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A TRANSFORMAÇÃO DA FILOSOFIA E A LIBERTAÇÃO

Celso Luiz Ludwig*

RESUMO: Este texto pretende mostrar alguns passos do processo de fundamentação da ética
do discurso nos argumentos de Karl-Otto Apel. A começar pela mudança de paradigma
filosófico no contexto do giro lingüístico, para continuar no caminho da transformação da
filosofia, desde as exigências da possibilidade e da necessidade de um novo conceito de
fundamentação, agora pragmático transcendental; para depois, chegar à formulação de uma
fundamentação ética com pretensão de universalidade, no específico contexto da era da
ciência e da técnica. Por fim, apresentar, diante das exigências relativas aos problemas morais
concretos, o ponto de vista da ética do discurso e parte da polêmica travada no diálogo com
a ética da libertação de Enrique Dussel, assinalando em especial o lugar do dissenso na
responsabilidade ética.

1 A MUDANÇA DE PARADIGMA: O decisivamente que o que estava em jogo, não


GIRO LINGÜÍSTICO era mera mudança de ênfase quanto ao objeto
da reflexão filosófica. Não se tratava de maior
Apel e a transformação da filosofia.
e especial atenção à linguagem, de parte dos
A mudança paradigmática (Kuhn) da
filósofos. O que estava em jogo era a própria
Filosofia da Consciência para a Razão
transformação da filosofia. Assim sendo, a
Comunicativa teve em Karl-Otto Apel e em
moderna pergunta kantiana, pelas condições
Jürgen Habermas sua formulação mais
de possibilidade e validade do conhecimento,
precisa. O esgotamento do paradigma da
terá de ser compreendida e respondida em
consciência, próprio da subjetividade, levou
novo parâmetro, desde a linguagem, ou
ao giro lingüístico. K.-O. Apel percebeu
tendo em conta o paradigma da pragmática
transcendental.
O giro lingüístico pode ser situado no
* Doutor em Filosofia do Direito; professor contexto da chamada mudança paradigmática,
adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de
conceito recepcionado pela filosofia para
Pós-Graduação em Direito da UFPR.

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classificar sua própria história. O novo A filosofia da linguagem, hoje em dia, pode
assumir – ou até mesmo: tem de assumir – a
paradigma da linguagem se consolida na
função da filosofia transcendental em sentido
segunda metade do século XX. Seu kantiano? Ou seja, ela pode (ou tem que) assumir
desdobramento indica a existência, hoje, de hoje a função de uma prima philosophia?
uma tipologia mais complexa, e que poderia Talvez se possa chegar sem dificuldades – entre
os conhecedores da literatura filosófica – ao
ser classificada da maneira seguinte: (1.o)
consenso de que em nosso século a ocupação
como razão comunicativa (Apel/Habermas); do filósofo com a própria consciência, algo
(2.º) como razão sistêmica (Luhmann) e, característico para a Era Moderna, deu lugar,
por fim, (3.o) como razão hermenêutica mais recentemente, à ocupação do filósofo com
a linguagem. E isso parece significar que a
(Gadamer). O que interessa aqui diz respeito
filosofia da linguagem veio ocupar o lugar da
aos fundamentos lançados por Apel, epistemologia tradicional – a filosofia da
ainda que tenha que se levar em conta os linguagem não como tematização do objeto
linguagem entre outros tantos objetos possíveis
desdobramentos conceituais elaborados
da cognição, mas sim como reflexão sobre as
por Habermas.1 condições lingüísticas da cognição.
Nos limites dessa demarcação, é
A passagem sugerida pelo filósofo indica
importante frisar que esse giro da filosofia
o caminho que vai da critica cognitiva como
não significa a inclusão da linguagem na
análise da consciência à crítica cognitiva
condição de mais um tema relevante para a
como análise da linguagem. Essa mudança é
reflexão filosófica. Trata-se de um giro da
decisiva para a filosofia, pois significa um
própria filosofia, uma virada no modo de se
movimento que vai da consciência para a
entender a filosofia. Nesse novo paradigma,
linguagem, modificando o procedimento
a linguagem passa da condição de objeto da
filosófico em relação à validação da verdade,
reflexão para a condição de fundamento de
que de monológico passa a ter uma exigência
todo pensar. Filosofar significa filosofar a
dialógica discursiva:
partir da linguagem, e esta na condição de
O cerne dessa reviravolta que vai da crítica
médium irrecusável e inultrapassável do
cognitiva enquanto análise consciencial à crítica
sentido e validade de todo saber. A reflexão cognitiva enquanto análise lingüística parece
sobre a relação contemporânea entre filosofia residir no fato de que o problema da própria
e linguagem fica assim formulada, validação da verdade não pode mais ser visto
nas palavras de Karl-Otto Apel (2000b, como um problema da evidência ou da certeza
(“certitudo”) para uma consciência isolada em
p.353-354):
sentido cartesiano, nem tampouco como um
problema de validação objetiva (e portanto
intersubjetiva) para uma ‘consciência em geral’
1 Habermas também fazia referência expressa em sentido kantiano, mas sim, em primeiro lugar
ao esgotamento do velho paradigma da filosofia como um problema da formação intersubjetiva
da consciência:
de consensos com base em um acordo
“O paradigma da filosofia da consciência
mútuo lingüístico (argumentativo). (APEL,
encontra-se esgotado. Sendo assim os sintomas de
esgotamento devem dissolver-se na transição para o 2000b, p.354)
paradigma da compreensão.” HABERMAS, Jürgen.
Pelo menos dois são os efeitos dessa
O discurso filosófico da modernidade. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1990, p.277. situação. O primeiro diz respeito à ruptura

