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Infâncias na creche
Corpo e memória nas práticas e nos discursos da Educação Infantil – um
estudo de caso em Belo Horizonte
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0015642/CA
Tese de Doutorado
Rio de janeiro
Março de 2004
JOSÉ ALFREDO OLIVEIRA DEBORTOLI
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo
Programa de Pós-graduação em Educação do Departamento de Educação do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Orientadora
PUC-RIO
Ficha catalográfica
Debortoli, José Alfredo Oliveira
[10], 231 f. ; 30 cm
CDD: 370
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Como é bom celebrar a vida com pessoas tão queridas, importantes e, sem hierarquia ou
sentimento de pudor, poder dizer muito obrigado!
À professora Zaia Brandão, por ter dividido momentos tão bons, pelos estudos em
Sociologia da Educação, pelas contribuições à pesquisa, pelo respeito e, sobretudo, pela
amizade.
À professora Tania Dauster, pelo seu olhar sempre criterioso e pela importância de suas
contribuições em diferentes momentos de minha formação.
À CAPES, pelo aporte financeiro necessário à realização da pesquisa, que quero traduzir
como um compromisso com o povo brasileiro, especialmente com a população
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Às amizades que trazem tempero único à minha vida. Como poderia falar de mim sem dizer
do Walter e da Ção; do Tatá, da Annamaria, da Mariana e do Lucca; do Wemerson, da
Meily, de Sarah e Clarisse; do Leo, da Aninha e do André; do Leonardo Jeber; dos queridos
parceiros Tadeu e Chico dos Bonecos; do Zé, da Tati, do Wagner; da Camila, da Eliene, do
Nei, do Ricardo e do Henrique; dentre tantos e imprescindíveis amigos.
Aos queridíssimos João e Walesca. Àqueles que abrem suas casas e dizem: “Venha sempre
que precisar!” Isso é coisa de irmão, e não tem paga. É para sempre. Além do mais, brincar
com o Filipe nas terças à noite foi uma delícia. Igualmente, agradeço ao Carlos e à Helena,
à Andréa, ao Guido e à Izadora. Minha casa também é de vocês.
À minha querida companheira Cristina, que me concede, dia após dia, o privilégio de
partilhar as coisas mais maravilhosas e saborosas da vida. Amo você.
Resumo
Debortoli, José Alfredo Oliveira; Kramer, Sonia. Infâncias na creche: corpo e
memória nas práticas e nos discursos da Educação Infantil: um estudo de caso em
Belo Horizonte. Rio de Janeiro, 2004. 231p. Tese de Doutorado. Departamento de
Educação, PUC-Rio.
Esta tese apresenta um estudo da infância marcado por processos de partilha das
relações sociais e produção da cultura. Propõe discutir a presença e a importância do
brincar e da brincadeira na formação humana de crianças de 0 a 6 anos, filhos e filhas de
famílias empobrecidas. Mediante a observação do cotidiano, pretendi conhecer processos
de institucionalização de uma Educação Infantil que acontece em uma creche comunitária
conveniada com a Prefeitura de Belo Horizonte. Foram analisados tempos, espaços e
relações pedagógicas que se expressam como uma “educação corporal”. Também foram
realizadas entrevistas individuais e coletivas, trazendo a fala das professoras para o centro
das relações de elaboração da pesquisa. Foram focalizados os lugares sociais e os discursos
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Palavras-chave
Educação; Infância; Corpo; Memória; Brincar; Educação Infantil; Formação de
Professores.
Résumé
Debortoli, José Alfredo Oliveira; Kramer, Sonia. Infâncias na creche: corpo e
memória nas práticas e nos discursos da Educação Infantil: um estudo de caso em Belo
Horizonte. Rio de Janeiro, 2004. 231p. Tese de Doutorado. Departamento de Educação,
PUC-Rio.
Cette thèse rend compte d’une étude sur l’enfance, marquée par des processus de
partage des rapports sociaux et par la production de culture. Elle propose de discuter
l’événement et l’importance du jouer et du jeux pour la formation humaine des enfants âgés
de 0 à 6 ans. Par le biais de l’observation du quotidien j’ai eu l’intention de connaître les
processus d’institutionalisation d’une éducation infantine mise en place dans une crèche
communautaire liée à la Mairie de Belo Horizonte. Les temps, les espaces et les rapports
pédagogiques qui s’expriment comme une “éducation corporelle. Des entretiens individuels
et collectifs ont été conduits en mettant la parole des enseignantes sur le centre des rapports
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pour l’élaboration de la recherche. On a mis l’accent sur les places sociales et sur les
discours conditionnant et matérialisant les sujets dans le processus de l’écriture d’une
histoire de l’éducation enfatine en soulignant dans ce sens le projet culturel qui, à Belo
Horizonte, constituant aussi la formation et la trajectoire des enfants et des enseignants. Cet
ouvrage met en relief une attention aux signifiés issus des expériences et de la narration
d’une histoire partagée en relevant l’importance d’assumer encore une fois les conditions
des sujets pour la production des pratiques, des théories, des instruments et des processus
d’appropriation et de déchifrage du monde. Les jeux, les arts, aussi que les pratiques
corporelles se sont montrés comme des connaissances contextualisées dans une culture
comtemporaine, porteuses des empreintes d’une institutionalisation des rapports et qui
ouvrent des brèches pour la médiation des expériences sociales en se révélant en tant que
dimension éthique et esthétique de l’humain, que temps-espace de l’ampliation des
possibilités de lire le monde et d’écrire une histoire collective.
Mots clefs
Éducation; Enfance; Corps; Mémoire; Éducation Enfantine; Formation des
Enseignants.
Sumário
Bibliografia 214
Anexos 229
Princípios para um diálogo de pesquisa com crianças
Olhar Sociológico da Infância
segundo os modos de apreensão das crianças como objeto, reconstruída por meio de
dispositivos institucionais, como a escola, a família e a justiça (QVORTRUP, 1995;
CORSARO, 1997).
Em oposição a essa concepção, surgem os primeiros elementos de uma
sociologia da infância, coincidindo com um movimento geral da sociologia que se
volta para os atores sociais. Em uma perspectiva tanto histórica quanto sociológica,
há uma tentativa de romper com a ausência das crianças na análise social. A partir da
década de 1980, a concepção de infância como categoria social é intensificada pela
busca de uma interseção mais consistente das disciplinas que contextualizam suas
produções no campo das ciências sociais, entre elas a sociologia da educação. Cada
vez mais, as crianças deixam de ser tomadas como objeto moldado pela moral e
autoridade dos adultos e instituições, afirmadas como parceiros com os quais é
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preciso dialogar. Essa noção remete a uma compreensão ampliada das experiências
de infância, envolvendo variáveis como classe social, gênero e pertencimento étnico.
Algumas questões permanecem abertas e precisam ser enfrentadas: como
apreender a infância como “categoria” e, ao mesmo tempo, afastar-se de uma visão
estritamente ideológica? Que metodologias possibilitariam alcançar melhor as
experiências das crianças? Como compreender “a infância” como uma categoria em
sentido amplo e genérico sem perder de vista o dramático quadro da infância sofrida e
outras diferentes expressões da infância? Em que circunstâncias as crianças são
produtos ou produtoras da cultura? Existe uma cultura específica da infância? Como
se constrói essa “cultura da infância”? Quais são as especificidades desse grupo
sociológico? Há, também, uma diversidade de quadros teóricos que afirmam
conhecimentos sobre as crianças.
Há na produção científica uma disparidade de posições: uns valorizam aquilo que ela
já é e que a faz ser uma criança, outros, pelo contrário, enfatizam o que lhe falta e o
que ela poderá vir a ser; uns insistem na importância da iniciação no mundo do
adulto, outros defendem a necessidade de proteção face a esse mundo. Uns encaram a
criança como agente dotado de competências e capacidades, outros realçam aquilo
que ela carece. (PINTO, 1997, p. 33)
1
Quando uso o conceito de representação, faço-o, como Dauster (2000, p. 49), com base em Chartier
(1990), associado a uma concepção de prática cultural e relacionado à construção e interpretação da
realidade. Supõe classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão da realidade como
categorias e correspondem a interesses e relações entre o que é dito e o lugar social daquele que o
profere.
4
29), enquanto a escola tem como sujeito o “aluno”, como objeto o “ensino” – nas
diferentes áreas – e realiza-se por meio da “aula”, a Educação Infantil tem como
objeto “as relações educativas” travadas em um “espaço de convívio coletivo”.
Afirma, ainda, que, enquanto o objeto do campo da Pedagogia define-se como o ato
pedagógico em determinada situação, no caso da Educação Infantil esse objeto
concretiza-se pelo contexto das relações educacionais pedagógicas, e não pela análise
de cada um dos fatores determinantes da educação.
Compreendo que esta noção não favorece o entendimento das relações
institucionais entre crianças e adultos, tampouco os processos de mediação,
apropriação e produção da cultura humana. Esta consideração se faz necessária uma
vez que, nesta tese, faço a opção de não operar com o conceito de “Pedagogia da
Infância ou da Educação Infantil”. Tenho observado a emergência de novas formas de
isolamento e especialização da infância, bem como o risco de recair em relações
espontaneístas e abstratas entre adultos e crianças, que reforçam uma menorização da
presença das crianças no contexto social, bem como enfraquece a importância e lugar
social dos adultos, nas relações com as crianças.
2
Reforço a importância da Anped, particularmente do GT Educação da Criança de 0 a 6, que, a partir
da década de 1980, diante da necessidade de um posicionamento dos movimentos políticos pré-
constituinte e, mais tarde, da LDB, buscou ampliar do debate teórico em torno de temas como as
crianças brasileiras, a formação profissional e as políticas públicas para a Educação Infantil.
6
crianças são temas que estão postos para os diferentes contextos e processos de
formação humana.
3
Como Geertz (1978, p. 15), defendo um conceito semiótico de cultura, que enreda os diferentes
atores sociais em uma complexa teia de significados; um sistema entrelaçado de signos que condiciona
ações e discursos, linguagens e modos de construção de mundo, interações sociais e relações de poder.
7
tempos atuais, por sua vez, introduziram novas circunstâncias e condições à vida e à
inserção social da infância, o que justifica outros olhares e atenção. Pinto e Sarmento
(1999, p. 10), tomando por referência a análise social de Giddens (1996), chamam
atenção para o fato de que a concepção de infância, a partir do século XX, encarnou
uma “reflexividade institucional”, que reconfigurou os modos dominantes de
interpretação da realidade, condicionando olhares, atitudes e práticas dos adultos com
relação às crianças. Em outras palavras, o conhecimento institucionalizado passou a
contribuir, de forma decisiva, para a produção da realidade social das crianças. A
construção simbólica de um estatuto social para a infância, inicialmente conformado
pelo e no discurso médico-psicológico, tendeu a ser pulverizado em variados
domínios de saberes, multiplicando as imagens sociais das crianças.4
São imagens contraditórias, e assim devem ser tomadas e percebidas. A
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expressão das crianças no espaço público, por mais ambígua que seja, possibilitou
outros discursos e olhares das crianças, trazendo a infância para a cena de discussão e
conquista de direitos sociais coletivos e subjetivos. Sabemos que essas imagens
também estão envolvidas em uma crescente institucionalização de um mercado
globalizado, no qual assistimos a uma infância fragmentada entre a produção e o
consumo, que, ao mesmo tempo que gera uma concepção de sujeito de direitos e
anuncia uma imagem de “criança-cidadão”, ganha visibilidade em novos
investimentos e relações de poder.
Entretanto, tal reflexão não pode nublar a importância do discurso da
cidadania da infância ou das crianças como sujeitos sociais, principalmente, quando
significado em um contexto social organizado, como no caso do final da década de
1980, que gerou um movimento de defesa de direitos das crianças em diferentes
campos de atuação social. Mesmo reconhecendo o agravamento das condições de
vida das crianças em diferentes domínios, o discurso da cidadania das crianças
apresenta o desafio de mudanças políticas e sociais que tensionem as formas de
inclusão social, de participação na produção da sociedade e suas instituições. A
visibilidade social das crianças como sujeitos de direitos escancara desigualdades
4
HENDRICK , 1994, apud PINTO e SARMENTO, 1999, p. 16.
8
sociais, submetendo nosso olhar a uma precariedade de relações que envolve adultos
e crianças (KRAMER, 2003, p. 58).
Apoiado nesse princípio, Sarmento (2001, p. 16) toma de empréstimo duas
categorias5 importantes à compreensão dos fenômenos expressos pela idéia de
infância. Se, por um lado, a idéia de infância se expressa de forma “hegemônica” no
contexto das sociedades industriais-capitalistas, demarcada em seus efeitos perversos,
por outro, de forma “contra-hegemônica”, expressa na difusão mundial de direitos,
abre caminhos para um outro tipo de inserção social das crianças, configurando outras
condições de expressão de sua dignidade. Este debate é imprescindível para a
consolidação de políticas sociais efetivas, bem como para a ressignificação da
produção de conhecimentos em outra ordem simbólica e histórica.
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5
SANTOS, 2002, p. 72. Neste texto são ressaltadas as categorias “globalização hegemônica” e
“globalização contra-hegemônica” para uma compreensão dialética da globalização como fenômeno
mundial.
9
das infâncias, das suas histórias, da infância do outro, da nossa própria infância?
Como afirma Larrosa (1989, p. 70-72), se, por um lado, a alteridade da infância não
significa que as crianças não possam ser apropriadas por nossos saberes, por nossas
práticas e por nossas instituições, e, como já ressaltado, foram apropriadas de muitas
maneiras e contextos, por outro lado, sabemos que a alteridade da infância é mais
radical, que resiste enigmática a nós, pesquisadores e instituições. Se devemos
continuar buscando nos aproximar das crianças é porque elas nos inquietam, desafiam
e desconstroem nossos saberes.
As respostas que buscamos dependem da capacidade de assumir
responsabilidades – nisto reside o princípio dessa relação política, ética e estética da
pesquisa e das relações sociais com as crianças – diante daquilo que as crianças irão
mostrar e daquilo que iremos conhecer. Dependem, também, da capacidade de
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6
Utilizo a noção de campo proposta por Bourdieu (1989, p. 69), na qual ele propõe descrever e definir
a forma específica de que se revestem os mecanismos e os conceitos mais gerais (capital, investimento,
ganho), para explicar a gênese social dos atos dos atores, das crenças que os sustentam, do jogo de
linguagem que aí se joga e das coisas materiais e simbólicas em jogo geradas no campo.
7
Existem pré-escolas que fazem parte da rede pública de Belo Horizonte. Todavia, as instituições
comunitárias, filantrópicas e familiares constituem a quase totalidade do atendimento à criança de 0 a 6
anos, sendo por isso representativas da política e da história da Educação Infantil neste município. São
atualmente 170 instituições conveniadas e 13 instituições públicas. No final de 2003, deu-se início à
construção de mais 9 creches públicas, uma em cada regional.
16
8
Sua primeira atribuição foi a regulamentação da Educação Infantil, que só se efetivou em 2000
(Resolução CME/BH, n. 01/2000).
20
9
DEBORTOLI, 1995.
21
professoras.
Não foi fácil chegar ao campo de pesquisa pela primeira vez, mesmo que o
espaço e o tempo de creches comunitárias não fossem uma novidade para mim.
Todos eram novos sujeitos, com belezas e estranhamentos: coordenadoras,
professoras, crianças e funcionárias. O contrário, de alguma forma, não parecia
recíproco. Já havia uma expectativa, pois diferentes representações haviam sido
construídas e circulavam de forma antecipada.
Desde o primeiro contato, pude perceber relativo acolhimento. Sentia que
esperavam que minha presença potencializasse coisas novas que pudessem, de
alguma maneira, contribuir para o fortalecimento do trabalho desenvolvido na creche
pelas professoras. Mas também emergia um certo incômodo, uma agitação diferente.
Que coisas poderiam ali ser desveladas? Qual a opinião sobre o trabalho ali
desenvolvido? Será que pode contribuir de alguma forma ou será que vem aqui só
para falar mal do trabalho e das professoras?
Percebia que não devia menosprezar a astúcia das pessoas, suas desconfianças
e leituras. Não há relação de confiança construída a priori apenas pelas informações
22
que se têm uns dos outros, muito menos em uma relação de pesquisa. Como
pesquisador, também estava ansioso. Queria conhecer o campo da pesquisa, encontrar
crianças e professoras, construir uma aproximação rica do ponto de vista da
metodologia da pesquisa. Como as professoras me receberiam? Como explicar minha
permanência naquele lugar, combinar a maneira como iria acompanhar as aulas,
tomar notas e observar o que acontecia, compreender as relações, agora, com esse
novo ingrediente: minha presença?
No meu primeiro dia na creche, não me encontrei com as professoras. Cheguei
com a representante do CEI – Barreiro, responsável pelo acompanhamento
pedagógico daquela creche e fui diretamente para a sala da coordenação, que fica
logo na entrada. A primeira impressão da creche foi agradável. Parecia uma
construção feita para ser uma creche, o que não acontece com grande parte das
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instituições comunitárias. Na maioria das vezes, são construções precárias, com áreas
externas restritas a pequenos corredores ou residências adaptadas para o atendimento
das crianças. Desde a entrada, ia percebendo a presença de signos da infância nas
paredes e portas das salas. Além de desenhos e personagens de revista em quadrinhos
(que dão nomes às turmas da creche), o chão todo colorido, trabalhos das crianças
pregados nas parede pareciam anunciar uma concepção de criança e infância que
circulava naquele espaço. Expectativas também vão emergindo no imaginário do
pesquisador.
O primeiro contato foi com as coordenadoras Valéria e Gilce.10 Fiquei
incomodado. As professoras me viam e sabiam o que eu estava fazendo ali, que
estava falando coisas que diziam respeito a elas. Percebi também por parte delas um
misto de incômodo e curiosidade. As crianças faziam seus barulhos costumeiros.
Valéria achou melhor fechar a porta para que pudéssemos conversar. Novo
incômodo: não queria, logo no meu primeiro encontro de pesquisa, uma conversa a
portas fechadas. Aos poucos, percebia que algumas estruturas faziam parte do
cotidiano e da história das relações ali estabelecidas, as quais precisavam ser
respeitadas. Não era o meu ritmo que estava em jogo, mas o da instituição. Era
10
Todos os nomes que são ressaltados na tese são fictícios. Busquei, também, preservar ao máximo os
sujeitos envolvidos na pesquisa.
23
necessário que minha entrada na instituição fosse autorizada. Tomei aquilo como uma
possibilidade de expressão de cuidado com a instituição.
Desde o início, procurei apresentar a pesquisa com cautela para não
potencializar expectativas demasiadas. Não é fácil construir uma relação de pesquisa
em uma escola pequena, onde as pessoas se vêem e se esbarram repetidas vezes, e a
presença do pesquisador fica evidente. As crianças queriam me conhecer, me tocar e
me abraçar. Também não é fácil equilibrar, de forma objetiva, o desejo de
aproximação e envolvimento com o necessário distanciamento. A pesquisa na creche
tem uma peculiaridade. Sentia como se estivesse dentro da casa de alguém, tocando
na intimidade dos quartos, das salas, dos banheiros, da cozinha, de seus diferentes
espaços. Dessa perspectiva, a creche parecia menos um espaço público e mais um
espaço íntimo; parecia mais uma casa do que uma escola. Procurei não precipitar
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“instintivamente”, fazendo meus primeiros juízos de valor. Procurei, mais uma vez,
ser cauteloso: registrei tudo o que acontecia no tempo de minha permanência, mas
com cuidado para não precipitar em um enquadramento “pré-conceituoso”,
estabelecendo uma forma/fôrma prevista para classificar relações, organizações,
tempos e espaços.
Quis apresentar a pesquisa para as crianças. Busquei uma maneira de dialogar
com elas. Avaliei que não haveria problema para a pesquisa se eu as convidasse para
sair da mesa e sentar no chão. Propus uma brincadeira. Procurei não cometer
excessos, não marcando uma atitude muito diferenciada em relação às professoras.
Apenas procurei uma aproximação que pudesse estabelecer canais de diálogo e
expressão. A partir daquele momento, passei a estar na creche três vezes por semana,
em horários variados, tanto pela manhã quanto à tarde, em um período que se
estenderia do início do mês de junho até meados do mês de dezembro de 2002.
11
Projeto político-pedagógico da creche pesquisada (2000). O grifo se justifica pela intenção de
assinalar ambigüidades que emergem no discurso do texto escrito e apresentado pela creche.
26
Segundo a concepção explícita no projeto, a creche “tem como objetivo ser uma
continuidade do lar da criança sem, contudo, substituir o papel da família”.
No discurso expresso no projeto pedagógico, as crianças são afirmadas como
centro do processo de aprendizagem. A aprendizagem, neste caso, torna-se sinônimo
de uma idéia de formação integral que recupera uma noção de que a educação da
criança deve se dar em diferentes dimensões, ressaltando-se os aspectos cognitivo,
motor e social/afetivo. Como instituição específica para a infância, o projeto assinala
a importância da creche como tempo e espaço do “lúdico”, enfatizado como a
característica principal das crianças. Também traz um entendimento de que as
crianças não devem ser consideradas apenas objeto de assistência, requerendo
profissionais dedicados e estimulados em sua formação e qualificação. O contato com
as famílias e a comunidade é destacado no sentido da colaboração com o trabalho.
