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Em toda parte e em parte alguma

Merleau-Ponty In: Sinais. Lisboa: Minotauro, 1962, p.189-237.


[Modesta retomada feita pelo Prof. Nilo Ribeiro
no contexto do curso do PPG-2019]

Preâmbulos
Na leitura do Texto O filósofo e sua sombra da mesma obra de Merleau-Ponty, o corpo
assume o protagonismo da reflexão (fenomenologia do corpo-próprio) para, sem seguida,
o próprio filósofo fazer deslocar sua reflexão da fenomenologia para uma Ontologia do
Sensível. Nela, o Ser é evocado em função da UR-DOXA, da Fé Primordial em função da
Existência corporal e do mundo como nó de significações que ata e desata e torna a nos
atar em torno da carne, do mundo, do ser do qual somos feitos e a partir da qual se refunda
continuamente um outro modo de ser. Esse horizonte nos remete ao ser como Ser bruto
ou Ser Selvagem e a partir do qual se pode associar também o Espírito selvagem. Nesse
estado do Ser bruto erige-se a denominada ontologia da negatividade. Essa, portanto,
permite abandonar certos limites de uma “fenomenologia do corpo” que ainda se atém a
ideia de como é o corpo se comparado com o que é o Espírito a fim de postular uma
inversão que possibilitasse refazer a gênese do corpo em relação ao Espírito. Porém, essa
postura aponta para alguns impasses ou dilemas tais como nos perguntamos ao longo de
nosso estudo sobre o corpo-próprio do animal, do ser humano em estado vegetativo, do
corpo-morto de um ser humano, etc. Merleau-Ponty estava ocupado com o problema do
esquecimento do eu-posso do corpo e de como o corpo é autônomo com relação a uma
ideia de alma e espírito como camadas superioras que viessem conferir sentido ao
primeiro.
Na mesma esteira daquele escrito, pode-se emoldurar agora a reflexão de: Em toda parte
e em parte alguma em torno da novidade da Ontologia do Sensível. Sem negar a
fenomenologia do corpo está a lhe conferir uma amplitude maior. O objeto desse escrito
que vamos nos debruçar, é definido em função da questão da essência da Filosofia e da
questão de uma Filosofia cristã. Talvez isso soe para nós como algo abjeto e por isso
como sendo indesejável pelo risco de se ressuscitar e de se reintroduzir no seio da
Filosofia um problema já por demais superado pela Modernidade e por isso mesmo
carecendo de ser expurgado pelos contemporâneos uma vez que está definitivamente
selada a separação e a circunscrição diferenciada entre Filosofia e Religião, entre Fé e
Razão ou que tenhamos encontrado uma concordância ou uma paz que não carece mais
de explicações.
O texto, porém, foge completamente desse equívoco ou dessa impostação em função do
Paradoxo do Sensível em que a Interioridade e a Exterioridade, o “de dentro” e o “de
fora” estão a evocar não mais a relação Sujeito-Objeto mas a metáfora da gestação, a
saber a do envolvido/envolvente, da penetração mútua e ao mesmo tempo inconciliável
entre os polos que se opõem a um pensamento harmônico e conciliador. A perspectiva
assumida por MPo nos insere no âmago da Ontologia do Sensível para a qual o ser é da
ordem do Sentir, da Sensibilidade, da Natureza ou do Ser selvagem e do Espírito
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Selvagem que fazem frente tanto ao problema do Espírito Absoluto (Hegel) como ao
Grande Racionalismo da Ideia de Infinito (Descartes) quando se trata de pensar a
Filosofia, a História, a Religião, enfim, a relação entre Filosofia e cristianismo.
Trata-se aqui de ater-nos apenas às duas partes fundamentais do texto, a saber, a primeira
parte: A Filosofia e a Exterioridade (p.189-199) e a terceira parte: Cristianismo e
Filosofia (p.210-220) à luz da consideração supramencionada da questão da Essência da
Filosofia.
I. A filosofia e a Exterioridade
Na primeira parte, Merleau-Ponty pretende chamar a atenção que o Espírito Selvagem
interpela o Espírito Absoluto da filosofia reflexiva. Essa última tem como ápice a
Filosofia de Hegel. Nesse caso, a Filosofia não pode abstrair da Exterioridade (que se
coloca não diante dela, mas anterior a ela) para que a Filosofia não se torne mera Filosofia
da Interioridade (Espírito) de modo a negar aquilo que a suscita e a condiciona (carne).
Seria o mesmo que dizer que a Filosofia não pode negar o corpo, ou melhor dizendo, a
sua carnalidade assegurada pela Exterioridade (corpo) a fim de que o Espírito
(Interioridade) não se torne um Espírito de sobrevoo, abstrato, desencarnado, da ordem
da Mesmidade ou da Totalidade. Nesse caso, a Filosofia tem sempre que contar com a
História, uma vez que essa é feita de fatos, eventos, acontecimentos, enfim, de uma carne
dada para um Espírito.
