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Mulheres Caciques: Uma etnografia sobre as representações de gênero a respeito de

lideranças femininas Guarani em Santa Catarina1.

Francine Pereira Rebelo (UFSC)

Resumo: Esta pesquisa visa refletir sobre as representações de gênero a respeito da


presença de mulheres caciques nos espaços de discussão política entre os Guarani do
Sul do país, bem como as implicações dessa participação feminina na luta pelo
reconhecimento dos direitos territoriais indígenas. A partir da trajetória de duas
caciques, Eunice e Arminda, das aldeias Itaty (Morro dos Cavalos) e Jatay Ta
(Conquista), nos municípios de Palhoça e Balneário Barra do Sul, respectivamente,
busco compreender as implicações políticas de uma liderança feminina visto que só
recentemente as mulheres assumem novas representações no contexto indígena. Dado o
cenário geral dos desafios de regularização das Terras Indígenas no Brasil e mais
especificamente de Santa Catarina é necessário não apenas compreender o contexto de
ocupação do litoral do estado, marcado historicamente por relações assimétricas, mas
também as redes de união e de resistências articuladas pelos Guarani como forma de
enfrentamento a esses desafios. Em Santa Catarina, muitos elementos misturam-se aos
conflitos e encontramos uma obstaculização das demarcações e homologações das
Terras Indígenas marcadas por interesses econômicos e políticos contrários, uma
imprensa fortemente opositora, além das perícias, muitas vezes utilizadas como
instrumento de contestação para atrasar os processos demarcatórios. A pesquisa
etnográfica é realizada nesse cenário e busca dar uma contribuição nas temáticas de
gênero, etnologia, assim como nas discussões a respeito da garantia dos direitos
indígenas.
Palavras-chave:, lideranças , etnologia índigena, gênero, Guarani.

Este trabalho faz parte da minha pesquisa de mestrado referente às lideranças


indígenas Guarani Mbyá em Santa Catarina, mais especificamente, das mulheres
caciques. Trata-se de uma pesquisa em andamento, portanto, muitas das reflexões aqui
realizadas serão, posteriormente, aprofundadas e re-discutidas. Cabe nesse artigo,
levantar as questões que pareceram pertinentes até esse momento do trabalho, atentando
1Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os
dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

1
principalmente para o contexto geral de disputas de terras em Santa Catarina, assim
como para atuação e desafios das mulheres indígenas frente a esse cenário desfavorável.
O campo junto às mulheres indígenas vem sendo realizado desde 2013, através
de diferentes participações. Neste ano, participei de diversas cerimônias religiosas,
eventos acadêmicos e manifestações realizadas na aldeia Itaty / Morro dos Cavalos,
município de Palhoça,Santa Catarina. Além disso, durante dois meses, participei
semanalmente de aulas de Guarani ministradas pelo companheiro da cacique Eunice
Antunes, realizadas na aldeia. Tive acesso a esse grupo também através das atividades
do PROEXT, projeto de extensão organizado pelo NEPI (Núcleo de Estudos de
Populações Indigenas/UFSC) que tem como objetivo apresentar para os alunos
indígenas o contexto da universidade, principalmente no que concerne aos processos
políticos e burocráticos das cotas para o ingresso nas instituições de Ensino Superior.
Eunice Antunes, além de professora do colégio Itaty e cacique da aldeia Itaty (Morro
dos Cavalos), é aluna Guarani do curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da
Mata Atlântica na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), por esse motivo,
permanece na cidade de Florianópolis durante as etapas de aula e frequentemente é
convidada a participar de eventos diversos na universidade. Ademais, na semana cultura
indígena realizada pela escola Itaty, em abril de 2014, permaneci uma semana na casa
da cacique.
A outra cacique central nessa pesquisa é Arminda Ribeiro, liderança na aldeia
Conquista (Jatay Ta), em Balneário Barra do Sul. Tive contato com Arminda Ribeiro,
primeiramente através do PROEXT, realizando duas visitas na aldeia, nos dias 14 de
outubro e 21 de outubro de 2013. A segunda ocasião foi a participação em uma equipe
de perícia de demarcação de terra nas Terras Indígenas (T.I) Piraí, Tarumã, Pindoty e
Morro Alto, na região norte do litoral de Santa Catarina. A aldeia Conquista está
inserida na T.I. Pindoty, juntamente com as aldeias de Pindoty, Yvapuru e
Jabuticabeiras. A perícia teve dois trabalhos de campo, um realizado entre os dias 01 e
12 de dezembro de 2013 e o outro entre os dias 03 e 17 de fevereiro de 2014. A
participação em diligências periciais contribuiu não apenas para o fortalecimento do
contato com a cacique, mas também para o conhecimento aprofundado das aldeias das
quatro Terras Indígenas, do histórico de ocupação da região e das relações de parentesco
entre os Guarani. Ademais, permaneci na aldeia Conquista por dez dias no mês de maio

