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Religare 7 (1), 51-57, Março de 2010

EPICURO, MARX E A CRÍTICA DA RELIGIÃO: ALGUMAS NOTAS


EPICURE, MARX AND RELIGION’S CRITICISM: SOME NOTES

Romero Venancio
Universidade Federal de Sergipe – UFS
______________________________________________________________________________

Resumo: O nosso trabalho tem por objetivo apresentar a leitura que Marx faz da obra de
Epicuro e o significado que teve esse “primeiro materialismo” para o pensador alemão. O nosso
introdutório trabalho esta dividido assim: um breve comentário a vida de Epicuro e a sua
filosofia e em seguida uma apresentação da leitura que Marx faz de Epicuro no seu trabalho
inicial de doutoramento.

Palavras-chave: Epicuro; Marx; Materialismo; Iluminismo

Abstract: Our work aims to present Marx’s reading of Epicure work and the meaning of this
“first materialism” to the German thinker. Our introductory work is divided in this way: a brief
commentary on Epicure’s life and philosophy followed by a presentation of Marx’s analysis
about Epicure on his doctorship’s initial work.

Keywords: Epicure; Marx; Materialism; Iluminism


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Introdução Epicuro foi um grego nascido na ilha de


Samos em 341 a. C. Em aproximadamente, 306,
A primeira obra de Marx, intitulada A Epicuro abriu seu “Jardim”, sede da sua escola
diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito filosófica e que até sua morte em 271 a. C. havia-se
e Epicuro (escrita entre 1840- 1841), embora partindo tornado influente em todo mundo grego. Epicuro viveu
de uma visão marcadamente hegeliana, já começa a o trágico período que se seguiu à hegemonia
transcender a marca do idealismo alemão ao levantar a macedônia no qual o império de Alexandre foi
questão do conflito entre filosofia especulativa e disputado pelos seus sucessores; uma época em que a
materialismo. A nossa leitura do trabalho de Marx atividade política parecia particularmente ineficiente.
sobre Demócrito e Epicuro é a de que ela representou Daí ele pregar aos seguidores uma espécie de
um esforço de reconciliação com as implicações da “materialismo contemplativo” (leitura moderna da
“dialética materialista” do antigo filósofo grego postura política e epistemológica epicurista) e no qual
Epicuro, tanto do ponto de vista do sistema filosófico podiam-se perceber implicações práticas mais radicais.
hegeliano quanto, até certo ponto transcendendo este A filosofia de Epicuro teve grande impacto no
último. Ainda percebemos uma tentativa indireta de pensamento da antigüidade até a era romana, mas sua
haver-se com o problema que a tradição materialista obra havia quase que se perdido durante a idade média,
dos iluminismos francês e inglês, com forte inspiração quando ele e seus seguidores foram incluídos entre os
em Epicuro, suscitou para a filosofia hegeliana. Um principais adversários heréticos do cristianismo
risco, temos consciência que corremos, a saber, o de (Thrower, 1982). Assim, na era moderna sua obra era
“anacronismo”. Marx lia Epicuro como um conhecida principalmente através de fontes
“iluminista” da antiguidade e lhe atribuía a secundárias, sendo a mais importante a grande obra do
caracterização de “materialista”, palavra absolutamente poeta romano Lucrécio De rerum natura, em que ele
moderna. Mas reconhecemos um quê de verdade na reproduzia fielmente, como demonstraram os estudos
leitura de Marx: tanto “iluminismo” (no que diz modernos, as principais idéias e até a fraseologia do
respeito à crítica da religião) como “materialista” (na mestre (Heller, 1980). Epicuro inspirou-se na obra dos
sua concepção de átomo e corpo) na visão do pensador atomistas gregos Leucipo e Demócrito, que viam toda
grego, pode ter alguma aproximação com os termos realidade como consistindo num número infinito de
modernos. átomos imutáveis, pequenos demais para serem vistos,
mas de diferentes formatos e tamanhos, que existiam
Sobre Epicuro e sua filosofia: algumas notas num vácuo. Estes átomos tinham a propriedade do
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movimento e se combinavam e separavam de vários preconcebida pela mente, sem a qual a compreensão, a
modos para formar os objetos dos sentidos. Em investigação e a discussão são impossíveis. Daí que o
Demócrito, os átomos tinham duas propriedades “Epicuro materialista” de Marx precisa ser entendido
primárias: o tamanho e a forma (Duvernoy, 1993). com uma clara compreensão da atividade do sujeito a
Muitas interpretações de Demócrito (desde os conflitos cada etapa na aquisição do conhecimento. Isto sugeria
das fontes antigas) também alegam que ele atribuía ao que os seres humanos eram fisicamente dotados de
átomo a propriedade do peso, de modo que o características que incluíam a capacidade de raciocinar.