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que ocorre entre a Modernidade filosófica e última surge a necessidade de uma filosofia
a filosofia da segunda metade do século XX: pós-metafísica. A aparente paradoxalidade
passagem da certeza da cognição e da será encarada pelo filósofo a partir da
cognição como certeza para a cognição seguinte tese:
como consenso argumentativo. O segundo Justamente por causa da fundamentação última
efeito indica que há uma continuidade e que necessitamos de uma filosofia pós-metafísica;
consiste na reflexão sobre as condições de pois nisto precisamente consiste, segundo
penso, a falta capital da metafísica – falta que
possibilidade e validade do conhecimento:
ela partilha com o pensamento mítico: que ela
a consciência antes, a linguagem agora. somente é capaz de sugerir sempre apenas uma
A relação contemporânea entre filosofia fundamentação última de caráter dogmático –
e linguagem se desenha nesse jogo dialético, em sua estrutura, aproximadamente algo como
a doutrina de Deus como causa sui ou também
entre a ruptura e a continuidade, entre o
como o mito hindu que narra que o mundo é
paradigma da consciência e o paradigma sustentado por um elefante e este, por sua vez,
da linguagem, que, na verticalidade, coloca por uma tartaruga, interrompendo-se então a
a questão kantiana das condições de narrativa. (APEL, 1993, p.306)
possibilidade e validade do sentido, agora Apel afirma na linha popperiana que a
sob novo fundamento. metafísica racionalista, ao pretender uma
fundamentação última, cai inevitavelmente
2 DA POSSIBILIDADE E DA no trilema münchausiano de fundamentação
NECESSIDADE DE NOVO última, formulada por Hans Albert. Isso ocorre
FUNDAMENTO porque ela leva a um regresso ao infinito;
ou leva ao chamado círculo lógico; ou então
A reflexão agora tem em vista a
o procedimento de fundamentação terá que
possibilidade e a necessidade de nova
interromper dogmaticamente o regresso
fundamentação. Os passos do novo caminho, fundacional (nesse caso se proclama como
inicialmente indicados por Apel, remetem a evidente a razão última, como no clássico
argumentos que procuram responder ao exemplo em que aparece Deus como causa sui).
desafiador tema da possibilidade de uma A opinião filosófica hoje dominante é a
fundamentação última não-metafísica, no de que o pensamento da fundamentação
contexto da filosofia atual. Primeiro, cabe última deve ser abandonado, juntamente com
perguntar se é possível uma fundamentação, o conceito tradicional de metafísica. Isso é
nessa época de perplexidade, de pluralismo assim porque a estrutura da fundamentação
e de fragmentação? Ou dito de outra maneira, de uma metafísica tradicional, não permite
em tempos de afirmação do multiculturalismo nenhum tipo de fundamentação última. Os
e da pluralidade das tradições, faz sentido popperianos, com base nessa impossibilidade
investigar a necessidade e a possibilidade mencionada, abandonam a idéia de
de uma fundamentação última e pós- fundamentação última.
metafísica – questão que se apresenta desde Não é o caso de Apel. Ele sustenta a tese
logo na condição de um paradoxo: da possibilidade de uma fundamentação.
justamente por se tratar de fundamentação Porém, incorpora a crítica à concepção

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tradicional da metafísica ontológica. Ao 3 A FUNDAMENTAÇÃO ÚLTIMA
fazê-lo, no entanto, não abandona a idéia da NÃO-METAFISICA: A PRAGMÁTICA
fundamentação última. Ao contrário, conclui TRANSCENDENTAL
pela possibilidade e necessidade de uma
3.1. A pretensão de verdade. Na
filosofia pós-metafísica de fundamentação
preocupação com a fundamentação última,
última. No entanto, a possibilidade de
Apel parte da premissa de que faz sentido
fundamentação requer uma nova filosofia,
a exigência de que todos reconheçam a
pois pressupõe uma fundamentação que não
existência de algo como pretensão de
seja nem a da ciência empírica nem a da
verdade. Essa seria uma exigência inafastável
metafísica ontológica tradicional.
no campo da comunicação. Quem argumenta
Apel procura mostrar a necessidade,2 e
reconhece que no mínimo compreendamos
até mesmo urgência, de uma fundamentação
o que significa pretensão de verdade.
filosófica específica em nosso tempo,
É necessário reconhecer que existe algo
reconhecendo que tal tarefa seria possível
assim como verdade de proposições à
tanto na filosofia teórica – na teoria do
diferença da falsidade. Se assim é, então
conhecimento e na teoria da ciência, por
devemos reconhecer que há proposições que
exemplo – quanto na filosofia prática.
podem ser submetidas a um procedimento
Entende, porém, que isso pode ser mostrado
de justificação argumentativa com pretensão
de modo mais convincente na ética, portanto,
de verdade, ainda que sem pretensão de
na filosofia prática. Ilustra a questão com um
evidência. A discussão sobre as proposições
exemplo – situação problema –, formulado
pressupõe que elas possam ser “examinadas
nos seguintes termos:
e ser demonstradas como intersubjetivamente
Que faria um jovem que, na assim chamada
válidas (capazes de consenso) ou falsas,
crise da adolescência, chegou ao ponto de
problematizar, por exemplo, como Nietzsche utilizando certos critérios”. (APEL, 1993,
todas as tradições morais convencionais e que p.312)
nesta situação levanta a questão: “Por que em
absoluto terei que agir moralmente?” com uma
3.2. As regras do discurso. Nisso está
resposta que não fornece uma fundamentação
última, mas que de antemão se relativiza como implicado o reconhecimento da existência
condicionada ou passível de revisão? (APEL, de uma comunidade de discurso e de
1993, p.309) argumentação, que dispõe de uma linguagem
pela qual formula seus problemas e soluções.
Está ainda pressuposto que os falantes
2 Há em Apel, como também em Habermas e devem levar em conta determinadas regras
em Dussel, entre muitos outros, a preocupação
metodológica em testar os argumentos ante a
de argumentação, inscritas na própria
existência dos céticos, motivo que o leva a considerar linguagem, como é o caso da aceitação de
alguns pensamentos nessa linha, como é o caso dos que todos os participantes do discurso são
defensores do princípio do falibilismo sem limites,
que não apenas consideram uma fundamentação iguais e que o discurso livre como tal não
filosófica última de princípios de conhecimento pode sofrer a ameaça de violência aberta ou
impossível, mas também desnecessária. (APEL,
oculta. Essas regras – inscritas na linguagem –
1993, p.310)

