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O DIREITO PENAL DO INIMIGO: BREVE ANÁLISE DE SEUS FUNDAMENTOS

TEÓRICOS
Luiz Eduardo Dias Cardoso1

Neste artigo, o colunista Luiz Eduardo Dias Cardoso apresenta e contextualiza o


Direito Penal do Inimigo, sobretudo a partir da obra de Günther Jakobs e suas bases
jusfilosóficas.

A dimensão quantitativa e qualitativa da moderna criminalidade


proporciona o surgimento de diversas respostas – nem todas certas – a esse
fenômeno social. Uma das mais destacadas, em meio à teoria do delito, é aquela
denominada de Direito Penal do Inimigo, cunhada sobretudo pelo penalista alemão
Günther Jakobs.
Apesar de o Direito Penal do Inimigo ter surgido como resposta à
criminalidade transnacional e ter se desenvolvido sobretudo após os ataques
terroristas de 11 de setembro de 2001, engana-se aquele que pensa ser a teoria um
devaneio pós-moderno. Na verdade, essa proposta encontra suas bases na filosofia
de Hegel e na teoria jurídico-política do contratualismo.
Roxin, por exemplo, aponta que a premissa elementar do Direito Penal
do Inimigo coincide com a concepção hegeliana segundo a qual a pena é a “negação
da negação do Direito”2.
Por outro lado, como observa Zaffaroni, a História revela que o Direito
Penal sempre concebeu inimigos e, nesse sentido, indica que alguns teóricos da
politica – “reconhecidamente de primeiríssima linha”, como Hobbes e Kant –,
contribuíram para a manutenção de obstáculos ao Estado de Direito, na medida em
que buscaram harmonizá-los com limitações liberais; ditos pensadores colaboraram,
assim, para desorientar o penalismo3.

1 Advogado. Doutorando, Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali).
Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional
(ABDConst). Colunista do blog “Consultor Penal” (www.consultorpenal.com.br). Currículo Lattes:
http://bit.ly/LattesLuizEduardo.
2 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2009. p. 33.


3 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 17.
O próprio Jakobs faz remissão aos contratualistas – nomeadamente a
Hobbes, Rousseau e Kant – com o fim de legitimar sua teoria4.
A partir desse fundamento jusfilosófico, Jakobs concebe a existência,
autônoma e paralela, de duas espécies de Direito Penal: o Direito Penal do Cidadão
e o Direito Penal do Inimigo. Há, assim, sob a perspectiva do penalista alemão, um
espectro em cujos extremos se situam o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal
do Inimigo; o direito penal positivo – aquele que de fato existe –, por sua vez, situa-
se entre tais limites, ora mais próximo do Direito Penal do Inimigo, ora mais próximo
do Direito Penal do Cidadão5.
O alemão resume a cisão referida em uma sentença: “o direito penal
do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito Penal do Inimigo [...] combate
perigos”6.
Da afirmação em questão se infere que, enquanto a doutrina penalista,
capitaneada por Roxin, em geral tem indicado a proteção de bens jurídicos como
função precípua do Direito Penal, Jakobs concebe que a norma penal – de certa
forma ensimesmada – deve buscar a garantia de sua própria vigência. Logo, a pena
deve corresponder à demonstração de que a norma penal violada pelo criminoso
remanesce hígida e vigente7.
Outra dissidência marcante verificável na obra de Jakobs refere-se à
posição ocupada pelo bem jurídico na teoria penal: enquanto autores como Roxin e
Hassemer posicionam o bem jurídico como figura central do Direito Penal, Jakobs
chega a até mesmo refutar a sua utilidade. Como afirma Costa, “o bem jurídico no
sistema penal funcionalista de Jakobs é exatamente a norma penal”8
Assim, Jakobs observa que a função do Direito penal é a confirmação
da vigência da norma, e não a proteção de bens jurídicos. O fato punível é a
negação da norma pelo autor, e a pena tem como significado que “a afirmação do

4 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 26-30.
5 É algo semelhante àquilo que Ferrajoli afirma acerca do garantismo: não há nações garantistas e

outras não-garantistas; há, na verdade, ordenamentos jurídicos mais ou menos garantistas.


