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Estreia 05/05/2016
Em 2007, enquanto Pascal Laugier finalizava o genial Mártires (Martyrs, 2008), a Blumhouse
Productions já experimentava o reconhecimento, através do sucesso de público de Atividade
Paranormal (Paranormal Activity), enquanto planejava o retorno da franquia nos anos de 2010 e 2011.
Se Atividade Paranormal encontrou seu lugar dentro do cinema de terror hegemônico, em terras
americanas (Norte e Sul), a película francesa de Laugier dominou a cena indie e cult dos cinéfilos de
terror, mantendo o alto nível daquilo que ficou conhecido como o “pequeno ciclo” do terror
francês nos anos dois mil. Mártires era aquele tipo de filme do qual você podia se gabar de conhecer,
ao mesmo tempo em que podia sentir-se “por fora” ao ouvir sobre ele pela primeira vez. A
qualidade do filme francês nos convoca a falar sobre ele, isto é, convoca ao testemunho daqueles
que o viram, entretanto, hoje precisamos falar sobre o seu remake: o filme americano Martyrs,
dirigido por Kevin e Michael Goetz.
Talvez a diferença mais gritante entre Mártires e Martyrs seja as mudanças em relação ao
corte narrativo entre as histórias de Anna e Lucie. Na película mais recente, a estrutura narrativa é
contínua e plena de sentido. Sente-se tanto uma preocupação, quanto um excesso em termos de
continuidade. Não podemos hesitar em nomear de “apelação”, a insistência do roteiro em produzir
efeitos de sentido entre cenas, planos, sequências, lógicas, montagens, discursos, personagens e até
mesmo entre Mártires e o filme atual. Por exemplo, no trabalho de montagem vemos e revemos –
no mínimo umas 5 vezes – cenas da infância Anna e Lucie. Não é difícil perceber o objetivo de tais
retornos, principalmente quando estão mesclados com as mais diversificadas cenas de perseguição,
aflição e tortura: enfiar goela abaixo a ligação afetiva entre a garotas. Com tal preocupação entre
outras, os irmãos Goetz derrapam em contar uma história, pois recorrem à uma forma narrativa
tradicional que revela o desenvolvimento de maneira linear e progressiva, recorrendo de maneira
convencional e enfadonha aos flashbacks.
Em Mártires temos uma divisão bastante clara entre a narrativa de Lucie e a de Anna. O
primeiro ato apresenta a fuga de Lucie, o estabelecimento de sua relação com Anna e com seu
demônio interior, seguindo para sua a vingança e por fim sua morte. Podemos ler o ato de Lucie
como um terror metafórico, no sentido de que seu trauma é transmutado em vingança e sua culpa
em monstro. Trauma e culpa são na personagem uma coisa só, fazendo com que o êxito da
vingança não resulte na extinção do monstro interior que a perseguiu desde a fuga. No remake toda
a sequência da vingança de Lucie é uma recapitulação quadro-a-quadro do filme anterior, com
exceção de alguns detalhes importantes. O principal: em Martyrs, Lucie não está sofrendo. Em
2016, o sofrimento da personagem foi substituído por raiva, posicionando-a afirmativamente na
posição de vítima que se vinga – impedimento a fratura narrativa que a envolveria com uma aura
psicótica presente em sua contraparte de 2008. Para usar um exemplo, a morte da “mãe” da família
em Mártires é seguida de uma cena em que a Lucie parece agonizar por seus atos. Ela sacode, beija,
acaricia e bate no corpo supostamente sem vida de sua carcereira. Já no novo filme, há apenas um
tiro que falha, e uma série de facadas. A falta motivacional da personagem distorce sua finalidade.
Se em a primeira Lucie descobre ser impossível curar um trauma, permanecendo “quebrada” até
seu fim, a segunda é construída como a escolhida, como portadora de um “dom” que há torna
“inquebrável” até o fim.
Assim chegamos ao ponto mais complicado, onde Martyrs assume-se como uma cópia
patética e despretensiosa do filme original. A narrativa de Anna compõem em 2008 o segundo ato.
No primeiro filme, Lucie não participa mais do filme a partir desse ponto, levando o filme do terror
metafórico, para uma das mais brutais representações da metafísica da tortura que já pode ser
observada em película. Não é só o gore e aflição que fazem vezes neste ponto, também encontramos
a representação da figura do Homo Sacer, aquele fiapo de humanidade produzido pelos campos de
concentração e manicômios. O ser humano que é destituído de tudo o que lhe conferiria um lugar
político e social. Em Martyrs, Anna empunha sua shotgun e retorna para salvar todas as vítimas do
culto sádico. Trata-se de uma homenagem desonrosa para com os westers ou até mesmo para a
própria ideologia norte-americana de que a barbárie tem de ser conquistada à bala. A espingarda e
o revolver são os símbolos da civilização, enquanto a deturpação do cristianismo é mal que deve
ser eliminado. Uma vez cumprida a tarefa de exterminar o mal através, as pistoleiras protagonistas
encontram os céus em um tipo de êxtase orgástico extremamente distante do olhar postado
apresentado pelo primeiro filme.
No segundo filme, vemos que as torturas são impulsionadas por mais por uma loucura
sádica, do pesquisa e idealismo em si. Há uma cena em Martyrs na qual Eleanor assiste ao sacrifício
de uma vítima. Esta é queimada como uma bruxa na inquisição e podemos ver na interpretação de
Kate Burton, que Eleanor também goza de seu sadismo. Por outro lado, Mártires ia além e era
certeiro em apontar o regime burocrático e demasiado humano pelo qual os captores de Anna buscam
lhe torturar. O sadismo não dá as faces em 2008, o que temos no lugar é trágica fusão entre razão
e fé. Talvez esse seja de fato o “crime” deste remake, apagar a estrutura poética e política do original.
Mártires é um filme que de certa maneira reconstrói a memória ficcional sobre o ato da tortura e
até mesmo do colaboracionismo francês. A cópia americana transforma a tortura em mote para
vingança e signo que aponta para a barbárie que deve ser combatida.