Você está na página 1de 51

ALEX SANDRO MOLETTA

A FILOSOFIA DE SARTRE NA PEÇA TEATRAL


“ENTRE QUATRO PAREDES”

SANTO ANDRÉ
2007
ALEX SANDRO MOLETTA

A FILOSOFIA DE SARTRE NA PEÇA TEATRAL


“ENTRE QUATRO PAREDES”

Monografia apresentada ao
Centro Universitário Claretiano
para obtenção do título de
graduado em Licenciatura em
Filosofia. Orientador: Profº Ms.
Stefan Vassilev Krastanov.

SANTO ANDRÉ
2007
ALEX SANDRO MOLETTA

Monografia apresentada ao Centro Universitário Claretiano para obtenção


do título de graduado em Licenciatura em Filosofia. Orientador: Prof. Ms.
Stefan Vassilev Krastanov.

A FILOSOFIA DE SARTRE NA PEÇA TEATRAL


“ENTRE QUATRO PAREDES”

Orientador: Prof°. Ms. Stefan Vassilev Krastanov

Examinador(a): ___________________________________________________

Examinador(a): ___________________________________________________

Santo André, 17 de Novembro de 2007.


Dedico este trabalho à minha esposa que me
incentivou, me ajudou e me compreendeu nos
momentos difíceis em que me dediquei somente
aos estudos, durante todo esse período de
graduação e a toda minha família que sempre me
apóia em tudo que faço.
Agradeço a todos os tutores, que me auxiliaram à
distância, e aos professores presenciais que
deram toda a atenção que precisávamos. Espero
retribuir a todo esse trabalho levando minha vida
profissional e intelectual, com empenho,
seriedade e sensibilidade, mantendo-me sempre
aberto ao processo de reflexão.
O outro é indispensável à minha existência, tal
como, aliás, ao conhecimento que eu tenho de
mim. (SARTRE, 1978. p.16)
RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar como se aplica a filosofia existencial

de Jean-Paul Sartre em sua obra teatral Entre Quatro Paredes. Estudar e analisar

pontos chaves no pensamento do autor como: liberdade, angústia, a relação com

o outro e identificar como esses pensamentos refletem em suas personagens

teatrais. Refletir sobre o estudo da linguagem do drama: dramaturgia. Estudar e

analisar a obra teatral em si e estabelecer uma relação direta entre a filosofia e a

dramaturgia de Sartre.

O estudo se torna relevante para identificar o processo de transformação de

idéias e conceitos filosóficos, fundamentalmente abstratos e metafísicos, em

diálogos e ações humanas concretas numa situação dramática. Estabelecendo

uma ponte direta entre idéia e ação. Para isso a metodologia seguirá o caminho

dedutivo partindo de aspectos principais e gerais da filosofia sartreana até as

particularidades, dessa filosofia, encontradas no texto teatral.

O resultado desse estudo chegou à conclusão de que na forma teatral o

filósofo valida seus conceitos de condição e realidade humana apresentados em

sua filosofia existencial na dramaturgia da peça Entre Quatro Paredes.

PALAVRAS-CHAVE:

Filosofia – dramaturgia – Teatro – Existencialismo – teatro de situação.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................. 09
1. INTRODUÇÃO AO EXISTENCIALISMO................................. 13
2. SOBRE A DRAMATURGIA..................................................... 18
3. SOBRE JEAN-PAUL SARTRE................................................ 22
4. CONCEITOS DA FILOSOFIA DE SARTRE............................ 25
4.1 – FENOMENOLOGIA PARA SARTRE........................................... 25
4.2 – LIBERDADE................................................................................. 26
4.3 – ESCOLHA E RESPONSABILIDADE........................................... 27
4.4 – A ANGÚSTIA................................................................................ 29
4.5 – O HOMEM..................................................................................... 30
4.6 – A EXISTÊNCIA PRECEDE A ESSÊNCIA................................... 30
4.7 – TEATRO DE SITUAÇÕES (ANALOGON)................................... 31

5. APRESENTANDO “ENTRE QUATRO PAREDES”................ 34


6. ANALISANDO A OBRA........................................................... 36
6.1 – A ESTRUTURA ARISTOTÉLICA DA PEÇA................................ 37
6.2 – METÁFORAS EXISTENCIAIS...................................................... 38
6.3 – O AMOR E O ÓDIO....................................................................... 40
6.4 – A RELAÇÃO COM O OUTRO...................................................... 41
6.5 – A ESCOLHA E A ANGÚSTIA NOS PERSONAGENS................. 43
7. SARTRE FILÓSOFO E SUA DRAMATURGIA........................ 45
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................... 48
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................ 49
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 9

INTRODUÇÃO

A filosofia é a forma abstrata de pensar o concreto. Por meio da observação


e da reflexão, o homem se desenvolveu vencendo os obstáculos e dificuldades
que se opunham à sua sobrevivência, sua relação com o mundo e seu bem-estar.
É por meio da filosofia que o homem tenta se conhecer como sujeito e como
objeto.

Tendo como ferramentas, para adquirir esse auto-conhecimento, a


epistemologia, estudo sobre a origem do conhecimento; a antropologia que estuda
o homem como ser animal, social e moral; a psicologia e a psicanálise que se
dedicam ao estudo dos fenômenos e atividades da mente humana e seus
elementos constitutivos da consciência e inconsciência de cada indivíduo.

Outra forma do homem buscar a si mesmo, como ser pensante e existente,


é por meio da arte. Linguagem esta que o acompanha desde os desenhos
rupestres nas paredes das cavernas, desde os primeiros relatos orais de fatos do
cotidiano ao redor do fogo, até as grandes obras de arte que revelam um ser com
beleza e obscuridade ao mesmo tempo, mas sobre tudo, um homem de carne e
osso, que pensa e grita suas razões e seus desejos.

Nesse sentido, a filosofia se aproxima muito da arte teatral, pois, busca


observar, refletir e revelar o ser humano em seu mais amplo sentido. Investiga
tanto o homem social quanto o indivíduo. Primeiramente pela observação, reflexão
e elaboração conceitual e a segunda pela observação, reflexão e imitação humana
e experiencial.

Dessa forma Jean-Paul Sartre uniu filosofia e arte em sua busca para
compreender o ser humano, refletiu sua filosofia existencialista e humanista em
seus textos teatrais buscando equilibrar conceito e experiência para compor um
ser que existe, um ser filosófico que experimenta uma trajetória humana.

O presente estudo investigará como Jean-Paul Sartre transforma o


conteúdo abstrato de sua filosofia existencial em experiência humana por meio
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 10

das personagens criadas em suas peças teatrais. Tendo com objeto deste
presente estudo a peça teatral: Entre quatro paredes (1944) obra que marcou a
história do teatro francês e que tornou conhecido o filósofo também como
dramaturgo. Mas como se dá essa transformação? Como Jean-Paul Sartre
conquistou o público de teatro com sua filosofia?

Assim como a filosofia, a arte teatral ajuda a compreender o ser humano e


como ele se relaciona com o semelhante e o mundo. Trata-se de uma linguagem
que une razão e emoção, relaciona conceito e experiência.

Nas peças teatrais de Sartre, personagens lutam pela razão da própria


existência. Lutam para relacionar-se com o outro sem conhecer a própria
essência, gritam por um caminho que dê sentido em sua condição de estar
sempre entre “o ser e o nada”, sobretudo a obra Entre Quatro Paredes, onde três
personagens se encontram no inferno, depois da morte, para descobrir que o
inferno não está fora do ser humano.

Sartre instiga, até hoje, críticos e pensadores a refletir sobre sua obra, na
busca da compreensão da forma como os conceitos primordiais de sua filosofia
correm nas veias de seus personagens e são expelidos, por uma verborragia
econômica e equilibrada, na dialética proposta por ele em cada cena.

Nas obras que servirão de base teórica estão as principais reflexões sobre
a construção de uma dramaturgia consciente e crítica como forma de
manifestação social. Desde Aristóteles que fundou as bases da criação poética
como forma de imitação humana, identificando e estruturando a ação dramática
até Eric Bentley, crítico que vê a expressão teatral como forma de pensar o ser
humano de maneira crua e despida dos véus das ilusões, este último dedicou
parte de sua obra no desafio de compreender o teatro de Sartre. Já Alves e
Jacobelis fazem uma análise do drama da existência na obra Sartreana e seu
teatro de situações, buscando referências na filosofia e literatura do autor.

Para entender como um conceito filosófico pode ser aplicado numa arte tão
ligada ao homem como a representação teatral precisa-se, antes, entender o
conteúdo e o contexto em que o filósofo coloca seus conceitos existenciais e
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 11

humanos. Posteriormente deve-se entender como se dá a construção do texto


teatral, desde seus personagens até a estrutura que sustenta a narrativa e como
ambos, personagens e história, se relacionam para que exista a ação dramática e
as idéias se tornem presentes diante do público na forma de carne e osso, razão e
emoção.

Sem perceber e entender como se promove à conciliação de abstração das


idéias com a concretude do indivíduo que age e reage no palco, não é possível
perceber o conteúdo filosófico que Sartre imprime em sua obra teatral Entre
Quatro Paredes e o objetivo desse estudo é investigar como se dá esse processo.

Estudando a principal obra filosófica de Sartre sobre o existencialismo,


Existencialismo é um Humanismo, A Imaginação e O que é Literatura?, além de
leituras e análise criteriosa da peça Entre Quatro Paredes, pode-se traçar a partir
daí, uma forma de identificar o processo criativo dentro do processo filosófico do
autor por meio de seus personagens, analisando seus relacionamentos e
comportamentos diante do mundo que os cerca, mundo este visto pelos olhos de
Sartre.

É importante salientar que sua obra literária não fará parte desse estudo,
pois além de possuir uma linguagem diferente de expressão, é muito mais
abstrata e imagética do que a representação teatral, e iria ampliar muito o campo
de estudo e pesquisa, portanto o cerne será o pensamento Sartreano no teatro.

Após leitura e análise do conteúdo de referência e a reflexão de outros


autores e comentadores de Sartre, se dará à investigação sobre o processo
criativo do Sartre dramaturgo, relendo a peça teatral e identificando pontos em
comum da dramaturgia com sua filosofia.