6 JAKOBS; MELIÁ, Op. Cit., p. 30.
7 JAKOBS; MELIÁ, Op. Cit., p. 37.
8 COSTA, Fernanda Otero. Aquém da paz e além da guerra: uma análise jurídica e sociológica do

Direito Penal do Inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 20, n. 94, p.57-86,
jan./fev. 2012. p. 67.
autor não é determinante e que a norma segue vigendo inalteradamente”. A partir
desta perspectiva, não é necessário ocupar-se mais sobre o conceito de bem jurídico9.
Outra divergência relevante diz respeito ao funcionalismo de Roxin e de
Jakobs. Embora ambos se filiem à teoria funcionalista do delito, cada qual o faz de
forma distinta: o primeiro adere à vertente teleológica; o segundo, à corrente
sistêmica.
Isto é, ambos partem de um ponto comum – o funcionalismo –, mas
seguem em caminhos distintos, a partir de seus conceitos-chave: para Roxin, o bem
jurídico, que possibilita o resgate da política criminal e, assim, de considerações
axiológicas (ou seja, valorativas), em uma lógica neokantiana10. De fato, o autor
considera que “o Direito Penal é a forma para realização das finalidades político-
criminais”11. Exatamente em razão da busca por esses fins – consubstanciados na
proteção de bens jurídicos –, denomina-se teleológica a corrente funcionalista
concebida por Roxin.
Já para o funcionalismo sistêmico, o escopo premente do Direito
Penal é a proteção de suas próprias normas, cuja confirmação ocorre mediante a
imposição das penas12. Com efeito, Jakobs rechaça qualquer reflexão valorativa
acerca da (i)legitimidade do conteúdo da norma penal, por compreender tal indagação
como não científica13. Em verdade, a legitimidade da norma penal lhe é automática,
na medida em que a pena prescrita pela norma tem exatamente o escopo de garantir
sua vigência e higidez.
A toda essa formulação teórica de que decorre o Direito Penal do Inimigo
se deve lançar um olhar crítico.
Nesse sentido, Zaffaroni – um dos baluartes da resistência contra a
adoção do Direito Penal do Inimigo –, aponta que a dialética entre o Estado de Direito
e o de polícia (que rapidamente desliza para o Estado absoluto) equivale, no campo
penal, à admissão – mais ampla ou restrita – “do tratamento punitivo a seres humanos
privados da condição de pessoas”14.

9 ROXIN, Op. Cit., p. 15.


10 CAMPOS, Beatriz Luiza Goedert de. A recepção da Teoria da Imputação Objetiva pelos tribunais
brasileiros. 2016. 74 f. TCC (Graduação) – Curso de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2016.
11 ROXIN, Op. Cit., p. 16.
12 SUEIRO, Carlos Christian. Los paradigmas del derecho penal: sobre la armonia metodológica del

derecho penal. Buenos Aires: Fabián J. Di Plácido Editor, 2011. p. 253-258


13 ROXIN, Op. Cit., p. 34.
14 ZAFFARONI, Op. Cit., p. 9.
O autor argentino relata que “o poder punitivo sempre discriminou os
seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à
condição de pessoas [...]. Esses seres humanos são assinalados como inimigos da
sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações
sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias que hoje
o direito internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente” 15.
De fato, a História é recheada de provas nesse sentido, que vão desde
os bárbaros na Antiguidade até os traficantes, os terroristas e os criminosos do
colarinho branco no século XXI, passando ainda pelas bruxas e pelos hereges
durante a Idade Média e pelos comunistas durante a Guerra Fria. O Direito Penal
identificou, identifica e tende a seguir identificando inimigos que legitimem sua
atuação repressiva.
A propósito, Zaffaroni afirma que quase todo o Direito Penal do século
passado, por admitir a existência de seres humanos perigosos a priori e que, portanto,
devem ser segregados ou mesmo eliminados, “coisificou-os”. Essa coisificação
implica um tratamento que retira dos seres humanos – concebidos como inimigos – a
qualidade de pessoas.
O autor argentino ainda aponta que a invocação de emergências
justificadoras de Estados de exceção é fenômeno observado há longa data, como se
constata no pós-Segunda Guerra Mundial, em que diversas leis imbuídas desse
espírito têm sido editadas na Europa e na legislação de segurança latino-americana16.
O próprio Jakobs, convergindo, aponta os ataques terroristas de 11 de setembro de
2001 como fatos indicativos da necessidade da existência do Direito Penal do
Inimigo17.
Assim, para captar a essência do Direito Penal do Inimigo, é necessário
compreender – como adverte Carl Schmitt18, com remissão ao Direito romano –, que
o inimigo não é, simplesmente, o infrator, mas o outro: o estrangeiro. O cerne do
Direito Penal do Inimigo consubstancia-se, portanto, na soma dos dois fatores: a
coisificação do ser humano – que passa a não mais ser tratado como pessoa – e a
sua exclusão como natural decorrência da seletividade de que é vítima.

