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O OLHAR INOCENTE É CEGO

Doris Clara Kosminsky

O OLHAR INOCENTE É CEGO


A construção da cultura visual moderna
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós
Graduação em Design do Departamento de Artes &
Design da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Dr. Alberto Cipiniuk


Co-orientadora: Profa. Dra. Glaucia Villas Bôas

Rio de Janeiro
Agosto de 2008
Doris Clara Kosminsky

O olhar inocente é cego


A construção da cultura visual moderna

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção


do título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Design do Departamento de Artes & Design do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA

pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Dr. Alberto Cipiniuk


Presidente/Orientador – PUC-Rio

Profa. Dra. Glaucia Villas Bôas


Co-orientadora – IFCS-UFRJ

Prof. Dr. Washington Dias Lessa


ESDI-UERJ

Profa. Dra. Lígia Maria de Souza Dabul


UFF

Prof. Dr. Jofre Silva


Faculdade Anhembi-Morumbi

Prof. Dr. Luiz Antonio Luzio Coelho


PUC-Rio

Dr. Paulo Fernando Carneiro de Andrade


Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas - PUC-Rio

Rio de Janeiro, 15 de agosto de 2008


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da
autora e do orientador.

Doris Clara Kosminsky


Graduada em Desenho Industrial e Comunicação Visual
pela ESDI-UERJ (Escola Superior de Desenho Industrial da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro) em 1982. Mestre
em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design da
PUC-Rio em 2003. Iniciou a atividade profissional no
campo do Design Gráfico em 1981, começando a lecionar
em 1987. Desde 1989 trabalha como Editora de Arte no
Departamento de Arte do Jornalismo da TV Globo.
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Ficha Catalográfica

Kosminsky, Doris Clara

O olhar inocente é cego : a construção da cultura


visual moderna / Doris Clara Kosminsky ; orientador:
Alberto Cipiniuk ; co-orientadora: Gláucia Villas Bôas. –
2008.
306 f. : il.(color.) ; 29,7 cm

Tese (Doutorado em Artes e Design)–Pontifícia


Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2008.
Inclui bibliografia

1. Artes – Teses. 2. Design. 3. Olhar. 4.


Cultura visual. 5. Modernidade. 6. Modernização. 7.
Tecnologia. I. Cipiniuk, Alberto. II. Boas, Gláucia
Villas. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Artes e Design. IV. Título.

CDD: 700
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À memória dos mestres.


Agradecimentos

Aos orientadores pelo estímulo, disponibilidade e generosidade.

À FAPERJ pelo auxílio oferecido.


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Aos funcionários do Departamento de Artes e Design por sua atenção e presteza.

À TV Globo, na pessoa do diretor do Departamento de Arte do Jornalismo,


Alexandre Arrabal, pela concessão de licença.

Às funcionárias do setor cartográfico do Museu do Itamaraty pelo acesso aos


originais.

À amiga Isabella Perrotta pelos papos.

À Selma Giorgio pelas inúmeras leituras e sugestões e pela constante participação.


Resumo

Kosminksky, Doris; Cipiniuk, Alberto; Villas Boas, Glaucia. O olhar


inocente é cego. A construção da cultura visual moderna. Rio de Janeiro,
2008. 306p. Tese de Doutorado - Departamento de Artes, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O momento atual traz em seu bojo uma enorme carga de excessos


tecnológicos e estímulos sensoriais em uma construção simbiônica, algumas vezes
percebida como ápice do projeto moderno, outras, compreendida como uma etapa
posterior a este empreendimento - o pós-moderno. As novas tecnologias e suas
mediações são seguidamente apontadas como agentes decisivos nas
transformações do modo de olhar. Consideramos que apesar das tecnologias
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atuarem como agente catalisador de determinadas conseqüências, elas não chegam


a caracterizar condição suficiente de possibilidade para que estas transformações
possam se realizar em qualquer sociedade ou período. A nossa pesquisa sugere
que o olhar moderno foi construído sobre um tripé formado pelas tecnologias
modeladoras das relações tempo-espaço, pelas convenções que contribuíram para
a sua compreensão e naturalização e por uma pedagogia que inculcou a abertura
para o novo, de modo a garantir a perpetuação do modo de olhar resultante. Este
trabalho volta-se para o passado, buscando localizar continuidades e contradições
da cultura visual contemporânea, considerando uma construção em camadas, isto
é, os modos de olhar anteriores não são simplesmente superados, mas absorvidos
nos modos subseqüentes. Neste contexto, examinamos dois momentos ou modos
de olhar. O olhar ciclópico ou clássico, constituído ao longo da Renascença,
fundamentado com a convenção da perspectiva e divulgado pela invenção da
gravura e, o segundo modo, o olhar panorâmico, construído a partir da segunda
metade do século XIX, arquitetado sobre as transformações urbanas, a profusão de
objetos e imagens e a compressão tempo-espaço produzida pelas novas
tecnologias de transporte e comunicação. Este novo olhar, ao mesmo tempo em
que criou novas possibilidades perceptivas, também necessitou de processos de
fixação e padronização, o que foi realizado através do desenvolvimento de uma
pedagogia voltada para as instituições industriais e para o conceito de progresso.
Neste processo, as Exposições Universais, realizadas a partir de 1851, tiveram
atuação importante por tratar-se de um fenômeno basicamente visual e voltado
para um público amplo. Sob este aspecto, as Exposições Universais sintetizam a
experiência obtida posteriormente com outras tecnologias que se voltaram para a
massa e, também, com o que foi conceituado como espetáculo.

Palavras-chave
Design; olhar; cultura visual; modernidade; modernização; tecnologia.
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Abstract

Kosminksky, Doris; Cipiniuk, Alberto; Villas Boas, Glaucia. The innocent


eye is blind. Constructing the modern visual culture. Rio de Janeiro,
2008. 306p. Ph.D Thesis - Departamento de Artes, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.

The time in which we live is instilled with an abundance of technological


excess and sensorial stimuli in a symbionic construction In this period, which at
times is interpreted as the peak of the modern project and of modernist culture,
and at other times as a cultural stage after the post-modern culture, new
technologies and their mediations are identified one by one as the decisive agents
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in transforming our vision of the world. Despite the technologies acting as a


catalyst of certain consequences, they fail to characterize a condition accessible
enough so as these transformations can be executed in any society or period. Our
study suggests that the modern vision was constructed on a tripod composed of
the technologies which shape space-time relations, the conventions which
contributed to their understanding and naturalization, and a pedagogy which
inculcates the opening to the new, so as to ensure that the resulting vision is
perpetuated. This study looks at the past, aiming to find continuous and
contradictory aspects in relation to contemporary visual culture in a context where
previous ways of seeing things are not simply overcome, but absorbed into the
subsequent visions, in other words, in a layered construction. In such a context,
we examined two moments or visions. Firstly, the cyclopic or classical vision,
which was formed throughout the Renaissance, grounded on the convention of
perspective and dispersed by printed engravings. Secondly, the panoramic vision,
constructed as from the second half of the 19th century and based on urban
transformations, the profusion of objects and images and the space-time
compression generated by new technologies in transport and communication. This
way of viewing the world, while creating new perspectives, also required a
process of consolidation and standardization, which was carried out through the
development of a pedagogy directed at industrial institutions and to the concept of
progress. In this action, the Universal Expositions, which began in 1851, played
an important role as a basically visual phenomenon. These exhibitions were aimed
at a wide audience and also synthesized subsequently acquired experience with
other technologies directed at the masses so as to gain the status of a show. From
the point of view of a visual culture founded on a modern past, our research
identifies the latest technologies which make distances even shorter, further
accelerate our communications and allow new forms of human contact, as part of
an extensive series of other transformations, which are generating a new vision.
The overriding issue is in relation to the time at which we will have the precise
measure of this transformation so as to use it to formulate new structural
possibilities.
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Key-words
Design, vision, visual culture, modernity, modernization, technology.
Sumário

1. Introdução 31

2. O olhar ciclópico e a verdade da imagem 41


2.1. A representação do que “é” 43

2.2. A visão monocular 51


2.2.1. O jogo do real e do ilusório ou uma filosofia da falsa realidade 64
2.2.2. A convenção do “natural” 72
2.3. A óptica entre o entretenimento, a ciência e a metáfora 82
2.4. A herança ciclópica 96
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3. O olhar panorâmico e “mil coisas para ver” 100


3.1. Tempos modernos 103
3.1.1. (R)evolução industrial 107
3.1.2. A tecnologia e o novo olhar da eletricidade 113
3.2. A cidade moderna e a vida cotidiana 123
3.2.1. Um olhar sobre a cidade moderna 128
3.2.2. Um olhar sobre as reformas urbanas 135
3.2.3. Muralhas de impressos 143
3.2.4. O olhar para o novo / o choque do novo 159
3.2.5. O controle sobre os corpos 169
3.3. Novas percepções no tempo e no espaço 186
3.3.1. As ferrovias 186
3.3.2. Vista e visão panorâmicas 204
3.3.3. Panoramas e espetáculos visuais 207
3.3.4. O tempo padronizado 212

4. A pedagogia de uma nova visualidade 217


4.1. Exposições e espetáculo 218
4.2. Diversão pedagógica ou pedagogia do entretenimento 225
4.3. O Palácio de Cristal, uma Exposição para todas as nações 229
4.3.1. O Brasil nas festas da modernidade 243
4.4. Arte e indústria – contradições 251
4.4.1. Gosto e bom gosto 262
4.4.2. Verdades e mentiras do valor e da aparência 269
4.5. Progresso, uma missão quase sagrada 280

5. Considerações finais 285

6. Referências bibliográficas 292


Livros e periódicos 292
Locais e Sites de pesquisa de imagens 306
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Lista de figuras

Figura 1. William Hogarth. Southwark Fair, 1733. Gravura.


Disponível em <http://www.tate.org.uk/> (22/07/07). 34
Figura 2. William Hogarth. Southwark Fair, 1730. Gravura. Detalhe 34
Figura 3. Edouard Manet, Le Chemin de fer, 1872.
Disponível em: <http://foucault.info/documents/img/manet/manet8.jpg> (22/07/07). 35
Figura 4. Charge de Alain. Publicada em 1955 em The New Yorker
Magazine. Retirada da reprodução de GOMBRICH, E. H. em Arte e Ilusão. p. 2. 43
Figura 5. O jardim de Nebamun, c. 1400 a. C. 45
Figura 6. Xilogravura de Albert Dürer. De Underweysung der Messung,
1525. 52
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Figura 7. Croqui da janela de Dürer. Livro de Croquis, 1514. Bibliothèque de


Dresde. Retirado de BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magie
artificielle des effets merveilleux. France: Olivier Perrin, 1969. p. 80 52
Figura 8. Dürer: De Unterweisung der Messung, 1525. 54
Figura 9. Giulio Parigi. A portinhola de Dürer. Afresco. Florença: Galleria
degli Uffizi, Stanzino delle matematiche. Retirado de Instituto e
Museo di Storia della Scienza, <http://brunelleschi.imss.fi.it> (29/08/06) 54
Figura 10. Abraham Bosse, Les Perspecteurs. Gravura da Manière
universelle de M. Desargues pour traiter la perspective, 1648.
Retirada de DAMISCH, H. The origin of perspective. p. 37. 55
Figura 11. Retirado de A treatise of perspective... 55
Figura 12. Dürer, Il velo, rete o graticola. Homem desenhando mulher
reclinada. De Unterweysung der Messung, Nuremberg, 1538. 56
Figura 13. Prospettografo. Ludovico Cardi, conhecido como Cigoli.
Prospettiva pratica…, ms., ca. 1613, Firenze, Gabinetto dei
Disegni e delle Stampe degli Uffizi, 1660. Retirado de Instituto e
Museo di Storia della Scienza <http://brunelleschi.imss.fi.it> (29/08/06) 57
Figura 14. Instrumento prospético de Jacopo Barozzi da Vignola. Le due
regole della prospettiua prattica / di m. Iacomo Barozzi da
Vignola ; con i commentari del ... maestro Egnatio Danti .., In
Bologna: per Gioseffo Longhi, 1682. Retirado de Instituto e Museo di Storia
della Scienza, <http://brunelleschi.imss.fi.it> (29/08/06). 57
Figura 15. Pespectográfo. Cigoli, Prospettiva pratica, ms., ca. 1613.
Gabinetto dei Disegni e delle Stampe degli Uffizi, Florence.
Retirado de CAMEROTA, Filippo. Looking for an artificial eye: on the borderline between

painting and topography. Early Science and Medicine 10 (2). 57


Figura 16. Andrea Mantegna. Archers Shooting at Saint Christopher
(1451-5). Fresco, Ovetari Chapel, Eremitani Church, Padua.
Detalhe da flecha. Retirado de KUBOVY, M. The Psychology of
Perspective and Renaissance Art. p. 2 e 3. 59
Figura 17. Las Meninas de Velazquez. Disponível em:
<http://www.artchive.com/artchive/V/velazquez/velazquez_atlee.html> (29/08/06) 62
Figura 18. J-F. Niceron: anamorfose de uma cabeça, 1638. Retirado de
BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magie artificielle des
effets merveilleux. France: Olivier Perrin, 1969. p. 45. 64
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Figura 19. Os Embaixadores (Hans Holbein - 1533) 65


Figura 20. Detalhe da caveira 65
Figura 21. Waterfalls. M. C. Escher. 66
Figura 22. Retirado de A treatise of perspective. Or, the art of
representing all manner of objects' as they appear to the eye in
all situations. ... sem referência à autoria de Niceron. 66
Figura 23. Eva Byte. Apresentadora virtual do Fantástico. Criação do
Departamento de Arte do Jornalismo, TV Globo, 2005. 68
Figura 24. Sistema óptico do olho, Discours de la méthode plus la
dioptrique, lês météores el la gêométrie, Leiden, 1637. 69
Figura 25. Quadro do filme “O triunfo da vontade” de Leni Riefenstahl,
1936. 75
Figura 26. Lênin e Trotsky na celebração do segundo aniversário da
Revolução Russa. À direita, a mesma foto, sem Trotsky.
Imagens obtidas no site Newseum, the interactive museum of news. Disponível em:

<http://www.newseum.org/berlinwall/commissar_vanishes/7_8.htm> (26/11/06). 76
Figura 27. Fotografia de 1940. Stalin, acompanhado do jovem comissário
Nikolai Yezhov, removido da fotografia à direita. Imagens obtidas no
site Newseum, the interactive museum of news. . Disponível em:
<http://www.newseum.org/berlinwall/commissar_vanishes/1_2.htm> (26/11/06). 76
Figura 28. Fotos de Evgen Bavcar . . Disponível em: <http://www.fotografya.gen.tr/issue-
9/index.html e http://www.elpais.es/suple/eps/?d_date=20060416> (1/08/06). 77
Figura 29. Andreas Vesalius De humani corporis fabrica libri septem.
Basileae : Ex officina. Oporini, 1543. 80
Figura 30. Página do livro. Andreas Vesalius. De humani corporis fabrica
libri septem. Basileae : Ex officina I. Oporini, 1543.
Copyright © 2006 University of Leeds Library/ 80
Figura 31. Câmera escura de Sir Joshua Reynolds, manufaturada na
Inglaterra entre 1760-1780. Retirado de Science & Society Picture Library,
<http://www.scienceandsociety.co.uk> (29/08/06). 85
Figura 32. Mesmo modelo da figura anterior, fechado. Retirado
<http://www.scienceandsociety.co.uk> (29/08/06). 85
Figura 33. Figura de Ars Magna Lucis Et Umbrae, por Athanasius Kircher
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em 1646. Demonstração de utilização de uma lente entre uma


tela e um espelho com inscrições, que pode ter levado ao
nascimento da lanterna mágica. Retirado de Science & Society
Picture Library, <http://www.scienceandsociety.co.uk> (29/08/06). 85
Figura 34. Camera obscura from the Encyclopedie.Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Camera_obscura_from_the_Encyclopedie.jpg> (27/0806).87

Figura 35. Câmera escura portátil. Istituto e Museo di Storia della Scienza.
Retirado de <http://brunelleschi.imss.fi.it/museum/esim.asp?c=100063> 27/0806). 87
Figura 36. Câmera escura 1770-1775. Encyclopedie Raisonnèe des
Sciences, des Arts et des Metiers. . Disponível em:
<http://www.kunstogdesign.no/camera_obscu.html> 27/0806). 87
Figura 37. Ilustração do telescópio gráfico e seus principios óticos. Do
Magazine of Science, And School of Arts, 1840. Whipple
Museum of the History of Science, University of Cambridge.
Disponível em:<http://www.hps.cam.ac.uk/whipple/explore/astronomy/

artandastronomy/graphictelescope/> (29/08/06). 89
Figura 38. Diagrama da câmera lucida, que permitia cópia à luz do dia.
Inventado por W. H. Wollaston em 1806. Disponível em:
<http://www.scienceandsociety.co.uk> (29/08/06). 89
Figura 39. Espelho de Claude. Inglaterra, século XVIII. Retirado de Victoria and
Albert Museum: <http://www.vam.ac.uk> (29/08/06). 89
Figura 40. Ilustração do século XIX. Duas crianças olham uma imagem
projetada pela câmera escura. De E. Atkinson's, Natural
Philosophy. Retirado de <http://www.scienceandsociety.co.uk> (29/08/06). 90
Figura 41. Claude Lorraine Glass. Em PIKE, Benjamin Jr: Pike's Illustrated
Descriptive Catalogue of Optical, Mathematical and
Philosophical Instruments. Gravuras dos aparatos vendidos
pelo autor, com os preços dos produtos. New York 1856
Retirado de <http://vision.mpiwg-berlin.mpg.de/vision_coll/elib/claudeglass> (29/08/06). 90
Figura 42. Prospecto de anúncio de câmera escura, cerca de 1819.
Retirado de <http://www.scienceandsociety.co.uk> (29/08/06). 90
Figura 43. Um centenário científico. Faraday (de volta). "Muito bem,
Senhorita Ciência! Meus parabéns! Você conseguiu um
progresso maravilhoso desde o meu tempo!" Punch, or The
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London Charivari. Vol. 100. 27 de junho de 1891. 109


Figura 44. Terra à noite. NASA/DMSP. 27 de novembro de 2000. 115
Figura 45. Folha de rosto do livro An essay on electricity, 1785. London,
1799. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group. 116
Figura 46. ADAMS, George. An essay on electricity, explaining the
principles of that useful science; and describing the instruments,
... Illustrated with six plates. The fifth edition, with corrections
and additions, by William Jones, ... London, 1799. Eighteenth
Century Collections Online. Gale Group.
<http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO> (2/08/06) 116
Figura 47. Anúncio do magneto elétrico do Dr. Lowder, 1890. Evanion
Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library. 117
Figura 48. Anúncio do periódico Electricity & Electrical Engineering,
1888. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain.
The British Library. 117
Figura 49. Electric breakfast, 1914. Retirado de FORTY, Adrian.
Objetcts of Desire. Design & society form Wedgwood to IBM.
New York: Pantheon Books, 1986. p. 187. 119
Figura 50. Anúncio de produtos elétricos Magnet, 1914. Retirado de
FORTY, Adrian. Objetcts of Desire. Design & society form
Wedgwood to IBM. New York: Pantheon Books, 1986. p. 186. 119
Figura 51. O Farol elétrico da Torre Eiffel, ilustração da capa para
Exposition de Paris de 1889. No. 14, 1o. de junho de 1889. In:
CORDULACK, Shelley Wood. A Franco-American Battle of
Beams: Electriciy and the Selling of Modernity. Journal of
Design History. Summer 2005; 18: 157. 120
Figura 52. Liberdade faiscando para o mundo. Le Journal Illustré de 10 de
outubro de 1875. In: CORDULACK, S. op. cit. p. 149. 120
Figura 53. A estrela da esperança: uma nova ode naval. Punch, or the
London Charivari, Vol. 104, 11 de fevereiro de 1893. 120
Figura 54. Recibo de luz, emitido em 1937. Arquivo museu histórico
CPFL. In: DIAS, Renato Feliciano (coord.) Panorama do setor
de energia elétrica no Brasil. Centro da memória da eletricidade
no Brasil. Rio de Janeiro, 1988. p. 97. 121
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Figura 55. A cidade, 1919. Fernand Léger. Óleo sobre tela. Philadelphia
Museum of Art. 126
Figura 56. Manufatura com trabalhadoras mulheres na seção de
polimento de penas para canetas. Illustrated London News,
1851. <http://www.victoriantimes.org> (4/06/07) 127
Figura 57. Imagem ilustrativa de um debate 127
Figura 58. Interior de fábrica com tear mecânico.
Illustrated London News, 1844. 127
Figura 59. “Capital e Trabalho”. “O capitalista vive paparicado
enquanto, abaixo dele, os trabalhadores labutam em
terríveis condições”. 127
Figura 60. Excursão esperando pelo trem. The Illustrated London News,
4 de setembro de 1880. The Illustrated London News Picture
Library. <http://www.ilnpictures.co.uk> (17/09/07) 129
Figura 61. Movimentação de bagagens na plataforma de trens. The
Illustrated London News, 6 de junho de 1846. The Illustrated
London News Picture Library. <http://www.ilnpictures.co.uk> (17/09/07) 129
Figura 62. Pai Tamisa (Father Thames) apresenta sua descendência à
formosa cidade de Londres. Punch, or The London Charivari, 3
de julho de 1858. <http://www.victoriantimes.org> (8/08/08). 130
Figura 63. E. Hull. Obras de represamento do Tamisa entre a ponte
Charing Cross e Westminster, 1865. Museum of London.
In: NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images
in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale
University Press, 2000. p. 54. 132
Figura 64. Seção do represamento do Tamisa mostrando (1) o metrô,
(2) os esgotos, (3) Ferrovia Metropolitana e (4) Ferrovia
Pneumática. Illustrated London News, 22 de junho de 1867.
<http://www.old-print.com> (8/08/08) 132
Figura 65. Mapeamento oficial da cidade de Londres e seus arredores
(Skeleton Ordnance Survey of London), 1851. Folha 20,
metade direita. 66 x 97,5 cm. Sourthampton: Ordnance Map
Office, 1851. NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets
and images in nineteenth-century London. New Haven &
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London: Yale University Press, 2000. p. 20. 133


Figura 66. Londres vista de um balão. John Henry Banks and Co., 1851.
Mapa dobrável, 60,8 x 102,4 cm. Guildhall Library. Corporation
of London. NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets
and images in nineteenth-century London. New Haven &
London: Yale University Press, 2000. p. 21. 134
Figura 67. Camille Pissarro, Avenue de l’Opéra, soleil, matin d’hiver,
1898. 138
Figura 68. Folheto de propaganda da máquina Minerva de
impressão, 1879. Evanion Collection of Ephemera. Collect
Britain. The British Library. 144
Figura 69. Folheto de propaganda da copiadora Foot Lever, 1886.
vanion Collection of Ephemera. Collect Britain.
The British Library. 144
Figura 70. Folheto de propaganda da Metropolitan Printing Works,
1890. Evanion Collection of Ephemera. The British Library. 145
Figura 71. John Parry. Cena de rua em Londres, [1835]. 147
Figura 72. Gravura retirada do Punch, or the London Charivari, 1887.
The Project Gutenberg. . Disponível em: <http://www.gutenberg.org> (25/11/07). 147
Figura 73. Pã, o cartaz. Pã (em tom de deboche) fala: “Ah, ah, ah!
Quem disse que eu estava morto e que o medo era algo do
passado?”. Punch,or the London Charivari. Vol. 103. 24 de
setembro de 1892. 148
Figura 74. “O que o nosso artista tem que agüentar.... Ele viajou por
toda a Inglaterra em busca de um pano de fundo para seu
Vivian beguiling Merlin in the Forest of Broceliande, "- uma
busca desesperançada”. Punch,or the London Charivari.
Vol. 103. 3 de dezembro de 1892. 148
Figura 75. Anúncio de programas da rede CBS, carimbado em ovos
distribuídos em todo o país. Retirado de STORY, Louise.
Anywhere the Eye Can See, It’s Likely to See an Ad. New York
Times, 15 de janeiro de 2007. 149
Figura 76. Anúncio em bandeja de revista de bagagem em aeroporto.
Retirado de STORY, Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s
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Likely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007. 149


Figura 77. STORY, Anúncio de Tylenol infantil em sala de exame
pediátrico. Retirado de Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s
Likely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007. 149
Figura 78. Anúncio de bebida no símbolo de banheiro masculino.
Retirado de STORY, Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s
Likely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007. 149
Figura 79. Folheto de propaganda do periódico The Million. Evanion
Collection of Ephemera. The British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07) 151
Figura 80. Folheto de propaganda do comics Moonshine. Evanion
Collection of Ephemera. The British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07) 151
Figura 81. The evening times. Sete edições diárias. Penny Illustrated,
29 de outubro de 1910. The British Library. 151
Figura 82. Folheto de propaganda da Fell & Briant, impressão de
rótulos, 1889. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain.
The British Library. <http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07) 152
Figura 83. Anúncio de mercado, 1885. Evanion Collection of Ephemera.
The British Library. <http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07) 152
Figura 84. Anúncio da emulsão Scott com “puro óleo de fígado de
bacalhau”, 1884. Evanion Collection of Ephemera.
The British Library. <http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07) 154
Figura 85. Anúncio de Freeman's Egg Powder, 1885. Evanion
Collection of Ephemera. The British Library. 154
Figura 86. Anúncio de Bovril, 1890. Evanion Collection of Ephemera.
The British Library. 154
Figura 87. Mellin’s Food for Infants & Invalids, 1890. Evanion
Collection of Ephemera. The British Library. 155
Figura 88. Folheto do fermento em pó Soddy, 1887. Evanion
Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library. 155
Figura 89. Anúncio do pó para pudim Freeman, 1884. Evanion
Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library. 156
Figura 90. Anúncio da essência de chocolate Cadbury, 1866. Evanion
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Collection of Ephemera. The British Library. 156


Figura 91. Anúncio do desinfetante Jeyes, 1879. Evanion Collection
of Ephemera. Collect Britain. The British Library. 157
Figura 92. Anúncio do sabão em pó Hudson, 1880. Evanion Collection
of Ephemera. The British Library. 157
Figura 93. Anúncio do sabão em pó Hudson, 1889. Evanion Collection
of Ephemera. The British Library. 157
Figura 94. Anúncio do sabão Price, 1880. Evanion Collection of
Ephemera. The British Library. 158
Figura 95. Anúncio do sabão Brooker, 1889. Evanion Collection of
Ephemera. The British Library. 158
Figura 96. Anúncio do sabão em pó Glover, 1881. Evanion Collection
of Ephemera. The British Library. 158
Figura 97. “Cavalo estraçalha janela de bonde”. New York World,
1897. Extraído de SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo
e o início do sensacionalismo popular... p 123 162
Figura 98. “Quando um homem não parece estar no seu melhor
momento”- n. 2. Punch, or The London Charivari.
Vol. 101. 17 de outubro de 1891. 162
Figura 99. “Broadway – Passado e Presente”. Life, 1900. Extraído
de SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início
do sensacionalismo popular... p 122. 162
Figura 100. Au Bon Marché, 1889. Vitrine de pequenos artefatos. In:
Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.
Universidad de Barcelona. Vol. X, n. 211, 15 de abril de 2006. 167
Figura 101. Ilustração “origin of the bon marché”. p. 2. Livreto,
c. 1896. In: D. H. Ramsey Library, Special Collections,
University of North Carolina at Asheville. 167
Figura 102. Cartão postal promocional Au Bon Marché, sem data.
Disponível em: http://www.cardmine.co.uk 168
Figura 103. Estampa promocional Au Bon Marché, c. 1878.
GORBERG, Samuel. Figurinhas: Sucesso de Marketing.
Disponível em: <http://brasilcult.pro.br/ensaios/figurinhas/figurinhas.htm> (21/07/2007). 168
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Figura 104. Pablo Picasso. Natureza-morta Au Bon Marché, 1913.


Óleo e papel colorido sobre cartão. Coleção Ludwig, Aachen.
<http://www.artchive.com> 169
Figura 105. Rua em manhã de domingo.Illustrated London News, 1856. 170
Figura 106. “Um domingo tranqüilo em Londres; ou o Dia do Descanso”.
Punch, 1886. Extraído de SINGER, Ben. Modernidade,
hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular... p. 120. 171
Figura 107. Vestimenta de jardineiro. Larmessin, c. 1695. Les Costumes
Grotesques: Habits des métiers et Professions. 172
Figura 108. Vestimenta de músico. Larmessin, c. 1695. Les Costumes
Grotesques: Habits des métiers et Professions. 172
Figura 109. Vestimenta de confeiteira. Larmessin, c. 1695. Les Costumes
Grotesques: Habits des métiers et Professions. 172
Figura 110. Vendedora de fósforos. BURBY, Thomas Lord, gravador.
Costume of the lower orders of the metropolis. London: T.
B., 1820. ID: 1168475 NYPL Gallery. <http://digital.nypl.org> (25/11/07) 173
Figura 111. Show de rua. Artista ambulante. BURBY, Thomas Lord,
gravador. Costume of the lower orders of the metropolis.
London: T. L. B., 1820. ID: 1168477. NYPL Gallery.
<http://digital.nypl.org> (25/11/07) 173
Figura 112. Paneleiro. BURBY, Thomas Lord, gravador. Costume of the
lower orders of the metropolis. London: T. L. B., 1820. ID:
1168476. NYPL Gallery. <http://digital.nypl.org> (25/11/07) 173
Figura 113. Alfabeto de profissões do primo Favo de Mel (Cousin
Honeycomb’s). Publicado por Dean & Son, Londres,
c. 1856. The John Johnson Collection of Printed Ephemera.
Bodleian Library. University of Oxford. 174
Figura 114. Nossa aldeia, um jogo de profissões. Jogo impresso em
litografia, produzido por Standring & Co., Londres, 1860.
The John Johnson Collection of Printed Ephemera.
Bodleian Library. University of Oxford. 175
Figura 115. Frente do folheto publicitário do extrato de sabão
Hudson, 1890. <http://www.collectbritain.co.uk> (14/12/07) 178
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Figura 116. Verso do folheto publicitário do extrato de sabão


Hudson, 1890. 178
Figura 117. Medida do cúbito. Foto do álbum de Alphonse Bertillon, de
sua participação na World's Columbian Exposition em 1883,
Chicago. National Library of Medicine (NLM). Disponível em:

<http://www.nlm.nih.gov/visibleproofs/galleries/technologies/bertillon.html> (23/09/07) 180


Figura 118. Instruções do sistema de sinalética, desenvolvido
por Alphonse Bertillon, incluindo teoria e prática da
identificação antropométrica. 180
Figura 119. Quadro fotográfico com tipos de orelha. Signaletic
Instructions Including the Theory and Practice of
Anthropometric Identification de Bertillon. Retirado de
GUNNINGS, op. cit., p. 62. 181
Figura 120. Quadro de característica físicas de Bertillon. Musée
des Collections Historiques de la Préfecture de Police.
National Library of Medicine. 181
Figura 121. Cartão antropométrico de Alphonse Bertillon, 1892.
University College London. 182
Figura 122. Ampliação de um fotograma do filme de 1904 da Biograph,
A Subject for the Rogue’s Gallery, filmado pelo cinegrafista
A. E. Weed. Retirado de GUNNINGS, op. cit., p.55. 182
Figura 123. Sistema de arquivo de Bertillon. Foto do álbum de Alphonse
Bertillon, de sua participação na World's Columbian
Exposition em 1883, Chicago. National Library of Medicine
(NLM). . 184
Figura 124. Foto do álbum de Alphonse Bertillon, de sua participação
na World's Columbian Exposition em 1883, Chicago.
National Library of Medicine (NLM). Disponível em:
<http://www.nlm.nih.gov/visibleproofs/galleries/technologies/bertillon.html> (23/09/07) 184
Figura 125. Policial perseguindo um ciclista, "Penny Farthing". The
Graphic, 1880. The Illustrated London News Picture.
Library. Disponível em: <http://www.ilnpictures.co.uk> (05/06/07) 190
Figura 126. Anúncio de Bown's "Perfect", processo perfeito para
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fixação de pneumáticos de bicicletas. Sporting and Dramatic


News, 1887. The Illustrated London News Picture Library.
<http://www.ilnpictures.co.uk> (05/06/07) 191
Figura 127. Rainha Victoria viajando sobre a ponte Tay, Dundee.
The Illustrated London News, 5 de julho de 1879.
<http://www.ilnpictures.co.uk> (17/09/07) 197
Figura 128. Viaduto Brighton sobre a rodovia Preston. The Illustrated
London News, 13 de junho de 1846. The Illustrated London
News Picture Library. <http://www.ilnpictures.co.uk> (17/09/07) 197
Figura 129. Viaduto Blatchford em Slade, Devon, meados do século
XIX. Litografia colorida manualmente. Science Museum/
Science & Society Picture Library. 197
Figura 130. Estrada de ferro du Nord. Boulogne sobre o mar.
Temporada de 1889. 198
Figura 131. Estrada de ferro du Nord. Le Tréport-Mers.
Temporada de 1889. 198
Figura 132. 'Cook's Tours pela Escócia e Irlanda. Capa de folheto
publicitário, sem data. Thomas Cook Archive/The ILN
Picture Library. < http://www.ilnpictures.co.uk> (17/09/07) 198
Figura 133. Acidente de trem em Kentish Town, na junção da linha
Hampstead. The Illustrated London News, 7 de
setembro de 1861. ILN Picture Library. 201
Figura 134. Acidente de trem na Ferrovia Chester, com estragos na
ponte Dee. The Illustrated London News, 12 de junho de
1847. ILN Picture Library. <http://www.ilnpictures.co.uk/> (17/09/07) 201
Figura 135. Anúncio de seguradora. The Sphere, 6 de janeiro de 1912.
The ILN Picture Library. <http://www.ilnpictures.co.uk/> (17/09/07) 202
Figura 136. Aguardando o trem da excursão. The Illustrated London
News. 4 de setembro de 1880. 202
Figura 137. Trem dos correios indo de Folkestone para Londres.
The Illustrated London News, 1844. The ILN Picture
Library. 203
Figura 138. Plataforma de observação do panorama com espectadores
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e detalhe da vista panorâmica de Constantinopla, por Jules-


Arsène Garnier em exibição em Copenhagen. c. 1882.
Gravura em madeira, C. V. Nielsen. Museu da Cidade,
Copenhagen. In: COMMENT, Bernard. The Panorama.
London: Reaktion Books, 1999. p. 6. 208
Figura 139. As linhas do sistema de horário das ferrovias.
The Illustrated London News, 6 de junho de 1908. The ILN
Picture Library 215
Figura 140. Estandes de máquinas: motores Whitworth e bomba
centrifuga Appold. John Johnson Collection. Bodleian Library.
University of Oxford. <http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition> (7/02/08). 223
Figura 141. Máquina de envelopes no estande De la Rue’s Stationery.
John Johnson Collection. Bodleian Library. University of
Oxford. Disponível em: <http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition> (7/02/08). 223
Figura 142. Desenhos originais do Palácio de Cristal por Joseph
Paxton. 11 June 1850. 230
Figura 143. Levantando a viga mestra do corredor central. Construção
do Palácio de Cristal. The Illustrated London News, 1851.
Disponível em <http://www.victorianweb.org/ 230
Figura 144. Coluna do transepto. Construção do Palácio de Cristal.
The Illustrated London News, 1851. Disponível em The Victorian Web
<http://www.victorianweb.org/history/1851/39.html> (17/0308). 231
Figura 145. Levantando o telhado. Illustrated London News.
11 de dezembro de 1850. In: BRIGGS, Asa. Exhibiting the
Nation. History Today, January 2000. p. 18 231
Figura 146. Daguerreótipo do interior do Palácio de Cristal.
John J E Mayall, 1851. Disponível em:
<http://www.spartacus.schoolnet.co.uk/Dsmayall.htm> (2/09/07). 232
Figura 147. Vista geral do Palácio de Cristal. Dickinson's comprehensive
pictures of the Great Exhibition of 1851: from the originals
painted for H.R.H. Prince Albert / by Messrs Nash, Haghe,
and Roberts, R.A. London: Dickinson, Brothers, 1854. 233
Figura 148. Exterior do Palácio de Cristal com Kensington Gardens',
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1851. Litografia de Augustus Butler a partir de desenho original.


National Museum of Science & Industry <http://www.ingenious.org.uk> (2/09/07) 233
Figura 149. The Great Exhibition. Impressão em óleo por G. Baxter.
Disponível em: <http://spencer.lib.ku.edu/exhibits/greatexhibition/fairy.htm> (17/03/08). 233
Figura 150. "Grand Panorama of the Great Exhibition of All Nations".
Illustrated London News. 1851. Friends of the Library Fund,
Cooper-Hewitt, National Design Museum Library. Disponível em:
Smithsonian Institution Libraries. <http://www.sil.si.edu> (17/03/08) 234
Figura 151. Lenço para souvenir, com impressão de caricaturas de
estrangeiros e ingleses, dentre estes o Príncipe Albert e
Joseph Paxton. John Johnson Collection. Bodleian Library.
University of Oxford. Disponível em:

<http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition/> (21/07/07). 235


Figura 152. Abridor de envelopes. Lembrança da Great Exhibition. John
Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford.
Disponível em: <http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition/> (21/07/07). 235
Figura 153. Caixa para charutos. Lembrança da Great Exhibition. John
Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford.
Disponível em: <http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition/> (21/07/07). 235
Figura 154. Navalha Sheffield Town. Produzida por Hawcroft & Sons para
a Exposição de 1851, com o propósito de demonstrar a
habilidade dos artesãos da companhia. O Palácio de Cristal
aparece reproduzido na lâmina. The Crystal Palace Exhibition
Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão.
New York: Dover Publications, 1970. p. 222 235
Figura 155. Palácio de Cristal de Nova York para a Exposição da Indústria
de todas as Nações. Litografia, 1853. Harry T. Peters
'America on Stone' Collection, National Museum of American
History, Smithsonian Institution. Disponível em:
<http://americanhistory.si.edu/petersprints> (2/09/07) 236
Figura 156. Folheto de fabricante de gaiolas. Evanion Collection of
Ephemera. Collect Britain. The British Library. Disponível em:

<http://www.collectbritain.co.uk> (17/03/08) 236


Figura 157. Galeria superior. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte,
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impressão fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em: 237
Figura 158. Conjunto de esculturas. Palácio de Cristal. Philip Henry
Delamotte, imp. fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em:
<http://www.collectbritain.co.uk/> (17/03/08) 237
Figura 159. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte, impressão
fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em: 237
Figura 160. Detalhe da Figura 159 237
Figura 161. O transepto central. Palácio de Cristal. Philip Henry
Delamotte, impressão fotográfica, 1855. The British Library Board.
Disponível em: <http://www.collectbritain.co.uk/> (17/03/08) 238
Figura 162. All the World Going to See the Great Exhibition of 1851,
George Cruikshank (1792-1878), 1851. Disponível em:
<http://www.museumoflondon.org.uk/archive/exhibits> (3/06/07). 240
Figura 163. Agricultores na Exibição. In: The Illustrated London News
(19 July 1851): 101. Disponível em: The Victorian Web
<http://www.victorianweb.org/> (22/03/08) 240
Figura 164. Londres em 1851. The Great Exhibition. John Johnson
Collection. Bodleian Library. University of Oxford.
Disponível em: <http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition> (21/06/07) 241
Figura 165. Manchester em 1851. The Great Exhibition. John Johnson
Collection. Bodleian Library. University of Oxford.
Disponível em: <http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition> (21/06/07) 241
Figura 166. “Quadro feito a bico de agulha...” Recordações da Exposição
Nacional de 1861. Reprodução do álbum de 1861. Rio de
Janeiro: Confraria dos Amigos do Livro, 1977. 246
Figura 167. O Brasil na Exposição Internacional de Londres. Recordações
da Exposição Nacional de 1861. Reprodução do álbum de
1861. Rio de Janeiro: Confraria dos Amigos do Livro, 1977. 246
Figura 168. Pavilhão do Brasil no Campo de Marte e Torre Eiffel.
Exposição Universal de Pariz. 1889. Exposição Brazileira.
Álbum da Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty,
Rio de Janeiro. 248
Figura 169. Vitória Régia. Pavilhão do Brasil. Exposição Universal de
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Pariz. 1889. Exposição Brazileira. Álbum da Coleção


Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro. 248
Figura 170. Pavilhão de degustação de café. Exposição Universal de
Pariz. 1889. Exposição Brazileira. Álbum da Coleção
Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro. 249
Figura 171. Estante com compoteiras. Ao fundo, vitrine de mate e
cestaria. Exposição Universal de Pariz. 1889... 249
Figura 172. Vitrine com itens de perfumaria. À direita, moringas e
cerâmicas. Exposição Universal de Pariz... 249
Figura 173. Vitrines e estantes com pedras e minerais. À direita,
peles de animais e estante com compoteiras. Exposição
Universal de Pariz... 250
Figura 174. Estante e vitrines com produtos químicos e farmacêuticos.
Exposição Universal de Pariz... 250
Figura 175. Detalhe de estante com compoteiras. Exposição.. 250
Figura 176. Vista da nave leste, Palácio de Cristal, 1851. Aquarela e
guache sobre papel por John Absolon (1815-95). A estátua
original em bronze, de autoria de Eugène Simonis, encontra-
se em frente ao Palácio Real de Bruxelas. Ao pé da cópia em
gesso, vê-se pequenas esculturas em mármore do mesmo
autor. Victoria and Albert Museum, London. 252
Figura 177. Pavilhão austríaco. Ilustração do segundo volume de
Dickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibition of
1851, com trablhados de Nash, Haghe e Roberts RA, 1854. In
collection of: Science Museum Library. Disponível em:
<http://www.ingenious.org.uk> (2/09/07). 254
Figura 178. Pavilhão austríaco. Ilustração do segundo volume de
Dickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibition
of 1851, com trablhados de Nash, Haghe e Roberts RA,
1854. In collection of: Science Museum Library 254
Figura 179. Ilustração do Dickinson's comprehensive pictures of the
Great Exhibition of 1851, com trablhados de Nash, Haghe e
Roberts RA, 1854. Science Museum Library 255
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Figura 180. Interior do Palácio de Cristal. Fotografia de um par de


estereoscópio. Science Museum/Science & Society Picture
Library. Disponível em: <http://www.ingenious.org.uk> (2/09/07). 255
Figura 181. The Great Exhibition, Main Avenue. In: History and
description of the Crystal Palace, and the Exhibition of the World's
Industry in 1851. Gravura em metal a partir de desenhos
originais e daguerreótipos. London e New York, John Tallis
and Co., 1852. Disponível em:

<http://spencer.lib.ku.edu/exhibits/greatexhibition/exhibits.htm> (3/06/07). 255


Figura 182. Estante. Carl Keistler, Viena. The Crystal Palace Exhibition
Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile,
reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. 259
Figura 183. Candelabro em bronze. Mr. Pott, Birmingham. The Crystal
Palace… 259
Figura 184. Espelho para toilette em prata maciça. M. Morel. The Crystal
Palace… 259
Figura 185. Vaso de porcelana de Sèvres. The Crystal Palace… 260
Figura 186. Copo de vidro. Mr. Conne, Londres. The Crystal Palace… 260
Figura 187. Renda. Mrs. Treadwin lacer-manufacturer, Exeter. Design
Mr. C. P. Slocombe. The Crystal Palace… 260
Figura 188. Cadeira giratória. American Chair Company, Nova York.
The Crystal Palace… 260
Figura 189. Mesa. Michael Thonet, Viena. The Crystal Palace… 260
Figura 190. Carruagem. Mr. Clapp & Son, Boston, Estados Unidos. 261
Figura 191. Carruagem “Light Park Phaeton”. Mrs. H. & A. Holmes, Derby,
Reino Unido. The Crystal Palace… 261
Figura 192. Espelho. Viena, 1825. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 106 264
Figura 193. Settee. Áustria, cerca de 1820. In: OTTOMEYER, H.,
op. cit. p. 133. 264
Figura 194. Caixas de prata. Áustria, circa 1803. In: OTTOMEYER, H., op.
cit. p. 235 264
Figura 195. Pintura de Stephanie von Fahnenberg. Living Room de
Alexander von Fahnenberg at Wilhelmstrasse 69. In:
OTTOMEYER, H., op. cit. p. 155. 265
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Figura 196. Sofá. Viena, 1825-1830. In: OTTOMEYER, H.,


op. cit. p. 136. 265
Figura 197. Cadeira. Áustria, cerca de 1820. In: OTTOMEYER, H.,
op. cit. p. 128. 265
Figura 198. Padrões de cadeiras. Copenhagen, 1826. In:
OTTOMEYER, H., op. cit. p. 143 266
Figura 199. Cadeiras. Viena, 1825-1835. In: OTTOMEYER, H.,
op. cit. p.122 267
Figura 200. Cadeira em estilo Biedermeier fabricado, provavelmente por
Josef Danhauser. Hofmobiliendepot. Möbel Museum Wien.
Foto da autora. Arquivo pessoal. 267
Figura 201. Conjunto em estilo Biedermeier fabricado, provavelmente por
Josef Danhauser. Hofmobiliendepot. Möbel Museum Wien.
Foto da autora. Arquivo pessoal. 267
Figura 202. Fachada do prédio da Secessão, projetado em 1898 por
Josef Olbrich, com a inscrição Der Zeit ihre Kunst. Der
Kunst ihre Freiheit (“À época sua arte, à arte sua
liberdade”). Foto da autora. Arquivo pessoal. 268
Figura 203. Escrivaninha.Viena, cerca de 1850. In: OTTOMEYER,
H., op. cit. p. 84. 268
Figura 204. Console com mesa e espelho. Gutta-percha Company,
Londres. The Crystal Palace Exhibition Illustrated
Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão.
New York: Dover Publications, 1970. p. 222. 272
Figura 205. C. Sharps 4 calibre 22, primeira patente datada de 1859. O
cabo é de gutta-percha. Disponível em:
<http://www.neaca.com/Antique%20Arms%20and%20Armor.html> (11/04/08). 272
Figura 206. Par de tinteiros em guta-percha. França, 1860-1880.
Disponível em: <http://antiqueshoppefl.com/archives/jsheluk/inkwells.htm> (11/04/08). 272
Figura 207. Day Dreamer. Poltrona em papier-mâché. Design H. Fitz
Cook. Manufatura Jennings and Bettridge, Belgrave Square
and Birmingham. The Crystal Palace Exhibition Illustrated
Catalogue, London 1851. Fac-símile, 274
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA

Figura 208. Detalhe de cadeira em papier-mâché com pintura japonesa


feita sobre madeira. Manufatura Jennens & Bettridge,
Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850. Victoria and Albert
Museum, London. Disponível em: <http://www.vam.ac.uk> (12/04/08). 274
Figura 209. Pote para chá. Tea Caddy. Papier-mâché. Manufatura
Jennens & Bettridge, Birmingham, Inglaterra. 1851. Victoria
and Albert Museum, London. <http://www.vam.ac.uk> (12/04/08). 274
Figura 210. Caixa para trabalhos manuais. Papier-mâché. Manufatura
Jennens & Bettridge, Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850.
Victoria and Albert Museum, London. Disponível em:
<http://www.vam.ac.uk> (12/04/08). 274
Figura 211. Vista da nave oeste, interior do Palácio de Cristal, 1851.
Aquarela e guache sobre papel de Henry Clarke Pidgeon
(1807-80). Victoria and Albert Museum, London. Disponível em:
<http://www.vam.ac.uk> (12/04/08). 275
Figura 212. Figura e molde em barro. Museu Nacional de Antropologia,
Arqueologia e História. Lima, Peru. Arquivo Pessoal. 277
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W. J. T. Mitchell
The innocent eye is blind
O OLHAR INOCENTE É CEGO 31

1.
Introdução

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa


um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara
fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada,
suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu
rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia
de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.
Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os
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fragmentos. Mas uma tempestade o impele irresistivelmente


para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado
de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos
progresso.
Walter Benjamin, Sobre o conceito da história.

Para que olhar para trás, no momento em que é preciso


arrombar as portas do impossível.
Marinetti, Manifesto Futurista.

A presente pesquisa tem origem nos questionamentos surgidos a partir da


minha dissertação de mestrado.1 Naquele trabalho, ao investigar a composição
gráfica das notícias do Jornal Nacional entre os anos de 1983 e 2002, observei a
ocorrência de modificações estruturais na visualidade do telejornal, não
necessariamente vinculadas à temática apresentada, ao momento político do país
ou à situação planetária. Alterações formais, no encadeamento e na velocidade de
veiculação das matérias e “cabeças” eram evidentes e pareciam relacionadas às
tecnologias empregadas. As edições, cada vez mais aceleradas e fragmentadas,

1
KOSMINSKY, Doris. A imagem da notícia: panorama gráfico do telejornal brasileiro. Análise dos selos do
Jornal Nacional. Orientador: Luiz Antonio Coelho. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2004. Dissertação.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 32

resultavam em trechos de imagem sempre mais curtos. Estas observações na


dinâmica das imagens gráficas fizeram-me questionar até que ponto as
transformações tecnológicas exercem influência sobre o modo que as pessoas
assistem a programação e visualizam as imagens. Em outras palavras, em que
medida as tecnologias influenciam o sujeito contemporâneo na sua formação de
habitus2 e conseqüente mudança no modo de olhar? Seria esta influência limitada
às tecnologias imagéticas?

Esta tese investiga a idéia de que algumas características relacionadas aos


modos de olhar do sujeito contemporâneo, como a fragmentação da identidade e o
descentramento do sujeito ou “reembaralhamento do eu”3, encontram suas origens
no século XIX, na experiência sucessiva de estímulos produzidos pelo ambiente
crescentemente povoado por artefatos industriais. A nossa hipótese considera que
o modo de olhar construído neste período continua exercendo influência sobre a
maneira com a qual nos relacionamos com a cultura visual contemporânea. Esta
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pesquisa também contempla as tecnologias que provocaram mudanças nas


dimensões de tempo e espaço, consideradas uma influência marcante neste
processo. Não se trata de abraçar um posicionamento determinista em relação à
atuação das tecnologias sobre as modificações na cultura visual, mas considerá-las
como elemento atuante em um contexto de diversos outros vetores.

Na época atual, as novas tecnologias digitais e a cibercultura têm sido


apontadas como agentes decisivos de transformações do olhar. Em acordo com o
impulso das mediações tecnológicas sobre as mudanças perceptivas e sociais, este
trabalho busca localizar continuidades e contradições da cultura visual do século
XIX.
Estudos arqueológicos das mudanças perceptivas do observador tornaram-
se mais freqüentes a partir da década de 1990, com a divulgação da pesquisa

2
Para Bourdieu, habitus são estruturas mentais de percepção, através das quais os agentes apreendem e
interiorizam o mundo social. As pessoas não vivem suas vidas de acordo com tomadas de decisões livres, mas
ao contrário, se encontram submetidas às limitações do habitus e das condições objetivas do campo social.
Assim, o habitus tende a reproduzir o sistema de condições onde é produzido. Não se trata simplesmente da
ação e produção de práticas, mas, também, de um sistema de percepções e apreciações - conscientes e
inconscientes - dessas práticas. Em outras palavras, as práticas convencionais são construídas socialmente,
mas elas não são coerções exteriores aos sujeitos. Ao contrário, elas são desenvolvidas, ensinadas,
aprendidas, codificadas e decodificadas dentro de um determinado ambiente social. Seus co-autores
obedecem aos seus desígnios coletivamente ao mesmo tempo em que têm o poder de rejeitá-las ou
transformá-las. Ver BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Editora Perspectiva:
2004 e O poder simbólico. São Paulo, Editora Bertrand Brasil: 2005.
3
SCHORSKE, C. E. Viena fin-de-siècle. Política e cultura. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 13.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 33

desenvolvida por Jonathan Crary sobre a utilização de aparatos ópticos na


primeira metade do século XIX. O autor sugere que o observador moderno e sua
competência perceptiva foram forjados através da utilização de novos
instrumentos ópticos que requisitavam uma maior participação atentiva e corporal
do sujeito. Deste modo, estabelece uma distinção entre espectador e observador,
ressaltando sua ressonância etimológica. Ao contrário de spectare, raiz latina de
“espectador”, a origem de “observar” não significa literalmente “olhar para”.4
“Espectador” é “aquele que vê qualquer ato”, o que lhe impinge passividade,
enquanto o termo “observador” sugere significações mais interligadas ao sentido
do olhar (“examinar minuciosamente; olhar com atenção; estudar; espiar,
espreitar”) como, também, ampliações deste conceito (“cumprir ou respeitar as
prescrições ou preceitos; obedecer a; praticar”). A questão da atenção é alvo de
Crary e foi aprofundada em estudos posteriores.5 A nossa pesquisa não se prende
a esta questão e considera que o sujeito moderno, surgido a partir do século XIX,
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reveza sua condição de observador e espectador, na medida em que vive a


dificuldade crescente de fixar o olhar sobre apenas um elemento, imagem ou
objeto. Este trabalho sustenta a alternância permanente entre o olhar atento do
observador e sua capacidade de compartilhar diversas experiências em uma
mesma situação perceptiva, deixando-se levar por elas. É como se flâneur e
badaud coexistissem nos habitantes das grandes cidades, apesar da diferença
apontada por Benjamin:
Não vamos, todavia, confundir o flanador com o badaud: há uma nuance... o
simples flanador está sempre em plena posse de sua individualidade; a do badaud,
ao contrário, desaparece absorvida pelo mundo exterior... que o impressiona até a
embriaguez e o êxtase. Sob a influência do espetáculo que se oferece a ele, o
badaud se torna um ser impessoal; já não é um ser humano; é o público, é a
multidão.6

O presente trabalho considera, ainda, que a construção do olhar é realizada


em camadas, isto é, os modos de olhar anteriores não são simplesmente superados,
mas absorvidos nos modos subseqüentes. Não se trata, no entanto de uma
seqüência linear e natural. Muito pelo contrário. A construção de um modo de

4
Ibid., p.5.
5
CRARY, Jonathan. Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture. Massachusetts: The
MIT Press, 2000.
6
Victor Fournel, Ce qu’on voit dans les rues de Paris (O Que se Vê nas Ruas de Paris), Paris, 1858, p. 263,
(L’odyssée d’um flâneur dans les rues de Paris)”. In: BENJAMIN, Walter. O flâneur. Obras escolhidas III.
Charle Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. 3ª edição. 2ª reimpressão.
p. 202.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 34

olhar é submetida a inúmeras contradições além da alternância de modos de visão


em um mesmo individuo.
A possibilidade de coexistência de diversos modos de olhar e sua
superposição na formulação de modos subseqüentes aparece justificada em um
trabalho posterior de Jonathan Crary.7 O autor apresenta a gravura Southwark Fair
de 1733 (Figura 1) para exemplificar a coexistência de formas pré-modernas e
modernas em uma mesma cultura visual. A figura de Hogarth retrata uma feira
com ares de carnaval. Em uma agitada cena de rua vêem-se artistas, passantes,
músicos, negociantes e até um funâmbulo. Para o autor a obra sugere uma grande
mistura de modalidades sensíveis8, mas apresenta um diferencial. No canto
inferior direito desta representação, dois sujeitos parecem absorvidos, um de cada
lado de uma caixa, onde observam um peep show (Figura 1). Para Crary estas
figuras sugerem o modelo dominante da cultura visual ocidental com evidência da
relativa separação entre o observador e seu ambiente na observação de uma
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imagem. Deste modo, o sujeito ‘multifacetado’ das feiras “é transformado em um


espectador individualizado e auto-regulado”.9

Figura 2. William Hogarth. Southwark


Fair, 1730. Gravura. Detalhe

Figura 1. William Hogarth. Southwark Fair, 1733.


Gravura. Disponível em <http://www.tate.org.uk/> (22/07/07).

Em busca de uma imagem que se aproximasse do tipo de olhar que nos


interessa neste estudo, chegamos à moça retratada por Manet em Le Chemin de fer
de (Figura 3). A mulher seria a acompanhante da menina, a quem vemos de
costas, segurando a barra de ferro, atraída pela nuvem de vapor e fumaça que,

7
CRARY, Jonathan. Géricault, the Panorama, and Sites of Reality in the Early Nineteenth Century : Grey
Room (New York), v. 9, p. 5-25, Fall 2002.
8
Ibid., p. 8.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 35

provavelmente, indica o trem, ícone da velocidade e da modernização. No seu


colo, vemos um cachorrinho que dorme e um livro aberto. A leitura parece se dar
entre avanços e recuos, já que o indicador da mão direita marca um outro ponto de
leitura, mais à frente. A pintura retrata um momento efêmero, o segundo em que
algo ou alguém fez com que a leitura do livro fosse interrompida. Para Clark, em
sua explicação criticada pelas feministas, o olhar da moça conduz ao “transeunte
masculino”.10 Não nos importa quem ou o quê tenha motivado o olhar que
prolonga o quadro para fora da tela. O que nos interessa é esse momento efêmero
em que a moça faz uma pequena pausa da sua leitura para observar algo que lhe
chama a atenção no ambiente urbano de grandes transformações. Uma pintura é,
como observa Clark, um trabalho lento e feito sem pressa.11 Esta aparente
contradição, a representação de um instantâneo do olhar produzida por uma
técnica que demanda um processo lento, ressalta a intensidade efêmera da vida
urbana, sua fluidez e as acidentais troca de olhares. É um olhar entre o blasé e o
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curioso, um modo de olhar característico da vida moderna, como o que


abordaremos na nossa pesquisa.

Figura 3. Edouard Manet, Le Chemin de fer, 1872. Disponível em:


<http://foucault.info/documents/img/manet/manet8.jpg> (22/07/07).

9
Ibid., p. 11.
10
CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004. p. 22.
11
Ibid., p. 19.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 36

Nosso trabalho se constitui em uma pesquisa teórica, qualitativa e


exploratória, em que foi utilizado um ângulo de abordagem histórico-cultural. De
acordo com este tipo de pesquisa, buscamos elementos do passado de modo a
desenvolver uma melhor compreensão dos fenômenos presentes.12 Em uma
pesquisa qualitativa, há o pressuposto da existência de uma “uma relação
dinâmica, uma interdependência entre o mundo real, o objeto da pesquisa e a
subjetividade do sujeito”.13 Santaella observa que na medida em que o objeto
pesquisado deixa de ser tomado como um dado inerte e neutro, o sujeito torna-se
um elemento integrante do processo de conhecimento, capaz de atribuir
significados ao que é pesquisado14. A pesquisa qualitativa, como é o caso da nossa
investigação, é utilizada, de uma maneira geral, quando há uma relação entre o
tema, a história de vida e de pesquisas anteriores. O enfoque crítico foi sustentado
em acordo com o que Rose apresenta na sua introdução para uma metodologia
visual, onde considera três aspectos fundamentais a este tipo de abordagem15. Em
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primeiro lugar, a necessidade de dar a devida importância às imagens, analisando-


as cuidadosamente. Depois, avaliar as condições sociais e os efeitos do objeto
visual e, finalmente, considerar o próprio modo com o qual o pesquisador vê as
imagens, na medida em que os modos de ver recebem influências históricas,
culturais e sociais. Em concordância com este posicionamento crítico,
estabelecemos um diálogo entre, de um lado a nossa “intuição”, formatada sobre
um conhecimento prévio e, de outro, o material de investigação.

A nossa pesquisa foi realizada sobre diversos tipos de documentos. Como


fontes primárias, utilizamos gravuras, textos e fotografias do século XIX e do
renascimento, além de imagens contemporâneas, entremeadas com teoria de
diversos autores, do século XIX até o presente, de modo a contemplar os estudos
de cultura visual. Os textos e ilustrações de época foram sendo descobertos ao
longo da investigação.

A originalidade do tema dificultou a limitação rígida do quadro teórico a


um pequeno número de autores. Por este motivo, a utilização da referência
bibliográfica foi ampla e se estendeu por diversos autores como John Ruskin,

12
SANTAELLA, Lucia. Comunicação e Pesquisa. São Paulo: Hacker Editores, 2001. p. 147.
13
CHIZZOTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 1991. p. 9 apud
SANTAELLA, L. op. cit., p. 143.
14
SANTAELLA, L. op. cit., p. 143.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 37

Baudelaire, Panofsky, Nelson Goodman, E. A. Gombrich, Jonathan Crary, De


Certaeau e Walter Benjamin, dentre outros. A utilização da teoria foi
fundamentada no diálogo entre a própria teoria e textos jornalísticos ou críticos de
autores do século XIX.
Apesar dos estudos sobre a visualidade remeterem diretamente às
mudanças observadas nas práticas de representação artísticas, não nos fixamos
metodologicamente à história da arte. Salvo por um ou outro exemplo utilizado,
não empregamos especificamente autores e exemplos deste campo que
consideramos bastante explorado e distante da nossa proposta. Também optamos,
no estudo do século XIX, a não analisar diretamente nenhuma tecnologia
produtora de imagens, como o cinema ou a fotografia de modo a determinar sua
influência na construção do olhar. Em nosso ponto de vista, estas tecnologias
específicas foram amplamente estudadas e fazem parte de um processo mais
amplo de padronização do olhar que vemos iniciado antes de sua invenção. Deste
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modo, os panoramas e a fotografia serão mencionados dentro de contextos


particulares, o primeiro ao ser associado ao modo de olhar influenciado pelas
tecnologias de compressão tempo-espaço e, a segunda, na conjuntura de tentativa
de controle sobre o ambiente urbano.

A nossa pesquisa estabelece dois diferentes modelos, ou momentos do


olhar. Antes de abordarmos diretamente a construção destes dois modos, será
interessante retomar o importante estudo da visão moderna de Jonathan Crary.
Crary baseia sua hipótese no estudo dos dispositivos ópticos, originalmente
desenvolvidos nos laboratórios de fisiologia das primeiras décadas do século XIX,
e que migraram para as feiras populares e residências de uma crescente classe
média urbana. Seu estudo compreende o conhecimento sobre um corpo cada vez
mais submetido à disciplina, regulação e investigação. A visão moderna ou a
cultura de uma nova maneira de olhar teria sido definitivamente atrelada a um
corpo em movimento, rompendo com um modelo representado pela câmera
escura. Este conceito é reforçado por uma frase de Maine de Biran, um dos
primeiro filósofos do século XIX a pensar sobre a percepção: “a alma é

15
ROSE, Gillian. Visual Methodologies. London: Sagge Publications, 2001. p. 11-12.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 38

necessariamente encarnada, não existe psicologia sem biologia”.16 Crary


considera que os estudos ópticos abalaram os modelos de representação da visão
derivados da Renascença. De modo que, para compreender visão e a cultura
moderna, assim como a nova cultura visual, segundo este autor, não se deve
observar a pintura modernista das décadas de 1870 e 1880, mas a reconfiguração
da visão ocorrida na década de 1840 quando um novo tipo de observador foi
constituído.17 A expressão estética moderna é conseqüência e não causa das
mudanças.
A nossa compreensão do fenômeno da visualidade pretende-se mais
ampla, com a conceituação do olhar moderno, consolidado a partir de um novo
modo de vida urbana desenvolvido ao longo de um período de transformações
fundamentais, a segunda metade do século XIX.

Esta tese se constitui sobre dois diferentes paradigmas de construção da


visualidade: o olhar ciclópico ou clássico, relacionado à fundamentação da
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convenção da perspectiva e construído ao longo da Renascença e o olhar


panorâmico, arquitetado sobre as transformações urbanas, a profusão de objetos e
imagens e a compressão tempo-espaço gerada pelas novas tecnologias de
transporte e comunicação a partir da segunda metade do século XIX. Estes dois
modos de olhar são analisados, respectivamente no segundo e terceiro capítulos,
enquanto o quarto analisa uma pedagogia de fixação do olhar que foi construído.
O capítulo dois, voltado para o olhar ciclópico, se inicia com uma
discussão sobre a representação e a possibilidade de uma imagem transmitir a
verdade. Em seguida, analisa a visão monocular produzida pela perspectiva, seus
paradoxos e sua naturalização. Neste contexto, também consideramos a
combinação entre a perspectiva e a gravura como fundamental para o
desenvolvimento da ciência e das tecnologias ocorrido a partir do Renascimento.
O final deste segundo capítulo aborda a utilização de alguns aparatos do olhar
desenvolvidos na Renascença sob os pontos de vista do entretenimento, da ciência
e da metáfora.

16
BIRAN, Maine de. Influence de l’habitude sur la faculté de penser [1803]. Paris: Ed. P. Tisserand, 1953,
pp. 56-60. apud CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth
century. Massachusetts: The MIT Press, 1992. p. 73.
17
CRARY, J. op. cit., p. 149.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 39

O terceiro capítulo, dedicado ao olhar panorâmico, que foi construído a


partir da segunda metade do século XIX, se apresenta dividido em três partes. Ele
se inicia com algumas considerações, voltadas para a compreensão de termos
como modernidade e modernização e segue com questionamentos sobre a
validade do termo “revolução industrial” em relação aos primeiros tempos da
industrialização e do emprego de tecnologias resultantes de pesquisas científicas.
Prosseguindo com a discussão sobre a influência das tecnologias na construção do
olhar, optamos por analisar a implantação da eletricidade e alguns de seus
reflexos. Na segunda parte deste mesmo capítulo, dirigimos um olhar às
modificações da cidade urbana ao longo do século XIX e sua influência sobre a
produção de um novo olhar. Deste modo, estudamos as reformas urbanas, o
surgimento da multidão, a profusão de impressos que inunda a cidade e a própria
visão do morador. Ressaltamos a idéia da permanência da novidade como forma
de produção de choques perceptivos destinados a atrair a visão dos homens e
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mulheres saturados por informações. Em seguida, abordamos uma tentativa que


foi empregada para o controle deste também novo ambiente urbano, organizada
basicamente sobre imagens fotográficas e medidas dos moradores da cidade com a
intenção de restringir e direcionar o olhar que fora aberto a um novo mundo de
possibilidades. Finalmente, na última parte do terceiro capítulo, analisamos as
percepções produzidas a partir do emprego de tecnologias geradoras da
compressão tempo-espaço. Em se tratando de século XIX e da nossa opção por
não utilizar tecnologias produtoras de representações, a tecnologia analisada é a
ferrovia. É sobre ela que traçamos a construção do que chamamos de olhar
panorâmico e que se explicita em um pequeno texto sobre os panoramas
propriamente ditos. Este novo olhar, ao mesmo tempo em que criou novas
possibilidades perceptivas, também necessitou de processos de padronização,
como é o caso da estandardização do tempo, que fecha o capítulo.
O quarto capítulo trata da fixação do olhar configurado ao longo do século
XIX, através de uma pedagogia voltada para as instituições industriais e o
conceito de progresso. Para esta análise utilizamos as Exposições Universais,
sobretudo a primeira delas, realizada na Londres em 1851, por tratar-se de um
fenômeno basicamente visual e voltado para um público amplo. Sob este aspecto,
as Exposições Universais sintetizam a experiência obtida posteriormente com
outras tecnologias que se voltaram para a massa e, também, com o que foi
O OLHAR INOCENTE É CEGO 40

conceituado como espetáculo. A possibilidade de realizar esta análise sobre as


Exposições e não sobre tecnologias de comunicação e produção de imagens,
busca captar o primeiro momento da experiência de uma nova cultura visual,
recentemente desenvolvida. Também consideramos que, além disso, as
Exposições Universais têm o mérito de ressaltar a ascensão do campo do design,
tanto a partir da exibição de produtos desenvolvidos pela indústria quanto pelas
discussões que parecem mostrar-se, pela primeira vez, relevantes para esta área.
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O OLHAR INOCENTE É CEGO 41

2.
O olhar ciclópico e a verdade da imagem

Este capítulo trata da construção do olhar clássico ou renascente.


Apontamos alguns fatores que corroboraram na emergência e predomínio desse
modelo, as conseqüências contemporâneas de sua ascensão e certos efeitos
posteriores que evidenciam suas influências. A nossa intenção principal é expor,
no olhar clássico, a formação do habitus da visualidade ocidental, fundamentada
sobre a racionalização. Deste modo, levantamos algumas continuidades que
serviram de alicerce para desenvolvimentos posteriores, predominantemente a
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partir da aceleração da produção de objetos manufaturados. Neste momento não


será demais repetir algumas ressalvas. Em primeiro lugar, há que se ter em mente
a idéia de “um olhar do período”, ou seja, um olhar mais ou menos geral, sem
atribuições de gênero ou de idade, mas principalmente uma cultura visual imbuída
por características específicas de determinada época e local. Em segundo lugar, e
aqui buscamos apoio em Jonathan Crary e sua descrença quanto à possibilidade de
uma história do olhar18: não é nossa pretensão construir uma história da
visualidade do olhar, mas integrar o olhar à história das forças e regras que atuam
na construção dos campos onde a percepção visual acontece. Diga-se a propósito
que, uma história que pretenda incluir a visualidade deve ser em parte uma
narrativa dos instrumentos visuais, suas construções, tecnologias e registros das
representações e, de outra parte, suas configurações sociais e as - menos tangíveis
- práticas cognitivas influentes na formulação das convenções e habitus.
Deste modo, embora a constituição de uma nova forma de olhar seja
geralmente associada às mudanças observadas nas práticas de representação
artísticas, não nos ateremos a esta metodologia, salvo por um ou outro exemplo
utilizado de forma quase metafórica. Em outras palavras, na abordagem da

18
CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century.
Massachusetts: The MIT Press, 1992. p. 6.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 42

constituição do olhar “clássico”, não nos ateremos predominantemente a autores e


exemplos da história da arte, campo que consideramos bastante explorado e
distante da nossa proposta. Além do que, como afirma o historiador da arte Martin
Kemp, em relação à problemática utilização da pintura como prova de emprego da
técnica: os meios são inferidos das pinturas e depois são responsabilizados por
seus efeitos, de forma potencialmente circular.19 Deste modo, a utilização de
exemplos da história da arte apoiará a discussão sobre a visualidade do período,
sem constituírem o eixo da discussão.
Em nossa opinião, os artefatos não são apenas reflexos de mudanças
ocorridas em um determinado período e lugar, mas elementos ativos nas
transformações sociais e agentes decisivos na construção do olhar, principalmente
quando se trata de aparatos visuais. Este pensamento encontra suporte em Hanna
Arendt, na sua compreensão da invenção do telescópio como fator fundamental de
configuração da Era Moderna. Para Arendt, “não são idéias, mas eventos que
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mudam o mundo: o sistema heliocêntrico, como idéia, é tão velho quanto a


especulação pitagórica e tão persistente em nossa história quanto as tradições
20
neoplatôncias, e nem por isso jamais mudou o mundo ou a mente humana” .
Apesar da consideração da autora de que “em contraposição aos eventos, as idéias
nunca são inéditas”21, acreditamos que também os eventos não surgem de repente.
A história é repleta de exemplos de tecnologias que se encontravam pronta há
anos, quando finalmente foram implementadas. As tecnologias que moldaram a
visão moderna não constituem exceção. Apesar disso, não iremos traçar o
desenvolvimento histórico, apontar origens e desdobramentos de cada um destes
artefatos, mas chamar a atenção para as conseqüências e influencias da utilização
destas invenções e sua participação social sobre a construção do modo de olhar
delineado a partir da renascença.
A construção do olhar clássico será abordada a partir da formulação das
tecnologias visuais desenvolvidas no período e convertidas em atores
fundamentais das mudanças ocorridas na forma de organização e construção do
olhar clássico. De um lado, analisamos o emprego da perspectiva e a utilização de

19
KEMP, Martin em carta para o autor. HOCKNEY, David. O conhecimento secreto – redescobrindo as
técnicas perdidas dos grandes mestres. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 232.
20
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Forense Universitária, 2005. p.
285.
21
Ibid., p.271.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 43

outros aparatos tecnológicos da visão, como por exemplo, os pespectógrafos e a


câmera escura, que utilizam princípios ópticos, na sua atuação como auxiliares da
prática do desenho. Neste contexto, apontamos indícios da padronização e
racionalização do olhar a partir da implementação e desenvolvimento de algumas
destas técnicas e sua posterior “naturalização”. De outro, demonstramos que estes
mesmos instrumentos atendiam a funções de entretenimento através da produção
de “efeitos de mágica”. Deste modo, embora procuremos nos fixar sobre a
influência destes artefatos na construção da visualidade da época, não podemos
deixar de reconhecer sua ascendência sobre a constituição de uma cultura visual
posterior, onde se insere o campo do design. No entanto, não poderíamos discutir
algumas dessas tecnologias visuais sem discutir também a questão da
representação e da “realidade” da imagem representada ou, se preferirem, sua
capacidade de transmitir a verdade. Com essas questões abrimos o capítulo.
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2.1. A representação do que “é”

Figura 4 - Charge de Alain. Publicada em 1955 em The New Yorker


Magazine. Retirada da reprodução de GOMBRICH, E. H. em Arte e Ilusão. p. 2.

