Você está na página 1de 5

Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal

Sistema de Información Científica

Lia Fernandes Ribeiro


Reseña de "Rumo à palavra: três crianças autistas em psicanálise" de Marie-ChristineLaznik-Penot
Psychê, vol. V, núm. 8, julho-dezembro, 2001, pp. 207-210,
Universidade São Marcos
Brasil

Available in: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=30700815

Psychê,
ISSN (Printed Version): 1415-1138
clinica@psycheweb.com.br
Universidade São Marcos
Brasil

How to cite Complete issue More information about this article Journal's homepage

www.redalyc.org
Non-Profit Academic Project, developed under the Open Acces Initiative
Resenhas | 207

LAZNIK-PENOT, Marie-Christine. Rumo à palavra: três


crianças autistas em psicanálise. São Paulo: Escuta, 1997.
252p. ISBN 85-7137-121-0.

m uma conferência proferida em 1975 se chegam a falar, pronunciam algo que


E em Genebra, LACAN (1988) faz uma
exata – e, para muitos, surpreendente –
parece ser “qualquer coisa”?
O leitor que já tenha tomado um con-
menção às crianças e/ou adultos conheci- tato mais próximo com a psicanálise com
dos como autistas. Diz ele que há algo no crianças sabe que uma criança fala não só
autista que se gela. Entretanto, acrescen- através das palavras que pronuncia, mas
ta, não se pode dizer que eles não falem. pelos desenhos que faz, pelos cenários
“Que nós tenhamos dificuldade de ouvi- imaginários que monta em seu brincar e
los e de dar ao que eles dizem toda sua também pelas palavras ditas na sessão com
dimensão não quer dizer que eles não fa- seu analista. Entretanto, com as crianças
lem e não impede que sejam personagens autistas, algo diferente das outras se pas-
mais verbais que outra coisa”. O trabalho sa. Se já andam (pois em certos casos até
clínico que Marie-Chistine Laznik apre- o tônus muscular pode estar comprometi-
senta e relata com muita delicadeza em do e a criança se encontrar muscularmen-
Rumo à palavra é um testemunho vivo e te prostrada), parecem perambular a esmo
inelutável desta máxima. Ali somos apre- pela sala, ignorando por completo a pre-
sentados a crianças autistas tomadas pre- sença do analista, sem olhar, parecendo
cocemente em tratamento e que foram não ouvir e com um “brincar” muito dife-
ouvidas por esta analista por, pelo me- rente – às vezes encontrando um objeto e
nos, seis ou sete anos. batendo “mecanicamente” sobre uma su-
São relatos de três psicanálises, como perfície, ou contemplando demoradamente
o título do livro bem indica. Dois garoti- algo sem chegar a montar qualquer nar-
nhos ao redor de dois anos e de origem rativa ou historinha com isso. Encontram-
estrangeira – um turco e outro da Cabila se, muitas vezes, muito distantes do dese-
(região da Argélia que tem uma tradição e nho ou mesmo do brincar com bonequi-
língua próprias) que se encontravam em nhos ou jogos. Haveria aí uma psicanálise
um mutismo praticamente absoluto quan- possível?
do chegaram; e uma menina – francesa – Se a estranheza que uma criança
que apenas cantarolava, por vezes, trechos autista costuma despertar pode desorien-
soltos de canções antigas, parecendo de- tar um analista, muito mais atinge aos
coradas e proferidas a esmo. educadores, familiares e pessoas de seu
A primeira pergunta que pode ocor- convívio comum que, mais que depressa,
rer, bem justamente, ao leitor que se ini- passam a tomar seus gestos, rudimentos
cia na psicanálise, é como “ouvir” estas fonéticos e atos como sendo radicalmen-
crianças? A psicanálise, tal como Freud a te insensatos, como estando à margem de
formulou, não é um tratamento pela fala qualquer sentido: “Isto não quer dizer
– a talking cure batizada por Anna O.? nada” – é o que tanto se escuta. Aí se
Como ouvir crianças que não falam ou que, coloca tão apropriadamente o que Lacan

