verifica nos primórdios da raça. O primeiro homem
que realmente nasceu neste mundo matou seu único irmão. O pecado aparentemente reduziu a
raça humana a fragmentos. Laços mais frágeis, então, substituíram a relação de sangue que
existia antes que o pecado se inoculara na raça. Eles muito se relacionam com a história da
raça. É necessário remontar-se à primitiva base da unidade.
Isto é exatamente o que se deu quando Cristo entrou na raça. Ele veio para contrariar
as forças do pecado. O pecado espalhou, Cristo reuniu. O pecado substituiu a base original da
raça por outra base insuficiente e inadequada. Armou o homem em assassino de seu irmão.
Cristo o coloca como guardador de seu irmão. Onde o pecado separa, Cristo unifica; onde
dilacera, Cristo constrói; onde fere Cristo sara. A vinda de Cristo foi tanto para a cura dos
cismas ou separações na raça humana como na alma humana. Sua oração ao Pai santo foi:
“Guarda-os no teu nome, no nome que me deste, para que eles sejam um, assim como nós.”
(João 17.11) . Ora, tudo isto concorda com o propósito original de Deus em criar não só um
indivíduo à Sua própria imagem, mas uma raça à Sua imagem e semelhança.
Ora bem, quando dois desses fragmentos belicosos se unem a Cristo Jesus, Ele os
transforma em uma nova raça, um novo organismo, Seu próprio corpo espiritual, o Reino de
Deus. Bastas vezes se depara esta idéia do Reino de Deus em o Novo Testamento. Uma das
declarações mais notáveis no assunto é talvez esta: “Pois assim como o corpo é um e tem
muitos membros, e todos os membros do corpo, embora muitos, constituem um só corpo;
assim também é Cristo; porque em um só Espírito fomos batizados todos nós em um só corpo,
quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só
Espírito. Porque também o corpo não é um só membro, mas muitos...Ora, vós sois corpo de
Cristo, e individualmente um de seus membros...” ( I Cor 12.12-13,27). Era desse novo
organismo que Cristo falava quando disse a Pedro: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja; e as portas do Hades não prevalecerão contra ela” ( Mat. 16.18)
O interesse aqui não se prende tanto ao Reino como tal, por mais interessante que seja
o tema, mas ao indivíduo que dele se tornou membro. Como entrou nele? E para que fim ou
propósito? Quais são as obrigações assumidas pelo indivíduo que se torna cidadão desse
Reino? Como cumprirá as suas obrigações? A estas perguntas se responderá pelo menos
parcialmente.
O homem entrou no Reino aceitando voluntariamente o Rei, Jesus Cristo, com tudo o
que a situação implica. Foi o ato voluntário de um homem livre, auxiliado pela graça de Deus.
Assim se fala de Jesus – “Veio pra o que era seu, e os seus não o receberam. Mas a todos
quantos o receberam, aos que crêem no seu nome, deu Ele o direito de se tornarem filhos de
Deus.” (João 1.11-12). E Deus só admite ao Seu Reino os que crêem em Seu Filho.
Ademais, deve notar-se que não somente o homem entrou no Reino, mas o Reino
entrou no homem. Entrar no Reino de Deus é entrar no reino da alegria. Não se pode entrar no
reino da alegria sem que este reino esteja no súdito.
Não se pode estar no reino da alegria e ao mesmo tempo reinar a tristeza no coração. E
assim também o homem entra no Reino de Deus deixando que o Reino de Deus entre nele.
Ele entra atraído, não impelido; por insistência, sim, mas não por força; entra sabendo o que
está fazendo. Ao entrar, ele não perde senão o direito de pecar: ganha tudo, inclusive o direito
de tornar-se filho de Deus!
E o problema de seu súdito do Reino, é uma questão toda entre o Rei e o indivíduo. A
única maneira de infundir alegria na alma do homem é fazê-lo jubiloso, cheio de alegria, e
para consegui-lo torna-se necessária a cooperação do próprio indivíduo. Não se faz por
procuração. Não se pode infetar alegria pela ração muito simples de que a base da alegria
deve estar no próprio homem. A alegria é despertada, não infetada. Entrar no Reino é coisa
tão individual como o comer, o beber, o dormir e o descansar. E assim como não se pode
comer sem alimento, nem beber sem algum líquido, dormir se estar com sono ou descansar
sem estar cansado, também não se pode entrar no Reino sem Cristo. Ele é o alimento, é a
água, é o descanso. É a Porta. Ninguém entra no Reino senão por Ele .
Talvez seja mais fácil responder às interrogações dos parágrafos precedentes,
primeiramente, mostrando o modo por que a liberdade no Reino de Deus se relaciona com a
graça. Em segundo lugar, vendo como a responsabilidade se relaciona com a conquista do
mundo para Cristo; e por último, como a competência do homem se relaciona com a tarefa
que lhe é imposta, como súdito do Reino.
Não há Reino sem leis. Não há leis sem limitação. Não há limitação sem diminuição
de liberdade. Em geral tudo isto é verdade, mormente se se limita ao homem mesmo e ao
pensamento do mundo objetivo ou político. Passando, porém, ao mundo espiritual, as coisas
mudam de figura. Pode-se mesmo observar uma grande diferença no domínio da arte. O
artista, por exemplo, nunca está mais liberto do que quando obedece as leis que governam a
sua arte. E se quiser lograr êxito em escrever essas leis sobre as taboas de carne do próprio
coração, terá de tornar-se não somente servo muito obediente a elas, mas também, por mais
paradoxal que pareça, livre de todas elas. Arte verdadeira, em sua forma mais elevada, só é
possível por meio desse paradoxo. Se não fora possível ao artista transferir-se da lei para a
graça, a arte desapareceria da face da terra. Assim a graça, sob este ponto de vista, é lei
encarnada. A lei do Reino é a lei da graça.
De todas as artes, a mais difícil é a arte de viver. Não obstante, são maiores as suas
possibilidades que as suas dificuldades. A vida, como todas as artes, tem suas leis. No Velho
Testamento essas leis de vida são escritas em tábuas de pedra, e só, às vezes, é que se depara
um verdadeiro artista na arte de viver. David, um dos maiores caracteres do Velho
Testamento, certamente não foi desses artistas. E é natural que não haja grandes artistas sob a
lei. As próprias condições não favoreciam o desenvolvimento desses grandes artistas. Faltava-
lhes tanto a aprendizagem como inspiração e poder que só vem por Cristo. É a idéia que
ocorre nestas palavras: “Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés, mas a graça e a
verdade vieram por Jesus Cristo.” (João 1.17). O viver pela lei era tedioso, exaustivo, cheio
de imperfeições. Os homens estavam presos a alguma coisa fora de si. Faltava-lhes a
inspiração que vem do amor. A alma da coisa estava na alma.
Mas quando Cristo veio e convidou o homem para o Reino as coisas mudaram. As leis
se tornaram íntimas ou internas. Aquilo que antes se encarava como carga ou tarefa, agora é
uma inspiração. O que antes se fizera por rotina, faz-se agora com ampla liberdade. Até então
o homem copiava outros, agora é, em certo sentido, um criador. Antes se achava vazio, agora
cheio. Antes ouvia “Não farás”, agora ouve “Sede vós”.
Numa palavra, o homem crente, como verdadeiro artista, passou da lei para a graça. E
pela vez primeira desembaraçou a vida e se tornou livre como o gorjeio do pássaro. Em todos
os domínios da vida não há nada tão ideal, tão belo, tão cheio de promessas como a sua
liberdade no Reino de Deus. A lei passa a ser agora como as leis que regem a glande, um
estímulo para uma vida maior e mais abundante. Tornou-se a lei libertadora em sua natureza.
Se a graça é a lei encarnada, então a lei é graça incipiente. É na lei que começa a graça. E a
graça onde termina a lei. Pela entrada no Reino alcançou o homem, mediante a graça, o que
todas as leis não eram capazes de outorgar, a saber, a forma mais nobre de liberdade com o
melhor tipo de obediência. “Porque o que a lei não podia fazer, no que se achava fraca pela
carne, Deus, enviando a Seu próprio Filho em semelhança de carne de pecado e por causa
do pecado, condenou o pecado na carne; para que a exigência justa da lei se cumprisse em
nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito” (Rom.8.3-4).
Surge então naturalmente a pergunta: Qual é, neste caso, a relação do indivíduo com a
lei? É fácil de responder. A lei foi cumprida e assim o homem se torna uma lei para si mesmo.