Como descrever o olhar de homens e mulheres que viveram há cinco ou dez


séculos atrás? Mesmo que existissem relatos que descrevessem estes modos de
visão, como seria possível “traduzi-los” de acordo com a nossa compreensão do
O OLHAR INOCENTE É CEGO 44

olhar? Em sua deleitável história das listras, Michel Pastoureau levanta a hipótese
de que o caráter depreciativo e pejorativo em relação às listras, identificado em
documentos a partir do século XII, poderia ser justificado por alguma
problemática visual22. De acordo com esta hipótese, a sensibilidade do homem da
Idade Média era abalada pela aparência de uma estrutura onde figura e fundo
pareciam indistinguíveis - o que provavelmente acontecia na observação de
tecidos listrados. Para Pastoureau, o olho medieval era particularmente “atento à
leitura por planos”: toda imagem lhe parecia como que recortada em camadas,
dando a idéia de uma superposição de planos sucessivos. Assim, uma figura era
observada pelo homem medieval a partir do plano de fundo; o olhar atravessaria
todos os planos sucessivos e intermediários para terminar no plano frontal. Este
modo de olhar o ambiente provocaria situações de desconforto na visualização de
figuras com superfícies listradas ou axadrezadas.23 O incômodo seria causado pelo
“diferente”, o fora do padrão. Algo tão valorizado pela arte e pelo design do nosso
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tempo, a varietas no latim medieval, carregava, na Idade Média, a noção de


impuro, de agressivo ou imoral. Trata-se de uma concepção muito afastada da
sensibilidade da nossa época que valoriza a “variedade”, sob a forma da novidade
- o sempre novo inseparável da idéia de juventude. Concepção diametralmente
oposta à encontrada na Idade Média, onde um bom cristão, um homem honesto
não poderia ser varius. “A varietas é parente do pecado e do inferno”.24 O temor
pela visão do “diferente” aparece de forma bem clara no texto de Erasmo de
Rotterdam, do ano de 1523: Diversoria. Ao descrever as diferenças nas maneiras
observadas em estalagens alemãs e francesas, Erasmo aponta detalhes de uma
hospedaria alemã. Nesta exposição ficam evidentes as dificuldades que um
“estranho” encontrava ao chegar ao país. “Os outros olham-no fixamente, como
se ele fosse um animal fabuloso vindo da África”.25 Não é nossa intenção, com
este exemplo, afirmar que o estranhamento em relação ao diferente seja algo
inexistente em nossa sociedade. Apenas temos segurança de que as coisas são
mais complexas e menos absolutas em nossa época. O diferente pode tanto ser
rejeitado, como aclamado. E estas duas recepções muitas vezes acontecem
simultaneamente ou seqüencialmente. Apesar de pensarmos o diferente como um

22
PASTOUREAU, M. O pano do diabo. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p. 15-16.
23
Id.
24
Ibid., p 38-39.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 45

emaranhado contextual extremamente influente nas questões perceptivas, este não


vem a ser o foco dessa pesquisa. Neste momento, é importante, apenas, ressaltar a
idéia do diferente como histórica e inseparável do modo como as pessoas
percebem seu ambiente.

Figura 5 - O jardim de Nebamun, c. 1400 a. C.


Retirado de GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. p. 60.
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A sugestão de que as pessoas de outras épocas percebiam a natureza de um


modo diferente do nosso é representada com humor no cartum de Alain (Figura
4). O chargista apresenta uma aula de modelo vivo onde estudantes egípcios
retratam uma jovem modelo em pose semelhante à encontrada nas pinturas
egípcias. Ernst Gombrich discute, a partir deste desenho, o que compreende como
“enigma de estilo”, a existência de estilos de representação do mundo visível
relacionados a diferentes épocas e lugares e dissociado da expressão de uma visão
pessoal26. O desenho de Alain parece sugerir que o modo como vemos o mundo
está implicado diretamente no modo como o reproduzimos. Deste modo, somos
atraídos pela idéia cômica de que os egípcios viam um mundo sem profundidade,
com as pessoas sempre de perfil, como o posicionamento da modelo da classe de
Alain (Figura 4). Mas, Gombrich não sugere que este era o modo como os
egípcios viam o mundo. Segundo este historiador da arte, os antigos egípcios não
procuravam reproduzir o mundo do modo que viam, mas do modo que, para eles,
suas idéias ficassem mais claras ou, ainda, do modo em que melhor conheciam o
que queriam representar. Desenhavam de memória, de acordo regras estabelecidas

25
ELIAS, N. O processo civilizador. Vol. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. p. 84
26
GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p.3-4.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 46

e utilizando o ângulo de observação mais característico do objeto representado.27


Assim, no desenho egípcio de um jardim com árvores e um tanque com peixes e
aves, vemos as árvores vistas de lado e o tanque visto de cima, embora peixes e
aves estejam representados de lado (Figura 5). W. J. T. Mitchell considera
problemática a leitura que Gombrich faz do cartum e afirma que nela se encontra
implícita a sugestão de que os egípcios percebiam o mundo de um modo
diferente.28 Este último autor observa, ainda, que, no cartum, os antigos egípcios
são apresentados como iguais a nós: desenham do mesmo modo que em qualquer
aula de modelo vivo da nossa época. Em outras palavras, os alunos egípcios do
cartum de Alain fazem uso das mesmas convenções de desenho do nosso tempo,
embora obtendo um resultado diferente. Apesar da discordância sugerida, Mitchell
não pretende estabelecer uma oposição entre duas interpretações, uma verdadeira
e outra falsa. Mas, entre duas interpretações que, embora opostas e contraditórias,
constituem um diálogo.
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Não nos parece improvável que os egípcios vissem o mundo de uma forma
diferente da nossa, mas isso não nos parece configurar uma explicação exclusiva
para o fato de eles representarem o mundo que viam de forma própria. Rudolf
Arnheim observa que a “inaturalidade” das figuras egípcias para um observador
moderno ocorre porque este julga as obras egípcias por padrões diferentes dos que
foram utilizados na sua realização29. Esse argumento encontra eco em Mitchell: “o
estereótipo do ‘mesmo’ que projetamos nos egípcios é na verdade o reflexo de
nossas convenções”.30 Deste modo, se nos parece fato que os egípcios possuíam
um modo próprio de ver o mundo, isso não se passava a partir dos mecanismos
sugeridos comicamente pelo cartum de Alain. As características de observação e
as convenções utilizadas para a reprodução da natureza observada por uma
determinada cultura e época se encontram intimamente relacionadas ao modo
como esta cultura representa a sua visão de mundo. A idéia de representação está
diretamente ligada a uma forma de olhar – embora o modo como esta relação se
estabeleça apresente variações, principalmente a partir da segunda metade do

27
Ibid., p.60-61.
28
MITCHELL, W. J. T. Picture Theory: Essays on Verbal and Visual Representation. Chicago: The
University of Chicago Press, 1995. p.44.
29
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Livraria
Pioneira Editora, 1986. p.105.
30
MITCHELL, T. op. cit., p.45.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 47

século XIX. Mas, em que medida a imagem pode ser compreendida como
“representação”?
Nosso ponto de partida se encontra na compreensão da imagem como algo
além da representação. A imagem pode não vir a ser uma representação, mas será
sempre apresentação. Representações são artefatos e podem ser parcialmente
definidos a partir do propósito de seus produtores, principalmente em relação ao
funcionamento específico do artefato. A representação nos fala de uma identidade
e seus signos, mas a vinculação direta com o olhar de sua própria época deve ser
cuidadosa na medida em que sua construção material e simbólica pode estar mais
relacionada ao passado do que ao contemporâneo. Indique-se a propósito, a
afirmação de Crary em relação à pintura modernista dos anos 1870 e 1880 ser
vista, em seu trabalho, como sintoma tardio ou conseqüência de um processo
iniciado por volta de 182031. De outra maneira, a apresentação relaciona-se com
presença e, portanto, com o self e o tempo presente. Neste sentido, a idéia de
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imagem enquanto apresentação aproxima-se do olhar de um observador


corporificado, sujeito e produtor de práticas e artefatos que o fazem ator.32
Outra abordagem da questão da “representação” 33 pode ser encontrada na
Teoria dos Símbolos de Nelson Goodman. Para este autor, uma imagem
representa alguma coisa na medida em que descreve esta coisa, como um
predicado que lhe pode ser aplicado34. Segundo Goodman, a forma mais simplista
de se compreender a representação é através da semelhança: algo como “A
representa B na medida em que A é semelhante a B”.35 Mas, essa abordagem
traduz um equívoco que pode ser exposto a partir da simples premissa de que um
objeto é semelhante a si mesmo em grau máximo, mas raramente se representa.
Deste modo, como observa Goodman, semelhança não é condição necessária nem
suficiente para a representação. A semelhança, ao contrário da representação, é

31
CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century.
Massachusetts: The MIT Press, 1992.
32
Veja a idéia de “fabricação”, a partir do conceito de tática desenvolvido por de Certeau. CERTEAU,
Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.
33
A língua portuguesa coloca uma grande dificuldade na substituição do termo representação. O idioma
inglês conta com a palavra representing para simbolizar, descrever, e, claro, representar. O termo picturing se
coloca para descrever, mas também para sentidos mais literais como pintar, desenhar e, possivelmente,
visualizar. Não encontrei nenhuma equivalência no português. Acredito que o termo “desenhar” seja bastante
restritivo, não correspondendo ao “descrever” do picturing. Por este motivo, encontrei dificuldades em evitar
a utilização do termo “representar” em um modo que a Teoria de Goodman repele, ou seja, a partir da
semelhança.
34
GOODMAN, N. Languages of Art. Indianapolis: Hackett Publishing Co, 1976. p. 30.
35
Ibid., p.3 et seq.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 48

reflexiva e simétrica. B é como A, na medida em que A é como B, mas uma


pintura pode representar o Duque de Wellington, enquanto o Duque não
representa a pintura. Um par de sapatos apresenta semelhanças, mas um dos
elementos do par não representa o outro. Embora a noção de representação
figurativa tenha sido pensada a partir do conceito de semelhança desde Platão,
Goodman considera que uma imagem representa um objeto na medida em que
funciona como um símbolo para este objeto, está para (stand for), se refere a ele.36
A semelhança é descartada como noção de referência na medida em que quase
tudo pode se assemelhar a tudo. Um quadro de um castelo será sempre mais
parecido com outro quadro do que com o castelo, apesar de representar o castelo e
não o outro quadro37. De que modo, então, a noção de semelhança pode ser
aplicada a uma imagem que representa algo, sendo semelhante a este algo sobre
certos aspectos? Neste caso, o problema apenas se desloca para a determinação de
quais propriedades pictóricas podem ser utilizadas para a comparação através da
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semelhança. Diversas características pictóricas podem ser empregadas para este


fim como, por exemplo, a forma, o tamanho, a cor, as texturas etc.38 Goodman
considera que não existe uma fórmula que possa ser aplicada de modo universal e
que cada situação deve ser estudada individualmente de acordo com os contextos
específicos de criação da obra e de interpretação. Por outro lado, a questão da
semelhança é, de fato, inseparável, da idéia de um ponto de vista em determinado
tempo e espaço. A percepção de uma semelhança visual entre dois objetos será
sempre relativa a um ponto de vista: “este objeto, visto deste ponto de vista,
parece-se com aquele objeto, visto daquele ponto de vista”.39
Como devemos compreender o conceito de que uma imagem se propõe a
atender a expectativa de reprodução da realidade? A partir da formulação
desconcertante de que para se obter uma imagem fiel deve-se copiar o objeto “tal
qual ele é”, Nelson Goodman indaga-se sobre o que constitui um objeto tal qual
ele é, “porque o objeto que está diante de mim é um homem, um enxame de

36
Goodman utiliza o termo “objeto” de forma indiferente para qualquer coisa que a imagem possa
representar, “seja uma maçã ou uma batalha”. Do mesmo modo, o termo “símbolo” é usado em um sentido
geral, incorporando letras, palavras, textos, imagens, diagramas, mapas, modelos etc., sem carregar
implicações de sentidos oblíquos ou ocultos.
37
Ibid., p. 5.
38
RAMME, Noeli. Arte e construção de mundos. Rio de Janeiro, 2004. Tese (Doutorado em Filosofia) -
PUC-Rio. p. 32.
39
SEARLE, Joh R. Las Meninas and the paradoxes of pictorial representation. In: MITCHELL, W. J.
Thomas (ed.). The Language of images. Chicago: The University of Chicago Press, c1980. p. 251.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 49

átomos, um complexo de células, um violonista, um amigo, um louco, e muitas


outras coisas mais” 40. Se nenhum desses modos constitui o objeto, então o que o
constitui? E, ao contrário, se todos eles são modos de ser do objeto, então nenhum
deles será o modo de ser do objeto. Todos estes modos não podem ser copiados ao
mesmo tempo e, nesta tentativa, mais nos distanciamos de uma imagem realista. A
cópia, então, é feita sobre um determinado aspecto, sobre um dos modos do objeto
que nos parece mais significativo ou mais neutro. De certa forma, a compreensão
dos aspectos significativos e seu contexto, pode nos levar a uma maior
compreensão do modo como os homens de outras épocas viam o seu mundo e esta
compreensão talvez possa nos apontar a possibilidade de um olhar autônomo.
Deste modo, podemos compreender como a busca de significação levava os
egípcios a representarem os olhos de frente mesmo quando os personagens se
encontravam de perfil. Mas, qual seria o modo de representação mais neutro à luz
do olhar contemporâneo? Por exemplo, como o objeto pode ser visto por um olho
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normal, a partir de um ângulo favorável e com uma boa iluminação, sem a


interferência de afeições, animosidades, interesses ou preconceitos, e despojado
de interpretações? Goodman pergunta-se, apenas para apontar a impossibilidade
da resposta mais simples: o objeto deve ser copiado do modo como é visto em
condições assépticas por um olho livre e neutro. Mas, não existe um grau zero do
olhar. A procura de uma opticidade primária é freqüentemente citada na obra de
John Ruskin como uma solução técnica para o problema da pintura no século XIX
– a transposição do mundo tridimensional para uma tela plana. Na obra The
Elements of Drawing, Ruskin se propõe não apenas a ensinar a desenhar, mas
também a capacidade de julgar trabalhos de outras pessoas. Em uma grande
ressalva, contida em uma nota de rodapé dirigida para leitores mais “incrédulos e
curiosos”41, o autor coloca que uma vez que a nossa percepção de formas é
relacionada à experiência, o poder da pintura depende da recuperação do “olhar
inocente” (innocence of the eye)42, que significa uma percepção infantil, sem
consciência prévia dos significados das formas. Uma visão imaginável apenas em
uma pessoa cega que repentinamente pudesse enxergar. Mas, como afirma

40
GOODMAN, N. op. cit. p.6.
41
RUSKIN, John. The elements of drawing. London: The Waverley Book Co., [1920?]. p. 4.
42
Ibid. p. 4.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 50

Gombrich, “nunca podemos ver nossa própria retina”.43 A impossibilidade do


olhar inocente é uma unanimidade entre diversos autores, como Gombrich,
Mitchell e Goodman. Segundo este último:
O olho se antecipa ao seu trabalho de olhar, obcecado pelo seu próprio passado,
atento às insinuações do ouvido, do nariz, da língua, dos dedos, do coração e do
cérebro. O olho não é instrumento que funciona sozinho, mas é membro obediente
de um organismo complexo e imprevisível. Não somente o como, mas também o
que ele vê é regulado pela necessidade e pelo preconceito. O olho seleciona, rejeita,
organiza, discrimina, associa, classifica, analisa, constrói. O olho não atua como
um espelho que capta e reflete itens sem atributo, mas registra coisas, comida,
pessoas, inimigos, estrelas e armas. Nada é visto desnudado.44

Com colocações semelhantes, Arnheim antes de Goodman: “Toda


experiência visual é inserida num contexto de espaço e tempo. Da mesma maneira
que a aparência dos objetos sofre influência dos objetos vizinhos no espaço, assim
também recebe influência do que viu antes”.45 Arnheim é cauteloso em relação às
influências do passado do observador e adverte que a interação entre a
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configuração do objeto presente e as coisas vistas no passado não é automática e


ubíqua.
Para Goodman o mito do olhar inocente é cúmplice do “absolutamente
dado”. Ambos derivam e encorajam a idéia de que o conhecimento é um
processamento do material bruto recebido pelos sentidos. Acontece que a
recepção é sempre inseparável da interpretação. Não é possível distinguir entre o
que foi recebido e o que foi feito com isso. Por outro lado, Goodman reconhece
que a busca pelo olhar inocente pode produzir resultados positivos para os artistas,
na medida em que os pode conduzir ao rompimento de padrões e,
conseqüentemente, a novos encontros expressivos. Neste sentido, a idéia do olhar
inocente segue sendo empregada como uma orientação para o desenho artístico, a
partir da cópia.46
A questão que permanece problemática é a possibilidade contida no
conceito do olhar inocente da existência de uma verdade neutra e comum a todos
os seres humanos: uma consciência visual plausível de ser expressa de forma

43
Ibid. p. 272.
44
GOODMAN, N. Languages… p.8-9. Destaque nosso.
45
ARNHEIM, R. op. cit. p. 41.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 51

unificada. O conceito do “olhar inocente” manteve-se de forma discreta sob as


pesquisas que visavam a determinação de causas e efeitos, na medida em que
consideram que determinada imagem ou meio é capaz de produzir determinados
resultados. Os primeiros estudos de “análise de efeitos” na área de comunicação
datam da Primeira Guerra e foram voltados para o impacto da propaganda.
Segundo o modelo da “agulha-hipodérmica” de Harold Lasswell, a audiência é
como uma massa amorfa que obedece cegamente ao esquema estímulo-resposta.
Nesta hipótese, a propaganda é um mero instrumento, nem mais moral nem mais
imoral que “a manivela da bomba d’água”, podendo ser utilizada tanto para bons
como para maus fins.47 A idéia de um receptor “esvaziado” e que recebe
influências diretas da mídia é um pensamento que encontra coerência em teorias
da psicologia em voga na época.48 Neste contexto, torna-se importante a
compreensão da técnica da perspectiva, que analisaremos em seguida, como um
fator determinante de uma visualidade “universalizante”, fundamental para o
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desenvolvimento do habitus.

2.2. A visão monocular

Se nos fosse dado um número limitado de palavras – ou imagens - para


descrever o olhar do início da Idade Moderna, este olhar seria representado por
um olho – um único olho - imóvel, em posição fixa em relação ao seu ângulo de
observação, ao seu posicionamento espacial e à sua distância em relação ao objeto
observado. “O olho da Renascença chama-se perspectiva”.49 Perspectiva: uma
concepção de espaço que compreende a captação de um material bruto, existente
na realidade física, pelo sentido do olhar e sua modificação a partir de uma
organização sistemática, com a finalidade de reconstituir este material sobre uma

46
Veja por exemplo NICOLAÏDES, Kimon. The natural way to draw. London: André Deutsch Limited,
1979., publicado originalmente em 1941 e, mais recentemente, EDWARDS, Betty. Drawing on the right side
of the brain. Los Angeles: J. P. Tarcher, Inc., 1979. Neste último, a autora sugere exercícios como, por
exemplo, virar a imagem a ser copiada de ponta cabeça para “enganar” o lado esquerdo do cérebro,
responsável pela “tradução” das formas observadas em signos verbais.
47
MATTELART, Armand e Michéle. História das teorias da comunicação. São Paulo: Edições Loylola,
2001. p. 37.
48
Considere-se, por exemplo, a psicologia das massas de Le Bon, o behaviorismo surgido por volta de 1914,
as teorias do russo Pavlov sobre o condicionamento e ainda os primeiros estudos da psicologia social, que
sustentavam que somente certos impulsos primitivos, ou instintos, poderiam explicar os atos dos homens e
dos animais, vinculando o comportamento às forças biológicas.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 52

superfície bidimensional. O olhar da perspectiva é instituído como um ponto


único e fixo. No conceito de aplicação da técnica da perspectiva há a implicação
de que o mundo exterior aos sentidos pode ser captado tal como é ou, em outras
palavras, que é possível construir uma exata simulação do que o olho físico vê. Na
medida em que o olho físico é valorizado, também o corpo humano seria
valorizado. No entanto, esta questão coloca-se de forma ambígua, uma vez que o
“olho que vê” pode ser separado do corpo ao assumir pontos de vista que o
distinguem do olho físico. De qualquer forma, essa alusão encontra suporte no
humanismo atribuído à Renascença.
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Figura 7. Croqui da janela de Dürer. Livro


Figura 6. Xilogravura de Albert Dürer. De de Croquis, 1514. Bibliothèque de Dresde.
Underweysung der Messung, 1525. Retirado de BALTRUSAITIS, Jurgis.
Disponível em: Anamorphoses ou magie artificielle des
<http://www.acmi.net.au/AIC/DRAWING_MACHINES.html>
(31/07/06)
effets merveilleux. France: Olivier Perrin,
1969. p. 80

A palavra perspectiva tem sua origem etimológica no latim, perspicere,


significando ver de forma clara, encontrando semelhança no termo grego optiké50.
A língua portuguesa sugere afinidade a esta tradução na palavra perspicaz, do
latim perspicace, que vê bem, que observa, penetrante. No entanto, a origem mais
adotada é a que se encontra descrita em Albrecht Dürer “Perspectiva é uma
palavra latina que significa ver através de”.51 A idéia do ver através tem origem
provável no texto de 1435 de Leon Batista Alberti. Em De Pictura, primeiro

49
BOSI, Alfredo. Fenomenologia do Olhar. In: NOVAES, Adauto et al. O Olhar. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003. p. 74.
50
PANOFSKY, Erwin. Perspective as Symbolic Form. New York: Zone Books, 1997. nota na p. 75.
51
Ibid., p. 27.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 53

tratado sobre pintura que sobreviveu e que parece ter circulado amplamente entre
os humanistas52, Alberti escreve: “desenho um retângulo que para mim é uma
janela aberta, através da qual vejo o que será pintado” 53. O conceito da janela de
Alberti pode ser observado em gravuras da época – ou posteriores – sendo as mais
conhecidas as de Albrecht Dürer. (Figura 6 e Figura 7), onde o que “será pintado”
é observado através da moldura.
As gravuras de Dürer (Figura 6 e Figura 12) e de Vignola (Figura 14)
apresentam aparatos que demarcam a posição exata do olho do pintor. O conceito
de pirâmide visual pode ser observado na
Figura 8, onde vemos uma linha reta, que atravessa a janela em direção ao
objeto, estabelecendo uma ligação entre o olho e um ponto específico no objeto.
Uma corda é esticada entre o alaúde e a parede. Este último ponto marca o ponto
de vista do pintor. O cruzamento de outras duas cordas, presas à moldura, registra
o ponto do alaúde que será transferido para a tela. A operação é repetida ponto a
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ponto até que as formas sejam definidas em um processo trabalhoso que requer a
participação de duas pessoas. Estas gravuras apontam tentativas de mecanização
no processo de construção de imagens. No entanto, não é possível estabelecer, de
forma absoluta, se essa tecnologia visual era de fato empregada ou se a gravura
apenas ilustra uma metáfora do conceito descrito por Alberti. Os noventa anos
entre as publicações de Alberti e Dürer parecem ampliar esta dúvida e existem
questionamentos em relação aos conhecimentos teóricos de Dürer em relação à
perspectiva. Kemp aponta que uma análise mais detalhada é capaz de mostrar
algumas limitações no controle da perspectiva54. William Ivins considera que
Dürer, apesar de possuir conhecimento do método, não tinha domínio total de sua
compreensão55. Para Ivins, foi apenas em 1630, quando o matemático Girard
Desargues desenvolveu a geometria descritiva a partir da perspectiva, é que esta
última, de fato, desenvolveu-se. De qualquer forma, não deixa de ser uma notável
demonstração de uma tentativa - ou aspiração - de produção de artefatos visando a
mecanização de um processo. Esse conceito reforça a aproximação entre arte e
“cientificidade”, a partir da sugestão de uma doutrina de conhecimento do mundo

52
BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 191-192.
53
IVINS, William M. On the rationalization of sight. New York: Da Capo Press, 1975. p.22.
54
KEMP, Martin. The science of art. Optical themes in westerna art from Brunelleschi to Seurat. New Haven:
Yale, 1990. p.54
O OLHAR INOCENTE É CEGO 54

relacionada à automação, inseparável da perspectiva. A propósito, talvez não seja


demais ter em mente a imbricação entre arte e ciência na atividade dos próprios
“artistas-cientistas”. Quem não reconhece isso em Leonardo da Vinci? Alberti,
por exemplo, era considerado um grande cientista à sua época. E como um
cientista renascentista era, ao mesmo tempo, um profundo conhecedor das
matemáticas, médico, especialista em perspectiva, pintura e arquitetura e também
um prático destas disciplinas.56
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Figura 9. Giulio Parigi. A


portinhola de Dürer.
Afresco. Florença: Galleria
degli Uffizi, Stanzino delle
matematiche. Retirado de
Instituto e Museo di Storia
Figura 8. Dürer: De Unterweisung der Messung, 1525. della Scienza,
<http://brunelleschi.imss.fi.it>
(29/08/06)

O termo perspectiva é também empregado como sinônimo de óptica57 e de


ponto de vista, em um sentido que cria uma espécie de metáfora a partir do ponto
de observação escolhido para a construção da imagem bidimensional. Panofsky
sugere dois significados para a palavra. Na primeira definição, mais ampla,
perspectiva seria a “ciência da representação de objetos em uma superfície do
modo como eles aparecem ao nosso olho a uma certa distância”.58 Por esta
acepção, a perspectiva teria sido utilizada antes do século XV. No significado
mais restrito, ela é considerada uma técnica de representação de objetos
tridimensionais sobre um plano bidimensional, a partir de algumas regras. De
acordo com o esquema descrito por Alberti, na construzione legittima, termo

55
IVINS, W. op. cit.,. p.10.
56
Texto de Cristofaro Landino, citado por BAXANDALL, M. op. cit.. p. 191.
57
JAY, Martin. Downcast Eyes. The denigration of vision in twentieth-century french thought. Berkeley:
University of California Press, 1994. p. 53.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 55

utilizado pelos artistas do Renascimento, a imagem observada é uma seção planar


de uma pirâmide visual imaginária cujo vértice é o olho do observador (Figura 10
e Figura 11). Os raios visuais partem deste ponto e se conectam a outros pontos
dentro do espaço que será representado. O que é visto através deste traçado é
reinterpretado sobre uma superfície plana. Isso, em poucas palavras, descreve a
“perspectiva central” ou perspectiva artificialis.59 Deste modo, segundo Panofsky,
não nos cabe falar de uma visão perspectiva do espaço se apenas considerarmos
objetos isolados, como casas ou móveis, e sua representação obedecendo à
redução de dimensões, mas quando toda a figura é transformada em uma “janela”
e quando acreditamos olhar para o espaço através desta janela.60
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Figura 10. Abraham Bosse, Les Perspecteurs. Gravura


da Manière universelle de M. Desargues pour traiter la
perspective, 1648. Retirada de DAMISCH, H. The
origin of perspective. p. 37.

Figura 11. Retirado de A treatise of


perspective...

Ainda em relação à origem da perspectiva, como observa Panofsky não


basta perguntarmos se a arte de um determinado período ou região fazia uso dessa
técnica, mas qual tipo de perspectiva era utilizada. Não há sentido em questionar
se os antigos tinham conhecimento da nossa perspectiva, na medida em que eles
utilizavam diferentes concepções de espaço61. Do mesmo modo Rudolf Arnheim,
ao diferenciar a perspectiva isométrica da central, considera que esta última foi

58
PANOFSKY, E. op. cit., nota da p. 76.
59
De artificiali perspectiva, livro de Viator, publicado em 1505. cf. IVINS, W. op. cit., p.14.
60
PANOFSKY, E. op. cit., p.27.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 56

descoberta em uma época e lugar específico62: no sul da Europa, mais


precisamente na Itália63, no século XV. Arnheim admira a perspectiva isométrica
que não trabalha sobre uma fiel imitação da natureza: “os objetos do mundo físico
64
não são esmagados no quadro como uma abelha no pára-brisa” O psicólogo
repele a distorção de tamanhos, configurações, distâncias e ângulos, que
caracteriza como manipulação de objetos realizada para criar a ilusão de
profundidade na obtenção de uma figura mais realista. Deste modo, afirma
compreender a crítico de André Bazin que chamou a perspectiva de “o pecado
original da pintura ocidental”.65
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Figura 12. Dürer, Il velo, rete o graticola. Homem desenhando uma mulher reclinada.
De Unterweysung der Messung, Nuremberg, 1538.

Como forma de garantir a racionalização de um espaço infinito, imutável e


homogêneo, a “perspectiva central” adota duas premissas: a instituição da visão a
partir de um olho único e imóvel e o reconhecimento da seção planar da pirâmide
visual como capaz de funcionar como uma reprodução de nossa imagem óptica66.
Goodman considera ainda outras condições indispensáveis à obtenção da
fidelidade das imagens no uso da perspectiva: as limitações de ângulo e distância
na observação através de um orifício67. Em sua opinião estas condições estranhas
e anormais são uma prova de que o que é reproduzido deste modo não pode ser
considerado como “realidade”.68 Em relação, por exemplo, ao olho único e

61
Ibid., p. 41-43.
62
ARNHEIM, R. op. cit., p.271.
63
Alpers observa que a arte italiana determinou, em grande parte, o estudo da arte e de sua história e
estabelece como um contraponto para a “arte do norte”, a “arte do sul”, ou seja a arte holandesa. Ela utiliza o
termo albertiano para designar um modelo que criou uma tradição. Ver ALPERS, Svetlana. A arte de
descrever. A arte holandesa no século XVII. São Paulo: Edusp, 1999.
64
ARNHEIM, R. op. cit., p. 252.
65
Ibid., p.247.
66
PANOFSKY, E. op. cit., nota na p. 29.
67
GOODMAN, N. Languages… p.13.
68
Id., p.19.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 57

imóvel, Goodman afirma que o olho fixo é quase tão cego quanto o olho inocente
e menciona a realização de experimentos que demonstram o movimento dos olhos
na observação do que é visto69. Deste modo, a varredura do olhar seria um
movimento inerente ao olho, necessária à visão normal. Estes movimentos
mínimos dos olhos são conhecidos como sacádicos (microsaccades). Pesquisas
recentes indicam que eles constituem a base de nossa capacidade de visão e
podem até revelar atrações e interesses inconscientes.70

Figura 13. Prospettografo. Ludovico Cardi,


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conhecido como Cigoli. Prospettiva


pratica…, ms., ca. 1613, Firenze, Gabinetto
dei Disegni e delle Stampe degli Uffizi,
1660. Retirado de Instituto e Museo di Storia della
Scienza <http://brunelleschi.imss.fi.it> (29/08/06)

Figura 14. Instrumento prospético de Jacopo Barozzi


da Vignola. Le due regole della prospettiua prattica /
di m. Iacomo Barozzi da Vignola ; con i commentari
Figura 15. Pespectográfo. Cigoli, del ... maestro Egnatio Danti .., In Bologna : per
Prospettiva pratica, ms., ca. 1613. Gioseffo Longhi, 1682. Retirado de Instituto e Museo di
Gabinetto dei Disegni e delle Stampe degli Storia della Scienza, <http://brunelleschi.imss.fi.it> (29/08/06).
Uffizi, Florence. Retirado de CAMEROTA,
Filippo. Looking for an artificial eye: on the
borderline between painting and topography. Early
Science and Medicine 10 (2).

Apesar das questões levantadas em relação à compreensão das idéias de


Alberti pelos artistas da época, há evidências de que elas não eram totalmente
desconhecidas. O conceito dos raios que partem do olho do observador na
formação da pirâmide da visão, por exemplo, pode encontrar afinidade com a

69
Id., p.12.
70
MARTINEZ-CONDE, Susana. MACKNIK, Stephen L. Windows on the mind. Scientific American. Vol.
297, Issue 2, p56-63, Aug. 2007.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 58

representação de fachos, flechas ou “raios projetantes”. Em relação a esse tema,


Michael Kubovy apresenta uma imagem no mínimo desconcertante: o afresco de
Andrea Mantega que mostra um homem atingido no olho por uma flecha (Figura
16). A primeira fotografia colorida deste afresco da igreja Eremitani de Pádua foi
feita durante a Segunda Guerra, quando partes do desenho já se encontravam em
péssimo estado. Ainda durante a guerra, a capela onde o afresco se encontrava, foi
completamente destruída por um bombardeio. Para Kubovy, apesar da existência
de relatos que contam o martírio de São Cristóvão atingido no olho por uma
flecha, nesta obra a flecha funciona como uma metáfora da arte da perspectiva71.
Em sua hipótese, o psicólogo da percepção se apóia na idéia de que durante a
Renascença, a perspectiva era um conceito fundamental para os artistas e
intelectuais e, também, no fato de que a maior parte das imagens de São Cristóvão
feitas no período não reproduz a cena da flechada, inclusive outros afrescos do
próprio Mantegna. Kubovy igualmente se apóia em textos contemporâneos –
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inclusive de Leonardo da Vinci - que utilizam a metáfora da flecha para descrever


o caminho da imagem captada na direção do olho e na suposição de que esta parte
do afresco seria uma homenagem a Alberti e sua janela. Mas, acima de tudo, o
autor enfatiza a idéia da perspectiva como portadora de uma sugestão espiritual
capaz de, à época, permitir uma experiência próxima à transcendência. Embora a
idéia de transcendência nos pareça excessiva é possível imaginar que, para o olhar
de um admirador contemporâneo das pinturas do inicio da Renascença, a visão
das imagens construídas com a utilização da perspectiva devia parecer
72
extraordinária, algo “equivalente à visão da alma” , mais do que podemos hoje
conceber como uma “reprodução do mundo visível”. O homem deste período
ainda estava muito carregado do misticismo da Idade Média e não é de estranhar
que esse misticismo produzisse influências sobre a sua forma de olhar.

71
KUBOVY, Michael. The Psychology of Perspective and Renaissance Art. Cambridge University Press,
1986. p. 1-14.
72
SNYDER, Joel. Picturing Vision. In: MITCHELL, W. J. Thomas (ed.). The Language of images. Chicago:
The University of Chicago Press, 1980. p. 246.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 59

Figura 16. Andrea Mantegna. Archers Shooting at Saint Christopher (1451-5). Fresco, Ovetari
Chapel, Eremitani Church, Padua. Detalhe da flecha. Retirado de KUBOVY, M. The Psychology of
Perspective and Renaissance Art. p. 2 e 3.

Mas, quem era este homem renascentista admirador de pinturas realizadas a


partir de uma técnica tão recentemente implementada? Em primeiro lugar
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devemos excluir dos apreciadores das obras de arte do século XV uma grande
parcela da população, como os camponeses e os cidadãos pobres, para nos
concentrar nas pessoas cuja reação às pinturas era de importância para o artista, ou
seja, a classe dos comitentes. Dentre estes encontramos “os comerciantes e os
profissionais que operavam na qualidade de membros de confrarias ou
individualmente, os príncipes e seus cortesãos, os membros superiores de ordens
religiosas”.73 No entanto, mesmo na classe dos comitentes encontram-se variações
que suplantam a individualidade, mas variações relativas a grupos ou profissões,
cujo pertencimento torna-se fator influente na formulação de um determinado
olhar. Um médico, por exemplo, poderia dispensar uma atenção particular às
relações existentes entre os membros do corpo humano, na medida em que este
tipo de observação fazia parte de suas ações de diagnóstico.74 De forma menos
específica, todas as atividades desempenhadas pelo homem do século XV, o
capacitavam à observação de uma pintura. Este homem tratava de negócios,
freqüentava a igreja e tinha uma vida social, onde respeitava uma hierarquia e,
embora pudesse ser mais ou menos brilhante nos negócios ou mais ou menos
ligado à religião, todas essas atividades lhe eram influentes no sentido em que
constituíam a base da cultura da época.

73
BAXANDALL, M. op.cit., p. 47.
74
Id.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 60

Por outro lado, dentre essas pessoas havia poucas que, sendo ou não
pintores tinham a capacidade de desenvolver o que hoje poderíamos chamar de
observação crítica. Provavelmente devido ao raro acesso à pouca literatura
disponível sobre arte à época, a maior parte das pessoas para quem o pintor
trabalhava possuía algumas poucas categorias para qualificar os quadros:
“escorço”, ultramarino a dois florins a onça, a “roupagem”75 e, talvez, uma ou
outra expressão sobre as figuras religiosas representadas. Lembrando ainda que a
maior parte desses termos freqüentava a “literatura” dos contratos que precediam
a execução da obras.
Um outro fator importante da construção da cultura renascentista era a
educação comercial que constituía a base da formação escolar laica do século XV.
A formação educacional secundária da época era voltada para práticas úteis no
comércio, valorizando técnicas matemáticas, como métodos de medição e a regra
de três.76 Até o século XIX, as mercadorias não eram transportadas nem
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comercializadas em recipientes padronizados. Deste modo, um barril, saco ou


fardo era único e seu volume deveria poder ser calculado com relativa rapidez.
Aparentemente, cada região tinha os seus próprios métodos para lidar com esta
questão. De qualquer forma, esta prática aponta para um tipo determinado de
capacidades e para a existência de hábitos analíticos77 que, de certa forma, deve
ter exercido algum tipo de influência na forma como as pessoas avaliavam a
proporcionalidade pictórica de uma obra. Parece lógico que isso tenha sido
compreendido – e utilizado - pelos realizadores de imagens. De fato, em uma
época onde não existiam considerações sobre “criatividade” ou “novidade”, a
exibição de habilidades e o emprego de técnicas eram extremamente valorizados.
No entanto, todas essas evidencias de valoração “tecnicista” não podem nos
ofuscar a força da cultura religiosa sobre a visualidade do período.
Apesar da permanência da ligação do homem renascentista aos dogmas da
Igreja e da Idade Média, a invenção da perspectiva se insere de forma
complementar à estrutura de mundo do início da Idade Moderna. O universo era
concebido de acordo com os mesmos padrões hierárquicos de sociedade feudal. A
pirâmide feudal se encontrava centrada no imperador. O universo se situava sobre

75
Ibid., p.45.
76
Ibid., p.177.
77
Ibid., p.168.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 61

o trono de Deus. Este padrão repetia-se em todas as esferas: humana, divina e


natural78. Do mesmo modo, a perspectiva também estabelecia um ponto focal
único: “a perspectiva torna o olho como sendo ele o ponto de fuga do infinito. O
mundo visível é organizado para o espectador assim como o Universo já foi antes
organizado para Deus”.79 Por outro lado, a perspectiva também pode sugerir um
deslocamento do olhar divino, ou pelo menos, algo próximo de um
compartilhamento. Se antes era Deus quem tudo via, agora ao homem é dada a
possibilidade de estabelecer o ponto de vista da realidade e assumir para si próprio
essa construção. Deste modo, a perspectiva é a técnica que estabelece a
sistematização do espaço, criando um mundo mensurável. Não obstante, a idéia de
extensão do espaço “interminável” (interminatum)80 parece encaminhar para o
rompimento, de um lado, com o espaço Aristotélico, onde não havia lugar para o
infinito e, de outro, com a atribuição escolástica do conceito de infinito como algo
da ordem do divino. Assim, a perspectiva parece fazer a translação do espaço
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psicológico para o espaço matemático, constituído por três dimensões físicas 81.
Hanna Arendt traduz muito bem este contexto ao afirmar que “nada que possa ser
medido pode permanecer imenso”.82 A perspectiva se estabelece, então, como
prática reguladora desta visão que começa a se apartar da teologia.
A existência de uma série de procedimentos capazes de reproduzir a
realidade “tal como ela é” implica na experiência de “um modo correto de ver” e
na existência – ou na crença de existência – de uma realidade que pode ser
reproduzida. Neste sentido, a capacidade dos órgãos do sentido e, principalmente
do olhar, de captar o mundo “real” irá se apoiar em um sistema de “procedimentos
científicos”. A perspectiva garante a adequação da capacidade de observação, ou
seja, a possibilidade de estabelecer uma relação com a verdade do que é
observado - desde que certos princípios sejam adotados.
Através da implementação de regras de controle, a técnica da perspectiva
estabeleceu um elo entre arte e ciência – que, na entrada da era Moderna,
começam a se constituir como tais. Ao pintor-cientista cabe o aprimoramento do

78
HAUSER, Arnold. Maneirismo. São Paulo: Ed. Perspectiva / Ed. Universidade de São Paulo, 1976. p. 43
79
BERGER, John. Modos de Ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.18.
80
Como forma de evitar o confronto com a Igreja, os filósofos,que já supunham o mundo infinito, evitavam
usar este termo. KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Editora Forense
Universitária, 2006.
81
PANOFSKY, E., op. cit., p.66.
82
ARENDT, H., op. cit., p.262.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 62

ato de olhar, das técnicas de representação e a compreensão das possibilidades de


utilização do seu ponto de vista. A livre escolha de ponto de vista aponta para uma
liberdade de ação, sugerindo também uma subjetivação, a possibilidade de um
individualismo e, conseqüentemente, de uma decisão autônoma. Em relação a esta
possibilidade, cabem duas colocações. Em primeiro lugar, há que se compreender
a idéia de ascensão do sujeito. É claro que, como afirma Hauser, sempre houve
indivíduos que se distinguiam uns dos outros, mas foi a partir da Renascença que
começaram a existir indivíduos cônscios do valor de sua individualidade83. Em
segundo lugar, é importante aprofundar a própria questão do ponto de vista, no
sentido que este compreende uma visão corporificada sob um determinado tempo
e espaço e em relação ao objeto percebido. O aspecto do objeto sofre alterações de
acordo com o ponto de vista. Deste modo, é certo que a escolha do ponto de vista
aparece como fundamental para a construção da imagem. Como compreender,
então, uma obra que cria um jogo pleno de paradoxos como é o caso de Las
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Meninas?84

Figura 17. Las Meninas de Velazquez. Disponível em:


<http://www.artchive.com/artchive/V/velazquez/velazquez_atlee.html> (29/08/06)

83
HAUSER, A. op. cit., p.36
84
cf. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 19-. p. 17-33, SEARLE, J.
op. cit., p. 247-258 e DAMISCH, Hubert. The origin of perspective. Cambridge, London: The MIT Press,
1995. p. 425-432.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 63

Las Meninas (Figura 17) utiliza rigorosamente a perspectiva, mas a aparente


precisão da sua construção esconde uma armadilha que viola as próprias
convenções da perspectiva. A utilização da perspectiva implica na identidade
entre o ponto de vista do pintor e do observador da obra. Em Las Meninas esta
regra é demolida para dar lugar a um jogo de apostas pela descoberta do
“verdadeiro” ponto de vista do pintor. Ou seria o ponto de vista da obra? O pintor
é representado no próprio quadro e olha para fora dele, na direção do observador,
“nosso lugar” em relação à obra. Por outro lado, o ponto de vista do observador
mostra-se ocupado: no reflexo do espelho, ao fundo da sala, vemos as duas figuras
reais que parecem ser o alvo do estudo do pintor. Ao observador, seria dado o
ponto de vista do casal real? Mas, se é de fato o pintor quem produziu a obra, não
se encontraria ele neste ponto de vista?
Além disso, em que medida a liberdade de escolha de um ponto de vista
pode ser mais significativa do que as regras que formalizam a atitude do olhar? A
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perspectiva pode ser uma faca de dois gumes85, porque impõe ao fenômeno
artístico as regras estáveis da matemática, ao mesmo tempo em que torna este
fenômeno contingente ao indivíduo. Assim, se por um lado, as regras referem-se
às condições psicológicas e físicas da impressão visual, de outro lado, a utilização
dessas regras se submete à livre escolha de posicionamento do “ponto de vista” do
sujeito, assinalando uma subjetivação e um jogo de paradoxos.

85
cf. PANOFSKY, E. op. cit., p. 67.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 64

2.2.1. O jogo do real e do ilusório ou uma filosofia da falsa realidade

Figura 18. J-F. Niceron: anamorfose de uma cabeça, 1638.


Retirado de BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magie
artificielle des effets merveilleux. France: Olivier Perrin, 1969.
p. 45.
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Os paradoxos da perspectiva tornam-se evidentes, com a utilização de seus


próprios preceitos, na anamorfose (do grego: ana, de novo e morphe, forma,
transformação). Nova transformação? A mesma fórmula, a partir da qual a
perspectiva se esforça por normatizar e racionalizar o visível, é utilizada pela
anamorfose para sistematizar sua distorção. Os mesmos pontos que garantem a
“cópia perfeita”, a partir da consideração de semelhança, permitem a ilusão. A
anamorfose estabeleceu- se como uma curiosidade técnica, um jogo ótico, e fez-se
inseparável de uma poética da abstração, constituindo-se em um mecanismo
efetivo de produção de ilusões ópticas e uma filosofia da falsa realidade.86 No
auge de sua popularidade, a “parte bela e secreta da perspectiva”87 era,
geralmente, empregada como forma de sugerir o valor simbólico a uma obra.

86
BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magie artificielle des effets merveilleux. France: Olivier
Perrin, 1969. p. 5.
87
Citado por Daniel Barbaro, em sua Pratica della Perspettiva, 1559 apud BALTRUSAITIS, J.op. cit., p.34.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA O OLHAR INOCENTE É CEGO 65

Figura 19 - Os Embaixadores (Hans Holbein - 1533) Figura 20 – detalhe


da caveira

A primeira utilização da anamorfose é atribuída a Leonardo da Vinci88 no


ano de 1485, embora a palavra tenha aparecido apenas no século XVII.89 A mais
comentada utilização desta técnica se encontra no quadro Os Embaixadores, de
Hans Holbein do ano 1533 (Figura 19). O quadro é repleto de símbolos
relacionados ao quadrivium das artes liberais (aritmética, geometria, astronomia e
música). A justaposição dos vários objetos conotativos de relações entre ciência e
arte (dois globos, um astrolábio, tecidos com padrões geométricos, um alaúde e
livros - possivelmente, dentre eles, algum tratado com o tema da perspectiva)
compõe a cena. A própria forma de representação também é eloqüente, incluindo
o mais surpreendente símbolo: o de uma imagem alongada e distorcida ao pé dos
dois homens vestidos de forma suntuosa. Esta figura, quando observada sob
determinado ângulo, apresenta um crânio (Figura 20). Existem várias hipóteses
sobre o emprego da anamorfose nesta obra. Acredita-se que seu uso procura
evidenciar a inconstância da vida e da realidade, e a certeza da morte. Esse tipo de
pintura alegórica recebia a denominação de memento mori ou vanitas, quando não

88
No desenho de um olho, incluído no Codex Atlanticus. Ver JAY, M. op. cit., p.48 e BALTRUSAITIS, J.
op. cit. p.36
89
BALTRUSAITIS, J. op. cit., p.5.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 66

apresentava figuras humanas. Também existem relatos que sugerem o quadro ter
sido executado visando um posicionamento específico de onde – em determinado
ponto – se poderia ver o crânio em perspectiva correta.90 Baltrusaitis observa que
o tratamento anamórfico dado ao crânio funciona sugerindo não uma, mas duas
composições, cada uma com seu próprio ponto de vista, justapostas sobre o
mesmo quadro91. A utilização de uma mesma técnica produzindo duas e diferentes
ordens visuais sobre um único plano parece expressar de modo diferente a ordem
espiritual e a material. Mas, por outro lado, se a caveira tivesse sido pintada do
mesmo modo que os outros elementos do quadro, “sua conotação metafísica teria
desaparecido: se tornaria um objeto como os demais, uma simples parte de um
mero esqueleto, pertencente a um homem que por acaso já teria morrido”.92
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Figura 21. Waterfalls. M. C. Escher.


Figura 22. Retirado de A treatise of
perspective. Or, the art of representing all
manner of objects' as they appear to the eye in
all situations. ... sem referência à autoria de
Niceron

90
Veja BALTRUSAITIS, J. op. cit.. p.104-105. para a narrativa da instalação da pintura no palácio de Polisy
e sua mise em scène: “Em lugar do esplendor humano, ele [espectador, visitante] vê o crânio. Os personagens
e todo seus apetrechos científicos se desvanecem e em seu lugar surge o signo do Fim. A peça está
terminada”.
91
Ibid. p.104
92
BERGER, J. op. cit. p.93.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 67

Embora a anamorfose, como descrita acima, tenha perdido sua popularidade


no século XVIII93, a produção de uma falsa realidade utilizando precisão técnica é
seguidamente observada em outras obras que manipulam o jogo da verdade e da
ilusão. M. C. Escher ficou conhecido por suas estruturas impossíveis: escadas que
sobem ou descem – dependendo de como são vistas – a água da cachoeira que faz
o caminho de volta, realimentando o próprio fluxo (Figura 21). Gombrich
considera que os artistas e cenógrafos do século XX passaram a rejeitar os truques
de ilusão, o que raramente nos coloca em situações onde, de fato, o olho é
enganado.94 Provavelmente, Gombrich não chegou a ter contato com as ilusões
criadas pela computação gráfica, igualmente capaz de gerar realidades
perfeitamente inexistentes. Um usuário da computação gráfica, que não possua
conhecimentos de história da arte irá associar a visão anamórfica do crânio às suas
ferramentas de trabalho, surpreendendo-se com a sua observação em uma obra de
cinco séculos. Por outro lado, em que medida um olhar leigo em relação ao
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desenvolvimento da computação gráfica poderá reconhecer a origem numérica de


Eva Byte (Figura 23)? Não obstante, uma outra questão se coloca: por que criar
uma apresentadora virtual tão parecida às apresentadoras de carne e osso? Talvez
porque este seja o jogo da representação do real e do ilusório – com o qual
brincamos desde o século XV - e ele só se coloca quando mantemos as regras e as
referências do “real”. Deste modo, a anamorfose parece expressar o outro lado do
olhar, desenvolvido a partir da racionalidade moderna, na medida em que
evidencia a possibilidade de uma interferência subjetiva capaz de subverter as
próprias regras das quais se utiliza.

93
JAY, M. op. cit. p.48
94
GOMBRICH, E. H. op.cit. p.260.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 68

Figura 23. Eva Byte. Apresentadora


virtual do Fantástico. Criação do
Departamento de Arte do Jornalismo,
TV Globo, 2005.

A partir de estudos sobre pintura e geometria dos séculos XV e XVI, que


citam a anamorfose, Jurgis Bartrusaitis compreende a perspectiva anamórfica
como uma contrapartida visual da dúvida de Descartes.95 Bartrusaitis comenta que
Descartes freqüentava o convento dos Minimes de Paris - uma espécie de centro
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intelectual da época. Neste ambiente, Descartes encontrou alguns interlocutores


nas questões da óptica e da geometria como o padre Jean-François Niceron, que
nunca chegou a conhecer pessoalmente. A Figura 18 é de uma das obras de
Niceron sobre a perspectiva. Bartrusaitis observa que por uma curiosa
coincidência, no grupo dos Minimes, todos se acharam envolvidos em
“perspectivas insólitas” e, de certa forma, todos tiveram algum tipo de
aproximação com Descartes. As publicações contemporâneas de Descartes e dos
religiosos refletem um mesmo espírito e, de certa forma, uma mesma nova
filosofia. Bartrusaitis sugere que dentre as idéias comuns a esses autores,
encontra-se a obsessão por mecanismos e cálculos que domina a perspectiva.96
Para Bartrusaitis é a perspectiva que sugere a Descartes a prova final da falsidade
das aparências do mundo físico: “ela não é um sistema de representação exata,
mas uma mentira”.97 Todas as demonstrações de Descartes que ratificam o
embuste dos órgãos de percepção são atravessadas pela mesma inquietude que se
encontram formuladas nas Meditações: uma doutrina do conhecimento onde
intervêm as considerações sobre a visão das coisas.

95
BALTRUSAITIS, J. op. cit. p.61-70.
96
Ibid. p.62.
97
Ibid. p.69.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 69

Figura 24. Sistema óptico do


olho, Discours de la méthode
plus la diptrique, lês
météores el la gêométrie,
Leiden, 1637.
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Em suas obras, Descartes discute a geração e manipulação de ilusões


ópticas, evidenciando sua fascinação pela projeção de sombras e manipulação de
efeitos perspectivos.98 Na busca pela certeza ou pelo conhecimento direto,
Descartes estabelece o método da dúvida radical, de onde se funda o argumento
do cogito. O filósofo observa que é possível duvidar de tudo o que há no mundo
sensível. Os nossos sentidos podem nos enganar e nos conduzir a toda sorte de
mentiras e erros. Mesmo quando sonhamos, os sonhos podem parecer tão reais
quanto as nossas vivências quando acordados, de modo a não ser possível
encontrar garantias de que nossos pensamentos sejam ou não reais. Em outras
palavras, mesmo os nossos pensamentos podem nos conduzir a enganos. A única
coisa da qual não podemos duvidar é da própria dúvida. A dúvida garante a
existência do homem na medida em que, para Descartes, a dúvida é uma forma de
pensar. Deste modo, Descartes coloca-se como uma coisa pensante, ou res
cogitans:
[...] do fato mesmo de pensar em duvidar da verdade das outras coisas seguia-se
muito evidentemente e certamente que eu existia; ao passo que, se tivesse parado
de pensar, ainda que o resto do que imaginara fosse verdadeiro, eu não teria razão
de crer que tivesse existido; compreendi assim que eu era uma substância cuja
essência ou natureza consiste apenas em pensar, e que, para ser, não tem
necessidade de nenhum lugar nem depende de coisa material alguma.99

98
JUDOVITZ, Dalia. Vision, representation and technology in Descartes. p.65.
99
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 70.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 70

Os dois atributos essenciais do mundo, pensamento e extensão100, o que


conhece e o que é conhecido, parecem aludir a uma relação entre o que observa e
o que é observado. Massey reconhece como tentadora a criação de uma analogia
entre a perspectiva e o cartesianismo.101 A noção de um sujeito que tudo vê e que
tudo sabe, capaz de compreender racionalmente, e que se encontra situado no
centro da matéria quantificada, sugere uma afinidade com a perspectiva,
principalmente, se considerarmos os critérios visuais estabelecidos por Descartes,
ou seja, a aceitação de idéias que apareçam de forma clara e distinta.102 No
entanto, a formulação de um “perspectivismo cartesiano” torna-se problemática na
medida em que Descartes rejeita a visão, assim como outras formas de apreensão
do mundo a partir dos sentidos. Para Descartes o sentido da visão não é capaz de
assegurar a realidade dos objetos, do mesmo modo que nem a imaginação nem os
sentidos podem nos trazer nenhuma certeza sem a intervenção da razão. Por estes
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conceitos, paradoxalmente, a visão parece colocar-se não ao lado da clareza, mas


ao lado da dúvida.
O conceito de “perspectivismo cartesiano” é apresentado por Martin Jay
como uma característica do regime escópico da era moderna.103 Jay considera
Descartes como fundador do moderno paradigma visual e comenta seu tratado La
Dioptrique. A invenção do telescópio atribuída a Jacques Métius - hoje sabemos,
erroneamente – teria sido a pedra de toque da escritura de La Dioptrique, onde
Descartes procura demonstrar que a visão pode ser compreendida a partir do
método dedutivo, baseado na existência de idéias pré-existentes na mente. Neste
texto, Descartes descreve com precisão a construção de aparatos ópticos
destinados à observação de objetos distantes. Se por um lado Descartes parece
apenas preocupar-se com o olho da mente, por outro ele se atém ao estudo do
órgão da visão a partir da dissecação de olhos de animais e do questionamento de
seu funcionamento. Jay afirma que pode ser fácil olhar para trás e apontar

100
Vale observar que, como caráter essencial dos corpos físicos, estes são dotados de três dimensões: altura,
largura e profundidade.
101
MASSEY, Lyle. "Anamorphosis through Descartes or perspective gone awry.”
Renaissance Quarterly 50.n4 (Winter 1997): 1148(42). InfoTrac OneFile. Thomson Gale. CAPES. 2 Aug.
2006. <http://find.galegroup.com/itx/infomark.do?&contentSet=IAC-
Documents&type=retrieve&tabID=T002&prodId=ITOF&docId=A20759978&source=gale&userGroupName
=capes57&version=1.0>.
102
DESCARTES, R. op.cit. p.54.
103
JAY, M. op. cit., p.69 et seq.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 71

contradições nos conceitos de visão de Descartes, principalmente se forem


considerados a partir de algumas conclusões equivocadas do filósofo, como as
observações a respeito da luz ou do funcionamento da glândula pineal. No
entanto, para Jay, a contribuição cartesiana à dominância oculacentrista da era
moderna foi profunda e a maior fonte de influência encontra-se na própria
ambigüidade argumentativa de Descartes. Assim, se por um lado Descartes é
aclamado pela filosofia racionalista, por outro, ele também encorajou conceitos de
visão especulativos e empíricos. A própria exigência de uma visão “clara e
distinta” pelo olho da mente não deixa de ser uma contradição na medida em que,
ao mesmo tempo, desqualifica a visão física e utiliza suas metáforas para abordar
a racionalidade. A tentadora ligação entre Descartes e a perspectiva se encontra
longe de estabelecer conclusões definitivas. Para Bosi, por exemplo, Descartes
“recortou da visão renascentista apenas o olho central e imóvel da perspectiva
geométrica” de modo a estabelecer uma “visão verdadeira” .104
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Para Panofsky, a pontualidade da visão perspéctica antecipa a concepção


racional de extensão infinita de espaço encontrada em Descartes.105 Mas Massey
discorda, considerando que a associação entre o ponto de vista da perspectiva e o
sujeito cartesiano não se configura a partir de uma leitura acurada de Descartes.106
A autora não encontra sentido na utilização da perspectiva como metáfora para a
relação entre a res cogitans e a res extensa. Segundo ela, mesmo que a res
cogitans tenha se associado metaforicamente ao conceito perspectivo de sujeito
como “ponto de vista”, Descartes nunca postulou a res cogitans em termos de um
ponto perspectivo fixo e também nunca subscreveu à noção de que a perspectiva
apresenta a “semelhança” do mundo. A apreensão mental do mundo não deveria
se basear no conceito de correspondência ou “semelhança” entre as imagens do
mundo e a compreensão do mundo pela mente. Nos Escritos Filosóficos,
Descartes afirma que a mente pode compreender certos aspectos do mundo
através da linguagem e de signos de caráter arbitrário:
Devemos observar que em nenhum caso uma imagem deve assemelhar-se ao
objeto que representa em todos os aspectos, do contrário, não haveria distinção
entre o objeto e sua imagem. É suficiente que uma imagem se assemelhe ao objeto
em alguns poucos aspectos. [...] Deste modo, de acordo com as leis da perspectiva,

104
BOSI, A. op. cit., p.76.
105
PANOFSKY, E. op.cit., p.31-36.
106
MASSEY, L. op.cit., p.3.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 72

os gravadores representam círculos por ovais de forma melhor do que se


utilizassem outros círculos. 107

Em nosso ponto de vista, para além da proximidade sincrônica, o


pensamento cartesiano e a perspectiva se encontram baseados sobre as mesmas
influências sociais, atuando de forma semelhante sobre sujeitos - produtos da
história. Além do que, as discussões que alternam a perspectiva ao longo do
binômio técnico-filosófico apresentam a idade da sua origem. De acordo com
Cristoforo Landino, no século XV, a perspectiva era “parte filosofia e parte
geometria”.108 Analogamente, James Elkins considera que a perspectiva sempre
foi “hermafrodita, parte convenção e parte invenção”109 e deve ser pensada como
um campo entre a matemática, o texto e a imagem.110

2.2.2. A convenção do “natural”


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A discussão pelo reconhecimento da perspectiva como uma convenção não


é nova e em alguns casos se contrapõe em posicionamentos pouco claros de certos
autores. Arnheim, por exemplo, reconhece que a perspectiva central surge como
uma tendência do espírito europeu pela procura de uma base objetiva para a
representação dos objetos visuais, “um método independente das idiossincrasias
111
dos olhos e da mão do desenhista” . Mas, por outro lado, afirma que existem
diferentes soluções para o problema da representação de objetos tridimensionais
num plano bidimensional: “cada método tem suas virtudes e suas desvantagens, e
o que se prefere depende das exigências visuais e filosóficas de uma época e lugar
em particular”.112 Contudo, a posição menos clara e mais polemica é a de
Gombrich. Este autor se opõe à idéia de que a “perspectiva é mera convenção e
não representa o mundo tal como parece”.113 Afirma que “o que é convenção,

107
Id.
108
Landino, 1529 apud ELKINS, James. The Poetics of Perspective. Ithaca and London: Cornell University
Press, 1994. p. 263.
109
ELKINS, J. op. cit., p. 263.
110
Ibid. p. 265.
111
ARNHEIM, R. op. cit. p. 271.
112
Ibid. p. 105.
113
GOMBRICH, E. H. op.cit. p. 269.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 73

embora convenção útil, cômoda, é que gostamos de pintar em superfícies


planas”114 e que
nunca será demais insistir em que a arte da perspectiva visa a uma equação correta:
pretende que a imagem pareça com o objeto e o objeto com a imagem. Tendo
alcançado esse objetivo, ela faz a mesura de praxe e se retira.115

De forma menos objetiva, não abordando diretamente a questão do


convencionalismo da perspectiva, Gombrich sugere que o artista não pode
transcrever o que vê. “Pode apenas traduzi-lo para os termos do meio que
utiliza”.116 Mitchell considera que Gombrich está comprometido com a distinção
natureza-convenção, mas aponta algumas insinuações de mudança de pensamento
a partir da influência de trabalhos de outros estudiosos117. Segundo Mitchelll, em
trabalhos posteriores à Arte e Ilusão, Gombrich afirmaria a concordância com
alguns historiadores da arte com a idéia de que, no passado, certos estilos
imagéticos eram freqüentemente construídos com a ajuda de convenções que
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deviam ser aprendidas. Mitchell conclui que todas as imagens se encontram no


campo da convenção, embora a finalidade da convenção possa variar (“realismo”
e inspiração religiosa, por exemplo). Natureza e convenção não seriam antitéticas,
mas “natureza” pode ser um dado em relação a um certo tipo de convenção. O
problema, apontado por Mitchell, é que Gombrich considera a “naturalidade” da
representação ilusionista, a partir da invenção da perspectiva, como uma verdade
literal118.
Um pouco antes de Gombrich, Erwin Panofsky procurava situar a
perspectiva na formalização de um código de representação do espaço próprio de
cada período histórico. Na sua compreensão, a perspectiva descrita por Alberti
seria uma convenção, uma solução possível119. Em se tratando de convenção, a
imagem em perspectiva, como qualquer outra, deve ser interpretada; e a
habilidade para fazê-lo deve ser adquirida. Afinal, não se pode ter a expectativa de
que o olhar acostumado à pintura oriental possa entender imediatamente uma
pintura em perspectiva120. Em outras palavras, falamos de uma prática, através da

114
Ibid. p. 268.
115
Ibid. p. 272.
116
Ibid. p. 39.
117
MITCHELL, W. J. T. Iconology… p.80. et. seq.
118
Ibid. p.83.
119
PANOFSKY, E. op. cit. passim.
120
GOODMAN, N. Languages… p. 14.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 74

qual pode-se mesmo “acostumar” o olhar a imagens distorcidas ou projetadas


sobre superfícies irregulares. Deste modo, pode-se concluir que a representação
realística não depende de imitação, ilusão ou informação, mas do que foi
inculcado. Ou, como afirma Goodman, se a representação é uma questão de
escolha e a precisão uma questão de informação, então realismo é uma questão de
hábito121. No entanto, temos toda sorte de hábitos, alguns facilmente dispensáveis,
enquanto outros funcionam como uma “segunda natureza”122, mas não é isso que
justifica a hegemonia do conceito de realidade da representação que é indicado
pela perspectiva. Um dos maiores defensores da idéia de convencionalismo da
perspectiva, John Berger, afirma:
A convenção da perspectiva, que só se aplica à arte européia e que se estabeleceu
pela primeira vez no início da Renascença, centraliza tudo no olho de quem vê. É
como um facho de luz de um farol – só que ao invés de a luz se mover para fora,
são as aparências que se movem para dentro. As convenções denominaram aquelas
aparências de realidade.123
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A perspectiva pode ser considerada um procedimento estabelecido por


convenção para a representação do mundo visível, mas não é simplesmente um
procedimento, ela ocupa uma posição privilegiada. Mitchell considera que o
conceito de imagem como “signo natural” é como se fosse um ídolo da cultura
ocidental e, como tal, deve certificar sua própria eficácia a partir do contraste com
falsos ídolos de outras tribos124. A idolatria ocidental do signo natural disfarça sua
própria natureza sob uma capa de iconoclasmo ritual, uma exigência de que
nossas imagens, ao contrário “das deles”, seja constituída por um racionalismo
desmistificado.
No entanto, para nossa análise, mais importante do que discutir a capacidade
da perspectiva reproduzir a realidade - que para Goodman é nenhuma (“afirmar
que uma pintura parece com a natureza, apenas significa que ela parece com o
modo em que a natureza é geralmente pintada”125) é compreender o efeito desta
invenção, ou seja, de que modo a idéia da perspectiva pôde convencer uma
civilização inteira da sua infabilidade enquanto método de representação. Para
além de um sistema de representação, a perspectiva assumiu-se como um sistema

121
Ibid. p. 38.
122
SNYDER, J. op. cit. p. 223.
123
BERGER, J. op. cit. p.18.
124
MITCHELL, T. Iconology… p.90.
125
GOODMAN, N. Languages… p.39
O OLHAR INOCENTE É CEGO 75

de produção automática e mecânica das verdades do mundo material e mental.126


Para Mitchell, o maior índice da hegemonia da perspectiva se encontra no modo
como sua artificialidade é negada em prol de uma aclamação pela sua naturalidade
em representar a “forma como as coisas parecem”, “o modo como vemos” ou “as
coisas como realmente são”.127 Associada e estimulada pela ascendência
econômica e política da Europa ocidental, a perspectiva conquistou o mundo da
representação sob o rótulo da razão, da ciência e da objetividade e, segundo
Mitchell, nunca mais foi possível demonstrar a existência de outros modos de
representar o que “realmente vemos” e de abalar a convenção de que esse tipo de
imagem estabelece uma espécie de identidade entre a visão humana e o espaço
exterior128.
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Figura 25. Quadro do filme “O triunfo da


vontade” de Leni Riefenstahl, 1936.

Parece que a invenção da fotografia reforçou a convicção da existência de


um modo de representação natural. É interessante observar o modo como a
imagem fotográfica acolhe o epíteto de imagem realística embora nem toda
fotografia o seja. Esta convicção é grandemente reforçada a partir da conexão
relacional ou indicial, de acordo com a abordagem semiótica. Em outras palavras,
a câmera captura “traços” do objeto que se encontra fora dela, a partir de uma
relação presencial que os une. Deste modo, “a imagem copia a realidade”.
Contudo, há a questão da manipulação da imagem. Questão que, aliás, se
desdobra em duas. De um lado, o que poderíamos tratar como uma manipulação
não necessariamente forjada, em outras palavras, sem intenção de falsificação.
Neste aspecto encontramos, na fotografia, as escolhas de ponto de vista, do ângulo
da lente, da qualidade e tipo de impressão – se for este o caso. Por outro lado, há a
manipulação que modifica ou distorce e a que subtrai ou acrescenta elementos

126
MITCHELL, T. op. cit.. p. 37.
127
Id.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 76

onde eles nunca estiveram. É claro que a manipulação das imagens não é
exatamente uma novidade. No primeiro grupo de “manipulações”, encontramos
por exemplo a fotografia de Hitler no Triunfo da vontade (Figura 25), tirada
debaixo, mostrando o céu acima da cabeça de um líder que, deste modo, parecia
mais alto e heróico129. Do outro lado, encontram-se os exemplos anedóticos da
retirada das imagens de “inimigos do comunismo” de fotos tiradas em épocas em
que estes ainda não eram considerados inimigos, como foi o caso de Trotsky,
dentre outros (Figura 26 e Figura 27).
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Figura 26. Lênin e Trotsky na celebração do segundo aniversário da Revolução Russa. À direita, a
mesma foto, sem Trotsky. Imagens obtidas no site Newseum, the interactive museum of news. Disponível em:
<http://www.newseum.org/berlinwall/commissar_vanishes/7_8.htm> (26/11/06).

Figura 27. Fotografia de 1940. Stalin, acompanhado do jovem comissário Nikolai Yezhov, removido
da fotografia à direita. Imagens obtidas no site Newseum, the interactive museum of news. . Disponível em:
<http://www.newseum.org/berlinwall/commissar_vanishes/1_2.htm> (26/11/06).

Apesar da possibilidade da manipulação das imagens, que pode ser uma


expressão nova, mas não é uma nova idéia, continua-se a fotografar porque se
acredita que a fotografia funcione como um testemunho visual de algum evento.
Diga-se a propósito que, na época atual, a possibilidade de manipulação de

128
Id.
129
BURKE, Peter. Eyewitnessing: the uses of images as historial evidence. New York: Cornell University
Press, 2001. p.73.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 77

imagem fotográfica deve funcionar como lembrete da subjetividade de construção


da imagem e, conseqüentemente, da existência de uma gama de possibilidades de
“leitura” de qualquer imagem. Deste modo, a idéia que reforça a “perfeita
analogia” entre objeto e sua imagem indicial pode nos levar à compreensão da
capacidade expressiva de um fotógrafo cego (Figura 28), mas jamais admitir a
existência de um pintor realista cego.

Figura 28. Fotos de Evgen Bavcar . . Disponível em: <http://www.fotografya.gen.tr/issue-


9/index.html e http://www.elpais.es/suple/eps/?d_date=20060416> (1/08/06).
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No entanto, não seria, do mesmo modo, a fotografia uma convenção visual?