2
de 2014, durante a primeira etapa do campo do mestrado.
Para além dessas duas lideranças, em maio de 2013 viajei até Guaíra, no oeste
do Paraná, onde conheci a cacique Paulina Martins do Tekohá Yhovy. Por uma questão
de tempo, dada a brevidade do mestrado, de distância, visto que Guaíra é no Norte do
Paraná, fronteira com o Mato Grosso do Sul e levando em consideração que as outras
duas caciques apresentadas fazem parte do subgrupo guarani Mbyá e que a cacique
Paulina se considera Avá-Guarani, decidi que seria melhor nesse momento não dar
continuidade à pesquisa com Paulina Martins e aprofundar , sobretudo, na trajetória das
interlocutoras Eunice e Arminda. De todo modo, as contribuições da cacique são
utilizadas nas reflexões expostas nesse artigo.

Contexto territorial indígena em Santa catarina e as formas de representações


políticas.

De acordo com Brighenti (2012), existem em Santa Catarina 25 Terras e


Reservas Indígenas ocupadas pelas etnias Xokleng, Guarani e Kaingang. A maior parte
da ocupação é feita pelos Guarani, visto que estes ocupam 20 entre os 25 territórios
catalogados.
Em sua totalidade, as terras indígenas no estado representam 77.759 hectares.
Proporcionalmente esses números condizem a menos de 1% do território de Santa
Catarina, o que é agravado pelo fato de que atualmente, por falta de regularização e pela
ocupação de particulares e do poder público, os indígenas não dispõem da posse de mais
de 38.000 desses hectares. Ou seja, mais de 50% desse território não está efetivamente
nas mãos dos indígenas (BRIGHENTI, 2012).
Esse cenário de distribuição de terras, desfavorável aos indígenas, faz com que
as aldeias lideradas pelas caciques enfrentem cotidianamente desafios relacionados à
luta pelas terras. O envolvimento em disputas judiciais mistura-se aos conflitos com
fazendeiros, empresários e interessados em terras indígenas, transformando o cotidiano
desses povos em uma constante política de resistência frente aos não indígenas.
A tabela a seguir, oferecida por Brighenti (2012), permite uma visualização da
situação fundiária das Terras Indígenas em Santa Catarina. Analisando a tabela é
possível verificar que, exceto pelas reservas em Major Gercino, Canelinha e Chapecó e

3
da terra Kaingang/Guarani em Ipuaçu e Entre Rios, homologada em 1991, todas as
outras Terras Indígenas da região encontram-se em processos ainda não iniciados, sem
providência ou estudo prévio, ou em processo de tramitação jurídica, sendo que o
número de finalizações judiciais à respeito das Terras Indígenas é muito pequeno.