12
Ressalto as representações de infância que ganham visbilidade nas nomenclaturas das turmas. Para
as crianças entre 2 e 4 anos, o termo maternal revela uma imagem familiar de substituição do lugar da
mãe e traduz uma idéia de amor e cuidado para a relação com as crianças. Esta visão, relacionada às
crianças pobres, aproxima-se de uma história de benevolência religiosa, que marca a visibiliade das
creches, onde a representação de mãe também remete nosso olhar para a mãe do menino Jesus. Para as
crianças entre 4 e 5 anos, os períodos remetem a uma concepção de etapas percorridas, expressando
uma concepção de desenvolvimento e uma expectativa escolarizada que remete a um processo de
superação de fases.
28
13
Enfatizo a ambigüidade de uma decisão que exige atenção ao sentido da presença da professora
como profissional da educação na organização do trabalho com crianças de dois anos em uma
instituição que assume um discurso pedagógico, mas ainda não vislumbra com clareza essa nova
concepção.
29
14
Alguns programas sociais incluem práticas esportivas e profissionalizantes. Expressam um discurso
compensatório, explicitando ações de “contenção” das crianças em seus bairros para que não “desçam”
para o centro da cidade.
30
administração da creche, e outra vez durante uma reunião de pais, na qual apresentou
uma palestra às famílias das crianças. Para além disso, pouco se fez presente na
creche.
Ao lado das professoras, das coordenadoras e do presidente, o quadro de
funcionários da creche é composto por uma auxiliar de serviços, uma cozinheira e o
vigia da creche.
Janete, uma das acompanhantes de turma, não se dispôs abertamente ao
dialogo com o pesquisador e não se prontificou a participar de nenhum dos momentos
do processo de entrevista.
Quanto às crianças, são meninas e meninos os mais diferentes e comuns,
brancos e negros. Não se pode dizer ou constatar, visivelmente, que as crianças, na
sua maioria, sejam negras, fazendo uma relação direta entre a creche, as classes
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no final dos anos sessenta e durante toda a década de setenta, um grande número de
pesquisadores em Ciências Humanas trabalhava sobre a situação das crianças de
classes desfavorecidas dentro da escola. Os problemas de repetência e de evasão
escolar impunham-se como uma urgência para todos que se preocupavam com a
dimensão ético-política de suas pesquisas. [...] Uma das importantes descobertas
dessas pesquisas foi [...] desfazer um preconceito [...] arraigado, segundo o qual as
diferenças [...] eram uma forma de incapacidade ou handcap. Nesse contexto, foi
fundamental revelar que muitas dessas diferenças eram fontes ricas de aprendizado e
que deveriam, ao invés de serem desvalorizadas e reprimidas, incentivadas e
trabalhadas.
Mas este trabalho não quer cair na armadilha de produzir conhecimentos sobre
a infância, desprezando sua voz, impedindo-a de falar, deixando-as de lado,
desconsiderando sua presença, deslegitimando sua existência concreta e a
participação em seus contextos sociais (MARTINS, 1991). Contudo, o que se colocou
como fundamental – embora considere importante e necessária a questão de como
coletar os dados de pesquisa com as crianças, como entrevistá-las e como construir
metodologias que expressem a singularidade do diálogo com as crianças – foi uma
postura de não querer tomar a voz da criança de forma ingênua, desconsiderando os
signos ideológicos que a constituem na sua expressão.
Como adverte Castro (1999, p. 24), a infância tem se tornado, cada vez mais,
objeto do cuidado e dos discursos de um número crescente de especialistas, médicos,
34
humana. Crianças e adultos são sujeitos históricos que entrelaçam sua expressão,
presente e histórica, de infância. Expressam signos constituidores de infâncias
concretas. Compreender os discursos dos adultos tornou-se condição tanto para o
entendimento da infância quanto para o reconhecimento de uma condição humana na
qual adultos e crianças estão inseridos.
Tomei a difícil decisão de realizar um processo de pesquisa que tem as
crianças e a infância como categoria social, sujeito e objeto central deste estudo,
entrevistando as professoras e reconstruindo seu discurso sobre as crianças. Poder-se-
ia contrapor este estudo como mais uma daquelas aproximações que os adultos fazem
das crianças mas não legitimam e dignificam sua voz. Todavia, afirmo que durante a
pesquisa procurei efetivar o diálogo com as crianças em sua radicalidade. As crianças
foram tomadas como sujeitos relacionais, expressos nas suas relações com as outras
crianças e com os adultos na instituição de Educação Infantil, em que o olhar do
pesquisador pôde materializar-se. O trabalho de campo consistiu em olhar e escutar,
no cotidiano das relações, a presença e a voz das crianças, deixando suas marcas na
organização institucional e na expressão do trabalho e das relações pedagógica,
fazendo-se presente, ao lado de outros signos sociais expressos no discurso das
professoras.
35
Com esta tese, sustentada pela compreensão de que as relações vividas por
crianças e professoras no dia-a-dia da escola são conformadas por práticas e
discursos, procurei ampliar o conhecimento da infância e o entendimento de suas
relações sociais: infância que fala por si mesma, que fala com seu corpo e sua
presença cotidiana, que fala com e na voz de outros atores com quem partilha suas
experiências.
nas Ciências Humanas conjugam-se as dimensões ética e estética para dar origem a
uma outra dimensão que é a epistemológica. Desse modo, a produção de
conhecimentos e o texto em que se dá esse conhecimento é uma arena onde se
confrontam múltiplos discursos. Por exemplo, entre o discurso do sujeito a ser
analisado e conhecido e o discurso do próprio pesquisador que pretende analisar e
conhecer, uma vasta gama de significados conflituais e mesmo paradoxais vai
emergir.
com o olhar do outro; revela-se no âmbito das interações sociais e expressa-se como
linguagem.
Nesse sentido, a mesma importância atribuída a Bakhtin (1988, 1992) no processo de
fundamentação teórico-prática da pesquisa também se sustenta nas concepções de Walter
Benjamin (1987a, b e 1989) e Hannah Arendt (1972, 1987, 1997), revelando uma
compreensão das experiências compartilhadas que podem e precisam ser rememoradas e
apropriadas na narrativa histórica da produção social dos sujeitos.
O narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos” parece hoje
algo de antiquado é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em
conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros.
Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a
continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é
necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo
a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na
substância viva da existência tem um nome: sabedoria. (BENJAMIN, 1987a, p. 200)
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planejado (ANEXO 1). Na entrevista coletiva, foi dada uma orientação inicial sobre o
que entendiam como relevante, interessante e positivo no trabalho pedagógico que
realizam na creche com as crianças. Entrevistas individuais foram realizadas com
cada uma das professoras. Na entrevista coletiva, além das pessoas que participaram
das entrevistas individuais, foi convidada a participar a coordenadora pedagógica.
Intencionalmente, a palavra da coordenadora foi incluída em situação dialógica com a
dos outros sujeitos envolvidos na pesquisa.
A interação na entrevista coletiva constituiu uma importante experiência para
pesquisadores e participantes. Da gravação, passando pela transcrição até o processo
de análise, a construção coletiva revelou toda a riqueza deste processo, desvelando,
além dos pontos de vista dos entrevistados, os aspectos ambíguos e polêmicos,
trazendo o reconhecimento e a apropriação reflexiva das situações e condições de
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Assinalo a importância do grupo coordenado pela professora Sonia Kramer na PUC-Rio, que desde
agosto de 1999 desenvolve a pesquisa "Formação de Profissionais de Educação Infantil no Estado do
Rio de Janeiro: concepções, políticas e modos de implementação", com apoio do CNPq e da FAPERJ,
cujo primeiro relatório foi publicado em novembro de 2001. Além de dados coletados em
questionários, o grupo realizou um processo de entrevista que buscou enfatizar as condições de
produção do discurso dos sujeitos, o que foi denominado de “Entrevistas Coletivas”. Esta metodologia
foi elaborada a partir dos estudos de Bakhtin que implicaram na construção de técnicas e processos de
coleta, registro e análise dos dados, bem como da própria relação de entrevista. O uso da entrevista
38
gerações
coletiva tanto revela a apropriação de um conhecimento produzido coletivamente como quer assinalar
que esta tese se insere no contexto de produções desse grupo.
39
seus discursos. Seu modelo teórico aponta para o entendimento das interdependências
sociais que no curso histórico condicionam os indivíduos. Ao propor uma análise do
cotidiano com questões e tensões específicas, procurei incluir os diferentes sujeitos
nessa trama de relações sociais. As imagens de infância expressas no discurso das
professoras constituem dimensão material importante da pesquisa e aparecem
inscritas tanto na memória quanto nas experiências cotidianas (ELIAS e SCOTSON,
2000).
Apresento, nesse sentido, um referencial teórico que possibilite ao
pesquisador e aos sujeitos da pesquisa um reconhecimento de discursos que
condicionam as relações sociais, apresentando elementos que favoreçam o
entendimento da infância a partir de suas expressões e visibilidade, que também são
históricas. Nesta tese, o entendimento da infância está relacionado à compreensão da
história dos sujeitos, bem como da própria história da instituição escolar.
2. Crianças e adultos nos tempos e espaços institucionais
devem ser tomados como locus de inscrição das disposições, dos esquemas
classificatórios que caracterizam os atores e seus estilos de vida em um contexto
histórico, cultural e social.
Ao tomar como ponto de partida a afirmação de que os sujeitos expressam em
seus corpos as marcas e os signos de sua existência social e institucional, recorro ao
ponto de vista de Foucault (1986) para compartilhar uma concepção de que os corpos
dos sujeitos se tornaram objeto e locus de inscrição de uma cultura ocidental
moderna: sobre “os corpos” convergiram olhares, discursos e ações, submetendo-lhes
padrão e norma. Nessa perspectiva, como ressalta Soares (2001, p. 109), é preciso
assinalar uma percepção de que desde a infância incide uma educação que, como
processo histórico, investiu na retidão e buscou conter os excessos do corpo. Os
sujeitos e seus corpos – individualizados e higienizados, civilizados e desenraizados –
foram conduzidos para um território oficial regulado por uma idéia de utilidade e
controle, cuja intervenção pedagógica se incumbiu de redesenhar seu
desenvolvimento e conduta, seus gestos e suas instituições, promovendo o que pode
ser denominado uma “educação dos corpos”.
17
Para Bourdieu (2000), habitus se expressa como princípio de inteligibilidade, um sistema de signos
distintivos que estrutura e organiza as práticas e a percepção das práticas pelos sujeitos. Organiza,
pois, um mundo social que, ao mesmo tempo que é produto da incorporação da divisão de classes
sociais, assinala que estas não devem ser entendidas nem na lógica do mecanicismo, nem na lógica da
consciência.
41
18
No sentido de Bakthin (1993, p. 33), o corpo grotesco aparece entrelaçado a uma vida (cotidiana) em
que não há nada perfeito ou completo; em que o corpo aparece integrado à cultura popular e à
totalidade de uma realidade que faz cruzar pensamento e sentimento, natureza e cultura.
42
corporais que lhes são próprias. Por exemplo, pelo jeito que uma criança sabe se
portar à mesa, andar e falar poder-se-ia afirmar e reconhecer seu lugar e expressão
social. Fundamentado em uma noção de “habitus” (que, embora relacionado, se
distingue da noção de Bourdieu, 1983; 1989; 2000), afirma uma educação que
pressupõe aprendizados prestigiosos, e que para isso os sujeitos e seus corpos têm
seus atos ordenados e autorizados, eficazes de acordo com as funções preenchidas por
símbolos morais e intelectuais. Os saberes do corpo constituem técnicas corporais
socialmente classificadas e ordenadas para ser transmitidas e aprendidas.19
Contudo, a partir do século XX, o poder e o controle do corpo foi sendo
deslocado de uma racionalização via repressão para outro tipo de controle via
estimulação, enaltecimento do prazer e da autonomia (VIGARELLO, 1995). Assim,
pode-se identificar uma mudança importante da ação do poder ou do envolvimento do
19
Seguindo a tradição de Mauss e, particularmente, de Bourdieu, BOLTANSKI (1989) aponta uma
análise das demandas social que definem formas e categorias de apreensão do corpo em um sistema de
relação que une os membros de um mesmo grupo por comportamentos que estruturam e são
estruturados nas condições objetivas de sua existência: da resistência à aparência física, das regras de
decoro, das maneiras corretas de interação e, mesmo, das sensações físicas que constituem uma espécie
de código de boas maneiras para viver com o corpo, devendo por isto ser interiorizado e ser comum.
Nesse sentido, as regras que determinam os comportamentos físicos dos agentes sociais e cujo sistema
constitui sua “cultura somática” traduzem uma ordem cultural e constituem expressão simbólica da
relação que os membros de uma classe mantêm com seus corpos, marcando o lugar dos indivíduos na
hierarquia de classe.
43
assinala Sayão (2002, p. 55), a buscar aproximações das interações que acontecem no
cotidiano dos espaços educativos, produzidas por sujeitos concretos, onde o corpo e o
movimento estão incluídos como instâncias de consumo e produção cultural. Neste
ponto, ressalto a crítica de Bakthin (1988, p. 15) à concepção de linguagem como um
sistema de regras invariáveis a que se deve acatar e a afirmação da linguagem –
processo histórico de significação e relações sociais – como um campo de
possibilidades que se expressam em contextos socais concretos.
Certeau (1994, p. 233), também, desloca a atenção do consumo passivo da
cultura para brechas e possibilidades de uma criação anônima, nascida da prática e do
desvio no uso dos diferentes produtos culturais, atento a outras maneiras de marcar as
práticas sociais. Se, por um lado, a lei para se inscrever sobre os corpos precisou de
um aparelho para mediar sua relação com os sujeitos e pressupôs um sistema
mecânico de articulação social que transformasse os corpos individuais em corpo
social, por outro lado, como também aponta Chartier (1995, p.182),
44
a descrição das normas e das disciplinas [...] com os quais a cultura reformada (ou
contra-reformada) e absolutista pretendia submeter os povos não significa que estes
foram real, total e universalmente submetidos. É preciso, ao contrário, postular que
existe um espaço entre a norma e o vivido [...] O que mudou [...] foi a maneira pela
qual essas identidades puderam se enunciar e se afirmar, fazendo uso inclusive dos
próprios meios destinados a aniquilá-las. Reconhecer esta mutação ... não significa
romper as continuidades culturais que atravessaram os três séculos da idade moderna,
nem tampouco decidir que, após o corte da metade do século XVII, não há mais lugar
para gestos e pensamentos diferentes daqueles que os homens da igreja, os servidores
do Estado ou as elites letradas pretendiam inculcar em todos.
as crianças apontam e, na maioria das vezes, pouco ou quase nada rompem com o que
já está instalado.
Eu sou a Mônica, você o Cebolinha, vamos deixar nossa sala bem limpinha. Cascas
no lixinho [...] cata aqui, cata lá, cata acolá, vamos deixar nossa sala bem limpinha
[...] (Professoras e crianças cantam juntas)
Na sala, a gente procura trabalhar mais a rotina, que é o café da manhã, a oração, o
banho, a escovação, o repouso. (Rosa)
pedagógico. Mas também observei ser importante que as crianças incorporem, assim
como na sala da coordenação, que aquele não é lugar de criança ficar. É lugar de
adulto, de trabalho, de responsabilidades e habilidades que aparecem como coisa e
“ofício” de adulto, e não de criança. São lugares que instauram diferenças etárias e
sociais. Às vezes, mesmo diferenças de gênero, quando não se tem outra explicação
satisfatória e apenas é dito, como certa vez escutei uma professora dizer, que cozinha
não é lugar de criança, nem de homem. Nesse contexto, parecem reforçar, no sentido
de Mauss (1971, p. 344), um ordenamento dos corpos e das relações, que vão sendo
aprendidas enquanto classificadas, instaurando condutas que vão demarcando lugares
sociais de crianças e adultos, meninas e meninos.
Essas relações são dinâmicas e se mostram distintas em outros tempos e
espaços, como em sala de aula ou em uma brincadeira, quando a professora,
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Muitos meninos são machistas. Isso já vem de casa: menino não faz isso, menina
não faz aquilo. Se eu estiver fazendo alguma coisa que dá para parar: Pessoal, por
que menino não faz isso? Na casa de vocês quem é que faz comida? ‘Minha mãe que
faz’. ‘Meu pai faz isso também’. O papai cozinha na casa de vocês? Mas vocês
acabaram de falar que cozinha é coisa só de menina? ‘Não, meu pai faz’. Será que
menino pequeno também pode fazer igual ao papai? Então vamos brincar de fazer
comidinha? Aí, vamos brincar na casinha, de ser o pai na casinha. (Fátima)
dinâmicas pedagógicas. Senta-se às mesas para o lanche e o almoço ou para ver vídeo
e brincar. Por ser um espaço interno, precisa dar alguma forma às relações. É um
lugar de silêncio: silêncio para comer, para ver a televisão e para brincar. Não é lugar
de movimento, e as relações são delimitadas pelas mesas, pelo controle das
professoras e pela impropriedade do lugar, que é pouco aconchegante. O refeitório
também é saída para o pátio externo, o parquinho, embora as professoras prefiram dar
a volta pela frente da creche. Carrega uma ambigüidade importante. Ao mesmo
tempo que é regulado, como assinala Foucault (1991, p. 132), constituindo-se um
lugar onde se define uma organização capaz de instaurar disciplinas e criar um espaço
único, por não ter um “uso” único acaba abrindo brechas para que os sujeitos criem
formas de comunicação, circulando outros desejos e necessidades. Assim, minhas
observações nessa creche coincidem com a percepção de Sayão (2002, p. 8) de que,
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Às vezes, eu deixo as crianças mais à vontade para criar as brincadeiras que elas
querem. O outro dia, a gente propõe o que a gente pode estar brincando. (Rosa)
Nesse sentido, essa dispersão temporal, como ressalta Foucault (1991, p. 145),
também se expressa como um tempo de dispersão corporal, envolvida na totalidade
dos tempos institucionais, demarcando uma possibilidade de conservação do domínio
de uma temporalidade que, às vezes, escapa, mas continua seriado, orientado e
cumulativo, instaurando-se como tempo institucional e social. O que vai além do
espaço da sala, na fala das professoras, parece perder um sentido pedagógico
intencional e consciente. Transforma-se em uma espécie de território livre; livre de
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No espaço livre, a gente procura brincar, cantar, fazer brincadeiras de roda e jogos.
A gente procura também usar o espaço lá fora para jogar futebol e fazer corrida,
diferente da brinquedoteca, que a gente procura fazer uma rodinha ou um
combinado. (Rosa)
Eu não gosto de sair com as crianças daqui desse espaço, não. Sei que a gente tem
aquele espaço lá fora, mas sei o quanto isso é responsabilidade do professor, você
retirar as crianças desse espaço da escola para poder brincar lá fora. Sei que é um
espaço superlegal, dá para jogar um futebol muito jóia, mas tenho receio de uma
criança machucar e acontecer alguma coisa. Se eu não tiver um papelzinho
autorizando a saída da criança do portão da escola, eu tenho receio, porque isso é
muito sério. (Fátima)
Quando era na pracinha que tem aqui em cima, a gente brincava de bola. A gente ia
para lá, juntava outros meninos da comunidade da mesma idade dos meninos, e
entrava na brincadeira. Adultos também; tem um moço ali de baixo que dava bala
para os meninos. A gente ia muito lá, mas depois teve uns probleminhas e a gente
não foi lá mais não. Problema com droga. Mas era muito bom quando a gente ia.
Pelo menos a gente via todas as turmas. (Andréa)
onde permanecem até a hora do almoço, entre 11 e 11h30. O almoço é servido pelas
professoras, precedido de músicas e orações. Há um impulso por parte das
professoras para manter o silêncio entre as crianças. Hora do almoço é também ora de
aprender o comportamento à mesa. Nem todas as crianças aceitam o almoço. Há
recusas. Algumas parecem entristecidas neste momento. As orações também fazem
parte de uma rotina de agradecimentos e gratidão que as crianças devem aprender a
exercitar.
[...] quando chegam aqui, eles não sabem fazer isso, agradecer o que estão
recebendo de alimentação, de conforto que a creche está oferecendo a eles.
Agradecer para no dia seguinte ter o dobro, ou até melhor. (Rosa)
O cuidado humano seria a capacidade que temos, pela interação com outros seres
humanos, de observar, de perceber e interpretar as suas necessidades e a forma como
as atendemos. Nesse processo de cuidar do outro também nos desenvolvemos como
seres capazes de ter empatia com o outro, de perceber nossas próprias necessidades e
de desenvolver tecnologias para aprimorar tais cuidados ... Assim, o ato de cuidar
está sujeito também à capacidade daquele que cuida de interagir com o outro, de
identificar suas necessidades, capacidade construída no interior da cultura pelas
aprendizagens específicas de determinados conceitos, habilidades que têm por base
os diversos campos de conhecimento que estudam o processo de desenvolvimento e o
cuidado humano.
crianças, eu não diria) estão ali esperando o tempo passar. Ao mesmo tempo, fica a
sensação de que o tempo parou ou, pelo menos, passa muito devagar.