movimento ocorria em linhas retas e direção Apesar da sensação em si não ter conteúdo mental, ela
descendente (embora estas propriedades dos átomos dá lugar ao processo mental de discriminação de
sejam mais intimamente associadas com a obra de sensações em termos de categorias gerais construídas
Epicuro). O desvio mais claro de Epicuro em relação a com base em sensações repetidas, mas que, uma vez
Demócrito esta no acréscimo da proposição de que os adquiridas, existem na mente de forma um tanto
átomos não se moviam segundo padrões inteiramente independente e se tornam a base para organizar os
determinantes; em vez disso, alguns átomos dados em categorias prontas. É nesse sentido que
“rabeavam”, criando o elemento do acaso e da Epicuro se refere a elas como “antecipações”.
indeterminação (e assim criando o espaço para a
liberdade, tema central na reflexão de Marx sobre A ética epicurista é derivada da “perspectiva
Epicuro). materialista” do filósofo do jardim, na sua ênfase na
mortalidade e liberdade. O ponto de partida essencial
A filosofia de Epicuro era um sistema lógico para uma ética epicurista era a superação do medo da
extremamente coeso e, uma vez estabelecidos alguns morte fomentado pela superstição e pela religião
pressupostos iniciais, a maior parte do resto parecia estabelecida. Isto levou Marx a afirmar ser Epicuro o
seguir-se principalmente por dedução. Entre as maior “iluminista da antiguidade”. Epicuro desenvolve
deduções mais importantes estavam as noções de um “materialismo contemplativo” que podia ser
“espaço ilimitado” e “tempo infinito”. Epicuro também agudamente distinguido do amor mais idealista de
se referia à extinção de espécies e desenvolvimento Platão pela contemplação. O importante para Epicuro
humano a partir de origens animais. A sua “filosofia era a contemplação do que podia materializar-se na
atomista” (sensualista, na leitura de Marx) parecia existência humana e não num eterno além. A ética
antecipar-se em grau impressionante as descobertas da epicurista, que defendia a satisfação das próprias
ciência, e de fato foi extremamente influente entre necessidades neste mundo, era baseada na busca
muitos dos principais cientistas da “revolução expediente do prazer e na forma de evitar a dor
cientifica” do século XVII e do Iluminismo. As (Duvernoy, 1993). Mas Epicuro não via isto de
proposições iniciais da filosofia natural epicurista eram maneira cruamente hedonista, porem em termos da
de que nada era criado a partir do nada ou por alguma existência global, que reconhecia em alguns prazeres
vontade divina. Juntas, estas duas proposições imediatos dores maiores. Epicuro defendia uma vida
constituem o que se virá a chamar-se de “principio da simples, abandonando a busca da riqueza como
conservação” (Lange, 1974). O “materialismo” de objetivo maior de uma vida. O requisito mais
Epicuro implicava a expulsão do poder divino e de importante de uma vida boa para ele era a amizade,
princípios teleológicos da natureza. Os deuses, embora que se tornou o principio através do qual a vida e a
continuassem a existir, estavam confinados aos sociedade deveriam ser ordenadas. A amizade não era
espaços na interseção dos mundos. Além disso, apenas um principio ético que dizia respeito a
Epicuro opunha-se a todo determinismo absoluto no indivíduos, mas envolvia implicações políticas mais
tratamento da natureza. Nenhum determinismo ou amplas. Segundo o próprio Epicuro, “de todas as
essencialismo poderia explicar “acontecimentos coisas que a sabedoria adquire para produzir a
feitos”, segundo Epicuro, porque tais acontecimentos benção da vida completa, a maior, de longe, é a posse
pertenciam ao reino do acidental, da contingência. A da amizade”. Este não era apenas um principio ético
rejeição por Epicuro de qualquer forma de relacionado principalmente no que diz respeito aos
reducionismo, comumente atribuída a pontos de vista indivíduos, mas envolvia implicações políticas mais
materialistas, evidenciava-se no desenvolvimento de amplas. A amizade, no uso greco-romano tem
uma sofisticada epistemologia, que dependia não de ressonância política ausente dos conceitos modernos.