4
Nas Terras Indígenas em que os processos se encontram em tramitação,
declaradas ou demarcadas, muitos elementos misturam-se aos conflitos. No contexto
específico de Santa Catarina, encontramos uma obstaculização das demarcações e
homologações das Terras Indígenas marcada por interesses econômicos e políticos
contrários, uma imprensa fortemente opositora, além das perícias, muitas vezes
utilizadas como contestação para atrasar os processos demarcatórios (IORIS E
DARELLA, 2013-prelo)
Muito recentemente, em dezembro de 2013, o deputado Reno Caramori (PP/SC)
em entrevista concedida ao vivo no programa Bom Dia Santa Catarina, da RBS TV, atribuiu
à FUNAI a culpa das mortes provocadas por acidentes na BR-101, no trecho do Morro dos
Cavalos, já que segundo ele, esse órgão impede a construção de uma nova faixa. O deputado
afirmou que os responsáveis da FUNAI deveriam "ir para o inferno vivos" e completou :
“Meia dúzia de família de indígenas, de silvícolas, Qual é a contribuição dessa camada
social para com a sociedade catarinense, do mundo?”
Essas forças políticas associadas a interesses econômicos contrários e a uma
imprensa pouquíssimo ética frente a causa indígena nos permite compreender um pouco
do panorama e da vivência dos indígenas de Santa Catarina. Uma notícia publicada em
novembro de 2012 pelo jornal Notícias do Dia, intitulada “Donos de terra de Araquari
são alvo de desapropriação” mostra que grandes proprietários da região reclamam da
demarcação de área indígena. De acordo com Claudino Garbin, proprietário
entrevistado:

“Por que não levam estes índios para a Amazônia? Em cem


anos de registro destas terras nunca teve índio aqui. Esta é a
nossa guerra. Estamos há 12 anos de briga entre proprietários
e Funai. Aqui, nunca teve índio e não deixo entrar. Não são
loucos de entrar”, avisa2 (grifos meus).

A ideia de que em Santa Catarina – o estado mais “branco” do Brasil 3 - nunca


2 Jornal Notícias do Dia. Donos de terra de Araquari são alvo de desapropriação Proprietários de grandes
propriedades reclamam de demarcação de área indígena. Publicado em 24/11/12-12:17 por: Cláudio
Costa. Disponível em http://www.ndonline.com.br/joinville/noticias/39132-donos-de-terra-de-araquari-
sao-alvo-de-desapropriacao.html.
3 De acordo com o CENSO 2010/IBGE , o Estado de Santa Catarina com 84% de brancos auto-
declarados é a unidade da federação com maior proporção do Brasil.

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teve índios é recorrente e muito explorada pela mídia, não só local como também
nacional. A matéria intitulada “Made in Paraguai – A FUNAI tenta demarcar área de
Santa Catarina para índios paraguaios enquanto os do Brasil morrem de fome”,
publicada em 2007 pela Revista VEJA, é representativa no que diz respeito aos
argumentos utilizados pelas forças contrárias a garantia das Terras Indígenas.
Por mais que se trate de notícias jornalísticas que defendem interesses políticos
específicos, os argumentos apresentados pelas grandes mídias incidem na formação da
opinião pública e na própria compreensão dos processos pelos representantes legais
responsáveis pelo andamento das questões fundiárias referentes aos indígenas. Desse
modo, grande parte da argumentação contrária à regulação de terras enfatiza a “não-
presença” indígena histórica na região e a atual ocupação de indígenas “provenientes do
Paraguai”.
As terras indígenas lideradas pelas caciques entrevistadas, encontram-se nesse
contexto. A aldeia Conquista está inserida nesse momento em processos periciais, sendo
foco de uma perícia de demarcação. Em 12 de maio de 2008, foi publicada pelo Diário
Oficial da União, a delimitação da T.I. Pindoty. Dado o período do contraditório, de 90
dias, a empresa Karsten S.A., Associação dos Proprietários de Terras Ameaçadas pelos
Índios(ASPI), Prefeitura Municipal de Araquari e Estado de Santa Catarina
apresentaram contestações à FUNAI. Desse modo, uma nova perícia foi requisitada,
sendo que atualmente a comunidade aguarda a conclusão das diligências periciais e o
parecer jurídico referente à T.I. Pindoty4 .
O Morro dos Cavalos, outra área pesquisada, recentemente passou pela tensão
da realização de uma nova perícia, sendo que esta foi revogada pelo juiz, em dezembro
de 2013. A Ação Popular para a nulidade do processo demarcatório (2013)5 foi
requisitada pelo juiz para que não fosse imposto ao Poder Judiciário “um julgamento
superficial, baseado em presunções e estudos técnicos parciais, que não são confiáveis
aos olhos das partes”6. Nesse momento a comunidade aguarda o último procedimento

