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O Nosso Lugar Virou Parque PDF
O Nosso Lugar Virou Parque PDF
A^Diegues &
vem demonstrar o interesse crescente pelas P. Nogara
questões relativas à conservação ambiental, à
biodiversidade e ao papel das populações
tradicionais na defesa de seu modo de vida
dependente do uso sustentável dos recursos
naturais. O fato desse trabalho ter sido
realizado por cientistas naturais e sociais, em
envolvimento direto com as comunidades
caiçaras aponta para a necessidade de se
construir uma nova ciência da conservação
ambiental no Brasil, a partir de uma reflexão
sobre a nossa realidade ecológica e cultural e
não a partir da transposição de modelos dos
países do Norte.
Esta publicação, que conta com o apoio da
Fundação Ford, foi realizada a partir de
trabalho de campo dos pesquisadores do
NUPAUB-USP.
A conservação do m u n d o n a t u r a l ,
através de p a r q u e s nacionais e outras
áreas protegidas t o r n o u - s e u m dos
maiores objetivos das políticas públicas
de m e i o - a m b i e n t e . C o m o , no e n t a n t o , a
Antonio Carlos Diegues
quase totalidade dessas unidades prevê
raulo José Navajas Nogara
o d e s l o c a m e n t o dos antigos m o r a d o r e s ,
p r i n c i p a l m e n t e das c o m u n i d a d e s
tradicionais tais como sertanejos,
c a i ç a r a s e c a b o c l o s , os p a r q u e s
n a c i o n a i s , c u j o m o d e l o foi i m p o r t a d o d o s
E s t a d o s U n i d o s no i n í c i o d e s t e s é c u l o
t o r n a r a m - s e t a m b é m u m sinal de
conflito, e e m m u i t o s casos, de opressão
desses g r u p o s sociais. Hoje, já é aceito O NOSSO LUGAR VIROU PARQUE
por grande parte dos cientistas que a
presença dessas populações tradicionais
L s t u d o 5 o c i o a m b í e n t a l d o Saco de
dentro dos parques, não
M a m a n g u á - P a r a t i - K í o de J a n e i r o
n e c e s s a r i a m e n t e l e v a à sua d e s t r u i ç ã o
mas pode contribuir significativamente
para o ê x i t o dessas unidades de
c o n s e r v a ç ã o . Para q u e e s s a c o n t r i b u i ç ã o
5a. edição
seja d e v i d a m e n t e i n c o r p o r a d a , é preciso
m u d a r os p a r a d i g m a s da c i ê n c i a da
c o n s e r v a ç ã o do m u n d o n a t u r a l , essa
t a m b é m i m p o r t a d a de p a í s e s c o m
ecossistemas e culturas distintas
d a q u e l e s q u e t e m o s e m nosso país. Este
livro, f r u t o de t r a b a l h o de u m
antropólogo e um biólogo acenam para a
n e c e s s i d a d e da c o n s t r u ç ã o d e u m m o d o
novo de ver a relação e n t r e c o m u n i d a d e s
tradicionais e parques que poderíamos pau lo
c h a m a r d e e t n o b i o l o g i a da c o n s e r v a ç ã o . 200:5
O NOSSO
(55 I I) 3091.3307 / 3091.3142 / 3091.3425 / 3091.3089
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LUGAR VIROU TARQU
e-mail: nupaub@usp.br
i L s t u d o S o c i o a m b i e n t a l d o S^co de
A p o i o : Fundação F o r d
Catalogação na Fonte
BibliotecáriarVera Lúcia de Moura Accioli Cardoso CRB-8/2269
I. Ecologia humana. II.Antropologia marítima. III. Natureza e sociedade. V i m „ K n w a m u r a G o n ç a l v e s (cstagiáría - Qências Sociais)
IV. Populações tradicionais em áreas naturais protegidas.V. Nogara. Paulo José
Na vajas-VI.Titulo.
Pref á cio
caiçara local fique cada vez mais dependente da compra de produtos conhecido que tenha u m barco motorizado, o que n e m s e m p r e é
industrializados da cidade e menos ligado aos ciclos naturais que possível. H á muito tempo, a p o p u l a ç ã o v e m solicitando u m barco
regiam seu m o d o de vida. à Prefeitura de Parati que garantiria o transporte público, mas s e m
E s s a s novas atividades, principalmente o turismo, s ã o sazonais resultado.
e exercidas principalmente nos poucos meses de v e r ã o e durante Nesta s i t u a ç ã o , os barcos motorizados dos donos de casas de
os feriados, gerando alguma renda que acaba q u a n d o termina a veraneio que s ã o deixados com seus caseiros, acabam s e r v i n d o
e s t a ç ã o dos turistas ou a construção da casa do veranista. É preciso para o transporte desses moradores locais. N u m caso, a única trilha
ressaltar a i n d a que i n ú m e r a s m a n s õ e s estão sendo c o n s t r u í d a s , da M a r g e m P e n i n s u l a r teve seu t r a ç a d o tradicional alterado por
principalmente na região peninsular pertencente à Reserva passar n a praia de u m p r o p r i e t á r i o de fora, tendo este feito u m
Ecológica, área non-edificmidi. outro caminho, mais penoso, por se tratar de u m a subida í n g r e m e .
A i n d a que mais da metade dos moradores afirme que os turistas No entanto, porque ele cede seu barco para o transporte de doentes,
t r a z e m b e n e f í c i o s ao lugar, outros v ê e m essa a t i v i d a d e c o m o referido p r o p r i e t á r i o é " d e s c u l p a d o " por situações como esta.
ceticismo, u m a v e z que os veranistas que c o n s t r u í r a m suas casas U m aspecto positivo é a diminuição da m i g r a ç ã o para os bairros
de luxo trazem seus mantimentos de fora, c o n s u m i n d o pouco no pobres de Parati. Nota-se t a m b é m u m a o r g a n i z a ç ã o crescente da
c o m é r c i o local. p o p u l a ç ã o local e m torno da A M A M , criada e m 1992, que inclui
O s problemas de s a ú d e s ã o particularmente graves e m toda a tanto turistas como moradores. A s gestões mais recentes da A s -
á r e a , sobretudo pelas m á s c o n d i ç õ e s sanitárias, já que n ã o existe s o c i a ç ã o têm conseguido algumas m u d a n ç a s importantes, como
á g u a tratada e poucos moradores têm fossas sépticas o u esgotos. por exemplo, o fim da a h v i d a d e dos barcos de arrasto de c a m a r ã o ,
N a maioria das vezes, a á g u a é coletada e m riachos que d e s c e m que v i n d o s de Parati v a s c u l h a v a m o interior do Saco, p r o v o c a n d o
das montanhas, e m princípio, de á g u a pura. N o momento da cap- a morte de i n ú m e r o s filhotes de peixes. A partir de m e a d o s d a
tação, os tanques ficam descobertos e a á g u a t a m b é m é u s a d a por década de 1990, a A M A M , e m colaboração com os pescadores locais,
animais selvagens o u domesticados. A l é m disso, grande parte dos c o m e ç o u a implementar os dispositivos de e x c l u s ã o de arrasto
moradores n ã o usa latrinas, o que contribui para o surgimento de {DEAs), constih.u'dos por b*locos pesados de cimento com vergalhões
várias enfermidades transmissíveis como a hepatite. A d e m a i s , têm de ferro que r e t ê m as redes usadas para capturar ilegalmente o
aparecido t a m b é m alguns casos de leishmaniose, u m a espécie de c a m a r ã o . A p e s a r da resistência dos donos de barcos e de várias
úlcera de pele que se não tratada apropriadamente pode trazer pro- a m e a ç a s , a i m p l e m e n t a ç ã o desses d i s p o s i t i v o s , a p o i a d a p e l a
blemas sérios à s a ú d e . O fato do r e c é m c o n s t r u í d o posto de s a ú d e C a p i t a n i a dos Portos e pelo Ibama, e l i m i n o u a pesca de arrasto e,
funcionar com pouca regularidade, com rara p r e s e n ç a de m é d i c o s como consequência, os estoques pesqueiros voltaram a se reproduzir
e falta de remédios também não tem colaborado para u m a melhoria beneficiando os pescadores locais. A l é m disso, a A M A M c o n s e g u i u
das c o n d i ç õ e s de s a ú d e local. N o entanto, algumas melhorias no construir sua sede na Praia do C r u z e i r o onde s ã o feitas as reuniões
setor de saúde, como tratamento dentário, tem ocorrido por iniciativa da A s s o c i a ç ã o , c u r s o s de m e l h o r i a do artesanato e v e n d a de
da A M A M — A s s o c i a ç ã o de Moradores e A m i g o s do M a m a n g u á . produtos locais.
A s s o c i a d a às c a r ê n c i a s de s a ú d e está a falta de transporte A A M A M t a m b é m tem combatido o projeto de c o n s t r u ç ã o de
regular para levar os doentes à cidade de Parati, onde p o d e m "•'ma marina no F u n d o do Saco, por iniciativa de ricos proprietários
receber a l g u m tratamento, ainda que precário. P o r é m , muitos têm C o n d o m í n i o L a r a n j e i r a s e tem c o n s e g u i d o b l o q u e a r essa
d i f i c u l d a d e d e pagar o frete e r e c o r r e m a a l g u m parente o u c o n s t r u ç ã o com a c o l a b o r a ç ã o do Ministério Público.
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE PREFÁCIO
U m a atividade cada vez mais importante para os moradores é o experiência importante nesse sentido foi realizada pelas c o m u n i -
artesanato especializado em reproduções de e m b a r c a ç õ e s feitas de dades do Parque Estadual da Ilha do Cardoso e m C a n a n é i a , litoral
caixeta e que já s ã o consideradas u m a das mais a p r i m o r a d a s e m sul paulista, onde os caiçaras s ã o donos de pousada e tentam m a n -
todo o Brasil. A o m e s m o tempo, c o m e ç a m a surgir iniciativas de ter v i v o s o m o d o de v i d a , as d a n ç a s e as m ú s i c a s tradicionais. A
manejo florestal que p o d e r ã o garantir a r e p r o d u ç ã o de u m a das aquicultura familiar baseada no mexilhão e na ostra pode ser tam-
poucas manchas de caixeta ainda existentes no litoral fluminense. bém u m a alternativa para essas comunidades, como v e m ocorrendo
Por outro lado, é verdade que o m o d o de v i d a tem se mantido, na Reserva Extrativista M a r i n h a do M a n d i r a e m C a n a n é i a .
e m parte porque ainda n ã o existem estradas que coloquem a região C o l o c a r essas c o m u n i d a d e s e m contato u m a s com as outras,
ao alcance do turismo de massa. O m e s m o pode ocorrer c o m a trocando e x p e r i ê n c i a s , é u m a atividade fundamental neste m o -
instalação da energia elétrica. Por enquanto, a energia para escola mento. O importante é que, a t r a v é s d c u m conjunto de atividades
e para o centro de s a ú d e é garantida por placas solares e pequenos dependentes dos recursos naturais, os c a i ç a r a s p o s s a m melhorar
geradores. O acesso por mar a Parati-Mirim, onde existe transporte sua r e n d a e s u a qualidade de v i d a , guardando sua c o n d i ç ã o de
por ônibus para Parati, é feito por barcos a motor pertencentes a produtores a u t ó n o m o s . N e s s e processo, é fundamental que eles
moradores da região. tenham tempo suficiente para se a d a p t a r e m às m u d a n ç a s que, aliás,
A U n i d a d e de C o n s e r v a ç ã o existente - Reserva E c o l ó g i c a , n ã o já v ê m ( K o r r e n d o , f r e q u e n t e m e n t e a u m ritmo muito a c e l e r a d o , mais
existe n o S N U C (Sistema Nacional de U n i d a d e de C o n s e r v a ç ã o ) e, r á p i d o do que aquele ao qual estão acostumados.
portanto, no futuro, deverá passar por u m a m u d a n ç a de categoria.
A Reserva de Desenvolvimento Sustentável ou Reserva Extrativista
que p r e v ê e m o uso controlado dos recursos naturais p o d e r i a m ser
aplicadas à á r e a costeira habitada das c o m u n i d a d e s e ao corpo de
á g u a do p r ó p r i o Saco de M a m a n g u á . Pela sua riqueza biológica,
essa área estuarina deveria ser de uso exclusivo dos moradores
locais para atividades de pesca e aquicultura. D e v e r i a estender-se
t a m b é m às áreas usadas para a agricultura, manguezais e caixetais.
A implementação de uma marina, no entanto, pode ser u m a a m e a ç a
direta a essa proposta, devido aos impactos negativos que teria
para a pesca e para a aquicultura.
A s áreas de floresta nas regiões mais elevadas que não são usadas
produtivamente pelas comunidades poderiam ser transformadas
e m outras unidades de proteção integral como Parque Nacional. Já
a i m p l e m e n t a ç ã o de u m a Reserva de Desenvolvimento Sustentável
ou de u m a Reserva Extrativista p r e v ê e m u m a sólida o r g a n i z a ç ã o
c o m u n i t á r i a , d a qual já existe u m e m b r i ã o na A M A M .
É importante que as c o m u n i d a d e s se o r g a n i z e m para retirar o
m á x i m o proveito do turismo, seja a t r a v é s da c o n s t r u ç ã o de p o u -
sadas o u da a m p l i a ç ã o de suas casas para receber turistas. U m a
PREFÁCIO . . . . . . . v
INTHOPUÇÃO. . . . . . . . 17
1. A HISTÓRIA SOCIOAMBIENTAL . . . . . 23
^- Os MORAPORES . . . . . . . 51
Wsos PELA P O P U L A Ç Ã O L O C A L . . . . . 57
Os Ecossistemas da Região . . . . . 57
SUMÁRIO
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE
5. O M O D O PE V I P A E AS T E C N O L O G I A S C A I Ç A R A S . . . 8 7
A Reserva vista pelos Moradores . 1 5 9
Populações Tradicionais Caiçaras . . . . 88
A Conservação da Biodiversidade e uma Nova
Fabricação da Farinha 94
Concepção de Planos de Manejo . . . . 1 6 1
A Tecnologia Patrimonial na Pesca . • . . 95
Os Pescadores 105
TABELAS
^) Pesc^doi-es Ernh^rc^dos . . . . 105
ty) PG5c:i4ore5 Attes:}n:)is. . . . . . 109
Tabela 7b. Extrativismo: Madeiras Utilizadas nas Tabela 27, Renda Familiar. . . . .
Construçõesde Casas, Canoas e Barcos . • 72
Tabela 28. Festas que Participam os Chefes de Família •
Tabela 7c. Extrativismo: Espécies Vegetais
Tabela 29. Situação da Posse da Terra em Porcentagem
Utilizadas na Alimentação . . 73
Tabela 30. Problema Segundo os Chefes de Famílias
Tabelas. Lavoura: Calendái-ioAgrícola- . . 74
Tabela 31. Opinião sobre Turismo .
Tabela 9. Mangue: Recursos Naturais
Extraídos do Mangue . . . . . 77 Tabela 32. Grau de Informação sobre a Reserva
Ecológica da ^uatinga . . . .
Tabela 10. Zona Estuarina: Utilização dos
Recursos Estuarinos . . - . . 79 Tabela 33. Opiniões sobre a Reserva Ecológica
daJuatinga . . . . .
Tabela 11- Principal Atividade Económica dos Chefes
de Família ^ ^ 7 5 0 ; . . . . . 103
Tabela 17. Pesca Artesanal - Tipo de Pesca Praticada . 109 Mapa 3. Distribuição da População nos Diversos
Ambientes do Saco de N\^m^D^u^ .
Tabela 18. Pesca Artesanal - Propriedade dos
O presente estudo pretende fornecer subsídios ao conhecimen- ca e m b a r c a d a " abriu u m a nova d i m e n s ã o na r e p r o d u ç ã o social e
to d a á r e a estuarina e de M a t a Atlântica que foi transformada e m cultural dos moradores, sobretudo os jovens que p a s s a r a m a ex-
o u t u b r o d e 1 9 9 2 na RESERVA E C O L Ó G I C A E S T A D U A L DA J U A T I N G A . O fato plorar recursos m a r i n h o s distantes d e s u a s v i l a s e praias, dentro
de sor u m a u n i d a d e de p r o t e ç ã o restritiva, que legalmente n ã o de u m sistema de trabalho bastante distinto daquele caracteriza-
permite a p r e s e n ç a de p o p u l a ç ã o em seu interior, causa conflitos e do c o m o pesca de subsistência e pesca artesanal. N e s s e sentido,
impactos sobre o m o d o de v i d a tradicional caiçara a i n d a existente s u r g i u u m g r u p o de "pescadores m a r í t i m o s " , c o m d i n â m i c a p r ó -
na á r e a . A i n d a que haja, n o texto d a lei d e c r i a ç ã o da R e s e r v a , pria, v i v e n d o quase que exclusivamente do ambiente m a r i n h o e
m e n ç ã o sobre a i m p o r t â n c i a da cultura local ( c a i ç a r a ) , a a p l i c a ç ã o seus recursos, que, desde a d é c a d a de 7 0 , p a s s o u a ser estudado
da legislação atual restritiva quanto ao uso dos recursos naturais pela "antropologia m a r í t i m a " . Essas novas p r á t i c a s socioculturais
repercutirá sobre as formas tradicionais d e uso dos recursos natu- da "gente do m a r " d ã o ao ambiente marinho u m a d i m e n s ã o antro-
rais. Por outro lado, a d e c l a r a ç ã o dessa reserva d e v e r á acarretar o pológica e s ã o marcadas pelas propriedades naturais socializa-
fim, o u pelo menos a r e d u ç ã o , da e s p e c u l a ç ã o imobiliária que já é das. E s s a s práticas, no entanto, não d e p e n d e m exclusivamente
visível na área e que por si só tem causado m u d a n ç a s consideráveis do mar, meio " n a t u r a l " socializado, m a s t a m b é m d e formas d e
no m o d o de v i d a da p o p u l a ç ã o local. o r g a n i z a ç ã o da p r o d u ç ã o (Diegues, 1 9 9 3 ) . C o m o surgimento d a
D e v e - s e ressaltar que o E s t a d o d o R i o de Janeiro é u m dos que "pesca e m b a r c a d a " configura-se uma relação complexa entre os
m a i s apresentam conflitos entre as p o p u l a ç õ e s moradoras de á r e - pescadores artesanais (e alguns t a m b é m de subsistência) e os
as naturais protegidas e as a d m i n i s t r a ç õ e s dessas u n i d a d e s de pescadores embarcados, ainda que, muito frequentemente, os se-
c o n s e r v a ç ã o . E s t u d o recente do N U P A U B ( V i a n n a , A d a m s & g u n d o s voltem à pesca artesanal n o p e r í o d o do " c l a r o " ( q u a n d o
Diegues, 1 9 9 4 ) mostra que cerca de 7 4 % das u n i d a d e s d e conser- não se pesca s a r d i n h a ) , nos longos p e r í o d o s de defeso (quando
v a ç ã o restritivas do Estado do R i o d e Janeiro tem p o p u l a ç ã o e m essa pesca é proibida) e t a m b é m durante o tempo e m que se espe-
seu interior, gerando u m a série de conflitos que i n c i d e m negati- ra u m n o v o embarque.
vamente sobre a c o n s e r v a ç ã o da área e sobre o m o d o de v i d a das O u t r o s processos, no entanto, colaboram para alterar o m o d o
p o p u l a ç õ e s locais. d e v i d a tradicional, como o surgimento das igrejas "crentes", e d o
O s resultados dessa c a r a c t e r i z a ç ã o p r e l i m i n a r m o s t r a m q u e turismo.
as p o p u l a ç õ e s de M a m a n g u á , apesar de seu isolamento g e o g r á - A p e s a r desses processos, e da forte e m i g r a ç ã o que tem ocorri-
fico relativo, estão inseridas em processos de m u d a n ç a social e do, os moradores das praias de M a m a n g u á ainda d e p e n d e m , para
cultural que passaram a alterar seu modo de vida tradicional, prin- '1 r e p r o d u ç ã o de seu modo de v i d a , do uso dos recursos naturais,
cipalmente a partir dos anos 4 0 - 5 0 . E n t r e os processos socioeco- da Mata Atlântica, seja d a p r ó p r i a z o n a estuarina. N e s s e sen-
n ó m i c o s e n v o l v i d o s na m u d a n ç a social deve-se ressaltar o início tido, sua v i d a é marcada pelas d u a s e s t a ç õ e s principais, o tempo
da "pesca e m b a r c a d a " , pela qual os jovens passaram a pescar fora q>-iente e o tempo frio. Sobretudo a partir dos anos 7 0 criou-se
da á r e a , e m barcos de sardinha, as traineiras. E s s e tipo de pesca ^•nia outra e s t a ç ã o ; a dos turistas que entre d e z e m b r o e fevereiro
que se c o n t r a p õ e à pesca artesanal realizada n o interior d o e s t u á - casas, assentam barracas o u p a s s a m o dia no lugar, v o l -
rio é r e s p o n s á v e l pelo aparecimento d c u m g r u p o d e moradores ''indt) a P a r a t i - M i r i m o u a Parati. É t a m b é m nesse p e r í o d o que
que p a s s a m a maior parte do tempo na captura da s a r d i n h a e '^^••'itos moradores se transformam e m a r t e s ã o s , p r o d u z i n d o v á -
outras espécies, e m u n i d a d e s de p r o d u ç ã o (as traineiras) muito '^>s artigos, c o m o miniaturas de barcos, gamelas, p á s s a r o s , feitos
mais complexas que as existentes anteriormente (a canoa). A "pes- *• ^' " l a d e i r a de caixeta.
