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- "É preciso, sem dúvida, evitar projetar sobre o passado o que sabemos que aconteceu
depois, como se nessa época as pessoas tivessem tido diante de si alternativas cujas
consequências pudessem conhecer. " (Pag. 26)
- "Gabriel Marcel é de longe a pessoa com quem tive a relação mais profunda [...].
Creio que é isso que lhe fundamentalmente devo: ousar tentar fazer filosofia e fazê-lo
numa situação polêmica assumida - era, aliás, a analogia que ele via entre o teatro e a
filosofia. Com efeito, várias das duas ideias são expressadas por personagens de teatro.
As suas peças, apesar do que delas ele tenha pensado, não eram muito boas.
Considerava injusto que Sartre fosse reconhecido e não ele. Talvez eu tivesse hoje uma
severidade igual a respeito do teatro de Sartre... Penso num ensaio muito belo do padre
Fessard intitulado Theâtre et philosophie, que desenvolve a ideia de que todos os
protagonistas tem direito a ser entendidos - o que não significa que toda a gente tenha
razão -, pois toda a gente tem a palavra; é o que ele chama a "justiça superior do teatro",
que distingue, pelo menos teoricamente, o teatro de tese do verdadeiro teatro, em que é
o espectador que tem de ter uma opinião. Gabriel Marcel está a meio caminho entre
ambos porque mete, apesar de tudo, na boca de uma das personagens aquilo em que
acredita; mas pratica também uma espécie de distribuição da palavra. A atenção
extrema que Gabriel Marcel dispensava às pessoas estava, aliás, ligada à sua experiência
da I Guerra Mundial, onde trabalhara a coletar notícias de soldados desaparecidos, a
reconstituir destinos singulares." (pag. 41)
- "Se me afastei da sua filosofia [(Gabriel Marcel)], não foi por causa das suas
convicções profundas, mas antes devido a uma falta nele de estrutura conceitual. É um
pensamento essencialmente exploratório, que desliza de um conceito para o outro,
desempenhando essa ideia o papel de elemento melódico para uma sequência de
variações, um pensamento por afinidade conceitual, onde se precisa uma ideia através
de uma ideia próxima. Não chegou ao ponto de dizer que se trata de um pensamento
associonista, mas ele procede em função de assonâncias e dissonâncias." (pag. 42)
- "[...] pensava que a metáfora permitia tratar o núcleo semântico do símbolo." (pag. 43)
- Merleau-Ponty em 'Sobre a fenomenologia da linguagem' (1951), já tinha, na opinião
de Ricoeur "balizado perfeitamente o campo da análise fenomenológica da percepção e
dos seus mecanismos, não me restava mais, verdadeiramente aberto - pelo menos
acreditava nisso nessa época -, senão o [acaba p. 44] domínio prático. Foi nesse terreno
que empreendi investigações que encontrariam o seu desenvolvimento ulterior, quando
abordei o problema do mal, da vontade má - daquilo que em linguagem teológica se
chama o 'pecado'. Tinha a impressão de que, no domínio da fenomenologia, só se havia
tratado até então da vertente representativa da intencionalidade, e que todo o campo
prático, o campo emocional, ou seja o campo do sentimento e do sofrer - apesar de ter
admirado muito o livro de Sartre sobre as emoções -, não tinha sido verdadeiramente
explorado." (pag. 44-45)
- "As minhas próprias escolhas parecem-me hoje como tendo sido triplamente
determinadas. Em primeiro lugar, portanto, Merleau-Ponty deixara livre um campo de
investigação cuja ferramenta de análise estava disponível; depois, tinha estado muito
atento à discussão entre Descartes, Leibniz e Malebranche sobre o problema da
liberdade e do determinismo; por fim, ligara-me a uma problemática de inspiração
agostiniana, respeitante ao mal e ao pecado, que me levava à simbólica do mal."
(pag.45)
- “Em Qu’est-ce que l’homme? Ricoeur ‘tentava caracterizar a psicanálise com três
traços. Em primeiro lugar, o fato de que o inconsciente fala: a psicanálise não seria
possível se não existisse uma espécie de proximidade entre o pulsional humano e a
linguagem – o que é uma maneira de voltar a dizer, noutros termos epistemológicos, a
união do dinâmico e do interpretativo. Em segundo lugar, a pulsão é dirigida a: há nela
um caráter de endereço, ao pai, à mãe, etc.; o complexo de Édipo não seria
compreensível se não existisse logo uma espécie de relação com o outro, que é
verdadeiramente constitutiva. Em terceiro lugar, a componente narrativa da experiência
analítica: o fato de que o paciente fornece fragmentos de narrativa, mas de uma história
estilhaçada, cujas peripécias ele não tolera nem compreende; a tarefa da psicanálise
consiste, de certa maneira, em retificar, em tornar inteligível e aceitável uma história.”