http://portalsobresantacatarina.com.br/rankings/ranking-de-proporcao-de-racas-santa-catarina-tem-a-
maior-proporcao-de-brancos-do-pais/(Acesso em 02/06/2014)
4 Essas informações foram retiradas do documento intitulado “Componente Indígena do Estudo de
Impacto Ambiental – Relatório de Impacto Do Meio Ambiente Duplicação da Rodovia BR 280 -
Trecho São Francisco do Sul – Jaraguá do Sul / Santa Catarina”, realizado pela equipe técnica
acadêmica composta por Maria Dorothea Post Darella, Flávia Cristina de Mello, Fabiana da Silva,
Diogo de Oliveira e Raoni Kriegel Kamayurá.
5 Processo ,2009.72.00.002895-0 .
6 Trecho retirado do Despacho do Juiz Federal referente a Situação atual da AÇÃO POPULAR Nº

6
necessário para garantia da terra, ou seja, a homologação. Por esse motivo, a realização
de uma perícia causava temores na comunidade devido à possibilidade de ainda mais
atrasos para a conclusão do processo.
Segue abaixo um mapa oferecido por Brighenti (2012) que permite a
visualização da aldeia Conquista e aldeia Morro dos Cavalos concentradas na região
litorânea, assim como a disposição das demais aldeias, não apenas Guarani, mas
também Xokleng e Kaingang, do estado de Santa Catarina.

2009.72.00.002895-0/SC em 11 de setembro de 2013. (Ioris e Darella, 2013)

7
Atuação política e articulação das caciques Guarani Mbyá frente a luta pela terra

Eunice Antunes, cacique do Morro dos Cavalos, tem 34 anos e três filhos. É
casada com o vice-cacique da aldeia e acompanhada por ele nos eventos em que
participa e também no curso da Licenciatura Intercultura Indígena do Sul da Mata
Atlântica (UFSC). Eunice domina o português, não só na oralidade, mas também na
escrita e pretende fazer pós-graduação. Acredita que foi escolhida pela comunidade
como liderança visto as ações que realizou como professora e pelo sucesso na
elaboração de projetos para captação de recursos para aldeia. Para Eunice, professores
são automaticamente lideranças e por isso devem dar exemplo para o resto da
comunidade.
Arminda Ribeiro, de acordo com sua documentação, tem 60 anos, tem dez filhos
e foi casada duas vezes. O primeiro companheiro foi atropelado há 20 anos por um
caminhão na BR 101 de Santa Catarina e Arminda não está mais com o segundo
companheiro, sendo que cuida dos filhos apenas com a ajuda dos outros filhos mais
velhos. Desde o primeiro contato que tive com Arminda, ela deixou claro a dificuldade
de se expressar em português. Começou a aprender o idioma com mais de 30 anos e
sabe apenas assinar o nome. Normalmente, quando participa de algum evento ou
reunião, conta com a ajuda dos/as filhos/as para tradução.
É importante ressaltar que existe entre as caciques não apenas uma distância
geracional, mas também uma diferença nos níveis de escolaridade. Essas diferentes
trajetórias faz com que as estratégias de lutas utilizadas por elas também sejam distintas,
apesar dos objetivos finais em comum, ou seja, a garantia dos direitos territoriais
indígenas e a defesa do modo tradicional de vida Guarani.
De acordo com Eunice Antunes, durante uma mesa-redonda realizada na
Universidade Federal de Santa Catarina:

“Na Terra Indígena Morro dos Cavalos hoje vivem 28 famílias,


no total de 200 pessoas entre crianças e adultos e a gente vem

8
vivendo nesse lugar assim com bastante conquista, ao mesmo
tempo bastante luta, né. Nesse momento a gente tá passando
por uns conflitos, na terra indígena porque ela é uma terra
demarcada e pra se tornar registrada e a gente ocupar o espaço
da terra assim sem tá correndo risco de perder pra União ou
pras pessoas que querem tomar a terra da gente, a gente
precisa ter o registro da terra. Então, tem vários processos que
passa, desde da demarcação, da demarcação física, e a gente tá
na parte da desintrusão que é a parte onde os moradores da
terra indígena recebem uma indenização e daí vão desocupando
os espaços para que os indígenas ocupem. Então a gente tá
nesse processo, pra nós é uma conquista muito grande, mas ao
mesmo tempo é um dos mais difíceis da nossa conquista, porque
a gente tá lidando com pessoas, né, que moram na terra e aí se
recusam sair, e aí existe uma grande política por de trás disso
também né, de pessoas que moram próxima, aí tem interesse
particular né, em cima dessas terras. Nesse momento a gente tá
nesse turbilhão, né, passando por essa turbulência”
(Transcrição da filmagem do evento realizado em 04/03/2013 -
grifos meus)

Arminda Ribeiro, em suas palavras, mostra também a preocupação que tem em


relação à garantia das terras. Em uma conversa com Regina da Silva, filha de Dona
Arminda que gentilmente serviu como tradutora, Antônio, vice-cacique da aldeia e
Arminda, foi me falado que:
Perto ali, tem uma placa, tá vendo agora que a FUNAI
marcou ali, tem uma placa ali, mas não tá respeitando a nossa
área, daí já tão limpando onde tem placa assim e lá pra dentro
já tão limpando, pra fazer uma casa ali, daí já tá preocupada,
minha mãe, os mais velhos, porque já vai ter um casarão ali do
djurua7, e daqui a pouco já tem bastante ali, daí não vai ter

7 O termo, nas palavras dos Guarani, se refere aos “brancos”, sendo utilizado para designar os não-
indígenas.

9
mais lugar, até aqui não vai ter mais lugar, já tá chegando o
djurua kuery8..(conversa realizada em 05/01/2014)

Segundo Mello (2001), as poucas terras demarcadas e as condições fundiárias


cada vez mais adversas, exigem uma luta cotidiana dos Guarani pela sobrevivência
física e pelo que chamam de “resistência cultural”. A autora aponta algumas dessas
estratégias de resistência utilizadas pelas famílias Guarani, entre elas: “o isolamento, a
endogamia, as 'fugas' estratégicas para o seu povo 'não se acabar', a rígida preservação
da língua, que tem uma simbologia sagrada, a migração e a mobilidade”(p.54).
Ladeira (2008), no mesmo sentido, afirma que são inúmeras as ações que
atingem os territórios Guarani. Ademais, as condições de enfrentamento são marcadas
por grande desigualdade (DARELLA, 2004). De todo modo, segundo Ladeira, é notório
que as estratégias Guarani para conviver com essa realidade se atualizam, sendo assim:

Nas últimas décadas, as demandas por parte dos


Guarani, para demarcação de áreas redescobertas ou
retomadas (antigas aldeias ou acampamentos), acentuaram-se,
refletindo o empenho em assegurar, diante das condições cada
vez mais adversas, a base territorial de sustentação de sua
sociedade. Isso indica ainda como a indisponibilidade de terras
afeta o modo de viver e gerenciar sua espacialidade (p.196).