simples sensações, mas também do seu famoso Philia em grego (amicitia em latim) era regularmente
conceito de “antecipação” (as vezes citado como “pré- como um fundamento de coesão social. No jardim de
concepção”), um conceito a que ele deu origem. Epicuro as mulheres eram bem-vindas e membros
Segundo o filósofo latino Cícero, a noção de respeitados da comunidade e das discussões
“antecipação” (“prolepsis”) de Epicuro era a coisa filosóficas.
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Entre as contribuições mais importantes de moderno do epicurismo, uma espécie de “materialismo


Epicuro estava o seu conceito de justiça (que exerceu vestindo uma coroa” nas palavras de Heinrich Heine.
forte influência em Marx). “A justiça nunca é nada em Já os Românticos, a exemplo de Schlegel, deplorava o
si mesma, mas nas relações dos homens uns com os que entendia por “materialismo tosco” de Epicuro e
outros em qualquer lugar e em qualquer tempo ela é lamentava que desde meados do século XVIII a
uma espécie de pacto de não lesar nem ser lesado”, filosofia de Epicuro graçava como “filosofia
afirma Epicuro. No filósofo grego encontrava-se uma dominante” na França. O livro de Koppen, segundo
concepção “materialista” – em oposição a “idealista” – John Bellamy Foster, via na conexão entre o
de lei que negava que a lei fosse dotada de um aspecto epicurismo e o Iluminismo moderno uma virtude, um
transcendente afora as necessidades da interação social feliz encontro (Foster, 2005). Um detalhe importante:
humana. Como Marx salientaria mais tarde, foi esta obra do Koppen é dedicada ao amigo Karl Marx.
Epicuro o primeiro que originou a noção de contrato No prefácio à sua tese de doutorado, apresentada em
social (Marx, 1979) 1841, Marx se refere de modo favorável à obra do
amigo. Na tese, Marx optou por voltar-se para a
Uma outra contribuição importante de Epicuro filosofia de Epicuro mesma, com o objetivo de
esta na sua filosofia da natureza como ponto de partida esclarecer o modo como à filosofia epicurista havia
de um “principio de conservação”, e portanto a antecipado a ascensão de materialismo e humanismo
tendência a uma visão de mundo “ecológica”. Isto é do Iluminismo europeu dos séculos XVII e XVIII.
