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Resenhas

As novas formas de organização familiar: um


olhar histórico e psicanalítico
A família em desordem. autoridade paterna, imposta pela força, vai
progressivamente perdendo espaço, e surge a
reivindicação pela paternidade inspirada no
ROUDINESCO, Elizabeth. Deus do Novo Testamento, um pai amoroso e
Tradução de Renato Aguiar. amado, tolerante e respeitado. A família formada
pela figura desse pai que respeita um “contrato
social” é caracterizada pela compaixão.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Nessa nova família onde impera a
199 p. compaixão, o pai aos poucos vai sendo destituído
de autoridade e começa então a ressurgir a
figura do feminino. O pai não é mais visto como
o único responsável pela transmissão “psíquica
Neste livro a psicanalista Elisabeth e carnal” e a mãe assume responsabilidades
Roudinesco percorre o caminho da história da nessa tarefa. Começa o temor da feminilização
construção da família, atravessando os percursos da sociedade.
psíquicos, políticos e econômicos que forneceram O pai do início do século XIX, fragilizado por
elementos para a construção dessa instituição, perder o lugar de um deus soberano, e
desde a antigüidade até a “pós-modernidade”. conseqüentemente por perder a influência sobre
Demarca os períodos e acontecimentos em oito o Estado, consegue se fortalecer através da
capítulos intitulados “Deus pai”, “A irrupção do economia. Tendo como modelo a figura cristã
feminino”, “Quem matou o pai”, “O filho culpado”, de José, carpinteiro e um patriarca amável, o
“O patriarca mutilado”, “As mulheres têm um sexo”, novo pai constrói a partir de então a família
“O poder das mães” e “A família do futuro”. econômica que caracterizou a “idade de ouro
Ao analisar a família ocidental, Roudinesco do paternalismo europeu”. Como “pater famílias
destaca três importantes períodos caracterizados da coletividade industrial” assumiu a defesa da
por diferentes formas de organização familiar. No família contra a ferocidade do capitalismo
primeiro período forma-se a família tradicional nascente. Com a mesma coragem faz a defesa
pautada na preocupação com a transmissão de do operário, protegendo-o e fornecendo-lhe
um patrimônio. Em um segundo momento a família serviços de assistência básica. Assume então a
passa a ser construída como fruto do amor função de “padre-padrone”.
romântico. E posteriormente a família moderna, Seguindo a análise da autora, forma-se
contemporânea ou pós-moderna, fundamenta-se então a família econômico-burguesa, que se
no amor e no prazer, com uma característica de fundamenta na autoridade do marido, na
atemporalidade, ou seja, a união dura enquanto subordinação das mulheres e na dependência
durar o amor e o prazer. Para falar dessas três fases dos filhos. Contudo, não é mais uma autoridade
percorre, à luz da psicanálise, o caminho da despótica; sua força é regulamentada pela lei
história da formação das comunidades, das do Estado (Declaração dos Direitos do Homem e
nações, do Estado, das religiões. do Cidadão, França, 1789). O Estado passa assim
Roudinesco apresenta o pai da família a acompanhar e intervir na vida familiar, em
tradicional como a encarnação familiar de Deus. virtude da importância econômica que as
Sua autoridade jamais era contestada, e sua famílias passam a desempenhar, tornando-se
figura era sagrada: a imagem do Deus do Velho uma das estruturas de base da sociedade, “pois
Testamento, do herói e do guerreiro. Com as sem ela o Estado só poderia lidar com massas
transformações econômicas e políticas a despóticas ou tribais” (p. 40).