Psychê — Ano V — nº 8 — São Paulo — 2001 — p. 207-210


208 | Resenhas

enuncia: como não conseguimos ouvi-los, do não guardar a menor relação com o
achamos que eles não falam. que a criança sentiu ou sente; e, enfim,
Por outro lado, como não estranhar 4. por parecerem descargas motoras
uma criança que, desde bebê (temos no- sem destinatário, como se fossem “ditas
tícia de diagnóstico possível de autismo para ninguém”.
já aos seis meses de idade), desvia siste- É frente a estas crianças de compor-
maticamente os olhos de sua mãe, fixan- tamento aparentemente insensato, cuja
do-os, congeladamente, no teto, nas ves- fala, como dizia KANNER (1997), nada pa-
tes, nos objetos? O mesmo se passando rece comunicar, que o analista, em uma
quanto ao ouvir – função em relação à qual aposta extrema e radicalmente psicana-
também parecem estar em uma cápsula, lítica afirma, peremptório e irredutível:
não acusando reação à voz da mãe, pou- Tem um sentido. Algo de grande valor e
co ou nada vocalizando para ela – che- que as afeta está sendo dito ali e é preci-
gando estas crianças a serem tomadas so rastrear. Este talvez seja o maior méri-
como surdas, quando isto se estende até to – antes de tudo ético – deste livro: re-
o momento esperado da aquisição da fala. conhecer um sujeito ali onde ele parece
Ou ainda, como é comum, vermos se apre- mais radicalmente excluído.
sentarem em movimentos estereotipados Uma coisa é que amemos estas crian-
de mãos dedilhando na frente dos olhos, ças, tentemos fazer laço com elas – este é
ou em rodopios repetitivos em torno do o trabalho que se verifica em muitas ins-
eixo do próprio corpo, podendo estar pre- tituições – outra coisa é tomá-las rigoro-
sentes até mesmo as auto-mutilações. samente a sério em seus enunciados. Isto
Estamos aqui falando de crianças inten- faz um psicanalista e nisto a autora nos
samente mergulhadas em um autismo, ensina. Levando ao pé da letra a frase de
para que o leitor possa sintonizar com esta Lacan que diz que “uma fala somente é
clínica em suas expressões mais extremas. fala na medida exata de alguém que nela
Quanto aos enunciados, quando já crê”, a analista vai trabalhando com a
estão presentes em uma criança ou mes- criança e os pais em uma aventura de de-
mo em um adulto, estes também costu- cifração. Grande parte dos tratamentos
mam desorientar quanto ao seu valor de são sessões em que estão a criança e a
mensagem: mãe; em alguns momentos, o pai; uma
1. por sua dispersão – são muitas ve- observadora que vai anotando o decurso
zes tocos de palavras ou ruídos pronun- das sessões e as expressões enigmáticas
ciados isoladamente, como fora de con- e truncadas ditas pela criança. No caso
texto; dos dois garotinhos pequenos – Halil e
2. pelo automatismo – quando já se Mourad – tratavam-se de expressões di-
articulam em frases, parecem repetições tas em uma outra língua (respectivamente
de gravador, supostamente cópias literais em turco e na língua cabila). Entretanto,
do que a criança teria ouvido de um ou- a maior tradução que é operada por esta
tro (inclusive sem inversão pronominal); analista é menos entre as línguas e mais
3. pela ausência de investimento como um intérprete, que vai vertendo o
afetivo na fala – são enunciados muitas aparente não-senso dos tocos de palavras,
vezes monocórdicos, mecânicos, parecen- estribilhos, ruídos que a criança profere