Darella (2004) aponta as dificuldades das lideranças no dia a dia para o trato das
questões relativas à regularização fundiária. A autora afirma que trata-se de um
cotidiano exaustivo, com uma intricada gama de assuntos de complexa compreensão,
agravada pela dificuldade com a língua portuguesa e a necessidade de atendimentos
internos e externos. Ademais, as atividades somam-se à já árdua tarefa da sobrevivência
de suas famílias. No caso das mulheres pesquisadas, essa rotina é acrescida ainda com o
cuidado diário destinado aos filhos.
Frente aos obstáculos enfrentados pelas lideranças, as caciques apresentam
diferentes estratégias de resistência, sendo necessário, nesse caso, dar destaque aos

8 Djurua-kuery designa os não-indígenas no modo plural.

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aspectos geracionais. Se, por um lado, Eunice domina a língua portuguesa e se expressa
de maneira exemplar, o que facilita a compreensão dos trâmites, mesmo que complexos
dos processos de regularização das terras. Do outro lado, Arminda Ribeiro diz estar
cansada da posição de cacique e acha que esse/a tem que falar bem a língua portuguesa.
A cacique acha que atualmente a luta pela garantia da terra deve se dar “pela lei do
branco”.
No que se refere aos processos de regularização, é importante destacar ainda que
antes era comum entre os mais velhos desviar dos processos de legitimação de espaços
para si, por considerarem a definição de espaços fixos e o confronto com a sociedade
englobante contrários ao modo de vida Mbyá. Foi diante dos novos contextos de
degradação ambiental intensa e cerceamento dos não-índigenas que estes passaram a ver
a necessidade da garantia dos espaços e cumprimento das ações referentes aos direitos
indígenas. (ASSIS & GARLET, 2004).
Por mais que Arminda Ribeiro acredite que a garantia das terras aconteça através
das leis dos brancos, das quais ela não se considera conhecedora, a liderança tem
importância fundamental na comunhão da comunidade em que vive. Deste modo, é
responsável por dar “continuidade” ao modo de ser Guarani, reunindo diariamente o
grupo em volta da fogueira, relembrando os tempos antigos, dos quais sofre de saudade
e deixando claro para as gerações mais novas como era a vida Guarani quando estes
dispunham de terras para sobreviver sem a interferência dos não-indígenas.
De acordo com a cacique Arminda, traduzida pela sua filha Arminda Ribeiro:

“A mudança de agora e de antigamente não combina mais,


porque pra viver que nem antigamente, para não perder nossa
cultura é difícil. Pensar no futuro, agora em diante, para os
mais velhos, é muito dolorido. Pra não afundar, nós precisamos
de um lugar bem sossegado, mato, onde tenha remédio, que a
gente não tem mais remédio medicinais, né, perdemos tudo isso
aí também. Aí, as crianças não vai saber mais o que é remédio,
medicina. Nem eu mesmo não sei mais o que é remédio da
medicina, agora eu tô fazendo curso sobre isso com djurua, era
pra fazer curso com tchedjuarÿi, é isso que nós estamos

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perdendo, daí, para as pessoas mais velhas, isso dói muito. Daí
pra viver, tem que ter a terra, daí essa é a preocupação dela da
minha mãe (Dona Arminda), nisso que nós estamos perdendo,
nós estamos morando perto da cidade, daí os homens já vai
andando na cidade, tomando cachaça, daí já perde muito nisso
aí. Porque tamo perto da cidade, senão não ia acontecer isso. A
gente não tem mais onde plantar, a gente queria plantar um
pouco ainda. Antes a gente plantava milho, batata, melancia, a
gente plantava para comer, agora tem que comprar, quem não
planta, tem que comprar no mercado. Não tem mais onde
pescar, não tem mais onde fazer armadilha pra caça, a gente
que ficou com medo já, porque o djurua não quer mais que a
gente entre no mato para fazer isso, antigamente era Guarani
que não queria mais que djuruá entrasse no mato. Agora
mudou, trocou tudo, daí a nossa preocupação é essa. Aqui, eu
acho que tem tatu, quati, capivara, nessa região ainda, só que
não dá pra gente entrar lá e caçar, tem um homem que queria
entrar lá e caçar, mas a gente ficou com medo, daí a
preocupação dela é essa, daí quem não pensa assim vai lá no
bar, tomar uma, vem e briga, é isso que a gente não quer. Não
tem mais opy também, opy pra ficar pertinho assim da escola
não pode, não dá pra gente deixar mais pra trás, tudo isso tem
incomodado nós. (transcrição da conversa realizada em
05/01/2014)