O poder legislativo agora reside nele. O Rei e o súdito são um. Desafia-se a imaginação
humana a conceber solução mais feliz pra o problema da lei e liberdade. Duma feita e
simultaneamente esta solução salvaguarda a liberdade e garante respeito e obediência a lei.
Depara-se-lhe agora a oportunidade de se tornar verdadeiro artista na mais difícil das artes, a
arte de viver. É possível agora, a ele, viver uma vida mais duradoura que a coluna de granito,
mais bela que a mais bela pintura, mais rítmica que a melhor melodia, mais sublime que o
maior poema. De fato, mais belo jamais se erguerá, e em tempo algum, outro monumento
mais duradouro! Outro quadro mais belo não se pintará, outra música mais inspiradora não se
comporá. Poema tão sublime não se escreverá. Tudo isso, monumento e pintura, música e
poema, só atingirão o mais alto e o melhor, se forem vividos. O caráter de Cristo é o maior
monumento que a raça humana tem testemunhado. O que foi dito é suficiente para indicar que
o homem ainda é livre, e livre num sentido mais elevado e mais verdadeiro de que jamais se
concebeu.
Em segundo lugar, como resposta parcial à questão da responsabilidade do homem nas
missões mundiais, diga-se aqui a questão fundamental: “Quem é responsável por trazer o
mundo perdido a Cristo?” A quem cabe a responsabilidade de levar o Evangelho a toda
criatura? A palavra criatura aqui é usada em seu mais amplo sentido, a saber, todas as coisas
criadas. Para se responder a esta pergunta é necessário depender-se dos fatos e princípios já
esclarecidos neste estudo.
O homem voluntariamente, no pleno uso de sua liberdade, e conscientemente,
entrando no Reino por intermédio de Cristo, já foi visto. A maneira da sua entrada determina
grandemente as suas obrigações a respeito dos interesses do Reino. Se entrou
voluntariamente, inteiramente consciente da natureza do organismo de que se tornaria parte
componente, assume, por conseguinte, todas as obrigações que naturalmente recaem sobre
aquele que se torne cidadão do Reino. As obrigações do Reino naturalmente se distribuem por
todos os seus súditos. Diz S. Paulo: “Porquanto se eu pregar o Evangelho, não tenho de que
me gloriar; pois me é imposta essa obrigação; porque ai de mim se não anunciar o
Evangelho.” (I Cor. 9.16) Missões são uma parte integrante do processo de salvação, ou da
criação duma raça na semelhança e imagem de Deus.
Não somente isto, mas a própria natureza do Reino apela para esta distribuição das
suas obrigações. O Reino é um organismo. Ora, todas as partes dele tanto individualmente
como coletivamente, se responsabilizam pelo organismo inteiro. A idéia de distribuição de
responsabilidade está clara neste pensamento de Paulo: “E se um só membro sofre, todos os
membros sofrem com ele; se é honrado, todos os membros se regozijam com ele.” ( I Cor. 12.
36). Não se busquem rodeios: o fato é que a responsabilidade é tanto individual como
coletiva. Não há dúvida que é individual antes de ser coletiva.
Ora bem, quando se liga tudo isto com o propósito de Deus na fundação do Reino por
Jesus Cristo, não se pode ignorar que o indivíduo se torna pessoalmente e primariamente
responsável por transmitir o Evangelho a toda a criatura. Já nos dias remotos de Ezequiel, se
ouviu a voz de Jeová: “Filho do homem, eu te dei por atalaia à casa de Israel; ouve, pois, da
minha boca a palavra, e avisa-os da minha parte. Quando eu disser ao ímpio: Certamente
morrerás; se não o avisares, nem falares para avisar ao ímpio que se desvie do seu mau
caminho, afim de salvares a sua vida, morrerá ele na sua iniqüidade; tu, porém, livraste a tua
alma.” (Ez.3.17-19). Responsabilidade, sempre é primeiramente pessoal, individual; só mais
tarde é que se torna coletiva e social. Não se pode obscurecer responsabilidade individual e
esperar receber uma adequada resposta coletiva. É este outro grande fato que os Batistas
devem sempre conservar em mente. É onde há os verdadeiros perigos da democracia. É a
fonte de muita confusão e ainda maior deficiência na democracia moderna, tanto política
como religiosa. Nossa posição é pois que o indivíduo se torna responsável pela transmissão do
Grande Mandamento ou Comissão entregue por Cristo nosso Senhor: “Foi-me dado todo o
poder no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai a todas as nações, batizando-as em o nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo; instruindo-as a observar todas as coisas que vos tenho
mandado: e eis que eu estou convosco todos os dias até o fim do mundo.” ( Mat. 28.18-20).
Pense-se de um grupo, como tal, fazendo todas estas coisas. O indivíduo e não o grupo é o
que se depara nas sombras da Grande Comissão. Há aqui resposta positiva à investigadora e
impertinente interrogação de Caim: “Sou eu o guarda de meu irmão?” A resposta categórica
é: “Sim, tu és guarda de teu irmão; eu o sou”.
É bom notar, nesta conexão, em ligeira digressão, que responsabilidade encerra a
questão de cooperação. Cooperação não é uma questão franca. Não é facultativa. Não fica ao
capricho do indivíduo. Ela se deriva da relação do homem com o Rei e o Reino.
Como resposta parcial à pergunta feita em parágrafo anterior, note-se, em terceiro
lugar, a relação entre a competência do homem e a tarefa de pregar o Evangelho ao mundo
inteiro. De fato como é ele competente para pregar o Evangelho a cada criatura? Até que
ponto pode ir sobre o evangelizar o mundo inteiro? Não se sabe. Competência é relativa.
Estamos certos de que o indivíduo pode ir muito mais longe do que geralmente se espera dele.
Paulo estendeu grandemente a evangelização do mundo. Não se quer, todavia, discutir esta
questão tanto deste ponto de vista prático como à luz do que já se investigou, o que n ao quer
dizer que se taxe de impraticável o que se disse. É inteiramente contrário.
Do que já se tem dito é claro que a competência do homem nasce de duas fontes:
primeiro de Cristo; segundo, dos co-herdeiros e cidadãos com Cristo no Reino.
A fonte primária da competência individual é Cristo. “Sem mim nada podeis fazer”
(João 15.15) e “Posso todas as coisas naquele quem me fortalece” (Fil. 4.13) , são duas
citações que exprimem bem a situação. De sorte que a competência dum homem no trabalho
do Reino, a criação de indivíduos à semelhança e imagem de Deus, se acha em relação direta
com a sua relação com Cristo. O Reino certamente pressupõe grande eficiência, porque o
indivíduo está em Cristo tanto quanto Cristo está nele. O próprio Cristo disse: “Em verdade,
em verdade vos digo que aquele que crê em mim, esse fará também as obras que eu faço, e
fará ainda maiores, porque eu vou para o Pai” (João 14.12). Se eu tivesse, por exemplo, o
espírito de Paderewsky em mim, minha competência como pianista reduzir-se-ia a uma
questão de praticar piano. Quando meus dedos e outros movimentos corporais ficassem
suficientemente treinados, eu então tocaria como ele toca. Assim é com o indivíduo cristão.
Cristo mora nele, pelo Espírito, e pelo constante exercício o crente poderá tornar-se altamente
eficiente, mesmo como o seu Senhor, um perito na edificação do Reino. Quando se pensa de
homens como Broadus, Frost, Gambrel, Mullins, e ainda muitos outros, deve-se respeitar
profundamente a competência de uma alma remida – uma alma dentro do Reino.
O homem pois é eficiente na obra do Reino, assim como um ramo é eficiente em dar
frutos; é necessário fazer parte da árvore, ser uma parte vital dela. Trata-se aqui da maior
necessidade no Cristianismo moderno. Não é possível organizar-se uma porção de baratas,
besouros e outros insetos num cortiço eficiente de abelhas. É necessário que haja unidade de
natureza e de propósito para que se obtenha algum resultado. É necessário ser “um com
Cristo” antes de haver eficiência no trabalho do Reino. Nenhuma relação frouxa, artificial ou
aparente entre os dois poderá de qualquer modo fazer o homem competente para a tarefa que
este “Reinado” lhe impõe.