15 ZAFFARONI, Op. Cit., p. 11.


16 ZAFFARONI, Op. Cit., p. 14.
17 JAKOBS; MELIÁ, Op. Cit., p. 16.
18 SCHMITT, Carl. El concepto de lo político. Cidade do México: Ediciones Folios, 1985. p. 23.
De fato, é possível verificar, historicamente, que a existência da figura
de inimigos é típica de Estados absolutistas e, por isso mesmo, incompatível com o
Estado de Direito.
Rosa e Marcellino Júnior, por exemplo, apontam que a prevalência de
teorias totalitárias, como o Direito Penal do Inimigo, é um dos fatores responsáveis
por um déficit hermenêutico-constitucional nos campos do Direito Penal e do Processo
Penal no Brasil, os quais, por serem orientados por diplomas editados sob outro
regime político e sob matriz ideológica diversa, ainda carecem de uma necessária
oxigenação constitucional19.
É curioso observar que a proposta teórica de Jakobs seja alvo de tão
numerosas reflexões doutrinárias – em tom crítico, em sua esmagadora maioria – e,
ainda assim, remanesça como objeto de debate entre os penalistas.
De tal constatação talvez se possa inferir que a grande relevância da
criação de Jakobs não esteja, precisamente, na formulação teórica do Direito Penal
do Inimigo, mas em definir, sistematizar e denominar um conjunto teórico em cujo
cerne habitem práticas penais estranhas a um Estado Democrático de Direito,
adotadas a pretexto de combate do inimigo.
Em outras palavras, é possível afirmar que o Direito Penal do Inimigo já
existia (e sempre existiu) muito antes de Jakobs concebê-lo: basta mirar os cárceres
e os noticiários brasileiros, em que se revela a prisão ou a exposição midiática de
muitos dos “inimigos” do Direito Penal pátrio (tradicionalmente, os traficantes de
drogas; modernamente, alguns dos criminosos do colarinho branco). Após o advento
da criação teórica daquele autor alemão, muitas dessas práticas autoritárias,
quando dirigidas, sistematicamente, contra um grupo selecionado, passaram a ser
abarcadas pelo Direito Penal do Inimigo.
Assim, parece lícito concluir que a cruzada a ser empreendida pela
doutrina penalista, em defesa dos postulados penais ínsitos a um Estado Democrático
de Direito, deve volver-se contra o Direito Penal do Inimigo não apenas como
construção teórica de Jakobs – que, ao menos de modo explícito, não goza de ampla
receptividade –, mas como arcabouço de práticas e até mesmo disposições
normativas que atentam contra aqueles preceitos e que têm se revelado como uma

19MARCELLINO JÚNIOR, Julio Cesar; ROSA, Alexandre Morais da. O processo eficiente na lógica
econômica: desenvolvimento, aceleração e direitos fundamentais. Florianópolis: Empório do Direito.
2015. p. 55-56.
verdade histórica. Igualmente, cabe à doutrina identificar e insurgir-se contra práticas
e dispositivos que se adéquem àquela teoria penal.

Como citar:
CARDOSO, LUIZ EDUARDO DIAS. O Direito Penal do Inimigo: breve análise de
seus fundamentos teóricos. Consultor Penal. Disponível em:
https://consultorpenal.com.br/direito-penal-inimigo-fundamentos-teoricos/.

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