Não trata-se de estratégias excludentes ou contrárias frente a usurpação do


território pelos não-indígenas, mas sobretudo das possibilidades reais de atuação de
cada uma das lideranças, Arminda e Eunice. Como mencionado anteriormente, Eunice é
professora e grande parte do seu dia é envolvido pelas atividades da escola e do curso de
Licenciatura Indígena. Além disso, a aldeia do Morro dos Cavalos, visto à proximidade
com Florianópolis, é representativa dos Guarani no diálogo com os órgãos públicos,
sendo que muitas vezes é Eunice a responsável por essa interlocução.

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Eunice é apoiadora das escolas indígenas e aposta na Educação diferenciada
para os alunos/as como forma de articular no ambiente escolar os conhecimentos dos
'mais velhos' ,que seria a cultura, a língua, a crença, os rituais, agricultura, entre
outros. De acordo com a liderança:

“A gente tem várias conquistas, a gente tem uma escola


lá na nossa aldeia que aos poucos, desde os mais velhos até
hoje, a gente vem tentando cada vez mais melhorar a parte da
educação que é a parte principal né, pra qualquer cultura,
qualquer comunidade. A gente pensa no futuro dos nossos filhos,
dos nossos netos, e das gerações que virão e a gente sempre
pensa o melhor e o melhor para nós é manter a nossa cultura,
né, a nossa tradição, correr atrás daquilo que a gente perdeu,
correr atrás daquilo que a gente deixou, né, sei lá por causa do
que, talvez porque a gente não teve uma condição de trazer até
agora , são vários fatores que levaram a gente a perder algumas
coisas, mas assim, a gente não esquece, a gente tá sempre
correndo atrás daquilo que é a essência que a gente fala, da
educação e hoje, graças a Deus, a gente tem uma escola bem
estruturada, assim, eu digo bem estruturada não da parte
política, mesmo dos governantes, nem do Estado, mas bem
estruturada assim no contexto indígena mesmo, que é um sonho
que os mais velhos vem sonhando desde o ínicio... Os mais
velhos rejeitaram uma época as escolas nas aldeias porque a
escola porque a escola tava tirando a criança do meio dos
familiares, de dentro da casa de reza e trouxe para um lugar
fechado, onde ali fazia uma lavagem cerebral na cabeça da
criança né e ela acabava não tendo mais aquele tempo de
receber a educação familiar que era como era passado
antigamente e acabou deixando os rituais para não faltar aula.

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Eunice, na mesa intitulada 'Encontro com lideranças indígenas”, realizado na
Universidade Federal de Santa Catarina afirmou que acredita que a entrada dos
indígenas na universidade representa um grande avanço para que possam escrever a
própria história, já que até hoje a história foi escrita pelo homem branco. Para ela, um
dos maiores problemas dos indígenas é que a imagem dele ficou congelada no tempo,
como se a própria sociedade não tivesse seu modo de viver. A cacique afirma que o
indígena é duplamente discriminado, sofre preconceito quando fala português e não vive
mais na mata, ao mesmo tempo que negam seu direito de viver como antigamente.
Para a cacique, a ocupação dos espaços educacionais pelos indígenas não é
apenas um direto que deve ser assegurado, mas uma forma de :

“Falar pros governantes, falar pros políticos que não é bem


assim. Falar que o que eles tão falando dos indígenas a gente tá
entendendo e pode dar uma resposta. Pra mim é isso a
universidade”.