A segunda fonte da competência do homem está na sua relação com os demais
membros e companheiros em Cristo. “A união faz a força”. Onde um só fracassará,
trabalhando sozinho, o grupo logrará êxito. A grandeza das tarefas naturalmente forçará os
homens a se ajuntarem. Eles voluntariamente associarão a sua força, aliviando-se mutuamente
ao peso da responsabilidade. A cooperação é tão fundamental quanto a liberdade. É
efetivamente como a liberdade um corolário direto da relação do indivíduo com o Rei e o
Reino. Como já foi dito, quando um homem entra no Reino torna-se parte vital dos outros
súditos do Reino, de sorte que quando ele busca a cooperação dos outros está também
ministrando às suas necessidades. O gênio da pecado é separação; o da salvação é cooperação
e coesão. Os salvos devem cooperar e de fato cooperarão entre si. Contudo não seja esquecido
que esta fonte de fortaleza é secundária, sendo primária e decisiva – a relação com Cristo.
Ao estudar-se o indivíduo em suas relações com o Reino, duas coisas muito
impressionam: primeiramente, a eterna aptidão das coisas dentro do próprio Reino. O Reino
não somente revela, amplamente, a sabedoria de Deus, sua multiforme sabedoria, mas é
também ricamente adornado de todas as suas graças. A imaginação mais fértil não poderia
conceber lugar mais ideal para a perfeição da personalidade. Em segundo lugar, o que muito
impressiona é aquilo que se espera do indivíduo que entra neste Reino. Espera-se dele que
traga o mundo inteiro para o Reino, e transmita o Reino inteiro ao mundo. E para consegui-lo
ele necessita de todos os recursos duma raça remida, e todos os recursos que há nas “riquezas
da graça em Cristo Jesus”.

CAPÍTULO V

O Princípio de Individualismo em sua Relação com a Doutrina da Igreja

No estudo feito sobre o indivíduo no Reino de Deus demonstrou-se que a relação do


indivíduo para com o Rei e o Reino determina tanto o seu dever para como o Rei e o Reino,
como também para com o mundo perdido no pecado. É o indivíduo obrigado, por estar no
Reino, a transmiti-lo ao mundo e ao mesmo tempo introduzir o mundo no Reino, através de
suas multiformes atividades. De que modo, então, cumprirá ele a dupla obrigação, a de viver
uma vida cristã piedosa e a de tornar-se agente efetivo na promoção do Reino? Numa palavra,
como dever agir na melhor hipótese? Como deve proceder relativamente às próprias
necessidades individuais? E como deve proceder quanto às necessidades do mundo inteiro, no
tocante à criação toda?
Por meio da Igreja. Ela é o método divino por meio do qual o indivíduo deverá
funcionar para cumprir todas as obrigações, tanto para consigo como para com o mundo, que
lhe foram impostas em virtude da sua relação com o Reino. Paulo diz: “Para que agora a
multiforme sabedoria de Deus, por meio da Igreja, fosse conhecida aos principados e
potestades nas .regiões celestes, segundo o propósito dos séculos, que Ele fez em Cristo
Jesus, nosso Senhor” (Ef.3.10-11)
Antes de prosseguir, porém, seria conveniente perguntar: Que é, então, a Igreja? Na
resposta deve-se recordar a idéia fundamental do Reino. Quando Cristo atrai a si dois dos
indivíduos da velha raça, eles se transformam em núcleo duma nova raça – de um novo
organismo, do corpo de Cristo. Ora, suponha-se um grupo de indivíduos remidos residindo
num dado local, eles natural e voluntariamente se reunirão para conforto e conselho mútuo; e
o desenvolvimento de tudo isto resulta numa organização, a qual é a resultante das leis de
crescimento social, e também diz respeito primariamente às obrigações devidas diretamente
ao Rei e ao Reino. De sorte que tanto é humana como divina. É a esta organização de um
grupo de homens e mulheres já pertencentes ao Reino, que se chama a Igreja local. Mais
adiante neste capítulo se falará mais largamente da sua natureza. O escopo por enquanto é
meramente defini-la ou antes descrevê-la.
Se bem que constituída por uma pequena parte das mesmas pessoas que se acham no
Reino, há todavia diferenças fundamentais entre o Reino e a Igreja. A primeira é que o Reino
é um organismo, a Igreja uma organização. Organismo, quer dizer, um corpo vivo com as
diversas partes vitalmente relacionadas entre si. O corpo humano é um organismo. Dizem-no
formado de muitas células e órgãos. Assim é o Reino. O indivíduo remido é a célula de que
ele se compõe. Sua vida, contudo, é uma vida divina, porquanto Cristo é a cabeça. É claro que
as relações num organismo são vitais, não voluntárias e morais. Não há dúvida de que o
estabelecimento dessa relação é voluntário e moral, mas uma vez estabelecida ela se torna
vital. Torna-se então à relação que há entre a videira e a vara, entre o corpo e o membro.
Por outro lado a Igreja é uma organização, uma agremiação voluntária de elementos
semelhantes para um fim comum. Geralmente, em uma organização as relações são
voluntárias e morais e não vitais ou viventes. Contudo, na Igreja, esta relação voluntária
recebe toda a sanção de uma relação vital em virtude do elevado propósito a que se consagra a
organização.
Outra distinção entre a Igreja e o Reino é que, enquanto este cresce, expande-se e se
alarga, não desenvolve novos princípios ou interesses. O Reino é eterno no seu conteúdo
essencial. Cresce só em tamanho. É como a semente da mostarda.
A Igreja, porém, cresce tanto em tamanho como em novos interesses e novas
atividades. A Igreja ainda está longe de haver completado e atingido a elevada posição que
lhe foi destinada na providência de Deus, e isso porque ainda não alcançou perfeitamente a
plena visão de toda a tarefa de atrair o mundo para Cristo. Mesmo a existência de
organizações tais como a Associação Cristã de Moços, o Escoteirismo e outras, são, até certo
ponto, censuras à Igreja por sua falta de visão. Foi a intenção divina que ela fosse adequada a
todos os interesses do Reino. De modo que deve crescer tanto em número, como em sabedoria
divina.
Há ainda outras diferenças entre a Igreja e o Reino que se poderiam mencionar, tais
como: o Reino é eterno, a Igreja é temporal; o Reino compõe-se de todos os crentes, tanto do
passado como do presente, a Igreja se compõe apenas daqueles que vivem atualmente, e são
atualmente membros da organização externa. Está clara, pois, a diferença entre os dois.
Quanto à relação entre o Reino e a Igreja, aquele vem primeiro, tanto lógica como
cronologicamente. O Reino é mais fundamental. Os homens vem do Reino para a Igreja, e a
única razão para a existência desta é que o Reino já existe e necessita estender-se a todos. O
indivíduo pertence primeiramente ao organismo e mais tarde passa a ser membro da
organização. As credenciais fundamentais para ser membro da Igreja decorrem da relação do
indivíduo com o Reino e com Cristo. A Igreja vem a existir para que sejam promovidos os
interesses do Reino. Isto não quer dizer que ela veio a existir para que promovesse esses
interesses, porque isso seria negar francamente o próprio princípio que se busca ver
estabelecido e aplicado. É tarefa do indivíduo promover os interesses do Reino por intermédio
da Igreja.
Qual é então o propósito da existência da Igreja? A Igreja, como todas as demais
organizações, existe para que os indivíduos que a compõem funcionem mais vantajosamente.
Ela é o método divino por onde os indivíduos remidos terão de funcionar. Fundamentalmente,
organização é método. E deve ser fiel à sua própria natureza. Ora, esta idéia de que a Igreja é
um método divino não é de modo nenhum incompatível com a idéia de que ela é também uma
instituição. Um Banco, por exemplo, é um método de negócio, mas é ao mesmo tempo uma
instituição. O Seminário é um método de treinar pregadores, mas é também uma instituição. E
assim a Igreja é um método e ao mesmo tempo uma instituição. Todavia a idéia de instituição
tem sobrepujado a de método, resultando daí uma confusão geral, tanto relativamente à Igreja
como ao Reino. Uma das mais belas idéias a respeito do Reino é que nele os crentes se tornam
um com Cristo; e uma das mais belas idéias a respeito da Igreja é que nela eles funcionarão
para Cristo. A Igreja é responsável pela execução de um dos maiores empreendimentos do
mundo. É ela a maior instituição em todo o mundo. Mas a sua eficiência provém do fato de
ser fundamentalmente o método divino pelo qual o indivíduo remido deverá cumprir todas as
suas obrigações que decorrem do Reino, obrigações tanto para consigo como para com o
mundo. Prouvera Deus que a idéia fundamental e o propósito da Igreja se cumprissem em
nossa vida denominacional. Não excede de 30% o número de membros das nossas igrejas que
se acham propriamente funcionando e daí a razão dela diminuir cada vez mais em eficiência.