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE
INTRODUÇÃO
A Místóría
Socioambiental
P a r a t i - M i r i m . Parati v e m provavelmente do v o c á b u l o i n d í g e n a car, muito m a i s d e m o c r á t i c a que ele e que, nos pequenos en-
tornou a espécie mais capturada e c o n s u m i d a no Saco de M a - única p r o d u ç ã o , tendo relegada por completo a do a ç ú c a r , que
antes era e s s e n c i a l " (Mussolini, 1980a: 224).
m a n g u á . A cultura indígena deixou marcas p r o f u n d a s no m o d o
d e v i d a local. A p o p u l a ç ã o local, genericamente d e n o m i n a d a d e
" c a i ç a r a " é fruto da m i s c i g e n a ç ã o entre o índio, o colonizador A i n d a segundo M u s s o l i n i (1980a), a faixa litorânea de São P a u -
farinha, de instrumentos de pesca, de c o n s t r u ç ã o de canoas e s t ã o que o povoamento a v a n ç a v a para o interior e as frentes pioneiras,
sobretudo a do café, se afastavam da costa para o planalto.
p r o f u n d a m e n t e m a r c a d a s pela influência indígena ( M u s s o l i n i ,
M u i t o s n ú c l e o s h u m a n o s da região litorânea do s u l do R i o de
1980a).
Janeiro e norte de São Paulo floresceram nos "interstícios" da gran-
Parati foi f u n d a d a no século X V I I e elevada à c o n d i ç ã o de vila
de l a v o u r a , gravitando e m torno de centros maiores para onde
e m 1660. O cultivo d a c a n a - d e - a ç ú c a r foi a atividade mais i m p o r -
e n v i a v a m seu parco excedente: farinha de mandioca, peixe seco,
tante a partir do século xvili quando os engenhos se estabelece-
aguardente.
r a m na r e g i ã o . N o Saco de M a m a n g u á ainda p o d e m ser encontra-
d a s 05 r u í n a s desses engenhos.
" D e c a i n d o os n ú c l e o s de p o v o a m e n t o q u e eles centra-
A r e g i ã o de Parati se transformou n u m centro colonial impor-
l i z a v a m , voltaram a fechar-se sobre si mesmos, entregando-se
tante d e e x p o r t a ç ã o de ouro, proveniente das M i n a s G e r a i s no
a u m a economia de quase trocas, com o decorrente estreita-
final do s é c u l o X V I I I e para seu transporte se u t i l i z a v a a antiga
mente d e s e u horizonte e c o n ó m i c o e c u l t u r a l " ( M u s s o l i n i ,
trilha dos guaianases.
1980a: 223).
E m m e a d o s d o s é c u l o XIX, Parati chegou a exportar u m a pro-
d u ç ã o c o n s i d e r á v e l de café, f u m o e aguardente, u s a n d o a v i a
Esse processo ocorreu t a m b é m e m Parati, c o m a d e c a d ê n c i a
m a r í t i m a . A d e c a d ê n c i a d a região se d e u c o m a c o n s t r u ç ã o d a
da sede d o m u n i c í p i o e de s u a base e c o n ó m i c a .
Estrada de Ferro D . Pedro II, e m 1877, e com a abolição d a escra-
vatura — base da monocultura local — poucos anos depois. M e s -
" A i m p r e s s ã o q u e se tem do litoral, é q u e a v i d a a l i foi
m o a p ó s s e u apogeu e c o n ó m i c o , continuou-se a plantar cana-de-
simplificada e m seus elementos culturais e, e m c o m p a r a ç ã o
a ç ú c a r para a p r o d u ç ã o de aguardente, muito apreciada dentro e
c o m o passado, r e d u z i d a a ponto pequeno. T a l v e z seja este o
fora d a r e g i ã o . S u r g i u t a m b é m a monocultura d e b a n a n a , que já
aspecto que mais cause a i m p r e s s ã o de d e c a d ê n c i a . É c o m o se
utilizava m ã o - d e - o b r a assalariada (Mussolini, 1980a).
v i v e s s e d o q u e s o b r o u d e outrora, tendendo-se, e m geral, a n -
A região d e Parati durante o p e r í o d o colonial foi, d e a l g u m a
tes a empobrecer esses restos que a lhes acrescentar n o v o s
forma, u m a p ê n d i c e dos grandes centros exportadores, particu-
elementos. A q u e l e s produtos locais que u m d i a c o n s t i t u í r a m
larmente R i o de Janeiro e a região das M i n a s Gerais. C o m o afirma
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE A HISTÓRIA SOCIOAMBIENTAL
p a s s o u a a s s u m i r c a r á t e r comercial e destaque crescente entre c o m ofertas irrisórias a que os lavradores n ã o resistiam, por
as outras subculturas regionais e os barcos de pesca desbanca- n ã o conhecer o valor exato do dinheiro. Estes, analfabetos e m
r a m as canoas à voga c o m o elementos de transporte e co- s u a maioria, eram enganados de várias formas, i n c l u s i v e as-
m u n i c a ç ã o . Pelas m e s m a s rotas, se b e m c o m ritmo d i v e r s o , s i n a n d o contratos de arrendamento, meia o u parceira, onde
c o n t i n u a r a m a circular barcos, peixes, h o m e n s e i n o v a ç õ e s a c a b a v a m cedendo seus direitos de posse, sem saber.
técnicas pesqueiras, muito embora, evidentemente, as confi- O s benefícios para as p o p u l a ç õ e s n ã o foram muitos: se por
g u r a ç õ e s espaciais intra-regionais se alterassem e m f u n ç ã o do u m lado a estrada trouxe u m a via de transporte r á p i d o e es-
significado e c o n ó m i c o que as unidades envolvidas a d q u i r i r a m coamento, o turismo por ela a t r a í d o provocou violenta espe-
ou p e r d e r a m e, e m consequência, do papel positivo e negativo c u l a ç ã o imobiliária, e u m a tendência dos empreendimentos a
que elas p a s s a r a m a desempenhar na redistribuição das po- privatizar as praias onde se instalam. O s habitantes originá-
ç ã o das praias. A e s p e c u l a ç ã o imobiliária e a a ç ã o dos " g r i l e i r o s " isem se intensificou a c o n s t r u ç ã o de casas de turistas e a e x p u l s ã o
que já era grande nos anos 60 tornou-se ainda mais violenta, pro- dos " c a i ç a r a s " .
v o c a n d o a e x p u l s ã o dos pescadores de s u a s praias. Por outro lado, e m 1971, o Estado criou o Parque N a c i o n a l d a
c'rra da Bocaina, no entanto, deixou de fora a r e g i ã o de M a -
" A partir do simples projeto d a R i o - Santos, os p r o p r i e t á - •^i^^nguá; e m 1983, criou-se a Á r e a de P r o t e ç ã o A m b i e n t a l do
rios de terras s u r g e m como que do n a d a , d e m a r c a n d o á r e a s airuçú, a qual engloba a região estudada; e e m 1992, foi criada a
enormes a partir de pequenas escrituras, 'grilando' terras, ex- eserva Ecológica da Juatinga por Decreto E s t a d u a l , tendo c o m o
p u l s a n d o os lavradores com violência e a m e a ç a s o u m e s m o ^'"1 dos objetivos o fomento d a cultura caiçara local, " c o m p a t i b i -
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE
A HISTÓRIA SOCIOAMBIENTAL
DO SACO DE MAMANGUÁ
"O meu avô foi nascido era filho de escravo, foi nascido e criado D o início a t é meados deste século h o u v e u m a é p o c a de gran-
no sítio da Costeira. Foi ele que fez a igreja do Cruzeiro, antes não de fartura no Saco de M a m a n g u á e a p o p u l a ç ã o , segimdo u m outro
tinha igreja. O pessoal queria um povoado mais divertido. Aí meu entrevistado, o Sr. Z i z i n h o (Ponta do L e ã o ) era muito maior que a
avô achou que devia fazer uma cruz, aífez a cruz. Aí depois ele foi a presente:
Parati, trouxe o padre, rezou a primeira missa. Aí ele foi e construiu
uma igreja de estuque. Era um povoado bem movimentado, aquele, "Antes, Mamanguá produzia muito, o mais forte era banana e
com baile todo sábado. Tinha um engenho de cachaça na Praia do cana, mas tinha também café, feijão, mandioca. Criação também ti-
Engenho onde o pessoal bebia cachaça. Aí depois meu avô morreu, e nha, produzia bastante. Isso até mais ou menos 1960, aífoi diminu-
meu pai continuou no sítio do Cruzeiro, que era de meu avô" (Seu indo, diminuindo, até que..." (Seu Z i z i n h o , Ponta do L e ã o ) .
A g e n o r , Praia de C u r u p i r a ) .
fazendas fracassarani e a r e g i ã o pouca coisa tinha a exportar. " C o m os processos de m i g r a ç ã o , e ê x o d o r u r a l , pela espe-
Vár ios moradores s a í r a m para fora da área, trabalhando e m ba- culação imobiliária, o terreno c o m e ç o u a ser invadido e constru-
nanais e outras atividades agrícolas e m Santos, R i o de Janeiro e ç õ e s p r e c á r i a s se instalaram no início, h a v e n d o e v o l u ç ã o nos
A n g r a dos R e i s . materiais utilizados; apesar de n ã o haver n e n h u m a infra-es-
trutura urbana até setembro deste ano (1979), elementos do
"Na época em que os outros foram trabalhar nos bananais em bairro e d a prefeitura estimam entre 1.000 e 1.500 as constru-
Santos, acho que nem existia pesca aqui ainda. O pessoal ia a pé para ções foram levantadas, a maioria com pequenos aterros o u fun-
lá. Você sabe o que é isso? Sair daqui e viajar nove dias pra chegar em d a ç õ e s m a i s altas. A l i , habitam antigos moradores do Sono,
Santos. Eu mesmo fui trabalhar lá porque em Santos era o único da Cajaíba, de T r i n d a d e , Laranjeiras, das r o ç a s e m geral e que
lugar em que se ganhava um dinheirinlw. Levei um ano trabalhando trabalham agora na c o n s t r u ç ã o c i v i l , no c o m é r c i o , no setor de
lá e trouxe de volta três contos e quinhentos mil reis. Deu pra casar, serviços domésticos ou municipais.
pras despesas com o casamento. Fiz o terno, arrumei a noiva e teve
D e produtores (ao menos de subsistência), passam a consLuni-
até baile e ainda sobrou dinheiro" (Seu D o n d i n h o , 70 anos. Praia
dores urbanos, sofrendo o impacto de u m a sociedade urbana
do Lopes).
da qual n ã o fazem parte. Perdem os meios de p r o d u ç ã o , e com
eles muitos dos traços culturais que p e r d u r a r a m até então. Já
Por essa é p o c a (1935-40), jovens como o Sr. A g e n o r , sem tra- n ã o s ã o da roça, mas da cidade t a m b é m n ã o são. Muitos tem a
balho, c o m e ç a r a m a se dirigir para Ilha G r a n d e , p r i n c i p a l centro ilusão que melhoraram a vida, porque tem acesso a algims bens
para onde afluíam os barcos de Santos, para trabalhar nas redes de c o n s u m o que talvez n e m conhecessem. G r a n d e parte deles
traineiras de propriedade de portugueses radicados no local. O s tem consciência que foi 'empurrada para lá' " (Mattoso, 1979).
barcos de Santos i a m até lá e p e s c a v a m à meia com os p r o p r i e t á -
rios das redes.
Essa m i g r a ç ã o para a Ilha das Cobras parece ter aumentado com
a c o n s t r u ç ã o da BR-101, nos anos 70, e continua intensa até hoje.
"Eu tinha 19 anos quando embarquei numa traineira de Ilha Gran-
de e fiquei uns cinco anos aí por fora. Tinha os barcos de Santos que
"Hoje não tem um terço do povo que tinha antes, quando eu era
vinham para a Ilha Grande e pegava as redes (traineiras) dos portu-
moço. O povo saiu daqui, tem uns 40% na Ilha das Cobras, uns 10%
gueses para pescar a meia. Então pesquei muito naqueles barcos, lá
em Angra, mas tem muitos em Santos e aí por fora. A miséria tá
pro Cabo Frio. O primeiro que embarquei se chamava o Rei do Mar.
grande. Então vive do quê? Vive do biscate, vive do vício. E não tem
Eu só tinha trabalhado na lavoura e um pouco na pesca pequena aqui
condição de voltar, já vendeu a terra" (Seu Z i z i n h o , Ponta do Leão).
dentro e embarquei como homem de convés" (Seu A g e n o r , Praia de
Curupira).
A história de v i d a do Sr. D o n d i n h o revela a riqueza anterior e
a d e c a d ê n c i a de M a m a n g u á . Q u a n d o ele chegou de P a r a t i - M i r i m
H o u v e t a m b é m u m a g r a n d e m i g r a ç ã o p a r a a periferia d e para morar p r ó x i m o à praia do Lopes (em 1940), na M a r g e m C o n -
Parati, como a Ilha das C o b r a s , onde v i v e m centenas de ex-mora- tinental, a m i g r a ç ã o para fora d a área já tinha c o m e ç a d o :
dores de M a m a n g u á . Segundo Mattoso (1979), até 1950 havia nessa
área pantanosa cerca de 50 p a l h o ç a s de pescadores. "Quando cheguei aqui, tinha ainda muito morador. Na Praia
Grande, tinha casa à beça, mas os velhos que venderam a posse foram
o Nosso L U G A R V I R O U P A R Q U E A HISTÓRIA SOCIOAMBIENTAL
morrendo e o pessoal mais novo foi indo embora. Outros venderam e nha). A i n d a se c o n s t r ó e m as casas de pau-a-pique c o m madeiras
ficaram por aí. Nós vendemos a posse pro pessoal de fora e ficamos locais (mangue, caixeta, fibras). E s s e m o d o de v i d a sobrevive e m
tomando conta da propriedade desse pessoal" (Seu D o n d i n h o , Praia M a m a n g u á n ã o s ó pelo relativo isolamento g e o g r á f i c o da r e g i ã o ,
do Lopes). como t a m b é m pela grande d e p e n d ê n c i a do uso dos recursos n a -
turais r e n o v á v e i s da mata e do mar.
A m i g r a ç ã o e o embarque dos jovens nas traineiras trouxeram M a i s recentemente, alguns moradores conseguiram c o m p r a r
t a m b é m conseqiãências sobre a o r g a n i z a ç ã o d a pesca locaL Por barcos motorizados (botes e canoas), e m geral depois de v e n d e r
falta de m ã o - d e - o b r a , a " t r o l h a " , que requeria o trabalho conjun- suas terras o u parte de suas " p o s s e s " ; outros u s a m essas embar-
to de v á r i a s canoas e pescadores, foi abandonada. E m seu lugar, ca çõ e s no arrasto d o c a m a r ã o sete-barbas, atividade proibida d e n -
h o u v e a p r e d o m i n â n c i a do "tresmalho", rede pequena que pode tro d o S a c o d e M a m a n g u á . E s s a p e s c a é, n o e n t a n t o , mais
ser manejada por u m só pescador, ajudado por u m filho. frequentemente praticada pelos pequenos barcos de arrasto que
v ê m de Parati e para lá l e v a m a p r o d u ç ã o . E s s a pesca é u m a das
"Nós pescava com rede de trolha, com duas canoas e quatro ho- re sp o n sá v e i s pela d e s t r u i ç ã o dos estoques pesqueiros d a r e g i ã o
mens. Uma largava a rede, depois encostava na outra pra recolher o estuarina, u m a v e z que, com rede de arrasto de m a l h a r e d u z i d a ,
peixe. Essa pesca acabou faz alguns anos e o pessoal começou a com- capturam u m a grande quantidade de peixes jovens.
prar o fio de náilon pra fazer o "tresmalho" (Seu A g e n o r , Praia de A c o m e r c i a l i z a ç ã o do excedente do pescado e do c a m a r ã o é
Curupira). feita localmente, a t r a v é s de pequenos comerciantes, que por s u a
vez d e p e n d e m de "atravessadores" maiores residentes e m Parati.