particularmente evidente na obra de Lucrécio, que Para Marx Epicuro foi “o maior representante do
levantou algumas questões que agora são consideradas Iluminismo grego, e merece o louvor de Lucrécio”
ecológicas (Wolff, 2006). Lucrécio (inspirado em (Marx, 197. p.24). A observação de Marx não é
Epicuro) aludiu à poluição atmosférica causada pela arbitrária, podemos ler em Lucrécio um elogio a
mineração, à redução das colheitas pela degradação do Epicuro como portador de uma “luz mental interna”
solo e ao desaparecimento de florestas; além de capaz de dissipar as sombras da superstição
argumentar que os seres humanos não eram semelhante aos raios do sol. Marx, que havia estudado
radicalmente distintos dos animais. “Da dignidade e avanço do saber” (1623) de Bacon
antes mesmo de se ter voltado para o estudo
O Epicuro de Marx sistemático de Hegel, estava bem a par da crítica de
Bacon a Epicuro por acomodar e sujeitar a sua
Nas Lições de História da filosofia de Hegel, filosofia natural à moral, mas Marx viria transformar
o epicurismo era retratado como representando o esta disposição de Epicuro num ponto forte em
desenvolvimento da individualidade abstrata; o comparação com a filosofia de Demócrito. Além do
estoicismo, a uma universalidade abstrata; e o mais, Marx foi sem dúvida, influenciado pelo ataque
ceticismo, a escola que invalidava as outras duas. A de Bacon ao raciocínio a partir das causas finais à
física de Epicuro, na visão de Hegel, era nada mais que moda da teologia natural, e pelo argumento de Bacon
o principio da física moderna e seria ele um “inventor” de que a filosofia natural dos antigos materialistas
da ciência natural empírica, da psicologia empírica e Demócrito, Epicuro e Lucrécio era superior à de Platão
Hegel vai mais longe na sua “hermenêutica” do e Aristóteles, precisamente graças à recusa em
pensador grego: seria um “iluminista antigo”, por ter argumentar a partir de causas finais e ao seu
introduzido a crítica ao temor dos deuses. Mas distanciamento de Deus e dos argumentos teológicos.
Epicuro, embora representando para Hegel o ponto de Como Bacon, Marx associou na sua tese a imagem de
vista da ciência moderna, também representa a pobreza Prometeu com a dos atomistas gregos, embora no caso
filosófica da ciência (Hegel, 1988). Esta mesma visão de Marx tenha sido Epicuro, e não Demócrito, a
do epicurismo foi mais tarde levada adiante pelos contrapartida de Prometeu na antiguidade. Na época
“jovens hegelianos” que defendiam que o epicurismo, em que estudava Bacon, Marx também dedicou algum
em particular havia pré-configurado o Iluminismo tempo a ler a obra de Samuel Reimarus (1694-1768),
europeu dos séculos XVII, XVIII e XIX, visto por principalmente as suas críticas ao materialismo
todos eles como constituindo um período de crescente epicurista, do ponto de vista da teologia natural. Contra
auto-consciência, individualidade abstrata e rejeição do Epicuro, o teólogo alemão buscou demonstrar o
poder divino em relação à natureza. argumento da comprovação da existência de Deus pelo
“desígnio divino e imponderável”. Seria também para
Em 1840, um amigo de Marx, chamado Karl esses assuntos, associados com o materialismo e seu
Friedrich Koppen publicou uma sobre Frederico, o conflito com a teologia natural, que Marx se voltaria,
grande e seus oponentes. Frederico (1712-1786) era embora um tanto indiretamente, ao escolher o tópico
considerado pelos jovens hegelianos um partidário da sua tese de doutoramento (Thower, 1982).