É bom notar, nesta conexão, o fato interessante de que nas Escrituras Sagradas não se
encontram os escritores, em lugar algum, transferindo a responsabilidade individual para o
grupo ou organização. E isto pela razão mui simples de que a própria organização visa a
perfeita execução das respostas individuais.
A questão envolvida na eleição dos sete homens de que se falam no capítulo sexto dos
Atos dos Apóstolos, é um caso evidente do que temos em mente. “Não é justo que nós
abandonemos a palavra de Deus e sirvamos às mesas”, disseram os Doze. Era uma questão
de indivíduos funcionando na melhor hipótese, cada qual fazendo o que melhor pudesse fazer.
Mas um dos inerentes perigos na organização, parece, é que ela tende a obscurecer a
responsabilidade individual. Quanto mais se multiplicarem organizações, mais cresce o perigo
de se transferir a responsabilidade individual para o grupo – um erro fatal numa democracia
religiosa.
Veja-se ainda que este princípio de organização, que tem por escopo o funcionamento
do indivíduo, justifica todas as organizações que os Batistas sustentam, desde a igreja local
até à Aliança Batista Mundial. Urge que eles funcionem “universalmente”, e toda organização
que amplie a esfera desse funcionamento é justificável e mesmo necessária. Não se entenda,
porém, que se esteja nivelando estas organizações à Igreja. As organizações auxiliares, desde
a associação distrital até à Aliança Batista Mundial, são simples meios de alongar-lhe os
braços para que possa mais facilmente sobraçar o mundo inteiro. O princípio sobre que se
acham organizadas é o mesmo, mas não são a mesma coisa. Os membros da Igreja são
permanentes, mas os dessas organizações variam de ano para ano. A grande Convenção
Batista Brasileira não é uma super-Igreja ou espécie de Igreja-mãe, mas simplesmente uma
organização auxiliadora das igrejas locais. Só há uma Igreja no mundo, que é a Igreja local.
Por outro lado, porém, o mesmo princípio que justifica as várias organizações, condena-as
severamente pela tendência pronunciada de por elas obscurecer a responsabilidade individual,
violando também um fato fundamental, isto é, não se pode obscurecer a responsabilidade
individual e ainda esperar do grupo uma correspondência adequada ou satisfação dos seus
fins. Quão necessária a voz que nos salve dos erros e das más tendências!
Quanto à natureza da Igreja, já se disse alguma coisa, mas não é ocioso adicionar mais
uma palavra formal enquanto se discute a matéria.
Do que se disse quanto ao propósito de uma organização, poderia alguém chegar à
conclusão, precipitada, de que a Igreja foi tratada levianamente, e que se deixou de atingir o
sentido pleno dessa maravilhosa instituição. Por precaução contra esta falsa concepção da
verdade a respeito da Igreja, acrescenta-se uma palavra ulterior e formal sobre a sua natureza.
Não se deve jamais supor que a Igreja é uma organização totalmente dependente da
vontade do homem e de circunstâncias externas. Na verdade, pouco tem que fazer com ela a
vontade humana. A causa da sua existência são os grandes interesses do Reino. São tão
urgentes e imperativas as obrigações deste, que estabelece a necessidade dos homens se
congregarem para mútuo auxílio e ação mútua. A Igreja não se originou no homem, e sim em
Deus. É uma instituição divina. Assim como Deus instituiu o lar e o Estado, assim instituiu a
Igreja, a mais sagrada entre todas as instituições que o Criador todo sábio outorgou ao
homem. A Igreja não é um mero clube, e não há instituição humana, por importante que seja,
que a substitua. O homem necessita dela tanto quanto as crianças necessitam do lar e a
sociedade precisa de governo. A Igreja é mais uma das graças divinas a suprir as necessidades
humanas. E se ela não existe sem homens, não se pode sequer pensar de criaturas remidas,
que cumpram suas obrigações para com o Reino, sem a Igreja.
Todavia não se deve ignorar que ela é, também, uma instituição humana. Os homens
entram nela voluntariamente. Fazem parte dela como membros, legislam, orientam os seus
negócios, etc. Mas embora a entrada seja livre, há um requisito, uma exigência que
salvaguarda a sua própria existência. A exigência divina, ou estímulo, para se tornar membro
dela é como o instinto ao pássaro para que cante ou à rosa para que floresça. Livre, sim, mas
ao mesmo tempo é necessário que seja.
Ora, se bem que o homem entre voluntariamente nela, não tem a mesma liberdade para
dela se retirar. A porta da Igreja, na realidade, só se abre de fora para dentro. Só por causa dos
nossos enganos é que se tornou necessária uma porta de vai-vem, portas que tanto obedecem a
impulso de fora para dentro como também de dentro pra fora. O que determina ligação à
Igreja como membro é uma eterna relação que o indivíduo mantém com o Reino de Deus. O
direito de se tornar membro da Igreja anula o direito de sair dela ao seu bel-prazer. Por isso a
Igreja é uma instituição divino-humana consagrada aos mais elevados e nobres objetivos.
Ainda mais se poderia dizer acerca da Igreja, como organização, mas o que foi dito é
bastante para salientar-lhe a significação, o propósito e a natureza. O que mais interessa agora
é saber como o indivíduo se relaciona com a organização e como é relacionado dentro da
mesma.
A primeira coisa que chama a atenção agora é a relação do indivíduo, – que é
primeiramente súdito do Reino e depois se torna membro da Igreja, – com Jesus Cristo. A
melhor maneira de designar esta relação é dizer que Cristo é Soberano. Foi por Cristo que o
indivíduo se tornou cidadão do Reino de Deus. É por meio da sua ligação com Cristo como
cidadão do Reino, que se torna membro da Igreja. De sorte que o indivíduo é acima de tudo e
primariamente devedor a Cristo pela vida que vive no Reino e na Igreja. Cristo é o seu
alimento, a sua bebida. Cristo é a videira e o indivíduo é o ramo. De fato Cristo é para o
indivíduo o seu “tudo em todos”. Fora dele o indivíduo nada pode fazer. E se assim é, a
primeira obrigação do homem prende-se a Cristo. Quando Cristo fala, o homem deve ouvi-lo.
A vontade de Cristo é a última palavra. Fidelidade a Cristo é o que vem primeiro e determina
todas as outras alianças. Segundo a própria natureza do caso, ninguém pode intervir entre
Cristo e o crente, nem mesmo a Igreja. Cristo é supremo na vida do crente.
É bom notar também que a soberania de Cristo é intransferível. Não é oficial, mas
pessoal. Decorre do que Cristo é e tem feito para o crente. Se alguém quisesse tomar o lugar
de Cristo, teria de tornar-se tudo quanto Ele é, verdadeiramente um segundo Cristo. E isto é
inadmissível. Cristo é supremo na vida do crente. A palavra de Cristo é a primeira, e a última.
A soberania de Cristo é natural, inclui tudo, é toda suficiente. Admitir outros soberanos é criar
necessidades estranhas à alma humana.
Mas alguém possivelmente perguntaria se não se tem exagerado a soberania de Cristo;
se não se anulou o princípio de Individualismo que tanto esforço houve por estabelecer e
aplicar; e, se Cristo é tal soberano, que resta da soberania do homem? Todas estas perguntas
são muito relevantes. Como resposta imediata deve-se dizer: “Não”. Não se exagera a
soberania de cristo. Não se anula o princípio. Não se destrói a liberdade do homem. Na
religião, como na arte, é necessária uma palavra final para fazer o homem livre. Há de haver
autoridade, ou não haverá progresso na arte, nem na religião. A verdade na sua forma final
deve ser alcançada; pois é ele que faz o homem livre. Ignorância é a maior forma de
escravidão. A verdade em sua mais elevada forma é pessoal; Cristo é a verdade. De sorte que
o corolário da soberania de Cristo, é a liberdade do crente.
Outro assunto a tratar é a relação do indivíduo com outros indivíduos dentro da Igreja.
Não há dúvida alguma de que Cristo seja o supremo soberano sobre todos os crentes. Mas não
existirá um vice-soberano, um vice-rei? Há na Igreja cristã algum lugar para tal coisa?
Responda-se com as palavras do hino velho e familiar: “Não, nenhum; não, nenhum!”.