É durante esse p e r í o d o que, segundo o Sr. Z i z i n h o , se inicia a U m fator importante de m u d a n ç a foi a chegada do protestan-
v i n d a de turistas para M a m a n g u á , que p a s s a r a m a construir ca- tismo na r e g i ã o , i n t r o d u z i d o inicialmente antes d a d é c a d a de 50,
sas de veraneio e m terrenos comprados dos moradores locais. N a c m C u r u p i r a . O n ú m e r o de igrejas protestantes aumentou conside-
maioria desses sítios, os novos proprietários p r o i b i r a m as r o ç a s ravelmente nas últimas d é c a d a s e hoje cerca de 34% dos m o r a d o -
de m a n d i o c a ao m e s m o tempo e m que n a d a c o m p r a v a m na re- res s ã o crentes. A m u d a n ç a do catolicismo para o protestantismo
g i ã o , pois tudo traziam de suas cidades de origem, p r i n c i p a l m e n - coincidiu com u m período de desorganização social de M a m a n g u á
te R i o de Janeiro e São Paulo. É dessa é p o c a t a m b é m a c o n s t r u ç ã o e com u m p e r í o d o de e m i g r a ç ã o . F o r m a s de ajuda m ú t u a , como o
do c o n d o m í n i o de turistas na praia do E n g e n h o . m u t i r ã o (localmente chamado de p u t i r ã o ) , quase desapareceram,
Hoje, s e g u n d o os mais velhos, os moradores de M a m a n g u á a s s i m como u m rico folclore baseada e m festas e d a n ç a s como a
d e p e n d e m cada v e z mais dos turistas visitantes das temporadas roda de chiba, cirandas, marrafo, caranguejo, das quais n ã o parti-
e daqueles que aí c o n s t r u í r a m suas casas de veraneio. M u i t o s de- c i p a v a m os que se h a v i a m convertido ao protestantismo. D e s a -
les, a p ó s v e n d e r e m suas posses o u delas serem expropriados pe- pareceu t a m b é m a Bandeira do D i v i n o , mas a i n d a hoje os m o r a -
los especuladores imobiliários, tomam-se caseiros, muitas vezes, dores antigos o r g a n i z a m a folia de Reis, no imcio do ano. A ajuda
das terras que lhes pertenceram. rnutua ainda existe, por exemplo, na tirada de u m a á r v o r e para
A p e s a r disso, o m o d o de v i d a tradicional caiçara a i n d a é do- c o n s t r u ç ã o de canoas.
minante na r e g i ã o , u m a v e z que grande parte das famílias v i v e m
da pesca de subsistência, das roças de mandioca, da pequena c a ç a
e pesca, da fabricação d a farinha nos " a v i a m e n t o s " (casa de fari-
2
O s Diversos spaços
Mumanízados
Fonce: Marinha do Brasil (1981). Adaptado por Nogara. 1994. E m s u a grande maioria, foram c o m p r a d a s por especuladores
Escala aproximada de 1:50.000 imobiliários que, s e m d ú v i d a , a g u a r d a m o c a s i ã o m a i s propícia
para revender. O p r e ç o já é alto, e os especuladores p e d e m cerca
de 1.200 dólares por metro e m algumas praias. A d e c l a r a ç ã o dessa
M a p a 0 5 - d i s t r i b u i ç ã o da f o p u l a ç ã o nos [^ívcrsos
margem como parte da Reserva Ecológica da Juatinga, e m 1993, e
A m b i e n t e s do ^ ^ c o de Mamansjaá
como " á r e a twn edificandi" a m e a ç a estragar os planos dos especu-
O S DIVERSOS ESPAÇOS HUMANIZADOS
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE
ela deseja o u é capaz de " u t i l i z a r " (Godelier, 1984). E s s a p o r ç ã o do e outras á r v o r e s frutíferas. N a s c o m u n i d a d e s m e n c i o n a d a s , é es-
m u n d o natural fornece, e m primeiro lugar, a natureza do h o m e m treita a r e l a ç ã o c o m a Mata Atlântica, nicho importante para s u a
como espécie, m a s t a m b é m : r e p r o d u ç ã o social. D a l i retiram a madeira para suas canoas, p a r a
a) os meios de subsistência; a c o n s t r u ç ã o , equipamentos de pesca, instrumentos de trabalho,
b) os meios de trabalho e p r o d u ç ã o ; medicamentos, etc. (Diegues, 1988).
c) os meios de p r o d u z i r os aspectos materiais d a s r e l a ç õ e s so- A l g u m a s dessas sociedades se r e p r o d u z e m e x p l o r a n d o u m a
ciais, aqueles que c o m p õ e m a estrutura determinada de u m a multiplicidade de habitats: a floresta, os estuários, m a n g u e s e as
sociedade (relações de parentesco, etc.) (Godelier, 1984). áreas já transformadas para fins agrícolas. A e x p l o r a ç ã o desses
O território d e p e n d e n ã o somente do tipo de meio-físico ex- habitats diversos exige n ã o só u m conhecimento aprofundado dos
plotado, m a s t a m b é m das relações sociais existentes. Para muitas recursos naturais, das é p o c a s de r e p r o d u ç ã o das e s p é c i e s , m a s a
p o p u l a ç õ e s tradicionais que exploram o meio m a r i n h o , o m a r tem utilização de u m c a l e n d á r i o complexo dentro do q u a l se ajustam,
s u a s " m a r c a s " de posse, geralmente pesqueiros de boa p r o d u t i v i - com maior o u menor integração, os diversos usos dos ecossistemas.
d a d e , descobertos e guardados cuidadosamente pelo pescador O território das sociedades tradicionais, distinto daquele d a s
artesanal. E s s a s " m a r c a s " p o d e m ser físicas e visíveis, c o m o as sociedades urbanas industriais, é descontínuo, marcado por vazios
" c a i ç a r a s " instaladas na laguna de M u n d a ú e M a n g u a b a ( A l ) . E l a s aparentes (terras e m pousio, á r e a s de estuário que s ã o u s a d a s para
p o d e m t a m b é m ser invisíveis, como os " r a s o s " , tassis, corubas, a pesca somente e m algumas estações do ano) e tem levado autori-
e m geral lajes submersas onde há certa a b u n d â n c i a de peixes de dades da c o n s e r v a ç ã o a declará-lo parte das " u n i d a d e s de con-
fundo. E s s e s pesqueiros s ã o marcados e guardados e m segredo s e r v a ç ã o " , p o r q u e " n ã o é usado por n i n g u é m " . A í reside, m u i t a s
a t r a v é s do sistema de " c a m i n h o e c a b e ç o " pelos pescadores do vezes, parte dos conflitos existentes entre as sociedades tradicio-
Nordeste ( M a l d o n a d o , 1993), o u seja, os locais m a i s p r o d u t i v o s nais e as autoridades conservacionistas.
do m a r s ã o localizados pelo pescador que os d e s c o b r i u por u m A q u e s t ã o do e s p a ç o ocupado pelas c o m u n i d a d e s c a i ç a r a s foi
complexo sistema de triangulação de pontos para o q u a l usa a l - estudado por Winter, Rodrigues e M a r i c o n d i (1990), demonstran-
g u n s acidentes g e o g r á f i c o s d a costa, como torres de igrejas, picos do como a n o ç ã o espacial, nos p a r â m e t r o s da cultura e m o d o s de
de morro, etc. (Diegues, 1983; 1993). Para as sociedades tradicio- vida c a i ç a r a s d a r e g i ã o de G u a r a q u e ç a b a ( P a r a n á ) s ã o distintos
nais de pescadores artesanais, o " t e r r i t ó r i o " é muito m a i s vasto das culturas urbanas. O s autores r e a l ç a m a i m p o r t â n c i a dos espa-
que para as "terrestres" e sua " p o s s e " é m a i s fluida. A p e s a r d i s - ços de trabalho e p r o d u ç ã o agrícolas apropriados coletivamente,
so, ela é c o n s e r v a d a pela " l e i do respeito" que c o m a n d a a ética blinda que trabalhados a nível familiar. D a d o o c a r á t e r i n f o r m a l
reinante nessas c o m u n i d a d e s ( C o r d e l l , 1982). da "posse coletiva", esses terrenos s ã o a l v o fácil da e s p e c u l a ç ã o
Para as sociedades tradicionais camponesas, o território tem imobiliária e os primeiros a serem vítimas de grilagem.
d i m e n s õ e s m a i s definidas, apesar da agricultura itinerante, atra- L a d e i r a (1992) enfatiza a n o ç ã o de e s p a ç o e território para os
vés do p o u s i o , demarcar a m p l a s á r e a s de uso, s e m limites m u i t o ^"íírí7íf/-MÍ7i/í7s, relacionada c o m os mitos ancestrais que os l e v a m
definidos. M u i t a s dessas á r e a s , como no caso das c o m u n i d a d e s 'IS m i g r a ç õ e s de v á r i o s pontos do Brasil e de outros países limí-
c a i ç a r a s de S ã o P a u l o Bagre, e m C a n a n é i a (SP), s ã o " c o m u n s " , isto '^'"ofes, para o oceano, mais especificamente no litoral entre R i o de
é, posse de u m a c o m u n i d a d e onde seus m e m b r o s f a z i a m s u a s J^ineiro e P a r a n á . E s s e e s p a ç o é marcado por lugares m a r c a d o s
r o ç a s . A terra e m descanso ou o " p o u s i o " é a marca da posse, pela t r a d i ç ã o , onde a c a m p a m e m suas viagens. U m a parte desse
onde depois de colhida a mandioca ficam os p é s de banana, limão tt>rritório g u a r a n i , sobretudo os litorâneos, de S ã o P a u l o , P a r a n á e
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE O s DIVERSOS ESPAÇOS HUMANI/A
povoados recebem dezenas de jovens embarcados que visitam suas A p o p u l a ç ã o local se distribui nas seguintes praias: Ponta d o
famílias, t o m a n d o - s e mais calmos depois de s u a saída. S u c e d e m 13ananal - 1 família; Baixio - 21 famílias; C r u z e i r o - 18 famílias;
t a m b é m casos e m que a saída da família do i r m ã o mais velho, c o m Praia d o Pimenta -1 família; Praia do Costa - 2 famílias; Ponta da
a v e n d a da terra, colabora para desestruturar a v i d a das famílias Romana - 14 famílias; Ponta do E n g e n h o - 1 família; Ponta d o
dos outros i r m ã o s que permaneceram no lugar, c a u s a n d o u m Sobrado - 1 família; Ponta do Buraco - 1 família.
abandono gradahvo das terras e a m u d a n ç a para outros " l u g a r e s " A M a r g e m Continental, mais p r ó x i m a a P a r a t i - M i r i m , apre-
onde moram outros parentes. N u m desses casos recentes, no Baixio, senta u m a p o p u l a ç ã o de 33 famílias, dispersas n a s seguintes p r a i -
u m dos irmãos mudou-se para uma outra praia para que sua família as e c o s t õ e s c o m moradores locais: Praia das M o c a s - 1 família;
tivesse m a i s a m p a r o dos parentes durante os meses e m q u e está Pontal - 7 famílias; Praia d o L o p e s - 1 família; C o s t ã o - 5 famílias;
embarcado. Praia G r a n d e - 9 famílias; Ponta d o L e ã o - 6 famílias; Ponta d o
O Saco de M a m a n g u á tem 119 famílias de moradores, c o m C a rro - 3 famílias; Ponta do Descalvado - 1 família.
53.0 307 58.0 12 57.0 Continental 6.0 21.5 29.5 43.0 100
Peninsular 63
F do Saco 0.7 27.2 27,2 45,5 100
119 100 527 100 21 100
Peninsular 23.5 18.5 31,0 26.3 100
TOfAL 9,8 22.8 29,2 38,2 100
N a M a r g e m Peninsular encontra-se a maior d e n si d a d e de mo-
radores d o Saco de M a m a n g u á . O povoado da praia do C r u z e i r o ,
c o m 18 famílias e 96 pessoas, quase todas aparentadas, constitui-
A análise (Tabela 2) revela que 9,8% dos casais e s t ã o n a faixa
se no centro mais importante da região. A í se localizam t a m b é m o
^"tária d e 15 a 25 anos; 22,8%, n a faixa entre 26 e 35 anos; 29,2% n a
posto de s a ú d e , u m a escola, a igreja católica da r e g i ã o , o estaleiro
f^iixa etária entre 36 a 50 anos e 38,2% tem idade superior a 50
e u m dos bares de M a m a n g u á . O Baixio apresenta o maior n ú m e -
anos. A situação etária mais n o r m a l é a da M a r g e m Peninsular,
ro de moradores da região, 116 moradores, ainda que espalhados
^''ide mora mais da metade da p o p u l a ç ã o de M a m a n g u á , pois
por u m a e x t e n s ã o maior de terra, inexistindo u m centro que agi
^ i s t e m 23,5% dos casais entre 15 e 25 anos, e somente 26,3% c o m
mere os moradores (Mapa 3).
s^r^ ^ ^""'^^ ^^^^ ^ ^ M a r g e m Continental apre-
A s casas d o s turistas se encontram concentradas na Praia d o
tot^^-T " " ^ ^ p o p u l a ç ã o mais v e l h a , pois mais de 40% d o s casais
E n g e n h o , onde existe o único c o n d o m í n i o d o Saco de M a m a n
C i d a d e superior a 50 anos.
(8 casas de turistas); na Ponta d a R o m a n a (4 casas de turistas)
Baixio de Dentro (4 casas de turistas). '^aio^*^'^''^"^" famílias d a M a r g e m P e n i n s u l a r apresentam a
' ' " r p r o p o r ç ã o de filhos por casal, as d a M a r g e m Continental
Os MORADORES
o Nosso L U G A R V I R O U P A R Q U E
p o s s u e m menor m é d i a . E s s a p r o p o r ç ã o talvez se explique pelo dores das praias de M a m a n g u á e de outras praias, situadas a duas
gem de casais c o m idade superior a 50 anos nessa M a r g e m . que esse intercâmbio é maior, pois cerca de 15,7% d o s pais d e
família s ã o provenientes de praias p r ó x i m a s . Por outro lado, é na
Margem Continental, a mais influenciada pelo turismo, que mora
Tabela 3 - Média de Filhos por Casal o maior n ú m e r o de pessoas que m i g r a r a m para M a m a n g u á , d e
outras regiões d o país.
MARGEM MÉDIA DE FILHOS
Pode-se constatar que grande parte dos moradores se distri-
POR CASAL
buem por cerca d e 7 o u 8 famílias (os C o n c e i ç ã o , Santos, N a s c i -
Continental 3.5
mento, O l i v e i r a , S o u z a , C a m p o s , Mattos, Spíndola), entre as quais
3.8
F. do Saco as pessoas se casam. N a M a r g e m Peninsular, por exemplo, exis-
Peninsular 3.8 l tem entre 3 o u 4 grandes famílias que agregam a quase totalidade
da p o p u l a ç ã o .
O grau de analfabetismo dos pais, como pode ser atestado pela
A m i g r a ç ã o para fora de M a m a n g u á parece ter sido intensa n o
Tabela 5 é d e cerca d e 50%, sendo maior na M a r g e m P e n i n s u l a r
passado, principalmente a p ó s o esvaziamento e c o n ó m i c o d a re^
(62%) e menor na M a r g e m Continental (27%). A porcentagem
gião nos anos 50. E s s a e m i g r a ç ã o continua até hoje, talvez e m es-
maior de alfabetizados na M a r g e m Continental pode ser explicada
cala menor que no passado. H á u m n ú m e r o significativo d e ve-^
pela existência d e d u a s escolas primárias, ao c o n t r á r i o d a M a r -
lhos s e m filhos, morando sobretudo na M a r g e m Continental - onde gem Peninsular, onde existe somente u m a , obrigando as pessoas
verificou-se t a m b é m a maior porcentagem d e filhos d a r e g i ã o - e a deslocamentos maiores.
t a m b é m no F u n d o d o Saco.
Dentre o s p a i s d e família, 80% nasceram e m M a m a n g u á e so- O Saco de M a m a n g u á tem duas religiões dominantes: a católi-
^' com 58,5% dos habitantes e a "crente" ( Assem bl ei a d e D e u s ,
mente 9,2% v e m d e fora d a região, e m geral h o m e n s q u e se c a s a m
" a g r e g a ç ã o Cristã do Brasil, Igreja Católica Brasileira) c o m 34%.
c o m m u l h e r e s d o lugar. C e r c a d e 10,7% p r o v ê m d e praias p r ó x i -
" ca l i z a m- se aí 5 igrejas, sendo 1 católica e 4 "crentes". O s " c r e n -
mas, m a s fora d e M a m a n g u á , como Sono, Cajaíba. Aliás, existe
se concentram mais n a M a r g e m Peninsular, pois três d a s
i i m inter c â m bi o significativo d e pessoas e contatos entre os mo ra -
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE
ecursos c os u S O S
lar o p u i a ç aã o L o c a
Os ECOSSISTEMAS PA REGIÃO
^) A M^tg Atlântica
O Saco de M a m a n g u á apresenta v á r i o s e s t á g i o s d e s u c e s s ã o
da Mata Atlântica, ecossistemas de transição (manguezal) p a r a
í-ima importante zona eshaarina, do tipo " r i a " ou " f i o r d e " .
A Mata Atlântica ainda apresenta segmentos bem conserva-
^^tís, sobretudo nas á r e a s montanhosas mais elevadas, c o m as
^^^guintes f o r m a ç õ e s : Mata Primária de Encosta, Mata S e c u n d á r i a
^ Encosta c o m suas variações de desenvolvimento. Mata de P l a -
J^'cie C o s t e i r a o n d e se l o c a l i z a u m i m p o r t a n t e c a i x e t a l e o
'^^"lí^guezal (Foto 5).
^ ^^^^ Primária de Encosta se siHia entre 350 e 1000 metros
Cair^'*'^*^^' ^^^'^^"^^ encostas do lado oeste do pico do
•"uçú Q Pedra da Jamanta e nos maciços do morro P ã o de A ç ú c a r
O s ECOSSISTEMAS, SEUS R E C U R S O S E os Usos
o Nosso LLCÍAK VIIÍCU PAKQUI:
costas se encontra ocupada por lavouras, matas de capoeiras e mangue v e r m e l h o (Rizophora mangle), m a n g u e branco (Laguncu-
cnpocirõos c nas vertentes dos morros da Margem Continental, ^^f'(i racemosa) e m a n g u e preto (Avicenia Shaueriana). E s s a vegeta-
peia mata secundária de encosta, menos explorada. oferece substrato a u m grande n ú m e r o de bivalves (ostras, por
Nas matas s e c u n d á r i a s jovens há u m a a b u n d â n c i a de e m - t e m p l o ) e t a m b é m p r o t e ç ã o a i n ú m e r a s e s p é c i e s de peixes e
b a ú b a s {Cccropia spp) e de outras espécies de madeira moio, de ^«•^•stáceos.
O s E C O S S I S T E M A S , SEUS R E C U R S O S E o s Usos
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE
A d e s c r i ç ã o e a análise d a fauna d a M a t a Atlântica se t o m a m animais... Nós só caçava aqui no nosso local, não precisava subir"
ainda m a i s complexas d e v i d o à precariedade dos levantamentos (morador da Praia do C r u z e i r o ) .
faunísticos existentes. A fauna d a Floresta Atlântica permanece
rica em diversidade biológica, com pouquíssimas espécies já descri- S e g u n d o Martinelli (1983), existem na r e g i ã o os seguintes ani-
tas totalmente extintas. N o entanto, as p o p u l a ç õ e s remanescentes, mais: o n ç a pintada (Panthera onça); jaguatirica (Felis pardalis); gato
via d e regra, estão representadas e m muitos casos por apenas u m do mato (Felis tigrina); paca (Caniculus paca); coati (Nasua nasua);
n ú m e r o perigosamente r e d u z i d o de indivíduos. Pelo fato de as cotia (Dasyproeta agouti); cachorro do mata [Cerdocyon thous); m ã o
pesquisas faunísticas n ã o terem sido realizadas e m p r o f u n d i d a d e I pelada [Procyon crancrivorus); o u r i ç o - C a x e i r o (Coendou villosus);
antes do desmatamento, acredita-se que muitas espécies pouco cons- t a m a n d u á s (Myrmecophagidae spp); porcos do mato (Tayassu); ta-
p í c u a s tenham sido exterminadas s e m que delas sequer h o u v e s s e tus (Dasypodidae spp); saguis (Callicthrix spp); c a x i n g u e l ê (Sciurus
conhecimento de sua existência ( C â m a r a , 1991). spp). A l é m de d i v e r s a s espécies de aves como: macuco (Tinamus
D e acordo c o m a análise d a f a u n a e flora realizada pela S E M A solitarius); j a c u (Penélope spp); j u c u p e m b a (Pepile superciliares);
(Secretaria E s p e c i a l do Meio Ambiente) e m 1983, referente a p o n - jacutinga (Pepile jacutinga); tucanos (Rhamphastos spp); p i c a - p a u s
ta d o C a i r u ç ú , r e g i ã o esta confrontante ao Saco d e M a m a n g u á , (Picidae) e outros passarinhos.
i n ú m e r a s espécies habitam a área, entre elas a l g u m a s a m e a ç a d a s
de e x t i n ç ã o , c o m o o m u r i q u i (Mono) (Brachyteles arachnoidis), já "Passarinho miúdo tem bastante, tem sabiazinho ainda, sanhaçú,
citado para a r e g i ã o por A g u i r r e (1971) e confirmado, a t r a v é s d e surucuá, dorminhoco, trocai, maritaca... Agora os outros passari-
c o m u n i c a ç ã o verbal, por D r . C o i m b r a Filho, especialista e m p r i - nhos maiores tá fraco, diminuiu, mas diminuiu por causa de que?
matologia e do preguiça de coleira (Bradypiis torqiiatus). Diminuiu por causa das frutas que acabou. Sabiá-cica, era o que mais
tinha, cadê o sabiá-cica? Urú, outro passarinho que tinha muito, ti-
"Macaco-Grande, de óculos, o tal de muriqui, ainda tem, tem nlia bandos e bandos, hoje você não vê mais... é passarinho que nin-
poucos mais tem.... Sabe que ele jnudou-se muito dessa parte daqui guém mata.... Saracura, outro pássaro que tinha no mangue, antiga-
por causa da tiração de palmito, do barulho... As comidas dele são o mente a gente sai aí no mar, de canoa, a maré tava vazia , dia de
palmito, dos passarinhos também, agora não tem mais... É difícil pegar camarão e tinha duas, três pela maré afora. Hoje não tem mais....
encontra, ele é muito arisco, só gosta de lugar bem deserto, lugar de Socó tinha bastante também, mas fracassou. Outro passarinho
córrego, cachoeira, de gruta ... e mais ele pressente a gente" (Seu que sumiu daqui foi o vira-bosta, tratam como gralha, hoje não tem
Benito d a C o n c e i ç ã o , Praia do C r u z e i r o ) . mais" (Seu O r l a n d o d a C o n c e i ç ã o , Praia do C r u z e i r o ) .