Os tempos institucionais vão constituindo rotinas de distribuição de espaços e
relações. Condicionam ritmos e disposições, em um escoamento controlado daquilo
que vai se tornando disponível às crianças e, por conseqüência, também às
professoras. Momentos de alimentação, descanso e higiene aparecem como tempos
fixos e estruturantes de um ritmo constante e invariante. O que parece variar um
pouco são as estratégias que cada professora usa para preencher os intervalos de
tempo: brincadeiras, histórias, músicas, ou, mesmo, não fazer nada. Como na parte da
manhã há maior predominância de sentido pedagógico e, nesse sentido, de controle,
as relações acabam demarcadas, de forma cronológica, como uma seqüência de
espaços e tempos que precisam ser percorridos, organizados e ritualizados.
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Eu começo o dia com uma rodinha. Não, a primeira coisa que a gente faz é o lanche,
porque quando eu chego na sala o lanche já está lá. É que eu chego às oito. Aí eu
dou o lanche, canto a musiquinha do lanchinho. Depois do lanche eu faço uma
rodinha no chão, para organizar o dia. Aí uso aqueles crachazinhos que você já viu
no varalzinho. Eu organizo o dia. Uma criança tem que saber a hora de tudo, que
tudo tem hora, tem tempo. Não é toda hora que pode fazer isso. E eles são jóia,
porque quando está acabando o ano, eles já conhecem. Depois do lanche eles já
começam a sentar na rodinha. Não tem noção só de hora, mas de tempo, de
organização também. Na rodinha, na brinquedoteca, vai chegando e fazendo a
rodinha para fazer os combinados.20 (Andréa)
20
Os destaques foram feitos para chamar a atenção para a quantidade de vezes que as coisas que se
referem às crianças são expressas no diminutivo. Não revelam uma forma carinhosa; ao contrário,
explicitam uma recorrente “menorização” a que as crianças, seus corpos, suas relações, seus
conhecimentos, e os próprios adultos são submetidos.
56
• Fila – Qualquer um que olhasse de fora ficaria incomodado. É fila para tudo.
Às vezes, não teria a menor necessidade. Fila para sair da sala, fila para ir ao
parquinho, fila para ser atendida pelas enfermeiras do posto de saúde, fila para tudo.
É sutil e quase automática, como se professoras e crianças já tivessem incorporado a
normalidade dessa forma de organização, deslocamento e ordenamento, como se a
fila fosse uma estrutura de relação, forma “natural” de organização, de autoridade e
dinâmica. Às vezes, apesar da permanência de sua forma, ganha outros ingredientes,
como uma brincadeira; outras vezes, é ritmada por uma música; em outras, as
crianças andam de mãos dadas, duas a duas. De qualquer maneira, na fila, criança e
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crianças. Certa feita, a professora pediu que todas as crianças fossem para a sala que
ela iria fazer a chamada. Ela insistia que as crianças respondessem “presente”. Era o
segundo semestre letivo e, na minha percepção, a professora sabia de cor os nomes de
todas as crianças. Naquele dia, estavam presentes cinco ou seis crianças. Só de olhar
ela poderia saber quem estava presente e fazer o seu registro ou relatório.
Por que a insistência na chamada e na resposta “presente”? Várias crianças
faltaram. A chamada não remeteu qualquer comentário para este fato. Fiquei sabendo
que algumas crianças estavam com catapora. É importante ressaltar que esta prática,
embora em minha observação não produza um efeito simbólico imediato nas
crianças, ganha sentido e forma de vigilância e discriminação, se não das crianças,
das próprias professoras, ainda que não percebam, obrigadas a entregar listas de
chamada e criar formas de organização do trabalho que não trazem reconhecimento,
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televisão, etc. Em troca, silêncio, fila, comportamento controlado. Quem não faz o
jogo fica de fora do melhor da “festa”.
Na maior parte do tempo, as professoras são carinhosas com as crianças. Há
uma relação delicada entre elas e as crianças. Mas há também brutalidades. Uma vez
vi a professora Andréa conduzir com o pé uma criança que estava sentada no chão até
o lugar em que ela deveria ficar. Não pareceu perceber que estava sendo bruta; fez
isto na minha frente, de forma “natural”. Às vezes, ouvem-se falas muito ríspidas, que
marcam as crianças. Não é incomum assistir a um choro que expressa dor e mágoa da
criança pela atitude da professora, como no dia em que a criança repetia, de forma
compulsiva, para a professora: “Vou contar para meu pai, vou contar para minha mãe.
Você brigou comigo, você bateu em mim. Vou contar para o meu pai, vou contar para
a minha mãe”. Eu estava presente na sala e não vi a professora agredir a criança. Mas
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21
MAUSS, 1971, p. 344.
60
com a palma aberta e diz para as outras: “Quem quiser brincar põe a mão aqui”.
Algumas se submetem a essa relação de comando. Outras não estão nem aí e
continuam brincando como se nada estivesse acontecendo. Essas relações acabam se
dispersando como se fossem naturais. Esses momentos mereceriam uma mediação
mais próxima e intencional dos adultos.
• Uniforme – O uniforme das crianças chama atenção. Observei nos corpos das
crianças dois modelos muito parecidos, porém com uma diferença radical. Em um
dos modelos, apenas o nome da creche aparece à frente, com um desenho de criança.
Em outro modelo – aparentemente mais novo ou, pelo menos, as blusas das crianças
eram mais novas e pareciam menos desgastadas – o nome da creche aparece na parte
de trás da camisa. À frente vem escrito: Federação da Indústria do Estado de Minas
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um ideário pedagógico que faz da brincadeira seus conteúdos, seus meios e, muitas
vezes, sua finalidade.
A professora faz todo o esforço para dar um tom mais agradável ao que ela quer
ensinar. Percebe-se a incorporação de uma idéia de prazer de aprender como uma
justificativa para esta forma de construir as relações de ensino-aprendizagem
(KHISHIMOTO, 1996, p. 36).
A gente começa a ensinar brincando, que eu digo que a partir da brincadeira é que
eles vão aprender. Aprender a respeitar, aprender a contar, aprender a conversar, e
aí vai. Porque eu acho que as crianças aprendem brincando. Elas nunca vão
aprender uma coisa repetitiva, um mais um, dois. Elas vão gravar aquilo. E
brincando elas vão estar brincando e aprendendo, porque vão estar se divertindo e
aprendendo. (Rosa)
dupla de crianças e disse às outras que elas ficariam esperando aquela dupla errar
para, então, poderem jogar, e sorteou a ordem. A partir daí, a brincadeira da
professora perdeu o sentido. As crianças começaram a torcer para que a dupla errasse
e, como erravam rápido, não dava tempo de experimentar e aprender os movimentos
necessários. Ou seja, rompeu com o que poderia ser chamado de brincadeira. Às
vezes, as professoras ressaltam que querem incentivar a troca e a solidariedade entre
as crianças, mas acabam criando um contexto em que cada uma passa a torcer pelo
erro do outro.
O interessante, nessas circunstâncias, são as soluções que as crianças acabam
encontrando e que colocam a professora em uma situação em que não resta outra
alternativa senão ceder ao que elas trazem para cena. A brincadeira referida era o jogo
de varetas, o que, no entendimento da professora, iria ajudá-las a aprender a contar.
Como a maioria ficaria apenas esperando, arranjou uma ocupação para o tempo delas.
Distribuiu pedaços de massinha para cada criança ficar modelando enquanto esperava
a vez. Resultado: a brincadeira de massinha ficou mais interessante do que a
brincadeira de varetas. Surgiram bolas, bichos e outras formas que as crianças iam
dando à massinha. Uma das crianças começou a confeccionar pequenas letras com a
massinha e compor, ao seu jeito, algumas palavras. As crianças deixaram de lado as
varetas com as quais estavam brincando, juntaram-se às outras crianças e começaram,
66
• Brincadeiras livres
Eu acho que elas aproveitam todos os espaços que elas têm e que têm condições de
brincar. Até um cantinho lá na parede que elas encontram, lá perto do muro, elas
aproveitam brincando. Eu acho que isso é muito importante. Cada espaço que ela
consegue ela aproveita. (Rosa)
Acho que porque é hora de brincar. A idade delas é hora de brincar. Não precisa
colocar a criança na escola para aprender a ler. Tem muita gente que faz isso. Na
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Compreendo que não é o adulto aquele que irá fornecer o significado último à
brincadeira das crianças, e este é um princípio de liberdade: reconhecer-se nos
processos de significação. Como afirma Benjamin (1984, p. 70), “a bola, o arco como
instrumentos de brincar, são tanto mais autênticos quanto menos o parecem ao adulto.
Quanto mais próximo ao significado dos adultos, mais se desviam da ‘brincadeira
viva’”. Entretanto, de quem a criança recebe seus brinquedos, que histórias marcam
sua apropriação e mediação? Dessa perspectiva, o lugar de adulto é fundamental.
Cabe-lhe, como ressalta Benjamin (1984, p. 41), uma tarefa histórica: a “orientação
rigorosa”, capaz de potencializar questionamentos às experiências e à vida – e nada
como as brincadeiras para fazer entrecruzar passado e futuro – e reconhecer no
presente possibilidades (esperança) de “libertar” o futuro de sua forma desfigurada.
Como assinala Larrosa (2000, p. 328),
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há palavras tão manipuladas, tão manuseadas, tão corrompidas por séculos e séculos
de tagarelice que é quase impossível utilizá-las. Mas o que está acontecendo é que
estamos ficando sem palavras para dizer o intolerável e para afirmar o nosso querer
viver. O certo é que nada existe de mais comum, de mais ambíguo, de mais suscetível
de mal-entendido e manipulações do que a reinvidicação e a defesa da liberdade na
ordem moral, do direito, da política, da arte ou da ciência. O certo é que, muito
freqüentemente, a palavra liberdade nos soa falsa (a brincadeira também22) quando a
escutamos e não tem qualquer sabor quando a pronunciamos. Mas às vezes ela se
oferece a alguém que desejaria apresentá-la como uma nova verdade, como um novo
saber, ainda que para ele seja preciso primeiro libertar a liberdade de todas essas
falsificações que se aderiram a ela e que secretamente a povoam.
22
Grifo do autor.
69
dar início às brincadeiras. Perguntam repetidas vezes para as crianças se elas estão
gostando da brincadeira, mas não parecem acreditar. Vão perdendo o envolvimento
até não ter mais ligação alguma.
Nesse sentido, as professoras não conseguem perceber a riqueza das relações
que vão acontecendo: crianças de mãos dadas, cantando, brincando, juntos meninos e
meninas de diferentes idades. Acontecem também muitas tensões em que as crianças
ficam esperando a mediação da professora. Querem a ajuda dela para organizar e
experimentar as brincadeiras nos brinquedos de ferro, querem que elas ajudem a
descobrir uma maneira de fazer determinado movimento, de brincar com a corda ou o
bambolê. Às vezes, querem apenas ser olhadas, querem que as professoras vejam o
que estão fazendo, querem escutar alguma coisa delas.
Também reclamam muitas e muitas vezes: “Ninguém quer deixar eu pular
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corda”; “Eu também quero ir no balanço”; “Está muito alto e eu estou com medo”;
“Professora, fulano me bateu”; “Eu também quero brincar e ninguém quer deixar”.
Há momentos em que a regra não serve para as relações que as crianças estão
experimentando, e elas não conseguem fazer a síntese por si mesmas; precisam de
alguém que as ajude a compreender o que está acontecendo, para que possam,
crianças e professoras, transformar aquela situação, ressignificar aquelas relações:
libertarem-se.
Em um dia de observação, acompanhei uma criança que queria brincar em um
balanço, mas todos estavam ocupados. Como ninguém se aproximou, perguntei-lhe
se não queria empurrar um pouco o colega, depois eles trocariam de lugar. Como foi
rico aquele momento! Pareceu-me que ela ainda não tinha experimentado aquela
situação e teve de aprender a coordenar o ritmo do balanço e o momento de empurrar
o colega. E como foi interessante vê-las descobrir uma solução simples como aquela.
Acabou trazendo relações inesperadas. Não só trocaram de lugar, como depois
descobriram que as duas cabiam no balanço e podiam ir juntas. Ficaram as duas
abraçadas e sentadas no balanço. Essa cena faz emergir, como também aponta
Kramer (2003, p. 82), a percepção de que pequenas ações e relações cotidianas estão
muito além de seus limites aparentes, estão carregados de signos e valores, e trazem
significados coletivos e públicos para a liberdade. Nesse sentido, fazem emergir,
70
querem e não parecem gostar de ficar entregues às suas próprias relações. Nesse
sentido, o conceito de “liberdade” não significa necessidade de livrar-se uns dos
outros.
• Brincadeiras dirigidas
Tem as brincadeiras livres, que eles mesmo ficam construindo, e tem a hora das
brincadeiras dirigidas. Às vezes, eles pegam um negócio no parquinho, imaginam
mil coisas, ficam brincando no mundinho deles. As brincadeiras dirigidas são para
eles saberem como é a regra de um jogo, a regra das brincadeiras, como brincar, o
que pode, o que não pode. Então eu acho que tem que ter a brincadeira dirigida
também, para passar para os meninos como é a forma de brincar, qual a maneira
certa de brincar. (Rose)
Acho que é uma brincadeira mais trabalhada, uma brincadeira orientada, é uma
brincadeira que você está ali, você está ali para observar a brincadeira, você não
está ali para você deixar o menino brincar, igual, eu tinha um aluno, que ele
brincava sozinho, sempre sozinho, falava sozinho, ia falando os personagens da
história dele, tudo sozinho. Um dia eu perguntei à mãe dele porque ele brincava
sozinho. Mas ela falou que ele nunca quis brincar com ninguém, que ele ficava no
mundinho dele. Mas ele sabia tudo, era muito inteligente. Sabia os personagens das
histórias. Na hora de brincar ele não importava se estava brincando sozinho ou com
alguém, mas ele estava brincando, não precisava ter alguém com ele. Brincava
sozinho. Se precisasse ficava o dia inteiro, nem almoçava. (Andréa)
lugares que absorvem seus significados principais como espaço de brincar, há outros,
como o refeitório, em que, além das refeições e de seu uso como sala de vídeo,
também são locais autorizados para acontecer as brincadeiras.
Embora o refeitório condicione as maneiras e os usos das brincadeiras,
também abre brechas para deixar-se transformar pelas relações entre as crianças, as
professoras e os brinquedos. Quando as crianças são levadas para o refeitório ou
permanecem lá depois de um lanche ou de algum filme, no início, a estrutura da sala
não é alterada para essa nova possibilidade de interações. As crianças continuam
sentadas às mesas, mesas grandes, onde se agrupam entre 15 e 20 crianças dos dois
lados e são espalhados brinquedos tipo Lego ou Quebra-Cabeça. Ficam ali brincando
entre pedidos de silêncio e repreensões.
Nesse espaço delimitado, sentar-se à mesa condiciona, mas não define, as
possibilidades de relação e de brincadeiras. Mesmo que as professoras não façam
interferências ou tragam sugestões de brincadeira, aos poucos, surgem relações
interessantes. Em um dia em que observava as crianças no refeitório, um garoto fez
um cavalo com as peças de ligar. Começaram a aparecer outros bichos. Outra criança
fez, como eles dizem, um “hominho” para montar seu cavalo. Uma criança menor
começou a chorar, pedindo-lhe que fizesse um igual para ele. O garoto parou sua
74
Hoje talvez podemos esperar uma superação efetiva desse equívoco fundamental, o
qual acreditava erroneamente que o conteúdo imaginário do brinquedo determinava a
brincadeira da criança, quando, na verdade, dá-se o contrário.
Se, por um lado, observei no discurso das professoras que elas têm buscado
superar posturas que hierarquizam e secundarizam o brincar em relação a outras
aprendizagens escolares, procurando se contrapor à idéia de “uso pedagógico” da
brincadeira, por outro lado, continuam operando com uma idéia abstrata e idealizada
do brincar e da infância. Dizem que valorizam o “brincar pelo brincar”. Os conflitos e
as tensões aparecem no olhar das professoras como algo contraditório com uma
76
Esse negócio de ficar pegando, e tem que fazer isso, tem que fazer aquilo [...] Não,
tem que deixar livre. Você já viu meus meninos, os mais bagunceiros. Eu deixo livre.
E os meninos não aceitam essas brincadeiras de ficar assentado o tempo inteiro,
não. Eu deixo mais para lá, brincar mesmo, brincar com água, eu gosto disso.
(Andreá)
Na escola [...] parece que as crianças pedem para o professor intervir e ele não o faz,
impondo ao invés de dividir com a criança em situações em que poderia fazê-lo, e
exigindo demais quando deveria poupá-la. A questão da sociabilidade se tornou tão
frágil que os adultos [...] não vêem as possibilidades da criança e ora controlam,
regulam, conduzem as crianças ora sequer intervêm, têm medo das crianças e dos
jovens, medo de estabelecer regras, de fazer acordos, de lidar com as crianças no
diálogo e na autoridade [...] ao abrirem mão da sua autoria (de pais e professores), ao
cederem seu lugar só têm, como alternativa, o confronto ou o descaso. (BAZÍLIO e
KRAMER, 2003, p. 80)
vez que ela repetiu isto, a professora pediu que saísse da roda. A menina disse
baixinho: “Eu quero ficar aqui”.
Há uma riqueza de ações e relações que emergem em uma brincadeira. Mas
nem sempre se é capaz de dar respostas imediatas, nem é preciso assim fazer. Às
vezes, o desenrolar da brincadeira apresenta as soluções necessárias, isso requer uma
percepção ética e estética das relações que circulam. Expressam a materialidade do
que as crianças, na relação com os adultos, trazem como conhecimentos e
necessidades, abrem espaços para o envolvimento e a mediação, demandam um
processo de reconstrução coletiva dos significados incorporados em uma cultura viva.
Percebo que a brincadeira, em alguns casos, também é uma obrigação para a
professora, uma imposição externa.
Observei crianças brincando no bairro, no terreno ao lado da creche, sem a
presença de um adulto: crianças de 3, 4, 5 anos. Se brincam fora da creche, por que a
brincadeira precisa ser vivenciada no espaço escolar, ressaltada como a dimensão que
deve ser explorada com prioridade no trabalho com as crianças? Entendo que há uma
grande riqueza nas brincadeiras que as crianças fazem nas ruas do bairro: o próprio
bairro, as ruas, as relações, até mesmo os preconceitos e valores. Contudo, se, de um
lado, reafirmo um direito de acesso às brincadeiras como expressão de inserção social
e cultural, por outro lado, essas experiências não se efetivam apenas como forma de
78
as crianças enfrentam cada vez mais situações difíceis e muito mais complexas que o
seu nível de compreensão [...] convivem com problemas além do que o conhecimento
ou a experiência que possuem permite entender. Os adultos não sabem como
responder ou agir diante de situações que não enfrentaram antes, pois também eles –
embora adultos – não se constituíram na experiência coletiva [...] Os adultos só
poderão encontrar soluções para esse vazio de autoridade [...] ressignificando seu
papel, na esfera social coletiva.
23
Assinalo o esforço das profissionais da AMAS para se apropriarem de outros discursos e concepções
das crianças e de como contribuir para a formação das professoras. Emergem temas como cidadania e
cultura, direito de acesso às brincadeiras, atenção à subjetividade das crianças, etc. Contudo, percebo
que ainda têm permanecido distante das questões e problemas que emergem no e do cotidiano das
creche, o que acaba provocando uma falta de clareza tanto na formação das professoras quanto na
contribuição para a elaboração de projetos pedagógicos pelas instituições.
79
24
Segundo Porto (1998, p.183-184), as brinquedotecas, como espaços que valorizam o brinquedo e o
brincar, nasceram em um contexto urbano em que cada vez mais se reduzem os espaços ao direito de
brincar: ruas limitadas aos automóveis e shoppings significados pelo consumo expressam uma
diminuição dos espaços públicos. As brinquedotecas, originárias da década de 1930 nos Estados
Unidos, aparecem como novo lugar de convívio e socialização por meio de brincadeiras. Nos anos de
1960, na Suécia, absorveu um sentido de orientação a famílias, ajudando-as nas interações com seus
filhos. No Brasil, a presença de brinquedotecas se deu a partir da década de 1980 com diferentes
sentidos. Destaco o projeto “Brinquedoteca Terapêutica” (1986), desenvolvido na Apae-SP,
responsável pela propagação de uma concepção voltada para crianças “excepcionais” e pobres,
80
A brinquedoteca é um local muito rico. Porque eu acho que a vida em casa das
crianças está na brinquedoteca. Lá elas vão brincar de faz-de-conta, vão brincar de
casinha, vão imaginar mil e uma coisa, vão poder tocar em um brinquedo que elas
não têm em casa. Vão poder dividir com o colega e vão estar aprendendo a
compartilhar. A primeira coisa que eu digo é que a gente tem que ensinar a criança
a compartilhar. A criança não pode ter um brinquedo só para ela, porque os
brinquedos da brinquedoteca são para todos. Então tem que aprender a dividir. Eu
brinco um pouco, passo para você, e assim por diante. (Rosa)
cada pedra que ela encontra, cada flor colhida e cada borboleta capturada já é para ela
uma coleção, e tudo que ela possui, em geral, constitui para ela uma coleção única ...