Feito essa análise, haverá dados suficientes para se estabelecer uma ponte
direta, ou não, sobre o pensamento reflexivo existencialista e humanista de Sartre
com sua forma de estruturar personagens e enredo de suas peças teatrais a partir
de Entre Quatro Paredes. Revelando assim a forma como sua filosofia abstrata se
transforma em verbo de sujeitos de carne e osso, vivendo o “aqui e agora” que a
representação teatral proporciona ao público.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 12

Optando pelo método dedutivo, iniciando pelo estudo do existencialismo e


humanismo, passando pela criação dramatúrgica na escrita teatral, depois pela
obra de Jean-Paul Sartre e terminando nos personagens que compõe a peça
teatral Entre Quatro Paredes teremos uma indicação sobre como se dá esse
processo de transformação de conceitos em ações e situações humanas
representadas por personagens teatrais numa encenação.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 13

1. INTRODUÇÃO AO EXISTENCIALISMO

A corrente filosófica existencialista, ou existencialismo, surgiu em meados


no século XIX e teve como principal expoente o filósofo dinamarquês Sören Aabye
Kierkegaard (1813-1855) contestando a supremacia da razão como instrumento
na busca da verdade. Assim como no período contemporâneo, o pensamento
existencialista de Kierkegaard toma forma em um momento de crise política e
militar no qual passava seu país, em virtude das guerras napoleônicas. Segundo o
filósofo dinamarquês cabe ao homem escolher, entre apenas três dimensões, na
qual ele queria viver: a estética, a ética e a religiosa. Para ele essas dimensões
são excludentes impossibilitando o homem em escolher mais que uma, mas no
processo de vida o homem passaria primeiro, pela dimensão estética, depois com
a convivência social, a dimensão ética e por fim a dimensão religiosa, sendo esta,
na sua concepção a mais elevada. Sua produção intelectual causava estranhesa
pois versava sobre temas como: o amor, o sofrimento, a angústia e o desespero,
que segundo Kierkegaard não poderiam ser entendidos pela razão. Segundo o
comentador Gilberto Cotrim, base de seu pensamento foi na busca por uma
“análise da relação do homem com o mundo, consigo mesmo e com Deus” e a
base das:

As relações do homem com o mundo – outros seres humanos e a


natureza – são dominadas pela angústia. A angústia é entendida como
sendo o sentimento profundo que temos ao perceber a instabilidade de
viver num mundo de acontecimentos possíveis, sem garantia de que
nossas expectativas sejam realizadas. (COTRIM. 2005. p.198)

O pensamento de Kierkegaard lança as bases para a fundamentação do


existencialismo da mesma forma que o filósofo alemão Edmund Husserl (1850-
1938) o faz com a fenomenologia. Este filósofo propõe uma metodologia, por ele
chamada de Epoché ou “redução fenomenológica”, que consistia, basicamente, na
observação rigorosa do fenômeno, ou seja, na forma como ele se manifesta,
aparece, surge aos sentidos ou à consciência. Esse caráter científico-filosófico
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 14

dado por ele à questão da análise do fenômeno buscava algo essencial, livre dos
elementos pessoais e culturais de quem experimenta assim chegando ao que o
objeto “é” e não poderia deixar de ser, ou seja, sua essência seguia algumas
regras:

[...] as primeiras regras são de natureza negativa, [...] são: a) Eliminação


do objetivo: assumir atitude objetiva frente ao dado; b) Exclusão do
teórico: eliminação momentânea de toda a hipótese, teoria ou qualquer
conhecimento prévio; c) Suspensão da Tradição: exclusão das tradições
das ciências e das autoridades humanas. As segundas regras são
positivas e seguem a ordem: d) Ver o todo dado: e não somente alguns
aspectos do objeto; e) Descrever: o objeto analisando as suas partes.
(BOCHENSKI e ASTI-VERA apud COLTRO. 2007. p.43)

Os pensamentos de Kierkegaard e de Husserl foram absorvidos,


posteriormente, por Martin Heidegger (1889-1976), que foi discípulo de Husserl,
em conjunto com outros pensadores como o alemão Karl Jaspers (1883-1969), os
franceses Jean-Paul Sartre (1905-1980), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961),
Albert Camus (1913-1960) e o italiano Nicola Abbagnano (1901-1990) entre
outros, desenvolveram o pensamento existencialista contemporâneo que se
espalhou pelo mundo nas décadas de 40 e 50 do século XX. Coincidentemente
também veio à tona durante um momento de crise entre a Primeira e a Segunda
Guerras Mundiais, ligando as principais épocas de efervescência do pensamento
existencialista com as principais épocas de maior crise na Europa.

Assim, se considerarmos o tempo de seu nascimento e de seu


crescimento, é fácil perceber que o existencialismo expressa e leva à
conscientização a situação histórica de uma Europa dilacerada física e
moralmente por duas guerras, experimentam em muitas de suas
populações a perda da liberdade, com regimes totalitários que embora
de sinais trocados, atravessam-na dos Urais ao Atlântico e do Báltico à
Sicília. (REALE e ANTISERI. 2005. p.593)

Esse momento de crise torna-se elemento fundamental para a reflexão


sobre o ser e sua existência. “A existência é o modo de ser finito e é a
possibilidade, isto é, um poder-ser.” (REALE e ANTISERI. 2005. p.594) As
atrocidades da guerra mostrou ao homem contemporâneo a fragilidade de sua
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 15

existência e o fez pensar em como ele é ou como pode vir a ser. Em meio a essa
“crise da existência humana” surge a obra Ser e Tempo de Martin Heidegger onde
ele aborda, pelo ponto de vista fenomenológico, a questão do ser. Mesmo
negando-se como um filósofo existencialista ele afirma que a questão fundamental
para a filosofia não é o homem, e sim, o ser, a essência não só do homem, mas
de todas as coisas. Segundo Heidegger quando se coloca o homem como centro
de preocupação do pensamento humano, o mesmo deixa de ser filosofia e passa
a ser antropologia.

Uma das contribuições de Heidegger foi à distinção entre “ser” e “ente”,


para ele o “ente” se refere à existência, ou seja, o modo de ser do homem no
mundo, enquanto o “ser” se refere exclusivamente à essência, como aquilo que
determina a existência ou modo de ser do homem no mundo, criando o termo
Dasein, que significa o “ser-aí, estar aí”. Com isso, ele não quer dizer que a
essência do homem é o ser “em-si”, mas que o homem é essencialmente aquele
ente que questiona sobre o ser no mundo (Dasein). Ele busca o sentido do ser.
Com efeito, esse ente questionador, por meio do Dasein, adquiri a possibilidade
de enunciar o ser. Para Heidegger homem se diferencia, enquanto ente, dos
demais, por ser o único que questiona sobre o ser.

Outro tema fundamental em sua obra é a investigação do sentido do ser


para isso ele analisa a vida humana e identifica três fases que marcam a
existência do indivíduo: A existência como fato; o desenvolvimento da existência;
e a destruição do eu. Na existência como fato o homem é lançado do mundo sem
saber porquê, quando desperta para consciência ele já “está-aí”, no
desenvolvimento da existência o homem projeta no mundo o que ele deseja ser,
suas forças são direcionadas para ser aquilo que ainda não é. Já na destruição do
eu é quando o homem sofre influência das relações no mundo e dos outros, seu
“eu” é destruído e ele torna-se exclusivamente o que os outros querem que ele
seja, e não o que ele projetou para si mesmo vivendo uma existência “inautêntica”.

Essas três fases descritas pelo filósofo estão relacionadas à condição de


existência do homem na relação com o “tempo” (passado, presente e futuro) e ele
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 16

as chama de “êxtase” (resgate etimológico do sentido de “estar-fora”). O homem é


um ente com uma necessidade existencial que questiona e busca sentido para
seu ser, porque se mantém constantemente em êxtase, ou seja, fora de si.

Heidegger crê numa possibilidade do homem despertar dessa existência


inautêntica pela experiência da “angústia profunda” (tema já abordado por
Kierkegaard e que será retomado por Sartre), onde o homem abandona seu
próprio eu e se desliga de todas as coisas do mundo. Diante dessa angústia,
Heidegger vê somente duas possibilidades para o homem: fugir de sua dimensão
profunda (o contato com o ser) e voltar ao cotidiano, ou superar a própria angústia
e transcender para sua condição autêntica de “ser em aberto” e estabelecer um
novo projeto de ser. Segundo Heidegger a angústia profunda:

[...] é sempre angústia diante de..., mas não angústia diante disto ou
daquilo. A angústia diante de... é sempre angústia por..., mas não por
isto ou aquilo. [...] Que a angústia revela o nada é confirmado
imediatamente pelo próprio homem quando a angústia se afastou. Na
posse da claridade do olhar, a lembrança recente nos leva a dizer:
Diante de que e por que nós nos angustiávamos era “propriamente” —
nada. Efetivamente: o nada mesmo — enquanto tal — estava aí.
(HEIDEGGER. O que é metafísica? 2007. p.08)

O filósofo diz que o nada se revela na angústia, mas não enquanto ente. O
nada também não é um objeto. A angústia não pode apreender o nada. Mas o
nada se manifesta através da angústia. É a relação com o ser-aí na condição
autêntica.

[...] tal é o modo de o nada assediar, na angústia, o ser-aí —, é a


essência do nada: a nadificação. Ela não é nem uma destruição do ente,
nem se origina de uma negação. A nadificação também não se deixa
compensar com a destruição e a negação. O próprio nada nadifica.
(HEIDEGGER. O que é metafísica? 2007. P.08)

Essa reflexão Heideggeriana sobra o despertar pela angústia e sua relação


com o nada existencial será de extrema importância para o pensamento filosófica
de Jean-Paul Sartre em sua obra O Ser e o Nada. Para o existencialismo essa
não identificação da realidade com a racionalidade, mas pelo sentimento
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 17

experiencial da angústia profunda, acompanha outros elementos característicos


que são:

1) a centralidade da existência como modo de ser daquele ente finito


que é o homem; 2) a transcendência do ser (o mundo e/ou Deus) com o
qual a existência se relaciona; 3) a possibilidade como modo de ser
constitutivo da existência e, pois, como categoria insubstituível na
análise da própria existência. (REALE e ANTISERI. 2005. p.594)

O pensamento existencialista, além de colocar toda a questão existencial


nas mãos do homem, também vislumbra a possibilidade de um novo projeto, um
poder-ser para o homem e, apesar do direcionamento deste presente estudo, não
se deve deixar de citar a influência de autores como: Arthur Schopenhauer (1788-
1860); Ludwig Feuerbach (1804-1872) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) que
lançaram questões e caminhos para a filosofia moderna e contemporânea.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 18

2. SOBRE A DRAMATURGIA

O presente trabalho pretende analisar e refletir sobre o pensamento


sartreano que impregna situações, conflitos e personagens na peça Entre Quatro
Paredes, porém antes de entrar nesse tema é necessário entendermos
basicamente como se dá o desenvolvimento do “estudo do drama” teatral. Quais
são os elementos básicos que compõe um texto para uma peça de teatro? Como
se desenvolve? Há uma estrutura definida?