Nesse contexto, num primeiro momento há de se fazer jus a Filosofia de Hegel porque o
filósofo alemão é responsável por reinserir a História no seio da modernidade retirando a
Filosofia moderna de sua pura reflexividade própria do espírito subjetivo (consciência) e
associando a Filosofia às obras culturais, a história da religião, da Política, do Direito do
Estado Prussiano. Assim, Hegel realizou a grande façanha de associar a produção do
Espírito objetivo com a única maneira de arrancar a filosofia da ingenuidade do Espírito
Puro. Entretanto, Merleau-Ponty, recorda que a visão do Espírito Absoluto de Hegel,
acabou sendo vítima da Escatologia da Razão, o que o torna igualmente suspeito de
continuar fiel a arte de filosofar como Interioridade. Afinal, tratava-se de captar o real no
conceito e assegurar de fora da própria História ou de sua carnalidade, o Sentido ou a
significação. Daí que a filosofia de Hegel acaba por comprometer o paradoxo do Ser bruto
que não cabe na Razão ou no Espírito Puro porque essa não dá conta de julgar, de
tematizar, de refletir ou de esgotar o real quando na verdade cabe ao próprio ser se cumprir
em nós a abertura, de manter-nos nesse entre-aberto do ser do Sensível, da Natureza.
Diante desse problema de fundo, isto é, do confronto entre a Filosofia e a História
Merleau-Ponty propugna a reabilitação da história vivida fora/dentro da História do
conceito. Não no sentido de evocá-la simplesmente como prova ou explicação daquilo
que o Espírito pensa e formula a reboque da história. Antes, o contato com a História se
dá por conta do “excesso de Sentido” que, por sua vez, anuncia “o contágio da vida” que
subjaz ao pensar e ao viver e do qual ninguém está imune ou isento tal como um
observador impassível. É graças a esse contágio da vida ou desse ser selvagem
indominável pelo saber, que é possível reatar a relação entre Espírito (interioridade) e
corpo (exterioridade) a partir da carnalidade do Sensível.
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Noutra direção, recorda Merleau-Ponty, deve-se evitar a todo custo o outro extremo, a
saber, aquele que na contramão da Filosofia Hegeliana (Espírito Puro) visa a exaltar a
História Pura, tal como a pratica a Psicanálise e o Socialismo. Esses colocam a primazia
na Exterioridade a partir do contato com a questão candente do inconsciente, com as
pulsões, a libido, o corpo, o sexo, etc. e de modo que o espírito nu brota dessa realidade
material inexorável etc. Da mesma forma, procede o Marxismo ao elogiar a pré-história
da humanidade marcada pela relação primordial focada na materialidade, no corpo e no
espírito tal como se vislumbra no trabalho e na autoprodução humana. Ora, com o advento
do capitalismo essa unidade histórica foi radicalmente comprometida em sua novidade.
Entretanto, essas duas perspectivas trazem em germe uma contradição insolúvel. Segundo
Merleau-Ponty, tanto a Psicanálise como o Marxismo não se contentam em buscar o
sentido a partir das contradições, das inversões e dos impasses que ocorrem nesse nível
do ser selvagem. Ao contrário, tanto a Psicanálise como o Marxismo vão buscar a
Significação no “de fora” do acontecimento, respectivamente, nas “ideias” (abstratas) do
Homem saudável e da sociedade sem classes. Nota-se, segundo Merleau-Ponty, um curto-
circuito subjacente a essa visão de História Pura: A significação do humano e a
significação do social não advém dos próprios significantes, às vezes insignificantes, e a
graças a essa contradição e partir dela é que se pode ter acesso ao modo como se produz
a significação.
Segundo Merleau-Ponty há por detrás dessa visão uma ontologia Positiva e equivocada
da vida. E continua o filósofo, à luz da ideia de Perfeição (do humano e do social) tomada
como uma ideia Positiva do Ser, Freud e Marx julgam tocar no âmago da significação
prescindindo da História do imperfeito. Segundo a interpretação de Merleau-Ponty, a
História na visão de Marx e Freud progride do Positivo ao Positivo, isto é, parte-se da
positiva descoberta do humano e do social (humano saudável e da sociedade sem classes)
de modo que essa positividade impõe em seguida um caminho que conduz da Positividade
do Positivo ou da Significação até à Positividade do que vem de fora da história. Nesse
sentido, o equívoco da ideia de História Pura (da psicanálise e do marxismo) coincide
com o Espírito Puro (do Hegelianismo). Ambos, deslizam para o campo da aporia ou do
antagonismo; daquela visão calcada na afirmação do isso “ou” daquilo e jamais de
entregam ao paradoxo do isso “e” do aquilo da própria Filosofia e da História em seu
pensamento paradoxal.