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passam a ser condições normativas da não podem ser contestadas, sob pena de
possibilidade da discussão acerca das autocontradição performativa.
proposições com pretensão de verdade. Assim, Apel propõe o princípio da
Em resumo, as duas regras inscritas na autocontradição performativa como critério
própria linguagem, chamadas de regras teste que distingue o específico método da
do discurso, são estas: (1. o ) todos os fundamentação filosófica última dos demais
participantes do discurso em princípio são métodos de fundamentação já apontados.
iguais (e, portanto, não devem ser excluídos
quaisquer argumentos); e (2.o) a obrigação 3.4. A racionalidade pragmática.
de argumentar sem violência (aberta ou A afirmação do princípio discursivo da razão
oculta – como, por exemplo, ofertas de exige que se reconheça, tanto na ciência
negociação e (ou) ameaças).3 crítica, como para além dela, numa ética do
discurso, a presença das normas do discurso
3.3 A autocontradição performativa. argumentativo. A relevância prática da
A questão da possibilidade de um método fundamentação última não-metafísica
não-metafísico da fundamentação última, permite, dessa maneira, definir a forma da
segundo Apel, não pode ser posta nos racionalidade discursivo-argumentativa,
termos em que é formulada no trilema de claramente distinta da racionalidade do
pensar instrumental e estratégico.
Münchhausen (por Hans Albert). Pois o
É nessa condição que Apel afirma a
conceito de fundamentação que é pressuposto
necessidade de compreender a mudança
na (1.o) metafísica tradicional ontológica,
paradigmática da filosofia – no sentido
na (2. o) moderna ciência da lógica e da
da existência de três diferentes paradigmas,
matemática e no (3.o) trilema de Münchhausen,
da metafísica ontológica, da filosofia
é um conceito que se define como “dedução
transcendental da consciência e da
de um algo de outro algo”. Ora, este conceito
pragmática lingüística –, mudança a
de fundamentação não pode ser subsumido
ser compreendida como suprassunção
pela fundamentação agora postulada.
(aufhebung – de Hegel) para, por fim,
O método formulado por Apel (1993, p.317)
conceber a fundamentação por ele proposta
se distingue na medida em que se define
como necessária, diante das duas opções
como “recurso reflexivo sobre as condições
seguidas pela filosofia atual, em
de validade da argumentação”, e, assim, a
conseqüência da viragem lingüística
fundamentação não cai na derivação de algo
(linguistic turn):
de alguma coisa diferente e também não
1.o) A primeira opção parece abandonar
retrocede ao infinito. A fundamentação requer
o princípio da filosofia transcendental
apenas a certificação das pressuposições que
universalista. Isto, por diversos motivos,
cabendo destacar: aqueles que atrelam todo
o pensar a jogos contingentes de linguagem
3 Isso implicaria dizer que a compreensão do

próprio princípio do falibilismo pressupõe as regras


e particulares modos de vida socioculturais;
do discurso como condição de sua possibilidade. outros – neopragmatistas americanos – que

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vêem na destranscendentalização a pragmatismo. Com a tese que defende,
definitiva superação da metafísica. Apel pretende exercitar a crítica aos autores
2.o) A segunda opção, proposta por Apel relativistas, ainda que assimilando e
(1993, p. 322) que procura reconhecer na incorporando as críticas relativistas, com a
reflexão “pretensões universais de validade saída de cena da metafísica como critério de
que fazem parte do argumentar e ao mesmo verdade. Afirma que não podemos nos render
tempo são condições “irretrocedíveis” diante das críticas relativista que afirmam
(nichthintergehbaren), e nesta medida, com razão os condicionamentos históricos,
não-contingentes do conhecimento válido políticos, econômicos e sociais de tudo,
do contingente”. inclusive no significado das palavras, dos
São essas as condições pragmático- jogos lingüísticos e nas formas de vida. Isso
transcendentais da racionalidade discursiva é uma coisa. Outra, é afirmar a política e a
ou da razão comunicativa. Toda e qualquer história como critério de verdade, o que
tentativa de contestar esse núcleo a implicaria reconhecer a vitória da opinião
priori da condição argumentativa conduz (no sentido da doxa) sobre a episteme.
necessariamente à autocontradição Estaríamos, segundo Apel, diante da morte
performativa. Dessa maneira, as condições do pensamento. O critério estabelecido pela
do discurso parecem mais fundamentais do filosofia apeliana permite abandonar o
ponto de vista filosófico transcendental do solipsismo cognitivo e epistemológico da
que as categorias a priori da consciência no teoria moderna, equivocadamente definido
conhecimento de objetos. como eu penso solitário e fonte de uma
Tendo em conta a transformação da racionalidade fundante de todo saber (este
filosofia, no caminho que vai da metafísica principalmente visto como ciência). Propõe,
ontológica que remonta até Descarte e Kant, nosso filósofo, a substituição do eu penso
da filosofia como consciência transcendental pelo eu argumento; a passagem do eu para a
do sujeito até ingressar no século XX no comunidade; o abandono do pensar o
paradigma da linguagem, esta deve servir de pensado para pensar o consensualizado.
base para a fundamentação da filosofia Isso que acontece na dimensão cognitiva
teórica e da ética. E se a filosofia, na passagem e epistemológica, com maior evidência se
do primeiro para o segundo paradigma, dá no plano moral, pois esta em sua
radicalizou a investigação sobre as condições determinação central não se ocupa da
de possibilidade do conhecimento, do realidade individual e solitária do homem.
segundo para o terceiro, tal radicalização Ao contrário, a moral em sua essência trata
encontrou na linguagem as condições da relação social intersubjetiva. E, portanto,
transcendentais de possibilidade de todo a razão não é apenas estratégica, ela
o resto. está concretamente presente na linguagem,
A possibilidade e a necessidade de uma pelo que comunicativa. Nela existem
fundamentação última não-metafísica têm o condições de possibilidade universais que
sentido prático de estabelecer uma instância – sustentam toda e qualquer argumentação
critérios – para confrontar o relativismo, o séria e possível, sob pena da contradição