Quando se levam em consideração os plenos fatos do caso vê-se que só há uma resposta para
a pergunta relativamente à relação do indivíduo para com indivíduo dentro da Igreja: Eles são
todos iguais, porque todos aceitaram a Cristo em igualdade de termos. Tornaram-se filhos do
Reino com igualdade de direitos. Entraram na Igreja nas mesmas condições de igualdade.
Devem pois permanecer na Igreja em igualdade de termos, pois nada há na própria
organização (salvo se for recebida de importação), que daria a um crente senhorio sobre outro.
Bate-se aqui em cheio noutro dos perigos inerentes da organização, principalmente quando ela
é considerada mais uma entidade em si do que um método de operação. Não se deve
confundir Reino com Igreja. O Reino é a entidade à qual o crente realmente pertence; a Igreja
é o método divino pelo qual o crente deve funcionar ou cumprir as obrigações do Reino. Pode
dar-se o caso até do indivíduo, isto é, o indivíduo remido, estar no Reino sem estar na Igreja.
Mas neste caso ele certamente não cumprirá, nem para si nem para o mundo, o seu dever no
Reino. Numa organização é facílimo uma relação oficial tentar transferir-se ou transformar-se
numa relação natural. A Igreja Católica Romana é a maior pecadora neste respeito. Contudo,
não há possibilidade de se formar uma hierarquia de um grupo de almas, realmente remidas, a
não ser que o sistema inteiro seja introduzido ou importado. Certo é que não é um efeito
natural oriundo dos ensinos do Novo Testamento.
Ademais, há outra coisa que impede toda espécie de distinções dentro da Igreja: é o
princípio de serviço. Cristo, o cabeça e soberano de todos, lavou os pés dos seus indignos
discípulos. Na Igreja os maiores são os que mais servem. A liderança se verifica neste espírito
de servir a outrem, não em que outros o sirvam. De fato toda a lógica da situação na Igreja
proíbe e reputa mesmo ilegal qualquer espírito de senhorio de um sobre o outro. É absurdo
pensar que alguém honestamente servisse a outrem e ao mesmo tempo desejasse dominá-lo.
As duas coisas não se combinam, não vão bem na mesma cabeça. Se houver a idéia de
domínio não haverá nada além da organização mui simples que é uma Igreja Batista. A Igreja
é simplesmente e puramente uma fraternidade, uma irmandade.
Surge então o problema de governo na Igreja. Como é que a Igreja se vai governar a si
própria? Só há uma forma de governo compatível entre iguais, que é a democracia verdadeira.
Apelar para outras formas de governo é negar todos os fatos até aqui inferidos. O governo da
Igreja é um governo do indivíduo, para o indivíduo, pelo indivíduo. Realmente nem é um
governo da maioria. Não deveria haver maiorias nem minorias. Nada disto se contempla no
propósito da organização. A presença de maiorias e minorias serve mais para acentuar e
descrever as imperfeições humanas do que para expressar a natureza da forma democrática de
governo. Na Igreja está a sede do governo tão próxima dos governados quanto é possível tê-
la. Não se pode chegar mais perto se se quiser ainda manter um governo. O governo numa
Igreja local é uma democracia pura.
Veja-se em último lugar, à luz do que se disse, qual é a natureza das ordenanças
entregues à Igreja local. Há quem sustente que as ordenanças são sacramentais, e quem afirme
que são simbólicas. Mas há quem fique em posição média. Qual, pois, realmente, é a natureza
das ordenanças? São simbólicas. Há, pelo menos, três razões válidas para este asserto.
Primeiramente, como já foi dito, o indivíduo dentro do Reino, fruindo em sua maior
extensão a graça de Deus que lhe foi diretamente outorgada pelo seu contato vital com Jesus
Cristo. Cristo e o crente são um, tanto como a videira e o ramo são um. O crente está em
Cristo e Cristo está no crente. A própria vida que o crente vive, vive-a no “Filho de Deus”. É
vital a relação entre o crente e Cristo. É por isso mesmo que não há necessidade de qualquer
meio para transportar ou transmitir a graça do Salvador para o crente. Como já se disse, a
relação é a que existe entre a videira e a vara, ou entre o corpo e seus membros. O princípio
de Sacramentalismo não pode sustentar o ramo ou o braço. Eles se sustêm no princípio do
Simbolismo, isto é, o que está na videira acha-se expresso na vara ou ramo. Introduzir, entre a
videira e o ramo, um meio de comunicação de vida, é quebrar a conexão que por natureza
existe entre aquela e este. Nem há necessidade de transfusões de sangue quando ambos são
um. A relação vital que existe entre Cristo e o crente não dá lugar à idéia de se comunicar
graça de um para o outro. Seria o mesmo que arremessar-se um pedaço de ferro dentro de um
maquinismo delicado.
A segunda razão deriva-se da natureza da graça. A graça é pessoal. Todas as graças
divinas são destinadas a adornar a personalidade. E mui difícil é pensar de graça pessoal
concedida por meios mecânicos. A graça é como a eletricidade: necessita de um ponte de
contato muito íntimo e limpo. O contato pessoal é o único condutor da graça. Comunicá-la
por intermédio dum sacramento é como pretender transportar o brilho do sol num carrinho de
mão. Não se pode fazê-lo, eis tudo. A única razão possível para a criação duma ordenança é
que ela expresse o que tem sido e o que é em relação à vida do crente e do Senhor. Não há
necessidade de escrever uma carta ao mesmo que escreve para transmitir-lhe os próprios
pensamentos, o que aliás seria muito conveniente se se pretendesse transmiti-los a outrem.
Cristo e o crente são um.
A terceira razão por que se sustenta que as ordenanças são simbólicas é que
sacramentalismo não vai bem, não funciona bem entre iguais. Sacramentalismo exige
hierarquia, uns superiores a outros. Mas vimos exatamente o caso contrário. Todos têm iguais
privilégios. Todos acesso igual à graça divina. E se se desse o caso de um membro receber um
super-suprimento de graça, a graça divina é de tal natureza que logo ultrapassaria os limites
daquela alma e, como o perfume da rosa, desprender-se-ia por toda a parte. A graça é
demasiadamente vital para se manejada por quaisquer meios mecânicos. Não se pode ligar
uma alma a Cristo por meio de um sacramento. A união com Cristo se alcança noutras bases;
e então, mediante ordenanças que são notavelmente bela e significativas, simboliza-se esta
união entre Cristo e o crente.
Ao encerrar-se este capítulo, seja notada de passagem a relação de uma Igreja com
outra. Por natureza a organização é tão livre quanto o são os indivíduos que a compõem. Um
grupo de unidades livres não compõe um corpo dependente. O mero fato de um número de
indivíduos, formando-se numa organização, não altera a relação fundamental que já existia
entre eles. Numa palavra, não se pode somar uma certa quantidade de liberdade e obter
dependência. A base da organização é a relação já existente entre os indivíduos. O indivíduo,
como já se demonstrou, é livre. A organização é feita com o fim em vista que estes indivíduos
livres funcionem em círculos sempre crescentes. E assim a organização há de ser também
livre, ou então estará em perigo a liberdade do homem. O princípio fundamental sobre o qual
Igreja se acha organizada é a liberdade individual. Portanto, a organização deve permanecer
livre ou em caso contrário anulará o princípio fundamental sobre que se originou.
Embora a relação seja de independência, ela deve ser ao mesmo tempo fraternal e
cooperativa. Há tanta razão para a existência de uma associação, uma convenção estadual,
uma convenção nacional, ou mundial, etc., como há para a existência da igreja local. Observe-
se, porém, que não se está comparando essas organizações com a Igreja. Já se declarou que a
Igreja é o método divino de promover o Seu Reino aqui no mundo. Mas o que se afirmou é
que o mesmo princípio fundamental e o mesmo propósito de organização corre através de
todos eles. O indivíduo crente devia funcionar universalmente; por conseguinte, uma
organização mundial tem sua razão de ser. Cooperação, que é o que faz possível uma
associação ou convenção, como as que há, é realmente tão fundamental como a liberdade. O
próprio fato de que o homem é livre, e, portanto, responsável, faz que a sua cooperação com
outros seja imperativa e necessária no mais amplo sentido. Cooperação decorre das
obrigações que há para com o Reino. Efetivamente é uma obrigação imposta ao homem por se
haver ele tornado cidadão do Reino de Deus. Só se goza a mais ampla liberdade quando se
coopera até o máximo limite da capacidade.