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O interesse de Marx na sua obra: Diferença não deixa de marcar sua linha independente de
entre as filosofias da natureza em Demócrito e reflexão, apontando a insuficiência hegeliana ao não
Epicuro, é demonstrar como os dois pensadores perceber a importância capital dos “sistemas pós-
atomistas gregos tentam fundamentar uma visão de aristotélicos” para a compreensão da forma
mundo, reconduzindo toda a compreensão do cosmo especulativa grega. O último ponto a destacar do
ao átomo enquanto elemento último. Ora, uma tal prefácio é o que trata da exaltação a Prometeu, o
perspectiva esta tradicionalmente ligada à idéia da rebelde que não apenas concedeu aos homens o fogo
metafísica, sob cuja forma o atomismo se apresenta a da libertação como preferiu para si qualquer má
fim de explicar toda a ordem cosmológica a partir de fortuna à servidão. Ao salientar que a confissão de
um principio. Assim, o cerne da investigação marxiana Prometeu é a própria confissão da filosofia, Marx
está em identificar qual dos dois atomistas conseguiu deixa transparecer o verdadeiro estágio em que esse
cumprir esta tarefa, e mais, determinar porque um encontra seu pensamento. Sem dúvida acha-se
conseguiu e outro não. Dito de forma mais geral, pode- embebido de materialismo, da anti-religiosidade e,
se afirmar que o verdadeiro interesse de Marx era as especialmente, da suprema exaltação do ideal da
condições de uma argumentação coerente, capaz de liberdade que fervilham no ambiente cultural pelo qual
fundamentar a explicação da realidade num único se movimenta. Da mesma forma como os demais
principio. A partir desse contexto, alguns pontos jovens do círculo intelectual que freqüenta, o interesse
devem ser destacados desde o prefácio da tese de marxiano está em realizar a fusão entre a filosofia de
doutoramento. Em primeiro lugar, Marx refere-se à Hegel e o liberalismo, dando corpo, no âmbito da
forma de texto que apresentava, avaliando que “a realidade alemã, aos impulsos libertadores do chamado
forma deste tratado teria sido, por um lado, mais Esclarecimento que já se havia corporificado no caso
estritamente cientifica, por outro lado, em muitos de da França do Século XVIII em diante. Entretanto,
seus argumentos, menos pedante, se sua finalidade diante dos seus colegas hegelianos, Marx se encontra
primitiva não tivesse sido aquela de uma dissertação em posição solitária (Lange, 1974). Não obstante os
doutoral” (Marx, 1979. p.19). Não obstante, está problemas encontrados no sistema de Hegel, pensa ser
convencido do valor de seu trabalho, no qual acredita inadequado simplesmente abandoná-lo sem
ter solucionado um problema até então ainda não experimentar todo o potencial explicativo do
resolvido quanto à história da filosofia grega. Essa verdadeiro pensamento filosófico. E é justamente
quase-lamentação, colocada como primeira frase do nessa tentativa de revalorizar o modo de reflexão
prefácio, é reveladora da forma oblíqua como o autor hegeliano, visando uma alternativa de luta pela
precisou tratar o tema central de seu interesse. A liberdade que seja conceItualmente sustentável, que
dissertação apresenta, na verdade, duas temáticas: uma Marx põe-se a investigar as relações entre os
aparente e ajustada à formalidade acadêmica; outra, atomismos de Demócrito e Epicuro. Não é outra sua
subjacente e adequada a seu próprio esclarecimento. A expectativa do que garantir argumentativamente o
primeira figura apenas enquanto motivo externo, que caráter prometêico da filosofia que, arrancando o
mais esconde do que mostra o verdadeiro interesse do homem da servidão a outros deuses que não sua
marxismo pela atomística grega. Assim, pode-se dizer autoconsciência, pode conduzi-lo à liberdade almejada.
que o motivo externo da dissertação marxiana é a Por isso Marx fecha o prefácio com a afirmação de que
avaliação adequada de Demócrito e de Epicuro pela “Prometeu é o mais distinto santo e mártir no
história da filosofia, enquanto o problema representado calendário filosófico” (Marx, 1979. p.26).