Evidências encontradas no registro de alguns antropólogos que reportam a não
familiaridade de grupos pesquisados em relação à fotografia, e sua conseqüente
dificuldade em identificar as figuras representadas130, corroboram a nossa
convicção de que a maior parte das relações travadas com as imagens é ancorada
em algum tipo de convenção. O problema não nos parece ser a convenção em si,
mas o privilégio assumido por uma convenção que esconde a sua origem, como é
o caso da perspectiva ou, atualmente, a fotografia e as imagens jornalísticas, por
exemplo.
A questão da convenção da perspectiva é suplantada por William Ivins em
sua obra seminal On the rationalizadion of sight. Sem ater-se propriamente às
discussões sobre a questão convencional evidenciada por essa técnica, Ivins
apresenta argumentos originais que não deixam dúvida em relação a este tema. O
autor, que foi o primeiro curador de gravuras do Metropolitan Museum of Art,
compõe suas observações, não exatamente do ponto de vista da história da arte
mas, como sugere Manovitch, da cultura visual131, que se preocupa com os
aspectos da visualidade ligados à construção, simbolização e imaginação das

130
ARNHEIM, R. op. cit. p.37.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 78

diversas formas de representação imagética132. Para Ivins, o mais importante


evento ocorrido durante a Renascença foi a emergência das idéias que conduziram
à racionalização do olhar133. De acordo com o autor, o esforço na direção da
racionalização, traduzido pela normatização através da perspectiva em suas
primeira expressões na Itália, França e Alemanha, pode ser considerado não
apenas mais importante do que a queda de Constantinopla, a invenção do tipo
móvel na imprensa, a descoberta da América, a Reforma ou a Contra Reforma,
mas como um fator capaz de influenciar os demais eventos aos quais se atribui o
surgimento da Idade Moderna.
Ivins desenvolve seus conceitos a partir da demonstração da necessidade de
existência de um sistema de símbolos capaz de externar o que é apreendido pelos
cinco sentidos, e que contasse com regras e gramática próprias, que
estabelecessem as relações entre eles. Deste modo, a ausência desses símbolos ou
de sua gramática dificultaria a evolução do pensamento. Analogamente, um
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símbolo que não pudesse ser exatamente duplicado ou que sofresse modificações
de sentido ao longo de sua repetição também seria de pouca utilidade. Como
também acabam sendo de uso limitado e de pouco valor para a racionalização,
certos sistemas de símbolos incapazes de seguir esquemas lógicos, seja na sua
inter-relação e combinação, seja na sua correspondência com fatores externos.
Ainda, segundo Ivins, no início da história humana, os homens já haviam
descoberto, na sua habilidade de produzir imagens, um método de simbolização
de sua consciência visual. Diferentemente dos símbolos puramente convencionais,
os símbolos pictóricos deveriam ser capazes de produzir enunciados acurados e
precisos mesmo que – a eles próprios – faltassem definições. Mas, em lugar disso,
a imagem pictórica permaneceu por muito tempo como a mais ineficiente classe
de símbolos. Ivins aponta duas grandes razões para essa situação: em primeiro
lugar, a duplicação exata de uma imagem era algo muito difícil e, em segundo
lugar, não havia nenhuma regra ou esquema combinatório que garantisse a relação
lógica dentro do sistema de símbolos pictóricos ou, ainda, uma lógica recíproca de

131
Veja a associação entre Ivins e visual culture em MANOVITCH, Lev. The Mapping of Space: Perspective,
Radar, and 3-D Computer Graphics. http://www.manovich.net/TEXT/mapping.html. Acesso em 2 de agosto
de 2006 às 10:19h.
132
Manovitch utiliza o termo cultura visual aos se referir às preocupações com as técnicas e tecnologias de
representação visual disponíveis em uma sociedade em determinado período, e o papel que desempenham na
formulação de diversos aspectos desta sociedade. Id.
133
IVINS, W. M. op. cit., p.7 et seq.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 79

correspondência entre a representação pictórica das formas dos objetos e a


localização desses objetos no espaço. Ao final do século XIV, assim se encontrava
a capacidade do homem para simbolizar sua visão da natureza. A esta situação
pode ser atribuída parte da dificuldade da ciência natural clássica e medieval. No
final do século XIV ou no início do XV, “alguém em algum lugar da Europa
começou a fazer gravados de madeira”.134 Inicialmente, a gravura em madeira era
utilizada apenas para poupar trabalho na produção de imagens sagradas. No final
do século XV, as gravuras passaram também a ser produzidas a partir do entalhe
em metal. A impressão de figuras permitiu, pela primeira vez, a duplicação exata
de símbolos pictóricos.
A invenção da gravação de figuras é considerada por Ivins como um dos
mais importantes eventos da história do pensamento ocidental.135 Fez-se
acompanhar por um outro evento sem precedentes que, na opinião deste autor,
precisou de um certo tempo para ter suas implicações reconhecidas: a descoberta
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do esquema de perspectiva de Alberti. Para Ivins, a perspectiva pode ser vista


como um meio prático de garantir uma relação métrica recíproca entre as formas
dos objetos, como definidos a partir de sua localização no espaço e sua
representação pictórica. Se isso parece importante para a produção de imagens, é
ainda mais importante para o pensamento em geral. De acordo com Ivins, o
esquema da perspectiva estabeleceu uma relação lógica dentro do sistema de
símbolos empregado e a correspondência recíproca entre a representação pictórica
dos objetos e suas formas localizadas no espaço. Deste modo, as características
mais marcantes da representação pictórica ocidental desde o século XIV têm sido,
de um lado, seu crescente naturalismo e, de outro, sua extensão lógica e
matemática. Ainda segundo Ivins, o grande desenvolvimento na ciência e nas
tecnologias ocorridos a partir do Renascimento deve-se à combinação destas duas
técnicas: a perspectiva e a gravura em madeira. Como exemplo, ele apresenta as
dificuldades encontradas pelos antigos gregos em seus estudos de botânica na
medida em que não contavam com um sistema eficiente para duplicação do que
era visualmente observado, apenas o emprego das palavras136. Deste modo, os
campos onde os gregos obtiveram grandes avanços foram a geometria e a

134
Ibid., p.9.
135
Id.
136
IVINS Jr., William M. Prints and Visual Communication. Cambridge: The MIT Press, 1973. p.1-20.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 80

astronomia, na medida em que, para o primeiro as palavras são suficientes e para


o segundo, qualquer noite clara oferece uma imagem invariante que pode ser
compartilhada.

Figura 29. Andreas


Vesalius De humani Figura 30. Página do livro. Andreas Vesalius. De humani corporis
corporis fabrica libri fabrica libri septem. Basileae : Ex officina I. Oporini, 1543.
septem. Basileae : Ex
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officina. Oporini, 1543.

Em 1543, Vesalius e John of Calcar produziram o primeiro estudo


completamente ilustrado de anatomia, ou seja, a primeira “gramática” da figura
humana com definições exatas de ossos, músculos e órgãos, através de imagens
que permaneceram idênticas ao longo de toda a edição. Neste momento, graças à
utilização de métodos que permitiram a duplicação exata de símbolos pictóricos
logicamente organizados, a descrição cientifica inicia uma grande aceleração,
propiciando condições para que a classificação cientifica se desenvolvesse. A
extensão dos campos de uso dos símbolos pictóricos, que podem ser precisamente
duplicados e seu conjunto de regras, produziram um efeito não apenas sobre o
conhecimento, mas também sobre o pensamento. Em outras palavras, para Ivins, a
implementação desses princípios e dessa técnica possibilitou o início da
racionalização do olhar - que pode ser considerado como o mais importante
evento da Renascença.
As considerações de Ivins são de valor inestimável. Em primeiro lugar, nos
chama a atenção o seu enfoque a partir da cultura visual, que valoriza a
visualidade, contextualizando-a no mundo ocidental. Se hoje é lugar comum falar
sobre uma sociedade visual, esquece-se de dizer que ela foi estruturada a partir da
influência da visualidade sobre o pensamento. A nossa historicidade logocentrica
O OLHAR INOCENTE É CEGO 81

manteve ofuscada, durante anos, as evidências de acontecimentos de extrema


importância para a visualidade, como o desenvolvimento da perspectiva e seus
desdobramentos na constituição do pensamento ocidental.
O caráter mecânico da perspectiva através de sua capacidade de organizar o
mundo e sua intenção de representação da realidade permitiu a emergência de
uma consciência instrumental, desejosa de medir e enquadrar tudo e de traduzir as
realidades por quantidades numéricas. A perspectiva apresenta o mundo pronto
para ser dominado, consumido, colonizado – o mundo originado no olho do
espectador137. Além do que, o rápido e influente avanço da perspectiva deve-se,
principalmente, à sua própria natureza. Apesar de caracteristicamente pertencente
ao universo da cultura ocidental ela foi velozmente disseminada por todo o
planeta por duas razões principais. Uma vez que se aprende a “ver” com a
perspectiva, esta forma de olhar torna-se inerente ao sujeito (daí o sentimento de
trata-se de algo “natural”). Em segundo lugar, uma vez assimiladas e seguidas as
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suas instruções, os efeitos prometidos são obtidos. Com aponta Andrew, a


utilização desse aparato e sua disseminação são comparáveis ao emprego do
telescópio ou da arma de fogo.138 No entanto, não é nossa intenção contestar a
importância dos diversos eventos da aurora da Idade Moderna, muito menos
retirar da invenção da imprensa a sua influência nas mudanças subseqüentes.
Desejamos ampliar a visão sobre a extensão dos diversos eventos e inventos do
período, de modo a incluir as modificações geradas pelos aparatos da visualidade
desenvolvidos no renascimento e suas conseqüências evidentes, mas nem sempre
discutidas, sobre o desenvolvimento posterior do campo do design.
Mais do que necessária, as convenções têm-se mostrado fundamentais para
o campo do design. Do contrário, como poderíamos esperar que os mapas
possibilitassem a orientação espacial das pessoas ou, ainda, como seria possível
analisar obras artísticas e arquitetônicas ou estilos pictóricos a partir de imagens?
A convenção nos permite tratar uma imagem como signo de um objeto, como
substituto do objeto que se encontra representado.
Não obstante, se a aceitação de uma convenção como convicção, como é o
caso da perspectiva, pode ter limitado outros desenvolvimentos expressivos, sob
outros aspectos essa instituição convencional mostrou-se fundamental para o

137
MANOVITCH, L. op. cit.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 82

posterior surgimento das atividades ligadas à produção de artefatos, dentre elas o


próprio design. Arnheim já havia identificado esta ligação, mas de forma
assustadora:
Desde a Renascença o engodo da fidelidade mecânica tem sempre tentado a arte
européia, especialmente na produção do padrão medíocre para consumo de massa.
A velha noção de ‘ilusão’ como ideal artístico tornou-se uma ameaça ao gosto
popular com o advento da revolução industrial.139

Na época atual, as questões da “fidelidade mecânica” ou do engodo realista


permanecem presentes. Um exemplo que em tudo se aproxima da citação de
Arnheim pode ser apontado nos filmes de ação “realistas” de Hollywood e seus
efeitos especiais. Distanciadas da arte moderna, mas próximas do design, muitas
características da perspectiva, praticamente como aparecem na descrição de
Alberti, seguem sendo utilizadas em nossos dias, seja em sua forma pura – em
desenhos à mão e ilustrações – ou em aplicações fotográficas como cinema,
televisão e computação gráfica. Em outras palavras, não há dúvida que o modo
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“racional” de ver a imagem “objetiva” e “verdadeira” estendeu-se da Renascença


até a época atual com um deslocamento no século XIX, quando sua soberania é
transferida primeiramente para a fotografia, depois para o cinema, a TV e,
finalmente, a computação gráfica.

2.3. A óptica entre o entretenimento, a ciência e a metáfora

Uma breve consulta a Encylopaedia Britannica or a dictionary of arts,


sciences, &c. On a plan entirely new, segunda edição, publicada em 10 volumes
em Edinburgh entre os anos 1778-1783, nos permite traçar algumas considerações
em relação aos aparatos do olhar, desenvolvidos na Renascença. Neste dicionário,
a câmera escura aparece ligada à dióptrica enquanto a perspectiva se acha no
campo da óptica. Se, de certa forma, a câmera escura estabelece uma relação com
a luz, onde os raios do sol são “visualizados”, encaminhando as imagens para o
olho do observador, a perspectiva se encontra envolvida em uma operação onde os
“raios” saem do olho do observador, ou seja, de dentro para fora, para “encontrar”
pontos no objeto observado. Diga-se a propósito, que a câmera escura

138
ANDREW, J. Dudley. Concepts in film theory. Oxford: Oxford University Press, 1984. p. 30-31.
139
ARNHEIM, R. op. cit., p.273.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 83

permaneceu por muito tempo, até o século XIX, como modelo do funcionamento
da visão, de acordo com este texto do século XVIII:
Os raios de luz que partem dos objetos exteriores, após entrarem na pupila e
atravessarem o humor cristalino [...] prosseguem para a retina que se encontra no
final do olho [...]. A conseqüência disso é que, a alma, por meios até agora para nós
desconhecidos, recebe a imediata inteligência dos raios e passa a ver os objetos.
Mas, esta grande operação da natureza, a descoberta que foi reservada para o nosso
tempo, poderia ter permanecido como uma curiosidade da física se não tivesse sido
colocada a serviço do pintor. A máquina construída para este propósito é
constituída por lentes e um espelho dispostos [...] de tal modo que a imagem possa
ser contemplada sobre uma folha limpa de papel. Este olho artificial, chamado de
câmera óptica ou escura [...] apresenta uma imagem de inexplicável força e brilho.
Para não falar na exatidão de sua perspectiva e do claro-escuro.140

No entanto, apesar do afastamento no campo da física, as técnicas sugeridas


pela perspectiva e, também, pela câmera escura aparecem relacionadas, de forma
semelhante, na atividade artística, como é o caso do verbete pintura na mesma
enciclopédia da citação acima. Apesar disso, a relação com a produção de
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imagens não se encontra na origem do aparato da câmera escura.


O princípio pelo qual a luz direta ou refletida por um objeto se insere
através de uma pequena abertura em uma caixa ou quarto escuro produzindo uma
imagem invertida era conhecido desde a antiguidade e foi muito utilizado para a
observação de eclipses solares. Entre o século X e o final do século XV a
formação de imagens por este processo foi estudada pela filosofia natural árabe e
latina e colaborou para a construção de uma teoria da visão que serviu de base
para a invenção da perspectiva nos termos em que ela é descrita por Alberti em De
Pictura. No entanto, não se encontram evidências de que os estudos deste período
apontassem para a utilização do fenômeno na produção de imagens.141 Na
verdade, os filósofos naturalistas nem mesmo se referiam à “imagem”, mas aos
raios de luz que passavam através da abertura, incidindo sobre a superfície
posterior a ela.142 O nosso olhar contemporâneo, com o conhecimento que temos
do funcionamento do olho e da câmera fotográfica, considera uma ligação
automática entre estes “efeitos visuais” e a produção pictórica. Mas, essa relação
não seria estabelecida pela mente medieval e assim, devemos situar uma distinção

140
Encyclopædia Britannica; or, a dictionary of arts, sciences, &c. On a plan entirely new: ... The second
edition; greatly improved and enlarged. Illustrated with above two hundred copperplates. ... Vol. 8.
Edinburgh, 1778-83. 10 vols. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group.
http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO
141
SNYDER, J. op. cit., p.231.
142
Ibid., p.232.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 84

entre a observação do fenômeno empírico realizada ao longo de vários séculos e a


construção de um aparato relacionado à produção de imagens. É possível que
tenha sido necessário que o conceito de perspectiva, com sua proposição de
construção de imagem realística, estivesse firmemente estabelecido para que esse
fenômeno (pinhole image) pudesse ser associado a um artefato. Além disso, a
criação de aparatos (como apresentados na gravura de Dürer, Figura 6) para fixar
o ponto de observação também pode ter tido alguma influência na concepção da
câmera escura. Estes fatores podem ter “preparado” o olho renascentista para
ampliar a sua relação com as imagens. Os princípios da perspectiva na construção
da figura realística, sua delineação acurada dos objetos e seu uso coerente de luz e
sombra precisariam estar profundamente ancorados no olhar moderno para que a
câmera escura pudesse surgir como aparato. Todos esses aparatos do olhar
parecem sugerir uma mecanização do sentido. Ou como afirma Snyder, “o
problema dos pintores pós-renascentistas era obter uma máquina que produzisse
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uma imagem como a de suas pinturas”.143


A distância temporal entre os eventos da perspectiva e da câmera escura
pode ser autenticada pela observação das datas onde eles aparecem citados. De
fato, o tratado de Alberti é de 1435, mas a primeira publicação que faz menção à
câmera escura é de 1521.144 A utilização de uma lente na abertura do aparato só
aparece descrita em texto de 1550, embora a invenção da câmera escura tenha
sido atribuída, posteriormente, ao napolitano Giovanni Battista della Porta. É no
seu livro, Magia Naturalis de 1558, onde pela primeira vez aparece a descrição da
câmera escura com finalidades pictóricas.145 Entre os trabalhos de Alberti e o de
della Porta passaram-se mais de um século.

143
Id.
144
Hockney sugere o seu uso a partir de 1430. Confira HOCKNEY, David. O conhecimento secreto –
redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 13.
145
Aparentemente, Della Porta não visava às finalidades artísticas, na medida em que sua obra é dirigida a
amadores, que não sabiam desenhar. Veja SNYDER, J. op. cit., p. 233.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 85

Figura 31. Câmera escura de Sir


Joshua Reynolds, manufaturada na
Inglaterra entre 1760-1780. Retirado
de Science & Society Picture Library,
<http://www.scienceandsociety.co.uk>
(29/08/06).
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Figura 33. Figura de Ars Magna Lucis Et Umbrae, por


Athanasius Kircher em 1646. Demonstração de utilização
de uma lente entre uma tela e um espelho com inscrições,
que pode ter levado ao nascimento da lanterna mágica.
Retirado de Science & Society Picture Library,
Figura 32. Mesmo modelo da <http://www.scienceandsociety.co.uk> (29/08/06).
figura anterior, fechado. Retirado
<http://www.scienceandsociety.co.uk>
(29/08/06).

A câmera escura foi seguidamente empregada como modelo para a visão


humana por diversos autores, pelo menos até o século XVIII, mas foi Kepler
quem explicou a inversão da imagem na retina146. Este instrumento também foi
utilizado para representar a relação entre um observador e um objeto no ambiente
externo, em outras palavras, uma operação de individuação, a partir de um
observador que é isolado em um quarto escuro147. Em certa medida, a separação
entre observador e observado segue sendo um modelo até os nossos dias, mesmo
com a invenção da imagem digital.
No entanto, no final do século XIX, a câmera escura modifica-se
vigorosamente com a introdução da química na fixação da imagem refletida.
Segundo Crary, este aparato já havia entrado em decadência antes do surgimento

146
CAMEROTA, Filippo. Looking for an artificial eye: on the borderline between painting and topography.
Early Science and Medicine 10 (2). Leiden: Brill Academic Publishers, 2005. p. 265.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 86

da fotografia e, enquanto modelo, tinha entrado em colapso entre as décadas de


1820 e 1830148. Jonathan Crary considera que a câmera escura era mais do que um
instrumento ótico na medida em que, por mais de duzentos anos, subsistiu
simultaneamente como metáfora filosófica, modelo da física óptica e, também,
como aparato técnico utilizado em uma ampla gama de atividades culturais –
amadoras e artísticas149. Segundo Crary, a utilização da câmera escura para a
obtenção de desenhos a partir das imagens projetadas, era apenas uma das funções
da câmera, mas não a mais importante. Através da descrição do artigo “camera
obscura” na Encyclopédie, ele nos lista seus usos:
Ela destaca a natureza da visão; provê um divertido espetáculo na medida em que
apresenta imagens perfeitamente semelhantes aos seus objetos; representa as cores
e movimentos dos objetos melhor do que qualquer outra forma de representação;
com este instrumento, alguém que não sabe desenhar pode fazê-lo com extrema
acurácia.150

Apesar da observação de Crary de que o destaque para o desenho se


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encontra em último lugar, vale lembrar a existência de diversas obras dirigidas


para artistas, onde este processo era destacado.

147
CRARY, J. op. cit., p. 27 e p. 39.
148
Ibid., p.27.
149
Verbete retirado da Encyclopédie ou dictionnaire des sciences, des arts et des métiers, Paris, 1753. apud
CRARY, J. op. cit., p. 28-29.
150
Ibid. p. 33.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 87

Figura 35. Câmera escura portátil. Istituto e Museo


di Storia della Scienza. Retirado de
<http://brunelleschi.imss.fi.it/museum/esim.asp?c=100063>
27/0806).

Figura 34. Camera obscura from the


Figura 36. Câmera escura 1770-1775. Encyclopedie
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Encyclopedie. . Disponível em:


<http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Camera_obscura Raisonnèe des Sciences, des Arts et des Metiers. .
_from_the_Encyclopedie.jpg> (27/0806). Disponível em:
<http://www.kunstogdesign.no/camera_obscu.html> 27/0806).

Os efeitos ilusórios obtidos através de experimentos com a câmera escura ou


dark chamber são descritos na Encyclopaedia Britannica de 1778-1783. Neste
texto, assim como em outros do mesmo período, descreve-se primeiramente a
construção do aparato: “Faça um furo circular em uma persiana de uma janela de
onde se tenha uma vista de campos ou de qualquer outro objeto não tão
próximo”.151 A descrição detalhada do experimento (entertaining experiments)
compreende a utilização de lentes, espelhos e papéis cortados em aspecto circular,
mas a sua maior finalidade é a de servir de “modelo para pintores”. Algumas
variações são sugeridas, como a Lanterna Mágica, uma invenção posterior que
utiliza a projeção de pequenos objetos, pintados em cores transparentes sobre
lâminas de vidro, sobre uma peça de tecido presa à parede. Outros textos
apresentam experiências ópticas mais próximas do que hoje consideramos efeitos
de mágica como, por exemplo, criar a ilusão de um homem com quatro pernas e
sem cabeça ou fazer uma pessoa aparecer em um quarto e desaparecer

151
Encyclopædia Britannica; or, a dictionary of arts, sciences, &c. On a plan entirely new: ...
The second edition; greatly improved and enlarged. Illustrated with above two hundred copperplates. ...
Vol. 4. Edinburgh, 1778-83. 10 vols. Based on information from English Short Title Catalogue. Eighteenth
Century Collections Online. Gale Group. http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO. p. 2477 et seq,
O OLHAR INOCENTE É CEGO 88

rapidamente ou, ainda, ter a sensação de que uma pessoa está “afundando” no
piso.152

Apesar do sistema de operação da câmera escura ter permanecido constante,


sua forma variou consideravelmente ao longo dos séculos. Em relação às
variações formais, Snyder enfatiza a função de cada peça a ser produzida. O
artesão ou fabricante tinha que ser informado das necessidades específicas do
artista antes de projetar a câmera para seu uso. O mecanismo estava longe de ser
padronizado na medida em que as lentes deveriam ser exclusivas para cada tipo de
uso, sejam paisagens ou retratos. Mais ainda, uma lente própria para retratos
utilizada em uma câmera pequena – e câmeras portáteis eram comuns a partir do
século XVII – não poderia ser utilizada em câmeras maiores. No século XVIII,
além de câmeras e lentes especialmente manufaturadas, produziam-se também
manuais com instruções artísticas e de orientação para o emprego das lentes.153
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152
SMITH, Godfrey. The laboratory; or, school of arts: containing a large collection of valuable secrets,
experiments, and manual operations in arts and manufactures, ... Compiled originally by G. Smith. Sixth
edition, with a great number of additional receipts, corrections, and amendments; . Vol. 2. London, 1799. 2
vols. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group. http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO. p. 168
153
SNYDER, J. op. cit., p.233.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 89

Figura 38. Diagrama da câmera lucida,


que permitia cópia à luz do dia.
Inventado por W. H. Wollaston em
1806. Retirado de
<http://www.scienceandsociety.co.uk>
(29/08/06).
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Figura 37. Ilustração do telescópio gráfico e seus


principios óticos. Do Magazine of Science, And School
of Arts, 1840. Whipple Museum of the History of Figura 39. Espelho de Claude.
Science, University of Cambridge. Disponível em: Inglaterra, século XVIII. Disponível em:
<http://www.hps.cam.ac.uk/whipple/explore/astronomy/artandastrono Victoria and Albert Museum:
my/graphictelescope/> (29/08/06). <http://www.vam.ac.uk> (29/08/06).

De certa forma, a insistência de Crary em isolar a câmera escura de sua


participação na produção de obras de arte é abalada pela evidência do
desenvolvimento do próprio artefato (diversos tipos de lente, modelos portáteis),
que nos parece justificado para uma finalidade específica, ou seja, para fins
artísticos – mesmo que artisticamente amadores. Em uma exposição realizada na
Pinacoteca do Estado de São Paulo entre os anos 2003 e 2004, encontramos a
evidência de que, ainda no século XIX, provavelmente depois da invenção do
daguerreótipo, artistas, profissionais ou não, contavam com o auxílio de uma
câmera escura portátil na composição de elementos de paisagens, em viagens pelo
O OLHAR INOCENTE É CEGO 90

Brasil154. Estes desenhos de campo formavam em conjunto uma espécie de


catálogo que era consultado posteriormente no ateliê, como um repertório de
imagens que o artista combinava para compor a obra final.

Figura 40. Ilustração do século XIX. Duas


crianças olham uma imagem projetada pela
câmera escura. De E. Atkinson's, Natural
Philosophy. Retirado de
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<http://www.scienceandsociety.co.uk> (29/08/06).

Figura 41. Claude Lorraine Glass. Em PIKE,


Benjamin Jr: Pike's Illustrated Descriptive
Catalogue of Optical, Mathematical and
Philosophical Instruments. 750 gravuras dos
aparatos vendidos pelo autor, com os preços
dos produtos. New York 1856, p. 193. Retirado
de <http://vision.mpiwg-
berlin.mpg.de/vision_coll/elib/claudeglass> (29/08/06).

Figura 42. Prospecto de anúncio de câmera


escura, cerca de 1819. Retirado de
<http://www.scienceandsociety.co.uk> (29/08/06).

Além do mais, a câmera escura não foi o único aparato de organização da


visualidade. Diversos instrumentos, desenvolvidos ao longo do século XVIII e
XIX, eram destinados a auxiliar o desenho, enquanto outros se dispunham a outras
funções relacionadas à arte. Dentre esses aparatos, podemos citar, por exemplo, o
espelho de Claude (Figura 39) que era constituído por um espelho convexo,
coberto por tinta preta. Recebeu este nome não porque se saiba que o pintor
Claude Lorrain o tenha empregado, mas porque era capaz de produzir uma
imagem com o mesmo estilo de sombreado e tons dourados observado nas

154
COLEÇÃO BRASILIANA FUNDAÇÃO ESTUDAR NA PINACOTECA DO ESTADO. Vistas do
Brasil. São Paulo, 2003-2004. Catálogo de exposição. 1 CD-ROM
O OLHAR INOCENTE É CEGO 91

pinturas de Lorrain.155 No auge do seu uso, entre o final do século XVIII e o inicio
do XIX, o espelho de Claude era encontrado em gabinetes de curiosidade, lojas de
óptica e círculos artísticos. Era utilizado porque produzia uma visão pitoresca e
diferenciada. Ao contrário deste aparato, que se apoiava sobre espelhos, o vidro de
Claude (Claude Lorraine Glass - Figura 41) era um conjunto de lâminas coloridas
transparentes, utilizadas para a observação de eclipses, nuvens e paisagens. O
vidro de Claude reforça o conceito de mono-visão surgido com a perspectiva. Em
conjunto, com o espelho de Claude, parece sugerir a delimitação do campo de
visão, a área que deve ser de fato observada, como na proposta da janela de
Alberti. Neste sentido, ambos são colaboradores da construção de um olhar em
um movimento de enquadramento, metafórico e literal, onde o campo de visão do
observador é limitado a partir da intermediação entre o observador e o que é
observado. Outros aparatos visuais ainda podem ser diretamente relacionados à
reprodução de objetos e paisagens. Neste último grupo encontramos a câmera
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lúcida (Figura 38) e sua variante, o telescópio gráfico (Figura 37), patenteado em
1811 por Cornelius Varley.
Talvez não seja desnecessário lembrar que a câmera escura constituiu-se em
uma ferramenta de trabalho e, analogamente ao que acontece hoje com a
computação gráfica, o seu uso, por si só, nunca pode ter sido garantia de qualidade
da obra produzida. Um desenhista medíocre não conseguiria extrair da câmera
escura, ou de nenhum outro aparato óptico, uma operação miraculosa. Mas, apesar
disso, o seu emprego como auxiliar na produção de imagens ou pinturas não era
algo de que o artista pudesse vangloriar-se. De maneira geral, os artistas
costumam ser reticentes em relação aos seus métodos, e não devem ter sido muito
diferentes no passado. Esse é um dos argumentos utilizados por David Hockney
na sua proposição de que os artistas “escondiam” o uso de auxílios óticos ou de
seu domínio secreto, como sugere o título de seu livro: O conhecimento secreto156.
Nesse livro, Hockney defende a tese de que a partir do século XV, muitos artistas
usaram a óptica, ou seja, espelhos e lentes ou uma combinação de ambos, para
criar projeções sobre as quais pudessem reproduzir imagens fiéis.

155
DUPRÉ, Sven. The Claude Glass: Use and meaning of the black mirror in Western Art by Arnaud Maillet.
Institute for Research in Classical Philosophy and Science. Resenha.
156
HOCKNEY, David. O conhecimento secreto – redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres.
São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 92

A partir de uma visita a uma exposição de Ingres, em 1999 na National


Gallery de Londres, Hockney começou a questionar se Ingres teria “usado de vez
em quando esse pequeno dispositivo óptico, então recém-inventado”.157 Esse
pintor trabalhou nas primeiras décadas do século XIX, realizando desenhos de
pequeno formato, mas misteriosamente “precisos”. Hockney começou a
realização de experimentos práticos, a princípio com uma câmara lúcida e, depois,
com uma câmara escura, ao mesmo tempo em que passou a “ver com outros
olhos” as obras de artistas do passado. Para ele “a óptica não faz marcas - ela
produz apenas uma imagem, uma aparência, um meio de medida. O artista ainda é
o responsável pela concepção, e é necessária grande habilidade para superar os
problemas técnicos e reproduzir a imagem em tinta. No entanto, tão logo se
percebe a influência profunda que a óptica exercia na pintura, e o modo como era
empregada pelos artistas, começa-se a observar as pinturas de um novo modo”.158
Hockney, então, montou, em seu estúdio, um “Grande Mural” onde justapôs
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reproduções de quinhentos anos de trabalhos de diversos artistas, de forma a


investigar a utilização dos aparatos ópticos. Durante a sua pesquisa, ele travou
contato com historiadores da arte e com um opticista, Charles Falco, que lhe
ofereceu apoio técnico. O problema com a hipótese Hockney-Falco, como a
questão passou a ser conhecida na história da arte e das ciências, é que a utilização
dos instrumentos óticos se encontra sugerida a partir da primeira metade do século
XV.
Hockney aponta que entre o fim dos anos 1420 e o começo dos anos 1430.
ocorreu uma súbita mudança nas pinturas, rumo a um maior naturalismo. Esta
transformação, evidenciada nas obras de Robert Campin e Jan van Eyck, é
atribuída por Hockney ao auxílio óptico de lentes ou espelhos metálicos.159
Apesar dos tratados medievais sobre óptica demonstrarem o interesse dos
estudiosos pela luz, visão, espelhos e reflexão, não existem evidências de que essa
preocupação pudesse ir além da geometria dos pontos ou da utilização de espelhos
cilíndricos, cônicos, côncavos e convexos para reflexão, mas não para projeção.160
De fato, não existem provas documentais da utilização de espelhos para projeção

157
HOCKNEY, D. op. cit., p.12.
158
Ibid. p. 131.
159
Ibid. p. 71-72.
160
SCHECHNER, Sara J. Between knowing and doing: mirrors and their imperfections in the renaissance.
Early Science and Medicine 10 (2). Leiden: Brill Academic Publishers, 2005.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 93

antes do século XVI. Além disso, há uma grande distância entre o saber e o fazer.
O conhecimento de princípios físicos não é e nunca foi garantia de existência de
um sistema que se utilize dele e, como vimos anteriormente, os conhecimentos
que levaram à invenção da câmera escura lhe precederam em muitos séculos.
Além disso, assim como Leonardo da Vinci chegou a desenhar um helicóptero,
mas nunca se pensou que ele poderia ter sobrevoado a Toscana, existia uma
grande distância entre os textos sobre ótica e a produção artesanal de espelhos e
lentes do final da Idade Média.161
Deste modo, embora os artistas possam ter utilizado espelhos para ajudá-los
a fazer auto-retratos, na produção de desenhos em perspectiva ou, ainda, na
observação de outras obras, é improvável que os tenham utilizado como
equipamentos de projeção antes da invenção da câmera escura. Não existem
evidências técnicas neste sentido, tanto em relação às peças sobreviventes, quanto
de acordo com as condições materiais e técnicas da produção de espelhos no
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período - impensáveis para a obtenção de uma imagem clara e realística.162


É claro que os artistas dos primeiros tempos da Idade Moderna tiraram
partido do desenvolvimento dos apetrechos ópticos e do conseqüente
aprimoramento da câmera escura. Mas, de fato, o aperfeiçoamento de espelhos e
lentes ainda iria demorar alguns séculos, embora tenha começado a tomar impulso
a partir de Galileu Galilei em sua busca por melhores imagens da lua.163 Apesar de
ter seu nome associado a esse instrumento, Galileu não foi o inventor do
telescópio. Antes dele, um tubo, com duas ou mais lentes, era já utilizado para
divisar o inimigo à distância – com um único olho. Mas o termo telescópio foi
cunhado apenas em 1611 - a partir das palavras gregas tēle, longe e scopeo, eu
vejo164 - dois anos depois da “descoberta” de Galileu.
O telescópio é considerado, por Hanna Arendt, como o primeiro
“instrumento científico”165, apesar do termo ter surgido apenas no século XIX.166
De fato, o telescópio é um instrumento ótico que se inscreve em um sistema
epistemológico substancialmente diferente dos outros aparatos do universo da

161
Id.
162
Ibid. p. 162.
163
KEMP, Martin em carta para o autor. HOCKNEY, D. op. cit., p. 246.
164
http://brunelleschi.imss.fi.it/museum/esim.asp?c=200601
165
ARENDT, H. op. cit.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 94

Renascença. Arendt o listou entre os três eventos fundamentais que determinaram


o caráter da era moderna, ao lado da descoberta da América, e subseqüente
exploração de toda a Terra, e da Reforma.167 Para a teórica alemã, a invenção do
telescópio ensejou o desenvolvimento de uma nova ciência que considerava a
natureza da Terra do ponto de vista do universo. Observou, ainda, que os nomes
ligados a estes eventos, incluindo o de Galileu, pertenciam a um mundo pré-
moderno, na medida em que não se encontrava entre eles a
estranha sensação de novidade, a veemência com que quase todos os grandes
autores, cientistas e filósofos, desde o século XVII, declaravam ver coisas que
nenhum homem jamais vira antes e ter pensamentos que jamais haviam ocorrido a
ninguém.168

Neste sentido, Galileu não pode ser considerado um revolucionário. Mas, foi
apenas com a “visão” da imensidão do espaço que teve início uma nova ciência.
Assim, se a invenção do telescópio é fundadora da ciência moderna e a
técnica da perspectiva pode ser considerada como um elemento fundamental na
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constituição do olhar moderno, a câmera escura poderia ser considerada como um


aparato multifuncional, ligado à concepção que temos hoje de entretenimento. Se
para Jonathan Crary, a câmera escura deve ser analisada de forma distanciada da
lógica evolucionária do determinismo tecnológico que a posiciona como
percussora de uma genealogia que leva ao nascimento da fotografia, por outro
lado, este aparato é um amálgama social “onde sua existência como figura textual
e discursiva é inseparável do seu uso técnico”.169 Citando Gilles Deleuze
“máquinas são sociais antes de serem técnicas”, Crary afirma que a câmera escura
e a câmera fotográfica são objetos sociais que pertencem a duas organizações, de
representação e de relação entre o observador e o visível, fundamentalmente
diferentes. Apesar de considerar a semelhança entre os princípios estruturais de
ambas, Crary observa que no inicio do XIX, a câmera escura já não era sinônimo
de produção de verdade. No entanto, em sua opinião, as distinções podem ser
observadas a partir de uma diferente rede de enunciados e práticas. Sem querer
estabelecer uma visão teleológica do desenvolvimento dos aparatos da visão, nos

166
D. J. Warner, “What Is a Scientific Instrument, When Did it Become One, and Why?” British Journal for
the History of Science, 23 (1990), 83-93. Apud MALET, Antoni. Early conceptualizations of the telescope as
an optical instrument. Early Science and Medicine 10 (2). Leiden: Brill Academic Publishers, 2005. p. 244.
167
ARENDT, H. op. cit., p.260.
168
Ibid. p. 261.
169
CRARY, J. op. cit., p. 30 et seq.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 95

permitimos discordar desta abordagem do autor que, em nossa opinião se presta a


enfatizar a sua análise dos aparatos de visão utilizados no inicio do século XIX.
Em nosso ponto de vista, a câmera escura não é simplesmente inseparável
da pré-história fotografia, mas também dos desdobramentos subseqüentes que
levaram à imagem em movimento. Apesar disso, devemos reconhecer que as
condições temporais e epistemológicas da câmera escura e da fotografia são
substancialmente diferentes e suas conseqüências não devem ser estabelecidas em
um sentido teleológico.
De certa forma, as alusões filosóficas da câmera escura remetem à idéia das
sombras na caverna de Platão. Marx a utilizou como metáfora de um modelo de
forças que mascara, inverte e mistifica a verdade.170 Em Freud ela é uma metáfora
fotográfica para o funcionamento do inconsciente.171 Nietzsche utiliza múltiplas
metáforas, fazendo uma analogia entre a câmera escura e olho do pintor.172
A partir de considerações sobre o emprego da câmera escura em meados do
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século XIX, Mitchell critica a metáfora de ideologia desenvolvida por Marx sobre
este aparato.173 Segundo Mitchell, Marx emprega esta imagem para ridicularizar
as ilusões da filosofia idealista no momento em que o daguerreótipo surge para
preservar as “imagens perfeitas da natureza”. A câmera escura, anteriormente
empregada como sinônimo de empirismo, de observação racional e de reprodução
direta da visão natural, é utilizada por Marx como um mecanismo para a criação
de ilusões, de “fantasmas”, “quimeras” e “sombras da realidade” que ele atribui
aos seguidores da ideologia alemã. Deixando de lado a possibilidade de este
emprego tratar-se de um “erro de juventude”, Mitchell atém-se ao fato de que, à
época de Marx, a câmera escura e a fotografia, como seu desenvolvimento, não
eram celebradas apenas por encarnar o modo natural, científico e realístico de
representação do mundo visível. Ao lado da reputação de instrumento científico, a
câmera escura mantinha a reputação de “lanterna mágica” e produtora de “ilusões
ópticas”, como descrito acima. O fato é que Marx, provavelmente, via a invenção
da fotografia como mais uma falsa “revolução” burguesa, um brinquedo para a
classe abastada. Deste modo, Marx procurou ilustrar a idéia de ideologia como um

170
Ibid. p. 29.
171
KOFMAN, Sarah. Camera obscura de l’idelogie. France: Éditions Galilée, 1973. p. 37.
172
Ibid. p. 47-49.
173
MITCHELL, W. J. Thomas. Iconology… p. 168-172.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 96

paradoxo a partir da inversão óptica. Em certo ponto, a inversão não produz


nenhuma diferença, na medida em que a ilusão é perfeita. Mas, na verdade, o
mundo aparece de cabeça para baixo, em caos, em contradições autodestrutivas.

2.4. A herança ciclópica

Neste capítulo discutimos a constituição do olhar clássico, a partir da


relação com os aparatos da visão criados sob a luz do Renascimento. A relação
entre o olhar e as diversas tecnologias de visualização é inseparável de alguns dos
marcos principais da constituição deste período. De certa forma, o olho, a partir da
era moderna, transforma-se – ele próprio – em instrumento. O olho – que em
combinação com as funções racionais da mente poderia garantir o “conhecimento
verdadeiro” – torna-se uma ferramenta em constante aperfeiçoamento através do
emprego de aparatos tecnológicos que melhoram o seu desempenho, na ampliação
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de seu alcance ou na criação de novas possibilidades. Mas, as mesmas ferramentas


– provedoras da verdade – também podem oferecer ilusões. Neste jogo, o homem
ganha o domínio dos códigos: pela primeira vez na história da realidade sensível
há um conjunto de disposições sistemáticas que pode ser empregado para
favorecer a dominação de um dos sentidos. Deste modo, não parece haver dúvida
de que a perspectiva iniciou a racionalização do olhar. A compreensão desta
influência unicamente sobre o campo da arte é restritiva. Praticamente, todos os
campos do conhecimento foram influenciados por esta ferramenta e esta
ascendência de algum modo acabou refratando sobre o próprio campo da arte.174
A instrumentalização do olhar talvez aponte o primeiro sonho mecanicista.
Não importa se, em um primeiro momento, esta mecanização foi de fato
materializada ou se restringiu apenas às imagens, como nas gravuras de Dürer.
Estas são evidências suficientes da intenção de mecanização na produção de
imagens. A partir dos aparatos tecnológicos do olhar, surgidos com o
Renascimento, podemos apontar para o primeiro relacionamento homem-máquina
- hoje tão evidente com a onipresença do computador. Mas, já em seus
primórdios, as máquinas do olhar buscavam superar o homem, iludindo-o com a
sua “naturalidade”.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 97

A abordagem do “olho” no singular não nos parece isenta de significado.


Diga-se a propósito que a utilização de grande parte dos aparatos da primeira
visualidade foi pensada em função de um único olho. Identificamos esta
observação na perspectiva nos textos e gravuras da época. Para a utilização do
telescópio, e mesmo dos primeiros óculos, ou monóculos, um olho deveria estar
sempre ausente ou fechado. Na câmera escura esta observação é menos tangível,
mas, o próprio aparato, possui um único olho: o pequeno orifício por onde entra a
luz. Sabe-se que a visão humana precisa dos dois olhos para ver em profundidade,
mas ao primeiro olhar moderno só lhe era dado um ponto estático.
É dada a partida para a individuação do sujeito: a câmera escura, por
exemplo, era voltada para a visão de um único observador, inserido em seu
espaço, isolado da realidade externa e que enxergava apenas através dos raios de
luz que entravam pela abertura da câmera. Igualmente, a perspectiva, com seu
ponto de vista unidimensional, demarca uma posição determinada também para o
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observador da obra. O indivíduo do olhar torna-se o sujeito humanista. Mas, se há


uma sugestão de autonomia a partir da emergência do sujeito nascido com o
Renascimento, esta, de fato, encontra limitações. O novo sujeito é confrontado
pelas novas regras, como os preceitos da perspectiva, os novos limites do universo
– que acaba de descobrir-se infinito – e por uma nova sociedade. Neste contexto,
discordamos do posicionamento de Crary que desvincula a câmera escura dos
desenvolvimentos posteriores. Em nosso ponto de vista, ela apresenta-se como
fundamental na sua oferta de entretenimento a partir da visualidade.
Deste modo, apesar da implicação de subjetividade sugerida pelo ponto de
vista, o olhar ciclópico mostra-se imbricado por regras e convenções. A
padronização ou racionalização do olhar que tem início com a perspectiva e o
emprego da gravura irá, posteriormente, com a industrialização, incluir os objetos.
Não há dúvida que o olhar que começou a ser construído no período clássico foi
fundamental para a procura pela eficiência, um dos fatores que posteriormente
conduziu ao desenvolvimento do design. O olhar clássico conheceu as primeiras
convenções na construção da arte – e posteriormente no design – e passou a
desenvolver-se a partir do convencionado.

174
Este argumento é bem desenvolvido por KEMP, Martin. The science of art. Optical themes in western art
from Brunelleschi to Seurat. New Haven: Yale, 1990. p.53
O OLHAR INOCENTE É CEGO 98

Parece significativo que o termo “convenção”, criado a partir do latim,


conventionem ou conventione, surja por volta de 1440 como sinônimo para
“acordo”. “Convenção” no sentido de “seguir a tradição” surge apenas em
1831175, o que nos abre um outro leque de questões que serão discutidas no
próximo capítulo. A esta dupla acepção da palavra, estabelecem-se suas
oposições. De um lado, o convencional em oposição ao que é original e, de outro,
ao que é arbitrário, ou seja, o que não foi acordado ou estabelecido dentro de uma
comunidade interpretativa em determinada época. Greenberg observa que o termo
“convenção” ou “convencional” aplicado à arte adquiriu uma conotação
pejorativa, significando uma expressão pouco criativa e monótona.176 Por outro
lado, para este autor, as convenções em arte não são permanentes nem imutáveis.
Elas “extinguem-se e perecem, mas não simplesmente porque alguém resolveu
que deveria ser assim”177, mas como um resultado de um processo no tecido
social.
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É importante observar que embora as convenções estejam presentes nos dois


lados da fruição da arte e do design – produção e recepção – elas funcionam de
maneira diferenciada em cada pólo da comunicação e chegam mesmo a
caracterizar diferentemente grupos em cada um dos lados. Na produção,
especialmente de um tipo de arte, a arte de vanguarda, há a necessidade de
demarcar uma “nova convenção”, como assinalado acima, a partir do rompimento
com a convenção anterior. Por outro lado, o produtor visual não pode abrir mão
destas mesmas convenções sob pena de não se comunicar. No design, a influência
das convenções é mais atuante e recíproca. Como observa Gui Bonsiepe, há uma
relação de mútua influência entre o designer e a cultura material178, onde o
designer atua simultaneamente, como sujeito e objeto da dinâmica cultural.
Em relação à recepção das convenções, é importante destacar que as últimas
constituem conjuntos de conhecimentos compartilhados por um determinado
grupo ou sociedade. Deste modo, a inserção de um receptor eventual é facilitada

175
Chicago Manual Style (CMS): convention. Dictionary.com. Online Etymology Dictionary. Douglas
Harper, Historian. <http://dictionary.reference.com/browse/convention> Acessado em 29 de maio de 2007.
176
GREENBERG, Clement. Convenção e inovação. In: ___. Estética Doméstica. São Paulo: Cosac & Naify,
2002. p. 98
177
Ibid., p. 100.
178
Este conceito de Bonsiepe foi extraído da apresentação de Maristela Mitsuko Ono e Maria Cecília
Loschiavo dos Santos da Universidade de São Paulo, na 5th European Academy of Design Conference em
Barcelona entre os dias 28 e 30 de abril de 2003. As autoras não informam a procedência da citação.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 99

pelo domínio das convenções de domínio público, muitas vezes pensadas como
percepções humanas naturais. Por outro lado, a utilização de uma convenção não é
garantia de compreensão do receptor, detentor de uma subjetividade própria.
Além do mais, o conhecimento das convenções necessárias para determinada
fruição artística, simbólica ou estética, pode se alterar com o passar o tempo. O
fundamental na avaliação deste estudo é o papel que as tecnologias acabam
cumprindo na estruturação de convenções relacionadas à visualidade e como esta
relação foi crescentemente sendo estruturada sobre o conceito de formas de
espetáculo. Discutiremos estas questões no próximo capítulo, a partir dos eventos
ocorridos na segunda metade do século XIX.
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O OLHAR INOCENTE É CEGO 100

3.
O olhar panorâmico e “mil coisas para ver”

Este capítulo aborda algumas das modificações ocorridas no contexto das


novas vivências da segunda metade do século XIX que influenciaram a construção
de uma cultura visual moderna. Esta se apresenta como parte de um amplo
conjunto de transformações artísticas, científicas, tecnológicas, econômicas e
sociais, inclusive com o surgimento do que passamos a conhecer como design.
Cabe aqui como uma ressalva que a utilização do termo “moderno” não se nos
apresenta como uma escolha simples e confortável, principalmente nestes tempos
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que apontam para uma sociedade pós-industrial, da informação, uma alta


modernidade ou, ainda, uma pós-modernidade.179 Iniciamos este capítulo com
uma discussão de cunho metodológico sobre o emprego de termos como moderno,
modernidade, modernização, e revolução industrial para, em seguida, abordar a
influência das tecnologias sobre a construção do olhar, a partir da análise da
implantação da eletricidade e alguns de seus reflexos. Neste contexto, há uma
frase esclarecedora de David Harvey. Segundo este autor “o modernismo é uma
perturbada e fugidia resposta estética a condições de modernidade produzidas por
um processo particular de modernização”.180 Em nosso ponto de vista, é a partir
da articulação destas condições que se constrói o olhar moderno.
Deste ponto em diante, o presente capítulo se desenvolve em duas direções
ou eixos. O primeiro eixo é construído sobre as transformações da vida cotidiana a

179
O momento atual tem sido analisado segundo diferentes perspectivas. Há o reconhecimento de um
deslocamento de processos institucionais em direção a uma centralidade na informação que parece abalar o
sistema moderno, baseado na manufatura de bens materiais. Muitos autores, a partir do da idéia do fim da
grande narrativa apresentada por Jean-François Lyotard em 1979, se apóiam sobre o termo “pós-
modernidade” para sugerir um estado de coisas em finalização. Embora considerando que a utilização de
rótulos possa ser reducionista e limitar algumas análises a partir da demarcação rígida de limites, a nossa
tendência é adotar a expressão “pós-modernidade” como indicadora de um momento seqüencialmente
posterior e não um momento “após” uma modernidade que, em nosso ponto de vista, não foi concluída. Neste
sentido encontramos apoio na afirmação de Giddens, para quem, vivemos em um “período em que as
conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes”. Para
Giddens a percepção dos contornos de uma nova ordem “pós-moderna” é algo distinto do que é chamado por
muitos de “pós-modernidade”. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora
UNESP, 1991. p. 13.
180
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 97.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 101

partir do avanço da industrialização e do surgimento da cidade moderna. O


segundo eixo segue as percepções produzidas a partir do emprego de tecnologias
geradoras da compressão tempo-espaço.
Embora ressaltando que as tecnologias não devem ser consideradas agentes
modificadores autônomos, verificamos que nos últimos vinte e cinco anos do
século XIX, a área que constituiu a comunicação de massa viu surgir cinco
invenções fundamentais: telefone, fonógrafo, luz elétrica, comunicação sem fio e
cinema.181 Neste sentido, as tecnologias que atuam nas modificações da
visualidade podem constituir ponto de partida privilegiado para uma investigação
no campo da cultura visual. Neste contexto, embora a ascensão de novas
tecnologias de produção, transporte e comunicação possam insinuar-se como um
fator determinante, é importante destacar que as mudanças tecnológicas ocorrem
em estreita ligação com as instituições sociais, políticas e econômicas de
determinada sociedade e em um período específico. Deste modo, embora o
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desenvolvimento tecnológico ocorrido ao longo do século XIX, mostre-se um


elemento fundamental nas modificações ocorridas na cultura visual do período,
seria restritivo considerar a tecnologia como único critério de análise. A
implementação de novas tecnologias esteve diretamente relacionada à emergência
de um sistema de mercado atrelado aos princípios da propriedade privada, à
existência de governos fortes e imperialistas e ao desenvolvimento das ciências,
dentre outros fatores.182 As tecnologias de cada época devem ser articuladas às
práticas de recepção e discurso e aos regimes de poder, de forma a serem
compreendidas dentro do sistema em que foram construídas e se desenvolveram.
Na medida em que as tecnologias, considerando-se fundamentalmente as
tecnologias produtoras de imagens, se encontram entrelaçadas aos interesses
econômicos de determinadas camadas da sociedade e da indústria de informação,
sua força será maior sobre os modelos dominantes de visualização. Deste modo,
as culturas do olhar permanecem atreladas às revoluções técnicas que, em cada
época, modificam os formatos, materiais e a quantidade de imagens que uma

181
Segundo Marvin, estes produtos são proto-mass media. MARVIN, Carolyn. When old technologies were
new. New York: Oxford University Press, 1990. p.3.
182
HEILBRONER, Robert L. Do Machines Make History? Technology and Culture, Vol. 8, No. 3. (Jul.,
1967), pp. 335-345.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 102

sociedade pode absorver183. Da mesma maneira que um livro de horas do século


XIII, enorme, raro e pesado, não se lia como um livro de bolso dos nossos dias,
uma tela de TV ou de computador exige um olhar diferente do que durante
séculos foi dirigido ao retábulo de uma igreja gótica. Este enlace entre
tecnologias, sociedade e poder estabelece que imagens e mídias não podem ser
compreendidas como entidades fixas, mas como organismos em mudança184.
Além disso, a atuação de uma tecnologia produtora de visualidade em um
determinado período, dentro de uma sociedade específica, pode não encontrar
correspondência em outra sociedade ou outra época.
Esta visão colabora com a idéia de que as tecnologias, assim como as mídias
e os modos de olhar, coexistem com modos anteriores de expressão; não deixam
de existir nem são abandonadas quando surge um outro modo. Diversas
tecnologias, mídias e modos de olhar coexistem e interagem em um mesmo
período histórico. No entanto, a busca por uma determinação de causas e efeitos
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objetivos é hoje considerada um ranço de pesquisas ultrapassadas. Os primeiros


estudos de “análise de efeitos” na área de comunicação datam da Primeira Guerra
e foram voltados para o impacto da propaganda. Segundo o modelo da “agulha-
hipodérmica” de Harold Lasswell, a audiência é como uma massa amorfa que
obedece cegamente ao esquema estímulo-resposta. Nesta hipótese, a propaganda é
um mero instrumento, nem mais moral nem mais imoral que “a manivela da
bomba d’água”, podendo ser utilizada tanto para bons como para maus fins.185 A
idéia de um receptor “esvaziado” e que recebe influências diretas da mídia é um
pensamento que encontra coerência em teorias da psicologia em voga na época186,
mas que hoje são questionadas.
Neste momento, é importante retomar como ressalva, a reflexão de que a
cultura visual de um determinado período não se desenvolve simplesmente como

183
DEBRAY, Régis. Vida y muerte de la imagen. Historia de la mirada en Occidente. Buenos Aires:
Editorial Paidós, 1994. p. 38.
184
Pesquisas recentes mostraram que jovens bretões, entre 15 e 24 anos têm dispensado 30% menos de tempo
para a leitura de jornais desde o surgimento da internet. Anunciantes e tiragens parecem minguar e há quem
arrisque o ano de 2043 como data para o último suspiro do jornal impresso. Dados extraídos de The
economist. Este mesmo periódico cita a data acima a partir do livro de Philip Meyer, The Vanishing
Newspaper. THE ECONOMIST. Who killed the newspaper? United Kingdom: The economist group, August
26th 2006.
185
MATTELART, Armand e Michéle. História das teorias da comunicação. São Paulo: Edições Loylola,
2001. p. 37.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 103

substituição a uma constituição anterior. Ao contrário, uma cultura visual será


sempre fruto da sedimentação de vários modos de visualidade que vão se
sobrepondo. Deste modo, retomando o que já afirmamos anteriormente, a nossa
análise sobre a construção de uma cultura visual considera não apenas as
modificações ocorridas ao longo de um período histórico e por ele determinadas,
mas também as formulações visuais anteriores sobre a qual se sedimenta. A
visualidade moderna não seria uma exceção justamente na medida em que ela se
alicerça sobre a racionalidade do olhar ciclópico, construído sobre a invenção da
perspectiva e disseminado pela gravura impressa.
As novas formas e imagens que se tornaram presentes na vida cotidiana dos
moradores da cidade passaram a influir diretamente na formulação de um
repertório característico, mas, também na formulação de um olhar urbano. Em
nosso ponto de vista, estes estímulos visuais passaram a permitir que o cidadão
urbano do século XIX constituísse um novo imaginário, sobre o qual pôde
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“fabricar” uma nova visualidade a partir das imagens que vivenciou.187 Assim, a
produção de uma cultura visual de cada época, com a qual o receptor de imagens
estabelece contato, irá influenciar diretamente nas suas “escolhas” posteriores –
nas relações com o que será observado e como. A interação dinâmica entre uma
forma de olhar o mundo e a própria constituição deste mundo através da
organização de convenções e percepções relacionadas à cultura visual.

3.1. Tempos modernos

A palavra modernité, criada por Théophile Gautier188, foi difundida por


Baudelaire em seu texto O Pintor da Vida Moderna. A frase fundamental desta
obra encontra-se transcrita em quase todas as abordagens do tema: “A
modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a

186
Considere-se, por exemplo, a psicologia das massas de Le Bon, o behaviorismo surgido por volta de 1914,
as teorias do russo Pavlov sobre o condicionamento e ainda os primeiros estudos da psicologia social, que
sustentavam que somente certos impulsos primitivos, ou instintos, poderiam explicar os atos dos homens e
dos animais, vinculando o comportamento às forças biológicas.
187
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. p.
93.
188
PEREIRA, Margareth Campos da Silva. A participação do Brasil nas exposições universais. Projeto:
Revista brasileira de arquitetura, planejamento, desenho industrial, construção, n. 139, pp. 83-90, mar. 1991.
p. 83.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 104

outra metade o eterno e o imutável”.189 A dialética contida neste conceito


evidencia as dificuldades encontradas nas tentativas de compreensão e definição
do conceito de modernidade. Este sentido é reforçado por Berman em sua
afirmação de que ser moderno é viver em uma época que promete aventura, novos
prazeres, autotransformação e transformação das coisas em redor, mas, ao mesmo
tempo, ameaça destruir tudo o que somos.190 A experiência moderna é perpassada
por uma sensação de insegurança e a crescente perda de valores, que Berman
ressalta em Marx:
Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de Antigüidade e veneráveis
preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações se tornam
antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo o que é sólido desmancha no
ar.191

Segundo Berman, o mundo moderno que nos envolve como um turbilhão


tem sido parte da vida de um número crescente de pessoas ao longo dos últimos
quinhentos anos - embora cada uma delas possa sentir-se como as primeiras, e
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talvez as últimas, a passar por isso.192 O turbilhão que é, de fato, uma figura para
definir a “modernização”193, tem sido alimentado pelas inúmeras descobertas nas
ciências, pela industrialização e sua transformação de conhecimento científico em
tecnologia e pela aceleração do crescimento urbano e do ritmo de vida, dentre
outros fatores. O termo “modernização” é encontrado a partir do século XVIII
relacionado a modificações na habitação, na ortografia, no modo de vestir e no
comportamento. A partir do século XIX seu emprego se generaliza194.
A sensação de efemeridade e fragmentação produzida pelas mudanças
caóticas e muitas vezes abruptas, mas que se insinuavam – ainda que
momentaneamente – com a certeza e a racionalidade oferecidas pelo Iluminismo,
passou a expressar-se estética e culturalmente a partir do século XIX. Se a
paisagem da modernização é algo que conseguimos identificar, a sua relação com
a modernidade nem sempre é algo facilmente definida. De fato, moderno e
modernidade não remetem a conceitos claros e fechados, nem a periodicidades
definidas, como ainda parecem apresentar variações de sentido conforme o idioma

189
BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: ______. Poesia e prosa: volume único. Rio de
Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 859. O texto original foi publicado em 1863.
190
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2001. p. 15.
191
The Marx-Engels Reader. Norton, 1978. p. 475-6. apud Ibid., p. 20.
192
Ibid., p. 15-16.
193
Id.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 105

utilizado ou o campo em que é empregado195. Segundo Schorske, a palavra


“moderno” era empregada até o fim do século XVIII com “certa ressonância de
grito de guerra”, mas apenas como antítese ao “antigo”. A partir de meados do
século XIX, ainda segundo este autor, o “moderno serve-nos para diferenciar
nossas vidas e nossos tempos de tudo o que o precedeu”.196 A oposição ao
passado é deixada de lado ante a prevalência de independência em relação ao
passado. Esta formulação é sintetizada por Bayly com uma frase que, embora
tautológica, parece levar clareza ao conceito: “ser moderno é pensar-se
moderno”.197 Modernidade é a aspiração de estar de acordo com o seu tempo (to
be up with the times).198 Segundo este autor, entre 1780 e 1914, um crescente
número de pessoas qualificava-se como “modernos” ou consideravam sua própria
existência em um “mundo moderno”, mesmo que esta idéia não lhes agradasse.199
Bayly considera que, em certo sentido, o século XIX pode ser creditado como a
era da modernidade precisamente porque assim pensava um considerável número
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de pensadores, governantes e cientistas influentes. Este sentimento foi enfatizado,


na segunda metade do século XIX, pela avalanche de ícones da modernidade
industrial e tecnológica - trens, carros, aviões, telegrafo, rádio e telefone. Bayly
considera ainda o surgimento de um diferencial na qualidade de percepção das
mudanças deste período. Antes do século XIX, as mudanças passadas seriam
percebidas de modo diferente, mais próxima de “renovação”, com implicações de
repetição e não de substituição, como pode ser observado no Renascimento
através da retomada dos conhecimentos da antiguidade clássica.200
A demarcação de datas precisas na formulação do conceito de modernidade
é dificultada pelo fato de que os diversos eventos, agentes modificadores de uma
determinada situação, dificilmente ocorrem de forma sincrônica. Além disso, uma
análise de uma determinada cultura visual não pode ater-se apenas aos eventos,
mas deve abraçar também os discursos produzidos e as evidências registradas. As
mudanças capazes de promover uma nova realidade social podem acontecer de

194
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave. Um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2007. p. 282.
195
COMPAGNON, Anton. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p. 15.
196
SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle. São Paulo: Ed. da Unicamp e Cia. das Letras, 1988. p. 13.
197
BAYLY, Christopher Alan. The birth of the modern world 1780-1914: global connections and
comparisons. USA, UK and Australia: Blachwell Publishing, 2004. p. 10.
198
Id.
199
Datas estabelecidas pelo estudo autor em seu estudo. Id.
200
Ibid., p. 11.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 106

forma errática, em diferentes regiões do planeta, com influências diferenciadas em


cada uma delas. Bayly chega a mencionar a existência de “múltiplas
modernidades”201 para acentuar as diferenças entre a modernidade ocidental e a
modernidade de países asiáticos ou africanos. Embora a construção da experiência
moderna apresente uma relação estreita com a dinâmica capitalista do mundo
industrial ocidental (Europa e Estados Unidos), a desigualdade entre a experiência
moderna dos “avançados” e a que é observada nos habitantes de países
“periféricos” nos é útil para ressaltar as descontinuidades observadas na
constituição da cultura visual moderna, de acordo com o conceito de sua
construção se fazer em camadas. Neste contexto, a modernidade brasileira, por
exemplo, não se mostra simplesmente como um reflexo do que é ditado pelos
países desenvolvidos, mas constitui uma articulação particular dentro de uma nova
visualidade.
Em relação às demarcações temporais, consideramos que estas acabam
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sendo convencionadas de acordo com o enfoque pretendido pelo autor, embora o


período compreendido, aproximadamente, da segunda metade do século XIX até o
início da Primeira Guerra Mundial seja amplamente reconhecido pela ocorrência
de transformações sem precedentes na história mundial. Neste contexto, as
convenções em relação à demarcação temporal não apresentam variações
extremas entre os diversos autores estudados. Kern202, Smil203, Hobsbawm204 e
Bayly205 parecem concordar com o início da Primeira Guerra como o momento de
conclusão de um período de grandes inovações, embora apresentem diferentes
premissas para a determinação do marco inicial. Kern206 considera que as
mudanças na tecnologia e na cultura ocorridas no período que vai de 1880 até a
erupção da Primeira Guerra criaram novos modos de pensar as experiências de
tempo e espaço. No entanto, seu estudo estende-se até 1918, de forma a
contemplar o que nomeia de “guerra cubista”. Smil destaca o período de 1867 a

201
Ibid., p. 10.
202
KERN, Stephen. The culture of time and space. 1880-1918. Cambridge, Massachusetts: Harvard
University Press, 1994. Seventh Printing.
203
SMIL, Vaclav. Creating the Twentieth Century. Technical Innovations of 1867-1914 and their Lasting
Impact. New York: Oxford University Press, 2005.
204
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Editora Schwarcz,
2003.
205
BAYLY, C. A. op. cit.
206
KERN, S. op. cit., p. 1.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 107

1914207 como um período único na história, não apenas pelo âmbito extensivo das
inovações, mas também pela rapidez dos avanços obtidos no período. Bayly208
inicia o mundo moderno mais cedo, em 1780, empreendendo um longo século
XIX, com destaque para sua fase final entre 1890 e 1914, quando tem lugar o que
ele denomina “a grande aceleração” das transformações, uma definição que
relacionamos perfeitamente ao nosso estudo sobre as mudanças ocorridas na
visualidade. Embora apoiando o pensamento de Tom Gunning, para quem a
“modernidade” é menos um período histórico do que uma mudança na
experiência209, nós compreendemos a modernidade como uma temporalidade
histórica que ecoa até o presente.210 Deste modo estabelecemos como marco
inicial do nosso estudo sobre as mudanças ocorridas na cultura visual moderna, o
ano de 1851, quando se realizou a primeira Exposição Universal em Londres.
Como detalharemos adiante, existem fatores que apontam para certa
homogeneidade no período que se encerra com o início da primeira Guerra
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Mundial. Deste modo, este período, que de fato se encerra na segunda década do
século XX, encontra-se ainda dentro da formulação cultural e epistemológica da
segunda metade do século XIX.

3.1.1. (R)evolução industrial

Os estudos históricos consideram que a expansão industrial compreende


pelo menos duas etapas marcadas por tecnologias específicas. De uma maneira
geral, distingue-se uma “revolução do carvão e do ferro”, de 1780 a 1850, e uma
“revolução do aço e da eletricidade”, de 1850 até 1914.211 No entanto, não há
consenso em relação à utilização do termo “revolução” e nem mesmo na sua
efetiva existência. Em alguns círculos, por exemplo, evita-se a expressão
“revolução industrial” por sugerir, acredita-se, erroneamente, a idéia de uma

207
A data de 1867 foi escolhida por Smil por ser o ano da formulação da segunda lei da termodinâmica, da
criação da dinamite por Alfred Nobel - como um sinal de grande contradição - a invenção da máquina de
escrever e da publicação do Capital por Karl Marx, dentre outros eventos. SMIL, V. Creating…p 10.
208
BAYLY, C. A. op. cit.
209
GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. In
CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac
& Naify, 2001. p 39.
210
BAYLY, C. A. op. cit., p. 11.
211
Esta divisão é apresentada por HENDERSON, W. O. A Revolução Industrial 1780-1914. São Paulo:
Editora Verbo, Editora da Universidade de São Paulo, 1979. p. 7-8.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 108

ruptura com o quadro anterior, quando, de fato, observa-se que as etapas de


industrialização são processos lentos e gradativos212, surgidos mais a partir de
uma evolução do que de uma ou mais revoluções. Castells considera que a
introdução de um novo paradigma tecnológico é capaz de instituir, com grande
rapidez, uma descontinuidade nas bases materiais da economia, da sociedade e da
cultura, apesar de acreditar que os novos paradigmas tecnológicos funcionam
como pontuações em meio a períodos mais ou menos estáveis.213 Talvez por este
motivo, este autor não se oponha à utilização do termo “revolução” para
caracterizar a penetrabilidade das novas tecnologias que alteram processos nos
diversos domínios da atividade humana, além de gerar novos produtos.
A importância da Revolução Industrial no século XVIII vem sendo
relativizada em estudos recentes e a literatura acadêmica aponta duas diferentes
visões em relação a este processo.214 A narrativa mais tradicional vê a Revolução
Industrial como produtora de uma grande mudança na economia e sociedade
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Britânica. Outros autores consideram que a “Revolução Industrial” foi um


fenômeno localizado e restrito que trouxe mudanças significativas para umas
poucas indústrias (têxteis com utilização do algodão e do ferro), enquanto a
economia Britânica permanecia tradicionalmente manufatureira.215
Há ainda questionamentos sobre a presença de embasamento científico nos
avanços tecnológicos da Idade Média e dos primeiros anos da Idade Moderna. De
acordo com Smil, apesar de serem baseados em observação e experimentos, estes
processos não proviam conhecimento que explicasse o porquê de alguns artefatos
e processos funcionarem enquanto outros simplesmente falhavam.216 Este quadro
teria permanecido até as primeiras décadas da Revolução Industrial, mas apenas
na segunda metade do século XIX é que se presenciaram avanços tecnológicos
baseados em conhecimentos científicos sofisticados e – pela primeira vez na
história – a ligação freqüente e ágil entre pesquisa, produção e comercialização foi
capaz de produzir novos conhecimentos e, conseqüentemente, novos produtos. A
discussão sobre a relação entre pesquisa cientifica e o desenvolvimento de novas

212
Cf. “industrialização” e “revolução” em OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom. Dicionário do
Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1996.
213
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Vol. 1.
São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000.
214
TEMIN, Peter. Two views of the British Industrial Revolution. The Journal of Economic History, vol. 47,
No. 1 (Mar, 1997).
215
SMIL, V. Creating…, p. 43.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 109

tecnologias parece ter acompanhado o desdobramento dos fatos. Um exemplo


interessante deste questionamento pode ser observado na Figura 43, retirada do
periódico londrino Punch da última década do século XIX. A figura mostra o
cientista Michael Faraday, conhecido por suas pesquisas com o eletromagnetismo.
A charge que sugere uma homenagem ao centenário do cientista, deixa claro que
nesta época Faraday já não se encontrava vivo. Mas na figura, ele aparece
representado em meio a diversos instrumentos científicos, utilizando o fonógrafo
de Edison. Ao fundo vemos um aparelho telefônico e um cartaz com indicação
dos cabos telegráficos que correm ao redor do mundo. Assim, cercado por
invenções modernas, Faraday tem ao seu lado uma figura feminina, a Ciência,
para quem se dirige, em congratulação pelos “maravilhosos progressos realizados
desde a minha época”. É interessante observar que no período de vinte e cinco
anos, entre a morte de Faraday e o desenho do Punch, tenham surgido tantos
objetos e tecnologias relacionados, de alguma forma, à pesquisa cientifica.
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Figura 43. Um centenário científico. Faraday (de volta).


"Muito bem, Senhorita Ciência! Meus parabéns!Você
conseguiu um progresso maravilhoso desde o meu
tempo!" Punch, or The London Charivari. Vol. 100. 27
de junho de 1891.
The Project Gutenberg <http://www.gutenberg.org> (21/11/07).

