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27/03/2019 “A naturalização da branquitude como parâmetro de vida”

C& AMÉRICA LATINA › Annotations

“A naturalização da branquitude
como parâmetro de vida”
MARCH ,

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27/03/2019 “A naturalização da branquitude como parâmetro de vida”

C&AL: Sua produção artística teve início com performances utilizando


materiais de um contexto colonial ou ritualístico, mas também neutralizados
de tão inseridos no cotidiano, como o açúcar. Qual a importância na escolha
desses materiais neste processo que você chama de gestos arqueológicos para
repensar como a história é representada?

Tiago Sant’Ana: Os materiais que utilizo nos trabalhos nunca são ingênuos.
Eles têm uma significação histórica. Quando retomo seu uso é para tratar,
em maior ou menor grau, da continuidade das relações coloniais na
contemporaneidade. A escolha parte quase sempre da minha proposta em
realizar uma disputa de narrativa sobre o que a história oficial falou a
respeito deles e o que uma mirada mais afrocentrada pode propor. Quando
utilizo o açúcar, é para destrinchar como esse material orgânico, durante
séculos, deu sustentação aos sistemas de escravização e exploração da
população negra. Essas relações se atualizam na contemporaneidade – seja
porque as pessoas negras continuam sendo associadas exclusivamente a
serviços domésticos ou de força física; seja porque a população

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afrodescendente continua sendo encarcerada em massa e exterminada pela


máquina do Estado. Para mim, esses materiais possuem a capacidade de
retomar debates que muitas vezes não são discutidos como deveriam.
Naturalizamos o uso do açúcar no cotidiano, mas quando fazemos uma
digressão para examinar o que esse alimento significou historicamente para o
Brasil, vamos perceber que denota violências, extermínios, genocídios e, de
maneira oposta, uma naturalização da branquitude como parâmetro
aceitável de vida e de organização social.

C&AL: Em sua última exposição, Baixa dos Sapateiros, você insere também
esculturas feitas com sapatos e livros utilizando folha de ouro. Como foi
iniciar esse outro processo de representação além das performances?

TS: Baixa dos sapateiros foi uma exposição que tratou de como os sapatos
foram um símbolo precário de uma liberdade apenas anunciada para a
população negra, mas que nunca chegou completamente para nós. E nunca
chegou, porque a própria ideia de cidadania é um conceito excludente, que

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não se adequa às formas de vida não-eurocêntricas. Quis expandir meu


universo de experimentação, observar como essa busca por cidadania, muitas
vezes exaustiva, nos afeta de diversas maneiras. Foi a primeira vez que fiz
esculturas não-efêmeras. Numa das obras, por exemplo, fiz réplicas de canas-
de-açúcar em gesso, que partiam do meu desejo de fossilizar esse material
orgânico, sempre presente no meu trabalho já depurado, em forma de açúcar
cristal. Tornar fóssil essas canas era uma vontade de pensar sobre como as
relações de assimetria provocadas pelos sistemas de exploração da cana-de-
açúcar perduram. É uma maneira de chamar atenção para a conservação de
algo que perece com o tempo enquanto alimento, mas permanece enquanto
ferida.

C&AL: A série Sapatos de Açúcar combina as duas pesquisas: a primeira


sobre a cana-de-açúcar e a mais recente sobre o simbolismo dos sapatos no
período colonial. Como esse encontro entre as duas investigações se deu em
seu trabalho?

TS: Essa série abria a exposição Baixa dos sapateiros. Era como se você saísse
da minha outra exposição, Casa de purgar, continuasse entendendo minha
visão sobre a história do açúcar, mas fosse um pouco além no sentido de
perceber no que esse sistema resultou para as pessoas negras. Em Casa de
purgar, eu pesquisava sobre o trabalho negro e permanências de sistemas de
exploração. Visitei ruínas de antigos engenhos de açúcar no Recôncavo da
Bahia, a região onde nasci. E, nessas construções arruinadas, realizei uma
série de ações que remetem a relações de trabalho, a exemplo de passar
roupas e peneirar. O açúcar aparecia com abundância, diametralmente
oposto ao significado dele como “ouro branco” no período colonial. Então,
almejei fazer esses sapatos de açúcar como um duplo vínculo. Primeiro, para
prestar atenção no objeto sapato em si, mas feito de um material que foi a
mola propulsora da branquitude para explorar as pessoas negras; e, depois,
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para simbolizar a fragilidade dessa liberdade. Porque os sapatos de açúcar,


nas fotografias, estão na iminência de serem dissolvidos na água do mar.