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performativa. Pois, para que haja comunicação posições que reduzem tudo à contingência
a presença do outro é inafastável, seja na da temporalidade do dasein como horizonte,
condição de falante, seja na condição do ou das posições que têm na pragmática
reconhecimento de que eu falo e do que da linguagem seu limite, ou, por fim, das
eu falo. Sem esse mínimo originário a posições que têm no fundo contingencial,
comunicação não é possível. E nesse provisório e precário da historicidade, o
mínimo originário já está dado um campo critério da referência última. A verdade é
democrático e de respeito à argumentação, logos, antes (logicamente) de ser desvelamento
condição sem a qual a possibilidade da (aletheia). E ainda que seja problemático
comunicação inexiste. Essa condição reverte sustentar a teoria do consenso ante a
o binômio cognitivo típico das modernas diversidade de opiniões e sentidos na
teorias solipsistas, apontando para um novo complexidade de cada coisa e de cada
tipo de binômio: é a passagem do binômio situação, não há outra solução, pensa Apel.
sujeito-objeto para o binômio sujeito- Resta argumentar, pois entende que a
sujeito. Portanto, estamos diante de uma proposta de Jean-Francois Lyotard, na
validade epistemológica intersubjetiva, a condição pós-moderna, ao optar pelo dissenso
confrontar a versão moderna da validade como modo de produção do novo – “a
objetiva, ingenuamente neutra, como quer a invenção se faz sempre no dissentimento” –,
concepção positivista de uma certa ciência. deve ser refutada porque absurda: contradição
Fora desse cenário, sem esse campo performativa, pois quem recomenda o
democrático de respeito (o reconhecimento dissenso, argumenta; e quem argumenta,
do outro como igual e ausência de toda forma busca o consenso sobre a argumentação
de violência – regras da linguagem), a em jogo.
possibilidade da comunicação desaparece.
No entanto, admitidas as condições desse 4 O CONSENSO E O DISSENSO
mínimo originário, é a argumentação o
critério que serve de modelo transcendental A discordância, no entanto, não é só de
para a fundamentação de uma ética no pós-modernos ou de desconstrutivistas.
mundo atual – a ética da discussão, ética do Ainda que se trate de discordâncias distintas,
discurso –, que é um mundo pós-metafísico, a questão ganha em complexidade na visão
marcado pela determinação de uma que tem disso a condição transmoderna,
gigantesca e complexa rede de relações em particular na versão da filosofia de
tecnológicas, comerciais impessoais, porém Enrique Dussel.
também na frágil e irredutível teia da vida 4.1. A parte de fundamentação A e a parte
intersubjetiva. de fundamentação B da ética do discurso.
Apel, com sua reflexão sobre as condições Creio que o tema se define em Apel mais ou
pragmático transcendentais da linguagem, menos de maneira como segue. O consenso
abre fogo contra toda condição dos prévio situa-se na ordem da pragmática
relativismos paralisantes, principalmente transcendental e se determina pela inevitável
neopragmáticos, sempre que está diante das concordância em relação às regras da

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linguagem que devem ser aceitas por todos, procedimento, porque é o que contém as
sob pena de autocontradição performativa. condições de orientação para possíveis
Trata-se de concordância prévia no nível da revisões de normas. Esse é o princípio
pragmática transcendental (Nível A). Essa normativo permanente que serve de idéia
teoria da verdade obtida pelo consenso tem regulativa dos discurso práticos que pretendem
como ponto de partida a idéia regulativa do fundamentar normas. De outro lado, a parte
consenso ideal, contra-fático. O consenso B indica a exigência na ética do discurso de
concebido em condições ideais não será uma fundamentação vinculada a relações
atingido plenamente nas situações concretas, contingente, que lhe dão o sentido de uma
nas situações de fato. Nesse aspecto está a ética de responsabilidade histórica. Essa
segunda parte da teoria da verdade obtida vinculação com a história, leva a ética do
pelo consenso e que diz respeito aos discurso a enfrentar a questão dos consensos
consensos da vida real, consensos de fato, nos discursos reais. Em tais discursos, além
esses sim, precários, provisórios e criticáveis. da ênfase no princípio de universalização,
Portanto, o consenso prévio – ideal – serve deve-se incorporar o saber das ciências
como critério, como idéia regulativa, dos empíricas e o saber especializado. Nosso
consensos fáticos. Apel, porém, não descuida filósofo conclui o tema, assim:
da necessidade de outra parte da ética do Por la otra, se trata de reconstruir, con ayuda de
discurso, que é chamada por ele de parte las ciencias sociales e históricas empírico-
histórica (Nível B). Portanto, ele distingue reconstructivas (interno-hermenéuticas y
externo-explicativas), la situación histórica
entre um nível A e nível B na Ética do Discurso:
concreta a la que debe vincularse una aplicación
Partiré para ello de una división arquitectónica políticamente responsable, en el sentido más
que, en general, resulta también de la amplio, de la ética del discurso. Todo esto
transformación pragmático-trascendental siempre en el contexto de una forma de vida
de las presuposiciones metafísicas de la ética particular. Se trata, en consecuencia, de una
kantiana: distingo una parte abstracta A de la vinculación a instituciones (sobre todo las
fundamentación [Begründungstei] de del derecho) y, asimismo, de una posible
la ética do discurso de la parte histórica vinculación a hechos y circunstancias
[geschichtsbezogen] B de esa fundamentación. sociohistóricamente reconstruibles de la
Además, dentro de la parte A, haré una conciencia moral. (APEL, 1992, p.31)
distinción entre el plano de la fundamentación
última, pragmático-trascendental del Dessa maneira, a transição histórica de
princípio de fundamentación de normas uma moral kantiana para uma moral pós-
[Normenbegründung] y el plano de la convencional estaria na condição de uma
fundamentación de normas situacionales
ética do discurso cientificamente informada.
[situationsbezogen] en los discurso prácticos –
exigidos por principio. (APEL, 1992, p.22) Essa concepção indica, sem sombra de
dúvida, a preocupação em estabelecer uma
A partir das distinções sugeridas por Apel,
mediação entre o princípio universalista da
percebe-se nitidamente a preocupação que
ética do discurso e a situação concreta de
ele tem com os consensos concretos. Por
uma comunidade de comunicação real. No
isso, o único consenso que conserva sua
entanto, a mediação sugerida não enfrenta a
validade incondicional é o do princípio do
questão com a densidade necessária – não