Apesar disso, é importante destacar que a relação entre ciência e a


descoberta de novas tecnologias não pode simplesmente assinalar uma ruptura na
produção de artefatos e modos de vida, uma vez que muitas das invenções do
período ainda poderiam ser remetidas a descobertas casuais. Bayly acentua este

216
Ibid., p. 13.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 110

ponto na medida em que muitos dos efeitos e transformações ocorridos a partir da


industrialização tornaram-se claros apenas em meados do século XIX.217
De fato, embora estas colocações pareçam conduzir à avaliação de que a
segunda metade do século XIX constituiu um momento de amadurecimento da
industrialização, é importante ter presente que as invenções nem sempre sucedem
de imediato os desenvolvimentos tecnológicos que lhe deram origem. Na maioria
das vezes, o momento da invenção e o período de ação da tecnologia como agente
modificador, encontram-se distanciados no tempo. É este o caso, por exemplo, da
televisão cuja tecnologia encontrava-se pronta antes da Segunda Guerra, que
interrompeu o seu desenvolvimento e adiou a institucionalização do invento em
cultura. Mais importante ainda é a compreensão de diversas descobertas ao longo
do tempo atuando na formulação de uma nova tecnologia promotora de cultura,
como é o caso da informática. Embora os grandes avanços nesta área tenham
ocorrido a partir da invenção dos semicondutores e microprocessadores, a
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utilização de uma fonte segura de eletricidade foi fundamental, assim como os


empreendimentos ocorridos no final do século XIX voltados para a manipulação
de dados estatísticos e instrumentos de cálculo218.
O fato é que, onde quer que se demarquem os primeiros momentos da
industrialização, eles se encontrarão diretamente relacionados ao surgimento de
novas tecnologias de produção de bens e de comunicação. Diversas características
mostraram-se fundamentais para a instituição deste processo, como a substituição
das ferramentas manuais pelas máquinas, o início da indústria mecânica e a
utilização da energia a vapor nos transportes. Também o desenvolvimento de
produtos químicos em bases científicas e o início das tecnologias de comunicação,
com o telefone e o telégrafo, além do aprimoramento da fotografia e o avanço de
novas tecnologias de impressão que, ao lado da introdução da litografia, foram
capazes de disseminar informação através de textos e imagens. Estampas, cartazes
e rótulos passaram a ser impressos com uma freqüência nunca vista, enquanto
gravuras e impressos ilustrados eram vendidos a preços populares, dando partida
ao que veio a ser chamado de indústria cultural. Uma nova organização do
trabalho se sedimentou, a partir da divisão de tarefas com a inserção de diversas
etapas na fabricação de um único objeto. A unidade entre trabalho criativo e

217
BAYLY, C. A. op. cit. p. 170.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 111

trabalho produtivo foi rompida, gerando a especialização do “projeto”, evento que


contribuiu para a formação do design moderno219. A mecanização é intensificada,
trazendo como conseqüência imediata uma menor variação individual entre os
produtos. Observa-se um aumento nas escalas de produção com a ampliação de
mercados, muitas vezes distantes do centro fabril. Para atender a estes novos
mercados, dentro de uma economia de escala, as oficinas e fabricas tiveram que se
expandir, recebendo maiores investimentos de capital em instalações e
equipamentos.
Embora a Inglaterra seja considerada o berço das primeiras indústrias, ela
foi gradativamente perdendo espaço com o passar do tempo. A maior parte das
transformações de caráter industrial das últimas décadas do século XIX concentra-
se principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha. Às vésperas da Primeira
Guerra, a produção industrial da Grã-Bretanha havia diminuído em quantidade e
seguia, em sua maioria, sendo mantida pelas indústrias de trabalho intensivo e não
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pelas indústrias de capital intensivo, características do que pode ser chamada de


segunda revolução industrial. A explicação para esta mudança, que veio a
beneficiar os Estados Unidos e a Alemanha, pode ser encontrada nas
características do novo tipo de indústria voltado para as vantagens das economias
de escopo e escala220. Esta nova indústria baseada na existência de um grande
volume de produção, necessitava de um sistema integrado de transporte e
comunicação que permitisse o deslocamento de grande quantidade de produtos
por diferentes localidades. Isto significava que as ferrovias necessariamente
deveriam estar integradas não apenas por bitolas e equipamentos estandardizados,
mas também por procedimentos padrões. O retardamento destes processos
contribuiu para que um sistema ferroviário consistente tenha demorado a se
configurar. Assim, embora a ferrovia seja, muitas vezes, apontada como a
principal responsável pela transformação do trabalho e da vida no século XIX221,
observa-se que este acontecimento constitui parte de um processo mais amplo.
A importância da padronização para a produção de massa foi assinalada pela
evolução do chamado “sistema americano”, apresentado na Exposição Universal

218
A este respeito cf. SMIL, V. op. cit., p 261 et. seq.
219
BOMFIM, Gustavo Amarante e ROSSI, Lia Mônica. Moderno e pós-moderno, a controvérsia. Design &
Interiores. Ano 3, no. 19. São Paulo: Projeto Editores Associados Ltda., 1990.
220
CHANDLER Jr., Alfred D., Fin de siècle: industrial transformation. In: TEICH, M. and PORTER, R. Fin
de Siècle and its Legacy. Cambridge Univ. Press. P. 28-41.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 112

de 1851, em Londres e que consistia na produção em larga escala de produtos


padronizados, com partes intercambiáveis, utilizando máquinas-ferramentas,
numa seqüência de operações mecânicas simplificadas. Este sistema, que havia
surgido simultaneamente e de forma independente na França e na Inglaterra,
mostrou-se bem sucedido posteriormente na indústria de armamentos dos Estados
Unidos, provavelmente graças ao apoio governamental em uma sociedade sem
tradição de corporações artesanais.222 Este processo e a existência de uma extensa
variedade de partes e acessórios fabricados, inclusive porcas e parafusos, apontou
para a necessidade de uma padronização no sistema de medidas.
No decorrer da guerra com a França entre 1870 e 1871, o império prussiano
observou as dificuldades de mobilização e utilização das ferrovias para fins
militares. Deste modo, atentou para a importância da padronização do sistema
ferroviário e estatizou as ferrovias do seu território, visando a unificação. A partir
de 1877, começou a produzir locomotivas padronizadas.223 Na Grã-Bretanha, a
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rede ferroviária, desenvolvida pela iniciativa privada, nunca se concluiu como um


todo unificado, permanecendo como a soma de linhas regionais operando de
forma independente e competitivamente. As dificuldades deste sistema eram
bastante claras: embora houvesse linhas ligando as diversas localidades, o seu
percurso envolvia mudança de trens e transferência de carga entre linhas,
onerando os custos de transporte de mercadoria. Deste modo, a adoção da
padronização do sistema ferroviário estabelece-se como um elemento de
influência direta sobre o desenvolvimento do país. No decorrer deste capítulo
veremos como a ferrovia atuou de forma revolucionária na produção do olhar
moderno, a partir da compressão sobre as dimensões de tempo e espaço. Neste
momento, desejamos apenas acentuar, de um lado, a proximidade das
transformações tecnológicas e estruturais na reformulação do olhar e, de outro, o
fato de que ambas caminham de forma não teleológica sofrendo influências,
muitas vezes não previsíveis, como políticas e econômica.

221
HESKETT, John. Desenho Industrial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. p. 29.
222
HEILBRONER, Robert L. Do Machines Make History? Technology and Culture, Vol. 8, No. 3. (Jul.,
1967), p. 343.
223
HESKETT, J. op. cit., p. 70-71.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 113

3.1.2. A tecnologia e o novo olhar da eletricidade

Uma análise que busque compreender as transformações da cultura visual


em um período tão pleno de inovações tecnológicas, como é o caso da última
metade do século XIX, terá que necessariamente considerar questões ligadas às
tecnologias de comunicações da época. Ao longo de toda a modernidade, as
tecnologias parecem ter despertado paixões e aversões. As instâncias teóricas que
abordam o grau de influência das tecnologias e a existência de um valor intrínseco
a elas constituem um vasto campo de disputa entre diferentes perspectivas. Deste
modo, questiona-se em que medida uma tecnologia de comunicação trata-se da
uma força determinante em uma mudança social e, em que medida ela pode ser
neutra, ou seja, pode ser tão boa ou má quanto o uso que dela é feito. Apesar de
considerarmos a segunda questão como um desdobramento da primeira, é dela
que partiremos.
Marshall McLuhan, que foi muito influente na década de 1960, considerava
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esta dúvida como fora de questão. Para ele seria equivalente a questionar se o
vírus da varíola ou as armas de fogo seriam, em si mesmos, bons ou maus - seu
valor dependendo da forma como seriam utilizados.224 De acordo com McLuhan
todas as tecnologias de comunicação atuam diretamente na construção do nosso
pensamento e de nossa percepção, independente do conteúdo e do contexto social.
Em nosso ponto de vista, as conclusões de McLuhan parecem excessivamente
deterministas (a mensagem seria apenas encontrada nos meios?). Sua rejeição às
análises de conteúdo e às questões de recepção enfraquece e limita o seu
posicionamento. Além do quê, nos perguntamos, como ficaria a sua análise sobre
os meios frios e quentes a partir das mudanças, fusões e alterações que
freqüentemente sofridas pelos próprios meios. A HDTV, televisão de alta
definição, por exemplo, continuaria a ser considerada um meio frio como a antiga
televisão em preto e branco?
Apesar das nossas críticas em relação ao posicionamento de McLuhan,
consideramos que o determinismo tecnológico não chega a constituir um
problema na medida em que ele é matizado. Deste modo, consideramos que a
presença ou implantação de uma determinada tecnologia de comunicação pode ser

224
McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Ed. Cultrix,
1969. 15a. reimpressão. p. 25.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 114

um agente catalisador ou facilitador de determinadas conseqüências - que podem


ou não se realizar em sociedade ou períodos específicos.225 Para nós, o
determinismo torna-se problemático quanto assume o enfoque evolucionista e
passa a considerar as mudanças sócio-culturais de acordo com uma linha
evolucionária sempre em direção ao “progresso” material e, também, muitas
vezes, moral – obtido a partir dos sucessivos estágios de desenvolvimento
tecnológico, considerados verdadeiras revoluções. Deste modo, ao se acatar a
vocação evolucionista, algumas vezes de forma inconsciente, os períodos
caracterizados por uma determinada tecnologia passam a ser chamados como “era
da informação” ou “da imprensa”. Não é preciso dizer que esta abordagem, além
de relegar a influência social a um segundo plano, tende a considerar a
substituição de uma tecnologia por outra mais moderna, quando na verdade elas
muitas vezes se sobrepõem: a televisão não destruiu o cinema nem parece
ameaçada pela internet. As diversas tecnologias não se encontram simplesmente
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ajustadas em linhas sucessivas em direção ao “progresso”.


Em nosso ponto de vista, mais do que um agente modificador, cada
tecnologia é um processo que atua na construção do ambiente e das relações
sociais, econômicas, políticas e culturais, mas, também sofrendo influências
destas. O conceito de tecnologia como processo procura não fixá-la como um
evento detido no tempo, quando na verdade sua implantação ocorre em diversas
etapas a partir da sua invenção226, passando pela sua formalização,
institucionalização e absorção e, algumas vezes, descontinuidades. Deste modo,
faremos algumas colocações relacionadas ao desenvolvimento da energia elétrica,
uma “nova tecnologia” surgida no século XIX, com o intuito de observar o que
chamamos de processo.
A imagem do planisfério que vemos aqui (Figura 44) é uma montagem de
fotos tiradas por satélites.227 Ela cria um desenho do nosso planeta a partir da
utilização da iluminação noturna em áreas urbanas. Se uma montagem como esta
pudesse ter sido produzida há duzentos anos atrás, o desenho resultante teria sido

225
FINNEGAN, Ruth. Literacy and Orality: Studies in the Technology of Communication. Oxford: Basil
Blackwell, 1988. apud CHANDLER, Daniel (1995): Technological or Media Determinism
http://www.aber.ac.uk/media/Documents/tecdet/tecdet.html Acesso em 12 de fevereiro de 2008 às 16:07.
226
Embora reconheçamos grandes valores a quem são atribuídas importantes “invenções”, em nosso ponto de
vista, uma tecnologia surge mais como o resultado de um longo processo de estudos científicos anteriores.
Seria algo como a pessoa certa estar corretamente preparada, no lugar e na hora certos.
227
A sugestão desta imagem foi obtida a partir de SMIL, V. op. cit..
O OLHAR INOCENTE É CEGO 115

muito diferente. De modo que, o resultado que temos em mãos nos sugere uma
mudança impactante gerada pelo desenvolvimento de uma tecnologia específica -
a eletricidade - capaz de “imprimir” alterações na própria face da Terra.

Figura 44. Terra à noite. NASA/DMSP. 27 de novembro de 2000.


Retirado de <http://antwrp.gsfc.nasa.gov/apod/ap001127.html> (5/06/07).
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A “montagem” realizada duzentos anos atrás talvez nos mostrasse um brilho


pálido em alguns pontos da Europa e dos Estados Unidos. A comparação com a
imagem atual geraria admiração pelo desenvolvimento proporcionado pelo
emprego desta tecnologia, chegando a sugerir uma verdadeira revolução. Não
resta dúvida que o emprego da energia elétrica atuou de forma revolucionária na
constituição do olhar moderno, minimamente, por interferir na influência natural
dos tempos diurnos e noturnos, além de possibilitar energia para a utilização de
diversos aparatos como o projetor de cinema. No entanto, a provisão de
iluminação noturna que mudou de forma direta a vida cotidiana nas ruas e nas
casas, foi iniciada com a iluminação a gás na primeira metade do século XIX.
Sobre a luz a gás, Guy de Maupassant chegou a afirmar que “as noites
resplandecentes são mais alegres que os grandes dias de sol”.228
A partir do final do século XIX, a eletricidade foi um fator predominante
para o desenvolvimento tecnológico, não somente por promover iluminação para
residências e empresas, apartando o tempo da influência direta da natureza, mas
também por transformar inúmeros processos de produção, particularmente nas
indústrias químicas e de metalúrgicas.

228
MAUPASSANT, Guy de. Clair de Lune, Paris, 1909, p. 222. apud BENJAMIN, Walter. A fotografia.
Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. p. 613. [T 5,1].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 116

A eletricidade era conhecida desde a antiguidade, mas estudos com


características científicas foram observados apenas a partir dos séculos XVII e
XVIII. No entanto, como sugerem as figuras da publicação do século XVIII
(Figura 45; Figura 46), apesar de estudada em laboratórios, ainda não existia uma
idéia concreta do que poderia ser a sua utilização. Os experimentos se prendiam à
compreensão de seus princípios enquanto sua finalidade sugeria uma proximidade
com a área médica.
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Figura 46. ADAMS, George. An essay on electricity,


explaining the principles of that useful science; and
describing the instruments, ... Illustrated with six plates. The
Figura 45. Folha de rosto do livro
fifth edition, with corrections and additions, by William
An essay on electricity, 1785.
Jones, ... London, 1799. Eighteenth Century Collections
London, 1799. Eighteenth Century
Online. Gale Group. <http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO>
Collections Online. Gale Group. (2/08/06)
<http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO>
(2/08/06)

Esta idéia ainda acompanhou o desenvolvimento da eletricidade por algum


tempo. No folheto de 1890, vemos o anúncio de um magneto baseado no “poder
de cura da eletricidade” e que afirmava poder sanar problemas de pele, dores de
dente, ciática e até paralisias (Figura 47). Este tipo de anúncio não se trata de um
caso isolado. Relatos de experimentos médicos utilizando eletricidade eram
comuns em publicações especializadas229, como o Electricity and Electrical
Engineering, cujo anúncio reproduzimos aqui (Figura 48). É claro que estas
publicações, existentes em grande número, não eram dedicadas apenas a
experimentos ou aplicações médicas, mas eram voltadas para a grande demanda
de trabalhadores qualificados no setor elétrico.

229
MARVIN, Carolyn. When old technologies were new. New York: Oxford University Press, 1990. p. 129.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 117

Figura 48. Anúncio do periódico Electricity & Electrical Engineering,


1888. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The British
Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07)

Figura 47. Anúncio do magneto elétrico do Dr.


Lowder, 1890. Evanion Collection of
Ephemera. Collect Britain. The British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (19/01/08)
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A nova fonte de energia foi apresentada na Exposição de Paris de 1855.


Segundo L’Illustration Française, a eletricidade “dá uma luz que parece uma
emanação do sol; ela produziu no tratamento físico de corpos simples, efeitos que
viriam deslocar todos os conhecimentos teóricos sobre a matéria”.230 Mas, foi
apenas na Exposição de 1867 que a eletricidade recebeu maior atenção graças à
inauguração do primeiro cabo telegráfico submarino um ano antes. Jacques
Fabien, em 1863, a propósito de considerações sobre a velocidade de notícias
trazidas pelo telégrafo como agente de insanidade, faz um pequeno relato do
percurso de aplicação da eletricidade:
A luz jorrando da eletricidade serviu primeiro para iluminar as galerias
subterrâneas das minas: no dia seguinte, as praças públicas e as ruas; depois, as
fábricas, as oficinas, as lojas, os espetáculos, os quartéis; e finalmente, as casas de
família. Os olhos, em presença desse inimigo radiante, comportaram-se bem, mas
pouco a pouco veio o deslumbramento, efêmero no início, depois periódico, e no
fim, persistente. Eis o primeiro resultado.231

Na sua chegada à Inglaterra, em 1881 - para distribuição e venda - a


eletricidade era utilizada exclusivamente para iluminação, o que gerou uma série

230
L’Illustration Française . Paris: 17 nov. 1855. p. 335. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições
universais. Espetáculos da Modernidade do século XIX. São Paulo: Editora Hucitec, 1997. p. 90
231
FABIEN, Jacques. Paris em Songe. Paris: 1863, pp. 96-98. apud BENJAMIN, W. Passagens... p. 610. [T
3,1].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 118

de problemas.232 Por um lado, este tipo de utilização mostrou-se vantajosa em


relação ao gás, graças a sua limpeza e brilho. No entanto, como a demanda
exclusiva para iluminação era limitada às horas de escuridão, o fator de carga
necessário à produção de energia permanecia inativo ao longo do dia. Em outras
palavras, os custos de capacidade de geração de energia para o pico da carga,
localizado principalmente à noitinha e no começo da manhã, faziam com que a
eletricidade atingisse um alto custo, dificultando o seu consumo. A solução para
este problema deixava evidente a necessidade de se criarem outros usos para ao
longo do dia. Em 1895, o engenheiro da estação de força Kensington Court
publicou um pronunciamento no Journal of the Institutuion of Electrical
Engineers, onde afirmava a importância de se encorajar à população a fazer uso
da eletricidade para o aquecimento e o preparo de alimentos; para tanto, devia-se
tornar evidentes as vantagens de seu uso, desenvolvendo-se dispositivos para este
fim.233 Ou seja, clamava-se pela criação de artefatos que pudessem utilizar a da
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eletricidade. Como qualquer outro produto industrial, a energia elétrica precisava


ser consumida em quantidade e por um público amplo para obter as vantagens da
produção em escala.
Por volta de 1900, o uso da energia elétrica era mais freqüente na indústria e
tração, mas a demanda permanecia baixa à noite e nos finais de semana. Até o
início da Primeira Guerra Mundial seu uso doméstico era ínfimo234 e, ao final do
conflito, as mesmas dificuldades continuavam presentes. A maior parte dos
produtos domésticos que conhecemos hoje foi inventada naquela época, ao lado
de vários outros aparatos que devem ter se mostrado menos úteis, como chaleiras
elétricas e esterilizadores de leite (Figura 49; Figura 50). Mas, o principal
obstáculo para a utilização da eletricidade continuava sendo o seu alto custo.
Havia um círculo vicioso: a energia elétrica era cara e por isso pouco utilizada;
por ser pouco consumida, continuava cara. Além disso, havia outras dificuldades:
era necessário levar cabos elétricos para dentro de casa e pelos diversos aposentos.
A eletricidade encontrava terreno fértil para superstições: seus pressupostos eram
pouco compreendidos, e ainda podia ser fatal em caso de mau uso. Finalmente, o
gás continuava sendo mais eficiente e barato.

232
FORTY, Adrian. Objetcts of Desire. Design & society form Wedgwood to IBM. New York: Pantheon
Books, 1986. p. 183.
233
Ibid., p. 184
O OLHAR INOCENTE É CEGO 119

Figura 49. Electric breakfast, 1914. Retirado de


FORTY, Adrian. Objetcts of Desire. Design &
society form Wedgwood to IBM. New York:
Pantheon Books, 1986. p. 187.
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Figura 50. Anúncio de produtos elétricos


Magnet, 1914. Retirado de FORTY, Adrian.
Objetcts of Desire. Design & society form
Wedgwood to IBM. New York: Pantheon
Books, 1986. p. 186.

Dois recursos foram considerados para mudar este quadro: a eficiência dos
artefatos, ressaltando a importância do design, e a utilização de propaganda. Neste
contexto, a eletricidade chegou a ser tratada como “o maior presente da ciência
para o mundo” e o “combustível do futuro”. Neste sentido, o texto de Condulack,
mostra, a partir da análise de representações da eletricidade (e seus raios
luminosos) em impressos das últimas duas décadas do século XIX, como esta
tecnologia associou-se à divulgação de uma vida urbana moderna.235 É
interessante observar em exemplos contemporâneos a continuidade de uma
solução gráfica vinculada à glorificação de uma tecnologia, então, recente.

234
Ibid., p. 185
235
CORDULACK, Shelley Wood. A Franco-American Battle of Beams: Electriciy and the Selling of
Modernity. Journal of Design History. Summer 2005; 18: 147-166.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 120

Figura 52. Liberdade faiscando para o


mundo. Le Journal Illustré de 10 de outubro
de 1875. In: CORDULACK, S. op. cit. p.
149.

Figura 51. O Farol elétrico da Torre Eiffel,


ilustração da capa para Exposition de Paris de
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1889. No. 14, 1o. de junho de 1889. In:


CORDULACK, Shelley Wood. A Franco-
American Battle of Beams: Electriciy and the
Selling of Modernity. Journal of Design History.
Summer 2005; 18: 157.
Figura 53. A estrela da esperança: uma nova
ode naval. Punch, or the London Charivari,
Vol. 104, 11 de fevereiro de 1893.
The Project Gutenberg. <http://www.gutenberg.org>
(21/11/07).

As noções de modernidade e progresso, sugeridas a partir da aliança com


novas descobertas científicas, passaram a ser aplicadas ostensivamente no design
de produtos elétricos, após a Segunda Guerra, utilizando-se referências explícitas
a carros e aviões. Deste modo, embora a sua utilização tenha sido praticamente
“empurrada”, a energia elétrica é hoje fundamental na vida cotidiana e no
desenvolvimento de qualquer país, participando ativamente na construção do
olhar moderno.

No Brasil, a introdução da energia elétrica encontrou as mesmas


dificuldades iniciais, mas a principal diferença pode ser observada na total
inexistência de artigos elétricos, que durante muitos anos, eram importados. As
primeiras experimentações aconteceram no período imperial embora a
disseminação tenha ocorrido apenas nos últimos anos do século XIX, sob o
O OLHAR INOCENTE É CEGO 121

regime republicano. No entanto, poucas companhias de eletricidade demonstraram


investimentos no sentido de tentar ampliar o consumo. A Central Elétrica Rio
Claro, localizada no interior de São Paulo é um destes exemplos. Esta empresa
incluía em seus negócios a revenda de lâmpadas, ventiladores, fusíveis, lustres e
motores. Em 1910 passou a vender campainhas de porta e ferros elétricos de
engomar e, em 1920, geladeiras. A AMFORP, Companhia Central Brasileira de
Força Elétrica, localizada no Espírito Santo no final da década de 1920, vendia a
crédito nas dependências de seus escritórios, produtos elétricos importados.
Assim, até 1930 embora se observasse um crescimento da capacidade instalada, a
produção de equipamentos elétricos era virtualmente inexistente. A conta de luz
de 1937 da “Companhia Douradense de Electricidade” apresenta um pequeno box
com propaganda do rádio: “Encha o seu lar de alegria com o rádio General
Electric” (Figura 54). Deste modo, embora o desenvolvimento da eletricidade
tenha encontrado no Brasil os mesmos obstáculos da Inglaterra, não se tem notícia
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de nenhum investimento específico na criação de produtos que pudessem expandir


o consumo, muito menos de sinais do papel que o design teria a desempenhar
nesse processo.

Figura 54. Recibo de luz, emitido em 1937. Arquivo museu histórico


CPFL. In: DIAS, Renato Feliciano (coord.) Panorama do setor de
energia elétrica no Brasil. Centro da memória da eletricidade no
Brasil. Rio de Janeiro, 1988. p. 97.

Este quadro nos permite destacar a urgência ao estímulo do consumo e o


processo de criação de uma necessidade. A eletricidade, isto é, uma nova
tecnologia, que hoje nos parece essencial à vida moderna, necessitou de
“estímulos” ao seu consumo através do desenvolvimento de objetos que
funcionassem baseados neste tipo de energia. Alguns destes artefatos, em um
O OLHAR INOCENTE É CEGO 122

primeiro momento, funcionavam melhor com outra energia ou eram mesmo


completamente desnecessários.
De volta à montagem das fotos noturnas retiradas por satélites (Figura 44)
temos ainda algumas observações, desta vez unicamente em relação à imagem
contemporânea. Nesta figura, observamos que os pontos claros que marcam a
maior incidência de utilização de eletricidade parecem concentrar-se mais
fortemente na Europa, América do Norte (com predomínio em sua costa leste) e
Japão. Com menos intensidade, as luzes situam-se ainda na Índia e regiões
costeiras da América do Sul, Ásia e Austrália. As regiões centrais da Ásia e da
África parecem às escuras. Se ao pensarmos nesta mesma imagem ao longo do
tempo tivemos a certeza do poder de influência desta tecnologia, o contraste
luminoso entre as diversas regiões nos sugere que esta influência esteve sensível a
outras questões, predominantemente econômicas e sociais.
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Em nosso ponto de vista, a construção social da tecnologia compreende


negociação e construção de significados por parte de produtores e consumidores.
Considerando os estudos de comunicação, este enfoque aproxima-se da
decodificação “negociada” apontada por Stuart Hall236. O modelo de Hall aponta
para uma cadeia comunicativa que não opera de forma unilateral. Ele mostra que
uma mensagem visual, por exemplo, é uma estrutura complexa, com várias
camadas de sentido e que sua recepção não é algo perfeitamente transparente.
Esta visão, que apresenta a “negociação” da recepção e a existência de
múltiplos vetores de influência, pode ser utilizada para explicar, em parte, porque,
em alguns casos, a tecnologia que acabou tornando-se propulsora das mudanças,
encontrava-se disponível décadas antes do início de seu uso e do conseqüente
processo de reconfiguração das condições sociais existentes. Em verdade, as
alterações desencadeadas por uma nova tecnologia demandam, dentre outras
coisas: um determinado estágio de conhecimento; um ambiente institucional e
industrial específico; disponibilidade de talentos; certa mentalidade econômica e
grupos sociais capazes de absorver a produção gerada. Em resumo, “a inovação

236
HALL, Stuart. Reflexões sobre o modelo de codificação/decodificação: uma entrevista com Stuart Hall.
In: Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003a.
p. 357.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 123

tecnológica não é uma ocorrência isolada”237, mas também não é “uma


tempestade que nos impele irresistivelmente para o futuro”, ao qual viramos as
costas.238 Ou por outro, tecnologia não é sinônimo de progresso. As tecnologias
de comunicação e visualização, que fundam a cultura visual, como qualquer outra
tecnologia, surgem e se modificam de acordo com os movimentos da sociedade,
amparadas pelos desejos das classes dominantes, sem dúvida, mas também
apoiadas ou rejeitadas pela sociedade como um todo.

3.2. A cidade moderna e a vida cotidiana

O estudo das formações urbanas surgidas e modificadas com a


industrialização ao longo do século XIX mostra-se fundamental para a
compreensão da construção do olhar moderno. O olhar deste período sofreu
influência da nova constituição espacial e do grande número de estímulos visuais
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que acompanharam este processo. No entanto, a cidade moderna não pode ser
simplesmente compreendida como uma aldeia que cresceu. Ela é composta por
uma entidade complexa e sujeita a influência de diversos fatores. Max Weber
observa que a dimensão do aglomerado urbano não constitui atributo suficiente
para analisar o conceito de cidade.239 Além disso, prossegue o autor, as
características econômicas, de produção ou consumo também não facilitam a
compreensão, na medida em que as cidades são normalmente constituídas por um
misto de atividades e que, portanto, “não podem ser classificadas em cada caso
senão tendo-se em conta seus componentes predominantes”.240 Uma cidade não
pode ser simplesmente considerada como um conjunto de casas e nem mesmo
como uma associação econômica com propriedade territorial própria. Para Weber,
a cidade “tem que se apresentar como uma associação autônoma em algum nível,
como um aglomerado de instituições políticas e administrativas especiais”.241 De
maneira semelhante, Castells, ao abordar a sociedade urbana, observa que não se
trata de uma questão de forma espacial, mas de um “certo sistema de valores,

237
CASTELLS, Manuel. op. cit. p. 55.
238
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política.
São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 226.
239
WEBER, Max. Conceito e Categorias da Cidade. In: VELHO, Otavio Guilherme. (org.) O fenômeno
urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 69.
240
Ibid., p. 73.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 124

normas e relações sociais” que possuem uma especificidade histórica e uma lógica
própria de organização e transformação.242 Embora considerando a extensão da
dimensão espacial na construção de um novo modelo de olhar, a nossa análise da
influência da cidade moderna mostra-se inseparável de um conjunto amplo de
mudanças filosóficas, sociais e ocorridas na organização do trabalho.
A partir da segunda metade do século XVIII, a queda do índice de
mortalidade aliada à mudança na estrutura de produção, conduziu camponeses e
artesãos em direção aos empreendimentos industriais. Estes estabelecimentos
concentravam-se nas proximidades dos cursos de águas e, posteriormente, com a
invenção da máquina a vapor, perto das jazidas de carvão, mas, sobretudo, ao
redor das cidades que passaram a crescer mais rapidamente do que outras
regiões.243 Se a energia mecânica para a produção necessitava de água e carvão, o
processo industrial requisitava ainda de uma concentração de mão de obra
disponível e renovável e um mercado consumidor e a cidade poderia fornecer
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estas condições.
Embora considerando a vinculação entre a aceleração industrial e a cidade
moderna, temos a convicção de que esta relação não deva ser simplificada no
sentido de tentar compreender as cidades européias sendo alçadas do seu torpor
pela industrialização. De fato, o desenvolvimento industrial encontrou suporte em
uma rede urbana construída a partir do início da Idade Moderna e que conectava
diversas cidades em um sistema de interação comercial.244 Também existem
referências ao emprego da palavra “cidade” na língua inglesa para distinguir as
áreas urbanas das rurais a partir do século XVI245, embora tenha sido apenas no
século XIX que este termo passou a ser empregado com a conotação moderna que
conhecemos hoje. Por outro lado, foi apenas em meados do século XIX que a
crescente industrialização, o desenvolvimento correspondente e a expansão da
vida urbana fizeram da capital, Londres, o primeiro centro a fazer jus à utilização
da palavra “cidade”, conduzindo a Inglaterra à primeira sociedade da história
mundial a ter a maior parte de sua população vivendo em centros urbanos.

241
Ibid., p. 76.
242
CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 127
243
BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005. p. 551.
244
DE VRIES, Jan. The industrial revolution and the industrious revolution. Journal of Economic History.
Vol. 54, No. 2, (1994), p. 252.
245
WILLIAMS, R. op. cit., p. 76.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 125

No prazo de aproximadamente cem anos toda a estrutura de produção de


artefatos foi modificada com a conseqüente mudança dos artesãos para as
fábricas. Manchester, que em 1760 tinha 12.000 habitantes, alcançou 40.000 na
metade do século XIX.246 Londres e Paris expandiram-se como grandes cidades
manufatureiras. Durante a primeira metade do século XIX a população de Londres
triplicou e a de Paris dobrou.247 Nos Estados Unidos, a população urbana mais do
que quadruplicou entre 1870 e 1910, de menos de 10 milhões para mais de 42
milhões.248 Ao lado da expansão populacional, uma gama de novas tecnologias e
produtos passou a exercer influência sobre o modo de vida dos homens e mulheres
que moravam nas cidades. A partir do século XIX, o aumento na produção de
bens de consumo e aumento exponencial na quantidade de informações visuais
produziu marcas permanentes sobre as formas de relacionamento com o ambiente
e a formação de um novo modo de ver. A cidade moderna que surge no século
XIX apresenta o avanço da máquina, da indústria, do excesso de estímulos e de
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uma nova experiência de vida, mas, também, mostra-se como personagem


principal deste novo momento. Neste contexto, impõe uma certa autonomia que
aos poucos vai sendo exposta em diversos tipos de representação, como é o caso
da obra The City, de 1919, onde a face da cidade é retratada como uma mistura de
fragmentos de elementos urbanos, passantes, máquinas, textos, formas planas,
ângulos, curvas, áreas escuras e luminosas (Figura 55). Embora a obra de Léger
apresente influência de tecnologias que ainda não se encontravam disponíveis em
meados do século anterior, sua síntese pictórica pode ser utilizada para explicitar o
movimento urbano que já se mostrava evidente neste período.

246
BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005. p. 551.
247
LOWE, Donald. History of bourgeois perception. Chicago: The University of Chicago Press, 1982. p. 36.
248
U. S. Bureau of the Census, 1980 Census of the Population, Washington, D. C..: Government Printing
Office, 1980, tabela 3. apud SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo
popular. In CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção da vida moderna. São
Paulo: Cosac & Naify, 2001. p 142.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 126

Figura 55. A cidade, 1919. Fernand Léger. Óleo sobre tela.


Philadelphia Museum of Art.

Apesar de representar a fragmentação e a multiplicidade da cidade, a pintura


de Léger não evidencia a influência direta da indústria sobre a metrópole. No
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entanto, esta questão aparece bem representada em imagens produzidas em


meados do século XIX nos tons de cinza das gravuras da época que podem ser
relacionados às cinzas que exalavam das chaminés das fabricas. Neste contexto,
retratou-se insistentemente a vida miserável e insalubre dos trabalhadores das
manufaturas e suas jornadas de trabalho de mais de quatorze horas diárias,
extensivas a mulheres e crianças. Diversas ilustrações do século XIX mostram a
uniformidade do trabalho atomizado e incessante em ambientes com perspectivas
acentuadas e pontos de fuga longínquos onde a figura da mulher trabalhadora e
sua ferramenta de trabalho parecem repetir-se ao infinito (Figura 56; Figura 58) A
Figura 57 mostra uma “pobre jovem comerciária” que após a fadiga da semana
quer apenas descansar no domingo, que ao contrário dos demais dias, “passa tão
rápido”. Era ainda a época em que se formulava a legislação trabalhista e as
pausas do trabalho. Se discussões como estas se encontravam no escopo do
trabalho desenvolvido por Marx e Engels nesta mesma época, elas também se
mostravam sob os traços dos cartunistas. Deste modo, as condições terríveis dos
trabalhadores, confinados no porão, apresentam-se em contraste com a vida do
capitalista sendo servido no andar de cima (Figura 59).
O OLHAR INOCENTE É CEGO 127

Figura 56. Manufatura com trabalhadoras


mulheres na seção de polimento de penas para
canetas. Illustrated London News, 1851.
<http://www.victoriantimes.org> (4/06/07)

Figura 57. Imagem ilustrativa de um debate


sobre o fechamento das lojas aos domingos.
Punch, or The London Charivari.Vol. 104, 8
de abril de 1893.
<http://www.victoriantimes.org> (4/06/07)
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Figura 58. Interior de fábrica com tear


mecânico. Illustrated London News, 1844.
<http://www.victoriantimes.org> (4/06/07)

Figura 59. “Capital e Trabalho”. “O capitalista vive paparicado enquanto, abaixo dele, os
trabalhadores labutam em terríveis condições”.
Punch Magazine, 1843. <http://www.victoriantimes.org> (4/06/07)

Um grande número de pessoas vivendo em um ambiente urbano com


péssimas condições de habitação formulava o quadro das cidades na metade do
O OLHAR INOCENTE É CEGO 128

século XIX. A partir deste período, tiveram início algumas interferências diretas
sobre este ambiente. Neste contexto observa-se o aumento no suprimento de água
potável e da rede de esgoto, a popularização dos conceitos de higiene, a
industrialização dos modos de circulação de pessoas e bens a partir do emprego de
trens, bondes e bicicletas e o desenvolvimento das comunicações. Este processo
de modernização aconteceu de diferentes formas e em momentos específicos em
diversas cidades ocidentais como Paris, Londres, Viena e, mais tarde, no Rio de
Janeiro. Para analisar como a cidade moderna e a vida cotidiana contribuíram na
formulação de uma nova maneira de olhar ateremo-nos a alguns processos que se
desenrolaram em Londres e em Paris. Esta última pode ser compreendida como
paradigma de um novo modelo urbano, tendo sido definida como a capital do
século XIX por Walter Benjamin.
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3.2.1. Um olhar sobre a cidade moderna

Michel de Certeau estabelece um paralelo relevante para o estudo do olhar e


da cultura visual, a partir da relação entre a percepção e o olhar do indivíduo em
seu caminhar cotidiano pela cidade e o ponto de vista aéreo, panóptico, dos mapas
e dos planejadores.249 A cidade vista de cima mostra-se organizada e legível
enquanto ao nível da rua constrói-se “uma história múltipla, sem autor nem
espectador, formado em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaço”.250
No espaço cotidiano traçam-se itinerários pessoais. O espaço urbano é apreendido
a partir de uma “retórica da caminhada”, construída também pelos mecanismos
simbólicos dos sonhos e memórias. Este espaço poético coloca-se, para de
Certeau, como um espaço de resistência às cartografias do poder.
Embora a oposição estabelecida por de Certeau sugira um romancear do
individuo urbano a partir da sua possibilidade de transformação do ambiente, esta
demarcação levanta um importante questionamento. Em que medida a cidade
mapeada e legível, organizada, recortada e reconstruída para tornar-se o espaço
urbano moderno por excelência passa a atuar como um vetor de configuração da
visualidade moderna? Como o olhar do sujeito urbano é multiplicado e ampliado

249
CERTEAU, Michel de. Práticas do espaço. In: _______. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer.
Petrópolis: Editora Vozes, 2005.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 129

ao mesmo tempo em que se submete às convenções impostas pela racionalização


das construções modernas?
Iniciaremos esta discussão com a observação de duas ilustrações publicadas
em periódicos londrinos da segunda metade do século XIX. A Figura 60
publicada em 1880 em The Illustrated London News mostra uma plataforma de
trem do subúrbio. Segundo a legenda, quinhentos londrinos acotovelavam-se para
entrar nos vagões de segunda e terceira classe, aproveitando os feriados bancários
para uma excursão. As pessoas formam um emaranhado único. Adultos
conversam entre si e tentam, em vão, conter as crianças. Os cartazes no muro da
estação apresentam um bom sumário do que se anunciava à época: fragmentos de
anúncios de chás, remédios, eventos musicais, passeios e fait-divers: “acidentes de
todos os tipos”. A Figura 61 também mostra uma plataforma de embarque de
trens. Mas, nesta outra imagem, vêem-se menos passageiros. A aglomeração é
constituída pelas bagagens e seus carregadores. Malas e embrulhos misturam-se a
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um cachorro no lado esquerdo da imagem, enquanto do lado oposto, um


funcionário parece orientar uma mulher.

Figura 61. Movimentação de bagagens na


Figura 60. Excursão esperando pelo trem. plataforma de trens. The Illustrated London
The Illustrated London News, 4 de setembro de News, 6 de junho de 1846. The Illustrated
1880. The Illustrated London News Picture London News Picture Library.
Library. <http://www.ilnpictures.co.uk> (17/09/07) <http://www.ilnpictures.co.uk> (17/09/07)

Estas duas imagens sugerem o aglomerado humano e seu movimento


contínuo como o signo da nova cidade moderna. A multidão, como veremos mais
adiante neste capítulo, é um dos elementos fundamentais de constituição da cidade
moderna e de uma nova formulação do olhar. Ela se oferece ao olhar de forma
ameaçadora, ao mesmo tempo, fornecendo abrigo para o olhar indiscreto.
Diversas outras ilustrações de periódicos do século XIX apontam para
situações ambientais problemáticas surgidas a partir do crescimento da cidade

250
Ibid., p. 171.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 130

moderna. O tecido esgaçado da Londres urbana é mostrada na Figura 62 através


de uma característica comum às representações da época: a personificação de
entidades. No exemplo apontado, o rio Tamisa é concebido como um homem
velho e sujo que apresenta os seus filhos a uma bela mulher que, por sua vez,
personifica a cidade. Suas crianças - entre assustadas, doentias e ameaçadoras –
têm os nomes listados abaixo de cada figura, nomes que correspondem a doenças
infecciosas. Este cartum foi publicado pelo periódico Punch no período que ficou
conhecido como “o grande fedor” (the great stink), que marcou um verão
especialmente quente. Neste período, os dejetos lançados ao rio criaram um clima
tão inóspito na cidade que as seções do parlamento tiveram que ser suspensas. A
poluição do principal rio da cidade era o resultado de um sistema administrativo
caótico e desregulado e seu maior problema era a coincidência entre os pontos de
lançamento de detritos e de recolhimento de água potável. É desnecessário
salientar que o rio Tamisa era, em meados do século XIX, uma das principais
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fontes da problemática urbana da cidade, ao lado das ruas estreitas e obstruídas


que dificultavam a circulação e melhores condições de higiene.

Figura 62. Pai Tamisa (Father Thames) apresenta sua descendência à


formosa cidade de Londres. Punch, or The London Charivari, 3 de julho
de 1858. <http://www.victoriantimes.org> (8/08/08).

A modernização de Londres ocorreu ao longo de um contínuo processo de


demolições e reconstruções em que a destruição da velha cidade caminhava de
mãos dadas aos novos projetos. A implantação de um novo sistema ferroviário foi
responsável por boa parte destas mudanças, mas o represamento do rio Tamisa
O OLHAR INOCENTE É CEGO 131

significou uma obra de grandes proporções, estendendo-se por toda a década de


1860, entre projeto e construção. Dentre os requisitos principais do
empreendimento encontrava-se a construção de um novo sistema de esgoto e de
uma larga calçada ao longo do rio. De suas margens lamacentas surgiram
avenidas, calçadas, estradas de ferro e túneis subterrâneos.
Embora o Tamisa há muito figurasse entre os principais temas da pintura
inglesa, as obras que mudaram seu curso e sua relação com a cidade ofereceram
novas possibilidades de representação. A representação antropomórfica do rio
Tamisa parece ter sido relegada ao passado na medida em que a modernização da
cidade passou a receber um tratamento gráfico digno da modernidade. Neste
contexto, a pintura de Hull (Figura 63), apesar de utilizar uma técnica de
representação tradicional para ilustrar a intensidade da modernização que
transformava a cidade, apresenta uma nova possibilidade de compreensão do
ambiente urbano em transformação. No trabalho de Hull, a dimensão da obra
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reduz a proporção da figura humana a um mero conjunto de pontos integrados a


terra e à madeira. A velha Londres permanece ao fundo, parcialmente oculta pela
bruma, assistindo ao surgimento da nova Londres. Já a ilustração publicada no
Illustrated London News (Figura 64) utiliza uma nova técnica de representação
para expressar as mudanças produzidas tanto acima como abaixo da superfície da
terra e da água. Nela, as obras de represamento do rio Tamisa mostram-se através
de um corte de seção transversal do terreno que permite a visualização de todas as
benfeitorias realizadas no período: esgotos, transportes e melhoramento estético –
tudo em constante movimento. Uma locomotiva cruza a ponte Waterloo enquanto
uma barca a vapor navega o Tamisa. Os cortes dos túneis desvendam o metrô em
circulação. Nos tubos embaixo da terra circulam água, gás e detritos. A cidade
moderna apresenta-se como um mundo devotado ao movimento constante,
“habitado pelo novo cidadão ideal, o homem-locomotiva”. 251 Novas tecnologias e
seu emprego na vida urbana cotidiana começam a traçar as mudanças perceptivas
do homem urbano.

251
NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven
& London: Yale University Press, 2000. p. 54.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 132

Figura 63. E. Hull. Obras de represamento


do Tamisa entre a ponte Charing Cross e
Figura 64. Seção do represamento do Tamisa
Westminster, 1865. Museum of London. In:
mostrando (1) o metrô, (2) os esgotos, (3) Ferrovia
NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People,
Metropolitana e (4) Ferrovia Pneumática.
streets and images in nineteenth-century
Illustrated London News, 22 de junho de 1867.
London. New Haven & London: Yale <http://www.old-print.com> (8/08/08)
University Press, 2000. p. 54.

As mudanças urbanas que tiveram lugar em Londres a partir da década de


1860 foram precedidas por profundas discussões políticas lideradas pelo periódico
Illustrated London News252 que desde a década anterior exercia pressão sobre a
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unificação da administração municipal e a necessidade de obras de drenagem e


esgotos, além da construção de pontes sobre o rio Tamisa e a abertura de grandes
avenidas. Mas, foi apenas após a eclosão de duas grandes epidemias de cólera em
meados do século XIX que uma mudança administrativa começou a tomar forma.
Neste contexto, a execução de um mapa da cidade, que indicasse com precisão
apenas as ruas principais e os cursos de água, mostrou-se imprescindível. Uma
mudança nas feições urbanas só parecia se mostrar viável a partir de um
planejamento efetivo, desenhado sobre um esquema preciso e detalhado. Foram
necessários três anos para que em 1851, ano da primeira Exposição Universal
realizada em Londres, o mapeamento oficial da cidade (Skeleton Ordnance Survey
of London and Its Evirons) fosse disponibilizado, inclusive para o grande público.

252
Esta questão foi analisada por NEAD, L. op. cit., p. 15-56.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA O OLHAR INOCENTE É CEGO 133

Figura 65. Mapeamento oficial da cidade de Londres e seus arredores (Skeleton Ordnance Survey
of London), 1851. Folha 20, metade direita. 66 x 97,5 cm. Sourthampton: Ordnance Map Office,
1851. NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century
London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 20.

O mapa oficial da cidade de Londres apontava para uma nova cartografia


que deixava de lado a ornamentação e os elementos decorativos característicos
dos mapas produzidos por particulares e distribuídos em grande escala. Este outro
mapa apresentava com a precisão de uma ferramenta e enfatizava as conexões
estruturais da cidade em detrimento de seus monumentos estéticos ou históricos.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 134

A espessura precisa do seu traçado permitia a compreensão de uma cidade que se


expandia e avançava na modernização a passos largos. O mapa desenvolvido pela
Ordnance Survey marca a transição de uma cidade compreendida como um
aglomerado estático para uma cidade concebida em contínuo movimento,
possibilitando o planejamento de mudanças modernizadoras como a construção de
esgotos e de novas linhas ferroviárias.253 A decisão do que deveria ser mostrado e
do merecia ser exibido revelam algumas das prioridades da Londres oficial de
meados do século XIX. Deste modo, a indicação dos caminhos de uma cidade
dinâmica mostra-se mais importante do que a revelação do movimento das águas
do Tamisa, que no mapa oficial aparece como uma grande área plana e
desobstruída.
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Figura 66. Londres vista de um balão. John Henry Banks and Co., 1851. Mapa dobrável, 60,8 x
102,4 cm. Guildhall Library. Corporation of London. NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People,
streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press,
2000. p. 21.

Neste sentido, a comparação com o mapa de John Banks, produzido no


mesmo ano, e que mostrava a cidade vista de um balão (Figura 66), estabelece a
diferença entre dois modelos de visão contemporâneos, paralelos, mas muito
diferentes. A visão panorâmica do mapa de Banks é menos um mapa funcional do
que uma forma de entretenimento visual e está mais próxima da cartografia
tradicional, inspirada nas vedutas, que ainda imperava no período. Ele apresenta

253
NEAD, L. op. cit., p. 21-22.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 135

ruas e casas de forma individual, sem garantir a manutenção da escala, de modo


que nenhum projeto de engenharia poderia ser construído sobre dele. Sua força é
estética e narrativa ao contrário do pragmatismo e da precisão geométrica do
mapa da Ordnance Survey.254 Embora sem seguir diretamente as regras da
perspectiva, o mapa de Banks encontra-se relacionado à racionalidade
desenvolvida com o olhar ciclópico porque estabelece um ponto de vista único a
partir do qual a cidade pode ser observada. Um ponto de vista que planifica a
cidade garantindo a manutenção de suas proporções e medidas. O mapa da
Ordnance Survey divide a cidade de forma geométrica entre espaços livres e
espaços construídos. A cidade perde sua dimensão tridimensional e transforma-se
em uma superfície plana codificada. Não há um ponto de vista específico na
medida em que ela pode ser vista, ao mesmo tempo, a partir de todos os pontos e
de lugar nenhum.255 A narrativa que se desprende do mapa da Ordnance Survey é
muito diferente das pequenas narrativas detalhadas pelo mapa de Banks. Trata-se
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da grande narrativa do progresso e do desenvolvimento pretendido com a


modernização, do compromisso com a seriedade desenvolvimentista. Sua acurácia
elimina as convenções representativas por semelhança para requerer um modo de
olhar mais abstrato e concentrado. Um olhar racional e convencional a ser
compartilhado por uma população que começava a sentir-se moderna.

3.2.2. Um olhar sobre as reformas urbanas

As reformas urbanas podem ser compreendidas como o grande signo da


modernização, principalmente quando se considera a remodelação de Paris na
última metade do século XIX. A nova feição da cidade moderna foi conduzida,
em um processo muitas vezes criticado, pelo Barão Haussmann, indicado prefeito
de Paris (1852-1870) pelo imperador Napoleão III. No entanto, as vozes que
apontavam para o desaparecimento da antiga Paris, já podiam ser ouvidas desde a
década de 1830, muito antes do início das obras de Haussmann. Esta situação
pode ser compreendida de diversos modos. Se a percepção da mudança talvez
indicasse um desejo oculto por esta renovação, os sinais concretos desta

254
Ibid., p. 22.
255
Id.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 136

transformação traziam em si o temor da perda do antigo, do conhecido e do


seguro: “A velha Paris está indo embora” escrevia Balzac ao final da primeira
metade do século XIX. Por outro lado, independente de uma ampla reforma
conduzida por um governo autoritário, a cidade, empurrada pelas modificações de
ordem econômica e produtiva, vinha apresentando mudanças.
Nos anos 1840, Paris estava se deslocando para o oeste com um
correspondente esvaziamento do centro. Uma mania de construir “reinava como
uma epidemia”256, “com os velhos bairros pobres dando lugar a prédios de
apartamentos, grandes lojas e oficinas” forçando a população trabalhadora a
mudar-se para as extremidades de Paris.257 A regularidade dos novos prédios e
ruas foi considerada apropriada à capital “por trinta anos ou mais antes de o barão
chegar ao poder”.258 Se havia um senso estético antecipando a modernidade, ele
muitas vezes era acompanhado pelo desejo de reformular uma cidade medieval
que já não refletia as necessidades modernas. É sobre este ponto de vista que Du
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Camp tece seus comentários após 1848:


Paris estava ameaçada de se tornar inabitável. A constante expansão da rede
ferroviária... acelerava o trânsito e o crescimento populacional da cidade. As
pessoas sufocavam nas antigas ruelas estreitas, sujas e tortuosas, nas quais ficavam
encurraladas, pois não viam saída.259

Tendo em vista as transformações urbanas, Baudelaire escreve “Paris muda!


Mas nada em minha nostalgia mudou! Novos palácios, andaimes, lajedos, velhos
subúrbios. Tudo em mim é alegoria. E essas lembranças pesam mais do que
rochedos”.260 A visão de uma cidade romântica com ruas estreitas que
desapareciam não apenas materialmente como também moralmente261 deve ser
considerada com cautela. Louis Chevalier, um dos mais importantes historiadores
de Paris, comenta as dificuldades dos quartiers, os velhos bairros centrais, nas
décadas anteriores à obra de Haussmann. Uma explosão demográfica se fazia

256
TEXIER, Edmond. Tableau de Pairs, 1:75, citado em Haussmann: “Préfet de Paris”, de G.-N. Lameyre
apud CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004. p. 71.
257
L. Marie, De la décentralisation des Halles, citado em Histoire de l’urbanisme, de Lavedan, p. 403. apud
CLARK, T. J. op. cit., p. 69.
258
Id.
259
DU CAMP, Maxime. Paris, ses organes, ses fonctions et as vie dans la seconde metié du XIXe siècle.
Paris, 1869, vol. 6, p. 253. apud. BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. Obras escolhidas
III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 85.
260
BAUDELAIRE, Charles. O cisne. As flores do mal. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora
Nova Aguilar, 1995. p. 173.
261
CLARK, T. J. op. cit., p. 74.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 137

acompanhar por poucas moradias, apesar da construção de mansões de luxo e de


prédios públicos. O nível de desemprego era crescente e havia alto índice de
morte por desnutrição e pelas freqüentes epidemias de tifo e cólera.262
Apesar da modernização de Paris apresentar-se como uma interferência
necessária e desejada, o termo “Haussmanização”, em referência ao prefeito de
Paris a partir de 1859 sugere a brutalidade e a eficácia germânica com que a
cidade foi transformada.263 As estatísticas indicam a ferocidade do
empreendimento. Ao longo dos dezessete anos de reformas, 350 mil pessoas
foram desalojadas. Em 1870, um quinto das ruas da zona central de Paris havia
sido criado por Haussmann e no auge da reconstrução, um em cada cinco
trabalhadores parisienses estava empregado na obra264. Os bulevares
encontravam-se no centro da reconstrução na medida em que rasgavam a cidade
em seu caminho para a criação de novas artérias. Mas, a Haussmanização
compreendia muito mais do que a abertura de novas ruas. Havia a instalação de
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aquedutos, a duplicação da área da cidade, a colocação da iluminação a gás, o


aumento da arborização, a criação de uma rede de esgotos e ferrovias, além da
construção da nova Ópera e do novo necrotério.
A remodelação abriu espaço para inúmeras críticas e debates. A velha Paris
queixa-se da monotonia das novas ruas; a nova Paris retruca:
De que você as censura?... Graças à linha reta, circula-se à vontade, evita-se o
choque com mais de um veículo, ao mesmo tempo, quem tem bons olhos desvia-se
dos tolos, dos que pedem empréstimo, dos cobradores, dos chatos. Enfim, cada
transeunte, agora, na rua, já de longe, ou foge ou cumprimenta seus iguais.265

O fato concreto é que a forma dos novos bulevares parecia surpreender e


incomodar: “sem curvas, sem aventuras de perspectiva, implacáveis em suas
linhas retas”.266 A comparação com o que se perdia permanecia constante:
“Nenhuma de suas grandes vias retas tem o encanto da curva magnífica da Rue
Saint-Antoine”.267 Clark sugere uma ressonância nostálgica no debate em torno da

262
CHEVALIER, Louis. Laboring Classes and Dangerous Classes: Paris in the First Half of the Nineteenth
Century. New York: Howard Fertig, 1973. apud BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar.
São Paulo: Ed. Schwarcz, 2001. p. 146.
263
CLARK, T. J. op. cit., p. 69.
264
Ibid., p. 77.
265
BARTHÉLEMY, M. Le Vieux Paris et le Nouveau Paris. Paris, 1861. p. 8. apud BENJAMIN, Walter.
Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. p. 185. [E 12a,1].
266
CLARK, T. J. op. cit., p. 74.
267
Dubech / D’Espezel. Histoire de Paris. Paris, 1926. p. 416-425. apud BENJAMIN, W. Passagens... p.
172. [E 5,6].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 138

estética de Haussmann: “Então o barão ansiava por longas linhas retas e ‘pontos
de vista’ impressionantes, e seus críticos, por aventuras em perspectiva!”.268 A
observação de Clark nos chama a atenção para a discussão em torno da
perspectiva. Não parece haver dúvida que as avenidas parisienses trouxeram
novos pontos de vista e novas perspectivas e uma grande profundidade de campo.
No entanto, isso não parecia ser compreendido pelos contemporâneos forçados a
ver a cidade e o mundo de outro modo. Havia perspectiva, claro, mas o morador
da cidade que havia sido sujeitado a morar em um grande canteiro de obras,
parecia sentir falta das pequenas perspectivas, das narrativas encontradas em cada
dobrar de esquina. Talvez por isso, as vistas amplas e as perspectivas
monumentais tenham demorado a mostrar-se na pintura, o que aconteceu apenas
na década de 1890, ano em que Pisarro exibiu “um ponto de vista plenamente
haussmaniano de uma ponta a outra da Avenue de l’Opéra”269 (Figura 67).
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Figura 67. Camille Pissarro, Avenue de l’Opéra, soleil, matin d’hiver, 1898.

Consideramos que a rejeição às novas perspectivas encontradas na cidade


aponta para uma inabilidade em lidar com novos e surpreendentes pontos de vista
ou, ainda, com uma nova forma de olhar ainda não completamente estruturada.
Neste processo, as piadas sobre as formas retas podem ter funcionado como
auxiliares pedagógicos da formulação de uma nova cultura visual. Em uma destas

268
CLARK, T. J. op. cit., p. 75.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 139

piadas, o personagem de um velho militar que acompanhava as mudanças de


Paris, sonhava com o dia em que o próprio rio Sena teria o seu curso corrigido,
“porque suas curvas irregulares são realmente revoltantes”.270 Outra anedota
sugeria que o alargamento das ruas teria sido realizado devido a crinolina.271 A
sugestão de que a palavra “bulevar” seria etimologicamente ligada a
bouleversement, que significa mudança e perturbação, também era citada com
ironia.272
A haussmanização foi acompanhada de perto pela crítica social que
relaciona diretamente o empreendimento ao deslocamento das classes operárias,
que teriam sido empurradas (pelo aumento dos custos de moradia) para a periferia
parisiense, rompendo o laço de vizinhança as “ligava ao burguês”.273 Este
processo não é compreendido como casual, ao contrário, é relacionado à tentativa
de impedir o surgimento de revoltas entre as classes mais pobres. A abertura de
artérias sobre o tecido urbano seria um impedimento para a montagem de
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barricadas, além de facilitar o deslocamento do exército em caso de necessidade.


A ampliação no número de empregos com a própria obra de remodelação também
teria contribuído para desestimular o pensamento revolucionário. Estes motivos
talvez tenham levado Le Corbusier a considerar os traçados de Haussmann como
inteiramente arbitrários: “não eram soluções rigorosas de urbanismo, mas medidas
de ordem financeira e militar”.274 Apesar disso, o mesmo Le Corbusier afirmou
algum tempo depois: “Parecia que Paris não suportaria a cirurgia de Haussmann.
Ora, Paris não vive hoje do que fez esse homem temerário e corajoso? ... É
verdadeiramente admirável o que soube fazer Haussmann”.275
Esta ambigüidade aponta para o fato, descrito por Clark, de que os
propósitos de Haussmann “eram muitos e contraditórios”.276 A contra-revolução
era um deles, assim como a certeza nos benefícios gerados pelas obras públicas e
a urgência em modernizar a cidade. Não se deve desconsiderar também o desejo
de abrilhantar uma cidade imperial para ser exibida aos estrangeiros. Walter

269
CLARK, T. J. op. cit., p. 60.
270
ABOUT, Edmond. L’Homme à l’oreille cassée. p. 196. apud CLARK, T. J. op. cit., p. 74.
271
BENJAMIN, W. Passagens... p. 174. [E 5a,8].
272
FOURNIER, Édouard. Chroniques et Légendes des Rues de Paris. Paris, 1864. p. 16. apud BENJAMIN,
W. Passagens... p. 179. [E 9,1].
273
LEVASSEUR, Histoire des Classes Ouvrières et de l’Industrie en France, II. Paris: 1904, p. 775.
BENJAMIN, W. Passagens... p. 164. [E 2,1].
274
LE CORBUSIER, Urbanisme. Paris, 1925. p. 250. apud BENJAMIN, W. Passagens... p. 166. [E 2a,1].
275
Ibid., p. 149. apud Ibid., p. 173. [E 5a,6].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 140

Benjamin considera ainda a intenção do Estado em se autopromover na medida


em que associava o novo urbanismo parisiense ao progresso: “Como um exemplo
clássico da coisificação, os projetos de ‘renovação’ urbana tentavam criar uma
utopia social mudando a disposição de edifícios e ruas – objetos no espaço –
deixando intactas as relações sociais”.277 Apesar do desejo autêntico de
Haussmann por ampliar o alcance da modernidade, a obtenção de lucro também se
encontrava entre suas intenções e parecem explicar alguns favorecimentos na
condução do processo.
Por trás das críticas à estética de Haussmann havia a necessidade de
compreender a nova cidade, “a cidade neutra das pessoas civilizadas”278 que vira
desaparecer os “grupos, vizinhos, bairros e tradições”.279 A uniformidade do
traçado das ruas e dos prédios retirara a surpresa oculta nos pequenos detalhes da
velha cidade. Não existia mais a Paris desconhecida280. “A linha reta matou o
pitoresco, o inesperado”.281 Por outro lado, a cidade mostrava uma nova face que
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assustava os antigos moradores: “A centralização, a megalomania criaram uma


cidade artificial onde o parisiense não se sente mais em casa”.282 Pode parecer
paradoxal que a nova compleição da cidade tenha destituído o inesperado ao
mesmo tempo em que se apresenta como desconfortável e estranha. A cidade que
se constrói com a divisão das classes entre os bairros residenciais e os subúrbios
industriais e ordena e hierarquiza o trabalho e o tempo livre é a mesma que
confunde o observador com o ilegível. Esta ambigüidade sugere a ascensão de
uma nova ordem de significados que não se deixa decifrar facilmente. Para Clark,
“a metrópole se transformou em um campo livre de signos e objetos expostos”283,
onde uma enorme massa de imagens expõe-se à negociação enquanto as velhas
demarcações ruíram para sempre.
O flâneur é a figura paradigmática da vida na metrópole em seu exercício
cotidiano de decifrar as novas imagens. Sua localização na Paris do século XIX
emerge a partir do ensaio de Charles Baudelaire, O Pintor da Vida Moderna.

276
CLARK, T. J. op. cit., p. 76.
277
BUCK-MORSS, Susan. Dialética do Olhar. Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002. p. 120.
278
Daly, “Etude générale”, p. 33. apud CLARK, T. J. op. cit., p. 84.
279
Ferry. Les Comptes fantastiques apud Id.
280
CLARK, T. J. op. cit., p. 85.
281
Charles Yriarte, “Les Types parisiens – les clubs”, em Paris-Guide 2 (1867): 929. apud Id.
282
Dubech / D’Espezel. Histoire de Paris. Paris, 1926. p. 427-428. apud BENJAMIN, W. Passagens... p.
169. [E 3a,6].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 141

Neste texto, Baudelaire exalta – evitando citar seu nome – o desenhista,


aquarelista e gravador Constantin Guys, artista “enamorado pela multidão e pelo
incógnito”.284 De fato, como afirma Baudelaire, C. G.285 é mais do que um artista,
é um homem do mundo, “homem que compreende o mundo e as razões
misteriosas e legítimas de todos os seus costumes” e não simplesmente um artista
subordinado à sua palheta, “como o servo à gleba”.286 Baudelaire escreve:
Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar
residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito.
Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o
mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo.287

O flâneur caminha pelas ruas da cidade e observa incógnito o movimento da


multidão, imerso na dimensão estética deste contato. Seu universo é a multidão,
“como o ar é dos pássaros, como a água, o dos peixes”.288 Ele é o homem da
multidão e dela retira sua energia e vigor. Sua anonimidade garante a liberdade e a
fluidez do seu olhar. Há uma ligação intrínseca entre o flâneur e a multidão de um
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lado, e o interior das casas e as ruas de outro. Neste contexto, o flâneur se torna
parte da multidão: “O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente
agitado, que, entre os muros dos prédios, vive, experimenta, reconhece e inventa
tanto quanto os indivíduos ao abrigo de suas quatro paredes”.289
Em O homem da multidão de Edgar Allan Poe, a inquietação e o incógnito
têm origem no crescimento urbano iniciado no século XIX. No conto, transcorrido
na Londres do século XIX, o narrador convalescente, na sua volta às ruas, vive
uma excitação que é exatamente o oposto do tédio. Sente-se atraído por tudo o que
lhe passa à frente, “ora os anúncios, ora observando a promíscua companhia
reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças enfumaçadas”. Como
uma criança, nos lembra Baudelaire, que vê tudo como novidade290, o narrador
permanece sentado à janela de um café londrino, primeiro observando a multidão
que flui compacta, depois passa a prestar atenção às figuras, trajes, portes e

283
CLARK, T. J. op. cit., p. 91.
284
BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. In: Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro:
Editora Nova Aguilar, 1995. p. 854.
285
A pedido do próprio Constantin Guys, Bauldeire tem a intenção de manter-lhe o anonimato, de forma que
passa a descreve-lo como C. G.
286
BAUDELAIRE, C. op. cit., p. 855.
287
Ibid., p. 857.
288
Ibid., p. 857.
289
BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Obras escolhidas III. Charle Baudelaire: um lírico no auge do
capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 194.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 142

expressões. Em um jogo fisionômico, examina as faces dos passantes, a partir de


um breve olhar lendo-lhes a vida, “a história de longos anos”. Em determinado
momento, divisa a figura de um homem de aproximadamente sessenta e cinco a
setenta anos. Um impulso o move. Agarra o chapéu e a bengala e põe-se a seguir a
figura decrépita e em trajes puídos. Em um caminhar que não parece ter propósito,
o homem não cessa de misturar-se em meio à turba de compradores e vendedores.
Na tentativa de desvendar os segredos por trás do homem em contínuo
movimento, o narrador o segue ao longo de toda à noite e também do dia seguinte.
Walter Benjamin hesita em reconhecer neste desconhecido o flâneur, alguém que
por não se sentir seguro em sua própria sociedade, busca a multidão para
esconder-se291. Ele sugere no homem da multidão a substituição do
comportamento tranqüilo pelo maníaco292. O flâneur do conto de Poe refugia-se
nos bazares, nas feiras e saídas de teatro. O movimento sem fim que atrai o
narrador transfigura-o em flâneur tentando desvendar o mistério por trás do
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suspeito, como é caracterizado o homem da multidão em sua busca por torna-se


invisível. Assim, o narrador, misturado à multidão que lhe serve de cenário móvel
torna-se ele, também suspeito. O início e o final do conto de Poe trazem uma frase
de um “certo livro germânico”: es lässt sich nicht lesen (não se deixa ler). Há
segredos que não se permite revelar, não se pode ler. Muitos destes segredos
encontram-se escondidos na multidão. Benjamin reafirma este ponto ao associar o
conto de Poe à observação de Goethe, “segundo a qual todo ser humano, do
melhor ao mais miserável, carrega consigo um segredo que despertaria o ódio de
todos os outros se fosse descoberto”.293 A cidade moderna que se desnuda ao
olhar é um ambiente que oculta muitos segredos. Segredos que o flâneur buscava
entender com a sua observação ao mesmo tempo atenta e relaxada.
Neste sentido deve-se compreender o flâneur não como um transeunte
qualquer, mas como um observador em plena posse de sua individualidade. Sua
fantasmagoria, “a partir dos rostos fazer a leitura da profissão, da origem e do
caráter”.294 O flâneur caminha pela cidade concentrado na observação como um
detetive amador. Mas, se ao contrário, ele “se estagnar na estupefação – nesse

290
BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. In: Obras escolhidas III. Charle Baudelaire... p. 18.
291
Ibid. p. 45.
292
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Obras escolhidas III... p. 121.
293
BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Passagens... [M 12a,2], p. 484.
294
BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Obras escolhidas III... p. 202.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 143

caso o flâneur se torna um basbaque”.295 O basbaque, ou badaud, tem sua


individualidade absorvida pelo mundo exterior. “Sob influência do espetáculo que
se oferece a ele, o badaud se torna um ser impessoal”.296 Para Benjamin, o flâneur
resiste ao consumismo da cidade capitalista e de suas mercadorias e o seu
movimento aparentemente errático pela constituição visual da cidade aumenta sua
potência: “sempre menor se torna a sedução das lojas, dos bistrôs, das mulheres
sorridentes e sempre mais irresistível o magnetismo da próxima esquina, de uma
massa de folhas distantes, de um nome de rua”.297 Este homem urbano que não
consegue garantir a sua individualidade paralisa-se, flutuando ao movimento da
multidão. Misturando-se a ela, torna-se parte da própria imagem que observa.
Com o desaparecimento das esquinas, a partir da remodelação empreendida por
Haussmann, é possível compreender o esgotamento da possibilidade da flânerie.
Resta saber em que medida, com isso, o observador tenha-se transformado em um
simples badaud, fixando o olhar sobre a imagem observada, fundindo-se com ela
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em um conjunto de contornos neutros e suaves que já não despertam sensações


ambíguas de desconforto ou paixão. O ambiente externo não deixa de ser
compreendido pelo movimento do seu fluxo, mas é racionalizado e recortado
dentro de um sistema de convenções visuais que facilitam a sua digestão. A
cultura visual passa a se reestruturar a cada nova invenção tecnológica com o
objetivo de refrescar o que deve sempre ser visto como novo.

3.2.3. Muralhas de impressos

A experiência vivida na metrópole, desde muito cedo, apresentou vínculos


profundos com a visualidade. A influência dos impressos na produção da cultura
visual moderna expande-se para além da relação direta com as formas gráficas e
os novos modos de representação. Ela encontra-se ancorada nos melhoramentos
técnicos obtidos no gravado e na impressão, como a cromolitografia, além do
barateamento da própria imagem e do seu suporte, o papel. Cronistas e gravuristas
foram elevados à posição de artistas: “Eles falam para o olho e sua linguagem é
fascinante e impressiva. Os acontecimentos do dia ou da semana são ilustrados ou

295
Ibid., p. 69.
296
Ibid., p. 202.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 144

descritos através do lápis”.298 Neste aspecto, a publicidade que dá os seus


primeiros passos com cartazes, folhetos e nas placas carregadas pelos homens-
sanduíches contempla uma nova qualidade de experiência na relação do sujeito
com seus deslocamentos no espaço urbano e também com o seu vestir-se e
alimentar-se. São centenas de novas formas ao alcance da vista que ditam novas
práticas ao mesmo tempo em que atuam na construção de um novo olhar.
A produção em massa de peças impressas foi grandemente favorecida por
diversos fatores tecnológicos como a produção de papel em bobinas ao final do
século XVIII, que barateou o custo do papel, e o desenvolvimento da litografia no
início do século XIX, além da produção de máquinas de impressão de manejo
mais simples como a Minerva, anunciada no folheto publicitário de 1879 (Figura
68), e a copiadora com ares de escrivaninha (Figura 69), muito popular em
pequenas indústrias.
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Figura 68. Folheto de propaganda da máquina Figura 69. Folheto de propaganda da


Minerva de impressão, 1879. Evanion copiadora Foot Lever, 1886. Evanion
Collection of Ephemera. Collect Britain. The Collection of Ephemera. Collect Britain. The
British Library. British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07) <http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07)

Segundo Walter Benjamin, com o desenvolvimento da litografia no século


XIX a reprodução técnica atinge uma etapa essencialmente nova. Com este
procedimento, que permitia uma maior precisão, as produções passaram a

297
Ibid., p. 186.
298
Speaking to the Eye. Illustrated London News, 24 de maio de 1851. pp. 451-2. apud NEAD, Lynda.
Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale
University Press, 2000. p. 57.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 145

alcançar o mercado “não somente em massa, como já acontecia antes, mas


também sob a forma de criações sempre novas. Desta forma, as artes gráficas
adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana”299, integrando-se nela e
realimentando-se em uma construção recíproca. Embora a fotografia ainda
demorasse a ser empregada diretamente na reprodução de impressos, a sua
utilização como referência para o desenho litográfico acelerou ainda mais o
processo que inundou de imagens a percepção cotidiana. Assim, as imagens que
passaram a ilustrar o imaginário dos homens e mulheres da segunda metade do
século XIX, por sua quantidade e variedade, exibiam detalhes que não eram
propriamente comuns em figuras da época. Em nossa opinião, além de ampliar o
repertório da cultura visual moderna, elas atuaram diretamente na formulação do
habitus coletivo que deu origem a essa cultura, modificando e ampliando a
percepção.
A impressão tornou-se acessível e passou a fazer parte da vida do cidadão
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urbano. Cartazes e folhetos ajudaram a concretizar a modernidade em um artefato


visual. Na Figura 70 vemos o folheto de propaganda de uma gráfica -
Metropolitan Printing Works. Na frente, lê-se: “Quase todo mundo em algum
momento precisa de impressão” e “Guarde no seu bolso” e no verso: “Todos os
tipos de impressos”, “Orçamentos gratuitos”. Neste contexto, os impressos não
apenas ajudaram a construir o novo ambiente da cultura visual, mas também
permitiam a participação do homem comum, que em algum momento da sua vida
poderia precisar de alguma impressão.

Figura 70. Folheto de propaganda da Metropolitan Printing Works,


1890. Evanion Collection of Ephemera. The British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07)

299
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia
e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 166-167.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 146

Na efervescência da cidade, a publicidade começava a ocupar espaço com a


divulgação de diversos produtos. Folhetos e cartazes eram impressos e
distribuídos nas ruas ou colados nos muros das grandes cidades. As paredes da
metrópole, cobertas por cartazes passaram a atuar, a partir da segunda metade do
século XIX, como um grande sistema de comunicação de massa. A propósito das
revoluções que marcaram o ano de 1848, Walter Benjamin transcreve:
Todos os muros estavam cobertos com cartazes revolucionários, que Alfred Delvau
reproduziu alguns anos mais tarde em dois grossos volumes com o título Murailles
Révolutionnaires, de modo que ainda agora se pode ter uma idéia dessa singular
literatura mural. Não havia palácio ou igreja em que não estivessem afixados esses
cartazes. Nunca antes se viu tal quantidade de cartazes em qualquer outra cidade.
Mesmo o governo usava esse meio para publicar seus decretos e proclamações,
enquanto milhares de indivíduos recorriam aos cartazes para comunicar a seus
concidadãos suas opiniões pessoais sobre toda a sorte de questões. Quanto mais se
aproximava a inauguração da Assembléia Nacional, tanto mais apaixonada e
agressiva se tornava a linguagem dos cartazes... O número dos apregoadores
públicos aumentava a cada dia. Centenas e milhares de pessoas que não tinham
outra ocupação tornaram-se vendedores de jornais, que eles anunciavam aos
gritos.300
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Em outro trecho, Benjamin afirma que Les Murailles Révolutionnaires trata-


se de uma “Obra coletiva que tem como autor o senhor Todo o Mundo”301 e que a
fúria da informação fazia com que os muros fossem disputados pelos coladores de
cartazes, sobrepondo cartazes “uns aos outros pelo menos dez vezes por dia”.302 A
ilustração de John Parry (Figura 71) mostra a efervescência deste movimento nas
ruas de Londres, apoiado sobre o maior desenvolvimento da indústria de
impressão, mas empurrado pela necessidade de divulgação de produtos de
consumo e entretenimento dirigidos a um consumo mais amplo. Na imagem de
Parry, onde também vemos outros personagens urbanos como o soldado e o
ambulante, o protagonista é a informação. Nos cartazes, as chamadas de
“Pompéia”, “Paris” e das “pulgas laboriosas” disputam os fragmentos da atenção
do morador da metrópole e também o seu dinheiro.
O periódico londrino Punch apresenta algumas gravuras que dialogam com
os muros repletos de cartazes que ajudam a construir uma nova paisagem urbana.
A ilustração de 1887 do Punch (Figura 72) é muito parecida com a de John Parry

300
Sigmund Engländer, Geschichte der französischen Arbeiter-Associationen, Hamburgo, 1864, vol. II, pp.
279-280. In: BENJAMIN, W. Passagens... p. 213. [G 3,1].
301
BENJAMIN, W. Passagens... p. 215. [G 4,1].
302
Eduard Kroloff, Schilderungen aus Paris, Hamburgo, 1839, vol II, p. 57 apud BENJAMIN, W.
Passagens... p. 214. [G 3,3].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 147

(Figura 71). Em ambas vemos a movimentação das figuras urbanas: alguns


passantes, um soldado, etc. A de Parry é mais elaborada e nos permite ver uma
construção em segundo plano (ao lado esquerdo) enquanto a do Punch é toda
focada no plano da muralha de cartazes. Duas outras ilustrações publicadas pelo
Punch também nos proporcionam reflexões.
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Figura 71. John Parry. Cena de rua em Londres, [1835].