Mal entra na vida, ela é caçador [...] Para ela tudo se passa como em sonho: ela não
conhece nada de permanente; tudo lhe acontece, pensa ela, vai-lhe ao encontro,
atropela-a [...] De lá ela arrasta a presa para casa, para limpá-la, fixá-la, desenfeitiçá-
la. Suas gavetas têm de tornar-se casa de armas, zoológico, museu criminal e cripta.
“Arrumar” significaria aniquilar uma construção cheia de castanhas espinhosas que
são maças medievais, papéis de estanho que são um tesouro de prata ...
A arrumação, minha sala tem dificuldade. Eles acham que se colocar tudo no canto
está arrumado. Isso é da idade, não culpo eles. Eu peço para fazer uma fila e sentar.
Levanto os brinquedos e arrumo direitinho porque se não, depois, puxam minha
orelha. Eles são pequenos. Eu posso morrer dentro dessa sala que eles não juntam
os brinquedos. Falam: ‘Tia, vamos embora. A D. já está com o almoço lá’. Eu junto
os brinquedos, faço tudo sozinha. Aí eu comecei a trabalhar isso. Comecei a fazer os
combinados. Eu acho que era falta de organização minha. Porque eu não tinha essa
obrigação de fazer uma rodinha. Primeiro, combinar. Brincar só depois que eu
apitar. Acho que é por isso que eles não juntavam, não estavam nem aí. Combinado
faz um bem. Eu tenho essa dificuldade. Eu não estou reclamando. Essa é uma
dificuldade que eu tenho. Mas ano que vem eu vou pegar uma turma maior (crianças
menos novas). (Andréa)
Foi colocado para a gente que a brinquedoteca é um lugar que tem que estar sempre
organizado, que a criança vem brincar e depois ela é quem deve guardar o seu
brinquedo. A criança ela organiza o seu espaço, mas não é a organização do espaço
do jeito que as pessoas adultas querem. Para que a gente tenha prazer ao vir à
brinquedoteca, essas coisas não poderiam estar arrumadas desse jeito [...]. Se nós
professoras nos sentássemos, conversássemos como deveria ser o melhor
funcionamento da brinquedoteca e como aproveitar melhor o espaço [...] Eu acho
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disso, adquire significado na Educação Infantil, assim como nos primeiros anos do
ensino fundamental, por subsidiar outras aprendizagens, mas não por seus temas,
linguagem, tensões e relações específicas.
Às vezes, a professora cria uma circunstância chamando de brincadeira algo que para
as crianças não têm nada de brincadeira. As crianças fazem de tudo para se livrar
daquela situação. Dispersam-se e fazem bagunça. A professora acaba ameaçando as
crianças de não deixar fazer as brincadeiras seguintes caso elas não participem da
brincadeira proposta. Essa situação é contraditória. Certo dia, escutei uma criança, no
meio da brincadeira, perguntar à professora quando ela poderia brincar.
Envolvidas em experiências concretas, as crianças o tempo todo se relacionam
com números e letras, e criam seus códigos para expressar o que estão
experimentando. Enquanto eu fazia minhas anotações, uma criança se aproximou e
pediu para escrever no meu caderno: colocou em três linhas distintas os números 1, 2
e 3, e, à frente, fez uma seqüência de letras e traços que imitavam uma escrita e
mostrou-me dizendo: “Escrevi as brincadeiras que a professora fez com a gente hoje”.
As crianças vão construindo inscrições que demandam da professora uma relação e
sistematização, possibilitando que elas se apropriem das lógicas necessárias aos
registros dos conhecimentos (escolares) que aos poucos vão elaborando individual e
coletivamente.25
25
Questões e situações como essa têm sido observadas em diferentes pesquisas. Indico a leitura do
trabalho de ROCHA (2000).
85
durante uma brincadeira que a professora fazia com as crianças, brincadeira chamada
de “Seu Lobo” (um tipo de pegador que tem um ritual: as crianças passeiam na
“floresta” e, quando se aproximam da “toca do lobo”, vão perguntando: “Seu lobo
está?” Ao que este responde: “Tô colocando minha calça, blusa, tomando banho,
passando perfume”, etc.), alguns meninos, na hora que a menina ia fazendo o papel
do “lobo”, começaram a gritar: “Tô colocando a calcinha”. As professoras não
fizeram um comentário sequer, até interromperem a brincadeira dizendo às criança
que era hora de ir para o almoço.
Ainda que não tenham intenção, as professoras acabam reforçando um tipo de
divisão entre meninos e meninas no momento de organizar os grupos, as equipes e os
times. Na maioria das vezes, divide-se a turma dos meninos contra a das meninas.
Não é que isso não possa, às vezes, acontecer, mas é necessário tomar cuidado para
não se tornar a estrutura de separação dos grupos, que desde cedo vão aprendendo
que não devem ficar juntos, quando é exatamente o contrário que acontece quando
estão brincando.
Não é comum a discriminação entre crianças brancas e negras no cotidiano da
creche. Contudo, observei que isso acontece nas formas mais sutis: nas maneiras de
valorizar a beleza das crianças ou na proximidade maior de crianças mais
“bonitinhas”, “limpas” e “fofinhas”. Não é coincidência o fato de uma criança que, de
86
forma visível se diferencia das outras pela sua pele branca, seu cabelo liso, sua
aparência “limpa e saudável”, na “hora do sono”, ser a única a dormir em um colchão
separado e afastado das outras crianças. Nas brincadeiras, as crianças demonstram
gostar de brincar entre si. Parecem gostar de suas diferenças – meninos e meninas,
brancos e negros, inclusive entre crianças de diferentes idades. É mais freqüente
agressões que se referem ao padrão de corpo das crianças: é comum uma criança,
quando quer ofender uma outra, chamá-la de gorda ou feia.
Também observei momentos em que as crianças maiores se mostram
cuidadosas com as menores, tendo comportamentos que surpreendem as professoras,
que, muitas vezes, ficam alheias a alguns perigos que as crianças correm nas
brincadeiras. São curiosas com suas diferenças. Gostam de pegar no cabelo uns dos
outros, e chama atenção quando alguma menina negra usa trancinha. Nesse sentido,
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26
Grifo meu.
87
Eu não sei te dizer se o que acontece na creche é uma educação física. Às vezes, os
meninos pedem para brincar de bola lá fora, fazer um campo, dividir [...] Às vezes, a
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gente brinca de ginástica, só que a gente não dá o nome de educação física. (Elaine)
Outras vezes, observei que a educação física, mesmo que não aparecesse
como conhecimento e com relevância pedagógica, era incluída pelas professoras,
talvez motivadas pela minha presença, em alguns momentos de suas práticas. Nessas
circunstâncias, algumas representações de educação física fizeram emergir
“conteúdos” e “formas” de organização da aula. No corredor lateral da creche, a
professora Rosa propôs a primeira aula de educação física a que assisti. Organizou a
aula a partir do que ela entende por educação física. Colocou as crianças de frente
para ela para fazer o que ela chamou de ginástica. As crianças repetiam os gestos da
professora movimentando braços, pernas e outras partes do corpo. Depois, colocou
um colchão no chão para que as crianças formassem uma fila e fizessem cambalhotas.
Mesmo percebendo que os movimentos que a professora fazia não tinham clareza
pedagógica, as crianças pareciam gostar. Davam gargalhadas e faziam caretas
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cultural.
A gente procura, procura fazer uma educação física entre aspas, porque a gente não
é propriamente um professor de educação física. Mas acontece. A gente procura
fazer isso acontecer. (Rosa)
27
Desde 1999 realiza-se um projeto de ensino e extensão do Curso de Licenciatura em Educação
Física da UFMG, o Estágio Interdisciplinar de Licenciatura, em parceria com o CEI-Pampulha
(SMED/PBH), no qual se busca articular a formação de professores de educação física à formação
continuada de professoras da Educação Infantil, partilhando a elaboração de projetos pedagógicos em
creches comunitárias. Entretanto ainda não foi possível uma partilha sistemática em outras regionais e
com a própria rede.
90
crianças de forma mais relaxada para a sala de aula. Embora seja realizada de forma
despretensiosa, carrega consigo uma lógica de ajustamento moral das crianças, que
envolve comportamentos, rendimentos e uma disposição corporal esperada:
Na minha sala eu faço educação física quase todo dia. Hora da ginástica. Para
relaxar. Foi minha irmã que me ensinou isso. Na loja que ela trabalha fazem isso.
Todo dia ao meio dia, quase na hora de almoçar, fazem um momento de relaxar.
Todo mundo coloca os braços para cima, deita no chão, tira o sapato, a blusa. Eu
costumo fazer isso. Não que seja uma educação física, mas é uma ginástica.. Depois
que sai dali, sai com coisa que descarregou bastante energia. Porque menino tem
que gastar energia. (Andréa)
28
As teorias da psicomotricidade foram ressaltadas e incorporadas à educação física como forma de
trazer respaldo a um discurso científico para a sua presença no contexto escolar. Expressaram-se como
uma forma de instrumentalizar o movimento, o corpo, as relações e as aprendizagens das crianças.
Como assinala Sayão (1997, p. 596), na década de 1970 a psicomotricidade surgiu no Brasil como
possibilidade de “renovação” de uma concepção esportivizante da educação física na escola.
Influenciada inicialmente pelos estudos de Jean Le Boulch (1984), criticava uma concepção dualista e
questionava a exigência de performances motoras das crianças. Fundamentada na psicologia do
desenvolvimento, com bases em aspectos evolutivos (cognitivos, afetivo-emocionais, psicomotores e
sociais), propunha constatar mudanças no comportamento dos indivíduos ao longo de sua existência.
Aperfeiçoou, nesse sentido, métodos e técnicas – testes psicométricos – para avaliar essas mudanças,
que acabaram tomadas como “naturais”. Mesmo no quadro da Psicomotricidade Relacional (Lapierre e
Aucouturier, 1986), esse discurso psicomotor não ajudou a constituir legitimidade à presença da
educação física, nem na constituição de seu objeto de ensino. Se, de um lado, fez um discurso que
propôs valorizar dimensões simbólicas do movimento das crianças e a expressão livre de movimentos,
por outro, o que se pôde observar foi que no cotidiano das escolas resultaram em olhares idealizados
sobre a infância e o desenvolvimento, bem como a falta de sentido e clareza de sua intenção
pedagógica.
92
Confiar no outro, saber dividir a equipe. Eu gostaria muito que essas crianças
pudessem estar aprendendo a conviver em equipe, a trabalhar em equipe. Uma vez
eu fui brincar de rouba-bandeira, eles não estavam interessados em ser uma equipe.
Cada um queria pegar a bandeira. Ficaram lá brigando entre si. Levei esse caso
para a turma e deixei que eles chegassem a uma conclusão. Eu sinto falta do futebol,
da queimada, do rouba-bandeira. Pique esconde a gente até brinca, pare bola,
Maria viola, algumas brincadeiras dessas. (Fátima)
29
É comum a educação física ser instrumentalizada como treino de “habilidades motoras” ou como
desenvolvimento do que é chamado de “capacidades coordenativas”, discursos ligado à “aprendizagem
motora”, no qual a educação física, no contexto escolar, se ocuparia do desenvolvimento físico-motor,
enquanto outros saberes se ocupariam do desenvolvimento cognitivo, principalmente, segundo um
modelo de educação física centrado em uma idéia restrita de esporte, destituído de uma inserção
cultural complexa e contraditória, para a qual requer permanente problematização, reconstrução e
ressignificação das experiências coletivas.
93
anterior ela havia ensinado a descer e subir escada saltando com apenas um dos pés, e
que só depois as crianças aprenderiam novos movimentos.
Mas o que é pular corda como uma experiência cultural? Saber pular corda é
aprender, “de forma mecânica”, uma seqüência de habilidades de complexidade
progressiva? Existe uma maneira certa de pular corda? Maneiras mais prestigiosas,
talvez. Mas o que se quer que as crianças aprendam com as experiências culturais?
Busca-se fazer coisas para saber quem faz melhor ou quem mais se aproxima de um
padrão de desenvolvimento idealizado e esperado? Quanto às diferenças entre as
crianças, suas experiências anteriores, suas maneiras de descobrir o movimento e suas
formas de organização? Quantas maneiras existem de brincar de corda? Quantas
músicas as crianças, os adolescentes e os adultos conhecem e podem partilhar?
Quantos jeitos de experimentar esses movimentos? Quantos desafios individuais e
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coletivos?
Ressalto um sentido histórico da presença do corpo na escola, um processo de
escolarização da educação física, que traz consigo uma marca, ao mesmo tempo,
dualista – relações que dividem corpo e pensamento, dimensões motoras e cognitivas
– e hierarquizada dos seres humanos, colocando o “físico” a serviço do “psíquico”,
expressando ênfase no desenvolvimento de habilidades motoras como pré-requisito,
ou compensação ou suporte de outras aprendizagens (tanto escolares quanto sociais)
desejadas.30
Alternativas de superação dessas visões e possíveis contribuições – tanto para
a legitimação da educação física no contexto escolar quanto para a problematização
das experiências culturais na escola – emergem em um contexto de aproximação
entre as ciências humanas e sociais, refazendo críticas a modelos e padrões lineares
de compreensão dos processos de aprendizagem e desenvolvimento, no sentido de
restaurar em seu interior o lugar histórico, social e cultural dos sujeitos e dos
conhecimentos escolares.
No campo da educação física, a partir da década de 1980, vão emergir críticas
ao até então hegemônico “paradigma da aptidão física e esportiva”, trazendo à cena a
importância de superar uma trajetória marcada por dificuldades de apresentar
94
argumentos que a legitimassem com saberes próprios e uma ação pedagógica singular
(BRACHT, 1992). Nesse sentido, as práticas corporais vêm sendo afirmadas como
conhecimentos culturais construídos historicamente, o que, na educação física, passou
a ser identificado pelo conceito de “Cultura Corporal” (COLETIVO DE AUTORES,
1992, p. 6131), abarcando práticas culturais como as ginásticas, os esportes, as danças,
as brincadeiras, as lutas, entre outras, que passam a ser tomadas como temas
escolarizáveis na educação física, esta compreendida como componente curricular
que precisa ser tratado na especificidade das experiências escolares.
Mesmo considerando que a expressão Cultura Corporal é arbitrária, que
críticas são pertinentes e evidenciam contradições implícitas,32 sua enunciação traz
como fundamento radical a noção de “cultura” – no sentido de desnaturalização da
experiência humana carregada de signos elaborados, partilhados e reconstruídos de
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30
Sobre o processo histórico de enraizamento da educação física na cultura escolar, sugiro a leitura de
VAGO (2002). Cultura Escolar, Cultivo de Corpos.
31
Segundo esses autores, “a Educação Física é uma disciplina que trata, pedagogicamente, na escola,
do conhecimento de uma área denominada aqui de cultura corporal. Ela está configurada com temas ou
formas de atividades, particularmente, corporais, como as nomeadas anteriormente: jogo, esporte,
ginástica, dança ou outras, que constituirão seu conteúdo. O estudo desse conhecimento visa apreender
a expressão corporal como linguagem”.
32
Não esgota, nem deve pretender esgotar, as possibilidades de tematização e experiência dos
conhecimentos de que trata a educação física no contexto escolar. De um lado, a noção de cultura
pressupõe o corpo como fundamento de sua materialidade histórica; de outro, reforça uma recorrente
dicotomia corpo-mente, uma vez que deixa implícito que se há uma “cultura corporal”, deve haver
uma cultura “não corporal” (KUNZ, 1994, p. 19).
95
33
COLETIVO DE AUTORES, 1992; BRACHT, 1992 (em especial, o texto “A criança que pratica
esportes respeita as regras do jogo ... Capitalista).
96
• “Música para” comer, “música para” agradecer, “música para” fazer roda
... “música para” quê?
Musicalização é a gente trabalhar música com sons, música com teatro, música com
culinária, [...] isso é importante. Eu fiz, nós fizemos cursos de musicalização. Aí, nós
fizemos a bandinha com sucata. Foi muito legal. Tem aí uns pedacinhos dela até
hoje. E os meninos vão conhecendo os sons, os diferentes sons, os sons que vêm de
fora, os sons que estão aqui dentro. Começam a perceber os sons que tem na vida, no
dia-a-dia. (Andréa)
Eu acho que a música deixa a criança mais calma. Ela pensa mais, ela imagina, ela
imagina coisas que nem passam pela cabeça da gente o que é. Eu acho que elas
aprendem com a música. (Rosa)
querem que as crianças façam, nesses outros momentos a professora se envolve com
as crianças e não pede coisas que nem ela acredita que seja necessário fazer. A
melodia e a voz da professora parecem aconchegar as crianças, e cada uma no seu
tempo participa do que a professora propõe ou convida. Todavia, percebi também que
isso vai ficando automático, e todas as vezes que as professoras querem determinadas
formas de organização já associam uma música, descaracterizando a relação que
estão construindo com as crianças. Acabam institucionalizando as músicas,
transformando-as em músicas para fazer alguma coisa:
Também fazem adaptações na letra da música, mesclando uma música conhecida (de
domínio público) com algum tema proposto pela professora. Nestes casos, o que se
observa é um diálogo mínimo com as possibilidades estéticas e culturais, em suas
formas de expressão artística e musical. As crianças fazem gestos mecânicos, não se
apropriam das músicas ou as apreendem descaracterizadas. Músicas que passam de
geração em geração são modificadas para atender a objetivos pontuais, relacionando
temas propostos pelas professoras. As crianças gostam de fazer as apresentações.
Fazem as expressões mais delicadas. Os colegas parecem entretidos. É um momento
de interação e envolvimento importante para as crianças. Todavia, fica a sensação de
que poderia ser mais, no sentido da apropriação e produção cultural pelas crianças.
Neste ponto, reflito sobre o tipo de encenação que, na maior parte das vezes, é
partilhada com as crianças. A escola e os conhecimentos que ela é capaz de relacionar
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são preenchidos com o que já é corrente na vida de crianças e professoras pelos meios
de comunicação. Reforçam programas e apresentadoras de televisão, valorizando
como modelo músicas, brincadeiras e temas que dizem muito pouco àquelas crianças,
quando não as coloca em lugares secundários, em que o que menos importa é a
presença da criança. Escolhem músicas de artistas que circulam na televisão, a
maioria de qualidade duvidosa, mas que são reforçadas às crianças como modelo de
consumo musical ou cultural. Embora eu tenha observado que essas informações são
apropriadas de maneiras diversas, concluí que isso demanda mediações intensas por
parte das professoras, que, muitas vezes, não se mostram mobilizadas a fazê-las.
O teatro também é comum nos dias em que a creche recebe algum visitante
considerado ilustre. Certa vez, as professoras prepararam as crianças para apresentar
um teatro com o tema alimentação para a representante da Secretaria Municipal de
Abastecimento, que estava visitando a creche. A maioria das crianças assistiu ao
teatro. Embora nem todas elas participassem como personagens do teatro, a manhã
inteira foi destinada a esta apresentação. Em sala, as professoras fizeram fantasias e
pinturas de rosto com as crianças que iriam encenar. As outras esperaram em suas
34
Encontro Setorizado organizado pelo CEI-Barreiro, realizado em 26/6/2002, no qual um dos temas
propostos para a reflexão foi “O brincar como desafio da Educação Infantil.
35
Sobre a presença do teatro na escola e as possibilidades de sua tematização, sugiro a leitura de
CARVALHO (1999).
99
salas pela hora do teatro. Brinquedos foram espalhados, e as crianças se viraram com
o que tinham em mãos. Prepararam as crianças para acompanhar, cantando e
dançando músicas tipo “Banana de Pijama”; trocaram a letra de músicas populares
incluindo o tema dos alimentos. Houve, também, coisas interessantes, como a
criação de versos e parlendas declamados pelas crianças.
As crianças ficaram encantadas com o que estava acontecendo. Todavia, era
nítido que a prioridade daquele momento não eram as crianças. Percebia-se um
esvaziamento dos significados que aquele momento adquiria. Observei que esses
momentos eram importantes também para as professoras. Algumas, quando iam
comentar ou ler alguma coisa em público, como as crianças, não o faziam com
tranqüilidade. Outras ficavam tão nervosas que a voz desaparecia, o olhar voltado
para o chão, constrangidas. Como ressalta Desgranges (1999, p. 53), sem ter
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experiências para contar, ficam entregues ao vazio de uma linguagem que nada
acrescenta, superficial e informativa. Apesar de tudo, as crianças adoram partilhar
destes momentos. Todas as oportunidades de colocar uma fantasia, expressar papéis e
representar situações são vividas de forma significativa.