pelo verdadeiro interesse de Marx refere-se à
interpretação das concepções daqueles atomistas à base O corpo da dissertação marxiana inicia-se,
de sua própria visão sobre a metafísica. Dito de outra inevitavelmente, com aqueles elementos exigidos pela
forma, Marx está preocupado em identificar qual dos forma acadêmica de redação, a qual Marx já lamentava
dois foi melhor sucedido na tarefa de fundamentar a anteriormente. Os primeiros passos são a delimitação
compreensão do cosmos num princípio último do objeto da investigação e apresentação do estado do
exclusivo. Quanto ao conteúdo, afirma que sua em que se encontra o tratamento da questão na
dissertação deve ser vista apenas como uma parte literatura secundária. Já nesses pontos iniciais,
preliminar de um trabalho mais amplo em que destacam-se alguns pontos importantes. Inicialmente
deveriam ser detalhadamente apresentados o Marx toma a relação entre as filosofia na natureza de
epicurismo, o estoicismo e ceticismo em seus Demócrito e Epicuro tão somente como um exemplo
relacionamentos com o conjunto da especulação grega. da relação entre os sistemas pós-aristotélicos com a
É importante notar que já neste ponto Marx presta seu filosofia grega anterior, fixando-se na forma da
reconhecimento a Hegel, enquanto construtor de um especulação. O próprio Marx afirma: “Parece-me que,
imponente plano de história da filosofia, entretanto, se os sistemas anteriores são mais significativos e
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interessantes para análise do conteúdo da filosofia Apelando para os comentários de Aristóteles a


grega, os sistemas pós-aristotélicos, e em particular o Demócrito, extraídos da Psicologia e da Metafísica, o
ciclo das escolas epicurista, estóica e céptica, são ainda jovem Marx mostra que ora o atomista pré-socrático
mais para o estudo da forma subjetiva, o caráter afirma que o fenômeno é o verdadeiro, ora que nada é
essencial dessa filosofia” (Marx, 1979. p.17). O jovem verdadeiro ou que este nos é ocultado. E eis o
doutorando volta-se para a filosofia grega munido, sem pensamento contraditório e fundamento do ceticismo.
dúvida, de um referencial hegeliano. Busca E Marx vai mais além quando afirma ser o próprio
especialmente no atomismo de Epicuro, um modelo pensamento de Demócrito sobre o átomo é que esta
argumentativo que seja capaz de fazer de um princípio marcado por uma perspectiva cética. Se Marx tem
imanente o fundamento explicativo de toda a realidade. razão ou não, entendemos que não é aqui que iremos
problematizar tal posição. O pesador alemão localiza a
Após a delimitação do tema a ser tratado na contradição intransponível em que se acha o filósofo
dissertação, Marx volta-se para a apresentação das grego. Por um lado, Demócrito faz do mundo sensível
diversas opiniões existentes ao longo da história da uma mera aparência subjetiva que não pode se
filosofia com respeito à relação entre Demócrito e apresentar como mundo verdadeiro; por outro lado, sua
Epicuro. Partindo da afirmação de que seu ponto de teoria necessita que o mundo seja regido por um
vista é diferente dos anteriores, cruza rapidamente a principio conceitual único, ou seja, o conceito de
antiguidade, a idade média e a modernidade, átomo. Desta forma, Marx alcança uma primeira
mostrando como todos os comentaristas são unânimes conclusão que denuncia a incapacidade do atomismo
em afirmar que Epicuro não teria passado de um de Demócrito em dar conta da realidade. Em Epicuro
plagiador de Demócrito. Assim Marx resume as não existe espaço para uma posição cética:
posições encontradas na literatura secundária: “Assim, “...enquanto Demócrito reduz o mundo sensível à
pois, enquanto Cícero censura Epicuro por desvirtuar a aparência subjetiva, Epicuro faz dele um fenômeno
doutrina de Demócrito, conservando, pelo menos, a objetivo”(Marx, 1979. p.23). De acordo com a leitura
vontade de melhorá-la e o discernimento de seus de Marx, a teoria de Epicuro apresenta uma capacidade
defeitos, Plutarco o acusa de inconseqüência e de de impor ao mundo sensível um principio organizador
propensão para o erro, chegando até a suspeitar de suas exclusivamente dependente de próprio principio. Dito
intenções, Leibniz lhe nega mesmo a capacidade para de outro modo, é o conceito que impõe ao mundo
fazer extratos de Demócrito. Todavia, todos são sensível sua estrutura. Ressalte-se ainda que Marx não
unânimes num ponto: Epicuro foi buscar sua física em confunde essa perspectiva com aquela do tipo kantiano
Demócrito” (Marx, 1979. p. 21). A partir desse ponto, pois, no caso do atomismo de Epicuro, trata-se de um
a afirmação final da passagem citada é que passa a principio inerente ao próprio mundo (e não
merecer a maior atenção de Marx. Com efeito, ele tem transcendental a ele) e que cumpre ao papel de
extrema dificuldade em aceitar o fato histórico de que principio organizado deste mesmo cosmos.