CAPÍTULO VI

O PRINCÍPIO DE INDIVIDUALISMO EM SUA RELAÇÃO COM A DOUTRINA DA INTERPRETAÇÃO


INDIVIDUAL DA BÍBLIA

Vimos, até agora, como o Princípio do Individualismo se aplica à doutrina do Homem,


à do Pecado, à da Salvação, à do Reino e à da Igreja. Vejamos agora qual a aplicação em
relação à doutrina da interpretação individual das Escrituras. O princípio opera aqui
exatamente como nas demais doutrinas examinadas.
Talvez uma das mais fáceis maneiras de se aproximar do assunto seja o exame, em
primeiro lugar, da diferença que existe entre verdade moral e verdade matemática. Há um
ponto interessante concernente a estas duas espécies de verdade no que se relacionam com a
vontade humana. E o exame dessa relação grandemente auxiliará no estudo da relação que
existe entre Individualismo e a interpretação individual das Escrituras.
A aceitação da verdade matemática pela mente não depende da vontade. A própria
natureza da verdade de certo modo obriga a aceitá-la, desde que seja apresentada em forma
clara e lógica. São tais as leis da mente humana que, uma vez certa verdade matemática sendo
plenamente demonstrada, a mente a aceita, embora contra a vontade: não há lugar para
argumento nem para dúvida. Existe, pois, uma vasta província da verdade que atua
independentemente da vontade. É a verdade que uma vez demonstrada, não admite dúvida
nem questão. A própria verdade força a conclusão, obriga a sua aceitação.
Isto já não se dá com a verdade moral, cuja aceitação sempre depende da vontade da
pessoa a quem é apresentada. A vontade, se o quiser fazer, pode vedar a entrada de tal
verdade na mente e no coração. A mente aceita esta ou aquela verdade por consentimento da
vontade. Tome-se, por exemplo, a grande verdade de que Deus é amor. Esta verdade pode ser
e de fato tem sido demonstrada de modo a satisfazer. Cada página da história da humanidade
registra o fato. E não obstante, quem quiser pode duvidar dele e não há argumento ou
demonstração suficiente para forçar a mente a aceitá-la. Donde se conclui que a verdade
moral necessita da assistência ou auxílio da vontade para ser aceita.
A verdadeira diferença entre o s dois ramos de verdade, contudo, descansa mais no
homem do que nas próprias verdades. A verdade matemática só apela às qualidades
intelectuais do homem, a sua aceitação é exclusivamente uma coisa mental, não envolvendo
de modo algum mudança ou transformação do caráter de quem a aceite. O ímpio pode
sustentar uma verdade matemática tão tenazmente quanto um crente piedoso. Mas já não se dá
o mesmo quando se chega ao domínio da verdade moral, que dirige os seus apelos não tanto
às qualidades intelectuais do homem como às suas qualidades morais. A aceitação duma
verdade moral é como um convite a uma mudança no caráter da pessoa que a aceita, de sorte
que antes que a verdade seja aceita a vontade tem de decidir se a referida mudança é ou não
desejável. E dependerá da decisão da vontade a aceitação ou rejeição da verdade. Não se pode
neste caso, como no da verdade matemática, impor à vontade. Muita coisa se acha envolvida
na aceitação da verdade moral. Em resumo: a verdade matemática só pede guarida na mente;
ao passo que a verdade moral pede um trono, um reino no coração.
Ora, a Bíblia é em parte verdade moral. É uma verdade que “deseja reinar”, pelo que,
tem que existir da parte do homem “a vontade de crer”. A Bíblia pode ser posta em dúvida.
Efetivamente os homens rejeitam as suas mensagens, as suas verdades. Um compêndio de
Aritmética é coisa muito diferente. Fosse a Bíblia simplesmente um livro-texto, como o de
Aritmética, o problema da raça seria grandemente simplificado. Os intelectuais poderiam
facilmente “ganhar o dia” nesse mister. Mas o que se depara na Bíblia é, não somente um
conteúdo mental, senão também um intento moral, um escopo moral. Não é ela alguma coisa
para ser somente entendida, é também para ser crida e obedecida. Não é um desafio à cabeça
do homem, mas um apelo e convite ao seu coração. Ela colima tanto esclarecer a mente
quanto iluminar a alma. O problema do destino está envolvido na aceitação da verdade moral.
A ignorância de verdades matemáticas poderá fazer-nos vítimas dos espertalhões e injustos.
Mas ignorar a verdade moral é tornar-se vicioso e abjeto. As verdades matemáticas são
entendidas mentalmente; a Bíblia é compreendida pelo coração. Um homem mau sempre
duvidará das Escrituras, mas para um homem bom elas sempre serão axiomáticas.
A Bíblia, pois, é interpretada pelo caráter, bom caráter; quanto melhor o caráter, mais
fiel a interpretação. Ela é um livro que se abre a um coração puro. De maneira peculiar ela
dispensa, para sua compreensão, requisitos intelectuais e vai diretamente ao coração. Ela se
revela “aos pequeninos e aos que se amamentam”, enquanto que os “sábios” permanecem na
ignorância das suas verdades mais superficiais. Há no Brasil uma planta que se abre
amplamente, com todas as suas folhas, talvez para absorver os raios vivificantes do sol ( N. do
copista – é a “sensitiva”). Mas se a tocarmos com a mão, fecha-se imediatamente. Assim é a
Bíblia. Ela se acha amplamente aberta; seus segredos, seus mais profundos pensamentos, seu
espírito, sua vida, tudo está franqueado aos humildes e contritos de espírito; mas ao contato da
mente refratária e antipática ela logo se fecha.
Se houvesse necessidade de verificar este asserto não seria preciso ir muito longe.
Bastaria examinar alguns livros modernos em qualquer livraria de primeira ordem para nos
convencermos de que não é possível entender a Bíblia através da sabedoria deste mundo.
Mas, se depois desse exame ainda não nos convencêssemos, era bastante conversarmos como
alguns “santos sem letras” e seriam removidas as dúvidas. Uma opinião honesta sobre as duas
espécies de interpretação removeriam qualquer dúvida no tocante às afirmações acima.
Uma das mais gratas recordações nas galerias da minha memória é o retrato de minha
mãe; vejo-a sentada diante de uma janela aberta, numa tarde domingueira de verão; ela traz
uma Bíblia aberta no colo. A minha teologia de hoje é o que dela aprendi. Não há dúvida de
que os meus bons professores ampliaram-na consideravelmente, porém, nunca a melhoraram.
E permiti que acrescente, para a honra perene dos mesmos professores, que eles nunca a
corromperam. Se me fosse permitido eu poderia apelar a uma multidão de testemunhas que
conheço nos vários campos missionários, todos eles iletrados e sem preparo, tanto homens
como mulheres, mas “sábios para a salvação”, os quais poderiam atestar o fato de que não é
aos sábios e sim aos bons que a Bíblia revela os seus segredos.
A Bíblia é o livro mais notável do mundo. Nenhum outro há que se lhe compare. O
que é supremo em todos os demais livros é secundário na Bíblia. Quando se lê um livro
oriundo da pena humana busca-se o pensamento contido nele, e se se consegue apreendê-lo,
fica-se ciente do todo. Já com a Bíblia não é assim. E ainda que os seus pensamentos sejam os
mais sublimes e ao mesmo tempo os mais profundos de toda e qualquer literatura, ainda isto é
secundário na Bíblia. A coisa magna acerca da Bíblia é o seu espírito, a sua vida. “As
palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida”, disse Jesus (João 6.63). Ainda mesmo
na hipótese de alguém assenhorear-se do seu pensamento, não se teria como isto assenhoreado
dela. Noutras obras a expressão dum pensamento é de certa maneira um fim em si mesmo, ao
passo que na Bíblia o pensamento é apenas veículo para o fim ou objetivo. O pensamento tem
como seu elevado propósito a revelação de um espírito. Tome-se por exemplo a parábola do
Bom Samaritano. Não é tão profundo assim o seu pensamento, não obstante estabelecer a
mais correta filosofia de vida; mas o espírito revelado pela parábola é grande, sublime!
E então, ainda além do espírito do livro, está a vida que há no livro. A Bíblia não só
revela a vida, mas contém vida. Jesus disse claramente que as palavras d’Ele “são vida”.
Como pão que nutre o corpo tem vida em si mesmo, assim a Bíblia tem vida espiritual em si
mesma. Para tirarmos vida do pão nós o comemos; e para tirarmos vida da Bíblia nós a
cremos. A Bíblia é pensamento, é espírito, é vida.