(pag. 103)
- “Pois embora o leitor viva no mundo irreal da fábula, é ao mesmo tempo um ser de
carne, que é mudado pelo ato da leitura.” (p. 123)
- “[...] é a memória que tem futuro, ao passo que a história interpreta uma parte do
passado, a cujo respeito esquece que teve futuro.” (p. 172)
- “Por isso, à ideia de uma desfatalização do passado acrescentaria, pela minha parte, a
ideia de libertação de uma promessa não cumprida. Porque as pessoas do passado
tinham esperanças e projetos, acerca dos quais muitas foram decepcionadas; muitas
utopias seriam vazias, se não pudéssemos preenchê-las com as promessas não
cumpridas, impedidas ou destruídas, das pessoas do passado. No fundo, cada período
tem à sua volta uma aura de esperanças que não terá preenchido, e é essa aura que
permite retomá-las no futuro. Talvez seja assim que a utopia se poderá curar da sua
doença congénita, que é acreditar na possibilidade de começar do zero: a utopia é muito
mais um re-nascimento.” (p. 172)
- “A obra de arte é, assim, para mim, a ocasião de descobrir aspectos da linguagem, que
a sua prática usual e a sua função instrumentalizada de comunicação vulgarmente
dissimulam. A obra de arte desnuda propriedades da linguagem que, de outro modo,
permaneceriam invisíveis e inexploradas.” (p. 235)
- “Foi efetivamente pelo tema do narrativo que, até hoje, abordei a estética. Como disse,
o narrativo dera-me ocasião de tomar posição sobre um problema que não podemos
resolver nem com as línguas artificiais nem sequer com a linguagem vulgar: a dupla
vertente do signo. Por um lado, o signo não é a coisa, está em retirada em relação a ela e
engendra, por isso, uma ordem nova que se ordena numa intertextualidade. Por outro
lado, o signo designa alguma coisa, e é preciso estar extremamente atento a esta
segunda função, que intervém como uma compensação a respeito da primeira, porque
compensa o exílio do signo na sua ordem própria. Recordei a expressão admirável de
Benveniste: a frase faz regressar a linguagem ao universo. Fazer regressar ao universo:
o signo opera uma retirada em relação às coisas e a frase faz regressar a linguagem ao
mundo. ” (p. 235)
- “Disse já que fixei esta dupla função do signo num vocabulário particularmente
apropriado ao narrativo, distinguindo a configuração – a capacidade que a linguagem
tem de se configurar a si mesma no seu espaço próprio – e a refiguração – a capacidade
que a obra tem de reestruturar o mundo do leitor ao desarrumar, contestar e remodelar
as suas expectativas. ” (p. 235)
- “A música cria-nos sentimentos que não tem nome; estende o nosso espaço emocional,
abre em nós uma região onde vão poder figurar sentimentos absolutamente inéditos.
Quando escutamos tal música, entramos numa região da alma que só pode ser explorada
pela audição dessa peça. Cada obra é autenticamente uma modalidade de alma, uma
modulação de alma.” (pag. 237)
- “Que é um [acaba p. 237] mundo? É algo que se pode habitar; que pode ser
hospitaleiro, estranho, hostil... Existem assim sentimentos fundamentais, que não tem
qualquer relação com um coisa ou um objeto determinados, mas que dependem do
mundo em que a obra comparece; são, em suma, puras modalidades de o habitar. Penso
que não é por complacência nem por retórica que se fala, por exemplo, do ‘mundo
grego’, ainda que seja sempre a propósito de uma obra singular: a obra, que é em si
mesma mundo singular, faz valer um aspecto ou uma faceta desse ‘mundo grego’: quer
dizer que vale mais do que ela mesma: remete para uma espécie de arredores,
testemunha uma capacidade de se disseminar e de ocupar um espaço inteiro de
consideração ou de meditação face ao qual o espectador se pode situar. Este posta-se
diante da obra, frente a ela. Mas, ao mesmo tempo, está no meio do mundo criado por
esse frente a frente. Há aqui dois aspectos perfeitamente complementares, e o fato de
estar imergido num mundo compensa o que aí poderia haver de pretensão de domínio
no simples frente a frente com a obra: um mundo é alguma coisa que me rodeia, que
pode submergir-me, em todo caso, que eu não produzo, mas onde me encontro.” (p.