C&AL: Esse é outro aspecto que chama atenção nessas imagens: o mar
como o ponto de conexão com a rota das navegações – um tema que remete
à exposição Histórias Afro-Atlânticas, da qual também você participou. Qual
a importância dessa mostra para o seu trabalho, no sentido de conectar com
a história da escravidão de outros países?

TS: Histórias Afro-Atlânticas foi uma mostra histórica e fiquei muito


satisfeito em poder fazer parte e colaborar desse momento de inflexão para a
comunidade negra que está unida e, concomitantemente, separada por esse
território geográfico, mas também imaginário que é o Atlântico. Apresentei
um trabalho chamado Apagamento , um vídeo de pouco mais de um
minuto, que mostra a palavra “Cabula” grafada em minha cabeça. Aos
poucos, com o crescimento do meu cabelo, essa palavra vai desaparecendo.
Fotografei-me dia após dia, dentro do meu próprio quarto, adotando três
posições que remetem a um fichamento fotográfico feito pela polícia. O
trabalho parte da chacina de  jovens negros executados pela polícia em
Salvador, em , no bairro do Cabula – um crime nunca solucionado pela
Justiça, porque essas vidas sequer são consideradas vidas para o sistema
judicial brasileiro. Ao mesmo tempo, Cabula foi um antigo quilombo em
Salvador, um lugar de resistência, insurgência, onde o acesso era complicado
e, por isso, um lugar propício para servir como fortaleza e também como um
lugar sagrado por sua natureza exuberante e densa naquela época. Ainda hoje
o bairro carrega, em suas imediações, comunidades afrorreligiosas
importantes que resistiram a todo processo de extermínio e apagamento.

C&AL: Como você vê sua produção entre os diferentes entendimentos sobre


a arte afro-brasileira?
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TS: Esse conceito é algo ainda em transformação e tensão. Primeiro,


precisamos pensar no que seria preponderante para se dizer “arte afro-
brasileira.” A temática das obras? A origem de quem produz? Ambos os
fatores? As exposições que reúnem poéticas artísticas negras brasileiras estão
explodindo no país, creio que muito porque há uma efervescência necessária
sobre essa discussão, mas também pela própria conquista de outros espaços
pela comunidade negra pós-políticas afirmativas. É necessário falar muito
ainda sobre a atualização dos acervos das instituições. Não é um “favor”
colocar mais pessoas negras nas artes, é uma imensa dívida. No meu
entendimento, a questão da negritude dentro da arte não é uma temática. É
uma posição política e uma disputa de narrativa, é contrariar as estatísticas e
os estereótipos. Inclusive, os estereótipos sobre trabalhos produzidos por
artistas negros, que ocasionalmente acabam ficando sob a pecha de “naif.”
Minha obra, por exemplo, apesar da minha imagem de homem negro, que é
geralmente visto de maneira muito embrutecida, é um trabalho muito
delicado. Fala sobre violência, mas não tenta reproduzir imagens de
violência. Porque já somos constantemente violentados. Além disso, as
minhas performances têm um esforço meditativo que tenta exatamente
purgar essas memórias e histórias de dor, mas nunca esquecê-las. Nesse
contexto, me identifico muito com um grupo de artistas que tenta reescrever
essa história do Brasil e da arte a partir de outras experiências de vida
apagadas pela oficialidade branca colonial eurocêntrica.

Nathalia Lavigne é jornalista, pesquisadora e curadora, mestre em Teoria Crítica


e Estudos Culturais pela Birkbeck, University of London, e doutoranda pela
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
(FAUUSP). Atualmente é pesquisadora visitante da e New School, em Nova
York. Na USP, integra o grupo de pesquisa Estéticas da Memória no Século  e

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desenvolve um trabalho sobre colecionismo digital e circulação de imagens de


obra de arte no Instagram.

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