O primeiro a se debruçar sobre esse tema foi o filósofo grego Aristóteles em


sua obra A poética. Muitos são os autores que escreveram sobre a dramaturgia,
também muitos são os gêneros e estilos de dramaturgia, mas este estudo vai se
concentrar somente na análise estrutural do drama segundo Aristóteles, sem
entrar especificamente em nenhum gênero específico. O intuito é conhecer o
drama em sua estrutura fundamental como linguagem.

O homem sempre teve a necessidade de imitar. O “drama”, palavra de


origem grega, significa “em ação”, ou seja, a arte teatral é a arte de imitar pessoas
em ação, ou seja, agindo diante de uma situação ou problema. Aristóteles
apresenta três tipos de imitações para o drama:

Como aqueles que imitam pessoas em ação, estas são necessariamente


ou boas ou más (pois os caracteres quase sempre se reduzem a apenas
esses, baseando-se no vício ou na virtude a distinção do caráter), isto é,
ou melhores do que somos, ou piores, ou então tais e quais.
(ARISTÓTELES. 1996. p. 32)

Com isso ele reduz toda a gama de personagens em apenas esses três.
Para os personagens melhores do que somos eram representados nas tragédias
como personagens modelares exemplos a serem seguidos por serem virtuosos.
Piores do que somos eram representados nas comédias como personagens
cheios de vícios e defeitos e tal como somos eram representados por
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 19

personagens que não se destacavam nem pela virtude, nem pelo vício,
personagens estas mais próximas das pessoas comuns apresentando tanto
virtude como defeitos.

Depois de delimitar a gama de personagens o autor indica a fábula como


elemento importante na constituição do drama: “A fábula é, pois, o princípio, a
alma, por assim dizer, da tragédia, vindo em segundo lugar os caracteres.”
(ARISTÓTELES. 1996. p. 37), ou seja, a fábula seria o arranjo das ações que o
drama vai apresentar, são as ações principais da história do início ao fim na ordem
cronológica. Uma fábula inteira, para ele, era uma história completa com começo,
meio e fim. Assim o filósofo divide a fábula em também, três partes distintas:
apresentação, desenvolvimento e desfecho.

Apresentação (começo) se refere à exposição para o público do contexto


em que a estória se passa, nela são apresentados os conflitos das personagens e
o problema principal a ser resolvido pelos personagens. Também está nesse
trecho a exposição das personagens enquanto tal, basicamente, tem-se a abertura
de todos os temas que serão tratados no desenvolvimento e no desfecho.

Desenvolvimento (meio) é dedicado à trajetória que os personagens vão


tomar em direção à resolução do problema. É o trecho onde os mesmos vão agir
de acordo com o seu caráter, conseguindo ou não o seu objetivo. Constituindo a
maior parte da fábula, é durante o desenvolvimento que as personagens vão se
relacionar umas com as outras e construir seu próprio caminho no drama
proposto.

Desfecho (fim) é o momento onde o problema principal é revelado e as


personagens precisam tomar suas decisões de como vão agir para resolvê-lo.
Geralmente é o momento de impasse para as personagens, ou elas seguem por
um caminho, ou opor outro, a partir da decisão que tomarem a peça passa a
caminhar para a sua resolução definitiva, seja ela boa ou má.

Outro aspecto importantíssimo para o filósofo é a unidade de ação, ou seja,


todo drama precisa ter uma única unidade que liga todas as ações a todos os
personagens.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 20

O que dá unidade à fábula não é, como pensam alguns, apenas a


presença do personagem principal: no decurso de uma existência
produzem-se em quantidade infinita muito acontecimentos, que não
constitui uma unidade. Também muitas ações pelo fato de serem
executadas por um só agente, não criam uma unidade. (ARISTÓTELES.
1996. p.38)

A essa unidade de ação ele dá o nome de “nó” dramático. É como se vários


pedaços de barbante em um novelo estivessem todos presos por um mesmo nó.
Todos estão diretamente ligados ao mesmo problema do “nó”, segundo Aristóteles
se algum barbante não estiver preso ao nó principal o mesmo não pertence ao
novelo. Segundo ele o nó dramático vai desde o início da peça até o final do
desenvolvimento e início do desfecho conde acontece o impasse causado pelo nó
e ocorre o desenlace mudando o curso da estória pela decisão e escolha dos
personagens.

Esses momentos que dividem o drama em apresentação, desenvolvimento


e desfecho são marcados por peripécias que são fatos que ocorrem no decorrer
que causam uma viravolta das ações em sentido contrário, segundo a
verossimilhança e necessidade da fábula. O fato ocorre e faz o personagem agir
de forma contrária ao esperado, mudando o curso da estória.

No tocante ao caractere (personagem) Aristóteles divide-o em duas


qualidades distintas: pensamento e caráter.

Quando o personagem age pela razão ele se mostra mais forte e


consciente, pois consegue dominar seus instintos e sua natureza, mostra-se um
personagem mais elevado como ser humano, pois suas ações são medidas pela
razão: sua vontade é a de não agir, mas sua razão pede que ele o faça, já o
mesmo não acontece quando o personagem é movido pelo caráter, pois é quando
sua natureza e seus instintos dominam sua razão: ele sabe que precisa agir, mas
sua natureza o impede o que faça. Essas duas forças em conflito tornam o
personagem mais forte ou mais fraco diante do problema, conseqüentemente
torna-o mais humano também.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 21

O drama é marcado pela imitação das ações humanas e sua linguagem de


comunicação possui dois elementos primordiais: o verbo e ação. Portanto, em um
drama a estória deve ser comunicada por meio de diálogos e de ações em cena.
Isso quer dizer que um texto teatral deve ser escrito para ser falado e suas ações
desenvolvidas diante do público. É dessa forma que ocorre o que chamamos de
“representação”, ou tornar presente os fatos diante da platéia como se tudo
estivesse acontecendo “aqui e agora”.

Essa essencialidade do verbo não permite diálogos triviais e supérfluos,


mas apenas diálogos que conduza os personagens e as ações em direção a uma
resolução. Para isso o dramaturgo precisa conhecer todos os aspectos da estória,
seus personagens, o desenvolvimento das ações, as múltiplas camadas de
conflitos (principal, secundário, internos e externos) e as diversas relações que
constitui o universo do tema proposto no drama.

Quando se está construindo e enformando a fábula com o texto, é


preciso ter a cena o mais possível diante dos olhos; vendo, assim, as
ações com a máxima clareza, como se assistisse ao seu desenrolar, o
poeta pode descobrir o que convém, passando despercebido o menor
número possível de contradições. (ARISTÓTELES. 1996. p. 47)

O dramaturgo, antes de começar a desenvolver o texto da peça, precisa ter


respostas precisas para perguntas tais como: Quem é o personagem principal?
Quem, ou o quê é seu principal opositor? Qual é o conflito “nó” da peça? Qual é o
conflito principal do personagem? Como o problema é resolvido, ou não, pelo
personagem?

Apesar da reflexão sobre o drama ter sido feito por um grego por volta de
335 a.C. o texto A Poética se mantém como referência para a dramaturgia, pois
independente da linguagem a estrutura dramática se mantém a mesma, e será
sob esse aspecto estrutural que vamos analisar a peça Entre Quatro Paredes e
buscar a relação direta com o pensamento de Sartre.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 22

3. SOBRE JEAN-PAUL SARTRE

Filósofo mais conhecido do existencialismo contemporâneo Jean-Paul


Charles Aymard Sartre nasceu em Paris, no dia 21 de junho de 1905. O pai
faleceu dois anos depois e a mãe, Anne-Marie Schweitzer, mudou-se para
Meudon, nos arredores da capital francesa, a fim de viver na casa de Charles
Schweitzer, avô materno de Sartre.

A imaginação criativa marcou sua infância alimentada pela literatura


precoce e intensa de forma a povoar suas idéias sobre a descoberta do mundo:
“...por ter descoberto o mundo através da linguagem, tomei durante muito tempo a
linguagem pelo mundo.” (SARTRE. 1978. p.VII) Aos dez anos queria se tornar
escritor e ganhou uma máquina de escrever. Aos dezenove ingressou no curso de
filosofia da Escola Normal Superior, apesar de não ser um aluno brilhante já
demonstrava interesse pelo tema: liberdade. Foi exatamente nesta escola que
Sartre conheceu uma garota chamada Simone de Beauvoir (1908-1986).

Em 1933 passou um ano em Berlim, estudando a fenomenologia de


Husserl, as teorias existencialistas de Heidegger e Karl Jaspers. A partir destes
autores Sartre chegou à obra de Kierkegaard e a partir de então começa a
elaborar seu próprio pensamento sobre a filosofia existencialista.

Ainda na Alemanha ele inicia a redação de um romance sobre a melancolia


que intitulou posteriormente de A Náusea, em 1936, já na França, publicou A
Imaginação e A Transcendência do Ego. Em 1938 publica uma coletânea de
contos chamado O Muro, e o ensaio Esboço de uma Teoria das Emoções, em
1940 produz mais um ensaio, O Imaginário, como obra anterior utilizando o
método fenomenológico.

Estoura a Segunda Guerra Mundial e Sartre, já formado, foi convocado a


prestar o serviço militar como meteolorogista em Lorena. Em junho de 1940, caiu
prisioneiro e foi encerrado no campo de concentração de Trier, Alemanha. Um ano
depois conseguiu escapar e em 1941 reencontrou Simone de Beauvoir.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 23

Em 1943 encena sua primeira peça teatral: As Moscas uma lenda grega
onde o reino de Agamenão era infestado por moscas fazendo uma exortação à
luta contra os alemães. Neste mesmo ano Sartre publica uma obra fundamental à
teoria existencialista que iniciou em 1939: O Ser e o Nada.
Nesse período, a Segunda Guerra Mundial colocou a França em situação
de conflito e provocou confrontos internos entre partidários de lados distintos. O
líder alemão de origem austríaca Adolf Hitler, Führer do Terceiro Reich, pretendia
criar uma "nova ordem" na Europa, baseada nos princípios nazistas da suposta
superioridade alemã, na exclusão — e supostamente eliminação física incluída —
de algumas minorias étnicas e religiosas, como os judeus e os ciganos, bem como
deficientes físicos e homossexuais; na supressão das liberdades e dos direitos
individuais e na perseguição de ideologias liberais, socialistas e comunistas.