É importante considerar as informações colhidas durante o tra- F o r a m levantados, durante o trabalho de c a m p o , a l g u n s no-
balho de c a m p o , pois t a m b é m i n d i c a m que outrora grande quan- populares referentes aos diversos p á s s a r o s que habitam o
tidade d e a n i m a i s e r a m vistos p r ó x i m o s aos n ú c l e o s d e h a b i t a ç ã o •*-ícal: sabiá, s a n h a ç ú , s u r u c u á , dorminhoco, trocai, maritaca, tu-
e que atualmente estão restritos às á r e a s m a i s inacessíveis como cano, jurita, papagaio. T a m b é m verificou-se a grande quantidade
as encostas do Pico do C a i r u ç ú . répteis, cobras (jararacas, j a r a c u ç u , coral, u r u t u , m u ç u r a n a ,
surucucu, etc) e lagartos, b e m como a n h l j i o s .
"Antigamente, nóis morava ali, nois saindo, indo na casa de uni A s aves u t i l i z a m os m a n g u e z a i s para acasalamento e n i d i -
vizinho, passava pelo mato encontrava passarinho, encontrava vários 'cação. Entre elas podem-se observar a garça branca (Egretta thula).
O s E C O S S I S T E M A S , S E U S R E C U R S O S E OS U S O S
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE
o m a r t i m pescador {Ceryle torquata) e o colhereiro (Ajaia ajaia) entre A m b r ó s i o et alli (1993), a p ó s analisar as v a r i a ç õ e s espaciais e
outros. E n q u a n t o os m a m í f e r o s como o m ã o - p e l a d a (Procyon temporais das propriedades hidrológicas e de c i r c u l a ç ã o , conclui
crancrivorus) p r o c u r a m o m a n g u e como fonte potencial d e a l i m e n - que a região n ã o apresenta as características típicas de u m estuário,
to. Já os anfíbios e répteis s ã o menos frequentes. I devido às correntes de m a r é pouco intensas, associadas à fraca
O s organismos s e d e n t á r i o s a d e r e m ao substrato vertical d a s circulação gravitacional, decorrente da pequena descarga de á g u a
raízes a é r e a s , caules, e plântulas de Rhizoplwra mangle. O s t r a s e doce. A estrutura térmica é fracamente estratificada, a distribui-
c i r r i p é d e s e outros a n i m a i s que p o d e m se retrair dentro d e tubos, ção de sedimentos no fundo permite caracterizar a área como de
p e r m a n e c e m inativos durante m a r é baixa. A b a i x o do nível míni- baixa energia, o que ocasiona intensa deposição d e lama. E s s e autor
mo d e m a r é podem-se encontrar, fixas ao substrato, p o p u l a ç õ e s t a m b é m sugere que o sistema d e v e ser utilizado c o m o refúgio de
de b r i o z o á r i o s , h i d r o z o á r i o s e tunicados. peixes j u v e n i s .
O s organismos v á g e i s t ê m ritmos de atividades relacionados A p r o d u ç ã o p r i m á r i a é m a i o r na p o r ç ã o m é d i a d a z o n a
às m a r é s . Peixes como G o b i i d a e e Blenniidae, c o s t u m a m p e r m a - estuarina, o n d e se encontram melhores c o n d i ç õ e s nutricionais,
necer enterrados no lodo o u entre as algas durante a m a r é baixa. decrescendo e m d i r e ç ã o à barra (entrada d a zona estuarina). Nesta
H á t a m b é m aqueles que adentram o m a n g u e z a l somente durante porção, formada pela barra e pelo c i n t u r ã o de ilhas p r ó x i m a s ,
a p r e a m a r à procura de alimento. p r e d o m i n a m c o s t õ e s e f o r m a ç õ e s rochosas c o m o a ilha d a C o t i a
C r u s t á c e o s e g a s t r ó p o d e s p r e d o m i n a m nesta região, sendo sua e a ilha da P r e g u i ç a , nas quais existem polvos, lagostas, garoupas
m a r é . O s caranguejos o c u p a m buracos ú m i d o s o u apresentam N o interior da zona estuarina aparecem o parati (Mugil curema);
comportamento migratório, subindo em árvores (Cintrón & a corvina (Micropogon operculares); o robalo (Centropomus spp); o
N o v e l l i , 1986). vermelho (Lutyanus aya); a pescadinha-branca (Cynoscion leiarchus);
N a s á r e a s mais p r ó x i m a s ao m a n g u e z a l encontram-se o caran- a sardinha-lage (Opisthonema oglinum); a tainha (Mugil platunus);
guejo g u a i a m u m (Cadisoma guanhumi); caranguejo maria-mulata a guaivira (Oligoplistes saurus); a salema (Anisotremus virginicus);
(Geniopsis cruentato); c a r a n g u e j o uca (Ucides cordatus); ostra a sororóca (Scomberomus maculatus); a m o r é i a - p i n t a d a (Gynwthorax
(Crassostrea brasiliensis); c a m a r ã o branco (Penaeus shimitti); maris- occllatus); o c a m a r ã o branco (Penaeus shmitti) e outros.
co (Mytilus edulis). Entre os peixes, há o robalo (Centropomus sp); a N o s baixios e praias arenosas, e m a m b a s as margens, ocorrem
tainha (Mugil platunus); a pescada branca (Cynoscion leiarchus); a diversos tipos de c r u s t á c e o s (siris e carangueijos) e m o l u s c o s
bivalves ( v ô n g o l e ) .
corvina (Micropogon opercularis).
b) A Zona Estuarina
O Uso DOS RECURSOS NATURAIS
um objeto. Ou um pássaro grande, um jacu, um macuco ou caça, sempre. foi com o advogado, fiquei lá dois dias. E a outra vez fez oito dias lá
Mas depois, de 30 anos, a uns 25 anos atrás, veio fracassando 50% e com o diretor do Estado do Rio de Janeiro... Na mata aqui mesmo...
até mesmo os caçadores já desanimaram, que vai no mato e não mata Naquela época não cevava não, era nos barro... Quem fica no mato, é de
nada " (morador d a praia do C r u z e i r o ) . fora, a turma aqui da área, eles vão no mesmo dia, sai cinco horas da
4 manhã e volta seis horas da tarde, porque eles não aprofundam no
O motivo deste fracasso está relacionado c o m atividades pre- mato. Eles não vão lá no centro, eles ficam na beirada", (morador da
d a t ó r i a s exercidas nos ú l t i m o s anos, c o m o a e x t r a ç ã o d e p a l m i t o Praia do C r u z e i r o ) .
e outras á r v o r e s frutíferas que constituem a base d a a l i m e n t a ç ã o
d a s e s p é c i e s d a fauna local, b e m como o a u m e n t o do b a r u l h o d e - ^ C o m a d i m i n u i ç ã o de a b u n d â n c i a d a s e s p é c i e s faunísticas,
corrente do crescente desenvolvimento turístico e do a u m e n t o do verifica-se que atualmente t a m b é m é necessário adentrar na mata
n ú m e r o d e c a ç a d o r e s , que p r o c u r a m n a c a ç a u m complemento primária e m busca da c a ç a , cada v e z mais rara e encontrada, c o m
da a l i m e n t a ç ã o familiar. mais frequência, nas encostas do Pico d o C a i r u ç ú .
O s m é t o d o s e h o r á r i o s de c a ç a v a r i a m d e acordo c o m a e s p é -
"Hoje em dia, perde-se tempo pra encontrar alguma coisa e às cie procurada, aves, pacas, cotias, tatus, porco-do-mato, etc. S ã o
vezes não se encontra nada. Tá muito fraco... Mas eu lhe digo, isso ato utilizados cachorros para c a ç a r os animais maiores, apitos q u e
que acabou mais foi a tiração de palmito, do barulho... O palmito é s i m u l a m o c h a m a d o d a s aves, cevas e a r m a d i l h a s p r ó x i m a s à s
alimento de muitos passarinhos... A matança do palmito é o seguinte, palmeiras e á r v o r e s frutíferas, e " e s p e r a " , nas r o ç a s de m a n d i o c a ,
que eu acho coisa errada, é que eles cortam o pé de palmito, e se o lugares p r o c u r a d o s pelos animais .
palmito encostou naquele pau, o cara derruba aquele pau, aí o outro Esta a t i v i d a d e é intensificada nos meses frios ( i n v e r n o ) , q u a n -
pau, três, quatro paus para tirá hum só palmito... E ali ele não tá do a a t i v i d a d e p e s q u e i r a é m e n o s intensa e n o s m e s e s s u b s e -
escolhendo qual o pau que abate, às vezes é pau de lei, um cedro ou quentes, d e agosto a n o v e m b r o , q u e t a m b é m c o r r e s p o n d e m à
outro pau de fruta... Aiitigamente tinha gente que não dava prô mato, época e m q u e o m a c u c o {Tinamus solitárias), e s p é c i e bastante
era mais meu pai e meu tio que pertubava uma caça.... O meu irmão procurada, c o m e ç a a "piar", levando a u m aumento da caça. O s
João, aquele bem forte, foi criado com carne de caça.... Ah, hoje em dia passarinhos s ã o c a p t u r a d o s a t r a v é s d e a r m a d i l h a s (arapucas)
tem mais caçador" (morador da Praia do C r u z e i r o ) . ou abatidos por meio de estilingues, servindo t a m b é m c o m o fonte
de alimento.
A s á r e a s e a d u r a ç ã o d a c a ç a d a , m u d a r a m d e acordo c o m
a b u n d â n c i a d a c a ç a . N o r m a l m e n t e , esta a t i v i d a d e é exercida d" " O cachorro, qualquer caça eles corria. Agora, o que eles caçavam
rante o d i a , sendo que o c a ç a d o r local s a i para c a ç a r ao a n muito é porco-do-mato, cotia, paca... Costuma muito o cachorro andá
nhecer (5 h o r a s d a m a n h ã ) , retornando ao entardecer (6 h o r a s ua corda, só saía quando encontra o rastro... O tatu, éfácil apanha ele
tarde). ^ ^loite, de dia só com cachorro que acha a toca dele... A paca também só
^ noite, a não ser com cachorro bom de rastro que vai no trilho e tira ela,
"Eu caçava era nas encostas, do pedrão pra baixo... Eu caçava com ^ite ela se amoita, quando não se entoca, arruma um lugarzinho e deita
o meu irmão, e às vezes vinha gente defora pra caça aí. Vinha muita prá aguarda a noite par marisca outra vez, e só com lua escura... Caça
gente, eu cacei com um advogado e com um diretor do estado... <^otia, })iais fio engodo, tá na época agora do frio, porque não tem tanta
vezes nós ia de nianliãe voltava tarde. Só quando eu pousei na mata, l fi'nta no mato, ela vem par cá mais na roça... Na ceva para paca e cotia,
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE O s E C O S S I S T E M A S , S E U S R E C U R S O S E OS U s o s
tem diversas coisas que elas comem, mandioca, abricô, jaca, coco pindola
Tabela 6 - C a ç a : Espécies mais C a ç a d a s
e outras frutas. Ela é chegada na jaca, só que ela não come o favo, ela
NOME NOME MÉTODO
come o caroço que dá dentro do favo... Você deixa ali dois, três, quatro HABITAT
POPULAR CIENTÍFICO DE CAÇA
dias e quando chega no quinto, sexto dia, você vai espia a paca. Agora
Paca Canicu\u$ paca Mata primária sozinho ou com
macuco, é na época que ele está piando, no mês de agosto/setembro/
Cotia Dasyproeta agouti Mata secundária cachorro,
outubro até novembro, que é época boa par caça, agora ales pegam Porco do mato Tayassu spp Mata de planície armadilhas com
muito de gaiola no chão, ceva com mandioca... Macaco a gente não Lavouras ceva. espera
caça, a gente encontra ele, ele é um bicho diferente dos animais, é uma nas lavouras
pessoa, matar um macaco é matar um ser humano..." (morador d a Tatu Dasypodidae spp Mata primária sozinho ou com
praia do C r u z e i r o ) . Mata secundária cachorro
Mata de planície
O e x t r a h v i s m o de espécies vegetais é realizado v i s a n d o princi- Jacu Penélope spp Mata primária sozinho com apito,
palmente: a l i m e n t a ç ã o , c o n s t r u ç ã o de casas, canoas, barcos, uten- Macuco Tinamus solitarius Mata secundária armadilhas com
Nliambu bem conservada ceva
sílios de pesca e diversos tipos de artesanatos. O s moradores reti-
Uru
r a m frutas, madeiras, como a caixeta (Tabebuia cassinoides) que é
encontrada a t r á s do mangue, sementes, cipós, b a m b u s , e outros Diversos Geral com arapucas,
passarinhos c o m estilingue
produtos utilizados no artesanato.
A cultura tradicional se revela n ã o apenas no conhecimento Obs.; Consideram-se "Moios secundárias" as áreas de mata secundária de encosta, mata
preciso das espécies como t a m b é m pelo respeito às fases d a lua, de capoeira e capoeirão. Considera-se "geral" todos os ecossistemas e suas
variações presentes no Saco de Mamanguá.
pois a e x t r a ç ã o de madeiras só é feita na lua minguante, para que
n ã o sejam atacadas por c u p i n s , rachem o u lasquem. A l é m disso,
m a d e i r a n ã o é retirada de maneira aleatória, escolhendo-se os
so de e x t r a ç ã o do palmito, assunto já citado anteriormente n o
exemplares de acordo com o tipo de uso, que, na maioria das ve-
^ ^'poimcnto oral de u m morador da praia do C r u z e i r o , a respeito
zes, é d o m é s t i c o .
motivos de fracasso da c a ç a .
A atividade de extrativismo vegetal perde s u a c a p a c i d a d e
sustentação diante da atividade predatória decorrente da extraç^
O palmito égrande alimento pra esses passarinhos, macaco tam-
ilegal e intensiva do palmito (Euterpes edulis) nesta última d é c a d a ,
come a casca, mete o dente e come... O palmito, ele é uma árvore que
trazendo consigo n ã o s ó a m e ç a s de e x t i n ç ã o d a e s p é c i e , como
guando tem um cacho que está maduro, tem outro que está madurando,
t a m b é m i n ú m e r o s impactos negativos sobre as espécies anii
outro que está verdinho. Quer dizê, não há falta de alimento para os
que tem no palmito sua principal fonte de alimento. H á t a m b é m
pn^saros. Mas com essa matança de palmito, o bicho não tem o que
impacto sobre outras espécies vegetais predadas durante o proces- ^">uer... Além disso, antes o pessoal cortava o palmito com macliado.
o Nosso Luc.AK Viiíou P A R Q U E Os E C O S S I S T E M A S , SEUS R E C U R S O S E os Usos
hoje eles cortam com facão, quédizê, éfilhote, peqiieninho... Você pro-
Tabela 7a - Extrativismo: Espécies
cura um palmito aí, nem prá remédio. Acabou demais. (...) A tiração de
Vegetais Utilizadas no A r t e s a n a t o
palmito tem uns dez anos... Olha, o palmito de primeira, o palmital
começava ali na beira da casa... Outro dia eu tive lá na mata do Martin ESPÉCIES ÁREA DE MAIOR
UTILIZAÇÃO
de Sá, nesse mato fechado, eu fui dar uma volta por lá e não acredito, (NOME POPULAR) OCORRÊNCIA
até lá naquelas alturas eles estão explorando o palmito, é brincadeira, Caixeta Mata de planície Artesanato (gamelas,
ali é mata virgem" (morador da Praia do C r u z e i r o ) . próxima ao mangue barquinhos, peixes e aves de
madeira), canoas, batente de
porta e janelas, utensílios
A s principais espécies e n v o l v i d a s no extrativismo vegetal, sua domésticos
utilidade e seu principal local de ocorrência p o d e m ser melhor
Palha de broto Mata primária
vistos nas Tabelas 7a, Tb, 7c: de breiaúba Matas secundária Artesanato, abanador
Mata de planície
c) A Agricultura de Subsistência
Bambu japonês Mata primária Estantes, armários,
Mata secundária vara de pesca
M u s s o l i n i (1953) trata da agricultura o u l a v o u r a de subsistência
Bambu preto Mata primária
c o m o sendo o cultivo p a r a garantir a sobrevivência d a s p o p u l a - Construção da casa de taipa
Mata secundária
ç õ e s locais.
A l a v o u r a m a i s c o m u m é a de mandioca e b a n a n a , feita a p ó s Bambu gigante Mata primária Bica de água. covo
Mata secundária pesqueiro (cercada)
l i m p e z a d o terreno, u m m ê s antes do plantio. A área c u l t i v a d a é
quase s e m p r e pequena, de algumas poucas tarefas (20m x 20m). T:iquara lixa Mata primária
Covo pesqueiro
K e m p e r s (1993) calcula que para cada meio hectare de roça exis- Mata secundária
ESPÉCIES ÁREA DE MAIOR UTILIZAÇÃO ESPÉCIES (NOME POPULAR) ÁREA DE MAIOR OCORRÊNCIA
(NOME POPULAR) OCORRÊNCIA
Jacatirão. Cubata. Mata primária Palmito Mata primária, mata secundária, mata de planície
Tatuzinlio Vara fisga Matas secundária Madeiramento do telhado
Fruta abuta
(vermelha/preta) Mata de planície
B.icuparí Mata primária, mata secundária, mata de planície
Mata primária Guaricica
Coluna da casa. tábua de
Canela Matas secundária
barco madeira de telhado
Mata de planície Brejaúba
Indaiá
Caixeta Mata de planície Batente de porta e janela
Palmeira Natal Mata primária, mata secundária, mata de planície
Mata primária Coco mamona
Madeiramento de telhado,
Timbuiba Matas secundária Araçá
construção de canoa
Mata de planície
Ingá macaco
Ingá ferrinho Mata primária Mata primária, mata secundária, mata de planície
Ing:i cipó
Ingá flecha Matas secundária Construção de canoas
Ingá concha Mata de planície
Obs.:Consideram-se Matas secundárias as áreas de mata secundária de encosta, mata
Mata primária Construção de canoas de capoeira e capoeirão
Cobi
Mata secundária
Mata primária
Guapuruvu Matas secundária Construção de canoas \e de todo o c u l t i v o e m r e l a ç ã o a d o e n ç a s e / o u p r a -
Mata de planície ,i;ns. Deste modo, o cultivo da mandioca se constitui e m importante
Mata primária o\idência do tipo d e r e l a ç ã o que as c o m u n i d a d e s locais estabe-
Canafístula Construção de canoas
Matas secundária lecem c o m a n a t u r e z a , v i s a n d o d i m i n u i r a v u l n e r a b i l i d a d e deste
e barcos
Mata de planície
l^iodiito c o m o u m todo, e m r e l a ç ã o a d o e n ç a s ( M o r e i r a , 1993). T a l
Mata primária
Aricurana Construção de canoas itiMdade, c o m o é m a n e j a d a , p o d e ser u m ponto d e p a r t i d a p a r a
Matas secundária
e barcos ostudos m a i s a m p l o s que d e m o n s t r e m as estratégias d a p o p u l a ç ã o
Mata de planície
'(>cnl para m a n t e r u m a e l e v a d a b i o d i v e r s i d a d e .