A maneira de abandonar o Mito da Filosofia Pura e/ou da História Pura que desemboca
no antagonismo rechaçado por Merleau-Ponty, é a de voltar-se para a Natureza, para o
Sensível, pois é da imersão na Natureza ou do envolvimento no Sensível que brota a fé
primordial e, consequentemente a significação que se significa desde esse tempo e lugar
do ser; dessa significação que se desfaz e se refaz graças à “abertura do ser” e a partir da
qual se ata e desata novos “nós” de significações. Essas significações ocorrem exatamente
no “entre” um “e” outro. Não se busca uma solução para o impasse que esse entre-aberto
suscita, a não ser no próprio âmago do Sensível marcado pelo paradoxo e que demanda
uma contínua inversão entre os polos numa forma de quiasma.
O ser se produz aí mesmo no Ser sensível e não fora dele ou nessa oposição entre
Interioridade e Exterioridade. Antes, há um quiasma, isto é, um entrelaçamento entre o
de fora (negativo) e o de dentro (positivo) de sorte que na esteira de uma Ur-doxa, a
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filosofia e a história aparecem ao mesmo tempo como Exterioridade “e” interioridade.


Doravante, a filosofia não é pura atividade reflexiva (Espirito) com a pretensão de dar
Sentido à História. E a História, por sua vez, não é pura atividade visível de fatos
concretos, encarnados, com a pretensão de apresentar o significado para o Espírito e como
se ela se apresentasse com intenção de confirmar o Sentido que fora antecipado pelo
Pensamento (Espírito). Há de se ter presente, no entanto, que a intriga entre Filosofia e
História não se resolve ou se dirime segundo o Pensamento dialético que tenta unir os
contraditórios a partir do prévio conhecimento tético de seus contrários. Antes, o Ser
selvagem se produz antes da oposição entre interioridade, pensamento – espírito e
exterioridade, corpo, carne. E o Ser selvagem abre fissuras que permitem atravessar do
exterior ao interior e vice-versa desde que eles se invertam naquilo que lhes pareceria a
priori especificamente do Espírito e do corpo.
II. Cristianismo e Filosofia
No contexto da terceira parte, Merleau-Ponty concretiza a intuição que fora longamente
explorada na primeira parte a respeito do impacto de uma ontologia do Sensível para
pensar a filosofia e a religião. Dirá, concretamente, que é no confronto da filosofia com
o cristianismo (o de fora) e do próprio cristianismo (no de dentro) com o de fora (a
filosofia) que se pode tocar na essência da Filosofia e, consequentemente, na afirmação
da existência de uma Filosofia cristã aberta e inacabada.
Evocando, pois, a co-existência de correntes modernas de pensadores cristãos no interior
do cristianismo, o filósofo aponta para a especificidade de duas dessas tendências, a fim
de mostrar que nem uma nem outra se bastam a si mesmas a não ser que se concorde com
a negação da “ontologia da negatividade” do Sensível em nome da prevalência da
“ontologia da positividade” inaugurada por Descartes. Aliás, essa última, servirá
constantemente de contraponto com a pretensão de Merleau-Ponty de propugnar uma
filosofia cristã a partir da ótica do Ser selvagem.
A primeira corrente representada por nomes como os de E. Gilson, J. Maritain, E. Bréhier,
insiste na autonomia dessas realidades, da Razão em relação à Fé e vice-versa, da qual
decorre a ideia de que não há uma filosofia estritamente cristã. E mais, esses autores
afirmam que historicamente nunca houve uma filosofia que tivesse sido cristã. Nessa ótica
a filosofia jamais poderá se mesclar ou se “sujar” de religioso e de cristianismo. E o
cristianismo por sua vez não poderá jamais reivindicar para si um estatuto filosófico seja
para não ser tragado pelo racionalismo, seja porque em última instância está sedimentado
na Revelação e necessita defende-la da ingerência da Razão. A Filosofia se inscreve no
Logos, na Razão, na demonstração e jamais alcançará o objeto da fé nem positivamente
nem negativamente, etc. Mas como retirar ao cristianismo para atribui-las a uma Razão
universal e sem lugar natal, ideias como as de história, subjetividade, incarnação, finitude
positiva, pergunta M. Ponty.
A segunda corrente representada por autores renomados como L. Brunschvicg e M.