Depois desta fase de incertezas e de conflitos, Sartre traça uma carreira


consistente e produtiva no meio filosófico e literário com inúmeras peças,
romances e ensaios filosóficos que vão refletir as experiências vividas no período
da guerra como: Existencialismo é um Humanismo, Crítica da Razão Dialética e
Questão de Método, além de outras peças como Mortos Sem Sepultura, A
Prostituta Respeitosa, As Mãos Sujas e O Diabo e o Bom Deus. Em 1964 é
agraciado com o prêmio Nobel de Literatura do qual se recusa a receber, pois não
reconhecia a autoridade dos juizes e considerava inadmissível a premiação.

Esse fato demonstra um aspecto peculiar na vida pessoal de Sartre, ele era
contrário a qualquer tipo de hierarquia social. Há um trecho do livro A Idade Forte
em Simone de Beauvoir fala sobre isso:

Claro, ele não se propunha a levar vida de homem de estudo; detestava


as rotinas e as hierarquias, as carreiras, os lares, os direitos e os
deveres, todo o lado sério da vida. Não se adaptava à idéia de ter uma
profissão, colegas, superiores, normas a observar e a impor, nunca se
teria tornado chefe de família e muito menos homem casado.
(BEAUVOIR apud REALE e ANTISERI. 2005. p.605)
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 24

Em sua vida pessoal, Sartre também apresentava sua concepção de


liberdade. Entendia que um relacionamento institucional, seja trabalho, familiar ou
social, implicava na perda da liberdade, na limitação de suas possibilidades de
escolha, enfim, na situação humana que tanto combatia em seu pensamento
existencial, que almejava um projeto pessoal com sua obra para sua existência.

[...] Não teria lançado raízes em lugar nenhum e nunca teria o ônus de
propriedade alguma, não para conservar-se ociosamente disponível,
mas para experimentar tudo. Todas as suas experiências se
canalizariam em benefício de sua obra e teria descartado
categoricamente todas aquelas que teriam podido reduzi-la [...] Sartre
sustentava que, quando se tem algo a dizer, qualquer desperdício é
criminoso. A obra de arte, a obra literária, era para ele fim absoluto:
levava em si a sua razão de ser, a de seu criador e, talvez, também [...]
a de todo o universo.” (BEAUVOIR apud REALE e ANTISERI. 2005.
p.605)

Esse relato apresenta um homem que tinha plena convicção naquilo que
acreditava ser um caminho possível para o homem viver em liberdade. Aplicava
em seu dia-a-dia sua filosofia existencialista e o que escolhia para si, era o que
escolhia para toda a humanidade. Com isso, percebe-se o quanto sua vida
pessoal influenciou em sua obra filosófica e vice-versa.

É importante salientar que este estudo não cobriu toda a biografia do autor,
muito menos sua extensa obra filosófica e literária, mas deu mais importância aos
fatos e obras que teriam uma maior relação e influência no objeto desse estudo: a
peça teatral Entre Quatro Paredes.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 25

4. CONCEITOS DA FILOSOFIA DE SARTRE

Durante seus estudos na Alemanha, Sartre se aprofundou na


fenomenologia de Hurssel e na obra Ser e Tempo de Heidegger, como já foi dito
anteriormente. Porém, o francês se apropriou desses conceitos e estruturou sua
filosofia existencialista com a qual alcançou muito mais pessoas que seus dois
antecessores, um dos motivos por ter escolhido a literatura e o teatro como
veículos de propagação de idéias ampliando o acesso para fora dos meios
acadêmicos filosóficos.

Existem aspectos importantes a serem destacados sobre o pensamento


existencialista sartreano. Conceitos como: fenomenologia, liberdade, escolha e
responsabilidade, angústia, o homem, seu conceito de que a existência precede a
essência e teatro de situações, são imprescindíveis tomar ciência para estabelecer
um diálogo entre suas idéias e sua dramaturgia.

4.1- Fenomenologia para Sartre.

A filosofia de Sartre é fortemente embasada na fenomenologia. Para ele ela


se caracteriza por ser descritiva e por falar do que aparece, como aparece. Como
pregava Husserl, o método fenomenológico deve ser empregado sem
interferências culturais, pessoais ou sociais. Assim como ele, Sartre, enxergava a
literatura como descrição das manifestações humanas.

E se a fenomenologia descreve o que aparece, fala do homem e de sua


vivência, do homem na sua concretude histórica, podemos dizer então
que há uma aproximação da fenomenologia com a literatura, e um
distanciamento grande em relação à metafísica clássica e ao ideal de
fazer da filosofia uma “ciência de rigor.”(SOUZA. 2003. p.130)

Diferentemente da metafísica clássica, onde o “ser” reside na simples


presença, o “ser” passa ser o fundamento do ente. Retomando assim a idéia
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 26

ontológica do ser proposta por Heidegger em Ser e Tempo. Dessa forma a


fenomenologia em Sartre corrobora com o pensamento Heideggeriano de que o
ser humano é um ser ontológico, um ente que é capaz de se relacionar com o ser.
É com essa concepção que o francês vê na fenomenologia a possibilidade de
investigação existencial do ser. O método fenomenológico aparece mais
nitidamente em obras como Esboço de uma Teoria das Emoções e em O
imaginário.

4.2 – Liberdade.

Esse é um tema que sempre acompanhou o pensamento do filósofo desde


sua juventude. Segundo ele é somente por meio da liberdade que o ser humano
pode caminhar em direção ao seu projeto de vida, ou o que se deseja ser em sua
existência. Por esse motivo ele também diz que o homem está condenado a ser
livre. Mas que espécie de condenação fala Sartre?

Queremos a liberdade pela liberdade e através da cada circunstância


particular. E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende
inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros
depende da nossa. Sem dúvida, a liberdade como definição do homem
não depende de outrem, mas, uma vez que existe a ligação de um
compromisso, sou obrigado a querer ao mesmo tempo a minha
liberdade e a liberdade dos outros; só posso tomar a minha liberdade
como um fim, se tomo igualmente a dos outros como um fim. (SARTRE.
1978. p. 19)

Com efeito, o filósofo retoma o imperativo categórico da moral Kantiana,


onde um homem "[...] age somente, segundo uma máxima tal, que possas querer
ao mesmo tempo que se torne lei universal." (KANT. Ediouro. sd.70-1.79) diz ele
que sempre direcionamos nossos objetivos para o bem, e nada pode ser bom para
nós sem que seja para todos. Porém, Sartre alerta que a liberdade não depende
somente do outro, segundo Reali e Antiseri: “A minha liberdade, porém, não
depende somente da liberdade dos outros. Ela também é condicionada por
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 27

situações precisas, com as quais os projetos fundamentais dos homens têm que
se defrontar.”(2005. p. 611) Este é o embate do homem com o mundo e sua
liberdade está condicionada também a ele. É a maneira dele dizer que sua
liberdade depende exclusivamente dele, do homem, e não de Deus.

Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem


está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio;
e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável
por tudo quanto fizer. (SARTRE. 1978. p. 09)

Livre dos desígnios de Deus, Sartre, em sua produção literária e teatral,


aplica seu princípio de liberdade, faz isso pelo processo de negação, para ele a
negação e o imaginário só são possíveis se a consciência estiver livre:

A maneira que o escritor encontra de se sentir essencial às coisas é


imaginando, é negando esse mundo real e criando, a partir desse
mundo, um irreal. Mas para que ele possa criar, negar, separar-se desse
mundo e superá-lo, é preciso que ele seja livre. A liberdade do escritor é,
portanto, condição primária para que a literatura seja possível. (SOUZA.
2003. p.142)

Essa consciência livre é necessária para que o autor crie uma nova
realidade na obra de arte, porém essa nova realidade, ao contrário segue os
desígnios do próprio autor, segundo Sartre, se o céu ou a árvore se harmonizam,
isso só ocorre por acaso, mas na obra as mesmas só vão se harmonizar se assim
for o desejo do autor. Essa questão da liberdade implica em um conflito para o
homem que o coloca diante do processo de escolha.

4.3 – Escolha e Responsabilidade.

Essa forma de liberdade obriga o homem estar sempre diante de uma


escolha. Ele terá sempre de escolher para si ou para os outros e mesmo não
escolhendo entre nenhuma delas, ainda assim será uma escolha. É uma condição
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 28

humana indissociável. É pelo processo de escolha que o homem se faz. Nela está
a ligação da humanidade inteira. Essa ligação também é conflito, pois quando um
indivíduo faz suas escolhas com o intuito de construir seu projeto pessoal, terá de
transformar todo o mundo para a realização desse seu projeto, isso coloca em
conflito com os projetos dos outros, que estão implicados também em suas
escolhas individuais, toda vez que seus projetos se sobreporem uns aos outros.

[...] o homem encontra-se numa situação organizada, em que ele próprio


está implicado, implica pela sua escolha a humanidade inteira, e não
pode evitar o escolher: ou ele permanece casto, ou se casa sem ter
filhos, ou então casa-se e tem filhos; de qualquer forma, faça o que fizer,
é impossível que ele não assuma uma responsabilidade total em face
deste problema. (SARTRE. 1978. p. 17)

O como o homem vai se fazer em sua existência vai depender


exclusivamente de suas escolhas. “Assim sou responsável por mim e por todos, e
crio uma certa imagem do homem por mim escolhida; escolhendo-me, escolho o
homem.” (SARTRE. 1978. p.07) Isso também implica na questão da
responsabilidade. Para toda escolha feita há uma responsabilidade diante das
transformações ocorridas em função desta. Se escolher escrever algo, ir a algum
lugar, fazer alguma coisa, é preciso ter ciência de assumir a responsabilidade por
quaisquer conseqüências que possam desencadear de cada ação escolhida, pois
estas só acontecem em virtude das escolhas iniciais. Essa ação em cadeia:
escolha – ações – conseqüências – responsabilidade não tem como ser revertida,
pois as transformações, mesmo que corrigidas, já ocorreram e as coisas não mais
voltarão a ser como antes.

No existencialismo não há a possibilidade de colocar a responsabilidade em


forças externas como o acaso, destino ou nas mãos de Deus, quando o homem
escolhe, ele é responsável pela sua escolha não só para si mesmo, mas para
todos os homens. A liberdade, portanto, implica em profunda responsabilidade
para Sartre.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 29

4.4 – A Angústia.

A angústia é um tema caro à filosofia existencialista, pois desde de


Kierkegaard, passando por Heidegger e Sartre, ela torna-se recorrente no
processo de consciência do homem e sua existência. Para Sartre a angústia
reside no momento de escolha. Pois como ele afirma que quando o homem
escolhe a si, escolhe toda a humanidade e essa escolha implica nessa
responsabilidade, a mesma traz a angústia.