Mata primária
Ipê Construção de canoas,
Matas secundária '^lém d a m a n d i o c a , há o plantio de c a n a - d e - a ç ú c a r (Saccharum
barcos e pontilhão de cais
Mata de planície
"(ficinalc), m i l h o v e r d e {Zca mays) e feijão {Camvalia sp), citados
Jequitibá Mata primária Construção de canoas 'anteriormente. E s t a s l a u v o r a s s ã o regidas por u m c a l e n d á r i o q u e
a partir de 12
- hortelã preta (dor de barriga, verme);
Mandioca julho/agosto agosto/setembro
meses após plantio - camomila (cólicas, verme, desarranjo);
- santa maria (cólicas);
a partir de 12
Cana-de-açúcar fevereiro março/abril - maria preta (machucados e m geral, extrai-se o
meses após plantio
s u m o e p õ e - s e no machucado);
a partir de 3
Milho verde julho/agosto setembro/outubro - saião (pneumonia e problemas respiratórios, extrai-
meses após plantio
se o s u m o e toma-se três vezes ao d i a ) ;
a partir de 3 a 4 - poejo (tosse, gripe).
Feijão junho/julho agosto/setembro
meses após plantio
O caranguejo {Ucides cordatus) é muito explorado e merece u m a Tabela 9 - Mangue: Recursos Naturais Extraídos do Mangue
abordagem u m pouco m a i s detalhada. Atualmente, o caranguejo
PRODUTO USO USUÁRIO
v e m sofrendo a a ç ã o p r e d a t ó r i a pelos coletores de fora do Saco de
M a m a n g u á , especificamente pelos de M a g é (RJ), durante o v e r ã o Tronco de mangue
Combustível vegetal população local
(novembro a janeiro), "época em que os caranguejos saem para fora das vcrmellio, preto, branco
p o p u l a ç ã o local p o d e m ser vistos na Tabela 9: ^ nimeras espécies de peixes como: pescada-branca {Cynoscion leiar-
Am ^^^^^oplistes saurus), vermelho {Lutyanus aya), bagre
^'^relo {Arius spixii) e, principalmente, o c a m a r ã o branco {Penaeus
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE O s E C O S S I S T E M A S , SEUS R E C U R S O S E OS U S O S
pelas e s p é c i e s j u v e n i s de todos os peixes a c i m a citados. Pelo fato O Sr. Licínio, morador do c o s t ã o , afirma que, a t r a v é s da obser-
de n ã o apresentarem tamanho m í n i m o para c o m e r c i a l i z a ç ã o , es- s a ç ã o dos processos naturais, "os antigos" a p r e n d e r a m a fazer as
tes s ã o jogados d e volta ao mar sem ao menos p o d e r e m c o m p l e - cercadas, pois quando u m tronco cai na á g u a , c o m e ç a a atrair cracas,
tar s e u ciclo de v i d a o u chegar à m a t u r i d a d e sexual. algas, limo, ostras que, por sua vez, atraem peixes, c o m o robalos,
badejos, vermelhos etc.
"Eu tenho 1.200 braças de rede de cowwa de nialha sessenta, não
tem nada aí, não pega nada. Eu atravesso, eu boto uma rede daqui para
lá e chego lá e vou apanhar e pego dois peixes. Na época do meu pai, há A CIÊNCIA D OC O N C R E T O E
uns 10 anos atrás, você botava uma rede de quarenta braças e você A CiHNCiA MODERNA
mais u m a forma tradicional e n ã o p r e d a t ó r i a d e utilização dos cii-iir'^'^ ''^Í*^'Ç'^o e m adotar u m a nova tecnologia, p r o p u g n a d a por
recursos naturais d e s e n v o l v i d a pela p o p u l a ç õ e s tradicionais. '^t'^s, poderia ser analizada como u m a r e a ç ã o d a " t r a d i ç ã o "
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE O s E C O S S I S T E M A S , S E U S R E C U R S O S E OS U S O S
O M o d o d c V i d a e as
T"ccnologías (Caiçaras
atividades e c o n ó m i c a s , sociais e culturais; J naturais protegidas sem p o p u l a ç ã o tem contribuído para o forta-
lecimento dessa identidade sociocultural e m p o p u l a ç õ e s como os
//) i m p o r t â n c i a das simbologias, mitos e rituais associados á ca J
quilombeiros d o Trombetas, os c a i ç a r a s d o litoral paulista, etc.
à pesca e atividades extrativistas; .>fl
Para esse processo tem contribuído a o r g a n i z a ç ã o d e m o v i m e n -
/•) a tecnologia utilizada é relativamente s i m p l e s , d e i m p a c t o H
tos sociais, apoiados por entidades n ã o - g o v e r n a m e n t a i s , influen-
mitado sobre meio ambiente. H á u m a r e d u z i d a d i v i s ã o t é c i B
ciadas pela ecologia social, por cientistas sociais, etc.
ca e social d o trabalho, sobressaindo o artesanal, cujo p r o d B
tor (e s u a família) d o m i n a o processo d e trabalho a t é o p r o d f l Essas características, mencionadas anteriormente, n ã o d e v e m
do como u m agrupamento territorial, mais o u menos denso, cujos sivo, quase e x cl u si v o e m e s m o abusivo dos recursos d o meio, cri-
limites s ã o t r a ç a d o s pela participação d o s moradores e m traba- iindo-se, desse m o d o , u m a intimidade muito p r o n u n c i a d a entre o
lhos d e ajuda m ú t u a (p.47). A l é m disso, o m o d o d e v i d a caipira é iiomem e s e u hábi ta t. .t, . . v
m a r c a d o pela estreita ligação das r e p r e s e n t a ç õ e s simbólicas e re-
ligiosas c o m a v i d a agrícola, a c a ç a , a pesca e a coleta. " C o n h e c e o h o m e m muito bem as propriedades das p l a n -
tas ao seu redor — para remédios, para co nst r uçõ es, para cano-
" M a g i a , medicina simpática, i n v o c a ç ã o d i v i n a , e x p l o r a ç ã o as, para jangadas — b e m como os f e n ó m e n o s naturais presos
da fauna e d a flora, conhecimentos agrícolas fundem-se n u à terra e ao m a r e que o norteia no sistema d e v i d a anfíbia que
sistema que abrange, na m e s m a continuidade, o c a m p o e leva, d i v i d i n d o suas atividades entre a pesca e a agricultura
mata, a semente, o ar, o bicho, a á g u a e o p r ó p r i o c é u . D o b r a d de pequeno vulto, c o m poucos excedentes para troca o u para
sobre s i m e s m o pela economia d e subsistência, encerrado no \'cnda: os ventos, os movimentos das á g u a s , os hábitos dos pei-
quadr o dos agrupamentos vicinais, o h o m e m aparece ele p r ó - xes, seu periodismo, a época e a u'a adequadas para p ó r abaixo
prio c o m o segmento d e u m vasto meio, ao m e s m o tempo na- uma á r v o r e o u lançar à terra u m a semente o u u ' a m u d a o u
tural, social e sobrenatural" ( C â n d i d o , 1964:138). colher o que p l a n t o u " (Mussolini, 1980: 226).
A respeito d o ajuste ecológico entre a cultura caipira e o me:' Essas últimas a f i r m a ç õ e s nos remetem à q u e s t ã o das socieda-
natural. C â n d i d o afirma que o equilíbrio e c o l ó g i c o se estabel í tradicionais e da sustentabilidade. É importante recordar que
e m f u n ç ã o das c o n d i ç õ e s primitivas do meio: terra v i r g e m , ab o Inodo de p r o d u ç ã o que caracteriza essas formas sociais de produ-
d â n c i a de c a ç a , pesca e coleta, fraca densidade d e m o g r á f i c a , li ^•ão é o da pequena p r o d u ç ã o mercantil; isto é, ainda que p r o d u z a m
tando a c o n c o r r ê n c i a vital. Q u a n d o apesar disso o meio n a mercadoria para a v e n d a , s ã o sociedades que garantem sua sub-
se exauria, o caipira procurava outro local para s u a agricultur sistência a t r a v é s d a p e q u ena a g r i c u l t u r a , p e q u e n a p e s c a , ex-
de subsistência. ti-itivismo. São formas de p r o d u ç ã o e m que o trabalho assalariado
Q u e i r o z (1973) t a m b é m , e m seus vá ri o s trabalhos, pesquiso ('casional e n ã o é u m a relação determinante, prevalecendo o tra-
essa p o p u l a ç ã o tradicional composta de sitiantes, caipiras e t^'ilho a u t ó n o m o o u familiar. E a pequena p r o d u ç ã o mercantil,
caras, definindo-a como lavradores cuja p r o d u ç ã o é orientada pa como bem lembrou Barel (1974), é u m a d a s formas sociais que
a subsistência; s ã o e m larga escala auto-suficientes e independen- ^'m uma história muito mais longa que aquelas dominantes, como
tes e m r e l a ç ã o à economia urbana; seus estabelecimentos s ã o de Íl^lt^nidal e a capitalista. A pequena p r o d u ç ã o mercantil nunca foi
tipo familiar, concentrando os chefes de família a iniciativa doS ^'Pc'udente, p o r é m sempre existiu articulada a outras formas
trabalhos efetuados na u n i d a d e d e p r o d u ç ã o , trabalhos que não J>minantes como a escravocrata, a feudal e a capitalista. A o r d e m
se d i s t i n g u e m , m a s que se confundem com todas as atividades da ^^wivocrata e a feudal desapareceram, mas a pequena p r o d u ç ã o
v i d a cotidiana. O g é n e r o d e v i d a do c a m p o n ê s se forma e m fu"^ ^^^rcantil continua existindo e mesmo na sociedade capitalista,
ç ã o d a cidade, c o m a qual aparece e m equilíbrio d e complemen- Pnrui'^!"^."^""^^"^"^ históricos e e m certas regiões, ela floresce,
taridade, d e tal o r d e m que a cidade necessita muito mais dele ào do e ^ ^'^^"'^ ^'"Irar em crise (o que sucede, por exemplo, nos bolsões
que ele dela. (p.35) EsT^i"^*'^ subsistência, e m certas regiões mais isoladas),
D e s c r e v e n d o as culturas litorâneas, M u s s o l i n i (1980) afif'^^ deve ""^'^ p e r m a n ê n c i a histórica desse m o d o d e p r o d u ç ã o se
que o m o d o d e v i d a c a i ç a r a resultou n u m aproveitamento intt^^^ ' o seu sistema de p r o d u ç ã o e r e p r o d u ç ã o ecológica e social.
O M O D O DE V I D A E AS T E C N O L O G I A S
o Nosso L U G A R V I R O U P A R Q U E
São sociedades mais hiomogêneas e igualitárias que as capitalis rança indígena. E x t r a í d a da raiz da m a n d i o c a b r a v a o u " r a m a "
c o m pequena capacidade de a c u m u l a ç ã o de capital, o que dificu [Wnnihot utilisshm), da qual os moradores extraem o á c i d o c i a m -
ta a e m e r g ê n c i a de classes sociais'. A s relações sociais c o m o drico (origem d a toxidade) a t r a v é s da " p r e n s a " de m a d e i r a , onde
compadrio funcionam como verdadeiras relações de p r o d u ç ã o , colocam os tapitis (cestos de timbopeva) cheios da m a s s a de m a n -
m o afirma G o d e l i e r (1984), na medida e m que p o d e m determi dioca ralada.
a forma social de acesso aos recursos, colaboram na organiza A totalidade dos moradores de M a m a n g u á tem sua casa de
dos processos de trabalho e, finalmente, m a r c a m a distribuição farinha o u u t i l i z a m a da família extensa. N o " a v i a m e n t o " está
trabalho i n d i v i d u a l o u coletivo. A s relações de c o m p a d r i o , também o forno de barro, c o m o tacho de cobre, a parte de maior
m u i t a s dessas sociedades, facilitam o acesso a zonas de p r o d u valor, onde é torrada a farinha, n u m processo lento e d e m o r a d o ,
(pesca, por exemplo) que de outra forma seria interditado. C o (indc a f u m a ç a densa chega a prejudicar a vista. Este trabalho,
tuem-se t a m b é m na base da solidariedade grupai, juntamente lunt.imente c o m o ralar da " r a m a " , é de responsabilidade p r i m o r -
outras formas de c o o p e r a ç ã o , como o m u t i r ã o . A l é m disso, a ,iial das m u l h e r e s .
nologia u t i l i z a d a tem impactos e c o l ó g i c o s r e d u z i d o s sobre Além da fabricação da farinha, t a m b é m soca-se a m e n d o i m no
ecossistemas que utilizam, permitindo a renovabilidade dos es piiào e, por vezes, os g r ã o s de café colhidos localmente. Moe-se a
ques e a sustentabilidade dos processos ecológicos f u n d a m e n t - " t ,ina em pequenas moendas de madeira para fazer a garapa. A ca-
N a maioria das vezes, sobretudo e m regiões tropicais, essas liiaça n ã o é mais feita em M a m a n g u á , mas encontra-se ainda mora-
dades tradicionais apresentam u m a fraca densidade populaci lUtr que leva a cana para ser moída fora e ser transformada e m aguar-
A s festas, as lendas, e a simbologia mítica, a l é m da relig' ^ lente, ficando ele c o m u m terço da quantidade p r o d u z i d a .
4
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE O M O D O DE V I D A E AS T E C N O L O G I A S
rependimento, porque ela racha e o camarada fica arrependido" (Seu t.ir" a á g u a da canoa; e a gamela, feita de caixeta, na q u a l se guar-
L e o n e l do C r u z e i r o ) . Jci o peixe depois de "consertado" (escamado e limpo).
A baleeira e o bote s ã o outros tipos de e m b a r c a ç õ e s encontra-
A s á r v o r e s usadas d e v e m ser grandes, podendo-se fazer u m a das na r e g i ã o . A baleeira é u m a e m b a r c a ç ã o de 8 a 12 metros de
canoa grande e u m a menor. comprimento, s e m cobertura o u casario, feita c o m t á b u a s parcial-
mente superpostas e calafetadas, c o m p r a d a s e m geral fora de
" O cedro é a melhor madeira pra canoa em todo o litoral, mas tem M a m a n g u á . Originalmente v i e r a m de Santa Catarina, onde os pes-
que ser árvore grande. Sefor pequena, a canoa entorta" (Seu Licínio, cadores a ç o r i a n o s as c o n s t r u í a m e com elas p e s c a v a m .
Costão).
O Sr. Licínio, morador da M a r g e m Continental, foi u m dos
1
primeiros a comprar u m a baleeira motorizada, há uns 40 anos atrás,
A retirada do tronco de dentro da mata s ó é possível c o m a por volta de 1950, c o m o capital que a c u m u l o u depois de ter sido
a j u d a de parentes e amigos, pois a m a d e i r a pesada é retirada à por três anos contramestre e m traineira. N a é p o c a , h a v i a trocado
mão. sua canoa motorizada por esse tipo de e m b a r c a ç ã o d e v i d o à ca-
A s canoas grandes p o d e m ser " b o r d a d a s " , pois nelas acres- pacidade de transportar u m a maior quantidade d a s m e r c a d o r i a s
centa-se u m a tábua lateral para agiientar os mares. N o passado, que ele c o m e r c i a l i z a v a .
essas canoas grandes u s a v a m t a m b é m u m a vela para ajudar na
A o c o n t r á r i o d a canoa, a baleeira precisa de m a i s m a n u t e n ç ã o ,
n a v e g a ç ã o , mas atualmente os moradores que têm recursos colocam
calafetagem e pintura. A cada seis meses as baleeiras s ã o retira-
o motor de centro.
das da á g u a para a m a n u t e n ç ã o e pintura. E s s e trabalho é feito no
A s técnicas de se fazer a canoa s ã o de origem indígena, a i n d a pequeno estaleiro do Sr. L e o n e l , no C r u z e i r o , onde t a m b é m s ã o
que hoje se u s e m o machado, a plaina, o e n x ó . E x i s t e m e m M a - feitos os consertos com os motores de centro, cuja p o t ê n c i a v a r i a
m a n g u á cerca de 6 fazedores de canoas, ainda que o m a i s conhe- entre 9 e 18 cavalos a vapor. E s s a s e m b a r c a ç õ e s s ã o hoje usadas
cido seja o dono do pequeno estaleiro de C r u z e i r o , que hoje v i v e para o transporte de carga (material de c o n s t r u ç ã o ) , para as c o m -
mais do concerto de e m b a r c a ç õ e s motorizadas, botes e baleeiras. pras e m Parati e p a r a o "frete dos turistas". E m muitas dessas
T o d o s eles a p r e n d e r a m na prática, " v e n d o os outros f a z e r e m " e baleeiras, os p r o p r i e t á r i o s a r m a m u m a cobertura de madeira o u
e m geral c o n s t r u í r a m a primeira canoa p a r a uso p r ó p r i o . plástico, p a r a tornar a v i a g e m dos turistas m a i s a g r a d á v e l .
Q u a n t o ao bote é c o n s t r u í d o de m a d e i r a , e m geral de tamanho
"Aprendi a profissão com meu pai, homem de poucas palavras.
pequeno, entre 7 e 12 metros, tendo u m pequeno casario na popa,
Ensinar, ele não ensinava, mas eu ficava ajudando ele fazer as cano-
onde fica o motor e a roda do leme. E s s a s e m b a r c a ç õ e s (umas
as, vendo o jeito que ele tinha, esticando as linhas" (Seu L e o n e l , do
quatro o u cinco) apareceram m a i s recentemente e m M a m a n g u á ,
Cruzeiro).
sendo utilizadas para o arrasto de c a m a r ã o , dentro e fora do Saco.
Na e s t a ç ã o turística, os botes t a m b é m são usados para o transpor-
A l é m d a canoa, a maior parte dos petrechos s ã o feitos m a n u - te de passageiros, geralmente a partir de P a r a t i - M i r i m .
almente, c o m material local como: a poita, pedra a m a r r a d a com
cipó, cabo o u p e d a ç o de rede que serve como â n c o r a : os cestos e
balaios, feitos do cipó timpopeva, e m que se colocam os peixes
depois d a pesca ( s a m b u r á s ) ; a cuia feita de c a b a ç a s , p a r a se "esgo-
A s práticas
económicas e
tirada de á r v o r e s do mato para a c o n s t r u ç ã o de canoas, etc. E s s a C o m o pode ser observado pela Tabela 11,37% dos pais de famí-
c o o p e r a ç ã o se constitui n u m a das bases das atividades e c o n ó m i - lia trabalham na pesca (embarcada e artesanal). A l a v o u r a ocupa
cas locais, t a m b é m pelo fato de grande parte dos moradores per- 21% e a atividade de caseiro, 18,5% dos pais de família.
tencerem a u m pequeno n ú m e r o de famílias extensas (4 o u 5 e m
Mamanguá). Tabela 11 - Principal Atividade Económica
A s relações familiares s ã o fundamentais n ã o somente nas ati- dos Chefes de Família (Censo)
v i d a d e s e c o n ó m i c a s mas permeiam, de forma nítida, as várias
esferas da v i d a social, sobretudo através do sistema de compadrio. ATIVIDADE
ISjo. %
São as ligações familiares que garantem t a m b é m o acesso ao pei-
Pescadores Embarcados 36 30,0
xe capturado por u m membro da família extensa, q u a n d o
Pescadores Artesanais motorizados 4 3.5
existe a " m i s t u r a " para as refeições.