<http://www.all-art.org/history424.html> (3/06/07)

Figura 72. Gravura retirada do Punch, or the London Charivari, 1887.


The Project Gutenberg. . Disponível em: <http://www.gutenberg.org> (25/11/07).

Na imagem de 1892 vemos a personificação do medo na figura de um


colador de cartazes que tem os pés animalescos da entidade do pânico, Pã (Figura
73). Os cartazes que Pã cola têm mensagens alarmantes: “corrida aos bancos”,
“ameaça de cólera”, “alarme de incêndio em um teatro é ameaça à vida”, “morte
O OLHAR INOCENTE É CEGO 148

por afogamento e covardia dos espectadores”. Na legenda da ilustração, Pan se


vangloria por estar vivo espalhando o medo. O “cartaz-pã” acende o medo urbano
de acidentes e tragédias e nos faz recordar os jornais sensacionalistas, ou como se
costumava dizer, jornais que “pingam sangue”. Deste modo, os cartazes que Pã
divulga criam um vínculo com as manchetes que reluzem nas bancas de revistas.
Em uma outra figura do mesmo ano vemos um artista com a sua maleta de tintas e
cavalete olhando uma “floresta de cartazes” (Figura 74). Neste caso as mensagens
apresentadas são publicitárias e, embora nos falte mais informação para
compreender o que está representado, é possível apreender o artista paralisado em
seu contato com a “floresta” de anúncios. Onde ele esperava encontrar alguma
outra coisa, deu de cara um mundo de mensagens publicitárias. É interessante
observar que se hoje apontamos para uma sociedade afogada em imagens, no final
do século XIX, as cidades já se encontravam encharcadas por slogans e impressos
publicitários. Neste contexto, a crítica repetitiva que acompanha a idéia da
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“sociedade de imagens” merece ser redimensionada.

Figura 74. “O que o nosso artista tem que agüentar....


Ele viajou por toda a Inglaterra em busca de um pano
Figura 73. Pã, o cartaz. Pã (em tom de de fundo para seu Vivian beguiling Merlin in the
deboche) fala: “Ah, ah, ah! Quem disse Forest of Broceliande,"- uma busca desesperançada”.
que eu estava morto e que o medo era Punch,or the London Charivari.Vol. 103. 3 de
algo do passado?”. Punch,or the dezembro de 1892.
London Charivari.Vol. 103. 24 de The Project Gutenberg <http://www.gutenberg.org> (24/11/07).
setembro de 1892.
The Project Gutenberg
<http://www.gutenberg.org> (25/11/07).

Nos dias atuais, o excesso de informação e publicidade visual se ampliou de


tal modo que tem levado publicitários a exercitarem ao máximo sua criatividade
de modo a encontrar espaços em branco, leia-se isentos de publicidade, onde
possam aplicar a identidade visual do seu cliente – em formato publicitário
patrocinado. O resultado pode ser visto em ovos carimbados com o logo de um
programa de televisão da CBS (Figura 75) ou na bandeja onde o passageiro coloca
O OLHAR INOCENTE É CEGO 149

seus objetos no momento da revista para o embarque nos aeroportos (Figura 76)
ou, ainda, ao ser examinado no consultório médico (Figura 77).

Figura 75. Anúncio de programas da rede CBS, Figura 76. Anúncio em bandeja de revista de
carimbado em ovos distribuídos em todo o país. bagagem em aeroporto. Retirado de STORY,
Retirado de STORY, Louise. Anywhere the Eye Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s Likely to
Can See, It’s Likely to See an Ad. New York See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de
Times, 15 de janeiro de 2007. 2007.
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Figura 77. STORY, Anúncio de Tylenol infantil em sala Figura 78. Anúncio de bebida no
de exame pediátrico. Retirado de Louise. Anywhere the símbolo de banheiro masculino.
Eye Can See, It’s Likely to See an Ad. New York Times, Retirado de STORY, Louise.
15 de janeiro de 2007. Anywhere the Eye Can See, It’s
Likely to See an Ad. New York
Times, 15 de janeiro de 2007.

Se os olhos dos moradores da metrópole vêm sendo disputados há mais de


um século e este tema questão já não constitui novidade, cabe lançar duas
questões em direções opostas. De um lado, há um questionamento sobre a
próxima fronteira a ser ultrapassada pela imagem empregada com fins
publicitários. Neste caso, a mídia eletrônica e a rede mundial de computadores
sinalizam a existência de novos espaços a serem preenchidos. Na outra direção,
retornamos para o século XIX na tentativa de compreender o modo como o olhar
contemporâneo, ainda relativamente fresco e disponível para o novo, era
disputado. Seria possível deduzir o que mais atraía os olhares metropolitanos na
direção dos impressos distribuídos ou colados nos muros? A que eram instigados?
Que novas necessidades eram evidenciadas a partir da divulgação de
O OLHAR INOCENTE É CEGO 150

determinados produtos? Em busca de algumas destas respostas, realizamos um


levantamento na coleção British Library procurando localizar impressos da
segunda metade do século XIX: peças efêmeras, de divulgação ou material
jornalístico. O resultado obtido indicou um amplo e surpreendente cardápio de
objetos e temas oferecidos ao olhar e ao desejo do consumidor moderno.
Em primeiro lugar, destacou-se na nossa investigação, a grande quantidade
de impressos jornalísticos, alguns ilustrados. As novas invenções relacionadas à
reprografia e à impressão ao longo do século XIX fizeram nascer a imprensa
moderna ilustrada. Ao menos vinte revistas ilustradas surgiram na Europa. Nova
York tinha seis, enquanto México, Brasil, Uruguai, Canadá, Austrália e África do
Sul também possuíam cada um sua publicação. Havia também os jornais satíricos
como o Le Charivari de 1832 e o Punch de 1841, além da revista científica The
Scientific American que começou a circular em 1845. Em Londres os periódicos
se dirigiam a diversos segmentos da sociedade. Algumas publicações dedicadas à
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classe trabalhadora eram vendidas a um penny (Figura 79; Figura 80) ou mesmo
meio penny (Figura 81). O grande número de títulos evidencia a popularidade
deste material voltado tanto para a informação quanto para o entretenimento. Nas
figuras aqui reproduzidas, vemos a reprodução de um folheto do periódico
Moonshine (Figura 80) que incluía ilustrações e comentários políticos organizados
de uma maneira próxima ao que hoje classificamos como comics. O anúncio
publicado no Penny Illustrated (Figura 81) divulga o lançamento de um jornal
com sete edições diárias ao custo de meio penny. O texto do anúncio destaca a
enorme pretensão do novo jornal londrino em ser o jornal “da casa”, “dos
trabalhadores”, “dos políticos”, “dos amantes do esporte”, “dos que procuram
diversão”, “dos que procuram negócios”, enfim, dos que se ocupam e dos que
procuram lazer.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 151

Figura 79. Folheto de Figura 80. Folheto de Figura 81. The evening times. Sete edições
propaganda do periódico propaganda do comics diárias. Penny Illustrated, 29 de outubro de
The Million. Evanion Moonshine. Evanion 1910. The British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07)
Collection of Ephemera. Collection of Ephemera.
The British Library. The British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> <http://www.collectbritain.co.uk>
(2/12/07) (2/12/07)

O avanço de peças impressas em ritmo industrial sistemático e contínuo em


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direção ao infinito é compartilhado em diversos outros campos do cotidiano


transitório do homem urbano, o que pode ser evidenciado através do exame de
folhetos publicitários. Nesta parte do trabalho iremos analisar exemplos
diretamente relacionados ao cotidiano da vida dos moradores urbanos e que tratam
da sua alimentação e higiene. Um exemplo relevante é encontrado em um anúncio
de rótulos para embalagens (Figura 82) de diversos tipos de alimentos. Os rótulos
passaram a ser utilizados na embalagem de produtos das grandes manufaturas, a
partir da segunda metade do século XIX. Até esta data, as mercearias e lojas de
alimentos realizavam o empacotamento de seus produtos em jarras ou pacotes de
papel na própria loja. No mostruário reproduzido no folheto de propaganda da
Fell & Briant, apesar da ausência de imagens, os rótulos de produtos diversos
como pastilhas para a tosse, balas de gengibre e confeitos utilizam até três cores
de impressão e uma ampla variedade de fontes tipográficas. É interessante
observar que os produtos alimentícios ao deixarem de mostrar-se diretamente ao
público antes de serem embalados, acabaram tendo que buscar valor no nome da
marca.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 152

Figura 82. Folheto de propaganda da Fell & Briant, impressão de


rótulos, 1889. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain.
Figura 83. Anúncio de
The British Library. <http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07)
mercado, 1885. Evanion
Collection of Ephemera. The
British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk>
(2/12/07)

Anúncios e cartazes tipográficos eram bastante comuns à época:


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empregavam uma grande quantidade de fontes, misturadas e no maior tamanho


possível. Apesar da diversificação do emprego das fontes, que em alguns casos
parecem mesmo exóticas, o resultado obtido era “estático e convencional”303
como um muro que paralisa o olhar do observador. Na Figura 83 vemos um
exemplo de folheto tipográfico de uma loja de alimentos que se apresenta como de
“primeira classe”. Provavelmente, devia tratar-se de um pequeno mercado dirigido
a um público mais abastado, na medida em que poucos moradores das regiões
urbanas tinham condições de consumir produtos frescos como os anunciados.
A tipografia da era industrial teve ainda que esperar quase meio século para
desenvolver certo requinte na utilização de tipos. No entanto, o aprimoramento da
litografia permitiu a impressão de figuras coloridas como os exemplos que
apresentaremos em anúncios e folhetos de alimentos. A nossa opção por analisar
impressos relacionados à alimentação é baseada na constatação da influência da
industrialização neste setor, que é diretamente relacionado à vida cotidiana do
morador urbano.
Apesar da presença constante de ilustrações românticas, alguns anúncios
utilizam termos mais relacionados às novas descobertas científicas como
“hypophosphites”, supostamente presente no óleo de fígado de bacalhau (Figura

303
LUPTON, Ellen. Pensar com tipos. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 23.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 153

84). O óleo de fígado de bacalhau era empregado há anos pelas comunidades


pesqueiras para proteção do frio e passou a ser utilizado por crianças com
desnutrição ou raquitismo a partir da década de 1890. No entanto, a relação entre
o óleo de fígado de bacalhau e a vitamina D só foi comprovada em 1922, muito
depois de ter sido recomendado como alívio para reumatismo e dores musculares.
A comprovação de valor nutricional em alimentos de alto custo abriu caminho
para o desenvolvimento de soluções industriais no setor alimentício. Os ovos, por
exemplo, eram reconhecidos no século XIX como fonte de ferro e proteína, mas o
transporte do campo para os centros urbanos fazia seu custo tornar-se proibitivo.
Assim, aqueles que não tinham condições de comprar ovos frescos, podiam
adquirir “pó de ovos” industrializado para usar na massa de bolo, no preparo de
pudins ou ainda misturado ao leite ou à água. O anúncio do “pó de ovos” Freeman
(Figura 85), alerta o consumidor para “insistir” na marca Freeman, quando for
“pedir pó de ovos”, o que nos permite concluir que esta não seria a única marca no
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ramo.
Um exemplo particularmente curioso de produto para “gerar força e vigor”
aparece no anúncio de Bovril, um extrato de carne criado por um açougueiro de
Edinburgh. O nome foi obtido a partir da combinação de “bos”, palavra latina para
boi e “vril”, termo criado por Bulwer Lytton no seu livro de ficção científica The
Power of the Coming Race. A obra, publicada em 1871, tratava de uma sociedade
utópica que habitava as profundezas da Terra e dominava uma misteriosa força
vital. O anúncio aqui reproduzido (Figura 86) apresenta um grupo de figuras
humanóides erguendo o globo terrestre. Eles têm braços e pernas, mas no lugar do
tronco e da cabeça têm um frasco de Bovril. A relação com a ficção científica
parece estreitar-se nas figuras dos Homens-Bovril e demonstra uma aproximação
estreita entre a cultura popular e a produção industrial de alimentos. Outro dado
interessante nesta peça gráfica é a utilização de letras soltas e embaralhadas no
slogan do produto: “supports the world” – uma utilização tipográfica com tons de
ousadia.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 154

Figura 84. Anúncio da


emulsão Scott com “puro
óleo de fígado de bacalhau”, Figura 85. Anúncio de
1884. Evanion Collection of Freeman's Egg Powder, 1885.
Figura 86. Anúncio de Bovril,
Ephemera. The British Evanion Collection of
1890. Evanion Collection of
Library. Ephemera. The British
Ephemera. The British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> Library. <http://www.collectbritain.co.uk>
(2/12/07) <http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07)
(2/12/07)
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Anúncios como o de Bovril apresentam-se como exceções em um ambiente


onde a maior parte dos anúncios encontra-se relacionado à concepção romântica
contemporânea, inclusive utilizando figuras infantis ou angelicais. O emprego de
ilustrações de caráter romântico, na maioria das vezes, aparece sem relação com o
valor do alimento ou as características de seu preparo. Esta consideração se
evidencia no anúncio litográfico do alimento artificial Mellin “para crianças e
inválidos” (Figura 87). No anúncio do alimento ambiente Mellin vê-se um
ambiente campestre com duas crianças de bochechas rosadas. Uma delas tem uma
estrela de várias pontas brilhando sobre sua cabeça e está assentada sobre um tubo
do alimento que flutua no espaço. A boca do tubo de Mellin aparece decorada por
ramos de folhas. A outra criança aparece sentada entre ramos de trigo, na única
alusão à composição do alimento, com os braços estendidos para receber o
alimento. No canto inferior direito da imagem, um pássaro leva um pequeno ramo
de folhas no bico. O pássaro em movimento forma uma espécie de assinatura com
um quadro de moldura arredondada onde se vêem três pequenos pássaros de bico
aberto como se esperasse o alimento. Abaixo do conjunto um toco de árvore leva
o dístico beneditino “Ora et labora”, reza e trabalha.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 155

Figura 88. Folheto do fermento em pó Soddy, 1887. Evanion


Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (13/12/07)
Figura 87. Mellin’s Food for
Infants & Invalids, 1890. Evanion
Collection of Ephemera. The
British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07)
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É interessante observar a oposição entre o utilitarismo dos alimentos


industriais e a pureza, doçura ou benignidade sugerida pelas ilustrações
românticas de crianças rosadas. Em alguns casos, a presença de crianças no
impresso reforça a simplicidade de preparo do produto, como no calendário do
fermento em pó Soddy (Figura 88). Nesta figura, uma criança prepara o alimento e
a outra apresenta o resultado para o orgulho dos pais. O fato se tratarem de
crianças pequenas é ressaltado em ambas as imagens. Na primeira, a criança
pouco mais alta do que uma mesa carrega um bolo desproporcional para o seu
tamanho. Na segunda, a jovem cozinheira faz uso de uma banqueta para alcançar
a mesa onde prepara o bolo. No anúncio do pó Freeman para pudim (Figura 89),
que pode ser feito em “cinco minutos”, bastando “acrescentar leite e açúcar”,
vemos a figura de uma jovem com um cartaz onde se lê: “uma criança pode fazê-
lo”. Sobre a mesa diversos pudins, representando os sabores citados abaixo. O
pudim era uma parte importante da alimentação vitoriana. Embora as classes mais
baixas não tivessem acesso freqüente às sobremesas, estas não eram exatamente
um luxo dos mais ricos. O pó de pudim facilitava o preparo a um preço acessível
para as classes médias, onde era muito popular.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 156

Figura 89. Anúncio do pó para pudim Freeman, 1884. Evanion


Collection of Ephemera. Collect Britain. The British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07) Figura 90. Anúncio da
essência de chocolate
Cadbury, 1866. Evanion
Collection of Ephemera. The
British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk>
(2/12/07)
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Estes exemplos apontam para a evidencia de que as publicações e suas


imagens passaram a ocupar espaço na construção do imaginário do morador da
urbe a partir de sua atuação nos diversos campos de sua vida, como no ambiente
doméstico, no vestuário e na alimentação, na formulação de uma verdadeira
cultura visual. Se, por um lado, alguns exemplos são de anúncios bastante
objetivos, de outro existe sutileza na existência de marcas ou ilustrações que não
apresentam uma conexão direta com o produto. Este enfoque pode ser claramente
observado em anúncios de sabão que, apesar de manufaturado há centenas de
anos, tiveram seu consumo ampliado a partir de 1853, com a isenção de taxas. De
um lado, vemos o produto em ação, seja na limpeza realizada por empregados
(Figura 91; Figura 92) ou no destaque dado às características funcionais do
produto (Figura 93). O anúncio da marca de sabão em pó Hudson (Figura 92) é ao
mesmo tempo característico do espírito romântico que ainda paira sobre o século
XIX e da funcionalidade de atuação do produto. Na sua ilustração há uma criança
bem vestida que escreve na porta as informações do sabão: “lava, limpa e poli
tudo”. Pela porta entreaberta vemos a doméstica lavando roupa em uma das
máquinas contemporâneas.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 157

Figura 91. Anúncio do desinfetante Jeyes, 1879.


Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The
British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (2/12/07)
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Figura 92. Anúncio do sabão em pó Hudson, 1880. Figura 93. Anúncio do sabão em pó
Evanion Collection of Ephemera. *The British Library. Hudson, 1889. Evanion Collection of
<http://www.collectbritain.co.uk> (14/12/07) Ephemera. The British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> (15/12/07)

Outra série de anúncios e folhetos publicitários de sabão utiliza figuras não


diretamente relacionadas às características do produto ou à higiene e limpeza,
simplesmente elementos ilustrativos. É o caso do anúncio da manufatura Price
(Figura 94), onde o anunciante aproveita a ilustração de um barco para divulgar
também a sua produção de velas para alumiar. No caso do fabricante de sabão
Brooker, um macaco foi adotado para representar sua marca (Figura 95), enquanto
o sabão em pó Glover, premiado na Exposição de Paris de 1878, utiliza a imagem
de um galo (Figura 96).
O OLHAR INOCENTE É CEGO 158

Figura 94. Anúncio do sabão Figura 95. Anúncio do sabão Figura 96. Anúncio do sabão
Price, 1880. Evanion Brooker, 1889. Evanion em pó Glover, 1881. Evanion
Collection of Ephemera. The Collection of Ephemera. The Collection of Ephemera. The
British Library. British Library. British Library.
<http://www.collectbritain.co.uk> <http://www.collectbritain.co.uk> <http://www.collectbritain.co.uk>
(2/12/07) (2/12/07) (2/12/07)

Os impressos publicitários apresentados evidenciam o destaque vitoriano


dado ao ambiente doméstico em um ambiente onde o trabalho industrial passa a
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ditar o ritmo urbano da metrópole, inclusive com a falta de tempo que faz com
que os habitantes procurem simplificar os seus modos de alimentação, moradia e
higiene.
A produção de impressos em grande escala ao lado da diversidade dos
produtos desenvolvidos especificamente para os moradores urbanos confirmam o
enorme fluxo de informações visuais sugerido pelas representações de muros
cobertos por impressos e apontam, também, para o avanço da industrialização em
setores tão diversos como editoração, produtos de limpeza e alimentos pré-
prontos.
As cidades saturadas de imagens colocam-se ao mesmo tempo como um
“complexo de representações e um lugar de circulação de representações”; o
efeito de cada um destes processos é articulado e retrabalhado sobre o outro.304
Em um mundo onde tudo e todos se movimentam surge um novo tipo de olhar a
partir da dinâmica surgida entre os espaços urbanos, as novas tecnologias e sua
influência sobre o aparecimento da profusão de imagens. A visão abandona a
postura contemplativa e o ponto de vista único da perspectiva para tornar-se

304
TAGG, John. The Discontinuous City: Picturing and the Discursive Field. In: BRYSON, Norman,
HOLLY and MOXEY (eds.). Visual Culture: Images and Interpretations. Hanover and London: Wesleyan
University Press, 1994. p. 85. apud apud NEAD, Lynda. Victorian Babylon. People, streets and images in
nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 57.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 159

múltipla e deslizante sobre as formas de cada objeto ou imagem. Com tantos


pontos de vista possíveis, o novo observador vê-se disputado pelo excesso de
estímulos e é forçado a adaptar sua forma de olhar a estas condições: com o menor
esforço possível deve ser capaz de registrar o maior número de estímulos visuais.
De um único relance poderá registrar um grande número de elementos
individuais. Estão apontadas algumas bases da cultura visual contemporânea.

3.2.4. O olhar para o novo / o choque do novo

O excesso de estímulos visuais encontra-se relacionado à “concepção


neurológica da modernidade”305, expressão criada por Ben Singer, baseada em
estudos de Georg Simmel, Siegfried Kracauer e Walter Benjamin que apontavam
para a compreensão da modernidade como o registro de uma experiência subjetiva
caracterizada por choques físicos e perceptivos no ambiente urbano moderno. “A
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modernidade implicou em um mundo fenomenal – especificamente urbano – que


era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as
fases anteriores da cultura humana”.306
O movimento do tráfego e das multidões, o barulho das ruas e a crescente
carga de informação visual contida nas vitrines, estampas, cartazes e anúncios
encontram paralelo em uma reorganização das respostas sensoriais. O novo ritmo
trazido pelo transporte rápido, pelo aumento na quantidade de produtos e
informações e pela premência da produção em massa acelerou essas repostas. A
velocidade crescente passa a influir diretamente sobre uma mudança perceptiva
consciente, que Georg Simmel anos depois veio a chamar de “percepção urbana”.
No ensaio “A metrópole e a vida mental” de 1902, Simmel analisa a alteração
brusca e ininterrupta entre o que chama de estímulos interiores e estímulos
exteriores e o modo como esta dinâmica intensifica as respostas nervosas do
homem urbano.307 Para Simmel “a metrópole extrai do homem, enquanto criatura
que procede a discriminações, uma quantidade de consciência diferente da que a

305
SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In CHARNEY, Leo e
SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p
116.
306
Id.
307
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otavio Guilherme.(org.) O fenômeno urbano.
Rio de Janeiro : Zahar, 1976. p. 12.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 160

vida rural extrai”.308 Opondo os ritmos de vida urbano e rural, observa que na
última “o conjunto sensorial de imagens mentais flui mais lentamente, de modo
mais habitual e mais uniforme.309 O cidadão urbano sujeito a estímulos
contrastantes acaba por adotar uma atitude blasé. “Uma vida em perseguição
desregrada ao prazer torna uma pessoa blasé porque agita os nervos até seu ponto
de mais forte reatividade por um tempo tão longo que eles finalmente cessam
completamente de reagir”.310 Esta manifestação fisiológica consiste “no
embotamento do poder de discriminar”.311 Os objetos são percebidos como
“destituídos de substância” e aparecem à pessoa blasé num tom uniformemente
plano e fosco, sem grandes relevâncias. “Objeto algum merece preferência sobre o
outro”.312 O excesso de estímulos faz como que a atitude blasé surja como uma
forma de autopreservação. O resultado é que para que venha a interagir com
objetos ou imagens, o homem moderno irá precisar de estímulos cada vez
maiores. Já em 1910 o termo “hiperestímulo” aparece associado ao novo ambiente
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metropolitano da modernidade.313 A teoria de Simmel ainda ecoa com bastante


atualidade em nossos dias, inclusive sendo reforçada pelas modificações ocorridas
na natureza e intensidade dos estímulos surgidos nas últimas décadas como
conseqüência do aparecimento de novas de comunicação.
Walter Benjamin, influenciado por Simmel, avalia a experiência da
modernidade a partir da transformação de Erfahrung em Erlebnis314. Erfahrung
trata da “experiência” relacionada à obtenção de um conhecimento sem
intervenção da consciência, mas sedimentado com o tempo. Erlebnis é a vivência
imediata, “do indivíduo privado, isolado é a impressão forte, que precisa ser
assimilada às pressas, que produz efeitos imediatos”.315 É relacionada à impressão
do indivíduo desconsiderando sua inserção na comunidade. Erfahrung pertence ao
domínio do artesanal, relaciona-se à continuidade, à memória, à narrativa e a uma
relação significativa com o passado enquanto Erlebnis é própria da experiência

308
Id.
309
SIMMEL, G. op. cit., p. 12.
310
Ibid., p. 16.
311
Id.
312
Id.
313
DAVIS, Michel M. The explotation of pleasure. Nova York: Russel Sage Foungation, 1911 p. 33-36,
apud SINGER, B. op. cit., p 119.
314
A questão da experiência aparece em diversos textos de Benjamin. Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre alguns
temas em Baudelaire.... p. 104 a 149.
315
BARBOSA, José Carlos Martin, redator técnico, citando KONDER, Leandro. BENJAMIN, W. Sobre
alguns temas em Baudelaire... p. 146.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 161

descontínua das cidades, das sensações fragmentárias, das informações contínuas


e superficiais e das existências momentâneas. “Erfahrung é o conhecimento
obtido através de uma experiência que se acumula, que se prolonga, que se
desdobra, como numa viagem...”.316 É uma construção no tempo e na história.
Erlebnis é a própria experiência da modernidade, da celebração do espetáculo do
“agora” e de seu parceiro - o sempre novo, filhos da metrópole capitalista surgida
na segunda metade do século XIX.
A cidade moderna abre espaço para a necessidade permanente do novo, o
estranho e o sensacional. Ben Singer credita a este desejo o crescente número de
ilustrações presentes em jornais e revistas da época que mostram desastres e
pequenas tragédias urbanas, geralmente representadas no momento imediatamente
anterior ao impacto. Algumas destas imagens enfatizam o choque entre o mundo
moderno e o pré-moderno como vemos na figura do New York World de 1897 que
mostra um acidente envolvendo um cavalo e um bonde (Figura 97). Na figura da
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Life vemos um adulto e uma criança de origem indígena em dois diferentes


momentos (Figura 99). Representados no século XVI, eles passam tranqüilidade:
o ambiente é campestre, o adulto fuma seu cachimbo enquanto a criança parece
olhar para fora do quadro, ou para o nosso olhar. O segundo momento é na Nova
York do século XIX. Um bonde avança em alta velocidade sobre a mulher que
resgata uma criança da frente do veículo. O chapéu do menino é lançado ao chão
enquanto as tranças da mulher formam um desenho curvo em contraste com as
linhas retas do bonde. O motorista tem um semblante ameaçador e sarcástico e
avança sobre suas vítimas: outra criança e um homem, lançados um de cada lado
do veículo. Ao fundo vemos a nossa já conhecida “paisagem” de cartazes
publicitários, desta vez, anunciando “imagens em movimento”. Em uma gravura
do Punch, um homem é retratado no instante em que, ao descer as escadas, é
surpreendido por uma súbita freiada do bonde. De acordo com a legenda, ele não
se encontra em um de seus melhores momentos (Figura 98).

316
Id.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 162

Figura 98. “Quando um homem não parece


Figura 97. “Cavalo estraçalha janela de bonde”. estar no seu melhor momento”- n. 2. Punch,
New York World, 1897. Extraído de SINGER, or The London Charivari. Vol. 101. 17 de
Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do outubro de 1891.
sensacionalismo popular... p 123 The Project Gutenberg <http://www.gutenberg.org>
(24/11/07).
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Figura 99. “Broadway – Passado e Presente”. Life, 1900.


Extraído de SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o
início do sensacionalismo popular... p 122.

Um ensaio acadêmico publicado em 1912 no American Journal of


Sociology enfatiza a conexão entre a experiência moderna e o apetite por
“choques intensos” no entretenimento. “Há ‘alguma coisa acontecendo a cada
minuto’... Tudo isso tende a estimular uma atenção esgotada, por meio de uma
O OLHAR INOCENTE É CEGO 163

sucessão de choques curtos e intensos que reavivam o organismo cansado para


atividades renovadas”.317 Estas atividades consistiam em teatro de variedades,
vaudeville, exibição de filmes em movimento, acrobacias aéreas, “aparelhos que
fazem cócegas”, peep shows, gabinetes de curiosidades dentre outros capazes de
suprir a necessidade por novos estímulos. Estes estímulos deveriam produzir
sensações cada vez mais intensas de forma a penetrar nos sentidos atenuados para
então “formar uma impressão e redespertar uma percepção”.318 Deste modo
compreende-se que os entretenimentos se anunciem como algo “jamais visto”,
“nunca antes...”, “o maior show do mundo”, etc. É neste contexto que Ben Singer,
ao considerar que a modernidade “inaugurou um comércio de choques
sensoriais”319, vê o início do cinema reforçando a tendência pela procura das
sensações intensas que gravitam em torno de uma “estética do espanto”.320
É como se o ambiente caótico da modernidade tivesse sido transfigurado em
monotonia. Há no ar uma ânsia pela novidade, já que a monotonia “se nutre do
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novo”.321 Walter Benjamin vê a falsa aparência da novidade como o reflexo de um


espelho no outro. Para tentar entender o significado da nouveté, pergunta-se: “Por
que todo o mundo comunica as últimas novidades aos outros? Provavelmente para
triunfar sobre os mortos”.322 Os mortos são os sem-novidade porque não podem se
aliar à velocidade mutante dos novos tempos. E prossegue:
Esta temporalidade [que] não quer conhecer a morte, por que a moda zomba da
morte, e como a rapidez do trânsito e a velocidade da transmissão de notícias – que
faz com que as edições do jornais se sucedam rapidamente – visam a eliminar toda
interrupção, todo fim abrupto, e de que maneira a morte como cesura tem a ver
com a linha reta do decurso divino do tempo.323

No fundo trata-se do “mesmo” que é buscado incansavelmente com uma


nova roupagem. Neste contexto, surge a moda como um fenômeno específico da
modernidade capitalista, acentuando o desejo pela mudança rápida.324 Para
Benjamin, “a moda é o eterno retorno do novo”325 e se coloca como um remédio

317
WOOLSTON Howard B. The Urban Habit of Mind. American Journal of Sociology. V. 17, n. 5, mar.
1912. p. 602 apud SINGER, B. op. cit., p 139.
318
Em referência a Woolston cf. SINGER, B. op. cit., p 140.
319
SINGER, B. op. cit., p 133.
320
Ibid., p 136.
321
VAUDAL, Jean, Le Tableau Noir. BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 151. [D 5,6].
322
BENJAMIN, W. Passagens... p. 152. [D 5a,5].
323
Ibid. p. 89. [A 6,2].
324
SIMMEL, Georg. Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, p. 41. apud BENJAMIN, W. Passagens... p. 115.
[B 7a,1].
325
BENJAMIN, Walter. Parque Central. In: Obras escolhidas III... p. 169.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 164

para compensar “na escala coletiva os efeitos nefastos do esquecimento. Quanto


mais efêmera é uma época, tanto mais ela se orienta pela moda”.326
A moda é o fundamento sobre o qual as lojas exercem seu poder de atração
sobre o olhar do transeunte. Em um texto de 1822, reproduzido por Benjamin,
lemos:
Os olhos são conduzidos como que à força, é preciso olhar para cima e ficar parado
até que o olhar seja restituído. O nome do comerciante ou de sua mercadoria está
escrito dez vezes em tabuletas penduradas por toda parte, sobre as portas, acima
das janelas, o lado externo da abóbada assemelha-se ao caderno de uma criança de
327
escola, que repete continuamente as poucas palavras a serem copiadas.

Até a segunda metade do século XIX, as lojas de varejo eram


especializadas. Em geral pertenciam a um indivíduo ou família e disponibilizavam
artigos produzidos artesanalmente. Os compradores se dirigiam a estes
estabelecimentos em busca de itens específicos e, de uma maneira geral, tinham
em mente o que iriam encontrar.
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A partir da segunda metade do século XIX, os espaços comerciais passaram


a se organizar em cadeias, como na Inglaterra, ou em lojas de departamento, como
Le Bon Marché, Le Louvre e La Belle Jardinière328, nascidas na França. A nova
dinâmica comercial foi estabelecida, principalmente, a partir da produção de
artigos em massa e das transformações urbanas.
Le Bon Marché era uma pequena loja parisiense, quando em 1863,
Boucicaut comprou a parte dos sócios e passou a imprimir novas características ao
empreendimento que até os dias de hoje se assina como “Maison Aristide
Boucicaut”. Buscando caracterizar a casa por sua honestidade, qualquer compra
que não satisfizesse o consumidor poderia ser trocada por outra ou ter restituído o
valor pago.329 Todos os produtos tinham preço fixo, indicado sobre etiquetas. Esta
inovação ousada suprimia a pechincha e a ‘venda segundo a cara do freguês’.330

326
BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 104-105. [B 2,4].
327
Ludwig Börne, Schilderungen aus Paris, 1822 e 1823, VI (“Die Läden”), in: Gesammelte Schriften,
Hamburgo / Frankfurt a. M., 1862, III, pp. 46-49. apud, BENJAMIN, W. Passagens... p. 99-100. [A, 12a].
328
Benjamin aponta o nascimento das três lojas francesas a partir de 1852. BENJAMIN, W. Passagens.. p.
89. [A 6,2].
329
Souvenir of the Bon Marche, Paris. Impresso por The Bon Marche by Imprimerie Lahure, 9, rue de
Fleures, a Paris. Lipinsky Family Collection, D.H. Ramsey Library Special Collections, UNCA, USA. In:
<http://toto.lib.unca.edu/findingaids/books/booklets/bon_marche/default_bon_marche.htm> Acesso em
21/07/2007 às 11:00.
330
George d’Avenel, “Le mécanisme de la vie moderne: Les grands magazins”, Revue de Deux Mondes,
Paris, 1894, pp. 335-336; 124 tomos” apud BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 98. [A 12,1].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 165

O grande número de produtos disponíveis permitia uma ampla margem de


escolha e também uma eventual substituição, no caso de não se encontrar o
produto desejado originalmente. Finalmente, a diminuição na margem dos lucros
possibilitou uma grande rapidez de reposição de mercadoria. As mercadorias
também podiam ser escolhidas através de catálogos e remetidas para qualquer
parte do planeta. Itens acima de 25 centavos eram enviados sem custo para
diversos países da Europa: “Entregamos tão longe quanto um cavalo possa
alcançar em Paris”.331 Outra grande invenção foi a liquidação de inverno criada
para ajudar a “queimar” o estoque de produtos não vendido no natal e na virada do
ano, reforçando a rotatividade das mercadorias
Diferentemente do que ocorria em outros empreendimentos relacionados à
indústria, Boucicaut e sua esposa eram reconhecidos por se preocuparem com as
condições de trabalho dos empregados. Além das comissões originadas a partir
das vendas, os empregados contavam com assistência médica e um fundo de
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previdência para a aposentadoria. Recebiam refeições no local de trabalho e


folgavam aos domingos. Este tratamento paternalista acontecia muito antes de
qualquer obrigação trabalhista legal. As obrigações e benefícios dos empregados
eram divulgados em publicações impressas que ressaltavam o papel filantrópico
do empreendimento.332 Quando iniciou a construção do grande edifício da loja,
em 1869, Boucicaut fez acrescentar uma placa com um pequeno texto onde
deixava claro que desejava fazer da instituição uma organização filantrópica como
gratidão pelos “seus esforços sempre terem sido recompensados pela
Providência”.333
Qualquer um podia circular – mesmo que por pura diversão – pelos
pavimentos dos grands magasins de noveauté. O espaço físico das lojas de
departamento incorporava outros usos além da venda de produtos. Em Paris estes
espaços se estabeleceram entre as atrações turísticas mais importantes da
cidade.334 Na loja do Bon Marché havia visitas guiadas diárias, com
acompanhantes em diversos idiomas, além de uma galeria para exposição de

331
LE BON MARCHÉ RIVE GAUCHE - press release new edition October 2004. p. 6.
332
Au Bon Marché. Résumé du réglement général ; en Institutions philanthropiques en faveur du personnel /
Au Bon Marché, nouveautés, Maison Aristide Boucicault,... Publication: Paris: Maison A. Boucicaut, 1894.
In: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1050508.notice> Acesso em 25/07/2007 às 20:15.
333
History of Le Bon Marché. <http://www.lebonmarche.fr/anglais/indexbis.htm> Acesso em 25/07/2007.
334
TIERSTEN, Lisa. Marianne in the market: envisionig consumer society in fin-de-siècle France. Los
Angeles: University of California Press, 2001. p. 26.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 166

pinturas e esculturas, onde não se aceitavam cópias.335 No século XIX, a loja de


departamentos já associava compras a entretenimento, oferecendo para antes ou
depois das compras uma ida ao restaurante ou ao Tea Lounge para um encontro
com Orquestra Vocal. Todo este arsenal procurava fazer com que a mercadoria se
mostrasse ainda mais sedutora. Para T. J. Clark os magasins se abriam como uma
espécie de palco onde o comprador devia estabelecer uma nova postura: “não
pechinchar, mas procurar as pechinchas, não obter uma roupa cortada sobre
medida, mas escolher uma que, de algum modo, coubesse perfeitamente dentre as
54 saias-balão em exposição.336
A nova dinâmica comercial produziu um grande impacto sobre as pequenas
lojas, mas, principalmente, sobre os artesãos que, na França, já atravessavam um
período de mudanças intensas na sua atividade com alterações na forma de
trabalhar, graças ao desenvolvimento industrial, mas também com modificações
no seu espaço de atuação, como resultado das reformas de Haussmann que
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promoveram a reestruturação da antiga comunidade com a conseqüente mudança


dos trabalhadores para bairros mais distantes. Mas, acima de tudo, os artesãos
foram profundamente afrontados pelo sistema de vendas que se propunha um
lucro pequeno para uma qualidade plenamente aceitável.337 A estrutura comercial
e de produção foi completamente reformulada. Os representantes das grandes
lojas se dirigiam aos ateliês com pedidos de centenas ou milhares de unidades. Na
busca pelo melhor preço, negociavam o serviço ou, se necessário, iam procurá-lo
mais longe. As condições eram ofensivas não apenas pelas exigências de preço,
mas também de velocidade. Deste modo, os artesãos foram aprendendo a usar o
ferro mais barato e o papel mais fino e a preocupar-se menos com a qualidade
permanente do resultado338. Passaram a trabalhar por mais tempo com o mestre,
atuando como um guardião da disciplina da oficina, zelando pelos prazos. As
tarefas de produção foram segmentadas e cada trabalhador executava a sua

335
Souvenir of the Bon Marché, Paris. Impresso por The Bon Marche by Imprimerie Lahure, 9, rue de
Fleures, a Paris. Lipinsky Family Collection, D.H. Ramsey Library Special Collections, UNCA, USA. p. 4.
In: http://toto.lib.unca.edu/findingaids/books/booklets/bon_marche/default_bon_marche.htm. Acesso em
21/07/2007 às 11:00.
336
CLARK, T. J. op. cit., p. 101. O número citado é o de saias disponíveis no Bon Marché.
337
“The system of selling everything at a small profit and of a perfectly reliable quality”. Souvenir of the Bon
Marche, Paris. Impresso por The Bon Marche by Imprimerie Lahure, 9, rue de Fleures, a Paris. Lipinsky
Family Collection, D.H. Ramsey Library Special Collections, UNCA, USA. p. 3. In:
http://toto.lib.unca.edu/findingaids/books/booklets/bon_marche/default_bon_marche.htm. Acesso em
21/07/2007 às 11:00.
338
CLARK, T. J. op. cit., p. 102.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 167

especialidade, muitas vezes na própria casa sob o comando representante da


cadeia de lojas.

Figura 101. Ilustração “origin of the bon


Figura 100. Au Bon Marché, 1889. Vitrine de
marché”. p. 2. Livreto, c. 1896. In: D. H.
pequenos artefatos. In: Revista Electrónica de
Ramsey Library, Special Collections,
Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de University of North Carolina at Asheville.
Barcelona. Vol. X, n. 211, 15 de abril de 2006. <http://toto.lib.unca.edu/findingaids/books/booklets/bon_m
<http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-211.htm> (21/07/07) arche/default_bon_marche.htm> (21/07/07)

As novas formas de exibir os produtos visavam vender mais do que as


pessoas haviam originalmente planejado comprar e a publicidade impressa
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reforçava esta idéia. A influência do Le Bon Marché na construção da visualidade


moderna não se restringe apenas às novidades na exposição e venda de produtos
(Figura 100), mas pode ser observada na produção de produtos impressos como
folhetos e estampas colecionáveis e nas artes plásticas. Por ser a primeira loja de
departamento, o Bon Marché servia de referência para a criação de lojas
semelhantes. A Figura 101 reproduz a primeira página de uma publicação voltada
para as práticas administrativas deste modelo de loja e que foi utilizado pela
família Lipinsky, proprietária da loja de departamentos Asheville, N.C. Bon
Marché nos Estados Unidos. É importante observar que, apesar desta loja
americana não estar diretamente ligada à matriz francesa, o seu processo de
desenvolvimento e modernização é destacado na ilustração (Figura 101). As
estampas litográficas promocionais foram utilizadas como publicidade do Bon
Marché a partir de 1878, com ilustrações diferentes, de forma a estimular o
colecionamento (Figura 102; Figura 103).
O OLHAR INOCENTE É CEGO 168

Figura 103. Estampa promocional Au Bon


Figura 102. Cartão postal promocional Au Bon
Marché, c. 1878. GORBERG, Samuel.
Marché, sem data. Disponível em:
<http://www.cardmine.co.uk/list26/a260071.jpg>
Figurinhas: Sucesso de Marketing. . Disponível
(28/06/08) em:
<http://brasilcult.pro.br/ensaios/figurinhas/figurinhas.htm>
(21/07/2007).

Uma interessante referência às lojas Au Bon Marché é encontrada na


natureza-morta cubista de Pablo Picasso que compartilha seu nome com a loja
(Figura 104). O rótulo da loja de departamentos ocupa o centro da obra, mas
encontra-se posicionado de forma ilusionística sugerindo uma caixa ou uma mesa
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em um plano perpendicular ao fundo da imagem. À esquerda há a forma de uma


garrafa e à direita, um copo. Ao fundo, a figura de uma mulher é destacada de um
anúncio de jornal de outra cadeia de lojas, a Samaritane.339 A pintura deixa
evidente apenas partes do anúncio. Há na obra de Picasso uma referência direta ao
consumo com a bebida e a mulher articulando-se neste contexto. A mulher
aparece, de fato, com uma função dupla de consumidora de bens, mas também,
envolvida no mundo das mercadorias, como objeto de consumo.340 Estas
considerações ampliam a noção de consumo, situando-o de maneira fundamental
dentro de um modo de vida construído pela modernização, onde os próprios
consumidores também podem ser consumidos.

339
Esta análise da obra de Picasso foi sugerida em HARRISON, Charles et alli. Primitivismo, Cubismo,
Abstração. Começo do século XX. São Paulo: Cosac & Naify E., 1998. p. 95-98.
340
POGGI, Christine. Mallarmé, Picasso and the newspaper as commodity. P. 150 apud HARRISON,
Charles et alli. Primitivismo, Cubismo, Abstração. Começo do século XX. São Paulo: Cosac & Naify E.,
1998. p. 97.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 169

Figura 104. Pablo Picasso. Natureza-morta Au Bon Marché,


1913. Óleo e papel colorido sobre cartão. Coleção Ludwig,
Aachen. <http://www.artchive.com>

O consumo entra em cena no momento em que se abre mão da permanência


em favor do momento para o momento. Alexis de Tocqueville identificou o
“consumo imediato dos produtos e igualdade, sem classes, dos consumidores”
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como característica do espírito da indústria norte-americana.341 A obsolescência


parecia afirmar-se através da busca pela perfeição. Tocqueville ao perguntar a um
marinheiro norte-americano porque os navios de seu país se construíam de forma
a não durarem muito, responde sem hesitar que “a arte da navegação faz progresso
diários tão grandes, que o navio mais formoso viria a ser inútil dentro muito
pouco tempo, se durasse mais que alguns anos”.342
A necessidade do novo avança até os nossos dias lado a lado com o
consumo. No século XIX, o olhar iniciou um diálogo com o novo, respondendo a
cada estímulo, buscando o resto de inocência em cada mirada. O olhar e o novo
interagem em respostas cíclicas cada vez mais aceleradas, em uma disputa que
parece longe do fim.

3.2.5. O controle sobre os corpos

A multidão sintetiza a imagem do “turbilhão” advindo com a


modernização, um dos agentes geradores da sensação de efemeridade e
fragmentação que acompanha a modernidade. Duas gravuras de periódicos

341
PLUM, Werner. Exposições mundiais no século XIX: espetáculos da transformação sócio-cultural. Bonn :
Friedrich-Ebert-Stiftung, 1979. p. 125.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 170

londrinos do século XIX expressam este estranhamento com algumas semelhanças


- apesar do distanciamento de trinta anos entre elas. Ambas retratam trabalhadores
em manhãs de domingo. Na primeira, de 1856 (Figura 105), vemos um
aglomerado de adultos e crianças em frente à porta fechada de uma loja de
bebidas. O ambiente é de nada fazer, de vagabundagem. Um homem fuma
encostado em um poste, outro boceja. Uma criança carrega outra menor. Seria um
ambiente de tranqüilidade embora paire no ar uma tensão sutil disseminada pelo
aglomerado de trabalhadores. A segunda gravura publicada em 1886 (Figura 106)
utiliza a ironia ao estilo da publicação Punch, para contrastar o título “Um
domingo tranqüilo em Londres; ou o Dia do Descanso” à imagem da balbúrdia.
Todas as pessoas estão agitadas. Uns carregam faixas ou cartazes como se
estivessem em um piquete. Chove. Animais se misturam à turba e alguns
passantes, mulheres com crianças, parecem assustados. Não sendo nossa
pretensão abordar fundamentalmente o aspecto socioeconômico sugerido por estas
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duas imagens, nos atemos à diferenciação do ambiente urbano nos dois exemplos.
No primeiro, todas as pessoas parecem se conhecer e não se percebem ameaças no
ambiente. No segundo a multidão é a ameaça. A algazarra faz a rua do segundo
quadro parecer pequena para tantas pessoas e a multidão parece esconder diversas
“camadas” de figuras.

Figura 105. Rua em manhã de domingo. Illustrated London News, 1856.


<http://www.victoriantimes.org> (4/07/07)

342
TOCQUEVILLE, Aléxis de. De la démocratie en Amérique. apud PLUM, W. op. cit., p. 126.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 171

Figura 106. “Um domingo tranqüilo em Londres; ou o Dia do Descanso”. Punch,


1886. Extraído de SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do
sensacionalismo popular... p. 120.
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A ameaça desprendida do aglomerado urbano parece ter sempre estado


relacionada à impossibilidade de controle e à entropia343. De Baudelaire,
Benjamin destaca: “O que são os perigos da floresta e da pradaria comparados
com os choques e conflitos diários do mundo civilizado? Enlace sua vítima no
bulevar ou traspasse sua presa em florestas desconhecidas, não continua sendo o
homem, aqui e lá, o mais perfeito de todos os predadores?”.344 A sensação de
medo no final do século XIX, aparentemente, foi reforçada com o surgimento dos
partidos trabalhistas, iniciado na década de 1870, pelo Partido Social Democrático
Alemão que relacionou o conceito marxista de massas ao proletariado industrial.
Nestas condições, a classe alta passou a sentir-se ameaçada em sua hegemonia
com a idéia de revolução. Mas, a concepção de uma multidão anônima
indiscriminada e sem rosto impõe-se como uma ameaça que independe da classe
social. Novas configurações espaciais e o tráfego incessante de pessoas e veículos
resultaram na incompetência do olhar para decifrar a avalanche de signos que
surgia.

343
BRANTLINGER, Patrick. Mass Media and Culture in Fin-de-Siècle Europe. In Fin de Siècle and its
Legacy. Ed. TEICH, M. and PORTER, R. Cambridge Univ. Press, 1990. p. 98-124.
344
Baudelaire apud BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. Obras escolhidas III. Charles
Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 37.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 172

As mudanças vividas com a ascensão da sociedade industrial confundiram


algumas referências estabelecidas anteriormente, relacionadas à hierarquia social.
É neste contexto que alguns signos característicos de atividade profissional se
colocaram como possível demarcador de identificação dos indivíduos dentro da
multidão. De fato, referências a utensílios e vestimentas já são encontradas na
representação de profissões no final do século XVII. É este o caso do léxico
indumentário retratado nos Costumes grotesques de Larmessin (Figura 107,
Figura 108 e Figura 109). O desenhista criou, para cada profissão, um uniforme
composto por elementos extraídos oniricamente dos instrumentos utilizados na
prática de cada ofício em uma harmonização que, como observa Roland Barthes,
se aproxima das pinturas de Arcimboldo. “Trata-se de um pansimbolismo
desbragado. [...] Nessa fantasia, o vestuário acaba por absorver completamente o
homem; o trabalhador é anatomicamente assimilado a seus instrumentos”, como
se fosse um “robô avant la lettre”.345
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Figura 107. Vestimenta de Figura 108. Vestimenta de Figura 109. Vestimenta de


jardineiro. Larmessin, c. 1695. músico. Larmessin, c. 1695. confeiteira. Larmessin, c. 1695.
Les Costumes Grotesques: Les Costumes Grotesques: Les Costumes Grotesques:
Habits des métiers et Habits des métiers et Habits des métiers et
Professions. Professions. Professions.

A representação fantasiosa encontrada em Larmessin dá lugar, na primeira


metade do século XIX, a uma classificação dos tipos da cidade, exposta em
cartões, estampas e jogos, normalmente, restrita às profissões pré-industriais. A
maior parte destas gravuras (Figura 110; Figura 111; Figura 112), como as
publicadas em 1820 com o título “O traje das classes mais baixas da metrópole”,

345
BARTHES, Roland. Linguagem e vestuário. In: Inéditos, vol 3: imagem e moda. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 284-5.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 173

busca traduzir as atividades dos pequenos comerciantes, ambulantes ou


prestadores de serviço, e não propriamente, o figurino dos cidadãos. Nas imagens
aqui reproduzidas vemos a vendedora de fósforos com seu traje esfarrapado, o
artista ambulante e o “paneleiro” que andava pela cidade para remendar potes e
panelas. Estas profissões, comuns na primeira metade do século XIX, são
representadas com clareza e simplicidade, obtendo a evidência da atividade a
partir dos objetos utilizados na prática – os fósforos e uma cesta, um pequeno
cenário que o artista leva nas costas, o martelo e duas panelas. Mas, como seria
retratar as profissões relacionadas à indústria alguns anos depois, quando os
objetos utilizados nem sempre pertencem àquele que os emprega? Neste novo
contexto, as ferramentas permanecem no espaço de trabalho e já não servem para
“identificar” os seus usuários.
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Figura 110. Vendedora de Figura 111. Show de rua. Figura 112. Paneleiro.
fósforos. BURBY, Thomas Artista ambulante. BURBY, BURBY, Thomas Lord,
Lord, gravador. Costume of the Thomas Lord, gravador. gravador. Costume of the lower
lower orders of the metropolis. Costume of the lower orders of orders of the metropolis.
London: T. L. B., 1820. ID: the metropolis. London: T. L. London: T. L. B., 1820. ID:
1168475 NYPL Gallery. B., 1820. ID: 1168477. NYPL 1168476. NYPL Gallery.
<http://digital.nypl.org> (25/11/07) Gallery. <http://digital.nypl.org> <http://digital.nypl.org> (25/11/07)
(25/11/07)

Neste sentido, devemos observar uma página de um livreto ilustrado da


segunda metade do século XIX que relaciona as profissões às letras do alfabeto
(Figura 113). Na mesma página aparecem profissões tão diversas quanto o
leiteiro, o gravador e o engenheiro projetista, em sua prancheta, “projetando a
máquina a vapor”. Se a modernização fazia nascer novas profissões mais
relacionadas à tecnologia, a vida tradicional da cidade persistia frente aos avanços
urbanos na manutenção das antigas profissões pré-industriais, como o alfaiate, o
farmacêutico, a costureira, o sapateiro, dentre outros representados no jogo de
1860 (Figura 114). Nestes exemplos, as pessoas não se encontram simplesmente
O OLHAR INOCENTE É CEGO 174

retratadas, mas se mostram no exercício da sua atividade – o engenheiro


projetando, o gravurista gravando e assim por diante. Eles não estão na rua como
o artista ambulante, mas à exceção do leiteiro, dentro de sua oficina ou loja.
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Figura 113. Alfabeto de profissões do primo Favo de Mel (Cousin


Honeycomb’s). Publicado por Dean & Son, Londres, c. 1856. The
John Johnson Collection of Printed Ephemera. Bodleian Library.
University of Oxford.
<http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition> (21/07/07)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410914/CA O OLHAR INOCENTE É CEGO 175

Figura 114. Nossa aldeia, um jogo de profissões. Jogo impresso em


litografia, produzido por Standring & Co., Londres, 1860. The John
Johnson Collection of Printed Ephemera. Bodleian Library.
University of Oxford.
<http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition> (21/07/07)

Estas imagens nos permitem constatar que, na medida em que as profissões


começam a se mostrar apenas no exercício da própria atividade, os profissionais
tornam-se indiferenciados nas ruas. É neste contexto que a dificuldade de
determinação visual do sujeito urbano começa a se configurar em ameaça. Walter
Benjamin destaca um trecho de um relatório policial parisiense do ano de 1798:
“É quase impossível manter boa conduta numa população densamente
massificada, onde cada um é, por assim dizer, desconhecido de todos os demais, e
O OLHAR INOCENTE É CEGO 176

não precisa enrubescer diante de ninguém”.346 Como destaca Benjamin, por outro
lado, a massa atua protegendo o anti-social contra seus perseguidores, escondendo
quem deseja esconder-se.347
Para Ben Singer, apesar de ter-se passado um século, a população ainda não
se encontrava plenamente adaptada à modernidade urbana e a metrópole “ainda
era percebida como opressiva, estranha e traumática”.348 A assimilação do
comportamento urbano não se realizou de forma natural e alguns gêneros
literários se propuseram a abrir este caminho. Em meados do século XIX,
surgiram as “fisiologias” que compunham um gênero literário específico, em
formato de bolso, onde os tipos da vida parisiense apareciam retratados. Estes
fascículos descreviam de forma simplista “desde o vendedor ambulante do
bulevar, até o elegante no foyer da ópera”349, tipos urbanos que eram apresentados
como seres amistosos, cônscios do seu papel na sociedade. O texto sobre o
trabalhador da indústria, por exemplo, imputa-lhe uma alegria ao trabalho,
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dificilmente observável, mas que – nas palavras de Benjamin – teria feito o


empresário que lesse essa descrição ir descansar mais tranqüilo do que
habitualmente: “A fumaça das altas chaminés da fábrica, os golpes retumbantes da
bigorna o fazem vibrar de alegria. Lembra os dias felizes de trabalho guiado pelo
gênio do inventor”.350 As fisiologias asseguravam que “qualquer um, mesmo
aquele não influenciado pelo conhecimento do assunto, seria capaz de adivinhar
profissão, caráter, origem e modo de vida dos transeuntes”.351 O interesse por
estas descrições encontrava lugar nas novas circunstâncias, características da
cidade moderna, repletas de situações ameaçadoras nunca antes experimentadas, e
nas fantasias e desejos de seus habitantes por decifrá-las. As fisiologias estão
diretamente relacionadas a um mundo de informações visuais não classificadas e à
possibilidade de compreendê-las e organizá-las. As fisiologias tranqüilizadoras
logo entraram em decadência, mas o avanço científico que acompanhava o
processo de modernização pôde acenar com algumas possibilidades de controle
sobre os componentes da massa urbana.

346
SCHMIDT, Adolphe. Tableaux de la révolution française. Leipzing, 1870. p. 337. apud BENJAMIN,
Walter. Obras escolhidas III. Charle Baudelaire... p. 38.
347
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charle Baudelaire... p. 38.
348
SINGER, B. op. cit., p 133.
349
BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire... p. 34.
350
In: Fisiologia da Indústria Francesa, de Foucauld, apud BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III.
Charle Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 37.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 177

É neste contexto que as descrições fisiognomônicas, desenvolvidas sobre a


teoria de Cesare Lombroso, foram populares até o início do século XX. A
fisiognomonia é baseada no determinismo biológico e considera possível conhecer
o caráter das pessoas pelos traços fisionômicos do seu rosto. Desta forma,
pretende destacar os tipos potencialmente criminosos, a partir da identificação e
reconhecimento de determinados traços hereditários. Em outras palavras,
considerava que o que era observado no corpo de uma pessoa exercia algum tipo
de influência sobre suas atitudes. Com a análise dos traços de diversos indivíduos
pretendeu-se construir um léxico para a determinação de inclinações de
personalidade. A partir destes estudos, Lombroso se destacou como um pioneiro
da criminologia científica, fundamentando o movimento da eugenia que iria
eclodir no início do século XX.
No mesmo contexto da fisiognomonia pode ser listada a pseudociência da
frenologia que se propunha estudar o caráter e as funções intelectuais humanas a
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partir da conformação do crânio. O anúncio do sabão Hudson (Figura 115; Figura


116) utiliza uma ilustração do mapeamento da cabeça na publicidade do produto,
em uma evidência da interpenetração entre ciência popular e consumo. Na
ilustração, para cada região do cérebro responsável por alguma capacidade
(refinamento, realização, rapidez), há uma descrição das características do sabão.
Para Allan Sekula, a frenologia pode ser vista como um precursor bastante rude
das tentativas da moderna neurologia de mapear as funções cerebrais.352 Ambas –
fisiognomonia e frenologia - corroboraram na fundamentação de um conceito de
progresso como um método que permitia o rápido acesso ao caráter de pessoas
desconhecidas no congestionado e perigoso espaço urbano do século XIX. A
penetração destes estudos levava os anunciantes de emprego a requisitarem
análises frenológicas dos seus candidatos353, antecipando, nos Estados Unidos da
década de 1840, testes que hoje são realizados na área de seleção e recrutamento.

351
Ibid., p. 36.
352
SEKULA, Allan. The Body and the Archive. In: BOLTON, Richard (ed). The Contest of Meaning Critical
Histories of Photography, MIT Press, Cambridge Mass., 1992. p. 347.
353
Ibid., p. 348.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 178

Figura 115. Frente do folheto publicitário do Figura 116. Verso do folheto publicitário do
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extrato de sabão Hudson, 1890. extrato de sabão Hudson, 1890.


<http://www.collectbritain.co.uk> (14/12/07) <http://www.collectbritain.co.uk> (14/12/07)

Frenologia e fisiognomonia empregavam a fotografia na construção de um


código visual que buscava decifrar o corpo do criminoso – um aparato de caça à
“verdade”, que compunha um sistema burocrático com a organização em arquivo.
A imagem deveria ser reduzida a sua instância representativa, transformando o
circunstancial e o idiossincrático no típico e no emblemático, na sua “essência
geométrica”.354 A imagem do corpo era organizada para funcionar como uma
linguagem. O objetivo científico era identificar o “tipo criminoso” e destacá-lo da
multidão que o encobria. Com estes fundamentos, os “técnicos do crime” teriam
ferramentas para localizar o indivíduo criminoso. É neste ponto que se coloca uma
divisão de trabalho e uma distinção terminológica entre “criminologia” e
“criminalística”. A criminologia busca o corpo criminoso enquanto a
criminalística caça “este” ou “aquele” corpo criminoso. No aspecto da visualidade
há uma importante diferenciação neste quadro. Na busca pelo corpo do criminoso
que atende a padrões de comportamento estabelecidos de acordo com suas
características físicas, há uma informação visual que foi anteriormente
convencionada e disponibilizada. Neste contexto, frenologia e fisiognomonia

354
SEKULA, A. op. cit., p. 352.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 179

buscavam abarcar toda a diversidade humana, servindo como instrumento de


arquivo para o controle social. Na localização de um criminoso específico não há
uma convenção particular a ser seguida, mas as próprias marcas corporais do
suspeito servirão para comprovação de sua identidade. O corpo do criminoso não
tem, por si próprio, nada a expressar. Marcas, cicatrizes e deformações da pele
não demonstram apenas inclinação para o crime, mas a história de um corpo, suas
vivências, sofrimentos e escolhas. Um indivíduo existe como indivíduo a partir do
momento em que é identificado.355 Esta identidade é diretamente visual e não
carrega nenhum significado intrínseco. Seu significado só pode ser construído
dentro de um contexto mais amplo que localiza as marcas deste sujeito específico
a referências anteriores.
É nesta conjuntura que se coloca a diferença entre o sistema desenvolvido
por Alphonse Bertillon dos métodos utilizados na frenologia e na fisiognomonia.
Bertillon, que era estatístico da polícia francesa, desenvolveu em 1879, um
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método de identificação e recuperação de imagens, estruturado sobre a


representação visual predominantemente fotográfica e o sistema de arquivo. Sua
técnica combinava a obtenção de medidas detalhadas (Figura 117 e Figura 118) e
a classificação de detalhes únicos medidos ou fotografados (Figura 119 e Figura
120) com um par de fotografias - frontal e perfil - do suspeito, retiradas de acordo
com determinadas especificações de lentes e distância. As informações eram
organizadas em cartões padronizados e arquivadas. Na Figura 121 vê-se o cartão
antropométrico, base do sistema, com a identificação do próprio Bertillon. O
método recebeu o nome de sinalética e era organizado a partir da redução de
partes do corpo humano a formas mínimas articuladas, de modo a compor um
signo humano. Seu funcionamento requeria que o corpo fosse dividido em partes
específicas que pudessem ser comparadas como, por exemplo, orelhas (Figura
119) ou olhos. Com o sistema de Bertillon, o corpo passa a ser analisado segundo
outros aspectos. Ele é dividido em partes, atomizado e transformado em um
artefato demonstrável o que, de certa forma, nos remete ao “sistema americano”
desenvolvido neste mesmo período.356 Com a sinalética o corpo é preparado para
ser observado e para entregar-se ao olhar regulador da lei e a uma vida moderna,

355
SEKULA, Allan. Op. cit., p. 362.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 180

fortemente influenciada pela visualidade, que precisava de novas regras e


convenções.
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Figura 118. Instruções do sistema de sinalética,


Figura 117. Medida do cúbito. Foto do desenvolvido por Alphonse Bertillon, incluindo
álbum de Alphonse Bertillon, de sua teoria e prática da identificação antropométrica.
participação na World's Columbian National Library of Medicine. Disponível
Exposition em 1883, Chicago. National em:<http://www.nlm.nih.gov/visibleproofs/galleries/technologi
Library of Medicine (NLM). Disponível em: es/bertillon.html> (23/09/07)
<http://www.nlm.nih.gov/visibleproofs/galleries/technol
ogies/bertillon.html> (23/09/07)

356
O “sistema americano” de fabricação, apresentado na Exposição Universal de Londres em 1851, foi
desenvolvido na indústria de armamentos americana e consistia na produção em larga escala de produtos
padronizados, com partes intercambiáveis.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 181

Figura 119. Quadro fotográfico com


tipos de orelha. Signaletic
Instructions Including the Theory
and Practice of Anthropometric
Identification de Bertillon. Retirado
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de GUNNINGS, op. cit., p. 62. Figura 120. Quadro de característica físicas de Bertillon.
Musée des Collections Historiques de la Préfecture de
Police. National Library of Medicine. . Disponível em:
<http://www.nlm.nih.gov/visibleproofs/galleries/technologies/bertillon.h
tml> (23/09/07)

Na sinalética, a fotografia é empregada de forma a traçar uma referência


direta com o corpo do criminoso. Isso não chegava a constituir uma novidade,
mas, até então, havia sempre implicado em violência. A supressão da
identificação do criminoso através da marca aplicada com ferro em brasa pelas
autoridades legais havia sido abolida na França em 1832 e na Inglaterra em 1824,
embora alguns suplícios já viessem sendo evitados publicamente a partir da
década de 1820.357 De certa forma, após este período, o conceito de uma relação
indicial entre culpa e acusado passou a ser repetido na fotografia. Foucault
descreve a transformação da pena em um processo mais velado, a partir do fim da
punição como espetáculo público, em um período anterior, entre o fim do século
XVIII e o início do XIX.358
Embora a utilização da fotografia tenha estado intimamente ligada à
criminalística desde muito cedo359, esta associação não se estabeleceu com
facilidade e os estudos da fotografia documental não costumam levar em conta

357
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2006. pp. 14.
358
Ibid., pp. 16-17.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 182

seu emprego pela polícia. Esta dificuldade teve origem nas próprias características
dos primeiros momentos da fotografia. As baixas velocidades de exposição
requeriam que o fotografado permanecesse imóvel pelo tempo necessário para a
gravação de sua imagem. Alguns acusados procuravam aproveitar esta
especificidade para distorcer o próprio rosto de forma a garantir seu anonimato
(Figura 122). Embora este problema, algumas vezes considerado com um ar
caricatural, não tenha se prolongado por muito tempo, chama a atenção para a
impossibilidade do corpo rejeitar sua entrega à captura da lente. Outro fator de
dificuldade para o emprego da fotografia como agente regulador pode ser
apontado no seu próprio sucesso e no desejo moderno de fazê-la arte. A fotografia
passou a atuar diretamente no processo administrativo de controle. Para a
criminalística foi uma invenção tão importante quanto à imprensa para a
literatura360. Vestígios duradouros e inequívocos dos seres humanos puderam a ser
registrados em uma tentativa de demolir a incognoscibilidade da multidão nas
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cidades, onde “ninguém é para o outro nem totalmente nítido nem totalmente
opaco”.361

Figura 122. Ampliação de um


fotograma do filme de 1904 da
Biograph, A Subject for the Rogue’s
Gallery, filmado pelo cinegrafista A.
E. Weed. Retirado de GUNNINGS,
op. cit., p.55.

Figura 121. Cartão antropométrico de Alphonse


Bertillon, 1892. University College London.
http://www.eugenicsarchive.org/html/eugenics/static/images/2005.html
(23/09/07)

359
A fotografia foi inventada em 1839.
360
BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire. Um lírico no
auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 45.
361
BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império... p. 46.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 183

As primeiras evidências do emprego da fotografia na investigação policial


aparecem em 1843.362 Em meados do século XIX, as delegacias de polícia já
mantinham rogue’s gallerie, coleções desorganizadas de fotografias de suspeitos e
confessos, que eram muitas vezes exibidas ao público com grande sucesso. Mas, o
grande volume de fotografias mostrava-se inútil na medida em que o seu
manuseio não seguia nenhum método ordenado. É neste quadro que o arquivo
complementa o método, impondo-se como fator de controle da visualidade.
O sistema de imagem e arquivo criado por Bertillon foi empregado ao longo
do século XIX, inclusive na logística das diversas Exposições Universais como na
World’s Columbian Exposition, realizada na Chicago de 1893. Neste evento da
modernidade, calçadas rolantes conduziam os visitantes a partir da entrada e um
pequeno trem elétrico fazia a circulação do público por toda a feira. Os espaços
da feira eram completamente higienizados ao final de cada dia e amplamente
policiados numa tentativa de deixar evidente apenas os melhores legados da vida
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moderna. A preocupação com a proteção dos visitantes aparece em um artigo


publicado na North American Review por R. W. M’Claughry, superintendente
geral da polícia de Chicago e John Bonfield, chefe do serviço secreto da World’s
Columbian Exposition. No texto, o superintendente comenta que as experiências
passadas demonstram que eventos como as exposições universais atraem “classes
perigosas da sociedade”.363 Apesar disso, consegue ser tranqüilizador quando
afirma que as “classes criminosas” estão sendo observadas atentamente364 através
da utilização de determinados métodos. Parece claro que as “classes perigosas”
eram constituídas por proletários desempregados, potencialmente considerados
vagabundos e criadores de problemas. Uma das ferramentas utilizadas pela polícia
e pelo serviço secreto, com o objetivo de prevenir a ação dos fora-da-lei, foi o
emprego do “sistema de identificação antropométrica e classificação de
criminosos” desenvolvido por “M. Alphonse Bertillon, de Paris”.365 Ainda
segundo o texto, em Chicago, este sistema começou a ser aplicado
aproximadamente três anos antes da realização da exposição. Diversas fotografias

362
GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. In
CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac
& Naify, 2001. p 51-52.
363
M’CLAUGHRY, R. W. Police Protection at the World's Fair. The North American review. Vol. 156, Issue
439. p. 714. http://cdl.library.cornell.edu/cgi-bin/moa/moa-cgi?notisid=ABQ7578-0156-88
364
Id., p. 711.
365
Id., p. 712.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 184

sugerem que o próprio Bertillon possa ter estado presente à exposição (Figura
123, Figura 124). De qualquer forma, não há dúvida que seu sistema tenha sido
apresentado como uma ênfase do progresso obtido graças à ciência e às novas
técnicas, no caso exemplificado pela fotografia e sua organização sistemática.

Figura 124. Foto do álbum de Alphonse Bertillon,


de sua participação na World's Columbian
Figura 123. Sistema de arquivo de Bertillon. Exposition em 1883, Chicago. National Library of
Foto do álbum de Alphonse Bertillon, de sua Medicine (NLM). . Disponível em:
<http://www.nlm.nih.gov/visibleproofs/galleries/technologies/b
participação na World's Columbian
ertillon.html> (23/09/07)
Exposition em 1883, Chicago. National
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Library of Medicine (NLM). . Disponível em:


<http://www.nlm.nih.gov/visibleproofs/galleries/technol
ogies/bertillon.html> (23/09/07)

Apesar do grande sucesso obtido, o método desenvolvido por Bertillon foi


perdendo espaço para um outro sistema baseado na impressão digital. Durante
alguns anos um modelo híbrido imperou, de modo que muitos documentos de
identificação ainda mantinham, na primeira metade do século XX, o par de
imagens fotográficas idealizado para a ficha de Bertillon, ao lado da impressão
digital.
Na sinalética, a fotografia, inventada há aproximadamente quarenta anos,
coloca-se como uma aplicação prática das possibilidades do emprego da
reprodução mecânica com pouca intervenção humana e muita precisão. Um
conceito adequado à utilização desejada por Baudelaire que deplora a fotografia
como arte, mas clama pelo cumprimento do seu verdadeiro dever: atender às artes
e às ciências, servindo, por exemplo, “de secretária e bloco de notas de quem quer
que necessite de uma absoluta exatidão material em sua profissão”.366 A fotografia
como ferramenta ideal para a identificação de foras-da-lei se estabelece em razão
de três aspectos que, segundo Gunning, encontram-se entrelaçados: sua condição

366
BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1995. p. 803.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 185

de índice que aponta para o resultado de uma exposição a uma entidade


preexistente, seu aspecto icônico que remete à semelhança direta com o objeto
permitindo o reconhecimento imediato e, finalmente, sua natureza destacável que
lhe permite referenciar-se a um objeto ausente, distante em tempo e espaço.367
Neste contexto, a fotografia compartilha uma espécie de poder. Algo que
Benjamin, sem associar diretamente à fotografia, sugere ao comparar rastro e
aura: “O rastro é a aparição de uma proximidade, por mais longínquo esteja aquilo
que o deixou. A aura é a aparição de algo longínquo, por mais próximo esteja
aquilo que a evoca. No rastro, apoderamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera de
nós”.368 A evidência revelada na fotografia assume, como um testemunho
tecnológico, uma correspondência com a verdade, na medida em que “o aparelho
não pode mentir”369 e traz consigo o rastro do corpo que é examinado. É neste
contexto que, na sinalética, a fotografia é empregada visando à instrumentação do
realismo e a racionalização da visão sobre fundamentos científicos. A fotografia
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policial permitiu o reconhecimento do referente do mesmo modo que, como


vimos anteriormente, a perspectiva e a gravura impressa haviam atuado,
ampliando as possibilidades de uma cultura visual através da padronização e da
estruturação das convenções visuais.
A análise das configurações visuais do século XIX a partir do emprego de
novas tecnologias e de uma nova configuração urbana aponta para uma aparente
contradição. De um lado, possibilitando um novo modo de olhar, a recém criada
configuração urbana que abre novos espaços, modifica o ambiente e as relações
sociais além das novas tecnologias que interferem na compreensão do tempo e do
espaço. O olhar se torna panorâmico e lhe é arbitrado o poder de absorver mil
coisas. No entanto, esta abertura que o olhar obtém a partir da modernidade,
também clama por limites que o organize. Surge, em paralelo uma tendência à
padronização e à criação de convenções que tente estruturar, organizar e controlar
o que já não tem controle. As influências do olhar são “naturalizadas”, a
padronização precisa ser realimentada e o novo acena como alimento permanente
para este olhar.