Não pode ele deixar de ter, na decisão que tomar, uma certa angústia.
Tal angústia todos os chefes a conhecem. Mas isso não os impede de
agir: pelo contrário, isso mesmo é a condição da sua ação. (SARTRE,
1978. p. 08)

É condição de sua existência conviver com a escolha e a angústia, mas a


segunda surge pela consciência de sua liberdade. É fácil quando a
responsabilidade vem de uma força maior e é angustiante saber que, na verdade,
ela vem de nossas próprias escolhas projetadas, porém imprevistas. O mundo é
assim, porque eu mesmo o fiz assim. Sendo assim, toda decisão que tomar será
um momento de angústia.

Sartre afirma que a angústia leva as pessoas agirem em “má-fé”, uma


espécie de defesa equivocada contra si mesmo, ou seja, má-fé é aceitar o que os
outros impõe ao indivíduo, anulando o que ele mesmo havia projetado para sí.
Quando a pessoa projeta ser algo específico em sua vida, mas todos os outros a
convence de que ele não pode ser o que deseja e ela acredita, essa atitude se
configura má-fé segundo Sartre. Portanto, quando o homem não age em má-fé
está sujeito à angústia. Essa passagem da má-fé para a angústia constitui a
liberdade do indivíduo para ser o que determinar ser.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 30

4.5 – O Homem.

Conhecendo melhor os conceitos de liberdade, escolha e responsabilidade


e o sentimento de angústia que essas relações proporcionam ao indivíduo,
podemos entender como Sartre pensava o homem. Pela sua condição de
liberdade, pela sua possibilidade de escolha para poder ser o que determinar, o
filósofo coloca o homem em total autonomia, ou seja, o mundo será: o que ele
fizer dele, sua existência será: o que ele determinar para sí. A vida e seu mundo é
o próprio homem:

O que queremos dizer é que um homem nada mais é que uma série de
empreendimentos, que ele é a sua soma, a organização, o conjunto das
relações que constituem estes empreendimentos. (SARTRE, 1978. p.
14)

Assim sendo, Sartre apresenta o homem como um projeto, uma unidade


formada por todas as suas escolhas e ações feitas durante toda sua existência.
Ele coloca o peso de sua constituições em suas ações, segundo ele, um covarde
não é um covarde porque nasceu assim, ou porque têm coração, pulmões, braços
ou pernas covardes, mas sobretudo, é um covarde por ter cometido ações
covardes. Essas ações decorrem das escolhas feitas, portanto o indivíduo se
projetou como um covarde, neste caso, agindo em má-fé consigo mesmo. O
homem nada mais é que sua vida. É nesse sentido que Sartre afirma que a
existência precede a essência.

4.6 – A Existência Precede a Essência.

Pode-se exemplificar esse conceito de forma simples, pelo ponto de vista


sartreano. Ele mesmo cita o exemplo de um objeto fabricado, como um corta
papel: Um artífice, vai fabricar tal objeto, tendo em mente o conceito de um corta
papel, e segundo sua técnica e suas ferramentas, ela começa a criar o objeto de
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 31

acordo com a sua funcionalidade. Como uma receita, que pode ser reproduzida, o
corta papel é criado com uma função essencial “pré-existente”: cortar papel. Neste
caso a essência do objeto “cortar papel” precede sua existência.

Para o homem, esse conceito não se aplica, segundo Sartre, pois para ele
o homem não foi “fabricado” de acordo com sua função “pré-existente”, segundo
ele o homem primeiro existe para só depois cumprir a função para a qual ele
mesmo determinou a cumpri-la.

Se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede


a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer
conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade
humana. Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a
essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre,
surge no mundo; e que só depois se define. (SARTRE. 1978. p. 06)

Com isto o filósofo novamente deixa claro que o homem “se faz” durante
sua existência, diferente do corta papel, ele é lançado no mundo sem definição, o
que vai defini-lo como ser é seu próprio projeto de ser no mundo.

4.7 – Teatro de Situações (analogon).

Situação é um termo que Sartre resgata de Karl Jaspers em seu conceito


de “ser-em-situação”, onde o homem está colocado, de forma empírica, em
situações limites numa condição impossível de ser ignorada, e diante dessas
situações o homem precisa fazer suas escolhas. Nas palavras do filósofo: “O que
chamamos ‘situação’ é precisamente o conjunto das próprias condições materiais
e psicanalíticas que numa época dada, definem precisamente um
conjunto.”(SARTRE. 1978. p.31) Isto quer dizer que para ele, situação é um
conjunto de determinações causais universais que se revelam em um dado
momento.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 32

O teatro é uma forma de apresentação e questionamento do ser humano.


Na medida em que é “imitação”, apresenta em cena situações causais e
possibilidades de escolha, em certo sentido, o teatro é uma possibilidade de
homem, mesmo que irreal, mas totalmente possível onde o universal atua sobre o
singular.

A cena teatral é a condensação imaginária da realidade, como um


quadro vivo que nos permite compreender a dimensão universal da ação
na singularidade da situação. O que nos toca na dramaturgia é que a
criação é a composição de uma situação. Se não houvesse esse
reconhecimento, se o dramaturgo fosse um criador de realidades (um
taumaturgo) talvez o teatro fosse uma ocasião de espanto, mas não de
reconhecimento. Isso não significa que a situação nos devolva a vida
real; ela exibe a relação entre o particular e o real ao situar a
universalidade. (SILVA. 2003. p.14)

Retomando Aristóteles, quando o poeta (dramaturgo) cria sua fábula,


elabora o problema (conflito), seu nó dramático, e coloca o personagem agindo,
está compondo uma situação em que o homem precisa efetuar escolhas para
construir seu projeto de ser. Mesmo que seja para superar a angústia no momento
da escolha e se definir de acordo com sua determinação, como para aceitar o que
lhe é imposto pelo mundo e, portanto, agir em má-fé. Ambas são possibilidades
para o homem diante da situação. O teatro se constitui pela interrogação do
dramaturgo em relação ao homem. Segundo Franklin Leopoldo e Silva no livro
Drama da Existência:

O Teatro é, ainda mais radicalmente, a exibição dessa interrogação,


porque é a representação dramática de condutas que se sabem
ignorantes de si mesmas, de seres humanos que se procuram através
de sucessivas perdas, já que a condenação à liberdade, que pesa sobre
o homem, é também a impossibilidade da certeza sobre si. (SILVA.
2003. p. 12)

Talvez essa seja uma das características principais do teatro, sobretudo do


teatro de situação, a condenação à liberdade proposta por Sartre e a
impossibilidade da certeza sobre si, constituindo a angústia do homem na cena
teatral. Por esse motivo a tarefa do dramaturgo é compor uma situação limite onde
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 33

melhor apresente suas preocupações e indicar ao público opções de escolha.


Essa escolha, previamente determinada pelo autor, vai reafirmar, ou não, a
condição de liberdade do homem, da forma como propõe Sartre.

O teatro de situações proposto pelo filósofo tem a função de mostrar que o


seu pensamento de que o homem se define pelas opções que faz em sua vida é a
mesma, tanto no mundo real quanto no plano da ficção. A vida é uma sucessão de
situações impostas, a todo o momento, em que fazemos escolhas e nos definimos
como pessoas. Nesse sentido o teatro de situações se aproxima da condição do
homem, mesmo que seja como arte de imitação irreal do real. Para Sartre essa
concepção irreal que é o teatro, ele chama de “analogon” que se constitui de uma
imagem mental concebida com parâmetros no real. Nesse “analogon”, o escritor
pode criar até mesmo, conceitos novos ou “re-significar” aspectos existenciais de
nosso cotidiano, “re-direcionando” nosso olhar em torno deles.

O ato fundamental constitutivo da imagem é um ato negativo, isto é, é


pela negação do objeto real que se constitui a imagem, de tal forma que
o objeto imaginado está fora do alcance da realidade, o real é mantido à
distância do objeto imaginado. A imagem assim tomada se apresenta
com uma existência irreal, de tal forma que “para que uma consciência
possa formar imagens é preciso que tenha a possibilidade de colocar
uma tese de irrealidade.” (ALVES. 2003. p. 96)

Esse ato negativo se dá porque o artista nega a realidade no ato de criação


e cria um universo análogo que se constitui como um universo imaginante. Porém,
tanto artista como público, atingem o objeto estético, ou seja, quando um pintor
imprime uma paisagem em uma tela, ela não existe senão por analogia, a tela
simplesmente é tecido, moldura, tintas coloridas inseridas na tela em tons e
espaços determinados pelo artista, não é a paisagem em si, mas um analogon
criado pela consciência imaginante do artista e pela objetivação da idéia, que
atinge seu objeto estético (paisagem) pela sua liberdade de criação e a liberdade
de contemplação de quem observa, que através, também, do “analogon” atinge o
objeto estético (paisagem). O teatro nada mais é que um “analogon” irreal do real
da vida humana.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 34

5. APRESENTANDO “ENTRE QUATRO PAREDES”.

Escrita em 1944, a peça Entre Quatro Paredes foi concebida para a


interpretação de duas amigas de Sartre: Olga Barbezat e Marie Olivier, que então
iniciavam suas carreiras no palco. Com o título inicial de “Os Outros” (Lês Autres),
a idéia de escrever um drama, ambientado num só cenário com poucas
personagens sempre seduzira Sartre. Ele imaginara uma situação a portas
fechadas e a primeira que lhe ocorreu foi a de três indivíduos encerrados em um
porão, durante um bombardeio prolongado. Depois refletindo, optou por uma
situação extrema: encerraria-os na eternidade.

Estreou no mesmo ano no Teatro Vieux-Colombier da Comédie-Française


em París, sob a direção de cena de Raymond Rouleau. No Brasil a primeira
encenação foi em São Paulo em 1950, pelo Teatro Brasileiro de Comédia, sob a
direção de Adolfo Celi, tendo no elenco ninguém menos que Cacilda Becker
(Inês), Sérgio Cardoso (Garcin), Carlos Vergueiro (Criado) e Nydia Licia (Estelle),
produzido por Franco Zampari. O espetáculo causou grande repercussão de
público tanto em Paris, como em São Paulo e continua a até hoje sendo encenada
com forte apelo contemporâneo. Confirmando a qualidade universal sobre uma
situação singular que a obra possui.

