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Bem-vinda
constelação da
desordem:
a presença
do pensamento
francês
no Brasil1 SE HÁ UMA EXPERIÊNCIA de conhecimento e
de vida que apraz cultivar, ela diz respeito
à consciência de que o inacabamento e
RESUMO a parcialidade parasitam o ato mesmo de
Pelo menos no âmbito das chamadas ciências humanas, viver e conhecer.
a entrada do pensamento francês no Brasil inaugura um Dessa perspectiva, tudo que é dito,
patamar epistemológico complexo e capaz de religar cultura além de se circunscrever a um conjunto
científica e cultura humanística. Mesmo que a aclimatação par ci al de informação, está tam bém
em certos redutos da hegemonia acadêmica brasileira tenha limitado a uma certa forma de ver, a uma
operado, por vezes, uma simplificação normalizadora, a reorganização singular e sempre provisória
cosmologia do pensamento francês contemporâneo tem de um sujeito que fala, diz, imputa sentido,
sido responsável pela crítica dos conceitos consolidados, de faz relações, desenvolve argumentos e
verdades unitárias e das ortodoxias estabelecidas pela força produz representações.
dos paradigmas. É pois a partir da consciência
do pro vi só rio, da parcialidade e da
ABSTRACT in su fi ci ên cia, que me atenho ao tema
The introduction of French ideas in the field of human sciences dessa mesa-redonda e exponho algumas
in Brazil creates a new epystemological plateau, complex as reflexões a respeito da presença e das
well as able to reunite scientific and humanistic culture again. repercussões do pensamento francês no
Today, French points of view are responsible for the criticism of Brasil.
old concepts, absolute truths, and ortodox paradigms. A rota que escolhi traça o seguinte
ca mi nho: primeiro exponho de forma
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) sintética os elos entre França e Brasil,
- Pensamento francês (French thinking) a par tir da ma cro pers pec ti va de Gilles
- Epistemologia (Epystemology) Lapouge em singular matéria publicada no
- Cultura (Culture) jornal “O Estado de São Paulo”, em 1996.2
As reflexões de Lapouge constroem
como que uma moldura que me permite,
num segundo momento, constelar nomes e
idéias de franceses que povoaram e ainda
povoam o panorama acadêmico brasileiro,
pelo menos no âmbito das cha ma das
ciências humanas.
Maria da Conceição de Almeida * Por fim, identifico as heranças e
UFRN
marcas importantes do pensamento francês
na configuração atual da ciência no Brasil.
Brasil dos franceses e a França dos brasileiros,
segundo Lapouge, é invadir a Amazônia
segundo Gilles Lapouge para apoderar-se de seu ouro e pedrarias”.
Apesar dessas expressões de desafetos
O diálogo entre França e Brasil começa relativistas, pintores como Edouard Monet,
des de a origem. Em 1555, a “França Jean-Maire Debret e Hercule Florence
Antártica” se instala na Baía da Guanabara. constróem imagens sérias e verdadeiras do
O Pão de Açúcar por pouco não ficou Brasil.
conhecido como Pote de Manteiga (Pot de No século XIX o diálogo entre os dois
Beurre) como falavam os companheiros de países oscila entre o fascínio da utopia
Vielegagnon, originários da Normandia, a do lugar ideal para criar “uma sociedade
terra dos laticínios. O etnólogo Jean de Léry per fei ta, sem pecado nem culpa e
faz sua declaração de amor aos primeiros protegida da podridão européia” e o horror
habitantes dessa terra: “Freqüentemente de uma pátria comprometida culturalmente
lamento não estar entre os selvagens”. pela miscigenação das raças. O Conde
Michel de Montaigne, que se encontrou de Gobineau, obcecado pela idéia da
com índios bra si lei ros no aeroporto de superioridade da raça branca, um “inimigo
Rouen, dirá sobre o Brasil em 1562, em um cordial” do Brasil, e a quem D. Pedro II pede
de seus ensaios: “Nada há de bárbaro ou para estudar o processo de povoamento,
selvagem nessa nação; apenas cada um dirá em carta para seus amigos: “Não há
de nós chama de bárbaro aquilo que não é uma só família que não tenha nas veias
de sua usança”. (Apud Lapouge) sangue negro ou índio. Resulta daí uma
Depois da expedição “França compleição raquítica, se não repelente,
Antártica” na Guanabara, os “Mosqueteiros pelo menos, muito de sa gra dá vel de
de La Touche” fundam a cidade de São se olhar” (Apud Lapouge). E s s e
Luís do Maranhão. Até hoje, diz Lapouge, convicto e desagradável retrato do Brasil
“quando um índio maranhense tem olhos será desfeito pelos próprios fran ce ses,
azuis di zem: é um mosqueteiro de La por meio de uma exemplar miscigenação
Touche”. entre o positivismo de Augusto Comte e
Entretanto, o amor rousseauniano a mística revolucionária de Victor Hugo.
pelo ʻbom selvagemʼ não sufoca os olhares A Igreja Positivista Bra si lei ra, fun da da
mal-humorados sobre o Brasil. Bougainville, em 1881 por Miguel Lemos e Teixeira
especialista em jardins das delícias, Mendes, convive com o ideário expresso
descarta o Rio de Janeiro preferindo o Taiti. em “Os miseráveis” de Victor Hugo. Essa
Acha o Rio “uma cidade bastante bonita mestiçagem paradoxal estaria “na base
mas um tantinho desbotada”, segundo a da tradição moral e intelectual da elite
expressão de Lapouge. La Condamine, brasileira”, acrescida das idéias de Anatole
que passa alguns anos na Amazônia para France, a quem os acadêmicos brasileiros
calcular a configuração da Terra, no retorno recebem em 1909.