Indagar-se, à luz do que já foi discutido: “Quem se acha em melhores condições para
interpretar a Bíblia?” , é o mesmo que responder: É aquele que tem a vida e o espírito que há
no livro. Pode ser que este alguém não seja capaz de acompanhar Paulo em toda a sua
argumentação na carta aos Romanos ou alhures, mas não deixará de aprender o espírito, nem
deixará de receber alguma coisa da vida que há no livro e no trecho lido...São firmes as bases
em que se acham os Batistas para afirmarem que o melhor intérprete da Bíblia é o próprio
crente que vive à altura dos seus nobres e elevados privilégios em Cristo Jesus. São os puros
de coração que podem ver a Deus, já na Bíblia, já em qualquer lugar.
Acerque-se, porém, do assunto sob outro ponto de vista. Da natureza da verdade
moral, ou a Bíblia, verifica-se abundante evidência de que o crente sincero e humilde é o
verdadeiro intérprete da Escritura. E quando se abeira do assunto, por outro ponto de vista, a
saber, o método da revelação, chega-se à mesma conclusão. O efeito dos dois argumentos é
cumulativo; um reforça o outro.
O método mais frutífero pelo qual Deus revelou a verdade ao homem foi o da
encarnação. É interessante notar quão grande parte do Velho Testamento consta de biografias.
Igualmente em o Novo Testamento há vasto campo de biografias. Disse João: “O Verbo se
fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como
do Unigênito do Pai” (João 1.14) Uma palavra escrita não dá auxílio algum ao seu intérprete;
uma palavra falada traz consigo o auxílio da pessoa que fala; uma palavra viva, todavia,
interpreta-se a si mesma de maneira que até mesmo “aquele que corre possa lê-la”. Ora, Deus
entregou sua mensagem aos homens por esse método. Deus reuniu todas as coisas em Cristo.
E como foi essa verdade preservada? Perguntar-se-á. Ela foi revelada na vida e na vida
foi preservada. A melhor maneira de se preservar a verdade é encarná-la. Salvando homens é
que se salva a verdade. Foi exatamente nisso que os Fariseus erraram tão funestamente.
Divorciaram a verdade do homem e da vida. Para eles a verdade tornou-se tudo, o homem
nada. A própria vida podia e devia ser destruída para preservar a verdade em ritos mortos e
cerimônias ocas. Mas a verdade é de tal natureza que não pode ser assim preservada. A única
solução na qual pode ser preservada é uma vida reta e piedosa.
Desde as priscas eras o intento e esforço de Deus foi encarnar a verdade divina nos
corações e nas vidas dos seus seguidores. E a encarnação de Jesus é a culminância e a glória
desse processo. Paulo acentua essa idéia mui fortemente nestas palavras: “Vós sois a nossa
carta, escrita em nossos corações, conhecida e lida por todos os homens” (II Cor. 3.2)
Sabemos que os primitivos cristãos não tinham o Novo Testamento como o temos hoje em
dia, porém eles tenhas as mesmas verdades reveladas por Jesus Cristo e preservadas nas suas
próprias vidas.
Ora, a Bíblia é fiel registadora dessa verdade revelada na personalidade e na
personalidade preservada. O Espírito de Deus inspirou os homens santos a escreverem num
livro o que lhes fora transmitido da verdade revelada. Não foram escritas todas as coisas,
porquanto João nos declara que seria impossível fazê-lo; escreveu-se, porém, o bastante para
nos servir de guia tanto de fé como de prática. A Bíblia é um efeito do contato de Deus com
o homem por intermédio de Jesus Cristo. Deus e os homens reuniram-se, e a Bíblia é como o
Livro de Atas dessa reunião. É a Bíblia fiel registo e memorial de o que transpirou dessa
reunião de Deus e o homem.
É necessário ainda notar que as verdades da Bíblia não foram dadas para serem
simplesmente aprendidas, ou intelectualmente penetradas; mas foram dadas para ser
experimentadas. Sirva de exemplo a Ressurreição. É a Ressurreição apenas para ser entendida
ou é uma grande experiência que todos os filhos de Deus aguardam? Não há mal algum em
procurar entendê-la; ela, porém, se lança e irradia na Bíblia como um desafio à nossa
experiência. Paulo diz que ele estava fazendo tudo o que possível fosse “para ver se de algum
modo podia atingir a ressurreição dentre os mortos” (Fil. 3.11). O ponto a que queremos
chegar é que a verdade bíblica não é uma espécie de enigma de palavras cruzadas para ser
decifrado pelos mais argutos e inteligentes. Embora contenha grandes verdades, estas têm de
ser operadas na experiência e não no papel. A verdade da Bíblia é, primeiro que tudo, alguma
coisa a cuja altura se deve viver, e não meramente alguma coisa sobre a qual se deva meditar.
Qualificações intelectivas mui pouco influem na interpretação da Bíblia.
Surge, então, a interrogação: Se tudo isso é verdade, por que tanto esforço em treinar
os pregadores? Porque gastar fortunas no bom equipamento dos seminários? Reconhece-se o
cabimento da pergunta. Mas o que se está fazendo nessa direção é plenamente justificável, e
se devia até fazer mais. O elemento de pensamento da Bíblia é digno de toda ela. Precisa-
se de intelecto o mais treinado possível para a compreensão das grandes e maravilhosas
verdades que há na Bíblia sob a forma de profundos pensamentos. Quanto mais treinada a
mente, melhor instrumento terá o coração na posse e revelação dos mistérios de Deus.
Somente digo que, treinamento mental, não é bastante. Nem mesmo a falta disso impedirá
alguém de entender as Escrituras. O ideal é uma mente treinada e um coração humilde e
contrito, mas se não houver ambas as coisas, prefere-se, à cabeça “sábia”, o coração puro.
Paulo é explícito neste ponto: “Porquanto uma vez que na sabedoria de Deus o mundo pela
sua sabedoria o não conheceu, aprouve a Deus, pela estultícia da pregação, salvar os que
crêem” (I Cor. 1.21). Não é intenção nossa amesquinhar a perspicácia intelectual, mas
queremos exaltar o “poder visual” dum coração humilde. A Bíblia é vida, espírito e
pensamento. Procurar interpretá-la só do ponto de vista do pensamento seria como analisar
um ovo sem lhe quebrar a casca.
Volta-se destarte ao problema sobre quem se acha em melhores condições de
interpretar o Livro. O Livro é o produto de uma vida de experiência, e assim, quem tiver essa
mesma vida, quem tiver passado pelas mesmas experiências, parece estar nas melhores
condições de saber o conteúdo da Bíblia. E este é o homem que tem o mesmo espírito que há
na Palavra. Quando o crente devoto apanha a sua Bíblia e começa a lê-la, as coisas lhe surgem
uma após outras. Ele não saberá talvez como nem de onde; elas, porém, aparecem. A Bíblia
de algum modo fala ao homem bom. Aparentemente há um esforço tanto da parte do livro
como da parte do leitor piedoso. Os dois se encontram e o crente chega a compreendê-lo. Na
minha própria experiência tenho por vezes me espantado ao ver um crente rude falar das
coisas profundas da Bíblia. Como os fariseus, eu me tenho interrogado: “Como sabe esse
letras, não as tendo aprendido?” (João 7.15). Há nos Atos dos Apóstolos uma declaração
ainda mais forte: “E ao verem a intrepidez de Pedro e João, e tendo notado que eram
iletrados e indoutos, maravilharam-se; e reconheciam que haviam eles estado com Jesus”
(Atos 4.13). Assim os Batistas têm razão em sustentar que o melhor intérprete das Escrituras é
o indivíduo crente.
Para fortalecer essa crença é necessário ainda uma palavra acerca do Espírito Santo em
sua relação como o crente. No evangelho segundo João há estas palavras: “mas o Paráclito, o
Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos
fará lembrar de tudo o que eu vos disse” (João 14.26). “E eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará
um outro Paráclito, a fim de que esteja para sempre convosco; o Espírito da verdade, que o
mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; vós o conheceis, porque Ele
habita convosco e estará em vós” ( João 14.16, 17). A imaginação não pode conceber coisa
mais adequada do que a interpretação individual das Escrituras. O Autor do Livro permanece
e reside no intérprete do Livro. Lendo-o, não poderá o leitor fugir ao conhecimento do Autor.
Quem pode, pois, conhecê-lo? O Dr. E.Y. Mullins diz sobre este assunto: “Mas ninguém pode
apreciar e muito menos julgar o Novo Testamento em suas minúcias sem que haja atingido
elevado grau de simpatia com o universo espiritual, que ele nos desvenda, e sobretudo, com a
Pessoa do seu supremo Autor”.