Um exemplo interessante é como a festa junina foi experimentada pelas
crianças. Em muitas creches, é comum a dança de quadrilha ser montada como forma
de apresentação para os pais, com músicas que, muitas vezes, não têm qualquer
relação com o contexto cultural que propõem realizar. É nítida a menorização da
participação das crianças envolvida em algo que é feito para ser mostrado para outras
pessoas. Na creche pesquisada, observei algo que se afastou desse modelo. A
quadrilha foi experimentada no dia-a-dia da creche, e a maioria das crianças quis
participar. A quadrilha ensaiada não trazia uma coreografia forjada. Expressões
tradicionais desse tipo de dança, como “caminho da roça”, “olha a chuva”, “caracol”,
foram ensinadas às crianças. Não havia exigência de um jeito certo de fazer os
passos. As crianças faziam os gestos que davam conta de dançar, e cada uma a seu
modo. O ensaio na escola não parecia um treinamento de algum número para que os
pais assistissem a ele. Percebia-se que era gostoso estar dançando, as crianças e as
professoras envolvidas. No dia da festa, dançaram para os pais. Mas não era um
100
uma visão da mulher como fraca, dependente, que levou Adão a pecar, culpada da
“desgraça” do homem. Tudo vai passando sem uma mediação sequer. Algumas
crianças repetem em voz alta: “Eu que sou o Adão”; “Aquele é igual ao meu pai”;
“Aquela é igual à minha mãe”. Nesses momentos, estabelecem uma permeabilidade a
determinadas representações e valores, sem que se desdobre em mediações
necessárias.
As crianças não assistem a tudo de forma passiva.36 Na maioria das vezes,
fazem outras coisas e sequer olham para a televisão. Outras captam só o que lhes
interessa. Gostam das músicas, cantam e, às vezes, fazem comentários
desconcertantes. Como no dia em que as crianças assistiam a uma fita de vídeo do
filme “Branca de Neve e os Sete Anões”. Um dos garotos comentou: “Tadinha da
Branca de Neve”, ao que uma menina retrucou: “Tadinha de mim”. Entendi com se
ela estivesse dizendo que já não agüentava mais ver aquele filme.
Para as crianças, esses momentos não são agradáveis. Elas são repreendidas e
devem ficar quietas e em silêncio. Ouve-se a todo tempo o psiiiii... característico para
dizer às pessoas que calem a boca. Quando era feito algum comentário, referia-se a
dimensões moralizantes do tipo: “Está vendo que feio que ele fez, que sujeira, que
bagunça”. As próprias crianças repetem essas expressões, e elas mesmas tomam conta
36
Sobre o tema, sugiro a leitura da tese de doutorado de PEREIRA (2003).
101
dos colegas, dizendo umas para as outras: “Vou contar para a tia, viu”. Assim, na
mesa do refeitório, são servidas às crianças coisas que nada servem além de
preencher o tempo ou reforçar conteúdos morais, aproximando as crianças muito
mais de um processo civilizador do que de uma possibilidade de apropriação e
escolha do que vêem na televisão.
As professoras preenchem esse tempo fazendo coisas que não têm relação
com o filme e com a relação proposta. Alheias ao que está acontecendo, conversam
sobre outros assuntos. Por exemplo, enquanto as crianças assistiam a um filme que a
professora escolhera, outra professora começava a puxar um assunto sobre a
necessidade que ela estava tendo de abrir uma conta em um banco e ter talão de
cheques, saindo de cena e abrindo mão de se relacionar com as crianças. Às vezes, o
filme não chega à sua metade, e a professora o interrompe dizendo ser hora de ir para
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atenção às práticas e aos discursos sobre os corpos dos sujeitos que se refletem e se
refratam na organização dos tempos e espaços escolares, e se expressam na
radicalidade de suas relações históricas e culturais. Reconhecer-se nessa história é
condição de sua superação.
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3. Sujeitos, narrativa e discursos: da apropriação de uma
história à possibilidade de sua ressignificação
37
Amorim (1998: 80), com base em Bakhtin (1998), afirma que o discurso dos sujeitos – objeto
cultural – é objeto polifônico e dialógico. Polifonia pressupõe múltiplas vozes que falam em um
mesmo lugar, o que requer uma síntese dialética das instâncias criadoras do texto. Tal perspectiva
busca, sobretudo, incorporar o lugar da palavra do outro – a alteridade – no interior do texto, sujeitos
que falam tanto quanto o pesquisador, suscitando uma outra inteligibilidade das relações enunciativas.
38
Sobre este tema, sugiro a leitura de FIGUEIREDO, Fabiana et. al. (2003).
105
cotidianas, vê-se tecida uma vida coletiva, uma trajetória que consolida discursos e
significados sociais. São falas, ações, relações, conceitos e preconceitos que, dia-a-
dia, se alimentam, se desconstroem e podem ser reelaborados:
Eu trabalhava na Associação do Bairro. A creche surgiu com as mães para quem era
dado um curso de corte e costura, para que elas tivessem onde deixar os filhos. A
comunidade pediu que tivesse esse tipo de curso, e a associação montou com ajuda
da Secretaria do Trabalho. A demanda era muito grande e não tinha vaga na creche
‘C’40. Então falaram que a gente podia fundar uma creche. (Gilce)
Uma vida partilhada nos bairros vai se constituindo em palco de demandas por
uma situação melhor. Em cada conquista, novos desafios. As primeiras solicitações
da comunidade não se fundam no reconhecimento de direitos. Restringem-se, por
exemplo, a cursos que auxiliam no aprendizado de um ofício e à possibilidade de
alguma geração de renda. Cruzam-se com a necessidade de ter onde e com quem
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aí surgiu a anterior presidente da associação. Pegou logo aquela idéia. Ela falou:,
‘Se vocês quiserem, nós vamos fundar uma creche’. Procurou um lugar para alugar
e começou a pegar as crianças das mães no curso, e buscou recurso para ajudar as
pessoas. Muitas famílias hoje contam. Elas falam: ‘Que saudade que eu tenho dela,
ela matou muita fome das pessoas’. Quando ela não podia tirar do próprio dela, ela
pedia ajuda para outras pessoas. A creche passou a pagar um aluguel alto. Ela
recebeu uma proposta de um moço aqui deste bairro, que daria para ela três
cômodos se ela passasse para ele o valor em material de construção. Assim ela fez, e
foi onde a creche funcionou dez anos. (Gilce)
39
Essas questões remontam a reflexões postas por Paulo FREIRE, especialmente, nos textos Educação
como prática de liberdade (1979) e Pedagogia do Oprimido (1987).
40
O nome dessa creche foi omitido, uma vez que traz o nome de sua fundadora. Denúncias de
irregularidade podem ser encontradas nos projetos pedagógicos de ambas as creches, constituindo
documentos elaborados pelas creches e arquivados na Secretaria de Educação da PBH, bem como nos
relatos orais das pessoas que estiveram presentes nessa história.
107
coordenadora D. Gilce, que se expressa de forma ambígua. São sujeitos que ganham
visibilidade por voluntarismo, aparentemente, despretensioso e benevolente, que vai
se enraizando com uma ação de tutela que, ao contrário do que é percebido, absorve
outros ganhos. São lembrados como benfeitores da comunidade, dispostos a ajudar, a
“tirar do seu próprio bolso”. Todavia, além da gratidão da comunidade, recebem o
controle, o poder e a tomada de decisão: não prestam contas das verbas de convênios,
nem das doações arrecadadas, como se pode ver neste depoimento:
Ela já tinha fundado uma outra creche antes no bairro, que tinha problemas que eu
desconheço. Ela entregou a direção da creche. Então eu fui convidada por algumas
pessoas da Associação para tomar conta da creche, porque a creche já estava
tomando um tamanho muito grande e estavam aparecendo muitas dificuldades. Eles
me falaram: ‘Você chega lá e corre atrás para ajudar, se você não for a creche vai
acabar mesmo”. Eu fiquei com aquele pesar. Eu falei: ‘Eu vou lá para ver’. E fui.
Conversei com a representante da AMAS. Ela falou: ‘Olha, essa creche está difícil
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Eu fiquei dois anos e meio atrás dessa construção, acompanhando, fazendo mutirão
com o povo da comunidade. Toda mão-de-obra pesada da creche foi feita com
mutirão. Foi uma luta, mas uma luta, assim, que agora a gente está tendo retorno. O
espaço que tem hoje para os meninos [...] a comunidade toda se envolveu para
ajudar. Tem funcionário que está aqui desde que a creche foi fundada. (Gilce)
108
A creche começou a funcionar no finalzinho de 79 e foi até 86, 87. Não era bem um
atendimento. Era mais as crianças das mães que faziam os cursos. Elas revezavam.
Quem fazia o curso de manhã ficava com as crianças à tarde. As mães que tinham
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feito o curso arrumavam emprego e já não podiam ir para a creche para trabalhar
como voluntárias. As meninas passaram a tomar conta dos meninos, meninas assim
de treze anos, filhas das pessoas que eram alunas. (Gilce)
Tinha boa alimentação, graças a Deus. A gente preocupava muito com alimentação,
era muito cuidadoso. A gente dava alimentação para os meninos que não tinham. A
gente não pensava ainda na parte pedagógica; estava mais preocupada se o menino
ia ter o banho, comida, carinho e cuidado ali na hora certa. De certa forma, a gente
estava fazendo também a parte pedagógica, só que não tinha conhecimento: ensinar
as crianças a comer, a cuidar do seu corpo, a cuidar da higiene e dele mesmo. Você
está educando, é uma prática educativa. A gente fazia essa prática educativa na hora
dos cuidados, na hora do banho, dos cuidados higiênicos. Falava para a criança: o
que ele estava lavando era o ouvido, a cabeça. Isso a gente fazia. (Gilce)
Eu vim não para trabalhar, mas minha tia falou que estava precisando de uma
pessoa lá na creche onde eu trabalho. Aí que eu fui trabalhar lá. Era voluntário. No
final de semana dava alguma coisa para a gente, o que tinha lá na creche. (Cíntia)
Não é à toa que as creches vão sendo denominadas de lar. Do ponto de vista
tanto das demandas pelo atendimento das crianças quanto das práticas que as
professoras davam conta de desenvolver nas suas relações com as crianças, este
contexto não possibilitava nem a quem reivindicava nem às pessoas que realizavam o
atendimento a percepção e a elaboração de uma identidade e de uma “cultura
profissional” (NÓVOA, 1995). Neste caso, a experiência como mãe, ao menos,
110
Foi fazer rede de esgoto. Nós ficamos na terra, com aqueles buracos enormes no
chão. Os meninos caíam nos buracos. A creche não tinha muro. Nós ficávamos na
sala o dia todo com os meninos porque não podia sair, não tinha terreiro nem nada.
Saía da sala e dava na rua. O banheiro não tinha chuveiro, tinha que jogar água. A
sala era pequenininha demais. Só tinha um banheiro. O que era maior um pouquinho
era só o berçário. Mas aí tinha oito berços que ocupavam a sala toda. Era daqueles
berços de hospital, uns berços de ferro, enormes. (Cíntia)
só melhorou depois que passou para cá. Não tem nem jeito de falar. Caí no céu.
Para começar, lá as crianças não tinham brinquedo, não tinham onde correr. Lá a
gente ficava só dentro de sala porque não tinha onde ir. Aqui a gente não fica na
sala. Lá, só ficava na sala mesmo. Aqui tem parquinho, tem brinquedo, tem
brinquedoteca, tem brinquedo que a gente leva lá para fora, coloca lá para eles
brincarem. E também a parte pedagógica que não tinha lá, que agora tem, porque
era considerado, igual sempre falam aqui, que era só o cuidar e agora não pode ser
mais isso [...] O mais importante agora é que a criança está em desenvolvimento, e é
importantíssimo você começar desde o início com a criança. (Cíntia)
Tem muita coisa que a gente tem vontade de chegar lá com essas crianças. Muita
coisa boa para frente que a gente vai tentar pegar para estar passando para essas
crianças. Porque é agora que eles precisam de estar aprendendo. Lá era criança
carente mesmo. Aquele olhar triste que a gente olhava e não tinha como você estar
ajudando aquelas crianças. Aqui não, graças a Deus. A criança é caidinha aqui, a
gente tem mais o “com quê” e “como fazer” para que aquela criança se desenvolva
e vá para frente. O olhar aqui é totalmente diferente do que era antes. Lá,
trabalhava, trabalhava e ficava em vão. Aqui não, você está vendo que está havendo
crescimento naquilo que está fazendo. (Cíntia)
A creche, eu acho que é um lar, uma casa, um lugar que dá vida nova, ... que dá
procedência para as crianças que entram aqui. Eu acho que elas na rua, elas não
teriam o que elas têm aqui. Porque aqui elas têm alimentação, educação, têm
carinho, tudo que eu acho que elas mereciam e merecem. O que eu mais gosto é o
prazer enorme que eu tenho, de chegar aqui na creche e os meninos virem com um
abraço. Isso é muito grande,41 porque eu sei que, não todas, mas algumas não têm
um carinho que merece dos pais. (Rosa)
Nas falas das professoras, a creche expressa papéis que guardam estreita
relação com as próprias concepções e visões que trazem das crianças, das famílias e
da comunidade, bem como a expectativa social que conseguem vislumbrar. Mesmo
hoje, a creche aparece como um lar e como uma segunda casa para as crianças, como
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também para as próprias professoras. A “idéia de lar” amplifica ainda mais uma
dualidade que existe entre a educação que as crianças têm ou deveriam ter nas suas
famílias e o papel que a creche pode assumir neste contexto. A creche absorve
dimensões de uma educação primária, do aprendizado das primeiras relações, onde se
misturam afetos, valores e cuidados fundamentais: professoras e crianças
condicionam e se condicionam nessa relação familiar ambígua. Tomada como lar,
reforça o papel social das professoras como aquelas que estão ali para suprir
necessidades e carências das crianças. Reforçam a idéia de que carinho, brinquedo e
alimentação constituem o centro das ações42 da creche:
Aqui é uma segunda casa. Porque, vindo para a creche, elas não têm o brinquedo
delas aqui, mas elas podem brincar, são delas, elas só não podem levar para casa
[...]. Até o carinho que o pai e a mãe não podem dar em casa elas encontram aqui
nos educadores, na diretora, na pedagoga, na cozinheira, na faxineira, todo esse
papel. (Rosa)
41
Embora seja contraditório e ambíguo, é bonito ouvir a professora dizer isso.
42
Ressalto no texto de Kuhlmann Jr. (2000b, p. 13) sua citação da Creche Central do Patronado de
Menores, entidade criada pela iniciativa de juristas e senhoras da sociedade fluminense, em 1908, no
Rio de Janeiro, cujo regulamento se baseava em uma idéia de “suavidade e carinho a serviço das regras
científicas”.
113
Eu acho muito importante essa creche existir aqui nesse bairro, justamente porque é
uma creche que acolhe a criança com muito carinho. Eu percebo isso e sempre falo
com as meninas: ‘Vamos receber com todo carinho e com todo amor que a gente
tem, para que amanhã a gente não chore junto com a família a perda desses
meninos. Que cada um trilhe caminhos diferentes, cada um trilhe seu caminho, mas
que a gente tenha contribuído para que eles trilhem bons caminhos e que eles
tenham aqui na creche um lugar em que eles se sintam bem’. (Gilce)
Eu espero que sejam bem felizes, que tenham uma profissão, que não caiam nesse
mundo aí. Teve um aqui na creche que já é traficante hoje. Sabe, eu tenho pena deles
depois que saem daqui. Quando saem daqui, a gente não tem mais contato. Se
alguém vai cuidar, porque minha mãe sempre gosta de carregar nas costas a família
e os meninos. Mas eu espero tudo de bom para eles. Espero que lembrem de mim
como uma fase boa na vida deles. (Andréa)
Eu acho que a creche aqui é muito importante porque se elas não estivessem aqui
elas estariam na rua. Talvez não teriam alimentação, talvez estariam se
marginalizando. (Rosa)
Aqui eu acho que estamos resgatando um pouquinho a infância deles. Porque eles
estão brincando e estão fantasiando. Acho que a creche contribui, sim, só por ter
esse espaço aqui e a gente poder estar trabalhando com eles, estar tirando elas da
rua mesmo. Que às vezes a mãe trabalha, a criança fica na tia, ou com outra pessoa,
às vezes fica até na rua brincando. Então, a gente está trazendo os meninos para cá.
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Eu acho que se as mães não tivessem a creche para apoiá-las, para cuidar dos filhos
delas, como elas iriam trabalhar, como iriam ganhar o pão de cada dia? Eu acho
que a creche para a família é muito importante. (Rosa)
A creche, no início, possibilitou meu filho ter onde ficar e de estar comigo. Porque é
muito difícil você estar com a criança pequena, igual a gente vê agora, tem mãe que
a gente morre de dó, ter que deixar a criança pequena na creche para estar saindo.
O coração corta de dó de ter que fazer isso, mas infelizmente precisa trabalhar.
Porque é muito difícil ter que deixar uma criança pequena o dia todo fora da mãe,
mesmo que você confie que estão cuidando direitinho. Eu fiquei o tempo todo ali com
ele. Saiu da creche para ir para o grupo. Ficou na minha sala, depois foi para outra
sala, mas eu estava ali mesmo. (Cíntia)
Primeiro, porque peguei uma prática como professora. Eu tinha prática de ficar só
cuidando. Nunca ensinei nada. Ensinava a comer, a escovar os dentes, a falar. Mas
nunca de ensinar mesmo. Ensinar cores, dar brinquedos. (Andréa)
Para mim, a creche é mais que importante, porque eu acho que aqui eu aprendi
muita coisa, [...] conquistei uma nova família aqui, adquiri novos amigos e acho que
estou crescendo a partir daqui. Foi uma segunda casa que eu encontrei. (Rosa)
A família, às vezes, não tem condições de dar o banho, igual essas que moram
debaixo da lona, que eu cheguei a visitar. Eu falo sempre com as meninas: ‘Tem
coisa que tem que ser cobrada e tem coisas que a gente tem que ajudar eles
conseguir, que não adianta você cobrar. Você vai trazer um problema mais sério
para a pessoa’. (Gilce) 43
Tem a preocupação de como estar ajudando. Conversei com ela a respeito da auto-
estima, porque ela abaixava a do filho quando falava que ele era feio. Ele um dia
falou comigo: ‘Minha mãe falou que eu sou feio. – ‘Mas você não é feio. Você é
muito bonito’. Falei com ele. E eu tenho um problema sério com esse negócio, eu
fui considerada a pessoa mais feia muito tempo da minha vida. Eu senti que esse
menino ia ter o mesmo problema que eu tive. (Gilce)
43
As entrevistas coletivas estarão ressaltadas com negrito para diferenciá-las das falas das professoras
nas entrevistas individuais.
117
A criança não valoriza o seu nome.44 Então, às vezes, o menino tem um nome e é
chamado de outro. Porque quem pôs o nome na criança foi a avó e não a mãe, que
não gosta do nome. Então é a identidade da criança, o nome dela, que ela deveria
gostar, contar a história. Todo mundo tem uma história do nome. É a sua história
que você começa a carregar, e as crianças então não valorizam isso, não sabem
nem a data do aniversário. Quando você conversa, você vai percebendo
determinadas coisas que eu acho que seriam importantes no nosso papel de
educação, de trabalhar a identidade da criança. (Valéria)
tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha
consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros [...], e me é dado com a
entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim,
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originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que
servirão à formação original da representação que terei de mim mesmo.
44
É interessante perceber a importância do trabalho realizado nas Escolas Municipais de Belo
Horizonte em 1994, pelo professor Francisco Marques Rocha – em parceria entre a PBH a Associação
Movimento Popular Paulo Englert (AMEPPE) desenvolvendo o projeto “A palavra é sua”,
divulgando e tematizando o Estatuto da Criança e do Adolescente. A partir deste trabalho, o “contar a
história do nome” foi uma relação e proposta que passou a circular em diferentes escolas por muitas
professoras.
45
A demanda por creches é bem maior que a possibilidade de atendimento na rede conveniada e/ou
pública. Quando as famílias recorrem ao Conselho Tutelar, este exige que o direito da criança ao
atendimento seja respeitado de forma imediata. Como em muitos bairros ou próximo à residência das
famílias não há outra creche, havendo vaga ou não, as instituições se vêem obrigadas a aceitar a
matrícula das crianças
118
Tem uma pessoa do Conselho Tutelar que fala que todas as pessoas que procuram o
Conselho falam muito bem da creche pela forma de atendimento com a família que
chega. Independente de ter vaga ou não, eu não deixo de conversar com a família.