Pescadores Artesanais não-motorizados 4 3.5
A n t e s , a c o o p e r a ç ã o a t r a v é s do p u t i r ã o ( m u t i r ã o ) era u m ele-
mento f u n d a m e n t a l de c o o p e r a ç ã o entre as famílias. L a v r a d o r e s de Subsistência 25 21,0
Caseiros 22 18.5
"Isso terminou faz uns dez anos, depois não teve mais... Putirão
Aposentados 10 8.5
era um trabalha pro outro, ajuda. Fazia a roça dele num dia, outro
Artesãos 9 8.0
dia ele vinha pra mim, e num outro dia eu trabalhava pra ele. Era pra
planta, pra colher, tudo era putirão... Antigamente fazia o putirão, Pedreiros 3 2.5
ContinenuI 2 100,0% — —
ContinenuI 10 — 10.0% 20.0%
Fundo d o Saco 1 100.0% — —
F do Saco 05 — 20,0% —
Peninsular 10 40.0% 20.0% 30.0%
Peninsular 20 10.0% 45,0% —
TOTAL 13 60.0% 15.3% 23.0%
TOTAL 35 5.71% 31.4% 5,7%
outras a t i v i d a d e s e c o n ó m i c a s . Somente n a M a r g e m P e n i n s u l a r
MARGEM TOTAL C O N T A PÓPR. EMBARCADO
existe u m recrutamento para a pesca e m b a r c a d a , o que enfatiza a
i m p o r t â n c i a d e s s a atividade n a á r e a . 50,0% 50.0%
Continental 02
C e r c a de 30% dos pescadores embarcados n ã o e s t a v a m pes- " O mestre tem que ter sabedoria, porque ele tem que levar o barco
c a n d o no p e r í o d o da pesquisa de c a m p o (junho-dezembro), seja 0'ide acha que deve levar. Tem que ser competente pra matar muito
pela i n t e r d i ç ã o do defeso, seja por avaria nas e m b a r c a ç õ e s . N o P^'ixe, mas não deve arriscar com a tripulação, que depende dele. Uns
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE A s PRÁTICAS ECONÓMICAS E SOCIAIS
tetupo atrás, um deles sumiu na Ponta da Juatinga porque abusou do "Hoje, se não tiver instrumento de navegação, não navega. Anti-
mar, arriscou muito. Bateu tempo ruim e ele não quis nem saber, gamente, o povo conhecia o tempo pelos astros, quando olhava as
tocou pra frente. Morreu ele e os filhos" (Seu Luís, Baixio). estrelas, o sol, e a lua. Sabia o vento que ia dar. A mocidade lioje só
usa instrumento" (Seu Z i z i n h o , Ponta do L e ã o ) .
O u t r a qualidade apreciada pela tripulação é o empenho na pes-
caria, a boa captura que, segundo os pescadores, depende do es- b) Pescadores Artesanais
tado do barco, do tipo do material de pesca, e t a m b é m d a "sorte".
Segundo o C e n s o , somente 7% dos chefes de família a f i r m a r a m
"Pra ser mestre-proeiro, a pessoa tem que ter vocação. Tem que depender exclusivamente da pesca artesanal, i n c l u i n d o aí tanto
agiientar temporal lá na proa. Às vezes, fica a noite inteira sem dor- aqueles que s ã o primordialmente de subsistência como aqueles
mir, só olhando. Dá só um cochilo, quando termina a pescaria" (Seu que já tem baleeiras e botes motorizados. N o entanto, é importan-
Licínio, C o s t ã o ) . te destacar que 62,.8% afirmaram praticar esse tipo de pesca como
a t i v i d a d e complementar (ver Tabela 26). E s s a porcentagem é ele-
O s mestres de barco do lugar (cerca de 8) preferem escolher a \a no F u n d o do Saco (80%) e na Continental (70%). M e s m o na
tripulação entre parentes e a m i g o s , que v i v e m sobretudo no bair- Margem Peninsular, cerca de 55% d e p e n d e m da pesca artesanal
ro d o C r u z e i r o . para sua subsistência, particularmente para conseguir a " m i s t u -
r a " , que a c o m p a n h a o prato básico, o p i r ã o (farinha de m a n d i o c a
" A gente pega só tripulante do lugar. É tudo d a família. r á g u a ) . N e s s e sentido, a pesca artesanal é, sem d ú v i d a , u m a ati-
V i a g e m d u r a u n s 5 o u 6 dias, chegando até C a b o F r i o , depois \e fundamental para a sobrevivência dos moradores.
do R i o de Janeiro. T a m b é m quando o tempo está r u i m , a gente
volta pro lugar onde está a família" (Seu lero, mestre de pesca
Tabela 1 7 - Pesca Artesanal - T i p o de Pesca Praticada
d a Praia do C r u z e i r o ) .
'•'"•^'ÍGEM ESPERA UNHA MERGULHO TARRAFA TRESMAL OUTROS
"A gente usa a sonda pra saber se tem peixe. A agulha do apare- ^ b s : Cada pescador pode realizar mais de um tipo de pesca.
Tabela 18 - Pesca Artesanal - Propriedade dos Aparelhos de Pesca MARGEM COMÉRCIO LAVOURA NADA oumA SEM RESR
MARGEM SOZINHO CAMARADA PARENTES OUTWDS SEM RESR O s pescadores artesanais n ã o - m o t o r i z a d o s que se d e d i c a m
^'>^clusivamente à pesca s ã o poucos (4 chefes de família) empre-
Continental 85,7% — 14.2% f^'indo canoas a remo e pequenas redes na pesca de peixes (princi-
25.0% íj>iimente parati) do próprio Saco de M a m a n g u á , destinando gran-
Fundo do Saco 50.0% — — 25.0%
(I] sua pequena captura à subsistência de suas famílias
Peninsular 76.9% — 15.3% — 7.6^
^' c^-m de v e n d e r no local seu pequeno excedente). N a realidade, o
12.5% ^ "iiero desses pescadores é b e m maior, pois a maioria dos m o r a -
TOTAL 75.0% 0.0% 8.3% 4.1%
"^•^'^ pesca para a subsistência, sendo o pescado a maior fonte de
As PRÁTICAS ECONÓMICAS E SOCIAIS
proteína d a r e g i ã o . A l é m d i s s o , m u l h e r e s e c r i a n ç a s r e t i r a m
moluscos e c r u s t á c e o s como complemento da dieta o u da renda.
—Os Lavradores
'ContinenuI
06 33.3% 100.0% 33.3%
T o t o O ô . T r a k í l i n o nn r o ç a -
''"^^o do Saco 04 25,0% 100,0% 50,0%
M ^ L
22 40.9% 100.0% 36.3%
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE A s PRÁTICAS ECONÓMICAS E SOCIAIS
dos lavradores. Deve-se afirmar, no entanto, que n ã o se tratam de Tabela 22 - Lavoura - com quem trabalha
culturas separadas o u monoculturas, m a s realizadas consorciada-
MARGEM TOTAL SOZINHO
mente, na m e s m a r o ç a . ESPOSA FILHOS OUTROS
Baixio).
Continental 06 83.3% 16.6% '
45.4% 50.0% 4.5% casas locais, sobretudo as feitas de " t a i p a " (casas de pau-a-pique)
TOTAL 22
são c o n s t r u í d a s pelos p r ó p r i o s moradores, utilizando materiais
locais, c o m o a madeira de mangue, palmeira j u ç a r a , s a p é e barro.
A maioria (63,6%) d o s lavradores p r o d u z e m somente para o
c o n s u m o p r ó p r i o , e somente 4,5% cultivam exclusivamente para — Os Artesãos
a v e n d a , ao passo que 27,2% p r o d u z e m para o c o n s u m o e a venda
{Tabela 25). A p o p u l a ç ã o d o F u n d o d o Saco é a q u e m a i s planta Entre os chefes de família, 8,0% a f i r m a m depender de atividades
somente para o c o n s u m o ao passo que n a M a r g e m Continental e artesanais, principalmente da fabricação de miniaturas de embar-
P e n i n s u l a r cerca d e u m quarto d e moradores planta p a r a o con- cações, remos, gamelas, feitas sobretudo de madeira de caixeta.
sumo e venda. Como foi dito anteriormente, essas atividades artesanais se intensi-
ficam nos meses de v e r ã o , q u a n d o aumenta o afluxo de turistas
Tabela 25 - Lavoura - Destino do Produto no local e na c i d a d e de Parati onde as p e ç a s de artesanato s ã o
Vendidas para os donos de loja, que as r e v e n d e m a p r e ç o b e m
CONS/ R
SEM RESR
TOTAL CONSUMO VENDA "lais elevado.
MARGEM VENDA
Além disso, u m chefe de família v i v e exclusivamente d a cons-
33.3% 16.6%
ContinenuI 06 50,0% —
trução e reparo de e m b a r c a ç õ e s , n u m pequeno estaleiro existente
I
o Nosso L U G A R V I R O U P A R Q U E A S PRÁTICAS ECONÓMICAS E SOCIAIS
A COMPLEMENTARIDADE DE
MARGEM LAVOURA PESCA PESCA TURIS. NÃO
ATIVIDADES ECONÓMICAS ARTES. EMBARC. POSSUI
C o m o foi afirmado anteriormente, os moradores muito r a r a m e n - Continental 30.0% 70.0% 10.0% — 10.0%
te v i v e m de u m a s ó atividade. O s pescadores embarcados, q u a n -
Fundo do Saco 60.0% 80,0% — — —
do d e s e m b a r c a m temporariamente praticam a pesca artesanal, a
lavoura e o artesanato. O s lavradores, e m sua grande maioria tam- Peninsular 35.0% 55,0% 5.0% 10,0% 15,0%
Peninsular 20 — 85,0% I
12a
verdadeira ciência d o concreto, u m rico tesouro de conhecimentos verso onde o s caracteres fundamentais d o s seres a n i m a d o s se e n -
contram n a s coisas i n a n i m a d a s .
d a b o t â n i c a , da ictiologia e da farmacologia.
C o m o afirma Mircea E l i a d e (1991): ^
"(...) nas mitologias antigas o u e m mitologias c o n t e m p o r â -
ao ser h u m a n o ; precede a linguagem e a r a z ã o d i s c u r s i v a . 0 | espíritos, g é n i o s , deuses, que estão e m todas as coisas o u por
trás de todas as coisas. Reciprocamente, o ser h u m a n o pode
s í m b o l o revela certos aspectos da realidade — os m a i s p r o f u i ^ H
sentir-se d a m e s m a natureza que as plantas e os a n i m a i s , ter
dos — que desafia qualquer outro meio de conhecimento.
c o m é r c i o c o m eles, metamorfosear-se neles, ser habitado o u
i m a g e n s , os s í m b o l o s e os mitos n ã o s ã o c r i a ç õ e s i r r e s p o n s ^ H
p o s s u í d o pelas forças d a n a t u r e z a " ( M o r i n , 1986:151).
v e i s da psique; elas respondem a u m a necessidade e p r e e ^ ^ l
c h e m u m a f u n ç ã o : revelar as m a i s secretas m o d a l i d a d e s do
N a s sociedades primitivas o u pré-industriais a u n i d a d e / d u a l i -
s e r " (p.lO).
dade do h o m e m se reflete t a m b é m nas d u a s formas de a p r e e n s ã o
r e p r e s e n t a ç õ e s , às imagens e ao pensamento mítico. D e acordo ecológico, tecnológico (hoje objeto de etnociência); e outra, s i m b ó -
lica, mitológica e m á g i c a . N o entanto, essas d u a s formas de co-
c o m M o r i n (1986), os mitos s ã o narrativas que d e s c r e v e m
nhecimento do h o m e m arcaico, ainda que distintas, n ã o v i v e m
em dois u n i v e r s o s separados; s ã o praticadas n u m u n i v e r s o úni-
"(...) a origem do m u n d o , a origem do h o m e m , o s e u e s t a ^
co, ainda que d u a l . D e acordo c o m Eliade, nesse u n i v e r s o d u a l o
tuto e a s u a sorte na natureza, as suas relações com os deuses
espaço e o tempo s ã o os m e s m o s e ao m e s m o tempo diferentes; o
e os espíritos. M a s os mitos n ã o falam s ó d a c o s m o g ê n e s e , não
tempo do mito, o tempo passado é t a m b é m s e m p r e presente. O
f a l a m s ó d a p a s s a g e m d a natureza à cultura, m a s t a m b é m de
lt^'nipo t>riginal, mítico, retoma através das cerimónias regenerado-
t u d o o q u e concerne a identidade, o passado, o futuro, o pos-
'"'is (o mito d o eterno retorno, descrito por Mircea Eliade).
sível, o i m p o s s í v e l , e de tudo o que suscita a interrogação, a
c u r i o s i d a d e , a necessidade, a a s p i r a ç ã o . T r a n s f o r m a m a histó- Essa r e p r e s e n t a ç ã o simbólica d o cíclico, d e que tudo n o c o s m o
ria d e u m a c o m u n i d a d e , cidade, povo, tornam-na lendária, e ^'^sce, morre, renasce é forte nas sociedades p r i m i t i v a s , m a s está
m a i s geralmente, tendem a desdobrar tudo que acontece no presente t a m b é m nas comunidades tradicionais de pequenos agri-
nosso m u n d o real e no nosso m u n d o i m a g i n á r i o para os lig^^ cultores itinerantes, de pescadores e coletores que ainda v i v e m
e os projetar juntos no m u n d o m i t o l ó g i c o " (p.l50). í^abor d o s ciclos naturais e n u m complexo c a l e n d á r i o agrícola
pesqueiro. H á o tempo para fazer a coivara, p r e p a r a r a terra,
mental para se entenderem as r e p r e s e n t a ç õ e s que as s o c i e d a d ^ esse ciclo, ele r e c o m e ç a r á no p e r í o d o seguinte. E m muitas des- •
" t e m p o s " s ã o muitas vezes celebrados por festividades que mar- São c o m u n s as lendas relativas aos tesouros escondidos nas
c a m o imcio o u o fim de u m a determinada safra (a colheita, por ruínas dos engenhos, as a s s o m b r a ç õ e s e almas dos escravos que
" O ano, o u o que compreendemos por esse termo, e q u i v a l e cativos, q u a n d o castigados. Conta-se t a m b é m que os escravos
sido r e f o r ç a d a pelo e s p e t á c u l o da morte e da r e s s u r r e i ç ã o pe- a i n d a hoje aparecem as almas dos mortos. H á t a m b é m relatos de
riódicas d a v e g e t a ç ã o n ã o seca, por isso, u m a c r i a ç ã o das soci- barulho de machadadas no mangue que se o u v e m de vez e m quan-
edades agrícolas. E l a se encontrava nos mitos das sociedades d o , e que é atribuído a almas de escravos.
— O Mar-de-Dentro: o Estuário
A TERRA DOS ESCRAVOS
C o m o foi visto anteriormente, as atividades e c o n ó m i c a s e o modo ''ara os moradores que exercem atividades a g r í c o l a s , o M a r - d e -
de v i d a e m M a m a n g u á estiveram, no passado, muito mais lij l^entro está ligado às atividades agrícolas, e isso se revela n a s
dos à terra que ao mar. N o p e r í o d o colonial, as grandes fazem '••-'presentações simbólicas sobre a terra e o mar. Para esses morado-
que u t i l i z a v a m o trabalho escravo o r g a n i z a v a m n ã o somente ' por exemplo, os entes sobrenaturais s ã o sobretudo os de ter-
I
atividades e c o n ó m i c a s , mas t a m b é m as sociais e culturais. O ima- a, como ocorre c o m a lenda do c u r u p i r a , que p r o v a v e l m e n t e d e u
ginário local representa o tempo da s e r v i d ã o como o d a violência "••gem a u m a praia do mesmo nome. E s s e ente fantástico já h a v i a
e d a d u r e z a do trabalho escravo. Sobressaem nas narrativas as ^ido mencionado por J o s é de Anchieta ( C â m a r a C a s c u d o , 1976):
rar os escravos fugitivos no mangue para que fossem devorados índios muitas vezes no mato, dão-lhes açoites, m a c h u c a m -
v i r a m a l g u m a s vezes os mortos por eles. P o r isso, c o s t u m a m tam sair c o m s u a s canoas. A própria r e p r e s e n t a ç ã o d e " p r a i a " ,
os índios deixar e m certo caminho, que por á s p e r a s brenhas enquanto lugar de moradia é mais terrestre q u e m a r í t i m a . Pode-
v a i ter ao interior das terras, no cume d a mais alta m o n t a n h a , se afirmar q u e a maioria dos moradores se sente mais a vontade
q u a n d o p o r cá p a s s a m , penas de ave, abanadores, flechas e na r o ç a , n a casa de farinha, n a c a ç a que no mar. E x i s t e m t a m b é m
outras coisas semelhantes, como u m a espécie de o b l a ç ã o , ro- " l u g a r e s " melhores o u piores para se viver. O lugar o u praia é
g a n d o fervorosamente aos curupiras que n ã o lhes f a ç a m m a l " considerado b o m quando tem u m acesso fácil ao mar, á g u a doce
(p.332). para beber e sobretudo quando n ã o é infestado de m o s q u i t o - p ó l -
vora o u pernilongo, que infernizam a v i d a das pessoas durante
Por outro lado, existem as r e p r e s e n t a ç õ e s relativas ao M a r - d e - "as l u a s " (cheia e n o v a ) . Acredita-se q u e o m o s q u i t o - p ó l v o r a
Dentro, mais p r ó x i m o , o que está e m frente de casa, mais protegi- ( m a r u i m ) v e m d o mangue, por levas, durante as m a r é s - c h e i a s ,
d o d o s ventos, a partir d a " b a r r a " , e sobretudo a partir d a Ilha sobretudo à noite e ao amanhecer. Por isso, u m b o m lugar para se
G r a n d e e m d i r e ç ã o ao F u n d o d o Saco. A s d u a s ilhas, a G r a n d e e a viver é s e m p r e longe d o m a n g u e do F u n d o do Saco e u l t i m a m e n -
Pequena, aliás, fazem parte deste mar-de-dentro e hoje s ã o desa- te a l g u m a s famílias tem saído dessas áreas, s e g u n d o d i z e m , pela
bitadas. N o passado, tinham u m morador cada u m a , sendo o mais infestação d o m a r u i m .
lembrado u m a hippie que veio d o R i o de Janeiro e v i v e u ali sozi- O lugar b o m para se morar é t a m b é m aquele e m que v i v e a
nha mais de u m ano, apesar da falta de á g u a . " i r m a n d a d e " , seja a familiar seja a religiosa, principalmente a d o s
O mar, enquanto meio e objeto de trabalho e subsistência apa- "crentes", pois ali está t a m b é m a igreja que congrega os " i r m ã o s "
receu depois d o tempo das fazendas de escravo, q u a n d o a pesca i^os fins de s e m a n a .
p a s s o u a desempenhar u m papel importante como gerador de O M a r - d e - D e n t r o n ã o é somente u m lugar físico. É t a m b é m
renda e aporte de alimento para os moradores, alguns ex-escra- um e s p a ç o c r i a d o c u l t u r a l m e n t e , sobretudo a t r a v é s d a s p r á t i -
vos. A p e s a r de hoje grande parte dos moradores c o m b i n a r e m cas p e s q u e i r a s de s u b s i s t ê n c i a . M e s m o essas a t i v i d a d e s eco-
atividades agrícolas, artesanais, extrativistas e pesqueiras para ga- n ó m i c a s s ã o m a r c a d a s pelas p r á t i c a s sociais e s i m b ó l i c a s . E s s e
rantir s u a subsistência e renda, muitos deles, durante a pesquisa, mar é u m e s p a ç o h u m a n i z a d o , onde os peixes t ê m v i d a à s e m e -
se d e f l n i r a m como " l a v r a d o r e s " . Isso se explica na m e d i d a e m lhança d o h o m e m . O parati, p o r e x e m p l o , é c l a s s i f i c a d o c o m o
que a roça exige u m empenho mais sistemático que se inicia com peixe " d e carne forte", n ã o a c o n s e l h á v e l p a r a m u l h e r e s de " r e s -
a l i m p e z a d o terreno, a coivara, o plantio, as capinas. A pesca é g u a r d o " . A m o r é i a é u m peixe " r e i m o s o " , p r o i b i d o p a r a as
somente u m a atividade de subsistência, que garante a " m i s t u r a " mulheres g r á v i d a s .
que a c o m p a n h a a farinha. ,1
O s peixes t ê m qualidades a n t r o p o m ó r f i c a s ; a s s i m o parati é
Para a maioria dos moradores, a p e r c e p ç ã o d o m a r se dá || •-'aperto, t ê m " v o n t a d e s " , pode-se deixar capturar o u n ã o .
partir d a terra. O Mar-de-Dentro é utilizado como meio de loco-
m o ç ã o para visitar os parentes " d o outro l a d o " , u m a v e z que e "A gente encontra o parati nos lajeados e nos baixios. Aí a gente
impossível se cruzar o m a n g u e d o F u n d o do Saco à pé. E l e é tarn' cerca ele com a rede, batendo com o remo na canoa pra ele entrar.
b é m o e s p a ç o de trabalho dos pequenos pescadores. Q u a s e todo Quando está bom de morrer, ele entra na rede. Quando a água está
o tempo é u m espelho d ' á g u a tranquilo, sem ondas. N o entanto, escura, aí melhor pra ele morrer. Mas quando ele está velado, escondi-
pode ficar agitado, sobretudo quando aparece o vento s u l . D u - dinho, não adianta que ele não quer morrer, passa pelo fundo da ca-
rante esse p e r í o d o , que pode chegar a três dias, os moradores c v i - ma e volta" (Dito, do Baixio).