É a partir dessa perspectiva e acreditando na ocupação dos espaços educacionais


e na Educação diferenciada como forma de “resposta” indígena que Eunice articula suas
ações. Utilizando dos mais diversos recursos, tomando os espaços da universidade e as
mídias disponíveis, Eunice defende a dinamicidade da cultura, ao mesmo tempo que
exige que o Guarani tenha possibilidade de viver como antigamente, ou seja, em
conexão com a terra.
Através das diferentes articulações, Eunice e apoiadores da causa Guarani
colocam em prática diversos recursos para pressionar as autoridades responsáveis pela
regularização das terras. A aldeia do Morro dos Cavalos é emblemática juridicamente e
politicamente na luta pelas terras indígenas em Santa Catarina, além de pioneira no
estado nas campanhas de mobilização popular.
A comunidade, além de material impresso, faz uma campanha pela Internet
defendendo a homologação das terras e compartilhando o histórico dos processos
jurídicos pelos quais os Guarani já passaram. O grupo defende o direito de ocupar as
terras e assim, garantir o futuro dos/as filhos/as e netos/as. Segue abaixo, a página
inicial da campanha disponível no endereço eletrônico:

14
www.http://campanhaguarani.org/morrodoscavalos.

Considerações finais

Nota-se que embora os povos indígenas venham rapidamente atualizando suas


formas de relacionamento e estratégias para sobreviver enquanto minorias, as
instituições do Estado brasileiro não se atualizaram e tampouco superaram o
preconceito e etnocentrismo com que assumem as questões referentes a esses povos
(LADEIRA, 2008).

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Para Darella (2001), o desafio colocado é o de um diálogo mais igualitário, onde
seja possível pensar em uma fusão de horizontes entre as sociedades guarani e
envolvente. Desse modo, contribui-se para a preservação do mundo mbya, assim como
auxilia-se nos processos de garantia dos direitos precedentes dos povos indígenas.
É necessário destacar que apesar do contexto de conflitos, a partir de 2006, os
Guarani tem realizado um trabalho importante de articulação e fortalecimento dos laços
políticos entre as diversas aldeias do litoral do estado de Santa Catarina através da
Comissão Indígena Guarani Nhemonguetá10/SC.
A Comissão reúne caciques e lideranças que deliberam a respeito de diversos
assuntos de interesse coletivo como, por exemplo, regularização das terras, questões
referentes à saúde, educação e alimentação, atividades econômicas de produção e
subsistência nas comunidades e impactos decorrentes de projetos de crescimento
econômico, como construções de estradas, ferrovias e linhas de transmissão elétrica.
(VASCONCELOS, 2011; OLIVEIRA, 2011).
A criação da Comissão Indígena Guarani Nhemonguetá/SC é ilustrativa da
organização social e política dos Guarani do litoral de Santa Catarina. Por estarem
entrelaçadas num complexo esquema de rede de parentesco e afinidade e levando em
consideração a relevância da mobilidade inter-aldeia, as lideranças optaram por discutir
as questões importantes em conjunto, partindo da prerrogativa de que uma aldeia afeta
todas as outras aldeias (VASCONCELOS, 2011).
Nota-se a que preocupação com o futuro do povo indígena e a necessidade de
garantir a possibilidade de viverem de forma autônoma o sistema Guarani são
motivadores das duas caciques acompanhadas nesse trabalho. Apesar de estratégias
diferenciadas – porém não excludentes – as caciques assumem a importância da luta
pelos direitos territoriais, articulando-se internamente, defendendo e relembrando as
tradições Guarani e reinterrogando as posturas e políticas anti-indígenas do Estado.

16
Referências bibliográficas

ASSIS, V. S. de & GARLET, Ivori . (2004) “Análise sobre as populações Guarani


contemporâneas: demografia, espacialidade e questões fundiárias. Em: Revista de
Indias, Madrid, vol. LXIV (230):35-54, ene./abr.

BRIGHENTI, Clóvis A (2012) “Povos indígenas em Santa Catarina”. Disponível on-


line em : http://leiaufsc.files.wordpress.com/2013/08/povos-indc3adgenas-em-santa-
catarina.pdf . Acessado
em 29 de janeiro de 2014.

DARELLA, Maria Dorothea. (2004) Ore Roipota Yvy Porã, Nós queremos terra boa:
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