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encaminha as soluções exigidas – pelo kantiano ao princípio de universalização
problema que sempre surge nesse caso, ante habermasiano –. Isso, no entanto, tem o
uma ética abstrata de princípios. A limitação sentido de uma analogia entre o imperativo
da solução sugerida para a mediação, que categórico kantiano e o principio U ético-
distingue entre uma parte de fundamentação discurso, e, nessa condição, se presta
A e uma parte de fundamentação B, é adequadamente à fundamentação da parte
reconhecida pelo próprio Apel (1992, p.32). A da ética do discurso. E somente isso.
Ao mesmo tempo em que admite que sua Não tem o principio U o sentido de uma
explicação é incompleta, insiste que o tema responsabilidade histórica da ética do
que deve ser enfrentado com urgência é o discurso quanto à sua aplicação (APEL, 1992,
que diz respeito à responsabilidade histórica p.40). Portanto, segundo a consideração feita
da ética e à problemática questão de sua por Apel, a sugestão contida no princípio
própria aplicação. anunciado, qual seja, a da responsabilidade
A solução sugerida por Jürgen pelas conseqüências da norma válida, ainda
Habermas é criticada por K.-O.Apel. Para que necessária e correta, arquitetonicamente
as questões morais, nos discursos de está situada na parte da fundamentação A
fundamentação moral, nos quais a referência da ética, sem dar resposta alguma para a
é a humanidade, Habermas formula o solução exigida na parte B, que diz respeito
princípio de universalização da ética do ao problema da aplicação da ética na
discurso (U), nestes termos: Toda norma dimensão à responsabilidade histórica.
válida deve satisfazer a condição de que as Uma formulação mais precisa da parte
conseqüências e os efeitos colaterais que de fundamentação B leva ao questionamento,
previsivelmente resultam de sua observação inclusive, da própria possibilidade e limites
geral para a satisfação dos interesses de de tal proposta. Na atual discussão sobre o
cada indivíduo devem poder ser aceitas sem tema, as objeções de neoaristotélicos e de
constrangimento por todos os afetados. neohegelianos às éticas universalista de
Não pretendo analisar aqui o princípio princípios e a própria ética do discurso são
moral de universalização proposto por recorrentes. A oposição tem como premissa
Habermas, mas apenas levar em conta a central a necessidade de partir de uma
reflexão de Apel sobre a saída sugerida moralidade ligada à tradição e de sua base
quanto ao problema da aplicação da ética consensual histórico-contingente. Ante tal
principiológica. Apel acha que o Princípio situação, Apel se pergunta se devemos aceitar
U não soluciona o problema da aplicação que a validade do principio ético do discurso
responsável, referida à historia, porque parte está limitada de maneira particular ao
de uma equivocada compreensão do próprio discurso argumentativo – portanto, não teria
problema. Segundo Apel, pode-se aceitar validade para a regulação consensual de
a adequada solução habermasiana da todos os conflitos de normas da comunicação
transformação ético-discursiva do princípio do mundo vital –, ou teríamos que supor que,
de universalização da ética kantiana – por exemplo, a idéia pós-iluminista dos
passagem do imperativo categórico direitos humanos – à margem da idéia de

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Kant acerca de uma “comunidade de direito Portanto, nesse caso, o mesmo princípio –
civil mundial” – estaria limitada também, de o princípio mesmo (o princípio geral) –
acordo com sua validade moral, à forma de da ética do discurso assume na parte
vida ocidental? de fundamentação B a condição de
A resposta de Apel à tese de uma princípio teleológico de complementação
moralidade ligada à tradição de base consensual (Ergänzungsprinzip) do princípio do
contingente, com os desdobramentos que daí discurso. Nesses termos, o problema da
decorrem, é negativa. A resposta da ética do aplicação de normas morais não fica entregue
discurso em sua parte de fundamentação B é à condição de uma ética puramente deôntica
outra, portanto. Em síntese, está assim – a que faz abstração da história –, nem fica
apresentada, desde duas condições: a 1.a entregue à força da moralidade conectada à
implica considerar que a aplicação do tradição e à sua base consensual histórico-
princípio da ética do discurso só é contingente. Pois, os conflitos de interesses
aproximativamente factível onde as relações devem ser resolvidos de maneira discursivo-
da moralidade e do direito locais tornam isso consensual, respeitadas as condições do
possível; e 2.o, como efeito, é necessário princípio próprio da ética do discurso. No
aceitar que as normas básicas de conteúdo entanto, se na comunidade de comunicação
relativas a uma ordem de justiça suscetíveis real as condições de aplicação coletiva da
de fundamentação filosófica não podem ética não estiverem dadas, aqueles que
derivar exclusivamente do princípio da ética atingiram no nível filosófico-discursivo a
do discurso e de sua aplicação num ideal idéia de validade universal do principio
discurso de fundamentação de normas. Esta ético do discurso, ficam obrigados a
segunda condição, consiste em aceitar que observar tanto o princípio deôntico como a
as referidas normas devem ser entendidas responsabilidade histórica. Isso implica o
sempre e simultaneamente como resultado reconhecimento de que se vai além do âmbito
de uma vinculação à tradição jurídica e das práticas consensuais comunitárias do
moral vigentes numa forma determinada momento presente ao buscar-se orientar as
de vida. situações concretas, suas soluções – mesmo
Apel mostra, com isso, que o princípio as emergenciais –, com o esgotamento
ético do discurso tem distintas funções. Ele exaustivo do princípio de universalização
conclui a questão dessa maneira: da ética do discurso. No exemplo de Apel,
Lo que sí se sigue es que, en la parte de isso significa que mesmo diante de uma
fundamentación B de la ética del discurso, el situação limite, o problema da aplicação,
principio ético del discurso mismo tiene una pode ser assim ilustrado:
función distinta a la que tiene en la parte de
fundamentación A: no puede suponerse ya Así, v.gr., no pueden renunciar a las mentiras,
como el fundamento de una norma básica, al engaño e incluso a la violencia en el caso de
proceduralmente aplicable, de una ética una confrontación con un criminal o con una
deóntica que simplesmente restringe las organización como la Gestapo, sino que deben
estimaciones valorativas y metas individuales tratar de actuar de una manera adecuada a la
humanas sin prejuiciarlas. (APEL, 1992, p.42) situación, de tal suerte que la máxima de su
acción pueda considerarse como una norma