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Roudinesco afirma que essas novas O filho culpado por desejar a mãe, e
convenções exigem que o pai seja justo, submisso assassinar o pai, torna-se um neurótico atordoado
à lei e respeite os novos direitos adquiridos. Da por seus “escrúpulos e remorsos”. Para representar
mulher exige-se que seja “acima de tudo mãe, a esse momento do drama, Freud escolhe o
fim de que o corpo social esteja em condições personagem de Shakespeare Hamlet, que seria
de resistir à tirania de um gozo feminino capaz, então o Édipo adulto. Édipo é atormentado por
pensa-se, de eliminar a diferença dos sexos” (p. um inconsciente desejante. Já Hamlet,
38). O casamento ganha outra face, perdendo carregando as conseqüências da tragédia
a natureza divina e se consolidando como um edipiana, é um adulto dominado por sua
acordo consensual entre um homem e uma consciência de culpa.
mulher com duração relativa à durabilidade do Através do sofrimento de Hamlet, Freud fala
amor. É o precedente para a instituição do simbolicamente da condição de sofrimento do
divórcio na França em 1792. homem do século XIX, ao descobrir a existência
Os recém-adquiridos direitos e deveres do inconsciente e perceber que não detinha o
impõem ao pai o dever de respeitar o direito dos controle de si, dos seus desejos e emoções. Não
filhos. Se o comportamento do pai não estivesse bastasse isso, descobriu também com Copérnico
de acordo com esses pressupostos, ele poderia que não detinha o controle do universo, e com
perder o direito de ser pai. Surgia então o temor Darwin que não tinha uma origem tão divina e
de que a sociedade fosse dominada pelas gloriosa como imaginava. Diante disto, e
mulheres. “Condenado a jamais ser rei, o herói do novo
No campo teórico os debates sobre século galileiano busca sua identidade. Pode ele
matriarcado x patriarcado entram em ebulição. advir como um sujeito sem se desfazer de sua
Autores como Morgan e Engels assumem o eixo soberania de direito divino? Eis a questão” (p. 69).
central das discussões sobre família. Roudinesco assegura que de Édipo a Hamlet
Posteriormente, Freud insere-se nessa discussão, Freud buscou pensar a família procurando seu
entendendo que a humanidade teve um salto lugar simbólico nesse novo momento, tendo como
qualitativo ao passar do matriarcado – mundo realidade concreta a decadência da família
do sensível – ao patriarcado – mundo da razão. burguesa vienense. Uma família que não era mais
Entretanto, Freud, ao contrário de muitos de seus formada por um pai autoritário, ou mesmo por
contemporâneos, não demonstrava temor a um um pai que, desprovido do poder divino, garante
possível domínio do feminino, muito menos de que o poder econômico e o bem-estar geral, mas ao
este pudesse significar o declínio da razão. contrário uma família dirigida por um filho que
Roudinesco acredita que a família do recebeu como herança a “figura destruída de
século XIX cer tamente foi abalada e um patriarca mutilado”.
reestruturada a partir da invenção freudiana do A autora aponta a família edipiana como o
complexo de Édipo. “paradigma do advento da família
A família edipiana é fundada no assassinato contemporânea”, pois, ao colocar o complexo de
do pai pelo filho que deseja a mãe, e que Édipo como uma estrutura psíquica universal,
começa a questionar a autoridade patriarcal. Da universalizava-se também um modelo de relação
mesma forma, as filhas iniciam os seus conjugal entre homens e mulheres que se
questionamentos na tentativa de romper com a
fundamentava no desejo e não mais na coerção
autoridade materna e alcançar a emancipação
das conveniências familiares. Assim, para a
sexual. Essas descobertas ocorreram em um clima
psicanálise, o amor e o desejo, o sexo e a paixão
de terror apocalíptico diante de uma possível
estavam fundamentalmente presentes nesse novo
supressão das diferenças entre os sexos.
momento do matrimônio.
Para a autora, a fim de assegurar a cada
A nova organização familiar partindo do
um o seu lugar, ou seja, afirmar as diferenças entre
modelo edipiano sustentava-se em três pilares:
sexos, pais, filhos e gerações, Freud reúne os
“a revolução da afetividade, que exige cada vez
fragmentos que restaram da sociedade patriarcal
mais que o casamento burguês seja associado
e coloca o pai com toda a glória e divindade de
ao sentimento amoroso e ao desabrochar da
outrora, reinando atemporalmente no
sexualidade feminina e masculina; o lugar
inconsciente, através da invenção do complexo
preponderante concedido ao filho, que tem
de Édipo. Estabelece, portanto, de forma
como efeito ‘maternalizar’ a célula familiar; a
simbólica as convenções necessárias para a
prática sistemática de uma contracepção
manutenção da família, que tem como eixo
espontânea, que dissocia o desejo sexual da
central a idéia da culpa.