A peça inicia com a chegada de Garcin, um jornalista e literato, que é


conduzido por um criado até um salão decorado com estilo do Segundo Império.
Poucos móveis, somente três canapés (sofás), uma lareira e uma estátua de
bronze compõem o ambiente. Não há janelas e apenas uma porta que dá num
corredor por onde Garcin entrou. Nesse momento Garcin toma conhecimento das
regras do lugar, ninguém pode sair a luz não se apaga, não há lugar para dormir.
O personagem chega ao salão com a consciência de que está no inferno e se
surpreende por não encontrar foles, tridentes e tudo mais que imaginava encontrar
no inferno, porém, no diálogo com o criado ele percebe que não há interrupção de
espécie alguma: as luzes não se apagam, não há noite, não há descanso de
espécie alguma. Sente falta da escova de dentes e de espelhos. Percebe tudo
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 35

isso por sentir a falta da suas pálpebras. Não há a interrupção, nem num piscar de
olhos, e cai em si de que o inferno é a eternidade sem interrupção.

Em seguida Inês é conduzida ao mesmo salão junto de Garcin. Trabalhava


numa agência dos correios. Ela chega ao salão consciente de seus crimes. Sabe
por que está ali e acha que Garcin é seu carrasco. Ela diz a ele que “têm os olhos
amedrontados dos que torturam”, chega relembrando de sua companheira
Florence e também sente falta dos espelhos. Podia ver no espelho a crueldade
que a distinguia dos outros. Agressiva o tempo todo com Garcin, que propõe um
relacionamento mais formal e polido para possibilitar a convivência.

O embate entre os dois muda no momento em que o criado traz a terceira


“cliente” como ele mesmo chama: Estelle. Esta, mais do que os outros, também
sentem falta do espelho. Sua preocupação inicial é com a aparência. Recusa-se a
sentar-se em seu canapé, por não combinar com a cor de seu vestido, propõe
uma troca com Garcin e cobre o mesmo com o casaco antes de sentar-se. Logo
que entra há um interesse de Inês para com ela. Que aumenta na medida em que
os três vão se conhecendo, porém, Estelle sente a necessidade de se sentir
desejada por um homem e procura se satisfazer na figura de Garcin. Ele, por outro
lado, não á atraído por nenhuma das duas e aí se instala o primeiro conflito de
convivência entre os três.

Esse conflito de interesse vai amarrando os conflitos pessoais de cada um.


Garcin se remete ao escritório, onde trabalhava, com receio do que os amigos na
redação estão dizendo dele depois de sua morte, fuzilado com doze tiros como
preso político, segundo ele, que no decorrer da peça se revela uma morte bem
menos nobre. Inês que se remete a seu quarto vazio onde vivia com Florence,
esposa de seu primo. Depois que ele morreu num acidente, Florence ligou o gás e
matou as duas, restando somente o quarto. Estelle tem seu tormento no suicídio
de seu amante que atirou no próprio rosto depois que ela matou o bebê que teria
com ele, para ocultar do marido. Sua ligação com o mundo é seu marido. Assim a
relação de todos esses conflitos apresenta uma profunda semelhança entre os
três. Garcin descobre nesse processo que os três estão condenados à eternidade.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 36

6. ANALISANDO A OBRA.

Os elementos que compõe a obra Entre Quatro Paredes, favorecem a


filosofia existencial de Sartre não por acaso. Essa foi a forma que o filósofo
encontrou para apresentar sua reflexão sobre questões como: liberdade, escolha
e responsabilidade para o grande público e o fez sem reduzir o processo filosófico
a um simples instrumento de linguagem artística, nem colocar a dramaturgia como
mera exposição de sua filosofia.

Em um escritor comprometido com os destinos humanos como foi Jean-


Paul Sartre, o teatro acabou se revelando uma possibilidade de interferir
de forma mais ampla no tempo presente. Depois de ter passado pelos
ensaios filosóficos e pelo romance, ele concentra seu esforço criativo,
em um instante-chave da afirmação de sua obra e biografia, em peças
que rapidamente se tornaram referências da moderna literatura
ocidental. (SANCHES NETO. 2006. p.09)

O filósofo acreditou que no teatro encontraria um veículo universal para


propor as questões da filosofia existencial. Aplicando a estrutura dramatúrgica e
seu entendimento filosófico existencial do ser humano numa peça de teatro. Como
foi bem observado pelo escritor Miguel Sanches Neto (na apresentação do texto)
sua intenção, enquanto filósofo e dramaturgo, já aparece no subtítulo: Peça em
ato único.

Aqui está um dado estrutural importante. O ato único permite que Sartre
transmita ao espectador a idéia de uma temporalidade contínua. Não
pode haver interrupção porque os personagens estão sob o signo da
ausência da noite, do intervalo e do descanso. (2006. p.10)

Com efeito, o dramaturgo imprime a idéia de eternidade, apresentando em


um único ato, breve, porém intenso e constante. O mesmo efeito não se daria em
uma peça de estrutura clássica de primeiro, segundo e terceiro ato. Mas essa
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 37

divisão estrutural, da qual se referia Aristóteles na poética, está presente da


mesma forma.

6.1 – A Estrutura Aristotélica da peça.

Entre Quatro Paredes está dividida em três momentos estruturais


aristotélicos que são: apresentação – que vai da abertura do pano, no início da
peça até, o fim da cena I. Nessa apresentação têm-se todas as informações sobre
o universo em que vai ser dar a estória e suas regras. O criado explica para
Garcin como funciona o local e o público é imenso no inferno proposto por Sartre.
O fato da ininterrupção é constado por Garcin por meio de uma metáfora: a falta
das suas pálpebras.

GARCIN – [...] A gente abria e fechava; isso se chamava piscar. Um


pequeno clarão negro, um pano que cai e se levanta, e aí está a
interrupção. O olho fica úmido, o mundo desaparece. Você nem imagina
o alívio. Quatro mil repousos em uma hora. Quatro mil pequenas fugas.
[...] Sem pálpebras, sem sono, é tudo a mesma coisa. Nunca mais vou
dormir... [...] do lado de lá, havia as noites. Eu dormia. [...] É de dia?
(SARTRE. 2005. p.34-35)

Garcin chega a essa conclusão de que “é um castigo? Por que isto é


necessariamente um castigo? Já sei: é a vida sem interrupção.” (SARTRE. 2005.
p.34), com isso está revelada a situação proposta pelo autor na apresentação. A
disposição dos móveis, a falta de janelas e de espelhos vai obrigar os condenados
a não se distrair com o mundo externo e nem se fechar em si mesmos, terão
obrigatoriamente que se relacionar com os outros.

Na cena II, Inês é conduzida pelo criado para junto da Garcin. Tem início o
Desenvolvimento da estrutura aristotélica. Já conhecendo o contexto e o universo,
podemos agora nos concentrar exclusivamente nas personagens. É a partir na
cena II que os conflitos de cada um começam a ser expostos e desenvolvidos,
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 38

porque inicia-se o relacionamento de Garcin com Inês, pois não estão mais
sozinhos, estão na presença do outro. Quando a dupla tenta um “pacto” de
convivência mais educada, respeitando suas individualidades:

GARCIN – Em entendo que a minha presença a aborrece. E, da minha


parte, preferiria ficar sozinho: tenho que botar minha vida em ordem e
preciso de sossego. Mas tenho certeza de que a gente pode se acertar:
eu não falo nada, não me movo e faço pouco barulho. Apenas, se me
permite uma sugestão, a gente podia manter uma extrema polidez um
com o outro. Será a nossa melhor defesa.
INÊS – Eu não sou pessoa polida.
GARCIN – Eu vou ser por nós dois. (SARTRE. 2005. p.43)

É quando entra a personagem de Estelle para quebrar este pacto e


conduzir os três ao “inferno” das relações. Até a cena V ocorre o embate dos
conflitos individuais no coletivo. O interesse amoroso de Inês por Estelle, o
interesse superficial de Estelle por Garcin e a preocupação deste em construir
uma imagem de herói.

A terceira parte da estrutura: o desfecho é iniciado por uma peripécia


aristotélica. No auge do embate entre os três Garcin bate desesperadamente na
porta que alguém abra para que ele possa sair dali. De repente a porta é aberta, e
todos se mantém em suspense. É o que todos queriam, principalmente Garcin,
mas, numa viravolta, característica da peripécia, Garcin volta atrás e diz que não
vai sair. Esse momento ocorre quando os três personagens já não possuem mais
nenhuma ligação com o mundo exterior e aceitam sua condição. Ao contrário da
estrutura do drama aristotélico, na peça de Sartre não há o fim da história, mas a
continuidade eterna dela.

6.2 – Metáforas Existenciais.

Sartre trabalha algumas metáforas essenciais para a elaboração do


discurso proposto pela peça. Como já foi citado anteriormente a primeira delas é a
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 39

falta das pálpebras, como fuga, interrupção e descanso da realidade. O salão


estilo Segundo Império é a própria metáfora da aparência convencional e falsa
onde os objetos funcionais, como lareira e estofados de veludo, perdem o sentido
num lugar tão quente. Outra metáfora recorrente são os espelhos. Além de ser
recorrente em todo o desenvolvimento do texto ressalta a necessidade que os
personagens têm em se ver no espelho para reafirmar sua existência. A falta do
espelho é sentida por todos na peça:

[...] os espelhos são substituídos pelo olhar sempre crítico do outro, por
sua presença constante e impiedosa, não podendo haver maneira de se
afastar dele, pois o inferno é o espaço pequeno de uma cela de prisão.
(SANCHES NETO. 2006. p.15)

Nessa cela de prisão a referência para a existência é o outro e aí surge a


idéia intrínseca da relação com o outro no pensamento de Sartre: “O outro é
indispensável à minha existência, tal como, aliás, ao conhecimento que eu tenho
de mim.” (SARTRE, 1978. p.16). Uma passagem emblemática desse pensamento
é no momento em que Inês se oferece para ser o espelho para Estelle:

INÊS – [...] Senta aqui. Chega mais perto. Mais um pouco. Olha dentro
dos meus olhos: você consegue se ver?
ESTELLE – Estou tão pequenininha. Não consigo me ver direito.
INÊS – Eu estou te vendo. Por inteiro. [sic] Me pergunta o que você
quiser. Nenhum espelho var ser mais fiel que eu. (SARTRE. 2005. p.68)

Uma outra metáfora importante, estrutural até, é o número três. O


personagem do Criado apenas cumpre uma função específica na peça. Garcin,
Inês e Estelle, formam o triângulo conflituoso das relações. Como se pôde ver
anteriormente no número dois há uma possibilidade de chegar a uma certa
harmonia, o par por excelência, mas o terceiro destrói essa possibilidade. Garcin
quase entra em acordo com Inês sobre manter uma relação polida, já que um
rejeita o outro, porém, Estelle impossibilita isso nas diferentes relações que ela
mantém com um e com outro. Essa instabilidade fica clara numa fala de Inês:
“cada um de nós é o carrasco dos outros dois.” (SARTRE. 2005. p.63). O fato de
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 40

Inês deixar claro sua opção sexual torna mais difícil a relação entre os três. “Com
uma sexualidade fora de normas, Inês é o tertius, ponta elevada do triângulo, que
perturba a horizontalidade dos outros dois lados por sua força transformadora.”
(SANCHES NETO. 2006. p.17)

A metáfora emblemática da peça é quando Garcin chega a conclusão de


que na situação em que se encontram eles estão “nus feito minhocas” (SARTRE.
2006. p.76). O fato de três pessoas, aparentemente desconhecidas, estarem nus é
constrangedor, mas Sartre coloca a expressão: “nus feito minhocas”, pois a
minhoca é desprovida de qualquer proteção exterior, sua pele além de fina é
transparente expondo todos os órgãos internos, portanto não se pode estar mais
nu que uma minhoca, é a exposição total do ser humano perante o outro. Na peça
não há alternativas, o entendimento com o outro é essencial.