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susceptible de consenso, si no en un discurso 4.2 A transformação da filosofia e a
real, sí en un fictivo discurso ideal de todos
filosofia da libertação
los afectados bienintencionados. (APEL,
1992, p.42)
Na parte acima (4.1.) segui muitos dos
A partir dessas condições, Apel argumenta argumentos de K.-O. Apel no texto
no sentido da necessidade da obrigação de apresentado no encontro de Friburgo,
colaboração para a eliminação da diferença Alemanha, em novembro de 1989, La ética
entre a comunidade de comunicação ideal e del discurso como ética de la responsabilidad:
comunidade de comunicação real. Pois, se Una transformación postmetafísica de la
efetivamente ocorre a diferença entre a ética de Kant”. Nesse encontro Dussel
situação historicamente condicionada da participou com o texto Transformación de
comunidade real e a situação ideal, na qual la fiilosofía de K.-O. Apel y la filosofía de la
estariam presentes as condições de aplicação liberación. Nesses textos, cada um dos
da ética do discurso, a eliminação de tal filósofos formula sua definição ética.
diferença a longo prazo se impõe pela Acompanhamos os passos de Apel. Dussel
própria condição geral exigida. E, na medida apresenta em seu texto, argumentos em
em que isso ocorre, o princípio da ética do constante polêmica com essas concepções
discurso assume sua nova função na parte apelianas. 4 Entre as diversas polêmicas
de fundamentação B da ética do discurso, na suscitadas, interessa aqui a que trata do ponto
atuação e avaliação das situações. de partida diferente das duas concepções
É nessa articulação, entre a fundamentação éticas em jogo: a crítica da dialética apeliana
principiológica deôntica e a responsabilidade entre a comunidade de comunicação ideal e
histórica, que se dá a superação da ética real é feita a partir da comunidade da
meramente formal. Porém, essa obrigação de produção, reprodução e desenvolvimento da
colaborar na produção, em longo prazo e de vida, ou seja, a pragmática transcendental é
modo aproximado, das condições de aplicação subsumida pela econômica.
da ética do discurso não está ligada ao Alguns dos principais argumentos de
anúncio de uma revolução mundial, nem Dussel, principalmente em torno dessa
tem conexão com o reino de liberdade a ser passagem, podem ser interpretados como
alcançado, não se refere a nenhuma utopia segue, creio.
social determinada, ou a um outro mundo O ponto de partida da ética dusseliana
possível. Não é disso que se trata. A situação anunciada neste ato comunicativo com
de uma comunidade de comunicação ideal Apel – diálogo entre um filósofo europeu e
(sempre antecipada contrafaticamente) um filósofo latino-americano –, é um diálogo
refere-se, exclusivamente, de uma parte, às argumentativo desde o Outro ausente desse
condições ideais de uma possível formação diálogo – “ausente porque não pode aqui e
de consenso sobre normas e, de outra parte,
permite a formação concreta de acordos
4 Inicialmente, seguirei os argumentos que
falíveis e provisórios por aqueles que em cada
Dussel apresentou no texto indicado. Depois, porém,
caso estão envolvidos.
incluo outros e novos conceitos da ética da libertação.

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agora argumentar”, ainda que condição de que domina as principais correntes filosóficas
possibilidade de todo o argumentar, assim do século XX.
que liberto de toda a dominação. É um Por sua vez, a ética da libertação é
diálogo entre os dois filósofos, em busca proposta no contexto da dependência, do
de consensos. subdesenvolvimento e da dominação
O contexto do dois é diferente, situação dos países periféricos latino-americanos
que deve ser levada em conta sempre. (também, africanos e asiáticos), uma
A ética do discurso é proposta no contexto originária situação injustiça. O ponto de
da ciência e da técnica – o último capítulo partida decorre de uma dupla convicção: de
da Transformação da Filosofia tem no título um lado a situação de dependência e de
a clara indicação da tese da obra – O a priori dominação, e de outro, a convicção da
da comunidade de comunicação e os necessidade da libertação dessa situação, e
fundamentos da ética – e no subtítulo, o tema criticamente, também, da necessidade de
contextualizado – sobre o problema de uma libertar-se das ideologias de dominação, que
fundamentação racional da ética na era da tem o sentido de uma libertação filosófica
ciência. Nesse texto, Apel anuncia o (também, no caso, de uma libertação ética)
paradoxo da situação atual inserido na e de uma filosofia da libertação (e de uma
relação entre ciência e ética: a carência ética da libertação).
de uma ética universal (macroética da Por isso, onde Apel advoga por uma
humanidade) na sociedade moderna transformação da filosofia que tenha em
globalizada, isto é, de um lado a expansão conta a responsabilidade da “comunidade
global da ciência e da técnica modernas e as filosófica de comunicação” pela realização
questões morais de alcance mundial, geradas das condições exigidas, quando não dadas,
nessa situação; de outro lado, como a ciência no princípio geral da ética do discurso, Dussel
trata de fatos – livre de valores –, segue que sugere desde logo a necessidade da conexão
de proposições descritivas não se podem crítica entre a teoria filosófica e a práxis
deduzir proposições prescritivas – de fatos social. Isso significa, perguntar desde logo,
não derivam normas –, logo, não é possível com Gramsci, pela possibilidade material de
haver fundamentação científica de uma ética a comunidade de filósofos poder aparecer
normativa; e, se apenas pela ciência se como comunidade filosófica hegemônica?
obtém um saber objetivo, e se a objetividade Não é isso que parece estar acontecendo
é idêntica à validação intersubjetiva, na periferia mundial, levando Dussel a
então, uma fundamentação de validação concluir que:
intersubjetiva é tida como simplesmente En este caso, la “transformación” de la filosofía
impossível. (APEL, 2000, 427/428). Dessa debería en su proyecto incluir, también (y no
maneira, depois da religião, agora é a ética exclusivamente), la “liberación” de la filosofía
(genitivo objetivo), como ejercicio racional que
que migra para o campo da subjetividade
debe saber pensar “otras realidades”, distintas
particular. Portanto, Apel desenvolve seus a la “realidad” de la “comunidad filosófica
argumentos na linha um projeto de hegemónica”, europea por ejemplo, sin dominar
macroética, no contexto de ceticismo moral a las otras “comunidades filosóficas”.