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE SIMBOLISMOS, REPRESENTAÇÕES E FESTAS
Por fim, existe o m a r de fora, o verdadeiro, o m a r dos pescadores O s " m e s t r e s " da canoa de voga e r a m considerados n a v e g a d o -
e m b a r c a d o s , frequentado pelas traineiras, pelos barcos de pesca •es destemidos, que s a b i a m se guiar pelos ventos e pelas estrelas,
de c a m a r ã o e de c a ç ã o . E s s e e s p a ç o m a r í t i m o é representado de afrontando mares perigosos e caprichosos, sujeitos a acidentes e
forma simbólica distinta do Mar-de-Dentro. naufrágios. Estes e r a m causados pelo desrespeito às leis da na-
tureza, q u a n d o o mestre arriscava muito. U m a dessas histórias
"A gente chama de Mar Grosso, o mar da Ponta do Mamanguá ^^^mta o n a u f r á g i o de d u a s canoas de voga, levando cada u m a
para fora. É um mar arriscado, porque as ondas são violentas. As ^^tízenas de pessoas, q u a n d o os noivos v o l t a v a m de P a r a h para a
pessoas daqui de dentro enjoam. Ele é também traiçoeiro. Aqui den- 'c'sta na Praia d o A r a ú j o , situada na baía de Parati. O n a u f r á g i o
tro não, a pessoa pode até morrer aqui, mas só se for predestinado o '^'nninou c o m a morte dos viajantes, durante u m a tormenta. O s
dia dele morrer" (Dito, do Baixio). ' c'cém-casados teriam sido encontrados a b r a ç a d o s e mortos.
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE SIMBOLISMOS, REPRESENTAÇÕES E FESTAS
" O pessoal me contava de uma tormenta, no dia três de maio... embarcada, os moradores p a s s a m a conhecer portos urbanos i m -
A época, a data, num sei quando foi, mas o padre Nilton era vivo... portantes, c o m outros modos de v i d a , como o de Santos e R i o de
Vieram dois noivos, em duas canoas de voga com 25 pessoas em Janeiro, onde se v e n d e a p r o d u ç ã o . E s s e é o m a r distante, o que
cada. Casaram em Parati e embarcaram para comemorar na Praia separa o pescador da terra, de sua família.
do Araújo. At foi quando o padre viu o tempo ameaçado e disse: P a r a o n o v o g r u p o de "pescadores e m b a r c a d o s " , o M a r G r o s -
Filhos, vocês não vão ainda porque o tempo está ameaçado, mas o so é antes de tudo o d o m í n i o da incerteza, da i m p r e v i s i b i l i d a d e ,
pessoal decidiu pegar o mar assim mesmo, porque tiniia festa, tinha c a r a c t e r í s t i c a s opostas às da terra, onde, nas p r á t i c a s a g r í c o l a s ,
baile, num sei mais o quê. Quando eles saíram Pontal afora viram existe u m a m a i o r p r e v i s ã o , d e s d e o plantio a t é a colheita. N a
aquela nuvem de poeira, aquele sarsêro de água salgada que vinha... pesca, s o b r e t u d o na dos peixes m i g r a t ó r i o s , c o m o a t a i n h a , q u e
Quando a tormenta veio, num deu tempo, as canoas atracaram uma aparece n o p e r í o d o frio, no e s t u á r i o , os pescadores e s p e r a m q u e
na outra e as velas engancharam uma na outra e as canoas afun- ela a p a r e ç a e o i m a g i n á r i o local está m a r c a d o por essa e s p e r a .
daram. Morreu todo mundo, e só escapou um para contar a estória. O "tempo" das espécies importantes está marcada pelo
Os noivos morreram juntos, abraçados..." (Seu Licínio, do s u r g i m e n t o d e f e n ó m e n o s c l i m á t i c o s (o frio, o vento, a cor d a
Costão). água).
N a pesca embarcada, ao contrário, é necessário ir buscar o peixe
O s perigos d e n a u f r á g i o no m a r n ã o s ã o somente eventos do onde ele se encontra, e nesse sentido a i m p o n d e r a b i l i d a d e é m u i -
passado, mas a m e a ç a m os navegantes locais a i n d a hoje. O perigo to maior que na pequena pesca. Essa i m p o n d e r a b i l i d a d e n ã o é
é a i n d a m a i o r no mar-de-fora, conforme o relato abaixo: somente física o u biológica, mas t a m b é m e c o n ó m i c a e social. O
preço de peixes como a s a r d i n h a varia de porto a porto e isso
" O barco eu não me lembro, mas o mestre se chamava Marreco. determina a renda dos pescadores.
Ele estava na pescaria do cação, aí por fora. Bateu o tempo ruim e E s s a s n o v a s p r á t i c a s e c o n ó m i c a s e culturais ligadas à pesca
ele não quis nem saber, queria trazer a pescaria toda, quis teimar embarcada n ã o somente l e v a m a u m maior distanciamento da
com o tempo. Morreu ele, e a família toda que estava no barco" terra, como c r i a r a m u m outro tipo de " p r a i a " , como a do C r u z e i -
(Luís, do Baixio). l o e m que a quase totalidade dos homens se dedica à pesca e m -
barcada. C r i a m - s e t a m b é m novos símbolos e imagens, como a do
A p ó s o p e r í o d o das canoas a voga, o mar-de-fora c o m e ç o u a "mestre", pessoa de prestígio, n ã o somente porque conhece e
d e s e m p e n h a r u m p a p e l central na v i d a de u m a parte importante domina u m complexo de novos saberes, mas t a m b é m de n o v a s
dos moradores do Saco, quando s u r g i u a pesca da s a r d i n h a pelas tecnologias: os motores, as redes mais complexas. A l é m disso, tran-
traineiras na Ilha G r a n d e , e alguns moradores c o m e ç a r a m a em- si tam n u m m u n d o externo inatingível aos pequenos pescadores e
barcar. C o m o se v i u anteriormente, e m algumas praias, sobretu- 'avradores: a grande cidade.
do a do C r u z e i r o , a p o p u l a ç ã o , principalmente a j o v e m , p a s s o u a O "mestre de p e s c a " , apreciado pela tripulação, tem que ser
v i v e r do " e m b a r q u e " . ^•t»mpetente, isto é, encontrar o peixe e garantir u m a boa pescaria,
I C o m e ç o u a existir u m a outra r e p r e s e n t a ç ã o do mar, aquele ••^^sociada a esta qualidade existe u m a outra: a da coragem, sobre-
!— e s p a ç o distante onde se passa a v i v e r três e m quatro s e m a n a s do tudo, no caso do "mestre proeiro", que localiza a " a r d e n t i a " , fos-
m ê s . O e s p a ç o m a r í t i m o p a s s o u a ser u m e s p a ç o de v i d a , do em- fí>rescência à tona d ' á g u a que revela a p r e s e n ç a dos c a r d u m e s d e
bate do dia a d i a , do lugar onde se ganha a v i d a . A t r a v é s da pesca ^'irdinha:
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE SIMBOLISMOS, REPRESENTAÇÕES E FESTAS
"A pessoa prá ser proeiro tem que ter vocação, aguenta temporal cheia q u a n d o os barcos voltam às praias onde v i v e m o mestre e a
na proa à noite, a noite toda sem dormir. Só tira um cochilo quando tripulação. É o período de rever os parentes e amigos, trazer dinhei-
os tripulantes vão puxar a rede, aí dá um cochilo" (Licínio, do ro para casa, presentes para a família e recriar a solidariedade
Costão). r o m p i d a s temporariamente. O futebol de praia e outras ativida-
des lúdicas representam u m aspecto essencial na c o n v i v ê n c i a e
Para afrontar o mar nas tormentas e tempestades, n o entanto, no i m a g i n á r i o do embarcado. Nesse sentido, a lua cheia n ã o é
o " m e s t r e " d e v e confiar e m D e u s : somente u m f e n ó m e n o físico, mas sobretudo cultural, possibili-
tando p r á t i c a s sociais e culturais.
" O mestre não pode fazer nada, só pode fazer aquilo que está no N o entanto, na v i d a de embarcado t a m b é m existe a i m a g e m
alcance dele. Tem que confiar em Deus". do " r e t o m o à terra", à v i d a e m família, constituidora do sonho de
voltar c o m dinheiro para comprar material para construir u m a
A l é m disso, o mestre tem que cuidar para manter u m c l i m a de casa, u m a canoa o u baleeira para pescar como a u t ó n o m o ou trans-
c o o p e r a ç ã o à bordo, sobretudo porque a tripulação, e m geral, é portar turistas. A l é m desta volta final desejada existem os muitos
formada por parentes e amigos. E l e é obrigado a intermediar i n - retornos, " q u a n d o existe a l g u m a p r e c i s ã o " , q u a n d o o barco entra
teresses conflitantes entre o dono do barco e a tripulação. E aqui no estaleiro para consertos, durante os períodos de defeso o u quan-
reside u m aspecto fundamental d a o p o s i ç ã o entre terra e mar. A do a família solicita. Durante esse tempo, há u m retorno t e m p o r á -
pesca na traineira, apesar de ser distinta da pequena pesca, re- rio à v i d a de terra, ao plantio da " r a m a " , o u ao artesanato.
cria, de a l g u m a forma, as solidariedades e valores existentes em
terra, o u a t é na pequena pesca. A p e s a r do sistema de partilha, "Meu irmão Antonio tá pescando numa traineira, ele e o filho
assalariamento d i s f a r ç a d o , opor dono do barco e tripulação, o dele. Mas tem também roça. Quando a pesca embarcada fracassa ele
" m e s t r e " , escolhendo a tripulação entre familiares e c o m p a n h e i - volta prá roça durante uns dois ou três meses. Ele necesssita muito
ros, recria a teia de relações sociais p r ó p r i a s d a família extensa. da roça prá alimentar a família dele. Aí ele faz a roça, deixa a roça
N e s s e sentido, os conflitos sociais no interior do barco, causados limpa e volta para a pesca outra vez. É assim que ele faz, trabalha nas
p o r u m a s e p a r a ç ã o entre os interesses d o s p r o p r i e t á r i o s dos ins- duas função" (Dito, do Baixio).
trumentos de p r o d u ç ã o e da força-de-trabalho acham-se mediati-
z a d o s pelas r e l a ç õ e s familiares e d e c o m p a n h e i r i s m o existentes
no interior das traineiras, por exemplo. O TEMPO DA NATUREZA, O TEMPO
esperado c o m o aquele e m que se p o d e fazer u m d i n h e i r o extra, esse " p a s s a d o " c o n t é m , a l é m da s a u d a d e de u m tempo que
c o m a fabricação de p e ç a s de artesanato, c o m o transporte de pas- acabou... E l a s expressam tudo o que poderia ter s i d o , m a s n ã o
sageiros, c o m serviços junto àqueles que t ê m casa s e c u n d á r i a e foi, a tristeza de toda a existência que só existe q u a n d o cessa
p a s s a m as férias e m M a m a n g u á . de ser outra coisa, o pesar de não v i v e r na p a i s a g e m e no tem-
O tempo mercantil, m a i s r á p i d o , é t a m b é m o do correr a t r á s po evocados pela m ú s i c a . E n f i m , o desejo de algo c o m p l e -
da s a r d i n h a e do c a ç ã o , símbolos da mercadoria. N e s s e tempo, a tamente diferente do m o m e n t o presente, d e f i n i t i v a m e n t e
natureza já n ã o é m a i s marcada pela " d á d i v a " , m a s pela e x t r a ç ã o inacessível o u irremediavelmente perdido: o Paraíso. E s q u e -
da mercadoria de seu ambiente natural. Este se transforma tam- cer-se disso é desconhecer que a vida do h o m e m moderno está
b é m e m e s p a ç o de c o m p e t i ç ã o c o m outros barcos que b a t a l h a m cheia de mitos s e m i - o l v i d a d o s , de hierofanias decadentes, de
pelo m e s m o peixe. A s políticas governamentais, c o m o a institui- símbolos abandonados. A d e s s a c r a l i z a ç ã o incessante do ho-
ç ã o do defeso, p e r í o d o e m que n ã o se pode pescar certas espécies, m e m m o d e r n o alterou o conteildo da sua v i d a espiritual; ela
acelerou o tempo mercantil. É preciso pescar o m á x i m o antes que n ã o r o m p e u , no entanto, com as matrizes de sua i m a g i n a ç ã o :
v e n h a o defeso. todo u m resto de mitologia sobrevive e m z o n a s h u m a n a s m a l
A instituição do " d e f e s o " traz consigo a i m a g e m d a a m e a ç a controladas" (p.09).
d a d i m i n u i ç ã o do peixe no M a r G r o s s o , já v i v i d a no M a r - d e D e n -
tro pelos pequenos pescadores, r e f o r ç a n d o a " c a r e s t i a " que ca- T a m b é m , s e g u n d o moradores m a i s velhos, nesse tempo os
racteriza os tempos de hoje quando comparados ao "antigo", o "antigos" t i n h a m maior conhecimento do m a r que os jovens:
tempo da a b u n d â n c i a .
O " t e m p o da fartura" que existiu e m M a m a n g u á até a d é c a d a "Antigamente eles conheciam tudo... O povo conhecia o tempo
de 40 se constitui n u m referencial simbólico importante p a r a os pelos astros, quer dizer, quando olhavam uma estrela, o sol, olhava
moradores m a i s antigos. O s moradores mais velhos têm s a u d a - na lua, eles sabiam que vento ia dar... Eles observavam o tempo, era
des desse tempo e m que se dizia haver a b u n d â n c i a de tudo: um pessoal de muita prática. Hoje o mais novo tem aparelho, tem
barómetro" (Seu Z i z i n h o , Ponta do L e ã o ) .
"Essa região produzia muito, o mais forte era banana, cana-de-
açúcar, café, feijão, farinha... Era o mais forte. Depois vinlia a criação. N a m e m ó r i a local, o tempo antigo era t a m b é m o tempo da
Tinha também muito comércio. Cada canoa de voga levava pra An- união, onde n ã o havia d i v i s ã o entre católicos e protestantes, n ã o
gra 40 sacos de farinha, 2 a 3 barris de pinga. Eu mesmo fazia cO' havia turistas, u m tempo de maior harmonia.
mércio, trazia banha de porco, que antigamente era isso que usava.
Também levava muito peixe... Hoje até farinha tá vindo dc fora. A "Antes o povo era mais unido. Agora não, agora está dividido"
situação é de calamidade..." (Seu Zizirúio, Ponta do L e ã o ) . (Seu Z i z i n h o , Ponta do Leão).
"Quando vem o padre aí o pessoal (católico) nem na igreja não "A Roda de Chiba era a mais divertida, e o pessoal batia o pé,
vão. Mas ali nos crente, eles vão em qualquer hora. Marcou, ói, tal sapateando no ritmo, fazendo repicado com o pé no chão batido. Já no
dia tem culto na casa de fulano, aí vão todos. Agora qui, os católicos Caranguejo, batia-se o pé e as mãos, quando se cantava: Olha a mão,
não... Eles fazem uma igreja, vão pregando o Evangelho, a pessoa diz olha o pé" (Seu Licínio, C o s t ã o ) .
que ficando crente se salva, ai o pessoal vai, acredita naquilo. Eles
dizem assim: "ói, se vocês quiséficá na igreja levanta a mão prá cima. A i n d a persistem a l g u m a s festas tradicionais, c o m o a festa d e
E a pessoa levanta a mão, aí fica crente..." (morador católico). Reis.
O tempo antigo é lembrado t a m b é m como u m tempo d e festas "A Folia de Reis a gente ainda faz ainda porque eu, meu sobri-
que garantiam a solidariedade e a união d o s moradores, todos nho, meu primo, cantamos. Quando chegamos na casa, cantamos:
católicos. 'Se quiser abrir a porta, abra já sem demora, pois voismecê num sabe
M a y n a r d A r a ú j o (1973) descreve o folclore litorâneo d o S u - quanto custa andá de noite pra fora' " (Seu Licínio, C o s t ã o ) .
deste c o m o pertencente à área do ubá (canoa) e m c o n t r a p o s i ç ã o à
área d e jangada no Nordeste. Muitas das d a n ç a s e festas mencio- S e g u n d o u m morador (católico), h a v i a t a m b é m a festa d e São
nadas pelos moradores s ã o c o m u n s ao litoral e ao V a l e do Paraíba. Roque, d e S ã o Benedito, São J o ã o .
G r a n d e parte d a s festas profanas e religiosas tradicionais, l i -
gadas ao catolicismo, no entanto, n ã o existem mais. E n t r e as fes- "A festa era organizada. Tinha os festeiros, o ajudante, tinha o
tas religiosas que desapareceram está a Bandeira d o D i v i n o ' . juiz, o ajudante de juiz. Tinha tudo, todo mundo ajudava um pouco
e fazia aquela festança e o povo ia tudo naquele local. Aí tinha fogos,
"Antes tinha também a Bandeira do Divino que começava no comida, bebida... Mas hoje acabou".
Pouso da Cajaãm, passava por essas praias todas e chegava a Parati.
A bandeira era enfeitada com flô, com a pombinha do Divino, que Por outro lado, existe a crítica dos bailes de hoje, diferentes
cantava de casa em casa. O pessoal ouvia a cantoria e dava uma daqueles d e antigamente, q u a n d o h a v i a "respeito".
oferta pro Divino. O pessoal só bebia quando pousava numa casa,
pra fazer o baile" (Seu Licínio, C o s t ã o ) . "Depois que entrou essas dança nova, o sinhô não vai leva sua
esposa, suafúha num baile desses, tem muita bebedeira. Antigamen-
Entre as m ú s i c a s e d a n ç a s que desapareceram, m a s s ã o l e m - te era respeito, respeitava os mais velhos" (morador católico).
b r a d a s pelos m a i s velhos, está o Caranguejo e a R o d a d e C h i b a ^:
O f i m dessas festas está associado ao crescimento d o n ú m e r o
de igrejas crentes e m M a m a n g u á , que preferem organizar s u a s
' M a y n a r d de Araújo afirma que as festas do Divino, no litoral leste de S ã o
Paulo, se d a v a m após a safra da tainha, no contrário d c outras regiões p r ó p r i a s festas religiosas:
interioraneas nas quais se seguiam ao ciclo agrícola.
- Roda d c Xiba o u Chiba, também chamada de Cateretê, é comandada por "Tem muita gente que passou pra Assembleia de Deus, deixando
139
dois violeiros, denominados d c mestre c contra-mestre. O primeiro esco-
de cantar essas coisas. Se a gente cantar na casa deles, não acham
lhe a " m o d a " a ser cantada, fazendo o contra-mestre n segunda voz. T a m -
bém há o "tirado de sapateado" que comanda o sapateado. (Maynard de ruim, mas cantar, não cantam" (Seu Licínio, C o s t ã o ) .
Araújo, 1973)
SIMBOLISMOS, REPRESENTAÇÕES E FESTAS
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE
C o m o pode ser visto pela Tabela 2 8 grande parte da p o p u l a ç ã o se a c h a m hoje confrontados com mitos modernos conservacionistas
participa hoje somente de festas católicas (Santa C r u z , p a d r o e i r a relativos às áreas naturais protegidas. C o n s i d e r a n d o - s e a
d o C r u z e i r o ) e festas evangélicas. U m a porcentagem significativa i m p o r t â n c i a da simbiose homem-ciclos naturais existentes n a s
n ã o participa de festas ( 2 5 , 7 % ) e somente 1 7 , 1 % dos chefes de culturas tradicionais, a n o ç ã o de E s t a ç ã o Ecológica que n ã o l e v a
MARGEM TOTAL REIS S. CRUZ EVANG. de u m mito moderno: o d a natureza intocada e intocável, p r ó p r i o
da sociedade urbano-industrial sobre os mitos e s i m b o l i s m o s das
Continental 10 — 30,0% 10.0% sociedades tradicionais. N e s s a linha de pensamento, o c h a m a d o
" t u r i s m o e c o l ó g i c o " , que se iniciou recentemente na r e g i ã o , está
Fundo do Saco 05 — 20.0% —
t a m b é m i m b u í d o desse mito moderno da natureza s e l v a g e m , a
Peninsular 20 5.0% 40.0% 15.0% ser d e s v e n d a d a por u n s poucos privilegiados.