a Paris “escreve textos constrangedores” No início do século passado vem
sobre os índios brasileiros. Esses textos à tona expressões de estranhamentos,
que vêm a público por Mario Carelli em dessa vez por parte da intelectualidade
seu livro “Cultures Croisées” dão conta brasileira. Músicos, pintores e escritores
de que assim se expressou Condamine: como Vi lla-Lobos, Di Cavalcanti, Anita
“A insensibilidade é a base do caráter do Malfatti, Monteiro Lobato, Oswald e Mário
índio... Deixo à escolha do leitor se deve de Andrade, dentre outros, vão se dizer
honrá-la com a designação de apatia em pan tur ra dos das idéias franceses e
ou aviltá-la com o nome de estupidez”. passam a apregoar o brasilianismo, o
Choiseul, ministro de Luis XV, disfarça mal estudo do folclore e das crenças populares.
seu encanto pelo Brasil: “o que ele quer, A Semana de Arte Moderna de 1922, em
São Paulo, a Revista Antropofagia e o Jean de Mermoz da companhia Aeroposta
Manifesto Antropofágico se situam nesse está acondicionada como lembrança em
quadro. nome de rua da capital do Rio Grande
Para Gilles Lapouge, os laços que do Norte, tanto quanto na historiografia
li gam franceses e brasileiros ao longo local. Ainda se mantém acessa a polêmica
de cinco séculos anunciam a “história de a respeito da presença, mais ou menos
uma paixão, ora frenética, ora letárgica”. casual, do aviador e escritor Saint-Exupéry
Para ele, “ao contrário do que se imagina, em Natal. O baobá ao qual ele se refere no
a França não acha que o Brasil é só a Pequeno Príncipe seria o do Rio Grande
pátria do futebol, do carnaval e da bossa do Norte, no Brasil, e não dalgum lugar
nova”. Encerra assim o seu artigo o da África que também fazia parte da rota
escritor e jornalista Lapouge: “Se o jet do piloto. Não há dúvidas entretanto da
set francês, idiota como todos os jet set re la ção entre Augusto Comte e Nísia
do mundo inteiro, só conhece do Brasil Floresta Brasileira Augusta, uma norte-
as praias do Rio e a cirurgia plástica, a rio-grandense nascida na pequena vila de
inteligência francesa não ignora que, cinco Papary no Rio Grande do Norte e que hoje
séculos depois de Jean Léry, Villegagnon tem o seu nome. Se se tratou apenas de
e Montaigne, prossegue no Brasil uma um diálogo intelectual entre a feminista e o
fabulosa aventura social e cultural”. Essa pai do positivismo, ou se o calor das idéias
leitura matizada de Lapouge expressa bem aqueceu ou foi aquecido pelo encanto
o paradoxo virtuoso e complexo da relação amoroso e pela termodinâmica dos corpos,
entre franceses e brasileiros. pairam dúvidas. Disso tratam os estudiosos
de Nísia Floresta, mesmo que saibamos,
como lem bra Claude Lévi-Strauss, que
Respingos da presença francesa “sempre haverá o inacessível”.
Dessa forma, Augusto Comte não
“Respingos das fagulhas do acaso”, para apenas alimentou a burguesia intelectual
usar a expressão do genial e encantador que cristalizou os ideais comtistas na frase
Henri Atlan, são visíveis ainda hoje, seja “ordem e progresso” da bandeira nacional
de forma mais luminosa ou envolta em uma brasileira, mas contaminou as idéias de
segunda pele mais difusa e bricolada, nem uma nordestina que encontrou na Paris
propriamente brasileira nem unicamente do positivismo nascente alimentos para
fran ce sa. Essas fagulhas, com mais um feminismo emergente. Com isso, os
ou me nos combustão, estão presentes dois estados brasileiros que levam o nome
na história do patrimônio arquitetônico de Rio Grande - um do Norte, o outro
brasileiro, tanto quanto aquecem gostos, do Sul - tecem os elos de uma doutrina
estilos intelectuais, modos de falar. É um social simultaneamente paradigmática e
fato que os habitantes de Abaetetuba, aqui pragmática. No Rio Grande do Sul, um
no Pará, mantêm vivo o afrancesamento da “Templo da Humanidade”; no Rio Grande
língua falada. ʻBoa Nutʼ, ʻjá mi vuʼ, parecem do Norte, uma incubadora da liberdade da
dizer da lembrança, ou mesmo da saudade, mulher. Estranho acoplamento! Original
de uma herança francesa bem-vinda e acli ma ta ção! Derivas do pensamento
reorganizada entre nós. comteano?
Também na cidade de Natal, no Como tudo que é marcado pela
Nordeste do Brasil, numa cidade emblema com ple xi da de, a efervescência do
da presença americana durante a Segunda pensamento francês no Brasil opera uma
Guerra Mundial, esses respingos luminosos mudança de rumo e uma diáspora de
da presença francesa se reacendem como desordem criativa importante. É assim que
vaga-lumes. A estadia na cidade do aviador a França, a sede do cartesianismo, torna-
Notas