367
GUNNING, T. op. cit., p 45-46.
368
BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Passagens... [M 16a 4], p. 490.
369
GUNNING, T. op. cit., p 66.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 186

3.3. Novas percepções no tempo e no espaço

A partir da segunda metade do século XIX pode-se observar uma crescente


alteração dos conceitos de tempo e espaço em paralelo ao desenvolvimento de
novas tecnologias de transporte e comunicação. A concepção temporal iluminista,
recentemente formulada, começa a se desfazer370, tornando relativas as percepções
de tempo e de espaço. Uma nova compreensão das distâncias passa a se constituir,
inclusive em relação aos eventos ocorridos em outros lugares e países. O tempo é
capturado, reorganizado e disponibilizado, produzindo transformações sobre os
modos de olhar.
A compressão tempo-espaço, observada a partir do século XIX, passou a
exercer influência sobre diversos campos da atuação humana como, por exemplo,
o trabalho industrial. Em 1913, mas ainda no “espírito do século XIX”, Henry
Ford instituiu uma outra forma de organização da produção – relacionando a
aceleração do tempo à fragmentação das tarefas - na sua linha de montagem.
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Neste contexto, as ferrovias colocam-se como signo paradigmático da


modernização do período. Neste segmento do trabalho, iremos analisar como esta
nova tecnologia, apesar de não se tratar de um processo diretamente relacionado à
visualidade, atuou na construção de um novo olhar – que se encontra na raiz do
nosso contemporâneo modo de ver. Nossa intenção com esta passagem é acentuar
o modo como as tecnologias modificadoras da relação tempo-espaço atuam sobre
a construção do olhar moderno, ampliando e multiplicando suas possibilidades, ao
mesmo tempo em que fixam padrões e convenções que a delimitam e organizam.

3.3.1. As ferrovias

Nenhuma tecnologia exerceu maior influência sobre as percepções de tempo


e espaço do que a ferrovia, ao mesmo tempo produzindo mudanças na forma de
olhar. A expansão das ferrovias pode ser considerada emblemática das mudanças
perceptivas que definem a experiência cultural da modernidade e o trem, seu signo
por excelência.

370
HARVEY, D. op. cit., p. 238.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 187

Apesar do trilho de madeira ser usado há séculos em minas de carvão, foi a


tecnologia a vapor que possibilitou aos trens ultrapassarem a velocidade dos
cavalos. Como afirmou Nadar, em transcrição de Walter Benjamin: “como se
fosse de um mágico ou de um diretor de teatro, o primeiro apito da primeira
locomotiva deu o sinal de despertar, o sinal de decolagem para todas as coisas”.371
As conseqüências imediatas da nova tecnologia foram rapidamente observadas na
facilitação do transporte de bens e pessoas. Se, de um lado, as ferrovias
favoreceram o surgimento de grandes indústrias e o aumento da produção de
matérias-primas e mercadorias acabadas, de outro, também ampliou a circulação
de pessoas e idéias, participando da criação de um novo estilo de vida baseado na
compressão tempo-espaço que alicerçou a modernidade. Em 1780 uma diligência
gastava de quatro a cinco dias para cobrir a distância entre Londres e Manchester
enquanto, um século depois, um trem cobria o mesmo trecho em quatro ou cinco
horas372.
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Textos da primeira metade do século XIX expressavam as alterações


temporais em termos de encolhimento do espaço373, relativizando os conceitos de
cidade e país. Em 1850, Lardner escrevia que “as distâncias praticamente
diminuem na exata proporção da velocidade de locomoção”.374 Em um artigo no
Quartely Review de 1839, um autor contemporâneo considera que as nações que
pareciam situar-se apartadas no espaço de maneira inalterável, iam aos poucos
sendo aproximadas pela redução gradual do espaço e da distância que as havia
separado. Na medida em que as distâncias iam sendo aniquiladas, a superfície do
país encolhia, tornando-se não maior do que uma imensa cidade.375 De fato, como
considera Wolfgang Schivelbusch, a sensação de diminuição das distâncias
produzida pelos meios de transporte parece ter criado uma nova geografia que,
para além de uma simples contração do espaço, sugere um processo dual onde o
espaço é ao mesmo tempo reduzido e expandido. Esta dialética é observada, de
um lado, pela relação entre a diminuição do espaço através do encolhimento do
tempo de deslocamento e, de outro, pela expansão do espaço através da
incorporação de novas áreas territoriais à rede de transportes. Deste modo, a nação

371
Nadar, Quand J’étais Photographe, Paris, p. 281, apud BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 129. [C 3a,4].
372
LOWE, Donald. History of bourgeois perception. Chicago: The University of Chicago Press, 1982. p. 38.
373
SCHIVELBUSCH, Wolfgang. The Railway Journey: the Industrialization of Time and Space in the
Nineteenth Century. Berkeley: University of California Press, 1986. p. 34.
374
LARDNER, D. Railway Economy. London, 1850 apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 33.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 188

que se contrai em uma imensa cidade, de acordo com a descrição do Quartely


Review, também pode ser compreendida como uma cidade em expansão.
A incorporação dos subúrbios e do campo também aparece como
conseqüência da expansão das ferrovias. Em 1851, Lardner observa o fenômeno
da mudança dos citadinos para áreas distantes do centro sem que isso altere a
continuidade das suas atividades produtivas.376
A possibilidade de alcançar velocidades maiores e a conseqüente redução
das distancias a frações do tempo anteriormente necessário para cobrir o mesmo
trecho produziu novas avaliações para conceitos como “perto” e “longe”,
incluindo a discussão sobre a compressão tempo-espaço. Para C. H. Greenhow,
autor inglês do século XIX, as viagens de trem produziram praticamente a
“aniquilação do espaço e do tempo” através da facilidade com que passaram a
permitir a circulação.377 “Podemos agora passar de um extremo a outro da nossa
ilha, em menos tempo do que os nossos avôs levavam para preparar a
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caminhada”.378 Embora o ponto de vista de Greenhow possa parecer restrito, na


medida em que se encontra apoiado na questão do deslocamento, a sua
conceituação antecipa debates posteriores que chegam até os dias atuais. Neste
contexto, a discussão sobre a compressão tempo-espaço ultrapassa os efeitos das
ferrovias para englobar as considerações sobre as novas tecnologias de
comunicação nas transformações de um mundo pós-moderno. Se o telégrafo e o
telefone já foram responsabilizados pelas alterações da dinâmica tempo-espaço,
hoje a internet é o grande centro de debates que vão sendo ampliados com a
inclusão de conceitos como fragmentação, redes e desmaterialização.
Stuart Hall, ao pensar o impacto da “última fase da globalização” sobre as
identidades nacionais, aponta a “compressão espaço-tempo” como uma de suas
principais características. Há o reconhecimento de “que o mundo é menor e as
distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impacto
imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância”.379 Esse
processo de “aproximação” e aceleração parece – à vista do nosso olhar
contemporâneo – ter atingido o seu extremo na época atual. Os conceitos

375
Quarterly Review, vol. 63, 1839. p. 22., apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 33.
376
LARDNER, D. Railway Economy. London, 1850 apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 36.
377
GREENHOW, C. H. An exposition of the danger and deficiences of the present mode of railway
construction with suggestion of its improvement. London: George Woodfall and son, 1846. p. 2.
378
Id.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 189

apontados por Hall mostram-se pertinentes à experiência do homem urbano do


século XIX, o que nos permite imaginar este processo de aceleração como uma
espiral, sobre a qual o homem vem sendo movido aos solavancos. Neste contexto,
cabe antecipar uma curta reflexão sobre os efeitos da “aniquilação do espaço e do
tempo” na construção da cultura visual moderna. Na medida em que
compreendemos o olhar como uma atitude perceptiva atuante em conjuntura
específica de tempo e espaço, que efeitos podem ser observados com a
modificação deste contexto?
Criamos uma metáfora visual para explicar como compreendemos os efeitos
da modernização do tempo e do espaço sobre a visualidade. Imaginamos um
ambiente, uma sala, por exemplo, com paredes móveis. Neste ambiente, foram
dispostas algumas figuras. Para travar contato com estas imagens, o observador
disporia de um tempo determinado, ao fim do qual uma campainha soaria. Em
certo ponto do nosso experimento, passamos a deslocar as paredes, aproximando-
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as, de forma a reduzir o espaço interno da exposição. Ao mesmo tempo, o


intervalo disponível para a observação foi sendo diminuído de alguns segundos,
enquanto o número de imagens permaneceu constante. Em um primeiro momento,
a nossa tendência seria acreditar, na medida em que o tempo e o espaço fossem
sendo restringidos, na ocorrência de uma diminuição da capacidade perceptiva.
No entanto, devemos considerar que este processo não acontece de forma
repentina e sim paulatina. Analogamente, as observações dos autores
contemporâneos às mudanças provocadas pelas ferrovias evidenciam um processo
anterior à adaptação a essas novas condições. Na medida em que estas mudanças
vão sendo incorporadas como uma segunda natureza elas vão ser absorvidas
dentro da nova capacidade perceptiva. No contexto criado pela metáfora acima,
cremos que mais importante do que assinalar uma perda na percepção (em relação
à compressão do tempo e do espaço), é considerar a construção de um novo
esquema perceptivo.

379
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1992. p. 69.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 190

Novas percepções no ambiente dos deslocamentos

Diversos meios de transporte e comunicação tiveram influência nas


modificações ocorridas no tempo e no espaço ao longo do século XIX e na
percepção do ambiente como, por exemplo, as viagens em balões, que permitiu à
fotografia aérea mudar as percepções da superfície da terra.380 A bicicleta,
redesenhada em 1886, quando passou a contar com rodas de mesmo tamanho, e
em 1890 quando ganhou pneus (pneumatic tires) favoreceu uma nova percepção a
partir da velocidade obtida, quatro vezes maior do que ao se caminhar. Na gravura
do periódico The Graphic vemos um policial perseguindo um ciclista em sua
Penny Farthing (Figura 125), por andar pelas ruas sem o emprego de um cinto [?]
ou apito. Os passantes parecem mobilizados pelo deslocamento de um veículo que
não parece ser de simples utilização, como podemos observar no anúncio de
pneumáticos de borracha para bicicleta (Figura 126). Uma curiosidade
interessante sobre este anúncio é que, nele, o texto encontra-se em um balão de
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estórias em quadrinhos. Ao companheiro que caía da bicicleta, o outro homem


disse: “Você deveria ter utilizado o processo Bown's ‘Perfect”.

Figura 125. Policial perseguindo um ciclista, "Penny


Farthing". The Graphic, 1880. The Illustrated London News
Picture Library. <http://www.ilnpictures.co.uk> (05/06/07)

380
HARVEY, D. op. cit., p. 240.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 191

Figura 126. Anúncio de Bown's "Perfect", processo perfeito


para fixação de pneumáticos de bicicletas. Sporting and
Dramatic News, 1887. The Illustrated London News Picture
Library. <http://www.ilnpictures.co.uk> (05/06/07)

Em 1892, Sylvester Baxter observava que a bicicleta “acelerou as


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faculdades perceptivas dos jovens, tornando-as mais alertas”.381 Um tipo de


observação que, nos dias atuais, é dirigida aos jovens que utilizam jogos
eletrônicos.
As questões relativas à percepção na metrópole não se limitavam ao fato de
acostumar-se a dividir as ruas com veículos “velozes” ou perigosos. Na
publicação científica Revue Scientifique, publicada em Paris no ano de 1896, um
certo Du Pasquier apresenta um artigo investigativo, na área de psicologia, sobre
as razões da obtenção de prazer ao utilizar a bicicleta382. Para o autor a razão deste
prazer encontra-se no movimento, na sensação de liberdade do seu gesto à custa
de um baixo custo de energia necessária para a obtenção da velocidade. Citando
trabalhos anteriores, Du Pasquier rejeita a idéia de que o prazer de andar de
bicicleta possa estar relacionado à busca e alcance do equilíbrio necessário a essa
função.
As observações dos contemporâneos em relação ao uso da bicicleta mostram
que a preocupação com o novo não ser reduzia apenas às ferrovias, mas trata-se de
um embate mais amplo entre o novo e o moderno. Os críticos dos novos meios de
transporte gostavam de fazer crer que as tecnologias antigas e pré-industriais

381
BAXTER, Sylvester, Economic and Social Influences of the Bicycle, The Arena, Outubro de 1982, apud
KERN, Stephen. The culture of time and space : 1880-1918. Cambridge: Harvard Univ., 1983. p. 111.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 192

tinham mais “alma” do que as mais recentes que pareciam, muitas vezes,
desenvolver vida própria tal o modo com que produziam influência sobre a
percepção humana.
Em relação ao ambiente físico, as ferrovias transcendem a possibilidade de
aproximação a novos lugares. Se, de um lado, elas incorporam novos espaços,
antes inacessíveis pela distância e o tempo necessário para alcançá-los, de outro,
elas suprimem os espaços entre os pontos de partida e o de chegada. A viagem
torna-se uma travessia por um espaço intocado. A eliminação do espaço entre os
dois pontos é observada significativamente por John Ruskin. Em um texto de
1849, Ruskin comenta que a ferrovia transforma o viajante em um “pacote
vivo”383, na medida em que é levado de um lugar ao outro sem que desempenhe
alguma participação neste processo. No pensamento de Ruskin, a viagem de trem
deixa de acrescentar experiência ao viajante. Sua crítica encontra alguma
sustentação na medida em que a ferrovia pode ser colocada em relação às viagens
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do mesmo modo que a indústria está para os objetos manufaturados.


John Ruskin considerava que, indiferente ao fato da viagem de trem ser feita
ou não de olhos abertos, tudo o que se podia saber sobre o lugar por onde se passa
é, “na melhor hipótese, sua estrutura geológica e uma visão geral sobre os modos
de vestir”.384 Ao contrário de que pensava Ruskin, muitos contemporâneos
consideravam que as viagens de trem produziam novas sensações mesmo
avaliando uma eventual perda de controle sobre os próprios sentidos. Greenhow,
por exemplo, escreveu em 1846 que “quando um corpo se move em alta
velocidade ele se torna um projétil, sujeito às leis que comandam os projéteis”.385
Esta metáfora explicita o poder e a força da tecnologia ferroviária, mas, também, a
ausência de controle e da participação do passageiro, além de modificações no seu
relacionamento com a paisagem. De acordo com Schivelbusch, o passageiro de
trem perdeu a percepção sinestésica, que incluía aromas e sons e passa a ter
contato apenas com as qualidades que para Newton eram as que poderiam ser

382
DU PASQUIER, Ch. Le Plaisir d’aller à bicyclette, Revue Scientifique, ser. 4, vol. 6., Paris, 1896, p. 144-
145. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k215125w, acesso em 5/6/2007 às 16:10 hs.
383
RUSKIN, John. The seven lamps of architecture. London: Adamant Media Corporation, 2005. p. 210.
384
RUSKIN, John. The works of John Ruskin. Vol 36. Longmans, Green, and co., 1909. p. 62.
385
GREENHOW, C. H. An exposition of the danger and deficiences of the present mode of railway
construction with suggestion of its improvement. London: George Woodfall and son, 1846. p. 6.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 193

percebidas objetivamente no mundo físico: tamanho, forma, quantidade e


movimento.386
No pensamento pré-industrial de John Ruskin, isto é, dentro de uma cultura
pré-moderna, encontramos o que Schivelbusch387 considera próximo à uma
correlação matemática negativa entre o número de objetos percebidos em
determinado período de tempo e a qualidade desta percepção. De certa forma
seguindo o tema do olhar inocente, Ruskin escreve sobre a superioridade do olhar
da criança diante do frescor das coisas frente aos seus olhos recém abertos.388
Entre os conselhos práticos dados por Ruskin encontra-se a sugestão de contentar-
se com o menor número de novidades de cada vez e preservar, tanto quanto
possível, as fontes de novidade.389 Em relação ao “menor número possível de
novidades”, Ruskin observa que em um passeio no campo, atentar para uma
cabana que nunca tínhamos visto antes, seria o suficiente para recuperar o frescor
do novo. Observar duas cabanas já seria excessivo. Em linguagem atual, dir-se-ia
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tratar-se de “muita informação”. Ruskin conclui que uma caminhada tranqüila de


não mais do que 10 ou 12 milhas390 por dia seria o bastante para uma viagem
recreativa. “Toda viagem torna-se enfadonha na exata proporção de sua
velocidade”.391 Deste modo, para Ruskin os deslocamentos de trem não poderiam
ser chamados de viagens.
As críticas de Ruskin pertencem a um momento de ambivalência, onde as
possibilidades de uma nova tecnologia mostram-se, ao mesmo tempo, apreciadas
e temidas. Deste modo, trata-se de um excesso de simplificação taxar as opiniões
de Ruskin como meramente conservadoras ou contrárias ao desenvolvimento. Em
um contexto semelhante, Walter Benjamin observa que “o mesmo Arago, autor do
famoso parecer favorável à fotografia, tenha submetido – no mesmo ano (?), em
1838 – um parecer desfavorável à construção das ferrovias planejadas pelo
governo”.392 O parecer de Arago, ao qual somaram-se outras 160 vozes, contra 90
favoráveis, argumentava, dentre outras coisas que a diferença de temperatura na
entrada e na saída dos túneis provocaria calores e friagens mortais.

386
SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 55.
387
Ibid., p. 57.
388
RUSKIN, John. Modern Painters. Vol. 3. Of many things. Adamanta Media Corp. 2000. p. 310.
389
Ibid., p. 311.
390
Entre 16 e 19 km.
391
RUSKIN, J. Modern Painters… p. 311.
392
BENJAMIN, Walter. A fotografia. Passagens... p. 715. [Y 1a,5].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 194

As questões perceptivas discutidas a partir da experiência das primeiras


viagens de trem originam-se fundamentalmente no tema da velocidade. Em 1841,
George Stephenson, engenheiro a quem é atribuída à responsabilidade da primeira
viagem de trem entre Manchester e Liverpool393, foi questionado pelo parlamento
inglês sobre a capacidade do condutor de identificar obstáculos. Segundo
Stephenson, se a atenção do condutor se dirigir a um objeto que se encontra à sua
frente, ele poderá ter uma visão correta do obstáculo. Mas, se apenas virar-se para
o objeto enquanto passa por ele, sua visão será imperfeita.394 A visão do condutor
não era apenas motivo de preocupação, mas seu ponto de vista também servia à
inspiração e à fantasia. As imagens dos primeiros filmes que apresentavam
simulacros de “passeios fantasmas” - tomadas realizadas na parte dianteira de
trens ou da proa de barcos,395 almejando reproduzir a sensação de movimento -
colocam-se como evidência da curiosidade por este ponto de vista.
As possibilidades de visualização a partir da janela do trem também foram
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muito discutidas nos primórdios das ferrovias. Jacob Burckhardt escreveu em


1840 que já não era possível distinguir os objetos próximos – árvores, cabanas e
outros: tão logo nos viramos para observá-los, eles se foram.396 Anos depois, em
1885, o autor de uma filosofia da mente humana escrevia que numa cabine de
trem em velocidade, podemos não identificar o rosto dos passantes, apenas
perceber que se trata de seres humanos.397 O jornal médico The Lancet,
considerava, em 1862, que o movimento constante na alternância de observação
entre formas próximas e distantes resultava em fadiga para os olhos e o cérebro.398
Estas análises contemporâneas chamam a atenção para uma nova forma de
visualidade sendo produzida no ambiente veloz das ferrovias. Cabia ao viajante
adaptar-se a esta forma de percepção visual: compreender que os objetos mais
próximos do veículo em movimento não mais se deixavam observar
detalhadamente. O segundo plano se oferecia nítido em parte graças à maior

393
Railway Readings. Oxford: J. Vincent, 1848. p. 3.
394
SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 55.
395
GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. In
CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac
& Naify, 2001. p 41.
396
SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 56.
397
BAILEY, Samuel. Letters on the philosophy of the human mind. London: Longman, Brown, Green and
Longmas, 1855.
398
The Influence of Railway Travelling on Health reprinted from The Lancet. Hardwick, London. In:
BIDWELL, W. H. (editor and proprietor). Eclectic Magazine for foreign literature, science, and art. vol. LX.
New York: September to December, 1863. p. 424-426.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 195

estabilidade fornecida pelos trilhos. Por outro lado, a maior velocidade permitia o
desfrute de um grande número de paisagens, mesmo em uma viagem curta. O
próprio cansaço da alternância do movimento dos olhos entre os dois planos se
mostrou, com o tempo, algo que poderia ser aprendido e gerenciado. O fato
inequívoco é que uma nova percepção visual se formava. As viagens de trem têm
alguma responsabilidade nesta mudança na medida em que os “passos” de
observação anteriores não mais se prestavam à apreensão panorâmica do que
podia ser visto pela janela do trem.

O espaço para passageiros nos trens baseou-se no modelo das carruagens,


com a diferença que, nestas últimas, os passageiros acomodavam-se nos acentos
distribuídos em forma de “U”. Esta disposição facilitava o contato entre os
viajantes, sem abrir mão da relação com o ambiente externo. Alguns romances do
século XVIII e do início do XIX retratam o companheirismo que surgia nestas
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viagens que se estendiam por muitos dias. Neste contexto, a expectativa da longa
convivência com outras pessoas, estimulava a criação de laços entre elas. Com o
trem, esta relação foi completamente alterada. Em primeiro lugar o trem era mais
democrático. Em lugar de um único compartimento, haviam diversos, além de
uma grande área para a terceira classe. Os passageiros dos trens trocaram a
conversa pelo embaraço. Além disso, as inúmeras paradas traziam uma sucessão
de novas faces, o que também não estimulava contatos interpessoais. A conversa,
praticamente, fluía apenas quando se encontravam conhecidos. A leitura nestes
veículos parece ter surgido mais como uma forma de superar o desconforto da
situação de estar frente a frente com desconhecidos do que uma forma de passar o
tempo. George Simmel, no começo do século XX, considerou que as
conseqüências da introdução de novas tecnologias de comunicação e transporte
foram sentidas diretamente no surgimento de novas formas de relacionamento.
Segundo Simmel, “as relações recíprocas dos seres humanos nas cidades se
distinguem por uma notória preponderância da atividade visual sobre a auditiva.
Suas causas principais são os meios públicos de transporte. Antes do
desenvolvimento dos ônibus, dos trens, dos bondes do século XIX, as pessoas não
O OLHAR INOCENTE É CEGO 196

conheciam a situação de terem de se olhar reciprocamente por minutos, ou mesmo


por horas a fio, sem dirigir a palavra umas às outras”.399
O triunfo da regularidade mecânica sobre a irregularidade do terreno trouxe
diversas conseqüências, dentre estas a alienação da natureza, na medida em que o
viajante perdeu o contato direto com o ambiente externo. Esta relação é ainda
mais exacerbada na passagem por túneis e viadutos capazes de proporcionar, de
um lado, a sensação de imersão dentro de uma montanha e, de outro, pontos de
vista inéditos e assustadores. Na Figura 127, temos um exemplo de um destes
pontos de vista. Na gravura do Illustrated London News, vemos a rainha Vitória
debruçada para fora da janela do trem que atravessa a ponte Tay, observando o rio
embaixo. A sua acompanhante parece mais temerosa e procura um modo de
observar a paisagem sem expor-se para fora do trem. No mesmo ano da
publicação desta gravura, a ponte Tay ruiu durante a travessia de um trem,
resultando em 75 mortes.
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As Figura 128 e Figura 129 ilustram um tipo de viaduto construído em


meados do século XIX. De uma maneira geral sua estrutura era feita com madeira,
o que fazia com que a construção fosse barata, porém frágil e de vida curta. O
viaduto de Slade (Figura 129) foi construído em 1849 e reformado em 1893,
quando ganhou estrutura de pedra e tijolo. Os detalhes decorativos presentes nos
arcos apontam para uma preocupação com o ornamento em um contexto onde
funcionalidade e precisão são essenciais. Além disso, as enormes construções que
permitem a passagem do trem parecem rasgar as paisagens, abrindo espaço para a
passagem do progresso. No entanto, o mais significativo é imaginar a sensação de
encontrar-se em movimento, a 31 metros de altura, sobre uma paisagem ampla e
aberta, em outras palavras, sem o limite visual proporcionado pelas margens da
estrada: suas árvores e casas. Neste contexto, estas ilustrações valorizam a
grandeza e a precisão do espaço percorrido pela máquina.

399
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire... p. 36.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 197

Figura 127. Rainha Victoria


viajando sobre a ponte Tay,
Dundee. The Illustrated
London News, 5 de julho de
1879.
<http://www.ilnpictures.co.uk>
(17/09/07)
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Figura 128. Viaduto Brighton sobre a rodovia


Preston. The Illustrated London News, 13 de
junho de 1846. The Illustrated London News Figura 129. Viaduto Blatchford em Slade,
Picture Library. <http://www.ilnpictures.co.uk> Devon, meados do século XIX. Litografia
(17/09/07)
colorida manualmente. Science
Museum/Science & Society Picture Library.
<http://www.ingenious.org.uk> (17/09/07)

Abordamos anteriormente como o desenvolvimento da ferrovia mostrou-se


fundamental para o surgimento do que pode ser considerado como a segunda
revolução industrial. Ao mesmo tempo em que as estradas de ferro podem ser
explicadas como uma resposta à industrialização e à urbanização, elas também
atuaram como estímulo para o crescimento das duas últimas. Até o início efetivo
das linhas ferroviárias, a produção e o consumo de bens permaneciam integrados
em um quadro regional, constituindo parte da identidade local. Com o transporte
moderno, o lugar da produção é separado do espaço de consumo. Neste momento,
O OLHAR INOCENTE É CEGO 198

de acordo com Marx, o produto se transforma em mercadoria.400 Wolfgang


Schivelbusch relaciona a observação de Marx com o conceito de “perda da aura”,
desenvolvido por Walter Benjamin. Para Benjamin, a aura é uma presença
“singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma
coisa distante, por mais perto que ela esteja”401 e este valor genuíno seria
destruído pela reprodução. Segundo Schivelbusch, a ferrovia – e depois as
rodovias – participam de um movimento semelhante de destruição da aura na
medida em que favorecem que regiões outrora inexploradas se abram para o
turismo. “Quando a distância espacial não é mais experimentada, as diferenças
entre o original e a reprodução diminuem”.402 Embora a associação apresentada
por Schivelbusch possa ser questionada, ela assinala o surgimento do turismo
industrial como mais uma conseqüência das ferrovias. Nos dois cartazes do ano de
1889, aqui reproduzidos, (Figura 130; Figura 131) vemos exemplos de como o
distante era trazido para o alcance do olhar do turista: “o mar do Canal da
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Mancha, via trem rápido, em apenas três horas e meia”, “trem expresso quatro
vezes ao dia”. Ambos os cartazes trazem imagens das paisagens importantes de
cada local.

Figura 130. Estrada de ferro du Figura 131. Estrada de ferro du Figura 132. 'Cook's Tours
Nord. Boulogne sobre o mar. Nord. Le Tréport-Mers. pela Escócia e Irlanda. Capa
Temporada de 1889. Temporada de 1889. de folheto publicitário, sem
<http://gallica.bnf.fr/> (25/09/07) <http://gallica.bnf.fr/> (25/09/07) data. Thomas Cook
Archive/The ILN Picture
Library. <
http://www.ilnpictures.co.uk>
(17/09/07)

400
MARX, Karl. Grundisse. Apud SCHIVELBUSCH, W. The Railway Journey: the Industrialization of
Time and Space in the Nineteenth Century. Berkeley: University of California Press, 1986. p. 40.
401
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era ... p. 170.
402
SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 42.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 199

Neste contexto surge o turismo em grande escala desvinculado da


experiência única e romântica das viagens. O crítico francês Jean Cassou discute o
deslocamento do sentido de “viagem” para “turismo” ocorrido a partir do final do
século XIX, quando o desenvolvimento do sistema de transportes e das agências
de viagem possibilitou ao grande público viajar.403 As viagens de ricos e
aventureiros aparentemente surgiram a partir do século XVIII com o intuito de
conhecer monumentos históricos ou entrar em contato com os costumes de outros
povos e nações. Muitas obras do romantismo francês têm origem na experiência
de viajantes que partiram em busca de amor, aventura, exotismo ou tudo isso ao
mesmo tempo. Para Cassou, a agência de viagens desnaturalizou a experiência da
viagem ao eliminar as possibilidades de novas descobertas.
Na Figura 132 vemos um cartaz do primeiro agente de viagens do mundo,
Thomas Cook. Embora sem data, o cartaz indica os primeiros roteiros criados pela
agência na década de 1840. Cook, ao constatar as dificuldades trazidas pela
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ausência de integração entre as vias férreas, alugou um trem para um determinado


evento, vendendo diretamente. Deste modo, teve início o turismo da era industrial.
O turismo de massa oferecia ao cidadão urbano um cardápio de aventuras e novas
experiências. Mas, ao mesmo tempo em que fazia uso de um passeio padronizado,
o usuário também buscava uma experiência única, o que podia tornar
problemática uma visita às “novíssimas descobertas de Pompéia” e a aquisição de
“autênticos souvenirs”. Os espaços dignos de serem visitados foram rapidamente
mapeados, padronizados e disponibilizados à degustação do olhar moderno em
escala industrial. Apesar da padronização dos roteiros e da gradação de interesses
do que deve ou não ser visitado, não se pode deixar de considerar como as visitas
a outros países e culturas acrescentaram elementos à formação da cultura visual
moderna, minimamente pela oferta de novas possibilidades a serem observadas.
Mesmo considerando que uma viagem sempre resulta em “novas vistas”,
parece evidente que o turista moderno vive uma experiência mais passiva a partir
da era industrial. Na maioria das vezes, viaja de acordo com um roteiro
preconcebido pelo agente de viagens e que exclui a possibilidade do erro e da
aventura. Ele vive as experiências que lhe são indicadas e observa o que deve ser
observado. Neste sentido, sua prática encontra-se distanciada do perambular do

403
CASSOU, Jean.Du Voyage au tourisme. Communications,10(1967):25-34. apud KERN, S. op. cit., p. 352.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 200

flâneur e de sua observação anônima. No entanto, diversos autores consideram a


semelhança entre o flâneur e o turista. Para Hall, o turista seria a contrapartida do
flâneur na modernidade tardia404. Segundo Urry, o flâneur foi um precursor do
turista do século XX e, particularmente, de sua atividade emblemática: a tomada
de fotografias405. Antes dele, Susan Sontag, reconhecia a fotografia como “uma
extensão do olho do flâneur de classe média”.406 O fotógrafo seria uma versão
armada do caminhante solitário que faz o reconhecimento do inferno urbano,
observando o mundo “pitoresco”. Apesar destas aproximações, a autora finaliza
com uma frase que acaba por apartar definitivamente o flâneur do turista de
massa:
O flâneur não se sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, mas por suas
esquinas escuras e remendadas, por seus habitantes esquecidos – pela realidade
não-oficial que está por detrás da fachada da vida burguesa e que o fotógrafo
“apreende”, tal como o detetive captura o criminoso.407

Neste contexto, a aproximação entre o modo de olhar do flâneur e o do


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turista só parece fazer sentido quando deixamos de considerar o turismo de massa


e suas limitações de tempo em visitas pré-estabelecidas pelos agentes de viagem.
Por outro lado, o olho aberto ao “pitoresco” segue sendo um resquício da
experiência do flâneur na prática de qualquer turista, mesmo dos que respeitam o
roteiro do “que deve ser observado”.
Alguns posicionamentos ambivalentes aparecem em relação aos primeiros
tempos do transporte ferroviário. De um lado, admirava-se a facilidade, suavidade
e segurança de um meio que sugeria a sensação de “estar voando”. Ao mesmo
tempo, a ferrovia carregava o medo da violência e da destruição potencial. A
possibilidade de acidentes e a impossibilidade de interferência no controle do
veículo colaboravam com esta ansiedade. Segundo Schivelbusch, é possível
estabelecer uma relação entre o grau de eficiência e desenvolvimento de uma
tecnologia e sua capacidade de catástrofe e destruição em caso de colapso.
Haveria uma relação direta entre a capacidade da tecnologia controlar a natureza e
a gravidade dos acidentes.408 O autor justifica esta observação apontando para o
fato de que na Enciclopédia de Diderot, a palavra “acidente” encontrava-se

404
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1992. p. 33.
405
URRY, John. The tourist gaze. London: Sage Publications, 2002. p. 127.
406
SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Ed. Arbor, 1981. p. 55.
407
Ibid. p. 56.
408
SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 131.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 201

relacionada a conceitos gramaticais e filosóficos. As catástrofes da sociedade pré-


industriais eram predominantemente relacionadas a desastres naturais, ou seja,
ligadas a fatos exteriores à sociedade. Com o desenvolvimento da
industrialização, as catástrofes começaram a vir de dentro da sociedade. A
destruição produzida pelo aparato tecnológico é parte do seu poder e leva à
destruição o próprio veículo no caso de um acidente. A quebra do eixo de uma
carruagem no século XVIII interrompia e atrasava uma viagem enquanto a quebra
de eixo de uma locomotiva que em 1842 viajava de Paris para Versalhes produziu
a primeira catástrofe das ferrovias, espalhando pânico pela Europa. Dois anos
após este acidente, o artigo “acidentes” na Encyclopédie des chemins de fer et des
machines à vapeur tinha nove páginas.409
O fato é que a segurança do transporte ferroviário era bastante precária nos
primeiros tempos e acidentes aconteciam freqüentemente por colisões entre
veículos, com objetos sobre os trilhos, descarrilamentos ou rompimento de pontes.
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Gravuras detalhadas de acidentes envolvendo trens passaram a ilustrar as


publicações da época. A Figura 133 mostra uma colisão. Segundo a legenda em
The Illustrated London News, o condutor do trem de passageiros tentou, em vão,
alertar o outro trem com a luz vermelha. Na Figura 134, o peso do próprio trem
fez ceder a viga mestra. Aos poucos, a segurança ferroviária passou a ser uma
preocupação.

Figura 133. Acidente de trem em Kentish Town, na Figura 134. Acidente de trem na Ferrovia
junção da linha Hampstead. The Illustrated London Chester, com estragos na ponte Dee.
News, 7 de setembro de 1861. ILN Picture Library. The Illustrated London News, 12 de junho
<http://www.ilnpictures.co.uk/> (17/09/07)
de 1847. ILN Picture Library.
<http://www.ilnpictures.co.uk/> (17/09/07)

409
SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 131.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 202

Os acidentes eram exaustivamente divulgados na mídia impressa do século


XIX. Os freqüentes descarrilhamentos e choques de trens eram publicados em
grande estilo, apresentados como um importante efeito colateral do progresso.
A Figura 60 publicada em 1880 em The Illustrated London News mostra
uma plataforma de trem do subúrbio. Segundo a legenda, quinhentos londrinos
acotovelavam-se para entrar nos vagões de segunda e terceira classe, aproveitando
os feriados bancários para uma excursão. Os cartazes no muro da estação
apresentam um bom sumário do que se anunciava à época: chás, remédios,
eventos musicais, passeios e fait-divers: “acidentes de todos os tipos”. Outra
indústria se desenvolveu em função dos acidentes de trem: a indústria de seguros.
O anúncio da Figura 135 apresenta uma mistura de boas vindas ao ano novo e
ameaças em relação à possibilidade de acidentes. Apresentando seis fotografias de
acidentes com diversos veículos acidentados, pergunta: “Você já esteve envolvido
em um acidente? Não? Mas, qualquer dia destes, poderá. Você está protegido para
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1912?”.

Figura 136. Aguardando o trem da excursão. The


Illustrated London News. 4 de setembro de 1880.
The Illustrated London News Picture Library
<http://www.ilnpictures.co.uk/> (17/09/07)

Figura 135. Anúncio de seguradora.


The Sphere, 6 de janeiro de 1912.
The ILN Picture Library.
<http://www.ilnpictures.co.uk/> (17/09/07)

Um aparato tecnológico que se tornou complementar as ferrovias, inclusive


atuando diretamente sobre a segurança foi o sistema de telégrafo elétrico. Embora
o telégrafo tenha se aperfeiçoado a partir do início do século XIX, foi apenas com
o avanço das ferrovias que ele encontrou uma aplicação prática. Ao longo do seu
desenvolvimento, as ferrovias muitas vezes eram percebidas como um conjunto
O OLHAR INOCENTE É CEGO 203

mecânico que incluía não apenas a locomotivas, mas os seus carros e, também, as
estradas férreas. Neste contexto, com o fim de evitar acidentes e choques, muitas
vezes, uma ou mais pessoas tinham a tarefa de observar à frente a linha do trem
para divisar obstáculos no caminho. No trem da Figura 137 vemos alguns homens
imediatamente atrás da locomotiva, provavelmente cumprindo esta função. Na
mesma figura do trem dos correios, vemos à direita um homem com um
sinalizador luminoso. As três luzes na parte da frente indicam tratar-se de um trem
expresso. Como se pode perceber a partir da simplicidade deste sistema de sinais,
a sinalização ferroviária não se mostrava satisfatória. Os primeiros sistemas óticos
e acústicos que foram projetados para este fim, provavam-se pouco efetivos no
escuro, na neblina, em condições de ruído excessivo e, ainda, na passagem por
túneis.410 Foi justamente nas passagens por túneis que o telegrafo apresentou a sua
primeira aplicação prática. O sistema, primeiramente constituído para túneis e
depois expandido ao longo de toda a linha, consistia na divisão da linha em
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“blocos”, cada um deles atendido por um transmissor telegráfico. Este transmissor


sinalizava para o bloco seguinte quando a linha encontrava-se liberada. Deste
modo, o condutor e seus auxiliares deixaram de ser responsáveis pela avaliação da
linha, que passou a ser sinalizada por um centro telegráfico distante.

Figura 137. Trem dos correios indo de Folkestone para


Londres. The Illustrated London News, 1844. The ILN
Picture Library.
<http://www.ilnpictures.co.uk/> (17/09/07)

Não nos interessa o aspecto funcional da aplicação do telégrafo às ferrovias,


mas o seu efeito sobre a visualidade. Explicando melhor: com a instituição deste
sistema de sinais, os postes telegráficos passaram a acompanhar as ferrovias. Os

410
SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 30.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 204

postes e fios do telégrafo integraram-se como parte do conjunto mecânico das


ferrovias, ocupando um campo à frente da paisagem descortinada pela janela do
trem, mediando esta visão. A “passagem” acelerada dos postes pela janela do trem
passou a criar um ritmo visual, através do qual era possível supor a velocidade
empreendida pelo equipamento.

3.3.2. Vista e visão panorâmicas

Apesar das inúmeras críticas que acompanharam a implementação das


ferrovias, não havia unanimidade em relação às mudanças perceptivas resultantes
das transformações geradas por este meio de transporte. Nem todos viam as
ferrovias como ruína e prejuízo, nem com enfado. O escritor Christian Andersen,
por exemplo, afirmou com veemência, em meados do século XIX, uma opinião
bastante positiva. Para ele a poesia sucumbia à estreiteza das viagens de
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diligência. O calor e a poeira incomodavam no verão, enquanto o inverno


proporcionava péssimas estradas. O trem era um cavalo mágico que voava como
as nuvens em uma tempestade, fazendo o espaço desaparecer.411 Para Andersen, a
verdadeira oportunidade de observar a paisagem se encontrava sobre os trilhos.
Esta outra interpretação ao mesmo tempo em que nos conduz a uma nova
capacidade de observação também apresenta uma nova paisagem criada pela
ferrovia. Os objetos modificam-se a partir do apelo da velocidade. O movimento
cria novas associações entre objetos que se encontram separados no espaço. Os
elementos que foram apontados por alguns com o significado de perda ou
detrimento passam a ser assumidos como enriquecedores. A velocidade é
transformada em estímulo para a nova percepção e dá nova vida à antiga
paisagem.
Neste contexto, Wolfgang Schivelbusch apresenta um excelente apanhado
de depoimentos e textos de autores contemporâneos através dos quais é possível
constatar as respostas à experiência visual trazida pelo movimento das ferrovias
no século XIX. Um viajante americano, por exemplo, escreveu em 1853 que as

411
Railway Readings. Oxford: J. Vincent, 1848. p. 8.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 205

belezas da Inglaterra nunca apareceram tão charmosas do que quando se


precipitam sobre uma locomotiva a 40 milhas por hora .412
Nada pelo caminho requer uma observação atenta, e apesar dos objetos mais
próximos parecerem rasgar-se em descontrole, os campos distantes e suas árvores
dispersas não parecem determinados a iludir a observação; eles permanecem o
tempo necessário sob o olhar para [que possam] deixar uma impressão eterna.
Tudo é tão tranquilo, tão fresco, tão pleno e destituído de objetos proeminentes
capazes de aprisionar o olho ou distrair a atenção do charme do todo, que me faz
amar o sonho de navegar no ar, rapidamente, como se estivesse montado em um
tornado.413

Um certo Benjamin Gastineau, cujos ensaios publicados em diversos jornais


foram reunidos no ano de 1861 em um livro chamado La Vie en chemin de fer414,
considera que o movimento do trem através da paisagem transfigura-se no
movimento da própria paisagem. A ferrovia coreografa a paisagem. “Antes da
criação das estradas de ferro, a natureza não criava mais; era uma Bela
Adormecida no bosque...; até os céus pareciam imutáveis. A estrada de ferro
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animou tudo...”.415 O movimento do trem encolhe o espaço e, deste modo, exibe


uma sucessão de objetos e elementos cênicos que originalmente pertenciam a
diversos domínios espaciais. O viajante que observa o mundo a partir da janela do
trem adquire uma nova habilidade que Gastineau chama de “filosofia sintética do
relance” (la philosophie synthétique du coup d’oeil) e que consiste em perceber
elementos descontínuos indiscriminadamente à medida que estes se sucedem sob
a janela. Embora Gastineau não utilize a palavra “panorama”, o cenário que ele
descreve corresponde a esta forma de visualização: a partir da mudança contínua
de ponto de vista vêem-se, em rápida sucessão, cenas diversas - alegres ou tristes,
burlescas ou brilhantes, de vida ou de morte. Todas as imagens desaparecem tão
logo sejam vistas.
Em outro texto contemporâneo de 1865, Jules Clarétie, jornalista e
publicitário parisiense, utiliza o termo panorama para caracterizar a vista da janela
do trem: uma paisagem evanescente, capaz de ser captada em sua totalidade
graças à velocidade do movimento. Clarétie escreve que em poucas horas a

412
WARD, Matthew E. English Items or, Microcosmic Views of England and Englishmen. Liverpool, 1830.
pp. 47-8 apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 60.
413
Id.
414
GASTINEAU, Benjamin. La Vie en chemin de fer. Paris, 1861. p. 31. apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit.,
p. 60.
415
Ibid., pp. 37-38. apud BENJAMIN, W. Passagens... p. 631 [U 10a,1].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 206

ferrovia pode expor à vista toda a França, desenrolando diante dos nossos olhos
“um panorama infinito, uma vasta sucessão de quadros charmosos, de novas
surpresas”.416 De uma paisagem podemos ver uma vista geral: “não pergunte
sobre os detalhes, mas por um todo vivo. Depois de termos nos encantado com
suas habilidades pictóricas, ele [o trem] repentinamente pára e, simplesmente,
deixa-nos descer aonde queremos chegar”.417
Um outro autor, Dolf Sternberger, utiliza o conceito de panorama para
descrever a tendência de olhar os elementos individuais e descontínuos de forma
indiscriminada, um modo de percepção ocidental, predominantemente européia,
surgida no século XIX. “A paisagem profundamente transformada do século XIX
permanece visível até hoje, pelo menos em seus rastros. Ela foi formada pela
estrada de ferro”.418 Para Sternberger, a vista das janelas da Europa haviam
perdido sua profundidade e os objetos transfiguraram-se em meras partículas de
um único mundo panorâmico que nos envolve como uma superfície pintada419.
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Esta visão do autor é creditada às ferrovias que “transformam o mundo de terras e


mares em um panorama que pode ser experienciado”.420
Em nosso ponto de vista, a visão panorâmica não destrói de maneira alguma
a experiência da tridimensionalidade. A crença nesta idéia baseia-se no fato de
que as figuras que se encontram em primeiro plano, mais próximas da janela, são
vistas borradas, nubladas. Embora não se possa negar este fato, há um outro fator
que garante a tridimensionalidade. Trata-se da velocidade. Uma paisagem é
constituída por muitos planos: árvores dispersas, casas, outros veículos, pessoas
espalhadas por diversos pontos da paisagem. O movimento do trem faz com que
estes diversos pontos do plano pareçam se modificar a cada momento. Deste
modo, uma grande árvore que parecia ocultar uma casa, em determinado momento
aparece reduzida de tamanho como a figura de um escorço, enquanto a casa
avança para mostrar-se.
Neste contexto, não se trata de uma paisagem apreendida como se projetada
sobre um plano bidimensional o que garante a idéia da visão panorâmica, mas a
separação entre o espaço de percepção e o espaço dos objetos percebidos. Na

416
CLARÉTIE, Jules. Vouages d’un parisien. Paris, 1865. p. 4. apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 61.
417
Id.
418
STERNBERGER, Dolf. Panorama, oder Ansichten vom 19. Jahrundert, 3rd. ed. Hamburgo, 1938. pp. 34-
35. apud BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 520. [N 12a,2].
419
Ibid,. p. 50. apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 62-63.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 207

percepção “tradicional” os espaços são compartilhados, não há separação entre


eles. Na percepção “moderna”, “o viajante de trem vê os objetos e a paisagens
através do aparato que o movimenta mundo afora. O veículo e o movimento
criado por ele integram-se à sua percepção visual”.421 A mobilidade da visão, que
para os sentidos tradicionais de alguém como Ruskin, era vista como um agente
de dissolução da realidade – torna-se pré-requisito dentro da “normalidade” da
visão panorâmica. “A visão não mais experiência o movimento fluido dos objetos.
A fluidez tornou-se parte da nova realidade visual”.422
A visão panorâmica, oferecida pelas janelas dos trens, já havia sido
oferecida como uma ilusão nas décadas anteriores pelos panoramas e dioramas.
Schivelbusch associa a vivência real nas estradas de ferro à experiência “virtual”
nos panoramas e credita o desaparecimento da moda dos dioramas (por volta de
1840) ao surgimento das ferrovias423. Em nossa opinião, esta simultaneidade não é
o bastante para configurar a decadência da experiência panorâmica dissociada da
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vivência real. Considere-se a este propósito, a fase final dos panoramas, na virada
do século XIX para o XX, em um momento em que a visão panorâmica já podia
ser considerada completamente naturalizada.

3.3.3. Panoramas e espetáculos visuais

Os panoramas e sua instituição como espetáculo contribuíram


fundamentalmente para o desenvolvimento de novas características do olhar,
avançando sobre a fronteira da representação ilusionística e antecipando em um
século o debate em relação ao valor artístico da fotografia e, posteriormente, do
cinema, vídeo e da mídia eletrônica.424 A palavra “panorama” tem origem na
língua grega e significa “tudo ver”. O neologismo surgido em uma matéria do The
Times, no ano de 1792, anunciava um novo espetáculo: uma pintura circular e
absolutamente realista colocada sobre a parede de uma rotunda construída
especialmente para este fim. O público, após subir uma escada no interior do

420
Id. Ibid., p. 62.
421
SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 64.
422
Id.
423
As linhas de Paris para Orléans e Rouen passaram a operar a partir de 1843. SCHIVELBUSCH, W. op.
cit., p. 62.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 208

panorama, atingia uma plataforma de onde se podia observar a representação,


guardando uma distância que garantia a ilusão (Figura 138). A luz natural
emanava do teto da construção e era suavizada por véus ou por um telhado, de
modo a encobrir as bordas da pintura. As representações às vezes seguiam temas
militares (batalhas) ou podiam retratar a própria cidade e, ainda, cidades distantes
ou exóticas. As grandes dimensões e a necessidade de compensar o grande
formato e a circularidade da tela encontravam-se entre as grandes dificuldades do
meio. O trabalho de construção de um panorama era organizado como uma linha
de montagem, onde especialistas assumiam partes específicas da pintura como o
céu, paisagem de fundo, os figurinos e as armas.
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Figura 138. Plataforma de observação do panorama com espectadores e detalhe da


vista panorâmica de Constantinopla, por Jules-Arsène Garnier em exibição em
Copenhagen. c. 1882. Gravura em madeira, C. V. Nielsen. Museu da Cidade,
Copenhagen. In: COMMENT, Bernard. The Panorama. London: Reaktion Books,
1999. p. 6.

No panorama, marcando a transição da representação para a ilusão425, tudo


era arranjado de modo a criar um jogo óptico e uma atmosfera ilusionista. A
imagem não procurava simplesmente apresentar a natureza de forma idealizada,
mas buscava substituir a realidade ao proporcionar uma experiência pessoal.
O panorama era um empreendimento de custos elevados. De modo a
ampliar os lucros muitas vezes uma tela, após ter sido exposta em Londres por

424
MILLER, Angela. The Panorama, the Cinema, and the Emergence of the Spectacular. Wide Angle.
Summer, 1996. p. 43.
425
COMMENT, Bernard. The Panorama. London: Reaktion Books, 1999. p. 19.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 209

alguns anos, era vendida para outras rotundas em outras cidades inglesas, na
Alemanha, França ou Holanda. Não poucas vezes, pintava-se o novo tema sobre a
antiga tela. Até desaparecer em 1861, o Panorama de Londres punha em
exposição uma ou duas novas mostras a cada ano, tendo exibido não menos de
que 126 obras.426
Os panoramas fizeram um grande sucesso em dois períodos distintos. O
primeiro período durou de sua invenção, na virada dos séculos, até 1820 e contou
com uma audiência estimada entre trinta mil e cinqüenta mil visitantes por ano. A
partir da década de 1820 o número de visitantes diminuiu para 15 mil por ano.427
Embora não tenhamos dados que corroborem a nossa hipótese, verificamos que
este período corresponda à invenção dos aparelhos de visualização, de uso
individual, que mereceram um estudo detalhado de Crary em relação às
modificações ocorridas na visualidade.428 Ao longo da segunda geração de
panoramas, no último quarto do século XIX, a média de espectadores aumentou
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substancialmente, para noventa mil espectadores entre os anos de 1860 e 1865,


alcançando duzentos mil entre 1872 e 1885.429 Este número, que pode nos parecer
excessivo, contém uma estimativa que inclui não apenas os países da Europa, mas
de outras partes do mundo. Os panoramas também fizeram sucesso em diversos
outros países, como o Brasil e os Estados Unidos, onde versões itinerantes
percorriam várias cidades. A sua decadência sofreu influência não apenas das
viagens, mas também das revistas e da ampla gama de publicações e espetáculos.
O cinema realizou o golpe final.
Os panoramas e suas diversas variantes surgidas ao longo do século XIX
parecem resumir uma necessidade de expansão da visualidade nos sentidos físico,
geográfico e histórico430. Como narra Benjamin:
Havia panoramas, dioramas, cosmoramas, diafanoramas, navaloramas, pleoramas,
(pleo, “eu navego”, “passeios náuticos”), o fantoscópio, fantasma-parastasias,
experiências fantasmagóricas e fantasmaparastáticas, viagens pitorescas pelo
quarto, georamas; vistas pitorescas, cineoramas, fanoramas, estereoramas,

426
Ibid., p. 25.
427
Ibid., p. 115.
428
CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century.
Massachusetts: The MIT Press, 1992.
429
COMMENT, B. op. cit., p. 115.
430
MILLER, A. op. cit., p. 36.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 210

cicloramas, um panorama dramático. “Em nossa época, tão rica em pano-, cosmo-,
neo-, mirio-, kigo- e dioramas.”431

Havia ainda uma outra variante, o Kaiserpanorama, que surgiu em Breslau


em 1880 e chegou a Berlin em 1883. Seu inventor chegou a estabelecer uma rede
com algo em torno de 250 pontos através da Alemanha. O Kaiserpanorama não
era de fato um panorama, mas um carrossel de estereoscópios que retratavam
paisagens e cidades. Os cinqüenta espectadores postavam-se sentados em volta do
aparato e cada vez que o carrossel girava tinham a oportunidade de observar uma
diferente localidade. Fotógrafos eram contratados para viajar e produzir imagens
para alimentar as duas diferentes seções a cada semana. Aproximadamente
125.000 imagens estereoscópicas foram produzidas para este espetáculo. Walter
Benjamin em seu texto Infância em Berlin, comenta o seu contato com o
Kaiserpanorama e o efeito incômodo da campainha que soava antes de cada
mudança de imagem.432
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O principal rival do panorama era o diorama, surgido em 1822. Consistia


em uma tela plana ou ligeiramente curva que de acordo com as mudanças na
iluminação apresentavam a mesma paisagem de dia e à noite. O efeito dependia
da transparência da tela e da variação de iluminação – se pela frente ou por trás.
As apresentações duravam aproximadamente quinze minutos em salas que
acomodavam até 350 espectadores. Apesar de concorrer com o panorama, sua
origem pode ser encontrada nas fantasmagorias ou na lanterna mágica, “que não
conhecia a perspectiva, mas com a qual a magia da luz se insinuava de modo bem
diferente nas habitações ainda pouco iluminadas”.433 A aproximação do diorama
com a mágica e o encantamento é evidenciada no Salão de 1859 onde Baudelaire,
após apontar os efeitos maléficos da fotografia, escreve:
Gostaria de ser levado de novo para os dioramas cuja magia brutal e imensa sabe
me impor uma útil ilusão. Prefiro contemplar alguns cenários teatrais onde
encontro, expressos com arte e concentrados de forma trágica, meus sonhos mais
caros. Essas coisas, porque falsas, estão infinitamente mais próximas da verdade,
enquanto a maioria de nossos paisagistas são mentirosos justamente porque
negligenciam mentir.434

431
M. G. Saphir no Berniler Courier, 4 mar. 1829, cit. em Erich Stenger, Daguerres Diorama in Berlin,
Berlim, 1925, p. 73. BENJAMIN, Walter. Panorama. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo:
Imprensa Oficial, 2006. p. 569. [Q 1,1].
432
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 76.
433
BENJAMIN, Walter. Panorama. Passagens... p. 572. [Q 2,3].
434
BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1995. p. 840.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 211

Enquanto o diorama apresentava afinidade com a mágica, o panorama


buscava ampliar a experiência a partir da crescente importância dada à percepção
visual no período. Neste contexto, os panoramas em movimento com suas
simulações de viagens por rios ou estradas foram muito atuantes. Nos espetáculos
de panoramas em movimento os espectadores eram colocados em barcos ou
carruagens com pouca iluminação ladeadas por telas que eram movidas
vagarosamente. Alguns panoramas em movimento bastante sofisticados foram
apresentados na Exposição de 1900, apesar de, neste período, o espetáculo já se
encontrar em seus últimos estertores. Dentre estes, o Panorama Ferroviário
Trans-Siberiano, que simulava a viagem de trem entre Moscou e Beijing, onde os
passageiros eram instalados em três carros luxuosos dos quais podiam vislumbrar
as paisagens através da janela. Um sistema mecânico permitia que quatro camadas
sucessivas de paisagens se movessem em velocidades diferentes. O Mareorama
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combinava a simulação de movimento com a genuína configuração circular dos


panoramas. Até 700 pessoas eram colocadas em uma enorme plataforma que se
fazia passar pelo deque de um transatlântico. As gigantescas telas simulavam o
movimento do navio. O vento passando por uma camada de algas marinhas
sugeria a brisa e o cheiro do mar. Era um show imersivo, uma obra de arte total,
sinestésica.
O apelo dos panoramas encontrava-se, sobretudo, no seu aspecto de
substituição da realidade, onde os espectadores poderiam vivenciar a experiência
do estrangeiro e do exótico sem os inconvenientes da viagem.435 A natureza
espetacular do novo meio oferecia a um público em formação, experiências
normalmente fora do seu alcance, mas de forma editada e domesticada. O espaço
real (da rotunda) era transformado em um outro espaço, onde os traços da
realidade eram ocultados. Arquitetura e pintura atuavam juntas para articular a
experiência. O continuum espaço-temporal dos panoramas rompeu a doutrina Ut
Pictura Poesis que segregava em diferentes dimensões as artes irmãs, pintura e
poesia. Com os panoramas, as distinções entre tempo e espaço, visual e verbal,
foram destituídas das artes. Apesar disso, o status artístico desta representação foi
muito contestado como sucedeu posteriormente com a fotografia, o cinema e a

435
MILLER, A. op. cit., p. 41.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 212

mídia eletrônica. Como entretenimento popular, o panorama ofereceu um amplo


acesso à informações visuais, mas, ao contrário de outras formas de arte, ele não
requeria nenhum conhecimento especializado anterior, assim como nenhuma
expertise estética. Justamente pela oferta de ilusão pictórica, além da total
aproximação com a natureza, o panorama era desprestigiado como arte. “A arte
encanta porque relembra, não porque engana”.436 Neste contexto, a imitação da
realidade constituiu a base do prazer popular da classe média do século XIX – um
prazer alicerçado na experiência dos sentidos.437
J. A. Eberhardt em suas críticas aos panoramas, escritas em 1807, descreve
o terror, a vertigem e a náusea que os espectadores poderiam padecer:
Nem o conhecimento da proximidade com o ponto de vista, nem a luz do sol, nem
o contraste com a vizinhança imediata são capazes de me resgatar deste sonho
terrível, do qual tenho que me forçar contra minha inclinação. Deste modo, alguém
pode por um fim à ilusão no momento em que ela se torna desagradável; mas a
técnica não se encontra ao alcance de todos os espectadores do panorama.438
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Bernard Comment em The Panorama, além de considerar a ética deste tipo


de representação, analisa nesta passagem a distinção entre representação e
ilusão.439 Em nosso ponto de vista, ela aponta para uma pulsão escópica que em
nossos dias é mais evidente na dificuldade de afastar o olhar das telas de TV
encontradas em locais públicos. Do mesmo modo, a resistência a este tipo de
impulso, requer um autodomínio que talvez não se encontre ao alcance de todos.
Neste sentido, é importante destacar a força com que algumas tecnologias são
capazes de se infiltrar sobre o olhar.

3.3.4. O tempo padronizado

A compressão tempo-espaço resultante da aceleração produzida pelas novas


tecnologias de transporte e comunicação produziram uma modificação concreta na
forma como o tempo é compreendido e utilizado de maneira coletiva. Embora o
relógio mecânico já existisse desde o século XIII e o relógio de pêndulo desde o

436
In: RHODE, Eric. A History of the Cinema: From its origins to 1970. New York: Hill and Wang, 1976. p.
8. apud MILLER, A. op. cit., p. 44.
437
MILLER, A. op. cit., p. 44.
438
EBERHARDT, J. A., Handbuch des Aesthetik, 1807. apud COMMENT, B. op. cit., p. 97.
439
COMMENT, B. op. cit., p. 97.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 213

XVII, foi apenas no século XIX que eles passaram a ser produzidos em massa e
com peças intercambiáveis.440 A utilização cada vez mais utilitária do mecanismo,
mais do que uma necessidade da época evidencia a crescente importância de um
tempo objetivo e impessoal sobrepondo-se ao tempo pessoal e subjetivo do
indivíduo. O historiador alemão Karl Lamprecht observou nas últimas décadas do
século XIX um crescente aumento na produção e importação de relógios de bolso
(ele estima 12 milhões de relógios importados para uma população alemã de
aproximadamente 52 milhões). Ao mesmo tempo, as pessoas passaram a prestar
maior atenção aos pequenos intervalos de tempo.441 A crescente utilização de
relógios é ao mesmo tempo causa e conseqüência do aumento do senso de
urgência, de um maior desejo de velocidade através de uma maior compreensão
da pontualidade. Já em 1900, Simmel afirmava que “pontualidade,
calculabilidade, exatidão são introduzida à força na vida pela complexidade e
extensão da existência metropolitana e não estão apenas muito intimamente
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ligadas à sua economia do dinheiro e caráter intelectualístico”.442


A idéia de um tempo heterogêneo pertence ao terreno das subjetividades,
aos novelistas, psicólogos e outros estudiosos interessados em examinar as
diferentes formas que os indivíduos se relacionam com o tempo. Em O retrato de
Dorian Gray, Oscar Wilde aponta para um tempo que passa, ou melhor, que não
passa para o protagonista, enquanto o seu retrato, escondido no sótão, vai
registrando as mudanças que deveriam estar no corpo e no rosto de Dorian. Para
Proust foi um pequeno bolo “curto e rechonchudo", uma madaleine, que o fez
viajar no tempo em um processo que o autor passou a chamar de memória
involuntária, levando-o a concluir que o passado encontrar-se-ia “em um objeto
material qualquer, fora do âmbito da inteligência e de seu campo de ação”. Em
qual objeto, isso não se sabe, e é mesmo uma “questão de sorte se nos deparamos
com ele antes de morremos ou se jamais o encontramos”.443
Uma importante conseqüência direta da influência das ferrovias foi a
instituição do World Standard Time que representou a implantação de um tempo
homogêneo, público e unificado. Em outras palavras, a transformação do tempo

440
LOWE, D.,op. cit., p. 35.
441
KERN, S. op. cit., p 110-111.
442
SIMMEL, G. op. cit., p. 15.
443
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Vol. I: No caminho de Swann. Rio de Janeiro: Ediouro,
1992. p. 55-56. A tradução reproduzida aqui é a de BENJAMIN, ibid., p. 106.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 214

em uma categoria social.444 Ao mesmo tempo, a instituição de um tempo


unificado tem como conseqüência a perda da identidade temporal regional. Com
um tráfico regional lento, as diferenças temporais não tinham importância alguma.
Em 1840, as diversas companhias ferroviárias inglesas fizeram uma primeira
tentativa de padronização do tempo, mas não houve um empenho coletivo e a hora
era acertada por cada companhia diariamente. Neste quadro, permaneceram as
disparidades de horário.
Apesar dos argumentos científicos e militares em prol de um tempo
universal, foram as companhias ferroviárias que finalmente o instituíram445 e
mesmo quando estas decidiram adotar em conjunto o tempo indicado pelo
Observatório Real de Greenwich, foi preciso esperar até que este tempo fosse
amplamente incorporado. Até 1879, um viajante que partisse de Washington com
destino a São Francisco com a intenção de acertar o seu relógio em cada lugarejo
que passasse, deveria fazê-lo mais de duzentas vezes446. Algumas regiões da
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França apresentavam quatro horários diferentes. Por outro lado, já em 1890 havia
máquinas que registravam o horário de entrada e saída dos seus empregados de
forma a determinar o tempo trabalhado e o pagamento a receber447. Deste modo, a
industrialização também foi fundamental para a necessidade de implantação de
um tempo coletivo, com precisão de menores segmentos e que dispensasse a
referência do mundo natural. Em 1880, o “tempo ferroviário” foi adotado como
padrão na Inglaterra, seguido pela Alemanha em 1893. Na Exposição Universal de
Paris, realizada em 1889, um dos congressos internacionais realizados discutiu a
unificação do tempo.448 Neste mesmo ano, os Estados Unidos foram divididos em
quatro zonas de tempo ligadas às ferrovias, o que já era uma excelente
padronização para quem, trinta anos antes, possuía 80 diferentes horários
relacionados às ferrovias. Apenas em 1918, estas zonas passaram a ser
compreendidas como faixas de horário seguidas até os nossos dias. A fotografia
de 1908 da Figura 139 ilustra o funcionamento do sistema de horário das
ferrovias. Cada seção do painel representa uma hora, subdividida em intervalos de

444
Um conceito desenvolvido por Durkheim. Ver em KERN, S. op. cit., p. 19.
445
KERN, S. op. cit., p. 12.
446
KERN, S. op. cit., p. 12.
447
Kern descreve um artigo de 1893 na Scientific American que descreve esta máquina. KERN, S. op. cit., p.
15.
448
SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte et RASMUSSEN, Anne. Les fastes du progrès. Le guide des
Expositions universelles 1851-1992. Paris: Flammarion, 1992. p. 118.
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cinco minutos. A linha horizontal indica a distância entre as estações. Um fio é


estendido do ponto de partida até o ponto de chegada de cada trem. O importante
é que nenhum destes fios se cruze para que não haja acidentes. A complexidade
do processo parece oferecer poucas garantias de sucesso deste intento.
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Figura 139. As linhas do sistema de


horário das ferrovias. The Illustrated
London News, 6 de junho de 1908. The
ILN Picture Library
<http://www.ilnpictures.co.uk> (17/09/07)

Neste segmento do trabalho, apresentamos como as modificações


resultantes das novas relações tempo-espaço, predominantemente originadas no
contexto de influência de novas tecnologias, produziram influências na
formulação de um novo modo de observar o mundo e de uma nova cultura visual
moderna. Harvey observa, a partir de Bourdieu, “se as experiências espaciais e
temporais são veículos primários da codificação e reprodução de relações sociais,
uma mudança no modo de representação daquelas quase certamente gera algum
tipo de modificação nestas”.449 A natureza da mudança gerada pelas experiências
espaciais e temporais assumiu grande evidência com o advento da arte moderna
no final do século XIX e início do XX. Hall engrandece esta discussão ao lembrar
que tempo e espaço constituem as coordenadas básicas de todos os sistemas de
representação. Apesar de, como assinala o autor, diferentes épocas culturais
estabelecerem diferentes formas de combinar estas coordenadas450, elas

449
HARVEY, D. op. cit., p. 225
450
HALL, S. op. cit., p. 70.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 216

encontram-se traduzidas em todos os meios de representação que envolva imagens


estáticas ou em movimento.
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4.
A pedagogia de uma nova visualidade

Em nossa investigação sobre as continuidades e contradições que moldaram,


ao longo do tempo, o olhar contemporâneo, identificamos dois diferentes modos
de olhar. Os dois modelos ou momentos do olhar apontados neste trabalho não se
colocam um em substituição ao outro, mas como uma base, sobre a qual, modos
de olhar posteriores são construídos. No capítulo anterior analisamos como as
novas tecnologias e sua influência sobre as dimensões de tempo e de espaço, ao
lado das condições de um novo ambiente urbano assentado sobre as mudanças
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ocorridas a partir da industrialização, mostraram-se fundamentais na construção


de uma nova cultura visual. O presente capítulo prossegue com esta análise, desta
vez, tratando da fixação deste processo. O novo modo de olhar que tomou forma a
partir de meados do século XIX dependia de uma ampla participação da
população. Ou seja, este modo de olhar deveria ser fundamentalmente
compartilhado.
É neste contexto que, no presente capítulo, utilizaremos como ponto de
partida as Exposições Universais que se realizaram diretamente vinculadas à
urbanização, às novas formas de comunicação e, principalmente, às questões
específicas da industrialização: produção em massa e pré-fabricação. A escolha de
uma análise da visualidade a partir das Exposições, realizadas na Europa desde
1851, em detrimento, por exemplo, de diversas tecnologias relacionadas à imagem
e que surgiram neste mesmo período deve-se a diversos fatores. Em primeiro
lugar, as Exposições encontram-se francamente associadas ao processo industrial
da segunda metade do século XIX. Elas constituíram empreendimentos de grande
porte, nos quais governos e empresas investiram imensas somas de dinheiro,
atraindo quase todos os países do mundo na busca pela modernização. Além
disso, trata-se de um fenômeno basicamente visual e voltado para um público
amplo. Deste modo, as Exposições Universais sintetizam a experiência obtida
posteriormente com outras tecnologias que se voltaram para a massa. A
O OLHAR INOCENTE É CEGO 218

possibilidade de realizar esta análise sobre as Exposições e não sobre estas


tecnologias, busca captar o primeiro momento da experiência de uma nova cultura
visual, recentemente desenvolvida.
As Exposições Universais colocam-se como um elemento fundamental na
estruturação de uma cultura moderna, apoiada sobre a modernização da segunda
metade do século XIX. Se por um lado surgem como conseqüência do mesmo
conjunto de processos que gerou a nova percepção urbana, por outro, elas também
se colocam como um fator atuante no desenvolvimento de uma pedagogia desta
cultura visual.
Além disso, as Exposições Universais têm o mérito de ressaltar a ascensão
do campo do design, tanto a partir da exibição de produtos desenvolvidos pela
indústria quanto pelas discussões que parecem mostrar-se, pela primeira vez,
relevantes para esta área. Sobre estas questões, Greenhalgh observa que o ano de
1851, data da primeira Exposição Universal, é considerado ponto de partida para a
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história do design, quando, de fato, deveria ser o ponto de partida para uma
história crítica do design na medida em que o que era discutido era mais
interessante e novo do que o que era apresentado.451 De qualquer forma, a ligação
entre as Exposições e o campo do design amplia a consideração de Bürdek de que
estas mostras eram capazes de revelar o estágio de desenvolvimento do design à
época.452 Além da oportunidade dada às pessoas comuns de conhecer máquinas
em funcionamento e produtos produzidos industrialmente, a primeira Exposição
permitiu que designers, artistas, críticos e industriais tivessem acesso ao estado da
arte do que era produzido em diversos países. Se isto não era traduzido em muitas
inovações formais, certamente ressalta discussões capazes de fundamentar uma
crítica do ornamento e do design, o que aponta para mudanças na forma de olhar o
que era produzido.