Eu mando entrar, sentar, converso, explico para ela porque não tem a vaga. Às
vezes, vem com vários problemas. Eu chamo a família para conversar, pergunto o
que está acontecendo e procuro ajudar. Encaminho para algum lugar que possa
estar ajudando ou eu mesmo vou procurar ajuda para aquela pessoa. Eu acabo
carregando os problemas das pessoas para mim. Eu quero ajudar e ver a pessoa ser
ajudada. (Gilce)
Essa família que a gente atende, de uma menina que eu peguei com desnutrição,
recomendada pela médica do centro de saúde para não ficar com ela porque a mãe
era muito problemática. Eu falei: ‘Se ela morrer, vai morrer de barriga cheia. Com
fome ela não vai morrer’. Eu não consigo me desvincular dela. Acompanhei na
creche e estou acompanhando na escola. A mãe não consegue emprego, a
alimentação é toda ganhada. Eu ganho para ela todo mês 30 reais desde que a
menina estava aqui. Vou na casa dela e vejo em que estão mais necessitadas, se é
leite, se é feijão, se é arroz. O que tem menos eu compro. Eu fico buscando caminhos
para que seja mais fácil para eles e, amanhã, não ter nenhum sentimento ruim da
creche. (Gilce)
46
O termo filantropia foi aqui tomado, em sentido restrito, como sinônimo de “caridade” para com os
mais pobres.
119
processo coletivo de significação de papéis sociais que vão sendo atribuídos a esse
tipo de instituição:
A creche tenta não entrar em atrito com a família. Se chama para conversar, é mais
amigavelmente, para não ter tipo uma guerra entre comunidade e creche. Sempre
tem uma ou outra que é muito brigona. Às vezes, chega de uma creche que não foi
tratada bem. Quando elas chegam aqui dentro, elas mesmas falam: ‘Achei que aqui
ia ser uma chatice, porque toda creche que eu vou sou maltratada’. Chegam aqui,
elas têm outra visão. Tem umas que já chegam com o nariz em pé, com ar de briga.
Quando chega aqui dentro e a gente vai conversar, vê que não é assim que acontece
as coisas. (Andréa)
O que as creche esperam dos pais e das mães das crianças? O que as famílias
esperam da creche? A relação com as famílias é tensa. No caso das creches
comunitárias, o distanciamento entre a creche e as famílias exacerba-se em um
cenário no qual a visibilidade das famílias das crianças é marcada pela imagem de
negligência em relação aos filhos e filhas. Como assinala Tiriba (2001, p. 75), na
maior parte das vezes, ora reforçam essa incompetência e dependência dos pais e
mães das crianças, ora cobram das famílias coisas muito difíceis, para não dizer
impossíveis, de ser cumpridas. As reclamações da creche em relação às famílias se
referem à falta de cuidado, de educação e de higiene das crianças, ao fato de não
comparecerem às reuniões promovidas pela creche e ao atraso ou não-cumprimento
das contribuições solicitadas, que, embora não sejam obrigatórias, são requisitadas,
120
por exemplo, quando se pede algum material, advertindo que se não levarem,
“somente a turma de seu filho vai ficar sem fazer a atividade”. Esperam ainda que
pais e mães, alguns analfabetos, tomem conhecimento dos bilhetes, entendam e
respondam o que a professora solicita:
O convite às famílias para uma aproximação com a creche, nesse sentido, não
diz respeito à inclusão na construção pedagógica da creche, mesmo porque
apresentam dificuldades de compreensão da Educação Infantil. A relação com as
famílias ainda fica restrita a convites para participação em alguma festa ou evento, ou
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para usufruir algum serviço prestado à comunidade, como corte de cabelo ou “exame
de vista”. A creche até procura ressaltar alguma questão pedagógica e dar aos pais
informações sobre o desenvolvimento das crianças. Mas as reuniões pedagógicas
acabam acontecendo muito mais como processo de educação da família do que como
partilha do cuidado e de uma educação mais coletiva das crianças (CUNHA, 2000, p.
459).47 Tais iniciativas, vez por outra, acabam gerando mais preconceitos que
ajudando os pais a lidar melhor com suas crianças:
A creche contribui. Porque a creche esse ano, o presidente trouxe vídeo, trouxe texto
para ler na reunião, para mudar essa visão. Mas eu acho que ainda não
conseguimos. (Andréa)
Tem algumas mães que são participativas. Às vezes, quando tem festa, a comunidade
desce para participar. A creche faz por onde, chamando os pais e a comunidade
para participar. Palestras sobre a violência familiar. Eu acho que isto está ajudando
a comunidade. A gente coloca cartaz lá fora convidando a comunidade. Festas, corte
de cabelo [...] a gente deixa um bilhete lá fora para quem se interessar. Isto tudo é
uma forma de estar trazendo a comunidade. (Rose)
47
Mesmo não sendo uma constatação específica desta pesquisa, percebo que isso acontece, ainda que
carregada de signos diferentes, tanto nas creche comunitárias quanto em creches privadas que atendem
crianças de classe média.
121
a creche. À medida que a creche, mais que informar ou apresentar o que está fazendo,
se envolve com a família e a convida para participar de sua construção, esta passa a se
apropriar da educação das crianças, e a creche ganha outros sentidos. Quando as
professoras conversam com os pais sobre suas propostas, pouco a pouco, vão
acontecendo transformações significativas na compreensão das famílias sobre o
trabalho realizado com as crianças. Acontecem reações inesperadas. Algumas mães
buscam qualificar não apenas seu entendimento do que está sendo proposto para a
educação de seu filho, como também sua condição e seu desejo de participar nos
“eventos” e nas reuniões propostas.
(Gilce)
Teve uma reunião na creche que os pais foram para a sala e eu falei que a
dinâmica era brincar. Eles começaram a dizer que não tinham tempo para brincar,
que tinham muita coisa para fazer. Eu acho que brinquei sozinha. [...] Fiquei triste
demais. Eu tinha planejado tudo para não dar em nada. Depois dessa semana eu
percebi que quando eu pergunto para os pais o que eles acham do projeto,
puderam ver o que tinha de valor, que as crianças estão se desenvolvendo. Tem
mãe que até leu um texto, ela colocou assim: ‘A criança, quando brinca,
desenvolve a autonomia, a identidade e a socialização’. Ela colocou um monte de
coisas. Você via que ela leu, para saber mesmo o que estava acontecendo.
(Andréa)
Dar voz ao outro não é tarefa fácil. Envolve tensões e contradições, mas
convida os sujeitos a novas apropriações. As famílias, ainda que não tenham uma
compreensão maior das propostas da creche para a educação das crianças, estão em
contato com outras escolas e querem o melhor para seus filhos. Também expressam e
trazem consigo olhares e conceitos que, embora, muitas vezes, equivocados, não se
distanciam dos próprios discursos que circulam entre as professoras:
Sinto que as famílias vão compreendendo aos poucos. Os pais e as mães estão em
contato com outras escolas. Às vezes, ela fala: ‘O filho da fulana está na outra
“escolinha” e lá é assim’. (Gilce)
122
Observei que as famílias valorizam e cobram aquilo que lhes é ressaltado pela
creche como importante. É a própria instituição infantil que, muitas vezes, coloca em
relevo as coisas que os pais passam a esperar da creche. E o que a creche espera das
famílias, estas vão criar suas próprias estratégias para dar conta. Por que os pais
acham que ler e escrever são os conhecimentos que têm importância na Educação
Infantil? Os pais não querem que o filho vá mal na escola, que não aprenda as coisas
que a professora ensina ou que se comporte mal na escola. A imagem da instituição
circula da creche para a família, e vice-versa, alimentando discursos e, até mesmo,
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Às vezes, é a própria mãe; às vezes, é a irmã que faz o Para casa.48 Está lá com o
caderno cheio de atividade. Mas a gente tem que ter essa preocupação também,
para atender a família. (Valéria)
48
“Para casa” é o nome dado às atividades propostas às crianças que serão realizadas como exercícios
de aprendizagem. Esta é uma proposição que mobiliza a família e a envolve no processo de
apropriação do conhecimento proposto para as crianças. Embora esta consideração possa parecer
óbvia, ressalto que absorve diferentes discursos e representações que abrem brechas para análises
interessantes. Por exemplo, no Rio de Janeiro é denominado “Dever de casa”; em São Paulo, “Lição de
casa”. De um jeito ou de outro, revela elementos de relação entre as crianças, as famílias e as
aprendizagens escolares.
123
Eu vim lá da minha terra, e minha tia falou que estavam precisando. Eu não vim
para trabalhar. Minha tia falou que estava precisando de uma pessoa lá na creche.
Aí que eu fui trabalhar lá. Eu fui para ficar pouco tempo, porque vim grávida da
minha terra. Ganhei o menino e fiquei quinze dias em casa. Quem foi trabalhar no
meu lugar não deu certo, aí eles me chamaram de novo e eu voltei. Dona C. era
muito boa e falou comigo: ‘Você não precisa pegar peso, nem nada não, é só para
você dar uma ajuda’. Eu fui ficando. (Cíntia)
contexto, inseriu mulheres e crianças em uma ciranda de doações e tutela, ciclo difícil
de ser rompido e, por muito tempo, trouxe sentido, e ainda traz, para algumas
instituições comunitárias de Educação Infantil:
Eu tinha quinze anos. Tinha vindo do interior da Bahia. Não tinha nem idéia. Nunca
tinha trabalhado com criança. Só olhava meus irmãos. Mas é totalmente diferente.
Minha mãe começou a trabalhar em uma casa olhando um senhor, e a filha dele era
dona de uma escola. Ela viu nossa situação: falta de grana. Ela me viu e falou
assim: ‘Eu tenho uma escolinha’. Eu trabalhava só meio horário, de sete ao meio-
dia, e ia para a escola às quatro horas. Era nova, mas tinha responsabilidade. Sabia
que eu não podia fazer maldade, que eu tinha de olhar direitinho. Eu ficava com os
meninos, tudo misturado. Era um hotelzinho. Ao meio dia, eu tinha que entregar
para a professora de banho tomado, almoçado, escovado os dentes direitinho49. Fui
pegando prática. (Andréa)
49
Como ressaltado na nota 20, mais uma vez enfatizo o uso repetido de palavras no diminutivo,
referindo-se às crianças e à Educação Infantil.
124
espaço de dignidade, capaz de abrir caminho para a construção social de uma outra
identidade: muitas mulheres puderam se reconhecer como professoras, reconhecer
saberes, perceber que tinham projetos, que desejavam vê-los acontecer:
O contato com as crianças. Porque a gente também aprende muito com elas. Acho
que isso me fez ficar mais na área da Educação Infantil. Eu tenho vontade de fazer
normal superior. Eu queria poder continuar na área da Educação Infantil, porque eu
gosto é de sala de aula, de estar com os meninos. Por exemplo, ano que vem, se Deus
quiser, eu quero voltar a estudar, e eu quero estar tendo contato com os meninos.
Meu negócio é dentro da sala, eu gosto é da sala. (Rose)
Eu comecei minha trajetória na Educação Infantil foi em uma escola chamada M.,
onde trabalho até hoje. Eu estava cursando a faculdade nessa época. Estava naquele
aprendizado de pedagogia, com a Educação Infantil, e a escola onde eu comecei
trouxe muita base, muita coisa legal sobre o que é a criança. Então, às vezes, eu me
choco com outras realidades de escola. Até os meus 18 anos eu trabalhei como
estagiária, não como regente em sala de aula. Fui para a sala de aula logo em
seguida, há oito anos, mais ou menos 1994. Uma das coisas porque eu escolhi ser
profissional nessa área é que nenhum dia é igual ao outro. Há uma escolha de estar
aqui. Falo sempre comigo: ‘Você está lá, é necessária sua presença. Você está lá
com um objetivo, um propósito. E qual vai ser a sua passagem de vida ali’? (Fátima)
Fez diferença porque lá a gente não era nada, não era visto. Agora a gente é visto de
outro jeito. Lá a gente não era valorizado. Todo mundo chegava e olhava assim, as
crianças jogadas num buraco. A gente ouvia de vez em quando falar que lá não
passava de um depósito de criança. (Cíntia)
Percebo, nas trajetórias das professoras, uma ampliação do olhar sobre elas
mesmas, sobre as crianças e sobre as instituições de Educação Infantil. Não é fácil
reconhecer lugares sociais precários onde estiveram e as marcas que lhes afetam a
vida. Mas isso, para as professoras, é algo que precisa ser superado, e elas estão
superando. Possibilita perceber que elas saíram de um determinado lugar e podem ir
mais além. As professoras passam a reconhecer direitos e percebem-se como
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Eles chegam ao ponto de trocar o meu nome pelo nome de alguém que eles gostam
demais. Então, titia [...] apesar de eu não gostar, mas é o jeito deles expressarem. Eu
não vou chegar para a criança e dizer: ‘Eu não quero que me chame assim’. Às
vezes, eu brinco: ‘Vocês já estão caduco demais. Nem lembra meu nome mais, eu
estou com saudade de ouvir meu nome’. Aí um vai e fala meu nome. (Fátima)
Ser professora é diferente de ser tia. Isso vai ficando cada vez mais evidente
para as profissionais da creche. Ser professora implica outras formas de diálogo com
as crianças: planejamentos, concepções e formas de organização do trabalho. Quanto
mais se qualificam, mais expressam outros desafios que fornecem novos sentidos
para a educação das crianças e para a instituição de Educação Infantil. Cada vez mais
se reconhecem e querem ser reconhecidas como professoras. Nesse sentido, o lugar
social de profissional-professora também vai sendo forjado nas relações cotidianas.
As contradições não são poucas; dificultam e desestabilizam a consolidação
de identidades profissionais. Continuam trabalhando com jornada diária extensa, com
ganhos salariais reduzidos, quando se comparam ao tempo de trabalho e salário das
professoras das treze escolas municipais que atendem crianças de 0 a 5 anos.50 Ser
professora de creche comunitária, apesar de uma identidade construída em meio a
127
E eu tenho vontade de ter um salão. Não é deixar a creche. É igual a formar e poder
trabalhar menos horas, ficar mais em casa cuidando das coisas. Eu tenho vontade de
ter um salão e vou ter, se Deus quiser. (Cíntia)
(A professora faz a sua fala chorando e emocionada) – Eu sempre quis dar aulas.
Esse é o projeto que eu tenho comigo. Quero que me vejam como uma pessoa que
está ali, que possa estar sabendo dos problemas que acontecem em casa [...] A
gente tem que fazer o melhor que pode. (Elaine)
Mas você tem um contato com todas as crianças, e não só com um determinado
grupo. Essa sua posição é uma posição que dá para você ajudar muito mais do que
a gente professor que está dentro de sala de aula. (Fátima)
50
As professoras das Escolas Municipais de Educação Infantil têm uma jornada diária de 6 horas de
trabalho e estão incluídas no plano de cargos e salários dos profissionais da Rede Municipal Ensino.
128
Quando a Elaine está aqui na minha sala, fazendo uma brincadeira, uma rodinha,
eu vejo a facilidade das crianças de sentar e contar para ela coisa que para mim
eles têm vergonha, e não falam. Eu fico até assim: ‘Como você consegue puxar
isso tudo deles?’ (Andréa)
A Elaine pensa que saiu da sala por incompetência. Não é isso. Nós estamos em
uma situação em que a gente deveria mandar um professor embora, e a gente não
está querendo fazer isso. Nós gostamos das pessoas que trabalham aqui. Quando
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veio a proposta da Secretaria, que queria que nós mandássemos alguém embora,
nós batemos de frente. Então a gente assumiu a parte toda de um salário e encargo
social para manter essa mesma equipe. A Elaine, para nós, onde ela está, ela é útil
também. Quando ela fala que fica igual azeitona na boca de velho, eu tenho
vontade de dar um bufete no pescoço dela para ela cair desmaiada. Ela não está
dando importância ao trabalho que ela está fazendo. Na verdade, é um trabalho
importante. Ninguém tem o perfil que a Elaine tem para fazer esse papel. Ela não
pára, o trabalho é constante, toda hora tem serviço. Eu gostaria que ela entendesse
que o papel dela na secretaria não é menor do que de ninguém, pelo contrário. Às
vezes, eu abandono o meu papel para ser cozinheira. (Valéria)
Velho mordendo azeitona, você já viu? Fico assim. É assim que eu me sinto (risos).
(Elaine)
Quando eu fui trabalhar na creche eu não sabia nada. Desde 1988 até agora eu já
tenho muita coisa boa que eu posso estar passando para a criança. Aprendi muita
coisa. Tem muita coisa que eu falo: ‘Nossa, será que é isso mesmo’? (Cíntia)
129
Tem o setorizado, de dois em dois meses, que é riquíssimo. Você viu lá. A gente
aprende muito, tem muitas trocas de experiência. A gente aprende muito com as
outras pessoas e com as próprias profissionais do CEI. (Gilce)
O apoio que eles dão aos coordenadores das creches e aos educadores. Eles não
excluem o educador do coordenador, eles tratam igual a todos. Não tem
diferenciação. E isso é muito bom. Eu acho que devia ter uma pessoa do CEI para
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estar dando apoio diariamente às creches, ou por semana. Elas vêm, mas nem
sempre, porque são muitas creches. (Rosa)
O SESI, quando tem curso lá, manda chamar aqui também. Todos os cursos que tem
lá: [...] de sexualidade, letramento, tem um que é limite e agressividade, tem uns que
é sobre a relação creche e família, como lidar com a família. Tem palestras – higiene
bucal – de dentista. A gente vai para aprender mais. Sempre eles chamam. E sempre
eles dão certificado. (Andréa)
Alguns cursos que eu tive a oportunidade de fazer, alguns pelo CEI, pelo SESI, pelo
Movimento Pró-Creche, foram muito enriquecedores para a gente como
profissional: com relação às brincadeiras, a relação da matemática com o brincar, a
música, [...] Poderia dar mais oportunidade., Por exemplo, um curso que tivesse
umas 120 horas no ano. Isso, para a gente, ia ser muito bom. Um curso que desse
uma formação melhor para os profissionais de creche. (Rosa)
Meu desejo? Fazer uma faculdade. Não sei, mas todo mudo que faz faculdade
consegue ver as coisas de um outro jeito. Parece que o conhecimento fica tão bom
51
Em 1994, foi implantado o “Projeto Formação do Educador Infantil de Belo Horizonte”, proposto
como curso regular para a qualificação profissional no Ensino Fundamental e “Supletivo” de 5a a 8a
série. Em outubro de 2000, foi implantado o Curso de Formação do Educador Infantil de Belo
Horizonte de Ensino Médio, com a colaboração da Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais
(SEE/MG).
132
que conseguem ver coisas que eu não vejo. Conseguem entender coisas que eu não
entendo. Se Deus quiser, eu não vou parar de estudar. (Andréa)
Quando falou do projeto, eu falei: ‘Vou fazer um projeto sobre identidade’. Eu não
sabia nem como procurar, nem onde, nem o que fazer para estar trabalhando esse
projeto. Eu queria desistir, porque não achava material, e as pessoas não
conseguiam material para mim lá na escola. Eu também estava procurando. Não
deixei por conta do professor, não. Busquei ajuda em todos os lugares. (Gilce)
Eu não sabia o que era projeto. No início, pensava: ‘Que trem enjoado’! Aí,
quando foi no meio, eu gostei. Os meninos também gostaram, e foi muito bom. É
difícil, mas dá para a gente aprender. Depende de um livro da biblioteca, que às
vezes não tem e fica complicado. Não é porque eu não tive interesse e não tive
vontade. Quando começou, eu achava enjoado, mas depois foi bom. (Cintia)
Não vou ao cinema e ao teatro porque meu marido trabalha à noite. De dia, ele está
dormindo e eu estou aqui no serviço. Quando eu chego do serviço, ele está
dormindo. Aí é aquela rotina. Pego minha menina na escola, vou ensinar para ela o
para casa, e vou fazer o jantar. Passa o ano inteiro. De vez em quando, a gente vai
no Mangabeiras, no zoológico, na casa dos amigos, mas só em dia de folga, e
quando dá tempo. Eu sinto falta. Como diz a minha mãe, eu viveria disso. Algumas
pessoas sentem falta de divertir, outras não. Se eu puder me divertir eu vou ficar
satisfeita, mas também se eu puder ficar estudando, eu também vou ficar. Fazer
minha faculdade primeiro. Daí, ampliar mais meus conhecimentos, poder ensinar e
contribuir mais. (Rosa)
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Vida de professora não é fácil. É vida de mãe, vida de mulher e suas muitas
jornadas de trabalho. As professoras, quando podem, costumam sair com seus
namorados e maridos. Passeios simples, necessidades e desejos básicos. Incorporam
rotinas da creche, do cuidado da casa, dos filhos, do marido. O que extrapolar o
trabalho e a família parece luxo:
Eu gosto de passear e ter dinheiro para comer coisa boa. Comer em restaurante. A
coisa que eu mais gosto é sair e comer em restaurante. Trabalhar em casa também. Eu
gosto muito de trabalhar em casa. Eu tenho vontade de trabalhar por conta própria.