6.3 – O Amor e o Ódio.

Segundo Sartre, o amor e o ódio são formas de tomar posse do outro.


Mesmo sendo sentimentos fundamentais para a relação humana, os dois
sentimentos estão fadados ao fracasso.

O amor e o ódio representam os dois tipos de relação fundamental com


os outros. E ambos estão destinados ao insucesso. O homem é uma
paixão, mas paixão inútil. E “cada um de nós é carnífice para os outros.”
(SARTRE apud REALE e ANTISERI. 2005. p.610)

Amar para ele significa um projeto de “fazer-se amar”, uma espécie de


vingança de quem quer nos fazer de objeto amado, quem ama, para Sartre,
pretende aprisionar a vontade alheia, aprisionar o ser amado como um objeto que
se tem nas mãos. Esse pensamento fica claro no trecho em que Inês diz a Garcin
sobre o que sente por Estelle:
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 41

INÊS – [...] Vou arder, me queimar; sei que isto nunca vai tem fim. Sei de
tudo: você acha que eu vou soltar a presa? Eu vou possuí-la, ela vai te
ver com os meus olhos, como Florence via o outro. [...] realmente estou
presa em uma armadilha. (SARTRE. 2006. p.93)

Assim é também na relação com ódio pelo outro, o mesmo aprisiona a


pessoa nas mãos de quem é odiado. A relação de amor de Inês para com Estelle,
e o ódio, da segunda pela primeira, fazem com que uma possua a outra
inteiramente e o mesmo acontece com Inês e Garcin, os dois são possuidores e
possuídos pela relação ódio. De certa forma os três estão aprisionados entre si.

6.4 – A Relação Com o Outro.

A experiência da existência em Sartre se dá na relação com o outro, como


citado anteriormente. Isto quer dizer que o homem só terá uma possibilidade de
completude enquanto existência através da relação com outras pessoas. O
homem que viver totalmente isolado, sem esse contato, tende a se sentir
incompleto. Porém, na convivência com o outro o conflito existencial se instaura.
Esse paradoxo leva a uma situação de atração e repulsa nas relações.

CARCIN – (LEVANTANDO BRUSCAMENTE A CABEÇA) Você disse


bem: nem uma única palavra. Fiquei tentando tapar os ouvidos, mas
mesmo assim vocês me torraram a cabeça. E agora, vocês vão me
esquecer? Eu não tenho nada a ver com vocês!
INÊS – E a garota, você não tem nada a ver com ela? Eu entendi a sua
cena: fica com essa empáfia toda só pra chamar a atenção dela.
GARCIN – [...] Se isto te tranqüiliza, saiba que estou me lixando pra ela.
ESTELLE – Muito obrigada.
GARCIN – Eu não quis ser indelicado... (SARTRE. 2006. p.73)

O homem se vê cercado de exigências feita pelos outros, ao mesmo tempo


em que procura existir para si mesmo, precisa existir para o outro para poder se
reconhecer no olhar alheio e esse reconhecimento dá a dimensão de ser
incompleto, precisa do outro para ser completo, porém enxerga n outro sua
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 42

incompletude. Somente na convivência com os outros o homem tem a


possibilidade de saber se está conseguindo realizar seu projeto, ou que ele
determinou para si. Dessa idéia Sartre cunhou a frase que tornou seu pensamento
conhecido no mundo todo:

GARCIN – [...] Todos os olhares me devoram... (ELE VIRA DE


REPENTE) E vocês, são apenas duas? Ah, eu pensava que vocês
seriam muito mais numerosas. (RI) Então, é isto o inferno. Eu não
poderia acreditar... Vocês se lembram: enxofre, fornalhas, grelhas... Ah!
Que piada. Não precisa de nada disso: O inferno [sic] são os outros.
(SARTRE. 2006. P. 125)

Retomando o conceito aristotélico de “unidade de ação”, ou “nó” dramático


a própria relação dos três personagens confirma a estrutura do nó. Garcin, Inês e
Estelle mantêm a unidade de ação da peça em suas relações um com o outro,
como indicava Aristóteles, tudo que eles dizem, ou como agem, está ligado
diretamente às suas relações, mas o nó não é desfeito, seus conflitos internos são
revelados, todos passam a ter consciência do que escolheram ser e em que
condição vão continuar, mas estarão eternamente ligados pelo nós das relações
entre si. Esse conceito também surge emblematicamente em uma das cenas
finais:

GARCIN – Inês, eles embolaram todos os fios. O menor gesto seu, se


você levanta a mão para se abanar, tanto eu como a Estelle sentimos a
vibração. Nenhum de nós pode se salvar sozinho; ou nos perdemos de
uma vez juntos, ou nos salvamos juntos. Decida. (PAUSA) [...]
(SARTRE. 2005. p. 90)

Esse é o único ponto visível em que Sartre quebra a estrutura Aristotélica,


pois nela, depois de ter sido desvelado e desatado o nó, a peça caminha para seu
desfecho, para sua resolução, porém em Sartre, na peça Entre Quatro Paredes,
isso não pode acontecer porque a estrutura exige que os personagens
permaneçam condenados à eternidade. Esta peça não pode caminhar para um
desfecho, pois este não existe para eles. Mas, estruturalmente sim, a peça possui
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 43

um desfecho quando os três caem em si que estarão ligados para sempre e a


peça termina com Garcin concluindo: “Pois bem, continuemos.” (SARTRE. 2006.
p.127)

6.5 – Escolha e a Angústia nos Personagens.

No decorrer da peça os personagens vão se aproximando da consciência


das escolhas que fizeram em sua vida. Talvez a personagem mais lúcida nesse
sentido seja Inês, quando ela entre em cena já pergunta a Garcin se ele é seu
carrasco, pois tem plena ciência de sua trajetória. Inicialmente Garcin chega
convencido de que morreu num pelotão de fuzilamento perfurado por doze tiros.
Uma morte digna para um herói, para um jornalista engajado na resistência
política. Porém, as escolhas que fez em vida, em relação à sua esposa e até
mesmo seu trabalho, deixam-no inquieto diante da estátua de bronze porque ele
sabe que o que pesa para ele foi a escolha em fugir para outra cidade e morrer no
esquecimento.

GARCIN – (SEGURANDO-A PELOS OMBROS) Ouça, cada um tem seu


objetivo na vida, não tem? Eu não estava nem aí pro dinheiro, pro amor.
Eu queria ser um homem. Um durão. Apostei tudo num só cavalo. Será
que é possível ser um covarde, se a gente escolheu os caminhos mais
perigosos? Será que se pode julgar uma vida inteira por um único ato?
[...] Eu não sonhei com este heroísmo. Eu o escolhi. A gente é o que a
gente quer ser.
INÊS – Então, prova! Prova que aquilo não era um sonho. Somente os
atos decidem a respeito do que a gente quis. (SARTRE. 2006. p.121)

O que Inês responde a Garcin é o próprio pensamento de Sartre em relação


ao peso de nossas escolhas. A angústia vem da constatação de que o que somos
é fruto de nossas ações como resultado de nossas escolhas. Toda escolha implica
em responsabilidade perante o outro. Estelle também sofre a angústia de ter
escolhido ser superficial e de se deixar aprisionada pelo amor dos homens.
Também carrega o peso de sua liberdade. Ao escolher se manter na condição de
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 44

amante e não passar para a condição de mãe, quando mata seu bebê afogado,
perde o amante e depois da morte perde o marido. No seu inferno, é amada por
Inês e sente a indiferença amorosa de Garcin. Inês, por sua vez, escolheu possuir
aqueles que lhe interessavam como Florence, possui como forma perversa de
poder sobre o outro, no entanto, quando chega ao salão estilo Segundo Império,
não consegue possuir o que deseja: o amor de Estelle. Ela que possuía seu ser
amado passa a ser possuída pelo ódio de Estelle. Os três personagens vivem a
angústia pela liberdade de terem feito suas escolhas, muitas vezes em situação de
má-fé, onde se deixaram levar pelos desejos dos outros. Porém agora não podem
mais superar essa angústia e se projetar no que gostariam de ser. A eles isso não
será mais permitido. Passarão toda a eternidade nessa angústia. A própria Inês,
em certo momento, reconhece isso:

INÊS – A santinha está condenada, o herói sem mácula está


condenado. A gente já teve a nossa hora de prazer, não é mesmo? Um
monte de gente sofreu por nossa causa até a morte, e isto nos divertia à
beça. Agora, é preciso pagar. (SARTRE. 2005. P. 62)

É dessa forma que os personagens vivem a angústia da liberdade de que


dispuseram em vida, conscientes e condenados ás responsabilidades de seus
projetos anteriores, das escolhas que fizeram. Estelle no início da peça pede para
que Garcin não os chame de mortos e sim de: os ausentes. Essa ausência reflete
a impossibilidade de retomar a vida num novo projeto, de superar a angústia da
liberdade.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 45

7. SARTRE FILÓSOFO E SUA DRAMATURGIA

Depois dessa breve análise sobre os pontos principais da filosofia de Sartre


e sua dramaturgia, percebe-se que ele utiliza a palavra de uma maneira para
concretizar seu conceito de ser humano e de mundo criando um analogon, por
meio da arte dramatúrgica, para atingir seu objeto estético (o homem).