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De esta manera “transformación” es do discurso e a ética da alteridade. O ponto
“subsunción (Subsumtion [Aufhebung])”
de partida, ainda que apenas como esboço,
de las reducciones del pasado y “liberación” de
dominaciones inadvertidas, pero no por ello faz referência ao outro silenciado e
menos “reales” (y que “sufrimos” en la excluído e que está além da comunidade de
“periferia” mundial, en América Latina, comunicação. Sem diminuir em nada a
África o Ásia, “comunidades filosóficas de
importância da comunidade de comunicação
comunicación”, que deben pensar su propria
realid “distinta”, no meramente “diferente”, de Apel para a filosofia e para os tempos
y no simplemente “repetir” la filosofía del atuais, a proposta é vista como insuficiente
centro). (DUSSEL, 1992, p.58-59) para a filosofia latino-americana. Pois, a
Enfim, a libertação da situação de comunidade concreta de argumentação
dependência e de dominação implica a apresenta sempre não participantes que são
libertação da própria filosofia: libertação ou serão, porém afetados. Ou seja, na
do sujeito que produz filosofia e libertação comunidade real há sempre excluídos,
do discurso produzido, o que significa a ainda que vítimas não intencionais. Apel
libertação do etnocentrismo filosófico reconhece isso, porém como efeito do
europeu. Essa libertação do eurocentrismo próprio argumentar. Portanto, trata-se do
filosófico é importante condição quanto à outro que a posteriori sofre os efeitos de um
consenso do qual não foi parte. Trata-se, nesse
possibilidade de um pensar desde a afirmação
caso, de conseqüência da argumentação. Não
da racionalidade negada. Portanto, o
é, no entanto, o caso de um a priori da própria
processo de libertação da filosofia está no
argumentação. À filosofia da libertação
reconhecimento da racionalidade discursiva
interessa essa situação: o outro como
de outras comunidades filosóficas, desde
condição a priori de possibilidade de toda
realidades distintas, situadas para além da
a argumentação, e portanto, de todo novo
realidade das comunidades filosóficas
argumento. Trata-se do excluído, antes de
hegemônicas.
ser afetado. Isso implica levar em conta as
Esse saber pensar outras realidades
condições materiais de possibilidade de
pode iniciar pela comunidade de vida e a
participar – deve-se levar em conta o
interpelação do outro excluído. E se Apel
poder efetivamente participar –. A não-
situa em alto grau de abstração o nível A
comunicação – a incomunicabilidade (o não-
da pragmática transcendental, Dussel
ser) é o ponto de partida. Na periferia do
subsumindo tal fundamentação, situa esse
mundo latino-americano esse não é um tema
nível na econômica transcendental, para
apenas teórico, mas uma experiência fática
enfrentar ao mesmo tempo os problemas
que dura mais de meio milênio.
mais concretos –, embora admitindo a Esse outro ao qual nos referimos está
necessidade de conceber a reflexão filosófica sempre pressuposto na comunidade de
como um movimento que vai do abstrato ao comunicação, mas também sempre excluído
mais concreto. na comunidade real e que não argumenta
É nesse caminho que se estabelecem as efetivamente quando da produção dos
distinções especificas das duas éticas – a ética consensos – fato que ocorre também nas

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estruturas do capitalismo periférico – é o permite enunciar um princípio material
explorado, o dominado, o pobre ou é a vítima universal, da seguinte forma:
não intencional do sistema. O que Dussel “Aquele que atua eticamente deve (como
aqui pretende é mostrar a necessidade de obrigação) produzir, reproduzir e desenvolver
articular o momento formal (da pragmática) auto-responsavelmente a vida concreta de
com o momento material (da econômica), e cada sujeito humano, numa comunidade de
que este nível material é condição da vida, a partir de uma “vida boa” cultural e
pragmática. Pois o aspecto relativo ao histórica (seu modo de conceber a felicidade,
conteúdo de uma proposta ética tem também com uma certa referência aos valores e a uma
universalidade, ainda que tenhamos que maneira fundamental de compreender o ser
caracterizá-la como uma universalidade como dever-ser, por isso também com
própria. E mais, esse nível determina sempre pretensão de retidão) que se compartilha
materialmente todos os níveis da moral pulsional e solidariamente, tendo como
formal. É certo também que o aspecto formal referência última toda a humanidade, isto é,
da moral, o nível de validade universal é um enunciado normativo com pretensão
intersubjetiva, como quer Apel, determina de verdade prática e, em além disso, com
formalmente todos os níveis da ética material. pretensão de universalidade”. (DUSSEL,
Essa é uma relação de determinação 2000, p.143)
mútua com diferente sentido. A mútua co- É essa universalidade própria da
determinação desses dois momentos é materialidade que é negada pelas éticas
decisiva na compreensão da anterioridade formalistas, incluindo-se a ética do discurso.
lógica da comunidade de vida ante a Reconhece, no entanto, a ética da libertação
comunidade de comunicação, ainda que esta a insuficiência do princípio material, pois
subsumida na aquela. Pois, isso permitirá sua aplicação exige um princípio formal.
interpretar eticamente a materialidade É necessário o princípio formal consensual
das vítimas – sempre na condição de vida intersubjetivo que alcança validade
negada em algum aspecto: como pobre, universal. Aqui Dussel está de acordo com o
como dominação, opressão, exclusão, nas fundamental da proposta de Apel e seus
ordens da erótica, da pedagógica, do argumentos desde o princípio do discurso, e
político, do jurídico etc. – a partir do critério com a tese da validade como consenso.
material pressuposto a priori em toda crítica É na ordem do dissenso que a ética da
que parte da falta de alguma coisa ou libertação desenvolve argumentos que me
condição material dos sujeitos, ou seja, falta parecem ausentes na ética do discurso. Em
de condições de viver, de viver bem, de ser síntese, as principais idéias que articulam a
feliz. Trata-se da impossibilidade de afirmar crítica material e a crítica formal, momentos
a vida no momento material. Situação constitutivos mútuos de dissensos legítimos,
que se apresenta eticamente injusta pela podem ser compreendidos desde a dimensão
negatividade que representa. Trata-se de uma da negatividade.
situação ético-originária, com anterioridade Esse momento da crítica material tem
à comunidade de comunicação. Essa situação como ponto de partida a negação da vida