(Cintia)
sendo esporádicas. Algumas jamais foram a uma apresentação teatral em uma sala ou
teatro da cidade, embora aconteçam em Belo Horizonte festivais de teatro e dança,
com apresentações gratuitas de grupos do Brasil e de outros países em praças
públicas. Nesse sentido, as experiências culturais para crianças e professoras acabam
restritas às próprias experiências escolares:
Teatro vou muito pouco. Eu fui uma vez só, que minha cunhada participou, e eu fui.
Ela estava apresentando. Convidou e nós fomos. Mas é muito pouco. Foi uma vez só
que eu fui ao teatro. Agora que meu marido começou estudar, que ele está fazendo
faculdade, então fica mais difícil da gente estar saindo. (Rose)
alugam alguma fita para ver em casa. O que podem, neste caso, é oferecer uma
presença menos estressada, que abra espaço para que sejam, ao menos, mais
carinhosas e tolerantes com as crianças.
Acho importante a gente estar distraindo, tendo um pouco de lazer. Eu acho que isso
ajuda a gente, porque quando a gente entra em sala de aula a gente pode estar
trabalhando com mais amor, carinho, se solta mais. (Rose)
Eu estava assistindo a um programa, domingo, sobre dois ciclistas. Eles foram para
um lago no Peru. Eles comentaram que as pessoas que viajam, que se envolvem com
outras pessoas, vêem as dificuldades de outra maneira. Conseguem passar pelos
problemas, sempre têm uma resposta, ou os problemas não se tornam um empecilho.
O contato com outras pessoas, com diferentes gostos, cria espaços, amplia a
condição de vida, amplia a mente. Você vai passar para as crianças sua impressão
de ser. Você tem uma visão maior do que é a educação e do que é o ser humano.
(Fátima)
suas relações. Se, por um lado, uma idealização de suas infâncias marca seus
discursos, de outra forma, sua narrativa vai absorvendo uma expressão concreta,
tornando possível resgatar dimensões que, no sentido de Elias52 (1990), entrecruzam
tempos históricos singulares. Mesmo em cortes temporais demarcados e em contextos
sociais muito distintos, infância das professoras e infância das crianças da creche, em
diferentes perspectivas, apresentam sutis e significativas continuidades (BEHNKEN e
ZINNEKER, 2001, p. 6). A narrativa da infância das professoras, sua percepção e
apropriação remetem à leitura da infância das crianças de hoje, que, ao emergir, abre
caminhos para um outro olhar e compreensão pelas professoras:
Na minha infância, eu comecei a trabalhar muito cedo, mas o tempo que me restava
eu aproveitava. Com sete anos de idade eu já trabalhava em casa de família,
arrumando casa, olhando criança. O tempo que me restava era brincar com o que eu
encontrava. (Rosa)
52
Como assinala Elias (1990, p. 15), os indivíduos, em sua curta história, passam por processos que a
sociedade experimentou em sua longa história.
136
Minha família é muito grande. Minha mãe trabalhava muito. Minha mãe e meu pai
são muito bons, maravilhosos. Só que eles nunca tiveram tempo para a gente. Nunca
judiou, nunca maltratou. Devido ser uma família muito numerosa, nunca tiveram
muito tempo. Meu pai era uma pessoa muito inteligente, embora não tenha estudado,
não tenha tido oportunidade nenhuma. Ele tinha muitas dificuldades, não tinha
tempo para sair com a gente, não tinha tempo para brincar com a gente. Às vezes a
gente nem via pai, de tão tarde que chegava. A mãe, a gente via, mas também não
tinha tempo. A gente assumia responsabilidade muito cedo. Na idade desses meninos
da creche mesmo, 6 anos, eu já tomava conta da minha irmã. Nem sei como eu dava
conta. Minha irmã, praticamente, eu que criei. (Elaine)
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Reclamam da falta de tempo de seus pais para estar com elas, descrevem o
longo tempo que passavam no trabalho longe de casa e que pouca oportunidade
tinham de estar juntos. Entretanto, na fala das professoras, percebo que esse tempo
preenchido pelo trabalho e pela distância de seus pais não é tomado como abandono,
137
Hoje as crianças encontram um lar que pode dar ou emprestar a elas o que elas não
têm em casa. Porque é um lar, um espaço que elas brincam e têm carinho. Na minha
infância, meu pai trabalhava, minha mãe trabalhava. A gente saía cedo de casa e
chegava à noite. Tinha vez que a gente não via pai, não via mãe. Se a gente quisesse
brincar, a gente tinha que conseguir o que brincar. (Rosa)
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Eu não tive os brinquedos que hoje muitas crianças têm. A gente fazia bonequinha de
manga e sabugo. Pegava retalhos, enrolava e fazia boneca, fazia cabaninha no mato.
(Rosa)
Minha infância foi ótima. Se eu pudesse voltar atrás, eu voltaria porque eu brinquei
demais. Eu brincava na frente da minha casa com as minhas vizinhas. A gente fazia
casinha, fazia o passeio de casinha, cada uma tinha sua casinha. Até hoje, quando eu
vejo uma colega minha, a gente morre de rir. Porque a gente ficava cantando umas
musiquinhas. Andava em cima dos postes. Quando eles estavam pondo os postes nas
ruas, sobrava uns postes, então a gente ficava brincando de passear em cima,
cantando a musiquinha do peixinho. (Rose)
contam suas histórias ressaltam que as meninas não brincavam com os meninos.
Contudo, revelam momentos em que esses encontros aconteciam. Por exemplo, as
brincadeiras em casa à noite ou nos finais de semana eram momentos que
mobilizavam as pessoas a estarem juntas: contavam histórias, cantavam cantigas de
roda, etc. Em que isto ajudaria a pensar as relações entre crianças e adultos, meninas
e meninos, tempos e espaços institucionais? Que conhecimentos, histórias,
experiências poderiam ser partilhadas com as crianças?
Nos finais de semana nós saíamos para brincar nas fazendas. Eu brincava com as
colegas de casinha. Menino não brincava com menina. Era separado: mocinha com
mocinha, rapazinho com rapazinho. A gente se divertia muito. Fazia comidinha de
verdade, fazia fornalhinha, pegava folha de banana, fazia boneca, fazia cabelo, fazia
boneco com sabugo de milho, colocava cabelo, passava carvão no olhinho, ficava
bonitinho. Fazia comidinha, assentava com as bonecas, fazia café. (Cíntia)
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No domingo, ia toda gente lá para casa. A gente ia passear. Quando era noite,
porque fazia fornalhinha o dia inteiro, a gente ia cantar roda. Era bom mesmo. Eu
tenho lembrança, até hoje, como era bom. Nós cantávamos muito aquela música
“clareia no ar, clareia aqui, clareia esse salão que a fulana invém”. Isso é antigo,
não é? (Cíntia)
A alegria que a gente tinha de estar brincando. Essa ‘musiquinha’ que eu falo, eu
cantava ela assim: ‘Ave quer voar, eu só quero amar, o amor que existe em mim’.
Cantava essas músicas do nada. Nós construíamos. Eu nunca tinha escutado. Nós
inventávamos as musicas e ficávamos cantando. Acho que poderia trazer isso para
os meninos. Acho que é por isso que eu gosto muito de música. Na minha sala, eu
trabalho muita música com os meninos. Acho que é por eu ter gostado tanto de
brincar de cantar. (Rose)
Hoje em dia, os meninos ficam presos à televisão. Naquela época eu não gostava de
televisão. Meu negócio era acordar cedinho e ir para a rua para brincar. Hoje não.
Hoje, os meninos gostam é de videogame, jogo de computador. Só mesmo na hora
que vão para a escola, ou saem com os pais, é que podem brincar mesmo. Mas acho
um pouco diferente da época da gente. A gente brincava mais. Eu brinquei até os
quinze anos. (Rose)
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A partir do tempo que eu entrei na escola, aí sim eu brinquei muito, brincadeira que
hoje você, às vezes, nem conhece. Não que as professoras ensinassem. As professoras
não brincavam com a gente. A gente não tinha liberdade que hoje os meninos têm com
o professor. Eu lembro que eu não tinha nem liberdade de olhar para elas. A gente
mesmo se organizava e dava certo. Dava muito certo. Coisa de criança mesmo. Era
rouba-bandeira, queimada, esses brinquedos, polícia e ladrão, barra manteiga, um
monte de brinquedo. Era organizado, mas pelos alunos mesmo. Muito difícil um adulto
brincar com a gente. Hoje, o aluno tem liberdade com o professor. Eles sentam no
colo, você vai para casa com a mão cheia de dedos, brinca, conta as coisas que eles
fazem. Eu já tive professora até agressiva, até ao ponto de dar umas reguadas. Talvez
por isso que eu sempre quis ser professor, para poder fazer diferente. (Elaine)
Nós aprendemos a ver a criança com outro olhar. Não é só o cuidar, não é só dar o
carinho que vai resolver. A parte pedagógica é muito interessante na vida das
crianças. É para toda a vida. Pensamos que para o futuro delas vai ser muito bom.
Na área da assistência também, porque a gente não trabalha em uma creche, 8
horas, só educação, mas assistência também. (Gilce)
140
Eu tinha uma visão de que criança era igual na minha época. Criança era para
depois. Ou não tinha vez. Eu achava que o que a criança falava não podia dar muita
importância. Hoje eu sei que eu tenho que ouvir. Elas vão para o lado da
imaginação. Eu tenho que entender por que está acontecendo isso. (Andréa)
Se, por um lado, uma outra visibilidade das crianças e da Educação Infantil é
revelada por uma idéia de direitos e experiências no tempo presente, por outro, ainda
é recorrente uma percepção das crianças pelo que lhes falta e precisa ser suprido –
afeto, alimentação, família, infância, pai, mãe, etc. –, antes que possam ser sujeitos.
Isso pode ser compreendido como parte de um processo de apropriação gradual de
concepções que ainda não se faz tão claro, nem tão óbvio, contextualizado no ainda
incipiente exercício de reflexão que as professoras, nos seus grupos de trabalho, vão
dando conta de fazer:
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É uma infância muito sofrida. Desde a barriga, eles já começam a sofrer, porque os
pais, a mãe, propriamente dita, precisa trabalhar para sustentar, se sacrificando
para poder sustentá-las, educá-las. Depois do nascimento, começa uma vida mais
sofrida ainda. Pega friagem, chuva, tem mães que moram longe para trazer até aqui
na creche e ir trabalhar. (Rosa)
São pessoas muito sofridas. Eu não sei se a condição financeira está nisso. Porque,
geralmente, quando falta dinheiro, falta o que comer em casa, eles já não têm mais
nada. Então, às vezes, você vê esses meninos. Chegam agressivos, outros chegam
tristes. Você vê as carinhas tristes, porque falta o que comer em casa. O pai às vezes
usa droga. Eu acho que isso afeta muito. Às vezes, penso: ‘Como é que eu vou
agüentar?’ Mas você vê o que eles estão passando, aí você já sabe como vai
agüentar. Você se coloca no lugar deles e já passa a ter um pouco mais de paciência.
Às vezes, as crianças apresentam um comportamento que se você for analisar, tem
um porquê. (Elaine)
creche. Ganha um sentido de troca benevolente: “Se na creche elas receberem carinho
e amor, elas também oferecerão amor”. Ao mesmo tempo que ressaltam sentidos
pedagógicos para a Educação Infantil, reforçam um olhar que se prende a uma idéia
de carências afetivas, retomando uma confusão entre as relações de assistência e
cuidado, o que restringe a organização do trabalho cotidiano na creche:
São crianças que precisam de muito carinho, muita atenção da nossa parte. Eu acho
que elas vêm para cá para estar pegando isso. Às vezes elas não encontram tanto
carinho em casa como deveriam encontrar. Então eu acho que elas vêm para creche
à procura disso: de atenção e carinho. (Rose)
Eu acho que eles não têm o carinho que precisam, e eles não passam carinho. Tanto
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as crianças como os pais. Quando a gente vai entregar uma criança, eles falam:
‘Nossa que sujeira’. Nunca falam: ‘Meu filho, que saudade!’ Igual eu ouvia lá na
outra escola. (Andréa)
A creche aparece, mais uma vez, como lugar de redenção de uma idéia de
infância quase perdida e se torna o lugar onde a infância poderá ser vivida da maneira
correta e saudável: na creche as crianças vão receber carinho e amor; na creche as
crianças vão aprender a se comportar; na creche as crianças poderão brincar, na
creche as crianças vão se afastar de pais descuidados, violentos e drogados; na creche
e a partir da creche, as crianças poderão ter presente e futuro. Algumas posturas dos
familiares talvez sejam de fato negligentes e precisam ser problematizadas, mas,
quando a creche é colocada em um lugar social superior ao das famílias, vê-se
aumentada a distância entre as profissionais da creche e as famílias:
Acho que as crianças não estão tendo o valor que merecem. Às vezes, nem dos
próprios pais. É triste você vê uma criança chegar de manhã sem tomar banho, sem
lavar o rosto, sem escovar os dentes. Tem menino que você vai dá um abraço nele, e
ele, às vezes, te dá até um tapa, porque não acostumou com isso. Isso acontece
muito. Eu acho que a infância deles é aqui na creche. A hora deles da infância é
aqui. Quando eu sento em uma rodinha, na Segunda-feira, eu ouço só briga,
discussão: ‘O que você fez ontem?’ – ‘Nada. Fiquei em casa vendo televisão’. –
‘Brincou com alguém?’ – ‘Não.’ – ‘Brincou com alguma coisa?’ – ‘Não.’ – ‘Passeou
no parque?’ – ‘Não. Fui no bar com o meu pai, fiquei em casa.’ (Andréa)
142
que vão dar excelentes cantores. Pessoas que na área de matemática dariam um
professor super legal. Fico pensando: ‘O que eu posso estar fazendo com essas
crianças?’ (Fátima)
A gente foi no Parque das Mangabeiras. Minha turma foi ao banheiro sozinha.
Todos ficaram na rodinha, como a gente havia combinado. Lancharam, jogaram o
lanche fora. Eu fiquei observando. Aquilo para mim foi uma coisa muito gostosa. Só
que acharam, pela visão de que a criança está sempre fazendo alguma coisa errada,
que um menino iria pular no tanque. Ele estava junto com um professor olhando os
peixes. Pegaram na mão dele e trouxeram para mim. Aí eu perguntei: ‘O que
aconteceu?’ – ‘Eu estava vendo os peixes.’ Quer dizer, ele não estava querendo
pular, ele estava ali admirando os peixes. (Fátima)
das professoras, da creche e da Educação Infantil. Ao tomar como princípio uma ação
e uma existência que é coletiva, o direito, a dignidade, o valor social avança de forma
coletiva também, por isso mesmo tensa, ambígua, recorrente e contraditória:
Tem menino que fica aqui de 7 às cinco e meia e quando a mãe chega, vira para
ele e fala: ‘vamos embora, trem feio’. Várias vezes, eu presenciei ela falar assim.
Um dia eu fiquei muito indignada e chamei para conversar. ‘Olha, ele fica o dia
inteiro fora de você. Na hora que você chega para pegá-lo, ao invés de dar um
abraço, você chama ele de trem feio.’ Fiquei muito indignada. Tem gente que fala
que pobre é assim mesmo, que pobre é atrasado, diz que a filha é preta mesmo, que
o povo vai a discriminar ela. (Gilce)
Nós fazíamos muito e não registrávamos nada. Quantas coisas que a gente já fez na
área educativa, mas não tinha nada escrito. Com a proposta pedagógica, a gente
passou a trabalhar na realidade da creche, com a realidade de cada profissional,
com o que ele é capaz, o que ele dá conta. Tudo é registrado: uma pequena reunião,
uma fala da coordenadora pedagógica. Eu arrependo de não ter escrito, nem que
fosse rascunho, tudo que eu já fiz na creche desde que eu entrei. (Gilce)
Eu acho que houve uma transformação. A partir daí já teve inovações no projeto e
nos projetos trabalhados aqui dentro. (Rosa)
passam a trocar experiências que até então não constituíam parte do universo de
organização do tempo e das intervenções das professoras. Em suas falas, revelam a
importância de terem participado do processo de elaboração de projetos, da maneira
possível a cada uma. Passam a reconhecer e afirmar o que fazem e o que querem
fazer, o que pensam ser significativo na educação das crianças. Reforçam a
importância de estar ali contando e escutando o trabalho do outro e de dar conta de
redigir o que fazem para apresentá-lo. Ressaltam essas relações como qualificadoras e
importantes.
Foi muito importante porque foi um projeto que foi construído em equipe. Foi
colocada a opinião de cada um, o modo de ver de cada um. Foi significativo e foi
grandioso para quem participou. (Rosa)
Nós ficamos muito tempo, sentamos, reunimos. Então nós montamos o PPP com as
atividades que a gente faz aqui na creche: brincar, cantar, lanchar, almoçar, tudo
entra na proposta pedagógica da gente. Nós colocamos tudo no papel, tudo que a
gente faz e que a gente gostaria de fazer. (Rose)
Sem a Valéria, eu acho que eu não ia dar conta, não, porque eu não sou formada em
magistério. Aí eu tinha dificuldade de fazer plano de aula. Eu escrevia o que eu
dava, mas não colocava os objetivos que eu queria alcançar. Foi ela que me ensinou.
(Andréa)
Essa coordenação pedagógica é muito importante, porque a partir daí é que a gente
está tendo novas idéias. Estamos crescendo, cada vez mais, com a Valéria. Ela fez
com que a gente partisse à procura, pesquisasse, lesse, corresse atrás. Está inovando
muito os conhecimentos que a gente tinha. O que eu quero dessa coordenação
pedagógica é que tenhamos um tempo maior, porque está enriquecendo não só o
meu trabalho, mas eu acho que o de todos nós aqui. (Rosa)
explicitam. Muitas das professoras que chegaram depois da elaboração do projeto não
tomam sequer conhecimento do processo. Algumas constatam mudanças, mas não as
planejam.
Gostaria de ter participado mais. Foi importante. A parte pedagógica ajudou muito.
Deu para poder entender e eu peguei muita coisa boa. (Cíntia)
Eu olhei de relance, porque quando eu entrei aqui elas já tinham feito. O que me
passaram é que a gente iria refazer, colocando o que havia renovado. Mas eu não
cheguei a pegar e ler. Inclusive, eu acho que nem está aqui na creche. (Rosa)
Foi a organização da creche que nós colocamos no papel. E nós valorizamos nosso
trabalho, colocando em um livro. (Andréa)
Eu vim do SESI. Eu vim para cá porque tinha horário de manhã disponível, para que
eu não precisasse abrir mão do outro emprego. Às vezes, eu não sei o que a creche
quer. Eu acho necessário estar sentando para trabalhar de acordo com a proposta,
para você não cair de pára-quedas. É terrível e é muito chato você estar levando as
coisas assim. (Fátima)
Ano passado eu comecei na sala, mas esse ano a Gilce pediu que eu ficasse na
secretaria. Acho que ela acabou gostando de mim lá. Acho que ela não pretende me
tirar de lá. Eu faço de tudo que precisa: resolvo algum problema na rua, na
secretaria de educação, às vezes no CEI, na casa do presidente, do contador, todo
tipo de serviço. Eu não tenho conhecimento a fundo do projeto político pedagógico
da creche. Ajudei, mas foi mais as meninas que estão na sala. Cada uma trouxe uma
parte e mostrou os projetos para outras pessoas. (Elaine)
Eu não tenho o que falar. Eu não tenho projeto nessa escola. De minha parte, é
difícil dizer que vou fazer um projeto. De manhã, eu não estou diretamente com as
crianças e à tarde vai depender do que acontecer na hora que eu chegar. Eu nem
sei o que eu vou fazer quando eu saio de casa. Como qualquer pessoa, eu tenho um
projeto de vida. Isso eu tenho.53 (Elaine)
53
A professora começou a chorar, por isso eu preferi interromper a gravação e sentar-me um pouco ao
lado dela. Mas ela não queria que eu desligasse, queria continuar falando. Eu não seria mais um a
roubar-lhe a voz. Calmamente a abracei e disse que estava ligando o gravador e que ela poderia falar
tudo que quisesse.
148
Tem a reunião pedagógica, onde a gente planeja mais ou menos o que cada uma vai
dar. A partir daí, cada um faz seu planejamento, em cima do que vai trabalhar, o que
quer trabalhar. Cada uma bola o seu projeto, e a partir daí dá início ao trabalho.