Blondel se opõe à primeira. Ao interpretar Pascal e Malebranche reservam a possibilidade
de uma filosofia que constate a discordância da Existência e da Ideia, e portanto, a sua
própria insuficiência, e por esse viés constitua a introdução ao cristianismo como
interpretação do homem e do mundo existentes. Nesse caso, a Filosofia era o pensamento
apercebendo-se de que não pode circunscrever, registrando e tateando em nós e fora de
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nós uma realidade cuja origem não reside na consciência filosófica (p.211). Nessa ótica,
a verdadeira questão, segundo os defensores dessa corrente, que está no fundo do debate
sobre a filosofia cristã é a da relação entre a ponderação entre essência e existência. Para
esses filósofos basta recordar que a Essência está do lado da razão que ilumina a fé, e a
existência do lado da experiência da fé que a Razão só tem acesso por meio da experiência
vivida.
A questão, porém, está longe de ser solucionada, seja do ponto de vista dos defensores da
primeira corrente seja do lado da segunda, porque no fundo ambas se apoiam em uma
matriz de Pensamento do Infinito. Ora, contra isso, há que se ter presente que os conflitos,
os contrastes e as contradições não se satisfazem com a “paz cartesiana” nem entre os que
defendem a autonomia da Razão e da Fé, nem entre os que defendem a abertura da
essência pela existência e da existência pela essência e sequer com a discordância entre
as duas correntes do cristianismo.
Primeiro, ao considerar a coexistência inocente da filosofia e do cristianismo tomados
como duas ordens positivas ou duas verdades, dissimulam-nos ainda o secreto conflito
daquela e deste consigo mesmo. O segredo, portanto, do seu acordo reside no pensamento
infinito com a argumentação de que nosso acesso é limitado, finito, sobre o todo e sobre
o que se pensa e que, portanto, os decretos somente nos são conhecidos pelos seus efeitos.
Estamos assim impossibilitados de compreender a unidade da razão e da fé. O que aparece
certo é realizá-la em Deus (ideia de Infinito, Perfeição). Disso resulta que a razão e a fé
se encontram num estado de equilíbrio indiferente (p.215).
E segundo Merleau-Ponty, há de ser recordar ainda, que o recurso de Descartes a ideia de
infinito aparece exatamente em função do pensamento da unidade do corpo e da alma.
Pois, na ideia do infinito encontramos o Sentido daquilo que é da ordem do finito, a saber,
dessa unidade sem que possamos alçar à significação a partir do finito. Eis que o problema
da exterioridade e da interioridade, a questão da unidade do corpo e da alma não é buscada
em meio as contradições que os enlaçam e os povoam, isto é, em um Pensamento
paradoxal para a partir daí poder pensar até o fim os polos em suas inversões positivas.
Na perspectiva do pensamento paradoxal, se introduzem inversões de uma razão que se
perde e de uma fé que se ganha; de um corpo que se faz espíritual e do espirito que é
absolutamente carnal, da exterioridade mais interior a si mesma que a interioridade, etc..
Aquilo que em princípio era característico de um dos polos agora se inverte e acirra as
contradições a ponto de suscitar uma concordância discorde no Sensível.
Nesse contexto, conclui o filósofo, a relação da filosofia ao cristianismo não pode ser a
relação simples da negação ao posicionamento, da interrogação à afirmação: a própria
interrogação filosófica comporta as suas opções vitais e num sentido, mantém-se na
afirmação religiosa. O negativo possui seu positivo, o positivo o seu negativo, e é
justamente porque ambos têm em si próprio o seu contrário que são capazes de vazar-se
um no outro e que desempenham perpetuamente na história, o papel de irmãos inimigos.
Em suma, contra a ontologia da positividade de Descartes que faz andar do Positivo ao
Positivo, a ontologia da negatividade positiva, faz ir do negativo ao positivo graças ao
outro polo que é negativo em sua positividade. Em suma, a unidade, a concordância entre
a interioridade e a exterioridade acontece no seio da própria Filosofia “e” no seio do
próprio cristianismo. Por isso, não se evoca a ideia do Infinito para socorrer aquilo que
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em princípio vivemos, mas não compreendemos a não ser movidos por um pensamento
infinito. Antes, se trata de explorar a chance que o ser como Natureza, como Ser selvagem
e como Espírito Selvagem realizam como possibilidade do (im)possível da relação entre
filosofia e cristianismo. Em outras palavras, a dualidade corpo e alma subsiste no interior
da filosofia e no interior do cristianismo e a história aponta para a existência de uma
filosofia cristã graças ao pensamento paradoxal que veio desbancar o pensamento infinito
que tenta conciliar os inconciliáveis a partir da Ideia da Perfeição. A dramática relação
entre filosofia e o cristianismo não encontra seu significado fora da Significação,
outrossim, o cristianismo é ao mesmo tempo lugar da carne do Verbo eterno que se pensa
a si mesmo e da eternidade da encarnação do Verbo que se pensa fora de si.

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