CAPÍTULO VII

CONCLUSÃO

Embora tenha sido dado, no começo de cada capítulo, um breve sumário do capítulo
precedente, é de conveniência apresentar aqui um sumário geral dos pontos mais salientes, de
modo a reunir em forma mais concisa, os resultados deste estudo. Propusemo-nos a examinar
o alicerce das doutrinas batistas. Na consecução desse desideratum foi necessário verificar
primeiramente o princípio que serve de base à doutrina batista. O princípio em questão foi
posto em relação com as doutrinas de Pecado, Salvação, Reino de Deus, Igreja e a da
Interpretação Individual das Escrituras.
Para se verificar o Princípio do Individualismo examinamos a doutrina da Criação,
principalmente a do homem, a fim de vermos exatamente o que ocorreu nela. Vimos, neste
exame, que Deus usou de dois métodos na Criação. Em primeiro lugar decretou, falou, e as
coisas existiram. A vontade divina era, e é ainda, a única vontade que há nesta parte da
criação que inclui todas as coisas criadas, até mesmo o homem em sua semelhança natural a
Deus. Quando, porém, chegou ao ponto de criar o homem à sua semelhança moral, ao ponto
de erguer a criação ao mais elevado nível espiritual, Ele mudou o método. Chamou à ação a
vontade da criatura que criara. E daí por diante a criação havia de prosseguir em conjunto,
com a ação simultânea de suas vontades, a de Deus e a do homem. Dos fatos verificados no
exame da doutrina da Criação revelou que o homem foi criado livre, responsável e
competente. Verificamos, igualmente, que o processo da criação foi por um momento
embargado, detido, enquanto o homem decidia se atuaria em cooperação com Deus ou se
procederia em oposição a Ele.
Na doutrina do Pecado chegamos ao inesperado, – uma verdadeira surpresa. Todos os
indícios eram de que o homem não deixaria de cooperar com Deus e que a Criação se ergueria
imediatamente ao nível espiritual. (Nota do copista: O autor aqui fala de surpresa não da
parte de Deus, obviamente, e sim de quem examina a criação do ser humano). Todavia, por
alguma coincidência estranha inexplicável, o homem agiu ao contrário da vontade divina.
Abusou da liberdade. O que fora feito possível pela criação, o homem tornou real por seu
próprio ato. Apareceu o pecado. O homem caiu. E com ele caíram as mais caras esperanças de
toda a criação. A queda resultou em discórdia e confusão sobre todas as coisas. Tornou-se
homem contra homem, animal contra animal, e a própria terra assumiu uma atitude hostil para
com a humanidade.
Quando foi estudada a doutrina de Salvação, verificou-se que uma nova força
penetrara na raça. Onde o pecado espalhara, fragmentara, Cristo, – essa nova força – ,unira e
tornaria coeso. Cristo veio para desfazer o que o pecado fizera. A salvação teria de ser um
novo começo, uma nova criação. Deus, por Cristo, o meio e o alvo da primeira criação, teria
de continuar a obra de criar, não somente um indivíduo, mas uma raça na semelhança moral
de Deus. O mesmo método empregado na primeira é usado nesta segunda criação, a saber, a
ação simultânea de duas vontades, a humana e a divina. Verificou-se que a salvação é um
processo puramente moral e que ocorre inteiramente acima do plano de natureza. A salvação é
sobrenatural. O resultado da salvação foi paz no homem e com Deus. E todos os indícios são
de que esta paz se estenderá finalmente a toda a criação.
Acompanhamos o indivíduo desde a salvação até dentro do Reino. Ele tornou-se agora
membro duma nova raça, um novo organismo, cuja cabeça é Cristo, e cuja vida é divina.
Dentro deste Reino destina-se o indivíduo à realização de todas as suas possibilidades.
Enquanto a salvação coloca o mundo à disposição do homem salvo, o Reino coloca o salvo à
disposição do mundo. Tornaram-se universais as responsabilidades do homem e sua liberdade
se aperfeiçoa pela soberania de Cristo. Dentro do Reino adquire o homem uma nova
competência proporcional às suas universais responsabilidades. O indivíduo no Reino
funciona “universalmente”.
A fim de funcionar neste círculo universal, vimos o homem entrando numa
organização, a igreja local. O homem levou consigo para dentro dessa organização todas as
suas prerrogativas e responsabilidades em relação ao Reino de Deus. Estando o Reino em
primeiro lugar, tanto pelo tempo como pela importância, as obrigações do homem para com
ele eram fundamentais e decisivas. Torna-se, então, a organização um método um plano, por
onde os interesses do Reino terão de ser conservados e os seus propósitos cumpridos.
Encontramos também dentro da organização igualdade entre seus membros, uma forma
democrática de governo, e um simbolismo nas ordenanças; todas estas surgindo diretamente
dos interesses do Reino. Encontramos também uma permanente necessidade de cooperação,
não só da parte do indivíduo para com o indivíduo, senão também cooperação da parte de uma
organização com outras organizações congêneres.
No último capítulo, em que tratamos do Princípio de Individualismo em sua relação
com a Interpretação Individual das Escrituras, encaramos o assunto sob dois pontos de vista.
Demonstramos, pelo estudo da natureza da verdade moral, que o homem bom, o puro de
coração, é o único em condições de realmente entender a palavra, o espírito e a vida das
Escrituras. Caráter é o que vale no conhecimento da Vontade de Deus. Mostramos também
que deve haver uma “vontade de crer” naquela verdade que tenha uma “vontade” de dirigir e
orientar a vida do homem, como efetivamente acontece a toda verdade moral. Chegamos
também a semelhante conclusão aproximando-nos da questão pelo ponto de vista do método
divino na revelação e preservação da verdade. A verdade foi revelada através da vida e na
vida. A experiência muito se relaciona não somente com a revelação da verdade, como
também com a sua preservação. Sendo isto verdade, alguém que tivesse experiência
semelhante àquela do Livro, poderia interpretá-lo. Estas duas linhas de aproximação
produzem um efeito cumulativo que dificulta qualquer tentativa de refutação do princípio
batista de que o indivíduo cristão é competente para interpretar por si mesmo a Bíblia.
A conclusão geral é, portanto, que os Batistas absolutamente não têm necessidade de
desculpar-se pela posição que assumem, a qual vem não deles mesmos, mas é derivada dos
princípios que se alicerçam profundamente na própria natureza das coisas. Estes princípios se
assinalam com os marcos da criação, porque de lá saíram. As crenças batistas não são o que
os Batistas têm pensado, mas o que lhes tem sido outorgado por princípio, preceito e exemplo.
Tão somente queremos o direito de receber e usar, para o bem da humanidade e para a glória
de Deus, o que nos vem das mãos liberais de um Pai celestial todo sábio e todo amor.
Concedemos a todos os outros o mesmo privilégio, “pois reputamos como cristãos e irmãos
na obra do Senhor, e herdeiros conosco da vida eterna, todos aqueles que têm comunhão com
Deus por nosso Senhor Jesus Cristo. Apreciamos a sua camaradagem, e mantemos que a
união espiritual de todos os crentes não somente é, mas será sempre uma preciosa realidade.
Esta união espiritual não depende de organização externa nem de ritual. É mais profunda,
mais elevada, maior e mais fundamental que todas as exterioridades. Todos os que se acham
realmente unidos com Cristo são nossos irmãos numa salvação comum, quer estejam na
comunhão católica (*) , na protestante, ou ainda mesmo em nenhuma. Com todos os
verdadeiros cristãos nos regozijamos nas convicções básicas da nossa fé”. Nós, os Batistas,
pleiteamos o privilégio de sermos fiéis a nós mesmos, fiéis à nossa mensagem, e fiéis ao
nosso Senhor e Mestre, Jesus Cristo. “Além disso requer-se nos despenseiros que cada um se
ache fiel” (I Cor. 4.2)

(*) Observação do copista: o autor tem razão aqui também, uma vez que, por
desconhecimento doutrinário alguém que é salvo pode estar ainda comprometido com um
sistema religioso pressupostamente cristão mas divergente da ortodoxia neo-testamentária.
Mas perguntamos, atualmente, se a doutrina católica romana suporta o ensino do Princípio de
Individualismo conforme exposto neste documento? O indivíduo católico romano que aceitar
a verdade aqui exposta, deixará ou não de ser católico romano?

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