237-238)
- “Portanto, só pode utilizar-se o termo ‘mundo’, em todo o rigor, quando a obra opera a
respeito do espectador, ou do leitor, o trabalho de refiguração que perturba a sua
expectativa e o seu horizonte; é apenas na medida em que pode refigurar esse mundo
que a própria obra se revela como capaz de um mundo.” (p. 238)
- “É um ponto de que muito gosto. Porque, se se fizer da obra de arte – quer seja
literária, plástica ou musical – apenas o centro de constituição de uma ordem irreal,
retira-se-lhe a sua mordacidade, o seu poder de influência sobre o real. Não esqueçamos
a dupla natureza do signo: retirada para fora de, e regresso ao mundo. Se a arte não
tivesse, apesar da sua retirada, a capacidade de irromper entre nós, no seio do nosso
mundo, seria totalmente inocente; seria marcada pela insignificância e reduzida a um
puro divertimento: limitar-se-ia a constituir um parêntesis nas nossas preocupações.
Penso que é preciso ir o mais longe possível nesta direção e defender que a capacidade
de regressar ao mundo é posta ao rubro pela obra de arte, porque nela a retirada [acaba
p. 238] é infinitamente mais radical do que a linguagem vulgar, onde esta função está
como que abafada, atenuada. À medida que na obra se esbate a sua função de
representação – é o caso da pintura não figurativa e da música quando não é figurativa -,
à medida que se cava o afastamento com o real, reforça-se o poder de mordedura da
obra sobre o mundo da nossa experiência. Quanto mais ampla é a retirada tanto mais
vivo é o retorno ao real como vindo de mais longe, como se a nossa experiência fosse
visitada de infinitamente mais longe do que ela.” (pag. 238- 239)
- “Eu diria que a obra, no que ela tem de singular, liberta em que a aprecia uma emoção
análoga à daquele que a engendrou, emoção de que era capaz, mas sem o saber, e que
alarga o seu campo afetivo, quando a sente. Por outras palavras, enquanto a obra não
abriu caminho até à emoção análoga, permanece incompreendida, e sabemos que isso
acontece muitas vezes.” (p. 241)
- “É por aí que tento retomar, com melhores armas do que em A Metáfora Viva, o
problema da referência na metáfora, aquilo a que chamei o poder de refiguração do
poema ou da narrativa. Pois a função referencial exerce-se na singularidade da relação
de uma obra com aquilo a que ela presta justiça na experiência viva do artista. A obra
refere-se a uma emoção que desapareceu enquanto emoção, mas que foi preservada na
obra. Como designar algo de emotivo a que a obra faz justiça? Existe uma palavra
inglesa que considero muito boa, é a de mood, que o francês traduz imperfeitamente por
‘humor’. O que o artista restitui é o mood que corresponde à sua relação singular, pré-
reflexiva, ante predicativa, com a situação de determinado objeto no mundo. O mood é
como uma relação fora de si, uma maneira de habitar aqui e agora um mundo; é esse
mood que pode ser pintado, musicado ou narrado numa obra que quando é conseguida,
estará com ele numa relação de conveniência.” (p. 242)
- “Mas que o mood possa de algum modo ser problematizado para se tornar uma
questão singular que apela para uma resposta singular, que a experiência viva do artista,
com o que ela comporta de exigência de ser dita, possa ser transposta sob a forma de um
problema singular, a resolver por meios pictóricos ou outros – eis talvez o enigma da
criação artística. A modéstia do artista, ou o seu orgulho – neste caso, isso vem a dar no
mesmo -, é provavelmente saber fazer nesse momento o gesto que todo o homem
deveria fazer. Existe, na apreensão da singularidade da questão, o sentimento de uma
incrível obrigação; no caso de Cézanne e de Van Goh, sabemos que ele era esmagador.
É como se o artista sentisse a urgência de uma dívida por pagar a respeito de qualquer
coisa singular, que exige ser dita singularmente.” (pag. 243)