“existem muitos argumentos que defendem a
identificação das físicas de Demócrito e Epicuro” O segundo argumento elencado por Marx diz
(Marx, 1979. p.20). O jovem doutorando não pode respeito a disparidade de postura frente ao mundo e à
concordar com tal posição. Segundo seu ponto de “prática cientifica” que decorre do modo de relacionar-
vista, os dois atomistas gregos estão, na verdade, em se com a verdade pelos dois atomistas gregos.Quanto à
posição diametralmente oposta. Tendo passado pelos conseqüência mais direta de suas diferentes posições
autores mais significativos na literatura secundária, os teóricas: “Demócrito, para quem o principio não se
quais são unânimes pelo menos em que a física de tornou fenômeno e permanece sem realidade e sem
Epicuro nada acrescenta à de Demócrito, conclui pela existência, tem, pelo contrário, à sua frente, como
necessidade de alterar-se aquela convicção tradicional. mundo real e concreto, o mundo da percepção
Marx, sem dúvida, concorda em atribuir o atomismo sensível” (Marx, 1979. p. 24). Conforme o pensamento
enquanto fundamento comum a ambos, entretanto, marxiano, é o ceticismo, o qual Demócrito não
descobre uma série de posições radicalmente opostas consegue evitar, que o joga em busca da infinita
entre eles. Estas exigem-lhe uma explicação mais pluralidade das experiências empíricas, no inútil afã de
pormenorizada que consistirá em detalhar três abarcar a totalidade do saber. Compreendendo o
argumentos que impedem a identificação das filosofias mundo objetivo como mera aparência subjetiva,
de Demócrito e Epicuro. debate-se por não encontrar para ela qualquer amparo
conceitual; a aparência acha-se fatalmente “separada
O primeiro argumento diz respeito à verdade e do principio e abandonada em sua realidade
à certeza do saber humano. Segundo Marx, podem ser independente”. Desta forma, Marx acaba por concluir
encontradas passagens contraditórias em Demócrito. que a constante inquietude de Demócrito deriva da
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insuficiência própria de sua teoria. “o saber que ele tanto as leis físicas quanto as de natureza divina. Cabe
considera autêntico é o vazio de conteúdo; o que lhe salientar um aspecto importante da reflexão de Marx
oferece um conteúdo carece de verdade”(Marx, 1979. sobre Epicuro, isto é, como o pensador alemão constrói
p. 23). o “seu Epicuro”: trata-se do seu veemente elogio ao
fato do atomista grego rejeitar qualquer deus, celeste
Já no caso de Epicuro sucede exatamente o ou terreno, que possa obscurecer a independência do
inverso. Certo de que o principio do átomo dá conta, Homem. Relacionada a esta postura encontra-se o
coerentemente, de toda a realidade que se lhe defronta, significado atribuído por Marx à filosofia: ela carrega
despreza as ciências empíricas pois, segundo Marx: “... sempre consigo o atributo de liberdade “humana”.
encontra a satisfação e a felicidade na filosofia” (Marx, Esta, no estágio de amadurecimento intelectual em que
1979. p. 24). Essa diferença no modo dos dois se encontra o jovem doutorando, consiste na realização
pensadores gregos relacionarem-se com as ciências, autônoma da auto-consciência do Homem.