4.1. Exposições e espetáculo

As Exposições, que se realizaram em diversos pontos do planeta, entre


meados do século XIX e as primeiras décadas do XX, foram moldadas a partir dos

451
GREENHALGH, Paul. Ephemeral Vistas: The Expositions Universelles, Great Exhibitions and World’s
Fairs, 1851-1939. Manchester: University Press, 1994. p. 143.
452
BÜRDEK, Bernhard E. História, Teoria e Prática do Design de Produtos. São Paulo: Ed. Edgard Blücher,
2006. p. 21.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 219

exemplos da Inglaterra, França e Estados Unidos, onde eram chamadas,


respectivamente de Great Exhibitions, Expositions Universelles e World’s Fairs.
No entanto, exibições artesanais e industriais de caráter nacional tinham sido
freqüentes na França e na Inglaterra a partir do século XVIII e, mesmo antes, na
Idade Média, geralmente relacionadas a festividades religiosas. Com o passar do
tempo, elas foram aumentando em importância e em itens exibidos. Uma destas se
realizou em 1798, no Campo de Marte em Paris. Na Inglaterra, na década de
1830, diversas exibições ligadas a institutos de tecnologia chegaram a atrair
públicos de até trinta mil pessoas.453 A primeira Exposição considerada de caráter
universal foi realizada em Londres em 1851. Embora esta palavra não constasse
do seu nome, The Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations, a
pretensão encontrava-se profundamente arraigada. Para o historiador Asa Briggs,
a Exposição de 1851 foi o ponto culminante de uma longa e entrelaçada história, e
não um evento surpreendente.454 De forma análoga, consideramos que a história
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das Exposições Universais encontra-se profundamente relacionada à construção


da cultura visual moderna.
As Exposições Universais atuaram como difusores de valores, mas em um
posicionamento mais amplo do que é freqüentemente sugerido em estudos
recentes455, onde elas aparecem como veículos de propaganda de massa. Em nosso
ponto de vista, os valores modernos transmitidos nas Exposições e sua
ascendência sobre o sentido visual da sociedade burguesa do século XIX são
demarcadores da construção de um habitus coletivo que definiu a visualidade no
período. As próprias exposições podem ser analisadas como representações
visuais456, já que são compreendidas “como modelos de mundo materialmente
construídos e visualmente apreensíveis”.457 Para Barbuy, trata-se de um “veículo
para instruir (ou industriar) as massas sobre os novos padrões da sociedade
industrial (um dever-ser de ordem social)”.458 De forma semelhante, Reberieux

453
KUSAMITSU, Toshio. Great Exhibitions before 1851. History Workshop. n. 9. (Spring 1980): 70-89.
apud The Books of the fairs. p. 5. http://microformguides.gale.com/Data/Introductions/10020FM.htm.
Acesso em 25 de fevereiro de 2007 às 12:57h.
454
BRIGGS, Asa. Exhibiting the Nation. History Today, January 2000. p. 18
455
Cf. PLUM, Werner. Exposições mundiais no século XIX: espetáculos da transformação sócio-cultural.
Bonn : Friedrich-Ebert-Stiftung, 1979. e REBERIOUX, Madeleine. Approches de l’histoire de expositions
universelles à Paris du Second Empire a 1900. Bulletin du Centre d’histoire économique et sociale de la
région lyonnaise, n. 1, pp. 1-17, 1979.
456
BARBUY, Heloisa. A exposição universal de 1889 em Paris. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p. 24.
457
Ibid., p. 17.
458
Id.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 220

considera que as Exposições são criações do mais alto grau de representações


mentais e de imaginários coletivos.459
As grandes feiras privilegiavam a exibição e aquisição de conhecimentos
sobre tecnologias, lugares e sociedades distantes, divulgando um saber com
pretensões enciclopédicas e ideais evolucionistas. Mas, ao mesmo tempo, atuavam
com propósitos de entretenimento e espetáculo. As Exposições ofereciam o
deslumbre que a tecnologia podia proporcionar, de um olhar para o passado a
partir do ponto de vista privilegiado do homem moderno, senhor de sua
superioridade sobre a natureza, mas também de um olhar para o futuro a partir das
possibilidades sugeridas pelos novos inventos e descobertas. Neste contexto, as
Exposições amplificaram o mito do novo e o conceito de “sociedade do
460
espetáculo” , baseado na indústria moderna, onde o “desenrolar é tudo”.461
Apesar de Guy Debord ter demarcado a década de 1920 como o início do que
conceituou como sociedade do espetáculo462, em nosso ponto de vista este
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processo é anterior. Iniciou-se no século XIX, predominantemente na sua segunda


metade, com as mudanças urbanas e com o início das Exposições Universais.
Nossa convicção encontra apoio em textos de Walter Benjamin e T. J. Clark. Para
Benjamin, foi a partir das exposições universais que o valor de troca das
mercadorias passou a ser idealizado, relegando o valor de uso para o segundo
plano. Neste momento, inaugura-se uma “fantasmagoria a qual o homem se
entrega para divertir-se”.463 Clark, considerando as dificuldades de definição dos
conceitos de “espetáculo” e “sociedade do espetáculo”, aponta as origens do
termo para a década de 1960 nos estudos teóricos do grupo Internacional
Situacionista, interessado em “regular ou suplantar a esfera do pessoal, do
privado, do cotidiano”.464 Para Clark, embora reconhecendo a impossibilidade de
uma temporalidade precisa, a origem do espetáculo coincide com o modernismo.
As novas formas de vida e lazer encaminhavam “um movimento em direção ao
mundo dos grands boulevards e grands magasins, bem como das grandes

459
REBERIOUX, M. op. cit. p. 3.
460
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2004.
461
Ibid., p. 17.
462
DEBORD, Guy. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo. Rio de
Janeiro: Contraponto Editora, 2004. p. 168-169.
463
BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do século XIX. <Exposé de 1935>. In: Passagens. Belo Horizonte:
Editora UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. p. 44.
464
CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004. p. 42-43.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 221

indústrias que vinham com eles, do turismo, da recreação, da moda e da


exibição”.465
A questão do fundamento social do espetáculo é rechaçada por Michel
Foucault. O estudo das modalidades de poder da sociedade moderna leva Foucault
a afirmar que “nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilância”.466 Como
observa Tony Bennett, Foucault chega a esta conclusão ao analisar o momento em
que a punição deixa de ser aplicada como um espetáculo de exibição de poder.
Para Bennett, este enfoque limita uma visão mais ampla de uma retórica do poder
que deveria também se apoiar no complexo exibicionário – um poder que se
manifesta em sua habilidade de organizar e coordenar “uma ordem das coisas” e
um lugar para as pessoas em relação a esta ordem.467 A combinação entre
vigilância e espetáculo, leva Bennett a apresentar, não sem críticas, a sugestão de
Graeme Davison de que, se o panóptico é a representação arquitetônica do poder,
o Palácio de Cristal, palco da primeira Exposição Universal, reverte o princípio do
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panóptico na medida em que fixa os olhos da multidão sobre um fascinante


conjunto de mercadorias. “O Panóptico foi projetado de um modo que todos
pudessem ser vistos; o Palácio de Cristal foi desenhado de modo que todos
possam ver”.468 Para Bennett, a peculiaridade do complexo exibicionário não deve
ser procurada na reversão dos princípios do Panóptico, mas na incorporação de
certos aspectos deste princípio (e também do panorama), na formação de uma
tecnologia da visão que sirva não para atomizar ou dispersar a multidão, mas para
regulá-la. Deste modo, a multidão torna-se visível para si própria, constituindo
parte do próprio espetáculo. Neste contexto, o autor reproduz uma instrução do
texto “Short Sermon to Sightseers” da Exposição Pan-Americana de 1901: “Por
favor, ao passar por estes portões, lembre-se de que você é parte deste show”.469 A
interatividade antecipada sugere que não há espetáculo sem a mediação do

465
Ibid. p. 43-44.
466
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2006. p. 178.
467
BENNETT, Tony. The Exhibitionary Complex. In: DIRKS, N. B., ELEY, G. e ORTNER, Sherry B. (ed.)
Culture / Power / History. New Jersey: Princeton University Press, 1994. p. 130.
468
DAVISON, Graeme. Exhibitions. Australian Cultural History (Canberrra: Australian Academy of the
Humanities and the History of Ideas Unit, A. N. U.), no. 2 (1982/3) 7. apud BENNETT, T. op. cit., p. 128.
469
Citado por HARRIS, Neil . Museums, merchandising and popular taste: The struggle for influence. In
QUIMBY, I. M. G. (ed) Material Culture and the Study of American Life. New York: W. W. Norton, 1978. p.
144. apud BENNETT, T. op. cit., p. 132.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 222

espectador.470 O olhar torna-se porta de entrada da experiência moderna e sua


formulação algo que pode ser aprendido.
Ampliando as articulações institucionais de poder estudadas por Foucault,
Bennett observa que há uma ampla gama de outras instituições – museus de
história e ciências naturais, dioramas e panoramas, exibições nacionais e
internacionais, além de galerias e lojas de departamento – que serviram de espaço
para o desenvolvimento e circulação de novas disciplinas e, também, para o
desenvolvimento de novas tecnologias de visão.471 Deste modo, sugere Bennett,
um complexo disciplinar e de relações de poder seria formado a partir das
instituições de exibição, em justaposição ao “arquipélago carcerário”
472
desenvolvido por Foucault. Para Bennett, as instituições que compõem o
complexo exibicionário atuam na transferência de objetos e corpos de espaços
privados e fechados para arenas públicas onde se constituem em veículos para a
inscrição e divulgação de diferentes mensagens de poder para toda a sociedade.473
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O olhar passa a ser compreendido em sua dimensão participativa. A exposição ao


olhar garante a participação e a interação do homem moderno. Sob este ponto de
vista, as Exposições Universais, iniciadas na Londres em 1851, teriam atuado na
ordenação de objetos para a inspeção pública e, simultaneamente, na ordenação do
público que os inspeciona. A exibição da produção industrial oferecia
contrapartida à instrução de uma nova experiência visual.
Neste contexto, cabe chamar a atenção para o destaque dado à questão da
visualidade. No espaço das Exposições, as mercadorias e máquinas encontravam-
se organizadas de forma a serem vistas, “contempladas como ícones dos novos
tempos e do poder de criação e inventiva da indústria humana e não para serem
um mercado de compra ou intercâmbio desses mesmos produtos”.474 Apesar de se
tratarem de modelos bastante simples, na Exposição de Londres em 1851 (Figura
140), foram expostas praticamente todas as máquinas existentes, muitas em
operação, para a admiração do público. A gravura de C. T. Dolby (Figura 141)
mostra a máquina de dobrar envelopes desenvolvida por Edwin Hill and Warren

470
MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2001.
471
BENNETT, T. op. cit., p. 123.
472
Id.
473
Ibid. p. 124.
474
NEVES, Margarida de Souza. As vitrines do progresso. Rio de Janeiro: Centro de Ciências Sociais PUC-
Rio, 1986. (datilografado). p. 26.
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de la Rue e exibida na Exposição de Londres de 1851 para o encantamento dos


visitantes que podiam assistir o processo e ter acesso ao seu resultado: 2700
envelopes por hora. Até então os envelopes eram dobrados manualmente e uma
boa produção garantia apenas 2000 peças por dia.

Figura 140. Estandes de máquinas: motores Whitworth e


bomba centrifuga Appold. John Johnson Collection. Bodleian
Library. University of Oxford. Disponível em:
<http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition> (7/02/08).
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Figura 141. Máquina de envelopes no estande De la Rue’s


Stationery. John Johnson Collection. Bodleian Library.
University of Oxford. Disponível em:
<http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition> (7/02/08).

No texto original que acompanha a gravura do estande de máquinas lê-se:


“quanto mais podemos diminuir o trabalho do homem, que Deus pretendia como
seu castigo, mais próximos estamos de retirar a sua maldição, e mais nos
aproximamos da nossa perfeição original”. Esta passagem justifica, em parte a
admiração pela máquina, que aqui é retratada como salvadora. O deslumbramento
frente às máquinas acompanhou praticamente todas as Exposições realizadas. Na
Exposição Universal de 1889 em Paris, os olhares foram assombrados pela
O OLHAR INOCENTE É CEGO 224

aparente infinita variedade de modelos e aplicações. Nas palavras de um autor


contemporâneo:
Há rodas que giram tão rápido que nada mais se distingue de sua forma. O
batimento cadenciado das correias de transmissão não cansa os ouvidos, os olhos
têm mil coisas para ver; é o poema do ferro, desenrolando-se em estrofes feéricas.
E que variedade!475

Benjamin, ao descrever como as multidões passaram a conhecer o prazer a


partir do espetáculo com as Exposições Universais, observa como este
deslumbramento era voltado para a visualidade: “tudo olhar, nada tocar”.476 Sem
dúvida, há nesta idéia a evidência de uma nova constituição perceptiva onde o
sentido da visão é privilegiado e reverenciado como porta de entrada de uma nova
formulação social para a qual se buscava amplo apoio.
As Exposições Universais apresentam-se como um campo de formação da
cultura visual, seja na arquitetura – construída especialmente para o evento ou
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como parte de uma exibição específica - na ornamentação e no design dos


produtos expostos, na organização dos produtos exibidos, e, por fim, nas
discussões contemporâneas que acompanharam estas exibições caracterizando,
muitas vezes, a pedagogia de uma nova visualidade onde todos os elementos
anteriores mesclam-se em uma ampla formulação. Para Siegfried Giedion as
Exposições Universais aproximavam-se a Gesamtkunstwerke – obras de arte total:
Todas as regiões, e mesmo, em uma retrospectiva, todas as épocas. Da agricultura e
mineração, da indústria e das máquinas, mostradas em funcionamento, até as
matérias-primas e o material manufaturado, até a arte e o artesanato. Há nisso tudo
uma necessidade singular de síntese prematura, que é própria do século XIX
também em outros domínios – pensemos na obra de arte total.477

A comparação de Giedion parte da intensidade da nova experiência visual,


onde se combinam as maquinarias tecnológicas com a arte, os artefatos de guerra
com os produtos de moda e os negócios com o prazer e o entretenimento.478 Deste
modo, consideramos que as Exposições Universais iniciadas no século XIX

475
DUMAS, F. G. (org.); FOUCARD (red.). Revue de l’Exposition universelle de 1889. Paris: Motteroz/
Baschet, 1889. v. 1. p. 222. apud BARBUY, H. op. cit., p. 70. (grifo nosso)
476
BENJAMIN, W. Passagens... p. 236. [G 16,6].
477
GIEDION, Sigfried. Bauen in Frankreich. Leipzig e Berlim, 1928. p. 37. apud BENJAMIN, W.
Passagens... p. 211. [G 2,3].
478
BUCK-MORSS, Susan. Dialética do Olhar. Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002. p. 116.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 225

constituem um palco privilegiado para a observação da construção e pedagogia de


uma cultura visual a partir do processo de modernização do ocidente.

4.2. Diversão pedagógica ou pedagogia do entretenimento

O fato de compreendermos as Exposições Universais como difusores de


valores ou, ainda, como inculcadores simbólicos479 de uma cultura visual
moderna, permite-nos sugerir, em relação à cultura visual, a existência de um
“projeto pedagógico”, ou pelo menos, uma intenção instrucional por parte dos
expositores, homens de negócios e poderes públicos. Este pensamento busca
reforço na afirmação de Reberioux de que as exposições colocavam-se como uma
tentativa de fazer admitir a industrialização a uma sociedade majoritariamente
rural.480 Em outras palavras, buscava-se “educar” as massas em relação a um
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modelo de vida fundamentado na sociedade industrial e esta intenção encontrava-


se completamente baseada no estímulo a uma cultura visual nascente. Barbuy
observa que os organizadores e cronistas das Exposições Universais, em muitos
momentos, “referem-se a suas funções instrutivas”.481 As mostras específicas
sobre história do trabalho, história da habitação, técnicas de higiene e, também,
sobre as nações colonizadas, de fato, poderiam referir-se, respectivamente, à
história das técnicas de produção industrial e demonstrações das mais recentes
tecnologias, como o ferro na arquitetura, mas, também, à apresentação de modos
de vidas atrasados – dos colonizados, considerados atados à pré-modernidade –
como forma de estabelecer contraste e valorizar o homem moderno.
O princípio pedagógico das exposições era baseado no conceito de “expor
idéias para uma audiência ignorante em uma linguagem que ela pudesse entender
de modo a exercer influência sobre este público”.482 As primeiras Exposições
seguiam vários objetivos: aprimorar o gosto da classe média, apresentar opções de
melhoramento às manufaturas, e educar e moralizar a classe operária.483 Em 1874,

479
BOURDIEU, Pierre et PASSERON, J. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. p. 121. Os autores mencionam violência simbólica e inculcação em
contraponto à noção de um aprendizado intuitivo e ingênuo.
480
REBERIOUX, M. op. cit., p. 10.
481
BARBUY, H. op. cit., p. 54.
482
GREENHALGH, P. op. cit., 19.
483
Id.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 226

por exemplo, o guia oficial da Exposição de Londres afirmava que o objetivo das
exposições não era simplesmente atrair as massas, mas promover “a instrução do
público em arte, ciência e manufatura” através da exposição de objetos
selecionados.484 A preocupação com a educação, presente em todas as exposições,
apontava em diversas direções. De um lado, o caráter didático-pedagógico de
formar, instruir, levar ao novo, aproximar das descobertas técnicas e científicas e
incutir ideais de cidadania, trabalho e modernidade. De outro lado, surgia também
a preocupação com a habilidade técnica e o aprimoramento do profissional da
indústria. Em paralelo a este último ponto, buscava-se também o direcionamento
do gosto do público no sentido de um “refinamento”, assim como também dos
designers e dos demais envolvidos no processo industrial a partir da visualização
em termos comparativos com o que era produzido em todo o planeta.
O elemento educacional que apoiava a realização das Exposições favoreceu
a ocorrência de diversos congressos e conferências paralelas, algumas acadêmicas
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e outras direcionadas para a elaboração de propostas e sugestões de caráter


convencional e regulador. Já nas primeiras Exposições surgiram proposições
como o plano francês de um sistema geral de pesos e medidas, a discussão sobre
uma moeda universal, as sugestões para um esquema internacional de cores e uma
nomenclatura científico-tecnológica universal.485 Estas propostas evidenciam
sinais de uma globalização crescente e, de fato, algumas delas surtiram efeito anos
depois como, por exemplo, a implantação de um sistema de medidas, adotado em
1875 na Convenção Métrica Internacional.
A partir da Exposição Universal de 1878, realizada em Paris, os congressos
internacionais especializados passaram a ser considerados parte integrante das
Exposições. Em paralelo ao evento deste ano, realizaram-se 32 congressos que
tratavam de assuntos tão diversos como demografia, arquitetura, higiene,
homeopatia e propriedade industrial.486 Alguns anos depois, na Exposição
Universal de 1889 em Paris, os 69 congressos realizados reuniram 20.000
pessoas.487 Dentre estes, chama-nos a atenção a realização do Congresso
Internacional de Fotografia. O relatório e as atas deste encontro evidenciam os

484
London International Exhibition 1874. Official Guide (Illustrated). London, J. M. Johnsons and Sons,
1874. apud GREENHALGH, P. op. cit., p. 19.
485
PLUM, W. op. cit., p. 85.
486
SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte et RASMUSSEN, Anne. Les fastes du progrès. Le guide des
Expositions universelles 1851-1992. Paris: Flammarion, 1992. p. 100.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 227

esforços para aproximar a fotografia de bases cientificas a partir de discussões


relacionadas aos efeitos da luz, às questões relativas à propriedade dos negativos e
das reproduções e à uniformização da nomenclatura.488 Decisões tomadas neste
encontro levaram à supressão de alguns termos como “gliptografia” e “fototipia” e
à determinação do emprego do termo “foto”, por sua associação com a ação da
luz, aliada à terminação “grafia”. Entre estas duas palavras, deveria ser incluído o
vocábulo correspondente ao procedimento, o que resultava em nomes como
“fotocromatografia”.489 O esforço pela adoção de convenções em áreas de recente
desenvolvimento tecnológico, como é o caso da fotografia na Exposição de 1889,
sugere, além da visão de um mundo que se pretende globalizado, a compreensão
da utilização de novas tecnologias como um elemento fundamental e
indispensável na atualização do capital. Mas, acima de tudo, parece demonstrar a
necessidade de convenções e acordos simbólicos para o sucesso de implantação
desta tecnologia.
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Apesar das Exposições realizadas a partir de 1851 apresentarem um viés


instrutivo, este não era pensado de forma dissociada do entretenimento: a proposta
era “ensinar divertindo”.490 Ou seja, o aprendizado deveria ser naturalizado ou
estilizado de forma a ocultar as intenções instrutivas, que por sua vez
encontravam-se diretamente relacionadas às novas formulações produtivas. A
dualidade entre instrutivo e recreativo esteve em grande evidência na Exposição
de 1889. De acordo com Barbuy, comentava-se que a exposição parisiense
anterior, de 1878, havia sido excessivamente séria, de modo que, na de 1889, o
objetivo era “menos instruir os cientistas do que maravilhar os leigos”.491 O
aspecto de entretenimento é evidenciado por Benjamin, para quem o objetivo das
exposições era o divertimento das classes trabalhadoras.492
Ao longo do tempo, o espírito enciclopédico foi cedendo espaço ao lúdico e
ao espetáculo nas Exposições Universais. Pesavento questiona se estas
modificações refletiam a influência do público sobre os organizadores ou se os
empresários, homens de ciência e burocratas rendiam-se, “vencidos nos seus
propósitos pedagógicos e cientificistas, pela força irresistível da indústria do lazer,

487
Ibid., p. 117.
488
BARBUY, H. op. cit., p. 34.
489
Id. Cf menção ao relatório do Congresso.
490
Ibid., p. 54.
491
L’Exposition de Paris, 1889, v. 3/4:98. apud BARBUY, H. op. cit., 54.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 228

do lucro fácil da opereta e do parque de diversões”.493 Em nossa opinião,


dificilmente se poderá chegar a uma explicação consistente para os
desdobramentos e modificações que foram acontecendo no escopo das Exposições
Universais. Além do que, o espetáculo parece se encontrar na raiz das Exposições,
desde as primeiras mostras, assim como de outros eventos voltados para as
massas. O “lazer eminentemente didático” das Exposições é compatível com
outras formas urbanas que surgiram no mesmo período, como os parques públicos
e de diversões, museus e exposições de curiosidades.
Os laços de lazer e entretenimento que envolviam as Exposições não eram
isentos de crítica por parte dos contemporâneos que consideravam o principal
intuito do espaço a instrução: “este lado divertido e pueril, esta mistura de bazares,
de espetáculos e de barracas forâneas que não atraem a turba senão a desviando de
todo pensamento de estudo e que lhe dá uma sedução vulgar [...]”.494 Apesar
disso, diversas atrações voltadas para a pura diversão eram encontradas em
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paralelo às finalidades pedagógicas e de divulgação científica das Exposições. Na


Exposição Universal de Paris de 1867, havia os cafés-concerto e restaurantes que
serviam comidas típicas de várias partes do mundo com jovens garçonetes
vestidas com roupas tradicionais. Havia ainda uma rede de bateaux-mouches que
conduzia a passeios no Sena.495 O espaço para a diversão era principalmente um
espaço social, onde surgiam as oportunidades para ver e ser visto. As caricaturas
da época sugerem que entre os produtos expostos encontrava-se “variado número
de moças casadoiras, devidamente acompanhadas por uma conveniente ‘tia’ mais
idosa”.496
Embora as Exposições, assim como as vitrines dos grandes magasins,
encontrem-se diretamente relacionadas à busca por “novidades”, as primeiras,
como observa Buck-Morss, não eram uma meta financeira em si mesma. Assim, o
comércio de mercadorias era menos significativo do que o negócio de
entretenimento de massas497, ou, se preferirmos, da divulgação pedagógica de uma

492
BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do século XIX... p. 44.
493
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições universais. Espetáculos da Modernidade do século XIX. São
Paulo: Editora Hucitec, 1997. p. 178.
494
Le Correspondant. Paris, 25 jul. 1867, p. 621. apud PESAVENTO, S. op.cit., p. 129.
495
ALTWOOD, John. The Great Exhibitions. Londres, Studio Vista, s. d., p. 34. apud PESAVENTO, S. op.
cit., p. 129.
496
L’Illustration Française. Paris, 24 abr. 1867, p. 264. apud PESAVENTO, S. op. cit., p. 129.
497
BUCK-MORSS, Susan. Dialética do Olhar. Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002. p. 118.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 229

nova cultura visual. Além disso, abria-se espaço para a diversão como uma nova
espécie de consumo, fundamentada na visualidade. É neste contexto que se
compreende porque a organização de exposição de Nova York, de 1853, tenha
sido entregue a Phineas Barnum, que havia se tornado conhecido a partir de seus
shows de variedade e, principalmente, do circo.498 De fato, o entretenimento de
massas mostrou-se logo um grande negócio. A Torre Eiffel, em menos de um
ano, já havia pagado os seus custos de construção e começava a dar lucro.499 É
com esta moldura, formulada a partir da contradição entre o educacional e o
lúdico, que devemos analisar a participação das Exposições Universais na fixação
de uma cultura visual moderna construída ao longo do século XIX.

4.3. O Palácio de Cristal, uma Exposição para todas as nações


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A primeira Exposição Universal foi realizada em Londres em 1851 embora,


segundo Henry Cole, figura chave do empreendimento, esta idéia tivesse sido
sugerida por M. Buffet, então ministro do comércio francês.500 Cole, que havia
anteriormente trabalhado na organização das exposições nacionais inglesas,
obteve o apoio da Rainha Vitória e do Príncipe Albert para organizar The Great
Exhibition of the Works of Industry of All Nations, uma exposição de “todas as
nações”.
Uma comissão de construção foi constituída para organizar o evento e
estabeleceu os princípios que deveriam nortear o projeto do prédio da Exposição.
Ele deveria compreender em seu espaço algumas das maiores construções
existentes no mundo, ser resistente ao fogo e favorecer a entrada de luz a partir do
teto. Além disso, deveria poder ser construído em poucos meses com baixo custo
por metro quadrado. Aumentando as dificuldades existentes, considerou-se, ainda,
a necessidade da construção abrigar quatro grandes olmos existentes no Hyde
Park. Em certo sentido, como afirma Greenhalgh, o escopo da proposta

498
BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 224. [G 9,1].
499
Ibid. p. 220. [G 6a,2].
500
WAINWRIGHT, Clive. The making of the South Kensington Museum II. Collecting modern
manufactures: 1851 and the Great Exhibition. Journal of the History of Collections. 14. no. I (2002). London:
Oxford University Press. p. 26
O OLHAR INOCENTE É CEGO 230

praticamente definiu o tipo de prédio.501 De modo que não constituiu surpresa o


fato da maior parte das propostas apresentadas sugerir o uso de ferro e vidro. No
entanto, nenhuma das soluções foi considerada pelo comitê de construção que se
pôs a trabalhar sobre um projeto que não satisfazia às suas próprias condições.
Neste contexto, entra em cena Joseph Paxton. A história usualmente
apresenta Paxton como o jardineiro-chefe do duque de Devonshire, para quem
havia construído uma estufa de ferro e vidro. Embora provavelmente este cargo
significasse a sua sobrevivência, a simplicidade da condição parece destacar uma
genialidade solta no tempo e no espaço: como um jardineiro, ainda que chefe,
pode ser capaz de criar uma das mais importantes construções do século XIX? De
fato, Paxton, além de seu envolvimento com paisagismo, era um atento
observador dos avanços obtidos nas construções com ferro e vidro e um grande
conhecedor de estruturas e solucionador de problemas técnicos de arquitetura.502
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Figura 142. Desenhos originais do Palácio de Cristal por Figura 143. Levantando a viga mestra
Joseph Paxton. 11 June 1850. do corredor central. Construção do
Disponível em: The Victorian Web
<http://www.victorianweb.org/history/1851/8.html> (17/03/08)
Palácio de Cristal. The Illustrated
London News, 1851. Disponível em
<http://www.victorianweb.org/
history/1851/40.html> (17/03/08)

O projeto de Paxton, cujos esboços foram preservados (Figura 142), não se


encontrava entre os 233 apresentados à comissão de construção, mas obteve apoio
público após ser divulgado no Illustrated London News. Sua proposta gerou uma

501
GREENHALGH, P. op. cit., p. 150-151.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 231

impressão favorável pela segurança contra fogo, claridade, rapidez de montagem e


baixo custo.503 Como observa Walter Benjamin, “a primeira exposição universal e
a primeira construção monumental de vidro e ferro!”.504 De fato, a própria
construção do Palácio de Cristal representava o modo de produção do século XIX.
Ele foi pré-fabricado, produzido em partes padronizadas por fornecedores locais e
montado em tempo recorde. Embora a comissão de construção não tivesse
especificado claramente a existência temporária do prédio, a possibilidade de
desmontagem rápida ao final do evento era bem vista.505 A construção do Palácio
de Cristal foi acompanhada pelo público, principalmente através da imprensa. As
etapas eram ilustradas no The Illustrated London News: o levantamento da viga
mestra puxada por cavalos (Figura 143), o transepto (Figura 144), o telhado
(Figura 145), etc.
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Figura 144. Coluna do transepto. Construção do Figura 145. Levantando o telhado.


Palácio de Cristal. The Illustrated London News, Illustrated London News. 11 de dezembro
1851. Disponível em The Victorian Web de 1850. In: BRIGGS, Asa. Exhibiting the
<http://www.victorianweb.org/history/1851/39.html> Nation. History Today, January 2000. p. 18
(17/0308).

Em termos formais e construtivos, pode-se afirmar que o Palácio de Cristal


era absolutamente avançado para a sua época, tendo sido considerado um triunfo
da lógica principalmente pela sua completa independência de antigas tradições

502
The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material
by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 51-53.
503
BENJAMIN, W. Passagens... p. 213. [G 2a,8].
504
Ibid. p. 212. [G 2a,7].
505
A garantia de retirada do prédio ao final do evento, buscava atender às queixas e petições impetradas
contra a localização do evento em uma área exclusivamente residencial da cidade.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 232

arquitetônicas.506 Na visão da imprensa contemporânea, o enorme número de


unidades padronizadas507 deveria funcionar como um “mecanismo perfeito”508:
também a arquitetura já era vista um pouco como máquina. O princípio da pré-
fabricação, que tornou possível o empreendimento, foi capaz de produzir um novo
efeito estético, a partir da associação entre uniformidade e monumentalidade.
Além disso, o contraste entre a malha modular de vidro e ferro e a organicidade da
folhagem das árvores também era impactante. Um daguerreótipo realizado à
época da Exposição (Figura 146) sugere a dimensão do que poderia ser
experienciado pelos contemporâneos: a monumentalidade opressiva e contagiante
das formas modernas experenciadas pela primeira vez.
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Figura 146. Daguerreótipo do interior do Palácio de


Cristal. John J E Mayall, 1851. Disponível em:
<http://www.spartacus.schoolnet.co.uk/Dsmayall.htm> (2/09/07).

As novas tecnologias de impressão possibilitaram inúmeras representações


do pavilhão. Diversas aquarelas e reproduções litográficas do Palácio de Cristal
eram produzidas para representar a grandeza da construção (Figura 147 e Figura
148). Algumas reproduções, além de trazerem diferentes pontos de vista, utilizam
técnicas novas ou pouco empregadas anteriormente. É o caso da vista do Palácio

506
PEVSNER, Nicolaus. High Victorian Design. A study of the Exhibits of 1851. London: Architectural
Press, 1951. p. 15.
507
Segundo Pevsner, baseado em uma palestra dada por Paxton no inverno de 1850-1851, foram 6.024
colunas de 15 pés de comprimento, 3.000 vigas de sustentação das galerias, 1.245 vigas em ferro forjado e
1.073.760 pés quadrados de vidro. PEVSNER, N. op. cit., p. 15.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 233

de Cristal e seu entorno o Hyde Park (Figura 149). George Baxter, autor do
trabalho, obteve a patente do processo que utilizava tinta a óleo sobre blocos de
madeira ou metal em relevo. A seqüência de impressão era realizada sobre uma
base pré-gravada em metal ou litografia. No exemplo aqui reproduzido, foram
utilizados dez blocos de tinta. As reproduções eram vendidas em um estande na
própria Exposição.509

Figura 147. Vista geral do Palácio de Cristal.


Dickinson's comprehensive pictures of the Great
Exhibition of 1851: from the originals painted for
Figura 148. Exterior do Palácio de Cristal
H.R.H. Prince Albert / by Messrs Nash, Haghe,
com Kensington Gardens', 1851. Litografia
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and Roberts, R.A. London: Dickinson, Brothers,


de Augustus Butler a partir de desenho
1854.
Disponível em: National Museum of Science & Industry original. National Museum of Science & Industry
<http://www.ingenious.org.uk> (2/09/07) <http://www.ingenious.org.uk> (2/09/07)

Figura 149. The Great Exhibition. Impressão em óleo por G. Baxter. Disponível em:
<http://spencer.lib.ku.edu/exhibits/greatexhibition/fairy.htm> (17/03/08).

Outro exemplo interessante de material impresso é encontrado no rolo de


quase nove metros de comprimento, desenvolvido pela equipe do Illustrated
London News, com diversas cenas da Exposição (Figura 150). Ao contrário das
peças anteriores, as ilustrações do Grand Panorama of the Great Exhibition of All

508
Journal of Design and Manufactures, vol. 4, 1850/1851, p. 30 apud PEVSNER, N. op. cit., p. 15.
509
Crystal Palace http://spencer.lib.ku.edu/exhibits/greatexhibition/fairy.htm. Acesso em 18 de março de
2008 às 10:47h.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 234

Nations não se propunham a ser afixadas como um quadro, mas proporcionar uma
visão panorâmica do evento para quem se propusesse a desenrolar a peça.

Figura 150. "Grand Panorama of the Great Exhibition of All Nations". Illustrated London News.
1851. Friends of the Library Fund, Cooper-Hewitt, National Design Museum Library. Disponível
em: Smithsonian Institution Libraries. <http://www.sil.si.edu> (17/03/08)

Muitas reproduções do Palácio de Cristal eram vendidas como souvenirs,


embora o cartão postal viesse a surgir apenas em 1869, na Áustria.510 Diversos
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objetos recebiam estampas ou ilustrações de modo a servir a este mesmo fim,


como, por exemplo, lenços ilustrados (Figura 151), abridor de envelope (Figura
152) e caixa para charutos com imagem do Palácio de Cristal (Figura 153). A
diversidade e profusão deste tipo de artefato sinalizam dentro de uma moderna
cultura visual urbana, a reprodução de massa e os tímidos avanços do turismo.
Serviam também como comprovar a participação no evento (o que Barthes
posteriormente atribuiu à fotografia como um “estive lá”), fazendo este
acontecimento prolongar-se para além do seu tempo. Além disso, os souvenirs
forneciam evidência para o que Benjamin chama de “compensação pelo
desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade grande”511, podendo ser
interpretados como “dispositivos para registrar e conservar rastros”.512 Segundo
Benjamin, para romper a anonimidade da vida urbana, buscam-se rastros de
individualidade “entre quatro paredes”:
“É como se fosse questão de honra não deixar de se perder nos séculos, se não o
rastro dos seus dias na Terra, ao menos o dos seus artigos de consumo e acessórios.
Sem descanso, tira o molde de uma multidão de objetos; procura capas e estojos
para chinelos e relógios de bolso, para termômetros e porta-ovos, para talheres e
guarda-chuvas”.513

510
ALMEIDA, Cícero Antônio F. de, VASQUEZ, Pedro Karp. Selos postais do Brasil. São Paulo:
Metalivros, 2003. p. 30.
511
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charle Baudelaire... p. 43.
512
BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 261. [I 7,6].
513
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. Charle Baudelaire... p. 43.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 235

Figura 152. Abridor de envelopes. Lembrança da Great


Exhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library.
University of Oxford. Disponível em:
<http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition/> (21/07/07).

Figura 151. Lenço para souvenir, com


impressão de caricaturas de estrangeiros e
ingleses, dentre estes o Príncipe Albert e
Joseph Paxton. John Johnson Collection.
Bodleian Library. University of Oxford.
Disponível em:
<http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition/> Figura 153. Caixa para charutos. Lembrança da Great
(21/07/07). Exhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library.
University of Oxford. Disponível em:
<http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition/> (21/07/07).
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Figura 154. Navalha Sheffield Town. Produzida por Hawcroft & Sons para a Exposição de
1851, com o propósito de demonstrar a habilidade dos artesãos da companhia. O Palácio de
Cristal aparece reproduzido na lâmina. The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue,
London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. p. 222

O evento da Exposição de 1851 produziu forte impacto nos contemporâneos


e os impressos e souvenirs atuaram de forma simbólica na sua divulgação.
Estruturas similares foram construídas em feiras de Dublin, Nova York (Figura
155), Munique e Amsterdã e sua forma, durante muito tempo, serviu de inspiração
para artefatos de diversos tipos, como a gaiola que vemos reproduzida no folheto
publicitário (Figura 156).
O OLHAR INOCENTE É CEGO 236

Figura 155. Palácio de Cristal de Nova York para a


Exposição da Indústria de todas as Nações. Litografia, 1853.
Harry T. Peters 'America on Stone' Collection, National Figura 156. Folheto de fabricante
Museum of American History, Smithsonian Institution. de gaiolas. Evanion Collection of
Disponível em: <http://americanhistory.si.edu/petersprints> (2/09/07) Ephemera. Collect Britain. The
British Library. Disponível em:
<http://www.collectbritain.co.uk>
(17/03/08)
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A presença destes objetos e reproduções nas casas contemporâneas irradiava


efeitos bem longe do Palácio de Cristal. Benjamin cita um autor alemão
contemporâneo que apresenta a dimensão do sonho sugerido pelas novas
possibilidades da vida material:
“Eu mesmo me lembro de quando, em minha infância, a notícia do Palácio de
Cristal chegou até nós na Alemanha, como as reproduções eram pregadas nas
paredes de salas burguesas em longínquas cidades provincianas. Tudo aquilo que
imaginávamos de antigos contos de fadas com suas princesas em caixões de cristal,
com suas rainhas e elfos que habitavam casas de cristal, tudo isto se materializou...
e estas impressões duraram décadas”.514

Em meio à profusão de imagens produzidas para retratar a modernidade do


Palácio de Cristal há poucas evidências fotográficas. Esta tecnologia, criada em
1839, ainda não encontrava condições favoráveis de reprodução, sendo usada
muitas vezes apenas como base para a criação de uma gravura. Apesar disso,
apenas quatro anos depois do evento, em 1855, durante a remontagem do Palácio
de Cristal em Sydenham ao sul de Londres, o fotógrafo Philip Henry Delamotte
produziu importantes imagens que retratam não apenas a grandiosidade do prédio
de Paxton, mas também alguns detalhes surpreendentes. As fotos que acentuam as
perspectivas (Figura 157, Figura 158), ressaltam sua magnitude. A delicadeza dos

514
Julius Lessing, Das halbe Jahrhundert der Westausstellungen, Berlim, 1900, pp. 6-10 apud BENJAMIN,.
Passagens... p. 219-220. [G 6; G 6a,1].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 237

ornamentos utilizados indica um esmero dentro da simplicidade (Figura 159,


Figura 160)
As fotografias de Delamotte apresentam uma outra dimensão do Palácio de
Cristal, inclusive, em sua relação com a figura humana (Figura 159). Parece que
ao expor a remontagem do edifício, com vigas de ferro espalhadas pelo chão e as
estátuas ainda não posicionadas, as entranhas da construção moderna se fazem
evidentes – longe dos drapeados e dos objetos excessivamente ornamentados que
eram vistos na exibição.
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Figura 157. Galeria superior. Palácio de Cristal. Figura 158. Conjunto de esculturas. Palácio de
Philip Henry Delamotte, impressão fotográfica, Cristal. Philip Henry Delamotte, imp.
1855. The British Library Board. Disponível em: fotográfica, 1855. The British Library Board.
<http://www.collectbritain.co.uk/> (17/03/08) Disponível em: <http://www.collectbritain.co.uk/>
(17/03/08)

Figura 160. Detalhe da Figura


159

Figura 159. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte,


impressão fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em:
<http://www.collectbritain.co.uk/> (17/03/08)
O OLHAR INOCENTE É CEGO 238

As fotografias de Delamotte ressaltam a natureza proto-moderna de um dos


mais importantes prédios do século XIX (Figura 161), deixando evidente a sua
influência sobre as construções e eventos posteriores. Neste contexto, é
importante destacar que sua forma foi obtida a partir das necessidades
apresentadas e sem vínculos históricos com estilos anteriores. No entanto, nem
todos consideravam a construção uma maravilha do mundo moderno e o prédio
foi muito criticado em sua própria época. Profecias macabras espalhavam
ameaças: o vento poria o prédio abaixo, a vibração do movimento das pessoas
destruiria a construção e a expansão do ferro, com o calor do sol, aniquilaria o
empreendimento. O arquiteto e teórico Augustus Welby Northmore Pugin chamou
o Palácio de Cristal de “monstro de vidro”. Para Carlyle era uma “enorme bolha
de sabão” e para Ruskin uma “estrutura de pepino”515 ou ainda, apenas uma
“estufa”.516 A crítica maldosa de Ruskin carregava um elemento de verdade já que
Joseph Paxton havia anteriormente construído imensas estufas para o Duque de
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Devonshire. Entre os arquitetos que escreviam no Journal of Design and


Manufactures sobre o Palácio de Cristal em 1851, alguns se mostravam chocados
com o padrão de gosto demonstrado: “a ausência de qualquer princípio de design
ornamental é evidente” e “o gosto dos produtores não é educado”.517

Figura 161. O transepto central. Palácio de Cristal. Philip Henry


Delamotte, impressão fotográfica, 1855. The British Library Board.
Disponível em: <http://www.collectbritain.co.uk/> (17/03/08)

515
Apud PEVSNER, Nicolaus. Origens da arquitetura moderna e do design. São Paulo: Martins Fontes,
2001. p. 13.
516
http://spencer.lib.ku.edu/exhibits/greatexhibition/sydenham.htm. Acesso em 22/7/2002 às 9:45 h.
517
Apud PEVSNER, N. Origens... p. 11.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 239

O final do evento foi acompanhado por uma grande discussão em relação ao


que deveria ser feito com a estrutura em ferro e vidro. Alguns exaltavam a
permanência do prédio no local da Exposição. Autoridades americanas sugeriam
seu translado para os Estados Unidos e um arquiteto apresentou um projeto de
reaproveitamento do material em uma torre de mais de 300 metros, a ser
construída com o auxílio de elevadores a vapor. Em 1854, o Palácio de Cristal foi
reinaugurado em Sydenham como um espaço de eventos e concertos tendo sido
destruído por um incêndio em 1936. Ao tomar conhecimento do processo de
transferência do prédio, John Ruskin escreveu um artigo onde criticou a apoteose
do ferro e do vidro e o excesso de devoção à mecânica da construção. Para este
autor, embora estas obras mereçam admiração, não se trata do mesmo tipo de
admiração devotada à poesia e à arte.518

As críticas não afastaram o público que comparecia em massa garantindo o


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lucro do investimento. Em 1851, atraídas por passagens e acomodações


acessíveis, pessoas que nunca haviam antes viajado lotaram o Palácio de Cristal.
Todo mundo corria para ver a primeira Exposição Universal (Figura 162). Além
disso, como mencionamos anteriormente, algumas manufaturas estimulavam a
visita de seus empregados com o intuito pedagógico de ampliação dos
conhecimentos práticos relacionados aos processos e materiais industriais, mas,
também de forma sub-reptícia de “convencimento das virtudes do capitalismo”.519
As visitas eram incentivadas para todas as camadas da população. Para isso, de
um lado, se impuseram restrições – bebidas alcoólicas e animais eram proibidos –
e dias de preços especiais (shilling days). Os cartunistas dos jornais da época se
deliciavam em exibir a admiração de pessoas mais simples e de áreas rurais com o
mundo novo que se abria à sua frente (Figura 163).

518
RUSKIN, John. The opening of the Crystal Palace. In: SCHARF, Aaron et al. (ed.). Industrialisation and
Culture. 1830-1914. London: The Open University Press, 1970. p. 298.
519
PESAVENTO, S. op. cit., p. 120.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 240

Figura 162. All the World Going to See the Great Exhibition of 1851, George Cruikshank
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(1792-1878), 1851. Disponível em: <http://www.museumoflondon.org.uk/archive/exhibits> (3/06/07).

Figura 163. Agricultores na Exibição. In: The Illustrated


London News (19 July 1851): 101. Disponível em: The Victorian
Web <http://www.victorianweb.org/> (22/03/08)

Estima-se que seis milhões de pessoas passaram pela primeira Grande


Exposição de Londres ao longo de cinco meses e meio, embora apenas 1% destes
teriam vindo de outros países, predominantemente da França.520 As gravuras
abaixo ilustram esta enorme movimentação. Enquanto a Figura 164 mostra uma
rua de Londres apinhada de pessoas onde quase nada se vê além da multidão, a
Figura 165 apresenta uma Manchester deserta. Todo mundo estava indo ver a
O OLHAR INOCENTE É CEGO 241

grande exposição, como na gravura de George Cruikshank (Figura 162) onde um


aglomerado de pessoas caminha na direção do Palácio de Cristal. O público afluía
em massa às exposições para se maravilhar com as novidades do mundo dos bens:
“A Europa se desloca para ver mercadorias”, afirma Taine em 1855.521
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Figura 164. Londres em 1851. The Great Exhibition. John


Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford.
Disponível em: <http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition> (21/06/07)

Figura 165. Manchester em 1851. The Great Exhibition. John


Johnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford.
Disponível em: <http://www.bodley.ox.ac.uk/johnson/exhibition> (21/06/07)

520
Museum of London. World city. Did people visit the Great Exhibition?
http://www.museumoflondon.org.uk/archive/exhibits/worldcity/level4.asp?i=sm&shop=5&sub=95&baseqs=i
%3Dsm
521
Hippolyte Adolphe Taine (1828 - 1893), crítico e historiador francês em citação apresentada por
BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do século XIX... p. 43
O OLHAR INOCENTE É CEGO 242

Trinta e oito anos depois, uma outra construção em ferro pré-fabricado,


desta vez para a Exposição Universal de Paris em 1889, também atraiu a mesma
onda de críticas. Tratava-se do projeto da Torre Eiffel, um monumento -
arquitetônica e simbolicamente voltado para a racionalidade e o progresso
científico. Em 14 de fevereiro de 1887, o periódico Le Temps trouxe uma carta
aberta assinada por diversos artistas como Charles Gounod, Victorien Sardou,
Alexandre Dumas, François Coppée , Leconte de Lisle, Guy de Maupassant, Sully
Prudhomme, Eugène Guillaume, dentre outros.522 Este texto expressava a
indignação contra a Torre Eiffel que, segundo seus signatários, ignorava o gosto e
a história franceses em nome de uma “inútil e monstruosa Torre Eiffel”, já
batizada de “torre de Babel”. Os artistas procuravam alertar contra a construção de
uma “gigantesca e negra chaminé de usina” que viria a esmagar, com seu volume
bárbaro, a Notre-Dame, a Sainte-Chapelle, a Torre Saint-Jacques [...] “todos os
nossos monumentos humilhados, todas as nossas arquiteturas diminuídas”. Na
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mesma publicação, Gustave Eiffel apresentou sua defesa. Em primeiro lugar,


formalizou sua crença na beleza e harmonia das formas da sua construção para
levantar a questão de que, na medida em que este era um projeto desenvolvido por
engenheiros, acreditava-se que a beleza não seria uma preocupação. Eiffel rebatia
perguntando se “nas nossas construções, ao mesmo tempo em que fazemos o
sólido e o duradouro, também não nos esforçamos para fazê-las elegantes?”.523
Para Eiffel, o primeiro princípio estético da arquitetura trata da determinação de
suas linhas essenciais a partir da adequação à sua destinação, no caso da Torre,
sua resistência contra o vento. Eiffel prosseguia afirmando que uma vez pronta, a
Torre viria a ser a mais alta estrutura construída pelo homem e que, também por
isso, seria motivo de admiração e nunca de vergonha como sugeriam os artistas.
Para finalizar, Eiffel considera que era chegada a hora de mostrar que a França
não era apenas o país do divertimento, mas também dos engenheiros e
construtores que edificavam os monumentos da indústria moderna. O periódico
questiona quem tem razão: “artistas ou engenheiros”? Apesar de alguns
signatários terem se rendido posteriormente aos encantos da Torre, ainda pairam
algumas questões sobre esta disputa. A primeira pergunta que fazemos é se
realmente os artistas encontravam-se dissociados dos “avanços modernos”.

522
Le Temps. Paris, 14 février 1887.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 243

Haveria uma descontinuidade entre a modernização industrial e a cultura


moderna? Se respondermos afirmativamente a esta primeira questão, em que
medida, isto teria dificultado uma aproximação entre arte e indústria? Se
considerarmos que cabe aos artistas uma forma de “antecipação” da realidade
através da arte, esta divergência parece criar uma clivagem definitiva, uma
separação de caminhos entre arte e “arte aplicada” onde, mais tarde, alinhou-se o
design. Neste momento, no entanto, a presente questão sugere uma contradição da
modernidade que ressalta a discussão sobre os contrastes que acompanham a
formulação do olhar moderno, um dos motes da nossa tese. De um lado a
eficiência da máquina, do ferro, das formas limpas e precisas. De outro, a ebulição
de uma cultura fragmentada e efervescente, caótica e entrópica. O olhar moderno
se constrói através dos rápidos movimentos sacádicos entre estas duas
formulações.
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4.3.1. O Brasil nas festas da modernidade

Embora o Brasil tenha iniciado sua participação oficial nas Exposições


Universais apenas em 1862 na Exposição de Londres524, houve uma modesta
participação já na Primeira Exposição de 1851 com quatro expositores.525 Na
Exposição realizada em Paris, em 1855, independente da participação oficial, o
Brasil, ao lado do Paraguai e das Repúblicas do Prata, exibiu matérias-primas
minerais, vegetais e animais, em uma atuação incipiente onde, segundo um
membro da comissão brasileira encarregada de avaliar a exposição parisiense,
“teria sido mais acertado e prudente proibir-se que se mandasse um só produto
que lembrasse o nome do Brasil; ao menos não teríamos este desprazer e teríamos
brilhado pela ausência”.526
Ao receber uma comunicação da exposição de objetos da indústria que
aconteceria em Londres no ano de 1862, o Brasil iniciou negociações para a
participação no evento. Ficou decidido que se realizariam exposições regionais
preparatórias de uma exposição nacional, para só então selecionar os produtos que

523
Id.
524
PEREIRA, M. op. cit., p. 84.
525
SCHROEDER-GUDEHUS, B. op. cit., p. 60.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 244

representariam a nação brasileira em Londres.527 A morosidade das negociações e


os entraves burocráticos adiaram as exposições provinciais para novembro de
1861 e a Primeira Exposição Nacional aconteceu no mês seguinte no prédio da
Escola Central do Largo de São Francisco. O evento contou com a presença da
família real e a execução da Marcha da Indústria, composta especialmente pelo
maestro Antonio Carlos Gomes.528 Apesar disso, lamentou-se a “quase total
ausência de inventos” na Exposição Nacional do Rio de Janeiro, a primeira a ser
realizada em um país em desenvolvimento.
A idéia de levar o Brasil a participar das festas da modernização e do
progresso aparecia como uma possibilidade de, mesmo correndo o risco de expor
suas fraquezas às nações avançadas, atrair a atenção de investidores estrangeiros.
De forma contraditória, pairava um desejo de mudança e inovação, lado a lado
com a manutenção de um regime escravista voltado para a exportação de produtos
agrícolas. Pesavento observa que, na medida em que a agricultura era o principal
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fundamento da riqueza do país, era nela que a nação investia. A cultura moderna
pretendida era voltada para o desenvolvimento de base agrícola529, deste modo, a
busca pela renovação tecnológica voltava-se para métodos, fabricação de
instrumentos e máquinas para a agricultura. De fato, empreendimentos como a
agricultura e a criação de gado eram considerados indústrias, assim como as
atividades extrativas ou de coleta. À época, o sentido do termo indústria era amplo
e compreendia “toda e qualquer forma de atividade humana, independente do grau
de beneficiamento, do emprego de tecnologia ou das relações sociais
subjacentes”.530 Deste modo, no Brasil, o desejo de melhoramento dos “processos
industriais” desconsiderava questões como a divisão de tarefas e produção em
massa, levando em conta a produção de café e açúcar. Além disso, o fato do Brasil
contar com um reduzido mercado de mão-de-obra livre reforçou uma série de
diferenças em relação às Exposições européias como, por exemplo, a preocupação
em seduzir a elite local para “os novos caminhos que se abriam com o progresso
técnico e que reverteriam em vantagens econômicas concretas”.531 Em outras

526
Auxiliador da Indústria Nacional, n. 23, jul. 1855 – jan. 1856, p. 320. Nota 1. apud PESAVENTO, S. op.
cit., p. 97.
527
PESAVENTO, S. op. cit., p. 99.
528
Ibid., p. 100.
529
Ibid., p. 102.
530
Ibid., p. 105.
531
Ibid., p. 107.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 245

palavras, a participação do Brasil nas Exposições procurava, em primeiro lugar,


dirigir a atenção da elite local e, em segundo lugar, atrair a participação da
economia estrangeira. Das intenções educativas que permeavam as Exposições
Universais, não há sinais. No Brasil, a cultura moderna era ministrada apenas às
elites.
A Exposição Nacional do Rio de Janeiro de 1861 não cumpriu com sucesso
o seu papel de selecionar produtos para a Exposição londrina do ano seguinte. O
Rio Grande do Sul, por exemplo, não conseguiu enviar os seus produtos em
tempo hábil para a Exposição da Corte.532 Como observa Pesavanto, os nomes dos
expositores da Exposição Nacional não remetem à manufaturas, mas às estâncias
ou fazendas onde se realizavam trabalhos manuais sem fins lucrativos. De uma
maneira geral, o beneficiamento destes produtos era “obra do trabalho manual e
da virtualidade técnica de um artesão, integrado a uma atividade primária
dominante”.533 As raras exceções eram encontradas em alguma pequena
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manufatura de couro ou no processo de conservação de carne e, definitivamente,


não foram estes tímidos esforços que marcaram a participação do Brasil na
Londres de 1862. As máquinas descritas foram apresentadas em “estampas
photographicas” porque não havia espaço para acomodar os artefatos no local
destinado aos produtos do Brasil.534 O país se fez representar por objetos como
“um quadro feito a bico de agulha sobre o fundo de um prato de porcelana branca,
enfumaçado a luz de um candeeiro, feito e exposto pelo Sr. C. Schlapritz,
provincia de Pernambuco” (Figura 166). Uma ilustração do estande do Brasil em
Londres apresenta peles de animais, redes, chapéus e botas (Figura 167). Deste
modo, frente ao avanço técnico e científico exposto pelas nações européias, é
compreensível que ao Brasil coube a identificação com o “exótico”.

532
Ibid., p. 108.
533
Ibid., p. 109.
534
Catálogo dos productos nacionaes e industriaes remetidos para a Exposição Universal de Londres. In:
Recordações da Exposição Nacional de 1861. Rio de Janeiro, Confraria dos amigos do livro, 1977. p. 125
O OLHAR INOCENTE É CEGO 246

Figura 166. “Quadro feito a bico de agulha...”


Recordações da Exposição Nacional de 1861.
Reprodução do álbum de 1861. Rio de Janeiro: Figura 167. O Brasil na Exposição
Confraria dos Amigos do Livro, 1977. Internacional de Londres. Recordações da
Exposição Nacional de 1861. Reprodução do
álbum de 1861. Rio de Janeiro: Confraria dos
Amigos do Livro, 1977.

Em 1873 uma outra exposição nacional foi realizada com o mesmo objetivo
de selecionar produtos para a Exposição Universal, desta vez a ser realizada neste
mesmo ano em Viena. Este evento deixou claro que mesmo a Exposição Nacional
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não refletia a realidade do que era produzido no país. Se, por um lado, a pequena
indústria não encontrava estímulo para participar do evento, de outro lado, a maior
parte dos produtos expostos jamais era encontrada no mercado e pareciam ser
produzidos unicamente para a exposição.535 Neste contexto, as Exposições
Universais aparentam vincular-se mais ao imaginário da indústria do que à própria
indústria.
As excentricidades da participação do Brasil nas Exposições Universais
atingem seu ápice em 1889, na Exposição Universal de Paris. A comemoração dos
cem anos da Revolução Francesa e de seus valores de liberdade, igualdade e
fraternidade, levou o Império do Brasil, assim como as demais monarquias, à
recusa em uma participação oficial. No entanto, isso não excluiu uma participação
oficiosa com a iniciativa privada recebendo subsídios financeiros.536 Mas, isso não
significa que a decisão de levar o Brasil à Exposição tenha sido simples. Ao
contrário. De um lado, argumentava-se que esta participação seria um luxo
desnecessário, envolvendo grandes gastos para um evento que privilegiava
maquinarias, técnicas e produção fabril, setores incipientes no Brasil. De outro,

535
PESAVENTO, S. op. cit., p. 143.
536
GOMES, Angela de Castro. O 15 de novembro. In: GOMES, A. C.; PANDOLFI, D. C.; ALBERTI, V. A
(coord.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, CPDOC, 2002. p. 25.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 247

argumentos favoráveis defendiam a necessidade de fazer o país conhecido e


respeitado internacionalmente, de modo a atrair investimentos estrangeiros.
Desde suas primeiras participação nas primeiras Exposições, o parque fabril
brasileiro havia crescido e aperfeiçoado alguns de seus processos, aproximando o
país do que era considerada “civilização ocidental”.537 A participação do Brasil na
Exposição Universal de 1889 tinha a pretensão de evidenciar a existência de
“produtos nitidamente industriais, compatíveis com os fins do encontro
internacional, e que atestassem o desenvolvimento que o país atravessava”.538 Um
concurso para a escolha do pavilhão do Brasil optou por um edifico “nada exótico
na sua fachada exterior”539 de inspiração espanhola. O interior era de ferro
aparente e sobre ele assentava uma cúpula envidraçada com pintura interna em
ouro. O Brasil instalou-se um pouco depois da abertura da Exposição no Campo
de Marte, bem ao lado da Torre Eiffel. Esta proximidade, que em um primeiro
momento pareceu uma vantagem, acabou por tornar acanhado o pavilhão
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brasileiro diante da monumentalidade da Torre.540 Uma observação atenta da


planta do Campo de Marte incluída no álbum de fotografias da participação do
Brasil dedicado pela Comissão Geral a sua Alteza Imperial541, que hoje faz parte
da Coleção Iconográfica do Museu do Itamaraty no Rio de Janeiro, nos permitiu
algumas considerações. De fato, a área do pavilhão brasileiro encontra-se ao lado
do pilar oeste da Torre Eiffel. A área construída e que aparece na maior parte das
fotos e ilustrações (Figura 168) parece, na planta, ocupar menos de um terço do
tamanho dos pavilhões do México e da Argentina que se encontram nas
proximidades. Mas, há um pequeno detalhe. A área ocupada pelo Brasil expande-
se para além do prédio principal. Havia ainda um quiosque para degustação de
café ao lado de um lago artificial mantido a 30 graus para a exibição da exótica
vitória-régia e que acabou sendo o grande destaque da participação do Brasil. No
canto esquerdo da foto do lago (Figura 169) vemos alguns utensílios, como louças
e bules, provavelmente utilizados na degustação do café.

537
PESAVENTO, S. op. cit., p. 189.
538
Ibid., p. 191.
539
LES MERVEILLES DE L’EXPOSITON DE 1889. Paris: Librairie Illustrée, 1890. p. 483.
540
GOMES, A. op. cit., p. 26.
541
As fotografias aqui reproduzidas foram tomadas pela autora no Palácio do Itamaraty. As manchas de
envelhecimento das mesmas foram reproduzidas do mesmo modo que foram captadas. A autora optou por
não realizar nenhum tipo de restauro no material, tendo usado apenas um filtro que acentuasse o contraste. No
entanto, algumas fotografias que apresentavam partes muito comprometidas foram cortadas em um
enquadramento que favorecesse a visualização dos itens expostos.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 248

Figura 168. Pavilhão do Brasil no Campo de Marte e


Torre Eiffel. Exposição Universal de Pariz. 1889.
Exposição Brazileira. Álbum da Coleção
Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro.
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Figura 169. Vitória Régia. Pavilhão do Brasil. Exposição Universal de Pariz. 1889.
Exposição Brazileira. Álbum da Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de
Janeiro.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 249

Figura 170. Pavilhão de degustação de café. Exposição Universal de Pariz. 1889.


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Exposição Brazileira. Álbum da Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de


Janeiro.

Figura 171. Estante com compoteiras. Ao Figura 172. Vitrine com itens de perfumaria.
fundo, vitrine de mate e cestaria. Exposição À direita, moringas e cerâmicas. Exposição
Universal de Pariz. 1889... Universal de Pariz...
O OLHAR INOCENTE É CEGO 250

Figura 173. Vitrines e estantes com pedras e minerais. À direita, peles de


animais e estante com compoteiras. Exposição Universal de Pariz...
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Figura 174. Estante e vitrines com produtos químicos e Figura 175. Detalhe de estante
farmacêuticos. Exposição Universal de Pariz... com compoteiras. Exposição..

A presença do Brasil foi marcada por 838 expositores que receberam 579
prêmios.542 A grandeza territorial era exaltada com imponentes estátuas que
representavam os rios do Império, dispostas em volta do pavilhão. Uma pequena
galeria conduzia a uma coleção de orquídeas. Os três andares do prédio
apresentavam, além do café, borracha, cacau, madeiras de construção e tintura,
pedras minerais, prata e diamante, mate, frutas e cereais. Também se exibiam
algodão, esponjas, produtos farmacêuticos, móveis, quadros e aquarelas de
paisagens pitorescas do Brasil. Um enorme bloco de ferro e níquel em forma de

542
SCHROEDER-GUDEHUS, B. op. cit., p. 114.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 251

tartaruga reproduzia o meteorito Bendengó caído em território baiano no ano de


1784.
Havia um grande esforço para realçar as manufaturas. O tabaco era
apresentado em sua forma natural, mas também manufaturado. As fotografias
(Figura 171 à
Figura 175) mostram conservas alimentares, bebidas, perfumarias. Produtos
químicos e farmacêuticos ocupavam fileiras e fileiras de potes e garrafas
sugerindo uma produção em massa que, de fato, não existia. Algumas vitrines
mostram meias, chapéus, livros e artigos de papelaria. Mas, a Exposição brasileira
em 1889 não apresenta sinais de produtos pré-fabricados nem produzidos em
massa, como também não há sinal de algo que poderia receber o nome de
“design”. De uma maneira geral, a participação do Brasil aproxima-se mais do
exótico, do paradisíaco e do luxuriante do que de uma nação moderna, industrial e
progressista. Por outro lado, reflete uma cultura moderna que não se mostra
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homogênea, uridida por transformações lentas e indefinidas.


Neste contexto, a constituição de uma cultura visual moderna soa distante
do que é vivido no Brasil, situando-se de maneira bastante restrita a uma pequena
parcela da população. As implicações e conseqüências desta questão mereceriam
uma análise específica que foge ao escopo deste trabalho. No entanto, é
importante ressaltar que, apesar da modernização ainda desenvolver-se longe do
território brasileiro, é evidente a atração que produzia e que levou o Brasil a
participar destas Exposições, na busca por adquirir um pouco desta dimensão
moderna.

4.4. Arte e indústria – contradições

Com o objetivo de valorizar a indústria, a organização da Exposição de


Londres em 1851, estabeleceu uma série de regras em relação à participação da
arte no evento que aponta para mudanças na própria forma de se pensar a arte.
Buscava-se reforçar a ligação entre indústria e progresso e, deste modo, a arte
deveria apresentar compatibilidade com este ideal. As artes visuais incluídas na
mostra deveriam necessariamente apresentar um elemento cientifico, tecnológico
ou industrial. Havia restrição a produtos que não apresentassem conexão com
processos mecânicos. No contexto da Exposição de 1851, as obras de arte
O OLHAR INOCENTE É CEGO 252

deveriam demonstrar uma técnica particular ou o emprego de um novo material


que justificasse a sua participação. A pintura foi deliberadamente excluída da
mostra por não ser considerada “compatível com as preocupações do mundo
industrial”543, à exceção de uma ou outra que atendesse a esta restrição como a
aerial tinting, que corresponderia a um tipo de pintura realizada com aerógrafo ou
spray, e que não apresenta nenhum sinal de ação da mão humana.544
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Figura 176. Vista da nave leste, Palácio de Cristal, 1851. Aquarela e guache
sobre papel por John Absolon (1815-95). A estátua original em bronze, de
autoria de Eugène Simonis, encontra-se em frente ao Palácio Real de
Bruxelas. Ao pé da cópia em gesso, vê-se pequenas esculturas em mármore
do mesmo autor. Victoria and Albert Museum, London.
Disponível em: <http://www.vam.ac.uk> (12/4/08).

As seções devotadas à impressão e à gravura garantiam sua presença graças


às inovações técnicas. As mostras relacionadas à arquitetura eram poucas e
encontravam-se ligadas a estratégias de construção e ao emprego de materiais,
como nas habitações populares. As esculturas eram menos uma categoria própria
do que um meio de harmonização e decoração de prédios, praticamente
restringindo-se as que decoravam o espaço do Palácio de Cristal545 (Figura 176).
Em suma, a questão utilitária era tão proeminente em sua intenção de afastar as
chamadas “artes não-utilitárias” que o comitê da Exposição de Dublin, dois anos

543
PEREIRA, Margareth Campos da Silva. A participação do Brasil nas exposições universais. Projeto:
Revista brasileira de arquitetura, planejamento, desenho industrial, construção. n. 139, mar. 1991. p. 86.
544
The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York:
Dover Publications, 1970. p. 61.
545
Para uma visão geral das esculturas como elemento decorativo, ver daguerreótipo da Figura 146.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 253

depois, resolveu rever os critérios utilizados anteriormente. Considerando a


dificuldade de se negar que as belas artes poderiam ter seu próprio valor utilitário
e o prazer de olhar o que é “bonito em forma e cor, ainda que não essencial à mera
existência”, o comitê resolveu admitir trabalhos não utilitários, “no sentido
comum da palavra”.546
Apenas em 1855, na primeira Exposição Universal realizada em Paris é que
o papel das belas-artes foi modificado. Procurando, ao mesmo tempo, firmar-se
como um proeminente centro artístico e elevar a arte a uma posição de destaque,
Paris realizou uma gigantesca exposição de arte que reuniu mais de 5.000 obras de
arquitetura, escultura, gravura e pintura. O conceito de uma arte capaz de espelhar
e estimular os progressos no campo do bom gosto fundamentava-se na “conexão
próxima entre a melhoria do desenvolvimento das manufaturas e as belas
artes”.547 Para Greenhalgh, se a Grande Exibição de 1851 serviu de padrão para os
eventos seguintes, a partir de 1867 e até o início da Primeira Guerra, o modelo a
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ser seguido é parisiense548. As feiras americanas poderiam ser monumentais, mas,


definitivamente, era Paris quem ditava a moda. Foi a França que demoliu a noção
de um pavilhão gigantesco em favor de numerosos prédios, incluindo alguns
construídos pelos países participantes.
A construção do Palácio de Cristal representou um grande passo na direção
de uma revolução das formas: “o estilo construtivo contraposto ao estilo histórico
tornou-se a palavra de ordem do movimento moderno”.549 No entanto, as linhas
modernas observadas nas ilustrações e fotografias do Palácio de Cristal não
encontravam eco no que era visto em seu interior. O prédio e o conteúdo da
exibição parecem ter sido produzidos em períodos diferentes.
Em primeiro lugar é importante mencionar que, apesar da monumentalidade
sugerida pela modulação em ferro, os elementos construtivos, ao nível da visão,
encontravam-se muitas vezes excessivamente “decorados”, encobertos ou
disfarçados, como se buscassem ocultar a nudez da estrutura. A propósito de uma
série de aquarelas pintada por Joseph Nash para o Príncipe Albert, comenta
Walter Benjamin:

546
The Official Catalogue of the Great Industrial Exhibition, Dublin 1853. Dublin, 1853. apud
GREENHALGH, P. op. cit., p. 13
547
Reports on the Paris Universal Exhibition, 3 Volumes, presented to both Houses of Parliamente, 1856,
apud GREENHALGH, P. op. cit., p. 14
548
GREENHALGH, P. op. cit., p. 15
O OLHAR INOCENTE É CEGO 254

“Descobre-se com espanto nessas aquarelas como se estava empenhado em decorar


esse colossal espaço interior à maneira dos contos de fadas orientais, e como, ao
lado dos depósitos de mercadorias sob as arcadas, os gigantescos pavilhões eram
preenchidos por grupos monumentais de bronze, estátuas de mármore e
chafarizes”.550

As aquarelas que integram a publicação de 1854 sobre a Exposição de 1851


em Londres ratificam a grandeza e a suntuosidade do evento, mas também o seu
excesso de ornamento. Tomemos como exemplo, os drapeados que adornam o
conjunto da cama na seção austríaca (Figura 177) ou que criam um ambiente para
a exposição das estátuas (Figura 178). Em ambos os casos aparentam mesmo
saídos de contos de fadas. As dobras do tecido parecem servir para ocultar a frieza
da construção em ferro, criando um ambiente mais aconchegante. Na verdade, o
sem número de objetos seriam mais do que suficiente para constituir um ambiente
que se destacasse da geometria do ferro, como vemos em outra figura do mesmo
álbum que ilustra a principal avenida da Exposição. Neste exemplo há uma
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sugestão de contraste entre a regularidade dos elementos construtivos do prédio


(e sua perspectiva) com um grande número de objetos, incluindo uma fonte e um
refletor mecânico (Figura 179). A detalhada gravura em metal (Figura 181)
reproduz os mesmos artefatos a partir de um outro ângulo e de um ponto de vista
mais alto. É muito provável que esta figura tenha sido produzida tomando por
base uma imagem de natureza fotográfica como a destinada à visualização através
do estereoscópio (Figura 180).

Figura 177. Pavilhão austríaco. Ilustração do Figura 178. Pavilhão austríaco. Ilustração do
segundo volume de Dickinson's segundo volume de Dickinson's comprehensive
comprehensive pictures of the Great pictures of the Great Exhibition of 1851, com
Exhibition of 1851, com trablhados de Nash, trablhados de Nash, Haghe e Roberts RA, 1854.
Haghe e Roberts RA, 1854. In collection of: In collection of: Science Museum Library
Science Museum Library. Disponível em: Disponível em: <http://www.ingenious.org.uk> (2/09/07).
<http://www.ingenious.org.uk> (2/09/07).

549
BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 219. [G 6; G 6a, 1].
550
BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 212-213. [G 2a,7].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 255

Figura 179. Ilustração do Dickinson's Figura 180. Interior do Palácio de Cristal.


comprehensive pictures of the Great Exhibition Fotografia de um par de estereoscópio. Science
of 1851, com trablhados de Nash, Haghe e Museum/Science & Society Picture Library.
Roberts RA, 1854. Science Museum Library Disponível em: <http://www.ingenious.org.uk> (2/09/07).
Disponível em: <http://www.ingenious.org.uk> (2/09/07).
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Figura 181. The Great Exhibition, Main Avenue. In: History and description
of the Crystal Palace, and the Exhibition of the World's Industry in 1851.
Gravura em metal a partir de desenhos originais e daguerreótipos. London e
New York, John Tallis and Co., 1852. Disponível em:
<http://spencer.lib.ku.edu/exhibits/greatexhibition/exhibits.htm> (3/06/07).