O prosador e o dramaturgo se utilizam da palavra como significado, a


palavra deve nomear o mundo, deve remeter a um objeto que está além
dela, e nomeando o mundo a palavra deve desvendar esse mundo. [...]
Ao falar, desvenda-se uma situação para mudá-la. Assim, o prosador e o
dramaturgo, nesse uso do analogon verbal, tomam como função
desvendar o mundo, e com isso fazem com que ninguém possa ignorar
o mundo considerando-se inocente diante dele. (ALVES. 2003. p.102-
103)

A maneira de Sartre pensar o homem, completamente só, sem desculpas e


condenado a ser livre, surge como um analogon dessa realidade na peça. Os três
personagens não possuem mais nada do mundo anterior para se agarrarem, a
realização disso está no momento em que cada um dos três vai perdendo o pouco
que resta de contato com o mundo exterior: Garcin não consegue mais ver o
pessoal do escritório, Estelle deixa de ver o marido, quando este segue a vida em
frente e Inês também perde o contato com seu quarto vazio onde passou seus
últimos momentos com Florence. Sartre faz com que seus personagens fiquem
absolutamente sós e sem desculpas, onde se reconhecem responsáveis pelo que
são, ou escolheram ser.

Porém, como responder a questão inicial proposta por esse estudo? Como
se dá a transformação da filosofia de Sartre em arte teatral? Com o estudo de
parte importante de sua filosofia e análise sistemática da peça Entre Quatro
Paredes, podemos agora apontar alguns caminhos por onde se dá essa
transformação da linguagem da filosofia em teatro.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 46

O mundo objetivo é interiorizado para que a subjetividade possa se


exprimir objetivamente; e a subjetividade se exterioriza para que o
mundo objetivo se constitua de atos de agentes históricos. [...] A
situação é a expressão universal do singular, e a maneira que o teatro
tem de realizar a união entre exibição dramática do singular e o
conhecimento do universal que ela deve proporcionar. (SILVA. 2003.
p.14-15)

Assim, a filosofia conduz à investigação do mundo objetivo conceitua de


forma rigorosa a natureza e o homem na relação com ela e metafisicamente
investiga a relação do homem com o ser. O resultado dessa investigação
possibilita um olhar específico, ou uma possibilidade, com o rigor que a filosofia
exige, sobre o ser humano. Quando Silva afirma que “o mundo objetivo é
interiorizado para que a subjetividade possa se exprimir objetivamente” está se
referindo à filosofia propriamente dita. Porém, quando diz que “a subjetividade se
exterioriza para que o mundo objetivo se constitua de atos de agentes históricos”
está falando de teatro, de dramaturgia. Portanto, a filosofia exprime o mundo
objetivamente e o teatro transforma esse mundo universal objetivo, em agentes de
atos históricos (personagens agindo em cena, numa dada situação limite), ou seja,
o teatro, no pensamento de Sartre, é o analogon do mundo real como resultado do
mundo objetivo alcançado por sua filosofia. Para alcançar esse objetivo o
dramaturgo se utiliza da situação.

A situação é a expressão universal do singular, e a maneira que o teatro


tem de realizar a união entre exibição dramática do singular e o
conhecimento do universal que ela deve proporcionar. (SILVA. 2003.
p.15)

A linguagem teatral, Sartre sabia muito bem disso, vai além da filosofia no
que se refere à aplicação de conceitos universais em ações humanas. A filosofia
chega até o ponto de conceber a idéia, formular uma hipótese de ser humano e
sua condição, mas o teatro, como forma de imitação humana baseada em
conceitos universais, tem a possibilidade de realizar a idéia numa dada situação
histórica com personagens agindo, ou seja, o teatro pode realizar o conceito
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 47

universal elaborado pela filosofia e saber se haverá identificação, ou não, do


público com as idéias do filósofo.

[...] a filosofia fornece uma elucidação fenomenológica (ou dialético-


histórica) da ordem humana, enquanto o teatro e a literatura fornecem
uma descrição e compreensão da experiência da vivência humana
dessa ordem. (ALVES. 2003. p.95)

Sartre escolheu a expressão teatral, a dramaturgia, para colocar em prática


sua elucidação fenomenológica do ser humano na relação com os outros e
consigo mesmo. Qual seria a melhor linguagem artística para refletir sobre
relações humanas existenciais, senão o teatro. Na literatura a relação do leitor
com o outro se dá pela imaginação, no teatro se dá pela relação direta, se
constitui numa re-presentação das relações no aqui e agora.

Uma vez que o homem é livre em determinadas situações, ele realiza


suas escolhas dentro dessas situações, o que o teatro pode mostrar de
mais verdadeiro é o momento de escolha, de livre decisão, de tal forma
que falar em teatro de situações é o mesmo que falar em teatro da
liberdade. (ALVES. 2003. p. 109)

Fundamentalmente o teatro esboça um projeto de homem, um personagem,


numa dada situação limite, precisa se relacionar com outros personagens (mesmo
num monólogo) e fazer escolhas para resolver, ou não, seu problema. Diante das
escolhas que o personagem optar, vai determinar suas ações e
conseqüentemente suas responsabilidades diante delas. Esse é o projeto de
homem proporcionado pela dramaturgia, muito próximo da filosofia existencialista
de Sartre. O que mais lhe agradava no teatro é que ele podia deixar suas frases
em aberto para outras interpretações, fato que não ocorre na filosofia. Com isso
sua dramaturgia e sua filosofia, puderam ir muito mais longe e alcançar muito mais
pessoas do que o circulo fechado dos meios acadêmicos.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 48

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da filosofia existencialista em Sartre e o teatro como forma de


imitação humana, constitui em vasto material sobre as possibilidades de
conhecimento do ser humano. Sartre alçou vôos muito mais altos ao empregar
sua filosofia na literatura e no teatro, não foi a primeira vez e nem será a última
que um filósofo se aventure em outras linguagens de expressão, mas Sartre tem o
mérito de conciliar, de forma fundamental, seu pensamento filosófico em suas
peças teatrais e em sua literatura. Poucos conseguiram isso.

A peça Entre Quatro Paredes constitui um capítulo importante no estudo da


filosofia sartreana. Desde a estrutura dramatúrgica, o universo criado, as
personagens em suas relações, tudo está diretamente ligado à sua filosofia. A
peça reflete a concepção de homem e de mundo de Sartre. Sua filosofia serviu
para se distanciar objetivamente do homem, refletir sobre sua condição e sua
dramaturgia serviu para trazer o resultado de sua filosofia de volta à situação
humana. Com isso o filósofo, apesar de parecer pessimista, em colocar o homem
como único responsável sobre sua vida e a de todos os outros, na verdade
mostra-se um filósofo otimista, pois acaba colocando, também nas mãos do
homem, a possibilidade de mudança. A possibilidade de se projetar um homem
bom, mais justo e que tenha a liberdade de escolher o bem para si, pensando
também no bem para os outros.

O presente estudo não teve, em nenhum momento, a pretensão de tratar


de todos os temas filosóficos existenciais propostos por Sartre e muito menos pelo
existencialismo, mas apenas aqueles que parecem ter relevância e uma relação
mais íntima com seu teatro e sua dramaturgia. A conclusão que se chega é que a
peça Entre Quatro Paredes nos conduz diretamente ao pensamento existencialista
em Sartre e grande parte de sua filosofia está diretamente expressa na peça
teatral.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 49

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Vol. 12. Tradução de Conceição


Jardim, Eduardo Lúcio e Nuno Valadas. ed. 4°. Importado pela Editorial Presença.
Lisboa. 2001. pág. 134.

ALVES, Igor Silva; JACOBELIS, Paola Gentile. O Drama da Existência – Estudos


sobre o pensamento de Sartre. 2. ed. São Paulo. Editora Humanitas FFLCH/USP.
2003. pág. 165.

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antônio Pinto de


Carvalho. 16. ed. São Paulo. Ediouro Publicações. 2003

_____________. A Poética. Col. Os Pensadores. ed. 1° - Editora Nova Cultural.


São Paulo.1996. pág. 320.

BENTLEY, Eric. A Experiência Viva do Teatro. 2. ed. Rio de Janeiro. Zahar


Editores. 1981.

_____________. O Dramaturgo Como Pensador – Um Estudo da Dramaturgia nos


Tempos Modernos. 2. ed. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira. 1991. pág.
446.

CARDOSO, Maria Abadia. Filosofia e Dramaturgia: A Construção de uma


Realidade Humana em Mortos Sem Sepultura (Jean-Paul Sartre-1945) Revista
Fênix de História e Estudos Culturais. Minas Gerais. Ano II. Março de 2005.

COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. ed. 15°. Editora Saraiva. São Paulo.
2005. pág. 336.

KANT. Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Rio de Janeiro.


Ediouro, sd. pág. 79.

REALE, Giovanni.; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Vol. 03. ed. 7°. Editora
Paulus. São Paulo. 2005. pág. 1113.
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 50

SARTRE, Jean-Paul. Entre Quatro Paredes. 2. ed. Rio de Janeiro. Editora


Civilização Brasileira. 2006. pág. 126.

_______________. O Diabo e o Bom Deus. 1. ed. São Paulo. Editora Círculo do


Livro S/A. 1982. pág. 285.

_______________. Vida e Obra. Col. Os Pensadores. 1. ed. São Paulo. Editora


Abril Cultural. 1978. pág.191.

E – REFERÊNCIAS:

COBRA, Rubens Q. Vida, época, filosofia e obras de Martin Heidegger


Disponível em Homepage:<http://www.cobra.pages.nom.br/fc-heidegger.html>
Acesso dia 13/09/2007.

____________. Vida, época, filosofia e obras de Sören Kierkegaard. Disponível


Homepage:<http://www.cobra.pages.nom.br/fcp-kierkegaard.html> Acesso dia
15/09/2007.

____________. Vida, época, filosofia e obras de Martin Heidegger Disponível


em Homepage:<http://www.cobra.pages.nom.br/fcp-husserl.html> Acesso dia
16/09/2007.

COLTRO, Alex. Artigo em pdf: Fenomenologia – Um Enfoque Metodológico Para


Além da Modernidade. Disponível em: <http://www.ead.fea.usp.br/cad-
pesq/arquivos/C11-ART05.pdf> Acesso dia 08/09/2007.

HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? Versão eletrônica do livro em pdf.


Tradução de Ernildo Stein. Créditos da digitalização: Membros do grupo de
Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em Filosofia – Alex Moletta 51

discussão Acrópolis (Filosofia) Homepage: http://br.egroups.com/group/acropolis/


Acesso dia 15/09/2007.

SARTRE, Jean-Paul. Vida e Obra. Site de enciclopédia livre. Disponível em


Homepage:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Sartre> Acesso dia 12/09/2007.

SILVA, Cléia G. Artigo sobre Sartre: A Consciência em Busca da Liberdade.


Disponível em:<http://www.mundodosfilosofos.com.br/clea2.htm> Acesso dia
12/09/2007.

Você também pode gostar