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procriação, dando assim origem a uma dela excluídos. A partir de 1965 gays e lésbicas
organização mais individual da família” (p. 96). passaram a reivindicar o direito a paternidade/
Com a maternalização da família, o poder maternidade e “inventaram uma cultura da
do pai passou a ser cada vez mais abstrato, e família que não passava, sob muitos aspectos,
contava unicamente com seu patrimônio para da perpetuação do modelo que haviam
afirmar seu lugar simbólico. Já o filho assume uma contestado e que já se encontrava ele próprio
posição mais central na família e deixa de ser em plena mutação” (p. 181). De qualquer forma,
visto como um objeto, para se colocar como um transgrediram uma ordem moral que já durava
sujeito que significa uma continuidade ou um mais de 2 mil anos.
prolongamento dos pais, passando então a ser Chegando nesse ponto do percurso
desejado. O lugar da mulher em progressiva histórico, Roudinesco afirma que, ao contrário do
emancipação a partir do final do século XVIII – que se pensou, a família não se dissolveu, mas
graças à organização do feminismo em se reorganizou de forma horizontal e em redes,
movimento político – é ampliado sobretudo no garantindo a reprodução das gerações. O
campo da sexualidade. Na medida em que tem casamento perdeu o ornamento da sacralidade,
o prazer dissociado da finalidade de procriação, e em constante declínio é hoje caracterizado
deixa de ser apenas esposa e mãe e vai se pela união afetiva de cônjuges – com filhos ou
individualizando. não – que, buscando o refúgio das desordens
Ao perder o lugar de divindade, os homens do mundo exterior, unem-se não mais por uma
perdiam também o controle sobre o corpo das vida, mas por um período aleatório que, como
mulheres, abrindo espaço para o desabrochar em mais de um terço dos casos, termina em
da sexualidade feminina, que surge fundada ao divórcio, na maioria das vezes solicitado pelas
mesmo tempo sobre sexo e o gênero. mulheres, que ainda são as que inicialmente mais
Com o avanço tecnológico da sofrem com os encargos dessa ruptura. Os filhos
biomedicina, as mulheres conquistaram o são freqüentemente concebidos fora dos laços
controle não apenas do corpo mas da matrimoniais, e esse quadro, que já aterrorizou
procriação, podendo, além de controlar a muito, mostra-se hoje com naturalidade e
concepção, prescindir da participação direta do comprova que a civilização não foi engolida por
homem para a fecundação. Analisando esses essas “desordens”.
fatos, Roudinesco afirma que “um fosso irreversível Roudinesco finaliza sua análise assegurando
parece ter se cavado, pelo menos no Ocidente, que, apesar das constantes transformações
entre o desejo de feminilidade e o desejo de ocorridas na família ao longo dos séculos, ela
maternidade, entre o desejo de gozar e o dever continua a ser reivindicada por homens, mulheres
de procriar” (p. 146). e crianças, independentemente de idade,
A possibilidade de formar uma família sem orientação sexual e classe social. Para a autora,
a necessidade do coito sexual, ou simplesmente a família “aparece em condições de se tornar
de não desejar a maternidade, acompanhada um lugar de resistência à tribalização orgânica
por um crescente envolvimento dos homens na da sociedade globalizada” (p. 199), mas ressalta
criação dos filhos, acena para uma necessidade que para tanto a família do futuro precisa ser
de se repensar a instituição do casamento. continuamente reinventada.
Todas essas transformações no modelo
familiar tornaram essa instituição acessível Adriana Rodrigues
também aos homossexuais, que sempre foram Universidade Federal de Santa Catarina

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