decorrência imediata da forma como articulam suas
teorias, mostra-se também no diferente comportamento Ao concluir e apresentar seu estudo sobre os
de ambos frente à vida em geral. Também os atomismos de Demócrito e Epicuro, Marx atinge um
elementos dessa natureza são tomados em conta por determinado patamar da reflexão filosófica no qual
Marx que assim compara as duas personalidades: tem em mãos duas idéias que cumprirão ambas, todo
“Enquanto Demócrito viajou por todos os lugares do seu pensamento futuro posterior de sua filosofia. De
mundo, Epicuro apenas abandonou duas ou três vezes ambas, todo o seu pensamento futuro não mais
o seu jardim de Atenas e se dirigiu a Jonia, não para se prescindirá, embora as duas recebam tratamento
dedicar a investigações mas para visitar amigos.” diferente em seus próximos escritos, tornando-se
(Marx, 1979. p. 25). progressivamente mais consistentes. A primeira refere-
se ao método ou à forma de argumentação filosófica. A
O terceiro argumento trabalhado por Marx, no experiência realizada a partir do atomismo grego
intuito de diferenciar os atomismos de Demócrito e confirmara-lhe as vantagens da argumentação de uma
Epicuro, refere-se ao relacionamento entre pensamento “forma de compreensão totalizadora”, ou seja, uma
e ser. Sendo um aprofundamento das questões argumentação que visa a explicação de uma realidade
anteriormente mencionadas, essa última diferença total à base de um único principio teórico. A segunda
evidenciada constitui-se no elemento principal a idéia sedimentada por Marx diz respeito ao “principio
impedir a identificação dos dois atomismos. O cerne de liberdade”. Compreendida dentro da rede conceitual
teórico da assimetria reside em que, como forma de da autonomia da consciência-de-si, agora extrapola o
reflexão da realidade, Demócrito reduz tudo à campo estritamente do pensamento e passa a ter
necessidade, ao passo que Epicuro a nega em favor do ressonância na realidade propriamente humana. A
acaso (Wollf, 2002). E isso não traz a tona uma constituição do pensamento de Marx consistirá no
diferenciação menor. O que esta em jogo é a liberdade amadurecimento cada vez maior dessas duas idéias, as
ou não do sujeito pensante que, por uma das vias, vê-se quais passarão a ser cada vez melhor definidas e, por
compelido à aceitação de todos os fenômenos conseqüência, torna-se-ão desenvolvimento mais
enquanto realidades pré-determinadas, ao passo que, consistente do ponto de vista filosófico (Wolff, 2002).
pela outra via, experimenta a liberdade de impor ao
cosmos as regras dependentes exclusivamente do Referências
pensamento. Num dos pontos decisivos do atomismo
de Epicuro, a saber, a declinação do átomo da linha CARTLEDGE, P. Demócrito e a política atomista. São
reta (o clinamen), Marx elogia-o justamente por ele ter Paulo: Editora da UNESP, 2001. col. Grandes Filósofos.
introduzido o “principio da liberdade” como DUVERNOY, J-F. O epicurismo e sua tradição antiga. Rio
explicação para tal movimento. O que, entretanto, está de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
associado a isto e que também ganha grande EPICURO. Obras completas. (Trd. José Vara). Madrid:
importância aos olhos de Marx é o fato de Epicuro Cátedra Letras Universales, 1995.
subordinar a filosofia da natureza a uma concepção FOSTER, JB. A ecologia de Marx: materialismo e natureza.
moral de Homem. O jovem Filósofo mostra que
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
“...Epicuro reconhece que seu modo de explicação tem
FIGUEIRA, M. Epicuro: sabedoria e jardim. Rio de
por objetivo a ataraxia da consciência de si e não o
Janeiro: Relume Dumará, 2003.
reconhecimento da natureza em si e por si” (Marx,
HEGEL, GWF. Introdução à história da filosofia. São Paulo:
1979: 28). Tudo que possa perturbar o
desenvolvimento autônomo do espírito humano deve Nova Cultura, 1988. Col. Os Pensadores.
ser categoricamente rejeitado, incluindo-se neste caso
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HELLER, A. Estoicismo y epicureismo. In: El hombre del PESSANHA, JA. Mota. As delicias do jardim. In: Ética
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LANGE, FA. Historia del materialismo. México: Juan 1991.
Pablo Editor, 1974 . tomo I. THROWER, J. Breve história do ateísmo Ocidental. Lisboa:
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Demócrito e Epicuro. São Paulo: Global Editora, 1979. WOLFF, F. Tudo é corpo ou vazio: Lucrécio. In: Poetas que
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Sobre o autor:

Romero Venancio: Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe – UFSE. E-mail:
romerov@uol.com.br.

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