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humana empiricamente delimitada. É a A tomada de consciência de uma situação
partir do momento negativo que nasce a concreta na qual houve uma negação
possibilidade da crítica material, na condição originária – negação da vida afirmada –,
de exercício da razão ético-crítica. Surge momento negativo por excelência, leva à
não só o poder criticar, mas o dever criticar. exigência ética de negação da negação. Pois,
A existência real, empírica e numerosa de “detectar empiricamente uma vítima é
vítimas – trabalhadores explorados – porque constatar ‘negatividades’: pobreza, fome,
trabalham muito e ganham pouco –, traumatismo, dor, patologias e muitas outras
desempregados, índios destruídos, explorados,
dimensões da ‘negatividade’.” (DUSSEL,
marginalizados e excluídos, escravos africanos
2000, p.374)
ou explorados asiáticos do mundo colonial
Portanto, o critério da crítica é
e (ou) globalizado, grupos afetados na ordem
propriamente negativo. A existência de
dos desejos e das pulsões na repressão
negatividades em relação à vida em seu
sexual, raças não-brancas discriminadas
aspecto material – a impossibilidade de
nas diferentes formas de racismo, velhos
reproduzir a vida em alguma de suas
excluídos na lógica da produção e do
dimensões –, permite e exige eticamente a
consumo, adultos e crianças analfabetas,5
principalmente do mundo periférico, crianças refutação material ou “falsificação” da
abandonadas, jovens sem perspectiva de verdade do sistema que origina a vítima. Por
primeiro emprego, doentes sem médico e sem isso, “o critério de falsificação enunciado se
remédio, trabalhadores rurais sem terra, refere ao conteúdo semântico do juízo prático
excluídos urbanos sem teto, cidadãos sem e é tal (falso) se leva à morte, à negação da
direitos e sem possibilidade de acesso à vida, ao que faz da vítima uma vítima.”
justiça, cidadania sem segurança – é a causa (DUSSEL, 2000, p.376) Esse é o momento
material, ponto de partida concreto – que permite questionar e refutar a validade
situação eticamente injusta – e nível formal de consensos desde a condição
constitutivo que determina o nível da moral material, pois o que era válido porque
formal. Portanto, o ponto de partida da crítica tornava a vida factível, perde sua validade
é o juízo empírico da existência real de pela ilegitimidade material. A exigência de
vítimas. O ponto de partida da crítica moral uma nova verdade – um conteúdo que torna
deverá ser a vida em sua negatividade. Desde a vida negada, ou o aspecto da vida negada,
o momento negativo da vida – dialética agora factível – materialmente condiciona e
negativa – se dá o re-conhecimento do outro, legitima, ainda que em parte, a produção do
como o outro do sistema – ou, o outro da dissenso. Aqui podemos agora perguntar,
comunidade de comunicação. Ao mesmo
afinal, onde se origina o ato crítico-ético?
tempo, surge a responsabilidade por tal
É suficiente reconhecer o outro como igual
vítima, desde o momento negativo (não-ser).
(porque, apelianamente, falante)? Ou é
necessário reconhecê-lo no fato de sua
negatividade, ou seja na condição de vítima,
5Hoje, na sociedade do conhecimento, modo
de negação de vida a mais fundamental, certamente. e portanto, situado para além da comunidade

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de comunicação? A exterioridade para além políticos críticos, dos sujeitos sociais
de toda totalidade. ‘emergentes’ na sociedade civil.” (DUSSEL,
Esse momento da denúncia crítica é 2000, p.465)
necessário, como início, do processo de tomada Portanto, não se trata tão só da exclusão
de consciência de que a impossibilidade de a priori. Mas, da consciência da injustiça da
viver das vítimas pode se convertera em exclusão. Essa situação originária e a priori,
possibilidade de viver e viver melhor. Para mas real e não apenas ideal, está marcada
isso, é necessário transformar a ordem pela ausência de pretensão de bondade.
hegemônica vigente. A intersubjetividade A vítima se transforma em cético (ceticismo
discursiva anti-hegemônica permite nova crítico) diante do sistema que se tornou
verdade, sempre provisória e criticável, ilegítimo aos seus olhos. Nesse sentido, “este
momento formal agora a serviço do dissenso. seria o lugar arquitetônico para abordar a
A aplicação do princípio crítico material questão da origem do dissenso e, claro, do
exige o momento formal na condição de novo consenso.” (DUSSEL, 2000, p.470)
procedimento válido moralmente, com a Os novos consensos cuidam das alternativas
finalidade de dar efetividade aos projetos de formais da construção da nova validade.
transformação. Dessa maneira, o procedimento É o momento positivo da crítica formal.
da ética do discurso, agora, deve ser pensado A construção de mediações orientadas pelo
desde a validade anti-hegemônica da princípio democrático é, agora, porém,
comunidade das vítimas. As vítimas são as anti-hegemônico.
comunidades excluídas assimetricamente da A nova validade, que tem pretensão em
comunidade de comunicação hegemônica. afirmar conteúdos novos, exige eticamente
A complexidade da “comunidade de o desenvolvimento criativo e libertador da
comunicação” é ainda maior: desde as vida negada. A negação da vida das vítimas
comunidades de comunicação ideais (Apel) exige que as frentes de libertação façam
até às comunidades de comunicação irromper o novo, a partir de dissensos
empíricas (Dussel), das hegemônicas às produzidos, no entanto, orientados pelos
comunidades de vítimas, desde os consensos princípios críticos – fundantes – da nova ação
(ética do discurso) aos dissensos (ética da com pretensão de bondade.
libertação). Nessa perspectiva, o outro que
interessa não é aquele que é afetado a REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
posteriori, mas é o outro excluído a priori
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