Psychê — Ano V — nº 8 — São Paulo — 2001 — p. 207-210


Resenhas | 209

– em mensagens plenas de sentido. A Embora o tecido teórico em que se


autora toma tais expressões como frag- apóia a clínica de Laznik seja denso – e
mentos de inscrições significantes, que nos auxilie, por isto, a construir uma es-
não lograram se articular em cadeias, es- cuta atenta nestes casos – o caráter emi-
tando estas inscrições dispostas, nestes nentemente clínico deste livro é das me-
casos, em uma organização do aparato lhores introduções ao seu pensamento.
psíquico anterior à constituição do incons- Podemos acompanhar uma analista com
ciente. Há que reencontrar seu fio... seu estilo trabalhando nas sessões, crian-
É neste intuito que Laznik vai do, se exasperando em alguns momentos
rastreando os sons emitidos por estas cri- difíceis, voltando-se à teoria, buscando
anças no dicionário do Outro (o grande entender o que da clínica continuamente
Outro em Lacan) – o tesouro dos signifi- escapa e surpreende ao analista – que é,
cantes da história singular de cada uma por excelência, um ouvinte e nunca um
delas – cujo sentido vai sendo, a partir sabedor.
destas palavras-isca, desdobrado da his- Uma última palavra é necessário di-
tória dos pais, de sua migração, dos zer. A autora toma todos os cuidados em
avatares sempre particulares e atraves- afirmar que o tratamento na clínica do
sados de lutos não feitos (seja de um ou- autismo se faz ao contrário da cura analí-
tro filho, seja de seu país de origem, de tica clássica, já que nesta última se ouve
suas raízes, de um avô perdido). E isto um sujeito do inconsciente já constituído
sempre no caso-a-caso de histórias que – e, no caso dessas crianças, inversamen-
cercaram o nascimento daquelas crianças te, trata-se de possibilitar, via o trabalho
e lhes dificultaram encontrar um lugar da análise, o advento de um sujeito. En-
simbólico em que pudessem se constituir tretanto, se a autora não deixa de cha-
– e no qual se pudesse desenhar, no olhar mar a atenção para esta diferença e ad-
do Outro primordial, uma imagem ideali- vertir que falar em sujeito, lacanianamen-
zada que viesse a cobrir seu corpo real. te, implica em uma articulação fantasmá-
A hipótese metapsicológica que fun- tica entre o sujeito e um objeto-causa de
damenta a clínica que a autora vai desdo- desejo como uma falta estrutural, ela
brando através dos relatos das sessões – igualmente não deixa de se referir a um
entremeados a articulações teóricas com- sujeito mítico e de se dirigir e supor um
plexas – é a do autismo como organização sujeito nas crianças que escuta o tempo
defensiva face ao fracasso da instauração todo. E isto me parece fundamental.
do registro do inconsciente e, mais preci- Há marcas operando ativamente no
samente, da função de representação. psiquismo “oblíquo” destas crianças –
Atrela tal dificuldade à não instauração, marcas que se disfarçam de nós se não as
na criança, do circuito pulsional (conceito ouvimos, como alerta Lacan. Entretanto,
extremamente útil à clínica do autismo e que tais marcas sejam suficientes para
saído da teoria da pulsão em Freud e de sustentar uma identificação para o sujei-
sua retomada em Lacan); à não constitui- to. O que quer dizer, do ponto de vista
ção do eu, da imagem especular – fracas- imaginário, ancorar a constituição da ima-
sos constitutivos que, na origem, remetem gem especular, para que a criança possa
a falhas no olhar do Outro primordial. reconhecer-se em um eu; e, do ponto de

Psychê — Ano V — nº 8 — São Paulo — 2001 — p. 207-210


210 | Resenhas

vista simbólico sustentar, na vacilação da Referências Bibliográficas


cadeia significante, um eu quero, é outra LACAN, Jacques. Conferencia en Ginebra so-
coisa. Não obstante, há algo de extrema- bre el síntoma. In: ____. Intervenciones y tex-
mente próprio e singular que fala em cada tos 2. Buenos Aires: Ediciones Manantial,
1988.
uma delas. Há um determinismo da ca-
deia significante que lhes concerne e se KANNER, Leo. Os distúrbios autísticos do con-
tato afetivo. In: ROCHA, Paulina Schmidt-
faz presente naquilo que cada uma delas bauer (org.). Autismos. São Paulo: Escuta; Re-
pronuncia, no seu brincar particular, nos cife/PE: Centro de Pesquisa em Psicanálise e
seus atos e gestos mais incipientes. E se Linguagem, 1997. Tradução: Monica Seicman.
esta suposição é necessária para rumar- (texto original inglês: Autistic disturbances of
mos com estas crianças em direção à pa- affective contact”. Nervous Child).
lavra mais plena, a escuta do sujeito em
sua singularidade, em qualquer clínica, Lia Ribeiro Fernandes
em qualquer estrutura, é o que faz de al- Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
guém um analista. e-mail: liafernandes@uol.com.br

Psychê — Ano V — nº 8 — São Paulo — 2001 — p. 207-210

Você também pode gostar