2
Cisternas dc
>\ccsso à T^erra c aos
f^ecursos fSjaturaís
Tabela 29 - Situação da Posse da Terra em Porcentagem O importante a se ressaltar é que muitas das terras s ã o consi-
deradas de uso c o m u m , na m e d i d a e m que as mais distantes s ã o
DONO DONO SEM POSSE
MARGEM tidas como " s e m d o n o " . O terreno tido enquanto posse i n d i v i -
DA POSSE DA CASA E CASA
d u a l o u familiar é sobretudo aquele c o n t í g u o ao mar, onde está a
Continental 37,5% 0% 62,5% casa. Q u a n d o essa posse é v e n d i d a costumam-se anexar terras
"sem v a l o r " , aquelas que se encontram nas encostas acima das
Fundo do Saco 66,8% 16.6% 16,6%
casas, onde se fazia agricultura. Daí se explicam as marcas das
Peninsular 22.2% 44.4% 33.3% d i v i s a s dos terrenos dos turistas, r o ç a d a s e l i m p a s , que s o b e m as
encostas dos morros as quais anteriormente n ã o existiam, e que
TOTAL 34.5% 28.0% 37,6%
hoje p o d e m ser vistas de barco, ao se adentrar o Saco d e M a -
m a n g u á . O s c a i ç a r a s n ã o c o s t u m a m marcar suas posses c o m cer-
E m a l g u n s casos, como ocorreu na Praia G r a n d e , os antigos cas ou "linhas de divisa". ...........
moradores, a p ó s v e n d e r e m suas posses na praia foram m o r a r N o entanto, a questão do acesso aos recursos naturais n ã o se
morro a c i m a . O m e s m o parece ter ocorrido na Praia R o m a n a e na restringe unicamente à terra, mas t a m b é m a territórios de uso
Praia das A n t a s , na M a r g e m Peninsular. c o m u m como os m a n g u e z a i s , os caxetais , os bancos de b i v a l v e s
A l g u n s dos grandes especuladores imobiliários de M a m a n g u á nos baixios e o p r ó p r i o corpo de á g u a . Esses e s p a ç o s s ã o tradi-
p e r m i t e m que os moradores dos quais c o m p r a r a m as posses per- cionalmente usados pelos caiçaras de forma c o m u n i t á r i a . Daí, a
m a n e ç a m e m suas casas, e m contrato de tempo determinado (cerca r e a ç ã o negativa demonstrada contra os "coletores" de carangue-
de 4 anos, r e n o v á v e i s ) . Estes s ã o chamados, c o m frequência, a jo que v ê m de fora predar esses recursos do m a n g u e .
testemunhar e m juízo, e m favor do "grileiro", q u a n d o este a v a n - O estabelecimento da Reserva Ecológica tem u m efeito d u p l o
ça as d i v i s a s sobre outras posses. C o m o esses moradores v i v e m sobre essas formas tradicionais de a p r o p r i a ç ã o do e s p a ç o c o m u -
" d e f a v o r " do grileiro, dificilmente se r e c u s a m a ir ao c a r t ó r i o nitário. D e u m lado, pode i m p e d i r a a p r o p r i a ç ã o desses e s p a ç o s
testemunhar e m favor da " g r i l a g e m " . pela e s p e c u l a ç ã o imobiliária, e a e x p r o p r i a ç ã o dos moradores ao
O s moradores continuam plantando suas r o ç a s nos terrenos d e cl a rá - l o s "area non-aedificandi". D e outro lado, trata-se da i m p o -
mais elevados e mais afastados da praia, considerados terrenos sição de u m e s p a ç o territorial público (o da Reserva) sobre os es-
sem dono. E s s e s n ã o s ã o considerados "posses i n d i v i d u a i s " , m a s p a ç o s c o m u n i t á r i o s , restringindo o uso dos recursos naturais.
são o c u p a d o s durante a l g u m tempo e abandonados q u a n d o a N e s s e sentido, essa s u p e r p o s i ç ã o é vista pelos moradores como a
p r o d u t i v i d a d e d a terra decai. Esses, depois de a l g u n s anos, s ã o u s u r p a ç ã o de seus direitos de acesso aos recursos, enquanto co-
l i m p o s de novo para plantio. m u n i t á r i o s . E s s a u s u r p a ç ã o é tanto mais grave q u a n d o se justifi-
E s s e uso c o m u n a l das terras para agricultura se reflete nos ca essa c r i a ç ã o de e s p a ç o s territoriais públicos e m benefício d a
depoimentos dos moradores: " c o n s e r v a ç ã o " , " d a biodiversidade" ou dos "interesses n a c i o n a i s "
frequentemente confundidos com a necessidade de lazer das po-
"Quantas pessoas já vieram e plantaram no mesmo lugar que p u l a ç õ e s urbanas. A s comunidades tradicionais têm t a m b é m u m a
outro tinha plantado, depois que o mato prosperou. Depois aquele r e p r e s e n t a ç ã o simbólica dos e s p a ç o s que lhes fornecem os meios
que tinha plantado saiu e entrou um outro para fazer sua roça. Nun- de subsistência, os meios de trabalho e p r o d u ç ã o e as c o n d i ç õ e s
ca nenhuma reclamação houve" (Dito, do Baixio). materiais d e sua r e p r o d u ç ã o social e simbólica. A a m e a ç a d a ex-
o Nosso L U G A R V I R O U PARQUE SISTEMAS DE A C E S S O À T E R R A
I B A M A r e p r i m i u recentemente os arrastos, durante o p e r í o d o d e tem mais terra? Porque, atitigajuente, quem não era dono, ia plantar
defeso, a disponibilidade de peixes para a pequena pesca a u m e n - no terreno de outro, do Estado. Um terreno que não tinha dono, mas
tou visivelmente. o nego vinha e fazia a casa dele, fazia uma posse. Agora, não entra,
O ataque d o s mosquitos foi t a m b é m citado, particularmente quem vendeu e saiu não pode voltar mais" (Seu Z i z i n h o , Ponta do
pelos moradores p r ó x i m o s do mangue, como é o caso do F u n d o Leão).
do Saco
O problema fundiário, particularmente a e x p u l s ã o de m o r a - U m a q u e s t ã o particular d i z respeito ao p a p e l d e s e m p e n h a d o
dores de s u a s terras, e o consequente desvio dos c a m i n h o s tradi- pelos turistas e a í as opiniões se d i v i d e m , como se p o d e verificar
cionais por haristas que c o m p r a r a m posses foi lembrado como u m pela tabela abaixo:
dos problemas sérios do lugar. E l e parece ser mais importante na
M a r g e m P e n i n s u l a r e Continental que no F u n d o do Saco, pois a í Tabela 31 - Opinião sobre Turismo
mercadoria tem que vir de fora, mas com o custo de vida do jeito que
está, o povo do lugar não tem condições de comprar" (Seu Z i z i n h o ,
Ponta do L e ã o ) .
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O s moradores, apesar de perceberem os problemas e s u a gra-
v i d a d e , n ã o sabem a q u e m recorrer para resolvê-los. Q u a s e sem-
pre colocam a causa de sua carência e pobreza na falta d e interes-
se d o prefeito e d e outras autoridades e m resolvê-los. O Saco d e
M a m a n g u á sequer tem u m vereador na C â m a r a d e Parati, e nas
últimas eleições muitos preferiram votar n u m grande comercian-
/ \a g e o l ó g i c a d a
te d e pescado e dono de barco, residente na sede.
Juatinga: uma N o v a froposta
Em 1992, foi c r i a d a a A S S O C I A Ç Ã O DOS M O R A D O R E S D E M A M A N -
sas p o p u l a ç õ e s n ã o está clara e assegurada, d e i x a n d o lugar a Tabela 33 - Opiniões sobre a R e s e r v a Ecológica da Juatinga
muitas d ú v i d a s , sobretudo para os moradores.
Pelas entrevistas (Tabela 32), percebe-se que somente 11,4% MARGEM TOTAL BOM SEM RESR NÃO SABE
dos chefes d e família têm alguma n o ç ã o do que significa u m a
Continental 10 11.1% 1 1,1% 77,8%
R e s e r v a E c o l ó g i c a , e a grande maioria (85,7%) n ã o sabe para q u e
ela serve: Fundo do Saco 05 0.0% 0,0% iOO.0%
por p o p u l a ç õ e s indígenas e outros grupos tradicionais que desen- " A c o m p o s i ç ã o e distribuição presente das plantas e arú-
v o l v e m aí formas de a p r o p r i a ç ã o c o m u n a l dos recursos naturais m a i s d a floresta ú m i d a são o resultado da i n t r o d u ç ã o de e s p é -
e seus e s p a ç o s . A t r a v é s d o conhecimento tradicional do m u n d o cies e x ó t i c a s , c r i a ç ã o de novos habitats e m a n i p u l a ç ã o conti-
natural, essas p o p u l a ç õ e s foram capazes de criar sistemas enge- n u a d a pelos povos d a floresta durante milhares d e anos (...).
nhosos d e manejo d e flora e fauna, protegendo, c o n s e r v a n d o e E m resumo, essas florestas p o d e m ser consideradas artefatos
até potencializando a diversidade biológica. A i m p o s i ç ã o de m i - culturais h u m a n o s . A atual biodiversidade existe, na África,
tos m o d e r n o s das p o p u l a ç õ e s urbanas, como a d o s " p a r a í s o s " não apesar d a h a b i t r a ç ã o h u m a n a , mas por causa dela (...). A
naturais intocados, sobre mitos antropomórficos, p r ó p r i o s das po- relevância deste fato para a planificação da p r o t e ç ã o e manejo
p u l a ç õ e s tradicionais, tem gerado u m a série de conflitos de difícil das reservas biológicas é que se excluirmos os seres h u m a n o s
s o l u ç ã o , u m a v e z que a legislação p r e v ê a e x p u l s ã o o u transfe- do uso de grandes á r e a s de florestas, n ã o estaremos protegen-
rência dos moradores de á r e a s transformadas e m á r e a s de con- do a biodiversidade que apreciamos, mas a alteraremos signifi-
s e r v a ç ã o restritivas. cantivamente e provavelmente a d i m i n u i r e m o s ao longo d o
No caso d a c r i a ç ã o d a R E S E R V A E C O L Ó G I C A D A J U A T I N G A , apesar
t e m p o " (p. 208).
natural, da i m p o r t â n c i a dos processos naturais e n ã o de princí- n ó m i c a s e ambientais, privilegiando-se aquelas alternativas eco-
pios imanentes aos p r ó p r i o s ecossistemas. A s n o ç õ e s de equilí- lógica e socialmen-te mais adequadas. N e s s e sentido, as á r e a s n a -
brio, de h o m e ó s t a s e , p r ó p r i o s da ecologia enquanto ciência, n ã o turais protegidas e m que v i v e m p o p u l a ç õ e s tradicionais p o d e r ã o
p o d e m ser analisados enquanto processos estáticos, sobretudo, ser transformadas n u m dos exemplos v i v o s d a r e p r o d u ç ã o de so-
q u a n d o se d e v e incorporar na análise as constantes i n t e r v e n ç õ e s ciedades o u c o m u n i d a d e s locais sustentáveis, exemplos de u m a
dos homens. N a maioria dos ecossistemas c h a m a d o s " n a t u r a i s " , relação sadia entre o h o m e m e a natureza.
a a ç ã o h u m a n a é crucial, seja para manter os processos naturais
essenciais seja para perturbá-los, muitas vezes de forma desas-
trosa e irreversível.
E s s a g e s t ã o d e m o c r á t i c a deve incorporar n ã o somente elemen-
tos da ciência m o d e r n a , da etnociência, mas constituir-sc n u m
processo de n e g o c i a ç ã o que leve e m conta n ã o somente as neces-
sidades nacionais de c o n s e r v a ç ã o dos ecossistemas, mas as aspira-
ç õ e s locais, os modos de v i d a e, acima de tudo, a c o n t r i b u i ç ã o
histórica das p o p u l a ç õ e s tradicionais para a c o n s e r v a ç ã o a m b i -
ental. N ã o é exagerado afirmar que, na grande maioria dos casos,
a efetiva i n c o r p o r a ç ã o das p o p u l a ç õ e s tradicionais no processo
d e m o c r á t i c o de manejo ambiental resultará na descoberta de ali-
ados locais firmes e constantes para a c o n s e r v a ç ã o contra grupos
especuladores urbanos e outros devastadores da biodiversidade.
Para tanto, é necessário m u d a r radicalmente a c o n c e p ç ã o auto-
ritária dos planos de manejo no Brasil, cujo enfoque p r o v é m do
p e r í o d o a u t o r i t á r i o , quando grande parte das u n i d a d e s de con-
s e r v a ç ã o foram criadas. O s chamados planos de manejo n ã o de-
v e m m a i s serem tidos como produtos finais realizados por u m
grupo restrito de " i l u m i n a d o s " , cientistas ou não, mas u m processo
cujos produtos sejam constantemente avaliados, redimensionados
e m e s m o alterados e m função de u m diálogo permanente c o m as
p o p u l a ç õ e s , sobretudo, a de moradores.
Por outro lado, essas culturas tradicionais n ã o p o d e m ser v i s -
tas como estáticas. É sabido que elas s ã o capazes de incorporar
elementos culturais provenientes de outras culturas o u regiões
dentro de u m marco cultural p r ó p r i o . C o m o , e m grande parte
dos casos, tratam-se de p o p u l a ç õ e s pobres, é fundamental esta-
belecerem-se programas de melhoria das c o n d i ç õ e s de v i d a , por
meio de atividades c o m p a t í v e i s com as especificidades socioeco-
o N o s s o LuiiAK Viií(.)L P A R Q U I
11
usao
A l g u n s conhecimentos da p o p u l a ç ã o local sobre artes de pesca lado, as atividades tradicionais baseadas n o uso dos recursos da
sequer foram devidamente estudados, como é o caso dos "pesquei- z o n a estuarina e da mata p o d e r ã o ser drasticamente r e d u z i d a s
r o s " o u " c e r c a d a s " , que s e r v e m para "cevar o peixe", atraindo ou m e s m o proibidas, como sucede e m outras u n i d a d e s de prote-
certas espécies de pescado para o conjunto de galhos enfiados no ç ã o ambiental restritivas. O s moradores dificilmente e n t e n d e m
substrato do estuário. É interessante se observar que o desconheci- porque n ã o p o d e r ã o mais utilizar os recursos naturais do m a n -
mento dessas práticas tecnológicas tradicionais levou, gue, d a caixeta, da mata, base de seu modo de v i d a , ao passo que
recentemente, técnicos e pesquisadores a propor a c o l o c a ç ã o de os visitantes p o d e r ã o continuar u s u f r u i n d o das belezas naturais
"atratores de p e i x e s " formados por pneus, c o m o m e s m o objetivo de u m a área p a r a d i s í a c a . E v i d e n c i a - s e , nesse processo, d u a s v i -
das cercadas tradicionais. Deve-se notar que a proposta da "gente sões do " m u n d o n a t u r a l " , lastreadas por dois tipos de mito: o
de fora" de colocar os atratores artificiais contou com forte oposi- mito m o d e r n o de u m a natureza intocável, p a r a d i s í a c a — trans-
ç ã o local, principalmente por parte dos pescadores que pra ticam a formada e m parques naturais e reservas e c o l ó g i c a s , propostas
pesca ilegal do c a m a r ã o e de outros pescadores que temem perder pelos conservacionistas urbanos — , e o mito a n t r o p o m ó r f i c o —
neles as suas redes. Muito provavelmente, o incentivo às "cercadas" p r ó p r i o das p o p u l a ç õ e s p r é - u r b a n a s e pré-industriais que m a n -
s e r i a m a i s d e s e j á v e l , m a s n e c e s s i t a r i a de u m e s t u d o m a i s têm c o m o m u n d o natural u m a relação diferenciada, c o m p r á h -
a p r o f u n d a d o sobre s u a s características t e c n o l ó g i c a s e p r á t i c a s cas culturais simbólicas distintas do m u n d o urbano.
culturais. N a verdade, o E s t a d o acaba i m p o n d o sobre os "territórios de
E s s e conhecimento tradicional t a m b é m se revela pela grande uso c o m u m " , onde os moradores locais quase n ã o p o s s u e m o tí-
v a r i e d a d e de espécies de mandioca e outras plantas u s a d a s nas tulo de propriedade p r i v a d a , u m a outra forma de e s p a ç o territo-
" r o ç a s " , que r e d u z e m o perigo de ataque de d o e n ç a s que pode- rial, o público (parques e reservas), baseado e m r a z õ e s como a
r i a m d i z i m a r a p l a n t a ç ã o , se ela fosse constituída por plantas de biodiversidade, a c o n s e r v a ç ã o do m u n d o natural e a necessidade
u m a s ó variedade. de se proteger os " ú l t i m o s remanescentes da Mata A t l â n t i c a " .
Por outro lado, o m o d o de v i d a tradicional, dentro do q u a d r o N a Reserva Ecológica da Juatinga, a s s i m como e m outras á r e -
d a p e q u e n a p r o d u ç ã o mercantil, está sendo alterado por i n ú m e - as naturais protegidas, onde há moradores que v i v i a m aí antes da
ros fatores mencionados neste trabalho, como a i n t r o d u ç ã o da c r i a ç ã o do parque, os conflitos n ã o t a r d a r ã o a aparecer, c o m o na
pesca embarcada, a chegada do turismo ocasional e dos turistas E s t a ç ã o Ecológica da Juréia-Itatins (SP). A s o l u ç ã o desses conflitos
c o m casas s e c u n d á r i a s no local. C o m o foi visto, a a p r e c i a ç ã o dos exige u m a outra c o n c e p ç ã o de parques e reservas mais adapta-
benefícios o u dos prejuízos trazidos pelo turismo é c o n t r a d i t ó r i a , das à s c o n d i ç õ e s do Terceiro M u n d o , e u m a estratégia de nego-
d e p e n d e n d o da v i n c u l a ç ã o maior o u menor dos moradores e m ci a çã o por parte das autoridades e administradores que leve e m
r e l a ç ã o aos turistas, vistos por alguns como prejudiciais e por conta a c o n t r i b u i ç ã o que as p o p u l a ç õ e s tradicionais p o d e m dar à
outros c o m o benéficos ao local. c o n s e r v a ç ã o da bio-sócio-diversidade. Essa n e g o c i a ç ã o d e v e pas-
A recente instituição da Reserva Ecológica E s t a d u a l da Juatin- sar necessariamente pela não-expulsão dos moradores tradicionais
ga, à qual pertence a M a r g e m Peninsular do Saco d c M a m a n g u á , e pelo respeito ao conhecimento a c u m u l a d o pelos moradores tra-
p o d e r á v i r a alterar significativamente o m o d o de v i d a da p o p u - dicionais sobre os ecossistemas e m que v i v e m e ao seu m o d o de
lação local. Se, de u m lado, a d e c l a r a ç ã o e i m p l e m e n t a ç ã o dessa v i d a . A o c u p a ç ã o do e s p a ç o d e v e ser feita e m consulta direta com
" á r e a natural protegida" p o d e r á reduzir a especulação imobiliária, os moradores. O s c h a m a d o s "planos de m a n e j o " d e v e m perder
na m e d i d a e m que novas c o n s t r u ç õ e s s ã o proibidas, por outro seu c a r á t e r autoritário, baseado exclusivamente no c h a m a d o "co-
o Nosso LUGAR VIROU PARQUE
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