A questão da dessemelhança visual, formal e de estilo entre o Palácio de


Cristal e os objetos exibidos não é algo que possa ser explicado de forma
conclusiva principalmente porque, em nosso ponto de vista, uma cultura visual
não estabelece uma equivalência temporal absoluta. Em se tratando de um período
marcado por grandes mudanças técnicas capazes de produzir variações de
natureza visual, o descompasso coloca-se como uma possibilidade concreta. Neste
contexto, Greenhalgh observa que as mudanças produzidas pelo processo de
O OLHAR INOCENTE É CEGO 256

modernização da indústria atingiram as diversas áreas da cultura, com predomínio


da arquitetura e do design, áreas onde nenhum fator do processo criativo
permaneceu constante. Sejam os meios de produção, os materiais utilizados na
manufatura, o número de objetos produzidos, a velocidade de produção ou o
público consumidor, todos estes fatores sofreram algum tipo de modificação neste
período.551 Segundo este autor, os poetas românticos ingleses podiam questionar
os valores da sociedade industrial ou dos avanços científicos utilizando o mesmo
tipo de prosa e versos que sempre utilizaram. Embora o conteúdo de sua arte tenha
se modificado, o mesmo não ocorreu com as premissas de sua criação. A poesia
pôde ser crítica sem ter que, ela própria, transformar-se. O designer não conta
com esta possibilidade. De acordo com Greenhalgh, os produtos industriais não
podem abarcar uma crítica sem, ao mesmo tempo, questionar o seu próprio
sentido de existência.552 Este é um paradoxo que acompanha o design desde o seu
surgimento no início do processo de industrialização.
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Além disso, há uma característica que diferencia enormemente o prédio dos


objetos. Como vimos, o Palácio de Cristal foi construído visando atender uma
série de requisitos e funções estabelecidas por homens ligados à cultura e à arte.
Neste sentido, foram utilizadas as mais avançadas tecnologias construtivas e a
crítica não influiu na sua realização. Em relação aos objetos exibidos, passava-se
algo muito diferente. Havia a expectativa de agradar o maior número de
consumidores, apesar dos objetos não se encontrarem expostos para a venda
direta. Neste contexto, podemos colocar, de um lado, os objetos e seu excesso de
ornamentos - aparentemente, adequado ao gosto do público, ou do que se imagina
ou imaginava conhecer dele – e de outro lado, a crítica da época em textos que
discutem utilidade, adequação de materiais, a relação entre design e ornamento e a
formação do bom gosto. Alguns destes textos mantêm-se ainda muito atuais e
podem colaborar no desdobramento contemporâneo de questões significativas
para a cultura visual, ampliando a questão da disparidade estética entre prédio e
Exposição.
Na Exposição de 1851, os objetos eram expostos em estandes, organizados
pelos próprios fabricantes de acordo com quatro categorias que refletiam o ciclo
de produção: matéria-prima, maquinaria e invenções mecânicas, manufaturas e,

551
GREENHALGH, P. op. cit., p. 142.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 257

por último, esculturas, modelos artísticos, mosaicos, esmaltes, etc. Os produtos


industriais eram exibidos tendo em vista a possibilidade de virem a influenciar o
gosto do público.553 Mas, de acordo com a opinião contemporânea de Richard
Redgrave, membro da Academia Real e, posteriormente, diretor do museu de
South Kensington554, os mais de 100.000 itens em exposição nem sempre
refletiam exatamente o que era produzido à época, na medida em que o objetivo
dos fabricantes era atrair atenção e prêmios.555 Por este motivo, muitos objetos
eram protótipos de demonstração e não se mostravam comercialmente viáveis,
enquanto muitos outros se propunham modelos de uma série que nem sempre
chegava a existir. Apesar disso, o conjunto destas peças participa da construção de
uma nova cultura visual, a partir da efervescência produtiva, em meados do século
XIX, das novas possibilidades dos materiais utilizados e das funções utilitárias,
estéticas e simbólicas ansiadas para estes objetos.
Neste contexto efervescente, os visitantes da Exposição eram apresentados a
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itens tão variados556 quanto um mobiliário de navios (cujas partes, em caso de


naufrágio, se converteriam automaticamente em um salva-vidas flutuante),
excêntricos como o “manequim expansível” (indicado para alfaiates e constituído
por 7000 peças interligadas que manipuladas reproduziriam as medidas exatas do
cliente ausente) e assustadores (ou vergonhosos) como a enorme seleção de
grilhões, algemas e correntes para pernas, geralmente exportada para países da
América do Sul.557 Havia também material impresso em grande quantidade, a
maior parte composta por livros ligados à religião e à espiritualidade, com cópias
em mais de cem idiomas. Acima de tudo, os visitantes eram confrontados com
artefatos adornados em ferro, relógios ornamentais, peças de lareira, objetos de
decoração, serviços de chá e de jantar, uma grande variedade de tecidos, peças em
couro e em vidro, móveis, cerâmicas, trenós, carruagens, instrumentos musicais,

552
Id.
553
REDGRAVE, Gilbert R. Manual of design. Compiled from the writings and addresses of Richard
Redgrave, R. A. London: Chapman and Hall, 1890. p. 6.
554
O Museu Victoria e Albert (VAM) foi fundado como Museu de South Kensington em 1852, abrigando
muitos dos objetos expostos na Exposição de 1851. É hoje considerado o maior museu de arte decorativa e
design do mundo.
555
REDGRAVE, G. op. cit., p. 7.
556
The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material
by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 59-60.
557
É interessante observar um aparente contraste entre a indústria e “missão civilizadora” inglesa no seu
posicionamento na luta contra a escravatura e pela abolição do comércio de escravos, demonstrado na
Exposição com a exibição de esculturas de escravos algemados. Cf. PLUM, W. op. cit., p. 135.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 258

jóias e o que mais se possa imaginar.558 O catálogo oficial ilustrado foi impresso
em três grossos volumes.
A maioria dos objetos observados no catálogo do Art Journal559 nos parece
excessivamente ornamentado e formalmente distante da construção em vidro e
ferro do Palácio de Cristal. Em alguns casos, a abundância de ornamentos e o
emprego de elementos da natureza (animais, flores e plantas) chegam a dificultar a
nossa apreensão visual do objeto, ainda mais se considerarmos que esta rápida
análise é feita a partir de gravuras da época.
O estilo no ornamento seria a expressão de certa individualidade e do gosto
de cada época ou nação, mesmo que sobre influência externa. Sob este ponto de
vista, o texto de Ralph Nicholson Wornum, “A Exposição como uma lição de
gosto”, que recebeu a premiação do Art-Journal de melhor ensaio sobre o evento,
coloca que, apesar das inúmeras variedades de estilo existentes, as características
principais permitiam estabelecer nove variações que influenciaram a civilização
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européia: três antigos (egípcio, grego e romano); três da Idade Média (bizantino,
560
sarraceno e gótico) e três modernos (renascentista, Cinquecento e Luís XIV) .
Na visão historicista de Wornum, um posicionamento comum à época e que
permaneceria praticamente inalterado até o final da Primeira Guerra, todos os
estilos existentes seriam uma cópia ou combinação destes descritos. Em sua
análise da Exposição de Londres de 1851, Wornum considera que não havia nada
novo em termos de “design ornamental” e estende suas considerações sobre a
inferioridade das peças inglesas – voltadas para a produção em escala –
principalmente em relação às francesas – mais luxuosas e, em geral, vistas como
exemplo a ser seguido. A não observância à utilidade do produto, o excesso de
detalhes e a irregularidade de execução também são listadas como itens
problemáticos.
Não temos a intenção de nos aprofundar sobre as discussões de estilo, no
entanto, optamos por reproduzir aqui algumas das peças, dentre as analisadas por
Wornum que se encontram no catálogo da Exposição, como forma de explicitar o
contraste dos objetos expostos às formas proto-modernas do Palácio de Cristal,

558
The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material
by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 61.
559
The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York:
Dover Publications, 1970.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 259

como mencionado anteriormente. Assim, observamos alguns móveis austríacos


que atraíram a atenção do público, dentre estes, uma estante em cujo dossel vemos
esculpido um grupo de Putti (Figura 182). Também são exemplos pertinentes o
candelabro em bronze (Figura 183), o espelho para toilette em prata maciça
(Figura 184), as porcelanas de Sèvres (Figura 185), as peças em vidro (Figura
186) e as rendas (Figura 187).
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Figura 182. Estante. Carl Keistler, Viena. The Crystal Palace


Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile,
reimpressão. New York: Dover Publications, 1970.

Figura 183. Candelabro em bronze.


Mr. Pott, Birmingham. The Crystal
Palace…
Figura 184. Espelho para toilette em
prata maciça. M. Morel. The Crystal
Palace…

560
WORNUM, Ralph Nicholson. The Exhibition as a Lesson in Taste. The Crystal Palace Exhibition Art
Journal Issue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. p. II***.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 260

Figura 185. Vaso de Figura 186. Copo


porcelana de de vidro. Mr. Figura 187. Renda. Mrs. Treadwin lacer-
Sèvres. The Crystal Conne, Londres. manufacturer, Exeter. Design Mr. C. P.
Palace… The Crystal Slocombe. The Crystal Palace…
Palace…

Preocupado com as questões relacionadas ao ornamento e a superioridade


relativa de cada uma das nações européias, Wornum talvez tenha deixado de
observar alguns itens descritos no catálogo como “novidade”, tais como as
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cadeiras giratórias produzidas pela American Chair Company de Nova York


(Figura 188). Também passou desapercebida a importância da mesa com pé de
madeira vergada criada pelo designer austríaco Michael Thonet (Figura 189). O
texto do catálogo do Art Journal detalha o caráter decorativo do tampo da mesa e
acrescenta que os pés foram dobrados a partir de uma peça sólida. Ninguém
pareceu atentar para a estrutura criada por Thonet e que iria revolucionar a
indústria de móveis, mantendo-se em evidência por muitas décadas.

Figura 188. Cadeira


giratória. American
Chair Company, Nova
York. The Crystal Figura 189. Mesa. Michael Thonet, Viena. The Crystal Palace…
Palace…
O OLHAR INOCENTE É CEGO 261

Nenhum dos diversos tipos de carruagens que constam do catálogo da


Exposição é comentado por Wornum, mas a legenda das figuras sugere algumas
observações interessantes. Sobre a carruagem americana (Figura 190), o catálogo
comenta que apesar de “nossos amigos americanos demonstrarem um aparente
desinteresse por pompa e ostentação, eles não são insensíveis ao luxo e ao
conforto.”561 Sobre um modelo de carruagem, um veículo inglês, que de fato é
“menos pomposo” que o americano, o catálogo o descreve como possuidor de
linhas elegantes, leve e de construção simples, livre de ornamentos e entalhes
desnecessários, além de apresentar manutenção barata e facilidade de limpeza.
Observados em conjunto, estes dois exemplos nos parecem apontar para a visão
que os europeus tinham sobre os americanos: práticos e, talvez, um pouco
rústicos.
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Figura 190. Carruagem. Mr. Clapp & Son, Boston, Estados Unidos.
The Crystal Palace…

Figura 191. Carruagem “Light Park Phaeton”. Mrs. H. & A.


Holmes, Derby, Reino Unido. The Crystal Palace…

O que chama a nossa atenção na análise tão elogiada de Wornum é o fato do


crítico, que deveria ter um olhar mais “afiado” do que a maioria dos visitantes,
não tenha atentado para novidades tão marcantes quanto foram a cadeira giratória
e os pés de mesa em madeira curvada de Thonet. Em relação a esta questão

561
The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York:
Dover Publications, 1970. p. 166.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 262

devemos primeiramente considerar as diferenças nos modos de olhar da época e o


nosso modo atual. É possível que hoje os móveis de escritório sejam mais comuns
do que eram no século XIX. Ou, há, ainda, a possibilidade que a grande discussão
da época, relacionada à ornamentação, tenha conduzido a observação do crítico,
“ocultando” estas peças. Estas possibilidades levantam a inexistência do olhar
inocente. Em qualquer contexto, o olhar se alimenta dos registros do ouvido e da
mente, da necessidade e dos preconceitos. Nada é visto em sua estrutura geral, isto
é, simplesmente moderna, mas sempre coberto por uma camada de seleções,
discriminações, análises e interpretações.

4.4.1. Gosto e bom gosto

Havia à época da Exposição Universal de 1851 uma discussão sobre a


questão do gosto e a possibilidade desta qualidade, ou pendor, poder ser
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aprendida. Neste contexto, Ralph Nicholson Wornum discute como as


manufaturas, presentes à Exposição, poderiam atuar no desenvolvimento do bom
gosto.562 Partindo da questão do ornamento, Wornum estabelece que este se
coloca sob o domínio da visualidade: “o ornamento é uma necessidade da mente
que encontra gratificação a partir do olhar”.
Em 1851, o bom gosto era discutido no seio da profusão de formas
exuberantemente decoradas. Para Greenhalgh, a inobservância a demandas de
natureza simbólica levou a equívocos em relação à compreensão da nova estética
industrial como uma simples questão de gosto, estabelecendo uma correlação
entre a produção mecânica e a feiúra das formas.563 Neste contexto, o bom gosto
era uma questão a ser estimulada, algo que deveria ser ensinado juntamente com a
maestria artesanal.564 Comentando a tendência observada na Exposição de 1851
para a utilização de ornamentos baseados em elementos naturalísticos, Richard
Redgrave chega a afirmar a importância de se ensinar o “modo correto de ver e de
utilizar as formas da natureza em representações”.565 O “modo correto” de ver
encontrava-se diretamente relacionado à simetria e à geometria encontradas na

562
WORNUM, R. op. cit., p. I***.
563
GREENHALGH, P. op. cit., p. 144.
564
REDGRAVE, G. op. cit., p. 17.
565
Ibid., p. 18.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 263

natureza e às restrições ao ornamento, exemplificadas pelos pequenos detalhes


observados na vida natural, como por exemplo, nos pontos salientes que criam
contraste com as folhagens.
Deste modo, para Redgrave, o propósito de cada objeto ou edifício deveria
ser sempre a primeira coisa a ser considerada: “a utilidade sempre precedendo o
ornamento”.566 Além disso, considera Redgrave, a sua época era a dos novos
materiais e processos para os quais tornava-se necessário um novo design – mais
consistente e apropriado para cada material.567 O crítico inglês procura deixar
claro que design e ornamento são coisas distintas. “Design” inclui construção e
ornamento, sendo que este último deve ser alcançado naturalmente a partir do
emprego apropriado de materiais e da decoração. “Design” relaciona-se com a
construção de um objeto para uso ou apreciação estética, compreendendo, deste
modo, também a ornamentação. “Ornamento” implica apenas na decoração de um
objeto construído anteriormente. Assim, o ornamento será sempre secundário. Do
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contrário, o objeto não seria um trabalho ornamentado, mas um mero


ornamento.568 Na compreensão desta diferenciação se encontraria o caminho para
o bom gosto.569
A discussão sobre o ornamento na indústria não se restringiu apenas ao
período da Exposição de 1851, mas estendeu-se até o final do século,
fundamentando o movimento Arts and Crafts no final do século XIX e, depois, já
no início do século XX, com o grito de guerra, “ornamento e crime”.570 Mas, há
um importante precedente anterior, geralmente relegado pelos estudos históricos:
o esetilo Biedermeier.
O Biedermeier floresceu nos países de língua alemã a partir de 1815, ano do
Congresso de Viena que pôs fim às guerras napoleônicas até 1848 e o início das
revoluções européias. Sua estética, que pode ser observada em móveis construídos
a partir 1818571, apresenta um ideal de beleza que valoriza a simplicidade e a
qualidade do material utilizado, realçado pela ausência de ornamentos. O

566
Ibid., p. 36.
567
Ibid., p. 34.
568
Ibid., p. 56.
569
REDGRAVE, Gilbert R. Manual of design. Compiled from the writings and addresses of Richard
Redgrave, R. A. London: Chapman and Hall, 1890. p. 38.
570
“Ornamento e crime” é um texto de 1908 escrito por Adolf Loos que considera o ornamento incompatível
com a evolução cultural. LOOS, Adolf. Ornamento e Crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004. pp. 223-234.
571
OTTOMEYER, H. ; ALBRECHT, K. A.; WINTERS, Laurie. Biedermeyer. The invention of simplicity.
Milwaukee, Vienna, Berlin: Hatje Cantz Publishers, 2006. p. 52
O OLHAR INOCENTE É CEGO 264

Biedermeier foi desenvolvido até 1848 em diversas outras áreas além do


mobiliário: desenho de superfície, pinturas, objetos em vidro, prata, porcelana e
cerâmica. Mas, enquanto as pinturas detalhadas de paisagens e de personagens
com rostos rosados não causam surpresa, os móveis, utensílios, padrões de tecido
e papéis de parede, parecem muito distante da idéia que se tem das formas da
primeira metade do século XIX, predominantemente do estilo Império e do que se
expôs no Palácio de Cristal. Onde foram parar o rebuscamento e o excesso de
detalhes que escondiam os veios da madeira? Como explicar a geometria e a
simplicidade das formas em objetos diversos como espelhos, cadeiras, sofás, bules
e talheres?
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Figura 193. Settee. Áustria, circa 1820. In:


OTTOMEYER, H., op. cit. p. 133.

Figura 192. Espelho. Viena, 1825. In:


OTTOMEYER, H., op. cit. p. 106 Figura 194. Caixas de prata. Áustria, circa
1803. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 235

A primeira utilização do termo aparece em 1855, quando já não se


produziam mais obras neste estilo. O termo “Biedermeier” tem origem em um
personagem ficcional de uma revista satírica de Munique, Weiland Gottlieb
Biedermaier. A expressão vem a ser uma corruptela do que pode ser traduzido
como “homem comum”: “Bieder” significa convencional e “Maier” ou “Meyer”
se encontram entre os sobrenomes comuns de língua alemã. É interessante
observar a sugestão depreciativa produzida por esta associação e que pode
explicar, em parte, a aura mítica que ligou este estilo à classe média ascendente
durante todo o século XX. No entanto, foi apenas no final do século XIX que o
termo “Biedermeier” passou a ser utilizado para nomear o estilo de décadas
passadas. Somente na década de 1980 é que surgiram estudos que contestavam a
O OLHAR INOCENTE É CEGO 265

noção de que a arte Biedermeier seria voltada para a classe média e, por isso,
realizada rapidamente e com baixo custo.572 Ao contrário, suas peças foram
encomendadas por membros da corte e da aristocracia e apresentam, na sua pureza
formal, uma simplicidade refinada. Segundo Ottomeyer, o culto da simplicidade
desenvolveu-se à época como princípio de beleza e em contraste ao estilo luxuoso
do século XVIII.573 Este ideal estético de refinamento marca também o momento
de ascensão de uma cultura ligada à domesticidade. Os espaços domésticos
começaram a ser vistos como lugar de refúgio e eixo da vida pessoal e familiar.
“O século XIX, como nenhum outro, tinha uma fixação pela moradia”.574 O
Biedermeier é um estilo voltado para a casa e o individualismo do lar em oposição
aos espaços coletivos ou públicos.
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Figura 196. Sofá. Viena, 1825-1830. In:


OTTOMEYER, H., op. cit. p. 136.

Figura 195. Pintura de Stephanie von Fahnenberg. Figura 197. Cadeira. Áustria, cerca de
Living Room de Alexander von Fahnenberg at 1820. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p.
Wilhelmstrasse 69. In: OTTOMEYER, H., op. cit. 128.
p. 155.

No entanto, a existência de uma classe média ascendente, crescentemente


voltada para o doméstico em oposição aos espaços coletivos ou públicos, não
representa uma prova de que o Biedermeier seja um estilo “da burguesia”. O fato
é que embora a burguesia vienense ganhasse força ao longo da primeira metade do
século XIX, a corte e a aristocracia continuavam a ditar o tom dominante na vida
cultural e social.575 A associação entre o estilo Biedermeier e a burguesia
ascendente é fruto provável da visão posterior dos valores burgueses. De fato,

572
Estes estudos foram realizados por Christian Witt-Dörring e Hans Ottomeyer, enquanto trabalhavam de
forma independente, respectivamente, em Viena e Munique. Cf. OTTOMEYER, H.op. cit. p. 37.
573
Ibid. p. 83
574
BENJAMIN, Walter. Passagens… p. 225. [I 4,4].
575
GODSEY, apud OTTOMEYER, H.op. cit. p. 62.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 266

refletem mudanças de valores no mundo aristocrático e sua busca pela separação


entre as esferas pública e privada. O estilo decorativo Império abriu espaço para a
simplicidade do Biedermeier na esfera privada. A evidência desta separação em
ambientes da aristocracia pode ser confirmada através de pinturas (Zimmerbilder)
que retratam quartos e outros ambientes domésticos a partir de 1820. A busca da
aristocracia por espaços domésticos, praticidade e informalidade familiar passa a
coincidir, a partir de determinado ponto, com a recém-enriquecida classe ligada ao
comércio. Vale ainda lembrar que recentes estudos apresentam provas de
encomendas realizadas pela aristocracia vienense, como por exemplo, o
Arquiduque Charles que por volta de 1822 encomendou ao jovem Josef
Danhauser a modernização de seu palácio.
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Figura 198. Padrões de cadeiras. Copenhagen, 1826. In: OTTOMEYER, H.,


op. cit. p. 143

Danhauser foi o mais importante designer e produtor de móveis no estilo


Biedermeier e sua fábrica, em Viena, chegou a contar com 350 empregados. A
empresa de Josef Danhauser obteve permissão para produzir móveis a partir de
1814 e, deste ano até 1830, os seus clientes eram das classes mais altas,
predominantemente membros da família imperial austríaca. Logo Danhauser
passou a produzir móveis e objetos segundo normas e padrões estandardizados, e
não mais apenas sob encomenda, seguindo o conceito de que a decoração é
geralmente completada ao longo de anos e que, por este motivo, os clientes
retornam para comprar peças suplementares. Deste modo, também a burguesia
passou a constituir sua clientela, adquirindo predominantemente móveis no estilo
Biedermeier. Ao lado da grande variedade de modelos, a fabricação das peças de
Danhauser era bem documentada, existindo cerca de 2500 desenhos técnicos
O OLHAR INOCENTE É CEGO 267

preservados, ordenados de acordo com o tipo de móvel, como em um catálogo.


Graças a estes desenhos, muitas formas do período puderam ser recuperadas.
A simplicidade das formas e a utilização de elementos geométricos,
característicos do Biedermeier praticamente desapareceram do design da Europa
Central após as três primeiras décadas do século XIX, para ressurgir na
modernidade de 1900. Mas, ao contrário do espírito dos modernos, o estilo
Biedermeier sempre esteve voltado para a sua própria época. A simplicidade
formal de sua linguagem dirigia-se à vida cotidiana e não a um modelo utópico de
mundo melhor, como sonhavam os modernos, e nem para o passado aristocrático,
como se colocava o estilo Império, seu predecessor e contemporâneo, considerado
como o representante do estilo decorativo oficial da época.
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Figura 200. Cadeira em Figura 201. Conjunto em estilo


estilo Biedermeier Biedermeier fabricado,
Figura 199. Cadeiras. Viena, fabricado, provavelmente provavelmente por Josef
1825-1835. In: por Josef Danhauser. Danhauser. Hofmobiliendepot.
OTTOMEYER, H., op. cit. p. Hofmobiliendepot. Möbel Möbel Museum Wien. Foto da
122 Museum Wien. Foto da autora. Arquivo pessoal.
autora. Arquivo pessoal.

Mas, se as formas encontradas no estilo Biedermeier podem ser


consideradas proto-modernas, foi somente com a modernidade vienense, na virada
do século XIX para o XX, que elas foram redescobertas.
Apesar de toda sua exuberância cultural, Viena recebia influência direta de
movimentos que aconteciam em outros pontos da Europa. O movimento inglês
Arts and Crafts exerceu forte ascendência através da sua dimensão moralizante
que enfatizava a questão da dignidade do indivíduo e do trabalho. Assim, sob a
exaltação de valores pré-industriais instaurou-se o desejo de eliminar a separação
de uma arte mais elevada e criativa das artes aplicadas, com o conseqüente resgate
dos métodos manuais na produção. A Secessão, fundada por dezenove artistas,
O OLHAR INOCENTE É CEGO 268

dentre eles Gustav Klimt, Koloman Moser e o arquiteto Josef Hoffman, encarava
como prioritária esta união das artes que, em última instância, mantinha a tradição
aristocrática e seu desejo por luxuosos objetos artesanais. Deste modo, observa-se
uma conexão seqüencial entre a Secessão e a Wiener Werkstätte (Oficinas de
Viena), fundada em 1903 por Josef Hoffmann e Koloman Moser, então
professores da Vienna Kunstgewerbeschule (Escola de Artes Aplicadas). A
companhia estabeleceu o padrão da nova arte vienense através da produção e
venda de modernos artigos têxteis, móveis e, eventualmente, roupas.576
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Figura 202. Fachada do prédio da Secessão, Figura 203. Escrivaninha.Viena,


projetado em 1898 por Josef Olbrich, com a cerca de 1850. In: OTTOMEYER,
inscrição Der Zeit ihre Kunst. Der Kunst ihre H., op. cit. p. 84.
Freiheit (“À época sua arte, à arte sua liberdade”).
Foto da autora. Arquivo pessoal.

Na Secessão e na Wiener Werkstätte, a renovação era perseguida através da


forma, e não de seu conteúdo ou função - de maneira diametralmente oposta ao
que era praticado pelos modernistas Adolf Loos e Otto Wagner.577 Para estes
arquitetos, o senso estético era definido pela função. Segundo Wagner, “o que não
é prático, não pode ser bonito”.578 Loos, que embora tenha sido atuante na
arquitetura vienense, obteve um maior reconhecimento através dos seus textos

576
HOUZE, Rebecca. From Wiener Kunst im Hause to the Wiener Werkstätte: Marketing Domesticity with
Fashionable Interior Design. In: Design Issues: Massachusetts Institute of Technology. Volume 18, Number 1
Winter 2002. p. 1.
577
OTTOMEYER, H. op. cit. p. 63
578
A frase completa, de 1894, é "O único ponto de partida possível para a criação é a vida moderna. Todas as
formas devem estar em harmonia com as novas exigências do nosso tempo. Nada que não seja prático poderá
ser belo”.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 269

reflexivos onde criticava acidamente o excesso de decoração do design vienense e


os produtos da Secessão. Um dos seus textos mais importantes, Ornamento e
Crime publicado em 1908, tornou-se um manifesto cultural do modernismo.
Apesar da rivalidade que apartava a obra destes designers, credita-se a eles a
primeira redescoberta do Biedermeier por volta de 1900, que veio a estabelecer
nas origens do ideal burguês de funcionalidade os princípios estéticos da
modernidade.579 Otto Wagner e seus alunos de então, dentre estes Josef Hoffmann
e Josef Olbrich, faziam uso do estilo Biedermeier por sua simplicidade formal e
linhas limpas, assim como sua associação com a naturalidade da vida doméstica.
De qualquer forma, o resgate do Biedemeier atendeu à busca por uma expressão
nacional (austríaca) com características próprias que a distanciasse dos Arts and
Crafts ingleses, cujos móveis foram ostensivamente apresentados na Exposição
Jubilar de 1898 em Viena.580
Nesta parte do trabalho observamos as contradições entre as formas proto-
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modernas da construção do Palácio de Cristal e os objetos excessivamente


ornamentados expostos em seu interior. A existência de estilos tão diferentes e a
variação na própria compreensão do sentido do “bom gosto” observada no século
XIX apontam para a coexistência de diversos modos de olhar em um mesmo
período.

4.4.2. Verdades e mentiras do valor e da aparência

A maior parte dos produtos apresentados na Exposição de 1851 carregava


um excesso de ornamento que, na opinião de Richard Redgrave, os fazia
assemelhar-se a bolos excessivamente decorados, não para serem consumidos,
mas para chamar a atenção dos consumidores.581 Aparentemente havia uma
questão simbólica que fazia com que a classe média e as classes trabalhadoras
dessem preferência aos produtos excessivamente decorados e coloridos por
considerarem serem estes representativos do gosto de uma camada superior. Para

http://www.museuhistoriconacional.com.br/mh-e-401.htm - acesso em 17/5/2006


579
A sugestão de que Loos, Moser e Hoffmann acreditaram ter descoberto o ideal burguês de funcionalidade
na simplicidade do estilo de quase um século atrás, é encontrada no texto introdutório do painel da exposição
“Biedermeier. The Invention of Simplicity”, realizada no Museu Albertina de Viena em 2007.
580
Ver a crítica de Loos à exposição realizada em homenagem aos 50 anos de governo do Imperador
Francisco José. LOOS, Adolf. Ornamento e crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004. p. 24-33.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 270

a indústria, o excesso de ornamento não era algo problemático, na medida em que


não implicava em aumento de custos. Se um conjunto de cutelaria demandava
meses de trabalho de um ourives, aumentando o custo de acordo com a
complexidade das peças, o oposto se passava com as peças moldadas pelo
processo da galvanoplastia.582 Neste caso, o custo não aumentava pelo excesso de
detalhes, ao contrário, poderia ser menor na medida em que os objetos decorados
utilizam menos matéria prima do que as peças lisas.
Esta avaliação em relação ao ornamento nos leva a rever com atenção o
conceito desenvolvido por Thorstein Veblen em 1899 no texto Pecuniary Canons
of Taste.583 Veblen aponta para uma ligação intrínseca entre a estética e o valor de
um objeto: quanto mais ostensivamente caro um produto possa parecer, ainda que
menos adaptado ao uso, mais ele teria a preferência dos consumidores. Ao
analisarmos o catálogo da Exposição Universal de Londres publicado pelo Art
Journal, observamos que todos os objetos reproduzidos estabelecem uma
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profunda associação simbólica com a aristocracia européia ao mesmo tempo em


que correspondem ao retrato da produção industrial da época. Em outras palavras,
embora a maioria dos objetos produzidos dentro do sistema industrial alcançasse
custos menores, o que se vendia era a aparência de produtos caros e rebuscados.
Até aqui, as evidências parecem ajustar-se ao pensamento de Veblen: as pessoas
dariam preferência aos objetos excessivamente decorados que em seu imaginário
corresponderiam ao que era utilizado pela aristocracia e, portanto, teriam
aparência de produtos caros. É importante destacar que a primazia seria dada pela
aparência de valor, que não necessariamente corresponderia ao valor real. A
questão complica-se quando Veblen sugere a valorização de pequenas
imperfeições como evidência de um objeto produzido artesanalmente. Como
vimos, o progresso técnico à época da Exposição de 1851 já permitia a produção
em massa de produtos com ornamentos extremamente detalhados, em um nível
que já não seria possível – devido ao alto custo – de forma artesanal. Acontece
que, muitos destes objetos produzidos industrialmente necessitavam de um
acabamento manual.584 Deste modo, o artesão continuava sendo incluído na

581
REDGRAVE, G. op. cit., p. 7.
582
GREENHALGH, P. op. cit., p. 143.
583
VEBLEN, Thorstein. The theory of the leisure class. New York: Penguin Books, [1899] 1994. p. 115-166.
584
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O OLHAR INOCENTE É CEGO 271

produção, embora de outra forma, não mais produzindo o objeto do início ao fim.
Neste contexto, as imperfeições do objeto produzido manualmente, de que fala
Veblen, além de não prestar-se como garantia de um produto totalmente artesanal,
parece mais corresponder aos desejos de uma cultura aristocrática que vinha sendo
acuada pela ascensão de uma nova cultura, a cultura moderna. Entenda-se aqui
que as aspirações aristocráticas não se referem exatamente aos desejos de galgar
uma determinada classe social, mas a uma condição simbólica que relaciona
gostos, anseios e padrões a um ideal almejado.
É no contexto deste jogo simbólico que se colocam questões relacionadas ao
emprego de materiais que, apesar de não serem exatamente novos, utilizavam uma
mecânica de produção capaz de alcançar resultados muito diferenciados. Dentre
os materiais identificados nos objetos da Exposição de 1851 encontram-se a guta-
percha, o papier-mâché e o próprio ferro.
A guta-percha é uma espécie de látex assemelhado à borracha, mas sem a
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sua elasticidade, obtida a partir da seiva da Isonandra Gutta, árvore nativa do


arquipélago malaio. Extremamente versátil, seu emprego se estendeu da
manufatura de recipientes e barcos a puxadores de porta, encadernação de livros e
elementos decorativos. Extremamente moldável com o calor, transforma-se em
um objeto rígido com o resfriamento, quando então pode receber diversos tipos de
acabamento. Deste modo, é capaz de reproduzir peças, simulando diferentes
materiais como madeira entalhada, ferro fundido e metal, a partir de moldes
obtidos por eletrotipia. Um objeto em guta-percha que simulasse a madeira
entalhada, usualmente, era muito mais barato do que a mesma peça em madeira.
Na Figura 204 vemos a gravura de um móvel exposto em 1851, um console
composto por mesa e espelho. A figura nos permite observar os detalhes
ornamentais criados com a guta-percha: na moldura uma composição de frutas,
flores e folhas, enquanto os painéis da mesa apresentam escudos antigos. No
entanto, a gravura não é capaz de demonstrar as características do material
utilizado como as fotografias de objetos produzidos no século XIX também em
guta-percha (Figura 205; Figura 206). Estas peças demonstram a plasticidade do
material, o detalhamento dos elementos decorativos em relevo e sua capacidade
de simular outros materiais, como também sua possibilidade reprodutiva: a partir
de um objeto original, podiam se produzir inúmeras outras cópias. Deste modo, à
época da Exposição de 1851, praticamente todos os ramos da indústria inglesa
O OLHAR INOCENTE É CEGO 272

haviam encontrado alguma utilidade para a guta-percha. O uso predatório e em


larga escala deste recurso natural quase o levou à extinção, inviabilizando a
utilização comercial em finais do século XIX.

Figura 205. C. Sharps 4 calibre 22, primeira


patente datada de 1859. O cabo é de gutta-
percha. Disponível em:
<http://www.neaca.com/Antique%20Arms%20and%2
0Armor.html> (11/04/08).
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Figura 204. Console com mesa e espelho. Gutta-


percha Company, Londres. The Crystal Palace
Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851.
Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Figura 206. Par de tinteiros em guta-percha.
Publications, 1970. p. 222. França, 1860-1880. Disponível em:
<http://antiqueshoppefl.com/archives/jsheluk/inkwells.
htm> (11/04/08).

Outro material que se mostra com destaque na Exposição de 1851 é o


papier-mâché, utilizado desde o século XVIII, mas que sofreu um grande impulso
a partir do emprego das prensas a vapor. Entre seus atributos, encontram-se a
robustez, durabilidade, versatilidade, extrema leveza e facilidade de limpeza. Sua
enorme plasticidade permitiu o emprego em inúmeros produtos e ornamentos
produzidos em massa com baixo custo. Assim como a guta-percha, era capaz de
simular outros materiais. Com o acabamento adequado, uma peça em papier-
mâché poderia sugerir madeira trabalhada, metal ou gesso. Um exemplo de
destaque do papier-mâché na Exposição de 1851 é a poltrona com o sugestivo
nome de Day Dreamer (Figura 207). A descrição da peça no catálogo oficial
exalta os significados simbólicos dos elementos decorativos: as figuras aladas
O OLHAR INOCENTE É CEGO 273

representam sonhos alegres; o duende Puck mostra-se adormecido abaixo do


braço da poltrona, enquanto a esperança é representada pela figura do sol na parte
de baixo do assento.585 Infelizmente, a reprodução em gravura é insuficiente para
que possamos imaginar uma peça de mobiliário neste material. Exemplos
contemporâneos reproduzidos fotograficamente são mais representativos das
características do papier-mâché, ilustrando a variedade de emprego e acabamento.
Na Figura 208 podemos ver os detalhes de relevo e pintura de uma cadeira que à
primeira vista poderia ser percebida como produzida em madeira, assim como a
caixa da Figura 210, um exemplo de item utilitário doméstico produzido em
grande escala com este material. Já o pote para folhas de chá (Figura 209)
aparenta-se à porcelana pintada. Em todos os exemplos observa-se um grande
apuro no acabamento, no brilho e na pintura. Todas as peças foram produzidas
pela manufatura Jennens & Bettridge de Birmingham que participou da Exposição
de 1851 com outros produtos além da poltrona Day Dreamer. A delicadeza do
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acabamento das peças nos permite compreender a sua exibição dentro de vitrines
no Palácio de Cristal. Na aquarela de Pidgeon (Figura 211), vemos uma vitrine
poligonal, no canto direito da imagem, que guarda objetos em papier-mâché da
manufatura Spiers & Son de Oxford. Esta forma de exibição confirma a idéia de
uma mostra “apenas para os olhos” onde o público não tinha a possibilidade de
tocar os objetos de uso diário, exibidos como obras de arte da indústria.

585
The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material
by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 28.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 274

Figura 208. Detalhe de cadeira em papier-


Figura 207. Day Dreamer. Poltrona em papier- mâché com pintura japonesa feita sobre
mâché. Design H. Fitz Cook. Manufatura Jennings madeira. Manufatura Jennens & Bettridge,
and Bettridge, Belgrave Square and Birmingham. Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850.
The Crystal Palace Exhibition Illustrated Victoria and Albert Museum, London.
Disponível em: <http://www.vam.ac.uk> (12/04/08).
Catalogue, London 1851. Fac-símile,
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reimpressão. New York: Dover Publications, 1970.


p. xi.

Figura 209. Pote para chá. Tea Caddy. Papier- Figura 210. Caixa para trabalhos manuais.
mâché. Manufatura Jennens & Bettridge, Papier-mâché. Manufatura Jennens & Bettridge,
Birmingham, Inglaterra. 1851. Victoria and Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850. Victoria and
Albert Museum, London. Disponível em: Albert Museum, London. Disponível em:
<http://www.vam.ac.uk> (12/04/08). <http://www.vam.ac.uk> (12/04/08).
O OLHAR INOCENTE É CEGO 275

Figura 211. Vista da nave oeste, interior do Palácio de Cristal, 1851.


Aquarela e guache sobre papel de Henry Clarke Pidgeon (1807-80).
Victoria and Albert Museum, London. Disponível em:
<http://www.vam.ac.uk> (12/04/08).
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A possibilidade de se obter de forma barata uma duplicata exata de um


objeto esmeradamente trabalhado em madeira assume ares de falsificação no
pensamento de John Ruskin. Para Ruskin é fundamental que qualquer trabalho
saiba extrair as peculiaridades do material escolhido. Em um texto de 1859,
Ruskin sugere que “quando não se desejam as qualidades da substância
empregada, deveria se empregar uma outra. [...] Se você não quer massa e solidez,
não utilize o mármore. Se você quer leveza, escolha a madeira. Se quiser
liberdade, use o gesso. Se quiser ductilidade, escolha o vidro. Não tente esculpir
penas, árvores, redes ou espuma em mármore. Antes, use-a para esculpir membros
brancos e peitos largos”.586 Mas, os tempos de meados do século sugeriam outros
caminhos e Ruskin reconhece que estes princípios, por ele apresentados, são
diretamente contrariados por “nós modernos”.587 De fato, o que parecia estar
acontecendo é que, com o surgimento de novos materiais e suas combinações,
novos conceitos de utilização de materiais iriam se impor sem limitações para a
inventividade.
A questão da simulação de um material por outro aparece em um texto de
Benjamin como uma característica dos primórdios da técnica:

586
RUSKIN, John. A economia política da arte. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. p. 126-127.
587
Id.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 276

“Cada industrial imitava o material e a forma do outro, imaginando ter realizado


um milagre de bom gosto se conseguisse fabricar xícaras de porcelana como se
feitas por um toneleiro, copos parecendo porcelana, jóias de ouro lembrando
correias de couro, mesas de ferro imitando vime etc. Nesta arena lançava-se
também o confeiteiro, esquecendo totalmente o domínio próprio e os critérios de
sua arte, e tentando ascender a escultor e arquiteto”. Jacob Falke, Geschichte des
modernen Geschmacks, p. 380. Essa falta de critérios advinha, em parte, da
abundância de procedimentos técnicos e de novos materiais com os quais fomos
presenteados da noite para o dia. À medida que se tentava adquirir uma
familiaridade mais profunda com eles, vieram a ocorrer desacertos e experimentos
malogrados. Por outro lado, essas tentativas são os testemunhos genuínos do
quanto a produção técnica em seus primórdios estava mergulhada em sonhos.
(Também a técnica, e não só a arquitetura, é em certas fases o testemunho de um
sonho coletivo.)”.588

A abundância de novas técnicas surgidas em um curto espaço de tempo


pode ter sido, como aponta Benjamin, responsável por alguns “desacertos”. No
entanto, não resta dúvida de que a espiral da técnica aliada à idéia de progresso,
constituiu-se na matéria prima dos mais diversos sonhos, principalmente o sonho
de uma vida melhor graças às novas possibilidades materiais distribuídas de forma
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mais ampla. Em relação à questão específica dos simulacros gerados pelos


diversos materiais não há como precisar a recepção do público, mas é possível
imaginar como pode ter sido intrigante o conhecimento de que a aparência de um
determinado material não correspondia, de fato, à sua verdade. Neste jogo, o
homem coloca-se como senhor, capaz de manipular o mundo e sua própria
percepção dos objetos à sua volta.

Algumas das tecnologias que, no século XIX, permitiam a simulação de um


material por outro, também ressaltam outra questão importante: a da
reprodutibilidade da obra de arte. Cópias de obras de arte e de esculturas eram
empregadas pelos incas no Peru, antes da chegada do europeu ao continente
americano (Figura 212). No entanto, os processos industriais trouxeram novas
possibilidades de reprodução de produtos e imagens em quantidades antes
impensadas. Utilizando a eletrotipia ou galvanotipia, modelos da natureza podiam
ser exatamente duplicados em um processo que se colocava para a escultura do
mesmo modo que a fotografia para a pintura. Trabalhos em madeira entalhada
podiam ser reproduzidos tornando-se “indistinguíveis” de peças entalhadas pela
ação humana e, ainda que se fizesse necessário o acabamento manual, soava mais

588
BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 191. [F 1a,2].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 277

interessante adquirir uma peça barata com detalhes produzidos industrialmente do


que uma peça desinteressante produzida artesanalmente e pelo mesmo valor.

Figura 212. Figura e molde em barro. Museu Nacional de


Antropologia, Arqueologia e História. Lima, Peru. Arquivo
Pessoal.

Deste modo, observa-se que a invenção da fotografia como técnica de


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reprodução de imagens não consistiu um caso isolado. Na verdade, a divulgação


de sua descoberta em 1839 deu-se em um momento onde diversas outras
invenções eram tornadas públicas, algumas para desaparecer, em seguida,
passando a constituir conhecimento básico para desenvolvimentos posteriores e,
deste modo, tornando-se obsoletas.
A idéia de que os processos de reprodução gráfica aproximavam a arte
utilitária do público é amplamente reforçada pela crescente tiragem dos jornais
ilustrados que no caso do Ilustrated London News alcançou 60.000 exemplares em
1850.589 John Ruskin, ao voltar-se para uma arte que se mostrassse edificante,
questionava em que medida a arte barata reproduzida em massa não estaria
criando apenas uma arte efêmera e descartável mas, também, uma sensibilidade
efêmera.590 Fazendo referência à divulgação de ilustrações em periódicos como o
Ilustrated London News, Ruskin afirma que um bom gravado em madeira por um
shilling vale mais do que doze gravados de má qualidade por um penny cada.
Além disso, para Ruskin, a quantidade era por si só uma objeção. Muitas coisas,
mesmo boas coisas, já seriam por si só uma forma de corrupção da percepção.

589
The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course material
by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 93.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 278

Muitas coisas de má qualidade seriam tanto pior. Neste sentido, Ruskin


discordava de que uma arte barata deveria ser posta ao alcance de todos591
embora, paradoxalmente, considerava que a arte não deveria ser mais uma
prerrogativa dos privilegiados.592 Para ele a arte não poderá ser excessivamente
barata, na medida em que “a quantidade de prazer que se pode receber de um
certo trabalho, depende da quantidade de energia mental que se pode depositar
sobre ele”.593 Com isso ele queria dizer que a nossa capacidade de apreciar uma
obra de arte diminuía na medida em que este prazer tivesse que ser compartilhado
por muitas obras, “fragmentos partidos de admirações”.594 Deste modo, até
mesmo uma boa obra de arte deixa de ser boa se ela tiver que ser usufruída sem
pausa, em excesso.
O posicionamento de Ruskin assume ares proféticos do debate sobre a
Indústria Cultural desenvolvido quase um século depois, quando Adorno e
Horkheimer propõem-se a expor a mitificação das massas afirmando que sob o
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poder do monopólio econômico, toda cultura de massa é idêntica na medida em


que se constitui fundamentalmente em um negócio.595 Deste modo, todo produto
cultural seria criado segundo um modo onde as cifras se sobrepõem ao social. A
cultura, transformada em objeto a ser consumido, acabaria por transformar o
consumidor em objeto – infantilizado, passivo e acrítico - caracterizando uma
forma autoritária e vertical de expansão da cultura.
Também Walter Benjamin abordou esta questão por outro viés em seu
conhecido texto A obra de arte na época sua reprodutibilidade técnica. Benjamin
considerava que a reprodução técnica levantava a possibilidade de democratização
na medida em que modificava a relação da massa com a arte. Discutindo a
recepção da pintura e do cinema, Benjamin considerava que o senso crítico era
favorecido pela “ligação direta e interna entre o prazer de ver e sentir, por um
lado, e a atitude do especialista, por outro”,596 desde que respeitadas as

590
RUSKIN, John. Lecture in Manchester, 1857. Apud The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art
and Industry, Open University A100 course material by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press,
1971. p. 93.
591
The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry…p. 93.
592
Ibid., p. 106.
593
Ibid., p. 93.
594
Ibid., p. 93.
595
ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1985. p. 114.
596
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas.
Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 187-188.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 279

especificidades técnicas. Benjamin, às vésperas da Segunda Guerra, considerava a


massa como a matriz da qual emana “toda uma atitude nova com relação à obra de
arte. A quantidade converteu-se em qualidade. O número substancialmente maior
de participantes produziu um novo modo de participação”.597
Outro lado da questão da reprodutibilidade que era colocada e igualmente,
ainda hoje se coloca, é o tema da divisão do trabalho. Os periódicos ilustrados,
como o Illustrated London News, eram verdadeiras fábricas de imagens. Isso
também não era exatamente novo, na medida em que Michelangelo na pintura da
Capela Sistina contou com o trabalho de diversos ajudantes. Mas, no caso das
gravuras produzidas no século XIX a divisão de trabalho levantava dúvidas em
relação à uniformidade de estilo do gravado. Na Inglaterra, a maioria dos
gravadores não assinava o seu trabalho, ao contrário do que acontecia na França, e
como uma única ilustração era dividida em diversos blocos de madeira, nem todos
tinham a noção do todo. No entanto, o fato de trabalharem juntos e de forma
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acelerada, compartilhando o mesmo ambiente cultural fazia com que um estilo


semelhante fosse mantido.
1835-1845: “Não podemos esquecer... que a produção em grande escala, que
ocorreu naquela época no setor das gravuras em madeira, conduziu-a muito
rapidamente a uma forma de produção industrial. Um dos gravadores de uma
fábrica se encarregava só das cabeças ou dos corpos; outro, dos menos habilidosos,
ou um dos aprendizes, fazia os acessórios, os cenários de fundo etc. Com tal
divisão de trabalho, não era possível alcançar uma uniformidade”. Eduard Fuchs,
Honoré Daumier: Holzschnitte1833-1870, Munique, 1918, p. 16.598

Nesta parte do capítulo em que analisamos como o modo de olhar moderno


serviu-se de uma pedagogia de divulgação, observamos duas importantes questões
paralelas que influenciaram diretamente a construção deste olhar: a produção em
massa e o trabalho visual de caráter coletivo. A divisão do trabalho, no caso da
produção de gravuras para a imprensa diária, indica uma forma sinedótica de
compreensão da execução da obra, na medida em que, ao trabalhar sobre
determinada parte, não se pode perder a “visualização” do todo. Estendendo este
raciocínio, podemos pensar que a compreensão na participação de um projeto
mais amplo, mostrava-se condição essencial para que a expressão visual
individual mantivesse coerência com o estilo particular da obra.

597
Ibid., p. 192.
598
BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 824. [i 1,8].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 280

4.5. Progresso, uma missão quase sagrada

Apesar do termo “universal” não constar no nome da primeira grande


Exposição, realizada em Londres em 1851, este conceito já se encontrava
presente. Distante da conotação geográfica, “que abarca toda a Terra” ou “que
advêm de todos”, a palavra “universal” deve ser compreendida a partir dos valores
que congregam os países portadores e exportadores dos significados de progresso,
certificando e consolidando a superioridade capitalista frente a outros povos e
nações. Deste modo, estabelece-se uma correspondência entre o conceito de
“progresso” e o termo “universal”. No contexto de uma concepção dogmática,
positivista e universalizante do mundo, a indústria e seus efeitos tornam-se chave
para o progresso e o desenvolvimento material. O termo progresso tomado
inicialmente a partir da definição de Baudelaire, “dominação progressiva da
matéria”599, associa-o diretamente à ostentação material evidenciada nas
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Exposições. Baudelaire, ao realizar a crítica de arte das obras exibidas na


Exposição Universal de 1855, considera grotesca a idéia de um progresso
crescente e teleológico, um “fanal obscuro”.600
Se uma nação concebe hoje a questão moral num sentido mais complexo do que o
entendia no século precedente, há progresso, isso é evidente. Se um artista produz
neste ano uma obra que manifesta mais saber ou força imaginativa do que
demonstrou no ano passado, certamente ele progrediu. Se os víveres hoje são mais
baratos e de melhor qualidade do que os de ontem, isso é um progresso
incontestável na ordem material. Mas, por favor, onde está a garantia de progresso
para o futuro?601

No século XIX, o progresso material evidencia a sugestão otimista de um


futuro melhor. Benjamin reproduz o pensamento de Wiertz publicado em 1870,
“por ocasião de uma Exposição Universal: O que de imediato surpreende não é o
que os homens fazem hoje, mas o que farão mais tarde”.602 Embora, como
questiona Baudelaire, não existam garantias quanto ao futuro, uma sucessão de
avanços tecnológicos se mostrava como evidência – inclusive visual – de
desenvolvimentos progressivos e sucessivos. Neste contexto, firmou-se uma

599
BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1995. p. 801.
600
BAUDELAIRE, Charles. Exposição Universal (1855). Belas-Artes. Poesia e prosa: volume único. Rio de
Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 775.
601
BAUDELAIRE, Charles. Exposição Universal (1855)... p. 775.
602
BENJAMIN, W. Passagens... p. 212. [G 2a, 4].
O OLHAR INOCENTE É CEGO 281

conexão direta entre o mundo industrial e a civilização ocidental, onde as


Exposições que apresentavam e divulgavam as novidades da produção industrial
eram compreendidas como cartão de visitas desta formulação. O período de 1851
a 1915 demarca uma fase em que as Exposições Universais mostram-se como
vitrines do binômio progresso-civilização.603
A abrangência dos itens expostos reforçava a pretensão “universal” das
exposições de englobar tudo o que se relacionasse à atividade humana,
apresentando “todo o universo, numa extensão do sentido enciclopédico do século
XVIII”.604 O cosmopolitismo iluminista articulava-se às ambições enciclopédicas
para estimular a freqüência às exposições. O público que comparecia a estes
eventos de culto ao progresso maravilhava-se com as novidades do mundo dos
bens. Não obstante, é provável que sentimentos conflitantes assomassem os
visitantes na alternância entre sensações de prazer e de fadiga, produzida pela
superestimulação sensorial. Neste contexto, é possível localizar nas Exposições
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evidências do primeiro grito do excesso de informação e de imagens que hoje


assombra a humanidade. Para Benjamin, a indústria do entretenimento refina e
multiplica as variedades de comportamento reativo das massas, preparando-o para
o adestramento da publicidade. Deste modo, fundamenta-se a ligação entre a
indústria publicitária e as Exposições.605
Desde a primeira, The Great Exhibition of the Works of Industry of All
Nations, as Exposições apresentavam-se revestidas “de uma missão quase
sagrada: dar oportunidade de congraçamento aos povos e estreitar os laços de
solidariedade das nações dentro dos novos tempos de progresso e civilização”.606
Este conceito apareceu no discurso do príncipe Albert que em 1849 anunciou o
evento. Albert acreditava que as Exposições poderiam contribuir para a unidade
dos povos - a grande finalidade da história. Na medida em que as distâncias entre
as nações estariam rapidamente encolhendo graças às invenções modernas,607 as
criações da arte e da indústria não seriam privilégio de uma nação, mas

603
NEVES, M. op. cit.
604
BARBUY, H. op. cit., p. 18.
605
BENJAMIN, Walter. Passagens... op. cit., p. 236. [G 16,7].
606
PESAVENTO, S. op. cit., p. 73.
607
The Exhibition of 1851. The Speech of H.R.H. The Prince Albert, K.G., F.R.S., at The Lord Mayor's
Banquet, in the City of London, October 1849. The Illustrated London News, 11 October 1849. [1849-10-11]
http://pages.zoom.co.uk/leveridge/albert.html acesso em 1 de fevereiro de 2008 às 21:19h.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 282

pertenciam ao mundo inteiro.608 Em seu discurso, o Príncipe também exaltou a


divisão do trabalho na produção, como um motor da civilização em expansão para
outros ramos.609 Ciência, indústria e arte seriam aliadas do homem - instrumento
divino - em sua conquista da natureza. A ciência descobre as leis que regem o
poder, o movimento e a transformação; a indústria as aplica à matéria prima crua
que a terra cede em abundância, mas que se torna valiosa apenas com o
conhecimento; a arte ensina-nos as leis imutáveis da beleza e da simetria, e com
elas dá forma às produções do homem.610 Neste contexto, estabelece-se, segundo
Werner Plum, uma das funções cumpridas pelas feiras mundiais, ou seja, sua
contribuição no sentido de intensificar a fé no aperfeiçoamento do homem e “na
meta final de uma civilização mundial unitária”.611
Aparentemente a idéia de união entre os povos apenas mascarava uma
rivalidade crescente, principalmente entre França e Inglaterra. A primeira, embora
não alcançando o mesmo patamar de desenvolvimento industrial, afirmava-se
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pelos artigos de luxo: “as porcelanas de Sèvres e Limoges, os tapetes de


Aubusson, as sedas de Lião, os perfumes e os trabalhos de ourivesaria”.612 A
Inglaterra, dizia-se, “prepara produtos para o consumo popular”.613 Esta crítica
talvez escondesse a morosidade da industrialização francesa que teria
permanecido mais relacionada à atividade manual.
Utilizando a noção de campo, criada por Bourdieu614, é possível analisar as
feiras universais como campos onde culturas artísticas e cientificas das principais
nações e culturas competiam pela validação e legitimação do padrão simbólico
dominante de progresso e modernidade. De fato, a unidade entre os povos
mostrava-se menos evidente do que a ascensão de um capital globalizado. Plum
observa que Marx e Engels consideraram a exposição de 1851 uma “prova
contundente do poder concentrado, com o qual a grande indústria moderna rompe
as barreiras nacionais e confunde cada vez mais as peculiaridades locais da

608
Le Livre des Expositions Universelles. 1851-1989. Paris, Ed. Des Arts Décoratifs/Herscher, 1983
(Journal”Récits et Témoignages, 1851, p. 17. apud PESAVENTO, S. op. cit., p. 73.
609
The Exhibition of 1851. The Speech of H.R.H. The Prince Albert, K.G., F.R.S., at The Lord Mayor's
Banquet, in the City of London, October 1849. The Illustrated London News, 11 October 1849. [1849-10-11]
http://pages.zoom.co.uk/leveridge/albert.html acesso em 1 de fevereiro de 2008 às 21:19h.
610
Id.
611
PLUM, W. op. cit., p. 61.
612
PESAVENTO, S. op. cit., p. 82.
613
PESAVENTO, S. op. cit., p. 83.
614
BOURDIEU, Pierre. Campo do Poder, Campo Intelectual e Habitus de Classe. A economia das trocas
simbólicas. São Paulo, Editora Perspectiva: 2004. p. 183-202.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 283

produção, as condições sociais, o caráter de cada povo em particular”.615 Para


Harvey, a organização de uma série de Exposições Mundiais celebrou o
“globalismo” 616, ao mesmo tempo em que fornecia um arcabouço no âmbito do
qual se poderia entender aquilo que Benjamin denomina “a fantasmagoria” do
mundo das mercadorias e da competição entre nações-Estado e sistemas
territoriais de produção.
Não há dúvida de que o maior objetivo da Exposição Mundial de Londres
era industrial e comercial, mas ela não pode simplesmente ser compreendida
como espaço para venda de produtos e intercâmbio de mercadorias.617 Um olhar
que se distancie deste posicionamento é sugerido pela historiadora Madeleine
Reberioux, em seu estudo sobre as Exposições, ao propor que se coloque
temporariamente “entre parênteses, a dimensão explicitamente econômica da
pesquisa”618 como forma de não perder de vista a dimensão cultural do trabalho.
Neste contexto, observamos, por exemplo, a atuação da publicidade gerada a
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partir do sucesso e dos prêmios obtidos. As premiações outorgadas por júris


internacionais conceituados constituíam-se em um incentivo decisivo para a
participação de empresários nas exposições. Além de aumentar o prestígio em
seus países de origem, também influíam na expansão das vendas. Em alguns
casos, a simples presença de produtos e máquinas nas feiras industriais e
exposições universais era parâmetro do sucesso destes artefatos. Já em 1862,
lemos no Traité theorique et pratique des moteurs à vapeurs que a importância
das locomotivas a vapor pode ser julgada pelo número de peças encontradas nas
exposições industriais e agrícolas.619 Uma medalha conquistada em uma
Exposição Universal representava, ainda no século XX, um sinal de
reconhecimento à qualidade do produto exibido620. Um conferencista na
Exposição parisiense de 1867 considerava que:
“Os livros, brochuras que tratam da questão da economia social são tirados em
milhões de exemplares e são pouco lidos. As idéias que terão publicidade na

615
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Werke, vol. 7. Berlim, 1969. p. 431. apud. PLUM, W. op. cit., p. 21.
616
HARVEY, D. op. cit., p. 240-241.
617
PLUM, W. op. cit., p. 65.
618
REBERIOUX, M. op. cit., p. 3.
619
AINÉ, Armengaud. Traité theorique et pratique des moteurs a vapeurs. Paris: A. Morel et Ge. Libraires,
1862. p. 111.
620
PLUM, W. op. cit., p. 91.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 284

exposição serão vistas por milhões de olhos, estudadas e comentadas por milhões
de inteligências”.621

De fato, mais do que espaço de exposição, as feiras eram santuários de culto


ao progresso ou, ainda, como concluiu Benjamin “lugares de peregrinação ao
fetiche da mercadoria”.622 Mais do que objetos, o que se expunha era a idéia de
uma sociedade industrial, chave do progresso material que podia encaminhar
grandes mudanças e o caminho da felicidade. É neste contexto que as Exposições
colocam o olhar com algo que pode ser aprendido. Elas atuaram diretamente na
“naturalização” do olhar moderno, na construção da cultura visual moderna,
contribuindo, ao mesmo tempo, para sua padronização e realimentação.

As Exposições sucederam-se por diversos países, sempre em busca de


superar a precedente em novidades ou em tamanho. A freqüência das exposições
levava os países participantes a construírem pavilhões sempre mais opulentos com
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um custo que poderia ser desastroso na ausência de um investimento paralelo em


publicidade. Após a Primeira Guerra, que abalou a fé no progresso da humanidade
e o próprio sentido das Exposições Universais, encontram-se evidências de abusos
políticos e comerciais e mesmo de boicotes deliberados a alguns eventos. Em
1928, um encontro em Paris estabeleceu parâmetros disciplinares relacionados à
forma e a freqüência das Exposições. Antes que se pudesse verificar o
cumprimento do acordo, o início da Segunda Guerra rompeu definitivamente com
as características das Exposições, substituídas por eventos menores, mais
especializados ou com menor projeção.

621
LAVOLÉE, C. Les expositions de l’industrie et l’exposition universelle de 1867. Paris, Hachette, 1867
(Conferences populaires faites à l’asile imperiale de Vincennes). p. 47. apud PESAVENTO, S. op. cit., p.
125.
622
BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do século XIX. <Exposé de 1935>. In: Passagens... p. 43.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 285

5.
Considerações finais

Neste trabalho buscamos compreender as transformações da cultura visual


contemporânea a partir de um olhar em direção ao passado, um olhar inspirado no
anjo da história de Walter Benjamin.623 A visão do Angelus Novus nos conduziu
indicando a direção como um radar, abrindo caminho na tempestade de novidades
oferecidas pelo progresso – as novas configurações materiais ou apenas as novas
embalagens com as quais o mesmo é reciclado e oferecido como novo ao olhar.
Ainda, de acordo com a visão que tem da história o anjo imaginado por Benjamin,
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nossa intenção não foi constituir uma cadeia de acontecimentos ou o traçado de


uma continuidade sobre os modos de olhar do início da Idade Moderna até os dias
atuais. O objetivo principal do nosso trabalho consistiu em “puxar um fio” da
história para com ele constituir o eixo da presente discussão. Um fio que nos
permitisse conduzir um olhar com os pés assentados sobre o presente, uma visão
histórica que nos fornecesse subsídios para avaliar a participação de modelos de
olhar anteriores. Recolhemos os elementos da história e o trouxemos para o
presente, como forma de reavivá-los, de fazê-los ocupar o espaço que lhes cabe
nas transformações do presente e de prepará-los para o diálogo com a cultura
visual contemporânea.
O momento atual traz em seu bojo uma enorme carga de excessos
tecnológicos e estímulos sensoriais em uma construção simbiônica, algumas vezes
percebida como ápice do projeto moderno, outras, compreendida como uma etapa
posterior a este empreendimento - o pós-moderno. A cultura visual moderna, de
um modo ou de outro, ainda se faz presente, até mesmo, na medida em que
procura apagar os traços de tudo o que veio antes, inclusive as marcas de sua
própria constituição moderna. Suprimir rastros da cultura é também apagar a
história e colocar-se frente a tudo que é novo. É neste contexto que, ao pensar o

623
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política.
São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 226.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 286

passado, o nosso objetivo específico é fornecer subsídios para a compreensão de


como a cultura visual do presente vem sendo construída - suas continuidades e
contradições. Este objetivo impõe-se de forma inequívoca ante a possibilidade de
deixar-se arrastar irresistivelmente para o futuro.
A cultura visual moderna não teria se construído sem que o olhar tivesse
sido precedido por uma racionalização, fundamentada na convenção da
perspectiva e divulgada pela invenção da gravura, como vimos no primeiro
capítulo deste estudo. O olho, a partir da Era Moderna, é transformado em um
instrumento que, em combinação com as funções racionais da mente, promete o
“conhecimento verdadeiro”. O olho torna-se uma ferramenta que deve ser
constantemente aperfeiçoada através do emprego de aparatos ópticos e
tecnológicos. Este conceito de aprimoramento em bases científicas permanece
atuante na prática das diversas profissões do século XXI - da medicina ao design.
A sociedade ocidental, desde a chamada “revolução industrial”, vem dando
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destaque às mudanças trazidas pelo avanço das novas tecnologias.


No segundo capítulo deste trabalho, vimos que a ascensão de um novo
paradigma tecnológico trouxe modificações nas dimensões tempo-espaço,
comprimindo distâncias, aproximando realidades, acelerando transformações, em
resumo, alterando os percursos de uma sociedade. Apesar disso, a tecnologia não
pode ser considerada como único critério de análise, mas como um critério de
importância. Embora seja equivocado admitir a influência da tecnologia como
fator preponderante no ambiente social, não se pode relevar a extensão de sua
atuação nas bases materiais da economia, da sociedade e da cultura. A nossa
consideração é que tecnologias podem atuar como um agente catalisador de
determinadas conseqüências, mas não chegam a caracterizar condição suficiente
de possibilidade para que estas transformações se realizem em qualquer sociedade
ou período. Além disso, há que estabelecer diferenças entre as influências diretas
e as indiretas, geradas pelas tecnologias. Como exemplos de influências diretas,
analisamos a ação das novas tecnologias de transporte e comunicação na
compressão tempo-espaço e no aumento exponencial de informações visuais. A
eletricidade também foi examinada como uma influência direta, mas de ação mais
lenta. As transformações urbanas que produziram a cidade moderna podem ser
apontadas como exemplo de influência indireta das novas tecnologias sobre o
O OLHAR INOCENTE É CEGO 287

olhar na medida em que podem ser compreendidas, em última instância, como


conseqüência dos novos processos de produção trazidos com a industrialização.
Neste trabalho, mostramos que, a partir da segunda metade do século XIX,
diversas tecnologias passaram a atuar na compressão das dimensões tempo-
espaço, articulando a construção de um novo modo de olhar. Este novo ambiente
tempo-espacial, acompanhado de modificações no tecido urbano e da
multiplicação exponencial de imagens e objetos, influiu na necessidade
permanente de produção do novo, do diferente, capaz de obter ressalto sobre a
profusão de fatos visuais. Neste contexto, a impossibilidade de existência de um
olhar inocente estabelece sua contrapartida na constante observação do novo.
Na medida em que, o passado forneceu a estrutura para a padronização e a
racionalização de um modo de olhar sobre o qual as novas tecnologias puderam
atuar na transformação da visualidade, cabe ao presente a realimentação deste
processo. Ao longo do terceiro e último capítulo do nosso trabalho, demonstramos
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este processo na análise das primeiras Exposições Universais. Estas Exposições


foram absolutas expressões da visualidade. A exibição de novos materiais,
tecnologias e produtos produziu um caleidoscópio visual capaz de estimular
alterações na experiência perceptiva. Atuaram reforçando a ascendência do
sentido visual na sociedade burguesa do século XIX, tendo como fundamento a
inculcação de um conceito de progresso intimamente relacionado à expansão da
visualidade.
A nossa pesquisa sugere que o olhar moderno foi construído sobre um tripé
formado pelas tecnologias modeladoras das relações tempo-espaço, pelas
convenções que contribuíram para a sua compreensão e naturalização e por uma
pedagogia que inculcou a abertura para o novo, de modo a garantir a perpetuação
deste modo de olhar.
O presente trabalho sugere a formulação de dois modelos ou dois momentos
construtores do olhar moderno. Diante desta consideração, ressaltamos que um
modelo, ou momento, não se esgota simplesmente, mas fornece os fundamentos
sobre os quais o novo modelo se constitui. A compreensão destes modelos em
separado tem a intenção de destacar o que subsiste de cada um no modo de olhar
contemporâneo. Assim, encontramos, de um lado, a racionalidade e a busca da
verdade que, por mais que tenha sido revisada e contestada nos ambientes
acadêmicos atuais, continua persistindo na manutenção de convenções que
O OLHAR INOCENTE É CEGO 288

favorecem a troca signica. De outro, a produção industrial e o mundo de


possibilidades materiais que é oferecido.
O primeiro modelo, o olhar ciclópico estudado no segundo capítulo,
preparou o olhar para a sociedade industrial, deu-lhe racionalidade e o estruturou
com convenções, como a perspectiva, de modo a favorecer um ambiente de
linguagem comum onde as representações podiam ser compartilhadas e
compreendidas. O segundo modelo, o olhar panorâmico, analisado no terceiro
capítulo, trata da adaptação do olhar às “mil coisas” para serem vistas, da reação
do olhar à profusão de objetos e imagens produzidos a partir da industrialização.
A nossa pesquisa sugere que, nesta etapa, o olhar teve que se tornar mais
abrangente. O relance foi inaugurado e, com ele, tornou-se possível “captar”,
ainda que de forma superficial, a pletora de formas que se oferecia. Em alguns
casos, verificamos tentativas de repartição das formas visuais em elementos
menores que permitissem visualização e interpretação. Neste contexto, o corpo foi
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dividido e arquivado na tentativa de retomar o controle social que existia


anteriormente, quando havia um único foco de visão.
O novo modo de olhar, construído no século XIX, buscou apoio na intenção,
nascida no seio da vida moderna e patrocinada por seus produtores, de
compartilhar este modelo de olhar. Não por bondade ou altruísmo, mas porque
este modelo requer um compartilhamento de signos, aspirações e crença no
progresso. Esta intenção pedagógica, que destacamos no capítulo quatro, na
análise das Exposições Universais, segue seu caminho na mídia de hoje, na
imprensa, na publicidade, nas novelas, no destaque de vida dos famosos, no lazer
e, mesmo, nas relações interpessoais que também se constroem sobre os
fundamentos de uma cultura visual.
A restrição da pesquisa a meados do século XIX mostrou-se uma escolha
adequada ao nosso objetivo de evidenciar a fundamentação de uma nova cultura
visual nascida sobre a égide do moderno e nos permitiu analisar os primeiros
momentos das transformações vividas pelo olhar. O século XIX fundou a ambição
da totalização técnica. Não se tratava apenas de uma questão de substituir o
trabalho do homem ou de fornecer-lhe melhores possibilidades de modificação do
seu ambiente: as máquinas alcançaram a condição admirável de semi-deuses,
colaborando para a realização de um espetáculo. Para Guy Debord que cunhou a
expressão “sociedade do espetáculo”, a sociedade baseada na indústria moderna é
O OLHAR INOCENTE É CEGO 289

fundamentalmente espetaculoísta, onde o “desenrolar é tudo”.624 Segundo o


autor, o espetáculo serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana
e não se trata simplesmente de um conjunto de imagens, “mas uma relação social
entre pessoas, mediada por imagens”.625 Apesar de Debord ter estipulado a década
de 1920 como o início da sociedade do espetáculo626, em nosso ponto de vista este
processo é anterior. Iniciou-se no século XIX, predominantemente na sua segunda
metade, quando têm início as Exposições Universais. As Exposições que se
pretendiam universais, dentre outras coisas, pela amplidão e variedade do que
costumavam mostrar, ofereciam um olhar para o futuro, uma visão de progresso
sobre o deslumbre que a tecnologia tinha a oferecer.
A profusão de imagens e objetos que passou a inundar a sociedade a partir
do século XIX, continua avançando. Vimos como os espaços vêem sendo
visualmente preenchidos. Cada olhar é disputado por alguma entidade que deseja
usar esta porta para imprimir uma marca em algum cérebro. É lugar comum
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afirmar que a sociedade atual é “a sociedade da imagem” como se a visualidade


há muito não viesse atuando de forma direta em sua construção. Com esta
afirmação não queremos levantar a bandeira de uma mera continuidade.
Acreditamos estar vivendo em um momento de transformações tão profundas e
tão fortemente ancoradas na visualidade como o foi a segunda metade do século
XIX. No entanto, é importante observar como a sociedade digital, das redes e do
ciberespaço freqüentemente pega de empréstimo suas principais características
das tecnologias que a modifica. Os instrumentos tecnológicos não são objetos
neutros. As tecnologias de comunicação e de produção de imagem trabalham
“naturalizando” o olhar.
Muitos dos estudos acadêmicos atuais partem essencialmente dos aparatos
tecnológicos do presente para tentar compreender as mudanças sociais que são
produzidas. Em nossa opinião, falta à maior parte destas pesquisas, a compreensão
de uma ação permanente de naturalização dos processos tecnológicos respaldados
por uma ideologia que, apesar das críticas em contrário, continua sendo alçada
para frente por uma expectativa de progresso.

624
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2004. p. 17.
625
Ibid., p. 14.
626
DEBORD, Guy. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo. Rio de
Janeiro: Contraponto Editora, 2004. p. 168-169.
O OLHAR INOCENTE É CEGO 290

As projeções das modificações futuras a partir das novas configurações


oferecidas pelas novas tecnologias vão rapidamente tornando-se tão obsoletas
quanto as próprias tecnologias. Estudos que evidenciam as influências das
tecnologias de comunicação e de produção de imagem sem contextualizá-las,
considerando apenas a absoluta novidade e o “nunca antes” experimentado
esgotam-se em si próprios. A velocidade do processo tecnológico ilude a visão
contemporânea do mesmo modo que os primeiros passageiros de trens, sufocados
pela sensação de velocidade, não conseguiam fixar o olhar no primeiro plano fora
de sua janela. Do mesmo modo que os nossos antepassados tiveram que aprender
a olhar para planos mais distantes, também temos que “recalibrar” o nosso ângulo
de visão para que possamos ter uma dimensão mais concreta das modificações
que estão sendo realizadas –de forma cada vez mais acelerada – em nossa
sociedade. A nosso ver, a compreensão da constituição dos modos de olhar
permite a percepção de uma nova realidade em formação e a explicitação das
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continuidades e contradições da experiência moderna em sua fase avançada. Neste


contexto, as contradições se mostram ainda no escopo da modernidade. De um
lado a eficiência da máquina, do ferro e das formas limpas, de outro, a ebulição de
uma cultura fragmentada e efervescente, caótica e entrópica. O olhar moderno se
constrói através dos rápidos movimentos sacádicos entre estas formulações
contraditórias.
Na complexidade da sociedade contemporânea, a cultura visual apresenta-se
como um instrumento chave para a compreensão das relações entre homem e
máquina. As relações entre produtores e consumidores merecem ser revistas.
Flanêurs e badauds confundem-se em seus novos papéis.
Não há dúvida de que este trabalho levanta algumas questões que não se
pretende resolver em seu escopo. A nossa pesquisa sugere que as novíssimas
tecnologias que encurtam ainda mais as distâncias, aumentam a velocidade das
comunicações e permitem novas formas de contato humano, dentre uma enorme
série de outras transformações, estão gerando um novo olhar, para além da
aceleração e de um novo feixe de respostas rápidas. A principal questão que se
coloca é em relação ao momento em que teremos a exata medida desta
transformação de forma a utilizá-la na formulação de novas possibilidades
estruturais. Um aprofundamento posterior nas continuidades e contradições que
constroem o olhar contemporâneo mostra-se, mais do que uma sugestão, uma
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urgência para a compreensão das diretrizes de atuação daqueles que operam


diretamente sobre esta capacidade perceptiva, como é o caso dos designers.
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6.
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