(Rosa)
Observo que ainda não foi possível romper com as estruturas institucionais
que se referem a rotinas e separam o que as creches chamam de cuidados do que ela
considera como a parte pedagógica. Não é fácil romper com uma história que se
traduziu em representações e discursos coletivos: crianças de creche, professoras de
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creche, uniforme da creche, doação para creche, creche para criança carente, famílias
desestruturadas e uma série de preconceitos que envolvem os contextos culturais e
sociais dessas crianças. Mas percebo brechas que possibilitam às professoras elaborar
outros significados para a existência e legitimidade desta instituição. Como expõe
uma das professoras,
meu planejamento é tipo uma rotina. Nós fazemos a rotina, do horário, da entrada, a
saída, a chegada, o lanche, tudo. Nós também planejamos nossa aula, para a gente
poder estar trabalhando com as crianças. A gente chega, depois eles lancham, aí
vem a parte do brinquedo pedagógico. Acontece o que eles optarem: se querem
brinquedo, se querem ouvir uma história, tudo é planejado. (Rose)
O que a gente tem aqui na creche, a gente usa. O que a gente não tem, a gente tenta
produzir, estar fazendo uma utilidade para alguma coisa, igual com a garrafa, que
eu entrei com um projeto que eu estou trabalhando agora com os peixes. A gente fica
pensando em fazer as coisa tudo bonitinho, mas já que não tem os materiais, a gente
usa o que tem. É a nossa realidade aqui. (Rose)
Tem professora, não falando mal de ninguém, que tem um ritmo diferente. Acho que
não consegue pegar. Mas tentamos fazer algumas coisas juntas para quando o
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menino chegar na minha sala não ficar aquela coisa, tipo perdida. (Andréa)
Eu acho que se a gente tivesse uma mesma língua, as crianças sentiriam mais
confiança, talvez o respeito seria maior. Acho que essa agressividade seria menor
também. (Fátima)
Eu gostaria que elas colocassem para você a questão dos projetos, a importância
que isso está tendo para elas, já que esse é o primeiro ano que a gente está
trabalhando dessa forma. (Valéria)
história de cada professora, cada uma tem sido convidada a assumir lugares de
protagonismo e a organizar o trabalho com as crianças, construindo seus próprios
caminhos. Na discussão do trabalho, essa instituição de Educação Infantil tem
representado um espaço de formação para as professoras e de valorização dos lugares
que as crianças ocupam e participam nessa experiência:
No final, acho que estava todo mundo cansado e acho que o envolvimento foi
menor. Eu acho importante elas reconheceram que elas se entregaram. Caíram na
mesmice. Elas reconheceram que erraram. Por que será que isso aconteceu?
(Valéria)
No ano de 2003 eu joguei a responsabilidade para elas. Elas que vão desenvolver
os projetos. Claro que o apoio a gente vai dar, mas é para elas se envolverem mais
e colocarem, também, a criança mais envolvida. Eu acho que isso é importante. O
projeto não é nosso, o projeto tem que ser da criança. Mas, para quem está
começando, eu acho que a gente deu um passo bem grande. (Valéria)
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A gente tentou esse ano entrar com a Pedagogia de Projetos. Cada sala, de acordo
com a necessidade da criança, foi desenvolvendo determinados temas. (Valéria)
O meu projeto foi parecido com o das meninas. Só que eu não sabia o que era
projeto. Os meninos viram uma borboleta e quiseram saber mais. Achamos um
poema em um livro. Li o poema para eles. Fizemos um mural. Enfeitamos a sala.
No outro dia, uma menina veio com o sonho dela. Ela guardou da aula anterior
sobre a borboleta e veio falar que a borboleta veio levar ela para fazer um passeio.
A turma ajudou. Ela foi contando a história, e os meninos foram entrando no meio
da história. Por fim, todos tinham sonhado. A Valéria me ajudou a montar um
texto. (Rose)
O projeto requer mudança. E toda mudança a gente fica com o pé atrás. Mas o
projeto é também muita pesquisa, muita leitura e isso às vezes põe um pouco de
receio nas pessoas. É muito trabalho. E a gente hoje tem que mudar nossa forma
de pensar. (Valéria)
154
crianças. Atenho, pois, meu olhar, como assinala Machado (2000, p. 195), tanto para
as interações das professoras com as crianças quanto para um processo progressivo de
ampliação de suas experiências e conhecimentos:
Por que é importante cortar unha, que é uma coisa tão casa? (Referindo a seu
diálogo com as crianças em sala de aula54) Por que é importante cortar unha, alguém
sabe? Vamos brincar de cortar unha hoje? Vamos então pedir ao papai e à mamãe
para estar cortando a unha de vocês. Isso é coisa de levar informação, de cuidar, de
zelar. (Fátima)
54
Grifo do autor.
157
Eu acho que ainda falta pesquisar, a gente podia ter aprofundado mais. (Valéria)
Nós deveriamos ter pesquisado mais, foi uma falha nossa. (Rosa)
A gente tentou esse ano entrar com a Pedagogia de Projetos. Desenvolver projetos,
de acordo com a necessidade da criança, com determinados temas. Eu comecei
como professora e depois passei para a coordenação. Eu vi um crescimento muito
grande de todas. (Valéria)
55
Ressalto as produções de Batista e Coelho (2000); Veiga (2001); Silva (2002); Dalben (Coord.)
(2002); Vieira (2002); e as publicações da PBH/SMED: Revista Infância na Ciranda na Educação
(Entre 1994 a 2003 foram publicados 5 números: 1994, 1996, 1997, 2000, 2003); os Cadernos
Ciranda Cirandinha (1999 e 2000) e o documento Subsídios para o Projeto Político Pedagógico da
Educação Infantil (2002).
56
Foram lidos e analisados 10 projetos pedagógicos, retirados aleatoriamente entre as 23 Creches
Comunitárias da Região do Barreiro: 1CCBM; 2 CCCA; 3 CCE; 4 CCMB; 5 CCTF; 6 CCVP; 7
CACJ; 8 CLCC; 9 CTC; 10 LFC.
160
prol das crianças [...], principalmente, aquelas relativas às crianças das classes
populares, tradicionalmente excluídas das políticas públicas.
57
Uso o conceito de “visibilidade”, proposto por Nunes (2000, p. 2), referindo a signos que conferem
reconhecimento social às crianças, às famílias, às profissionais e à instituição de Educação Infantil.
58
Especialmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), em que as crianças são concebidas
como sujeitos de direitos, e a LDB (1996), em que a Educação Infantil é situada na Educação Básica,
direito definido como responsabilidade do Estado, com um papel específico no sistema educacional.
59
Período em que Angela Barreto esteve à frente da Coordenação Geral de Educação Infantil do MEC.
60
Como lembra Kramer (2001b, p. 5), várias etapas já haviam sido percorridas: produções teórica
sobre o tema; critérios para análise das propostas e sua implementação. O MEC solicitou das
Secretarias de Educação suas propostas pedagógicas. Foram compostas equipes com participantes do
MEC e consultores que estiveram nos locais das propostas analisadas. Relatórios foram escritos e
publicados em um material para subsidiar as equipes de secretarias municipais e estaduais na análise e
elaboração de propostas em Educação Infantil – MEC/SEF/DPE/COEDI (1996).
61
A Política de Educação Infantil, nesse momento, sofre decisiva influência do Banco Mundial,
retomando linhas anteriores da UNICEF e da UNESCO, apontando para modelos de atendimento não
formais, de massa, apoiados no custeio das comunidades e baixo investimento público, o que não
contribuiu para a efetivação de uma Educação Infantil pública (SILVA, 2002, p. 59).
161
62
Diante da precariedade de políticas para a infância e formação profissional, sua publicação acabou
por desencadear uma qualificação do debate da Educação Infantil. Contudo, assinalo as críticas
direcionadas ao processo de elaboração, que rompeu com diferentes fóruns de discussão e produção de
conhecimentos, como o GT Educação Infantil da Anped. Sugiro a leitura de alguns dos pareceres
encaminhados ao MEC, publicados em FARIA e PALHARES (org.), 1999; e KRAMER, 1999.
162
63
BRASIL/ MEC/ SEF (1995).
64
Veiga (2001, p. 107) ressalta a importância da Associação Movimento de Educação Popular Integral
Paulo Englert (AMEPPE) na efetivação de direitos das crianças e adolescentes. Sua articulação com
Conselhos de Direitos no Fórum Mineiro de Educação Infantil e na Frente de Defesa da Criança e do
Adolescente foi decisiva para as políticas de Educação Infantil em Belo Horizonte.
163
65
Segundo KAPPEL (2000, p. 139), a proporção dos gastos em programas específicos para a educação
da criança de 0 a 6 anos é mínima, sendo de apenas 4,6% dos gastos com a educação. Dos gastos com
a Educação Infantil, 82,7% são provenientes da esfera municipal, sendo mínimo o investimento na
capacitação e na valorização do magistério (1,1%) – dados que relacionam a Pesquisa Nacional por
amostra de domicílios – PNAD / IBGE (1998) e o Censo Escolar / MEC (1998).
165
analisados por Dalben (2002, p. 63-65), 52% das professoras em exercício não
possuem habilitação mínima exigida pela LDB (Ensino Médio, modalidade normal).
Mais de um terço em 2000, havia sequer concluído o Ensino Fundamental. Apenas
3% têm formação em nível superior (BELO HORIZONTE, 1999c). Grande parte das
professoras nas creches conveniadas cumprem uma jornada semanal entre 40 a 50
horas de trabalho.67
De forma distinta, nas pré-escolas municipais as professoras são habilitadas,
admitidas por concurso público e remunerados por sua formação, inseridas em um
Plano de Carreira aprovado pela Câmara Municipal, prevendo uma semana legal de
trabalho de 22 horas e 30 minutos, envolvendo o planejamento das atividades e
aperfeiçoamento profissional. Segundo levantamento da SMED, para o primeiro
semestre de 1998 aproximadamente 80% dos professores da rede municipal de
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ensino (8965) possuíam formação superior; sendo que 23,06% (2068) já havia
concluído ou estavam cursando especialização, 85 possuíam ou estavam concluindo o
mestrado e 4 professoras cursavam o doutorado (DALBEN, 2002, p. 66). Tais dados
ressaltam a importância do investimento do Poder Público na garantia do direito a
uma Educação Infantil de qualidade para crianças e professores.
Mudanças vêm ocorrendo. Desde 1997, a Assessoria de Educação Infantil foi
integrada à Coordenação de Política Pedagógica (CPP) promovendo a discussão e a
elaboração de propostas de política pedagógica. A transferência da gerência dos
convênios para a Secretaria de Educação teve o mérito de anunciar uma política para
a Educação Infantil fundamentada em uma concepção de infância e de educação
como direito.
Polêmicas e divergências também foram explicitadas. Esse contexto foi
marcado por discussões em torno do papel das instituições e dos lugares da Educação
e da Assistência Social na efetivação desse direito. Observa-se, em alguns casos, o
66
O censo populacional 2000 de Belo Horizonte apresenta os dados de 230 mil crianças de 0 a 6 anos
entre uma população de 2. 232.747 habitantes.
67
Para ampliar essa reflexão sobre os grandes desafios que a constituição de uma política de Educação
Infantil no município, sugiro a leitura da pesquisa Cuidado na primeira infância: a realidade
encontrada em bolsões de pobreza de Belo Horizonte, no ano de 2000, coordenada por Allyson
Carvalho, Janete Ricas e Marília Machado, da UFMG, em parceria com a Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social e da pesquisa Educação Infantil: a construção de um direito, também no ano
de 2000, em parceria com a Secretaria Municipal de Planejamento de Belo Horizonte.
166
surgimento de posições que tendem a reforçar uma dicotomia entre o que seria uma
prática ligada à ação de cuidar e a ação de educar. Como assinala Campos (1999, p.
124),
68
Em 1995 foi criado o Grupo de Apoio à Profissionalização do Educador Infantil (GAPEI).
Inicialmente assustou os dirigentes de creches, que temiam o grupo como um forma sindical
embrionária (enquanto a direção do MLPC compunha-se, na sua maioria, por coordenadores de
creches, as integrantes do GAPEI eram, na sua maioria, educadoras leigas). Entretanto, o debate em
torno da valorização, do reconhecimento, da formação e da organização sindical, levou as educadoras
de creche, além de refletir sobre a situação trabalhista, a enfatizar as especificidades das instituições
em que atuavam. (VEIGA, 2001, p. 65)
167
para além de garantias formais inscritas na lei, os direitos estruturam uma linguagem
pública que baliza os critérios pelos quais os dramas da existência são
problematizados em suas exigências de eqüidade e justiça. [...] O que desestabiliza
consensos estabelecidos e instaura um litígio é quando esses personagens
comparecem na cena política como sujeitos portadores de uma palavra que exige seu
reconhecimento – sujeitos falantes –, que se pronunciam sobre questões que lhes
dizem respeito, que exigem partilha de deliberação de políticas que afetam suas vidas
e que trazem para a cena pública o que antes estava silenciado, ou então fixado na
ordem do não pertinente para a deliberação política.
acrescido de outro valor que levaria em conta um quadro básico de profissionais para
cada instituição: uma cozinheira, uma auxiliar de cozinha (quando o número de
crianças for superior a 80) e um funcionário para serviços gerais (DALBEN, 2002, p.
86). Essa experiência apontou perspectivas interessantes: veio acompanhada da
regulamentação da Educação Infantil pelo Conselho Municipal de Educação e
apresentou maior controle sobre a prestação de contas e a administração dos recursos
financeiros (DALBEN, 2002, p. 113). Uma dificuldade ressaltada pela coordenadora
da creche pesquisada relaciona-se à contrapartida da instituição. Os recursos
repassados pelo Poder Público, segundo ela, não garantem a manutenção da creche,
cabendo à instituição buscar outras contribuições e ajudas beneficentes. Acabam
solicitando dos pais uma contribuição que não pode ser assumida e buscam recursos
em bazares e festas.
Também trouxe embaraços no gerenciamento das instituições. Algumas
creches continuaram tendo dificuldades de cumprir leis trabalhistas e de fazer a
comprovação negativa dos débitos perante a prefeitura. Essa situação reverteu críticas
e incompreensão por parte das creches, gerando um discurso de que depois que os
convênios passaram para a Educação as creche não conseguiram mais cumprir o que
é exigido (DALBEN, 2002, p. 135). Nesse sentido, contradições persistiram, e a cada
69
Os critérios para a definição das instituições que comporiam o projeto foram deliberados pela
Coordenadoria Integrada e discutidos com equipes dos CEI e da SMDS. (DALBEN, 2002: 89)
168
Municipal. Nesse contexto, o Poder Público sugeriu a criação de uma nova carreira,
“de educadores infantis”, o que provocou uma tensão entre a necessidade de
concretizar uma Educação Infantil pública no município e uma história de lutas e
conquistas no sentido da valorização do profissional e da construção de sua
identidade de professor. Além das 13 escolas de Educação Infantil municipais, 9
escolas (uma em cada regional administrativa) estão em processo de construção.
Ainda que atravessado de contradições, não se pode desconsiderar que o atual
momento expressa um “passo à frente” no que diz respeito a uma política de
Educação Infantil: o que exige consolidar responsabilidades do Poder Público, bem
como a continuidade de uma articulação social que permaneça pressionando para a
efetivação desse direito como política pública.
70
Alia-se a ampliação do ensino pré-escolar para as crianças de 4 a 6 anos, priorizando as de 6 anos, a
reorientação do programa “Adote uma creche” e a capacitação das profissionais que atuam em
Educação Infantil em creches conveniadas e pré-escolas públicas do município.
170
71
Essas informações foram obtidas nos relatórios apresentados pelo Grupo de Trabalho, arquivados na
Coordenação de Política Pedagógica da SMED/PBH.
171
refere apenas à organização do trabalho, mas a uma história vivida que requer
reconhecer discursos, assumir responsabilidades e afirmar lugares políticos e sociais.
Como ressalta Nunes (2000, p. 62), a visibilidade dos sujeitos se expressa nas
relações e nos fenômenos sociais, podendo ser reconhecida como manifestações de
sua existência. Nas interações criam-se representações de si mesmos e dos outros,
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72
Dos dez projetos lidos, uma creche teve sua fundação ainda na década de 1960, duas na década de
1970, seis na década de 1980 e uma na década de 1990.
174
filhos foi ressaltada no final do século XIX pelos higienistas como meio eficaz de
controlar a mulher, difundindo uma concepção de maternagem que deveria ser
seguida por todas as mulheres, de todas as classes sociais. Quando as mulheres
pobres passam a sair de suas casas para buscar trabalho, sofrem uma dupla
culpabilidade: o abandono do lar e o abandono dos filhos (NUNES, 2000, p. 79).
As famílias pobres passam a ser identificadas pela idéia de “desestruturada”.
Família desestruturada tornou-se sinônimo daquelas famílias que não obedecem ao
padrão nuclear patriarcal, em que a mãe tornou-se o “chefe de família”, ou é
organizada a partir de outras relações familiares entre tios e avós. A idéia de família
burguesa, cuja mulher era a protetora do lar, cujo amor materno surge como
fundamento e alicerce da nova família. Mesmo não se expressando em grande parte
das famílias brasileiras, nas diferentes classes sociais, ainda é considerada como o
modelo cultural dominante de família ideal.74 Assinala Marques (2001, p. 149):
73
PETRINI (1984).
74
Sobre a instituição da família nuclear como célula mater da sociedade brasileira e sobre a definição
dos papéis sociais do homem/pai e da mulher/mãe sugiro a leitura de Jurandir Freire COSTA (1989).
176
o modelo de família que orientava até (o século XVIII) a arte de governo perde sua
potência. O objetivo do governo passa a ser a população. É preciso gerir a vida dos
indivíduos, agir diretamente sobre a população: estimular ou bloquear a taxa de
natalidade, prevenir a mortalidade, controlar os fluxos populacionais, entender a
população como sujeito de necessidades e aspirações.
182
75
Publicado em língua francesa em 1922.
183
famílias. Elas, muitas vezes, são descritas, de forma genérica, como agressivas e
violentas, que só sabem se relacionar por meio de brigas e mordidas, não sabem se
comportar em sala de aula, não respeitam a professora e os colegas, não sabem
brincar com outras crianças ou dividir um brinquedo com o colega.
• Pobre, logo carente? – Em muitos casos, as crianças são descritas por uma
condição social e expressão familiar que relaciona uma idéia de pobreza com a noção
de faltas, necessidades e carências. Nesse contexto, as creches ganham significado
pela suplência de carências alimentares, higiênicas, morais, afetivas, motoras, de
brincadeiras, etc., que coloca as crianças em um lugar de dependência e
subalternidade. São crianças pobres, filhas e filhos de pais desempregados, filhos e
filhas de mães que precisam trabalhar fora, filhos e filhas de famílias de classe
popular que precisam da creche como uma instituição importante no processo de
educação de seus filhos, mas não necessariamente carentes.
Se pobreza é um conceito social e econômico, a idéia de carência evoca, ao
contrário, um discurso psicológico-moral que leva à incorporação da condição de
falta como identidade subjetiva e cultural. Esse discurso reforça uma imagem de
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creche como “lugar de criança carente”. Esta imagem se vê reforçada quando, por
exemplo, é incluído como critério ou condição para as crianças serem matriculadas
nas creches o fato de estarem vinculadas a algum tipo de programa social. É
interessante perceber uma relação com as crianças e famílias pobres que as submetem
e vinculam à imagem de dependência da generosidade alheia, que produz a
incorporação de uma visão de si mesmo, como alguém que deve permanecer
submisso e agradecido (MARQUES, 2001, p. 93). Nesse sentido, o reconhecimento
social da creche se perpetua por uma relação direta entre pobreza e carência: “São
crianças oriundas de classe social de baixa renda, portanto com carências afetivas,
alimentares, cognitivas, culturais, emocionais e de lazer” (Projeto 1). Quando alguma
competência da criança é colocada em relevo, parece ser ressaltada como algo que
sobreviveu à precariedade da vida.
A essa postura remete-se outra imagem significativa, que é a de “atenção
especial”. Algumas crianças ganham visibilidade pela necessidade de algum tipo de
atenção especial. A idéia de atenção especial refere-se às crianças que chegam às
creches com algum tipo de dificuldade explícita ou por se afastarem de determinada
idéia de desenvolvimento, normalidade ou saúde. Crianças que se distanciam de um
padrão motor considerado normal, crianças com problemas de desnutrição e outras
186
Charlot (1986, p. 99), a imagem de criança traduz a concepção que se tem de natureza
humana e seu desdobramento como cultura, ou seja, as significações atribuídas à
infância vêm para ela da interpretação da infância em termos de natureza e cultura. A
modernidade afirmando-se em uma política de verdades, definiu normas e desvios, e
produziu uma visão da infância que procurou afirmar uma condição de inferioridade
das crianças perante os adultos. Criança como individualidade desprovida de tudo,
fraca em sua condição biológica e social, ao passo que o adulto expressa-se como
personagem ideal, imagem da maturidade e racionalidade conquistada como processo
secular. Esse olhar fundamentou uma visão normativa da infância como critério único
para especificar diferenças entre adultos e crianças.
O modelo positivista da ciência psicológica se estabeleceu como uma “nova”
moral para a definição da trajetória da vida humana em direção à vida adulta. Ser
criança nesse contexto remete a uma noção de incapacidade e “débito social”, e uma
idéia de que nós humanos devemos nos tornar cada vez mais perfeitos. Percebe-se
uma referência fechada a determinado modelo psicológico desencarnado da cultura,
distante do que se expressa no contexto da ação, relação e produção humanas, mas
que se projeta no espelho a imagem da criança que se deve transformar. Como
assinala Souza (2001, p. 45),
187
o que se evidencia com freqüência é que a criança, jamais vista por inteiro, como
membro de uma classe social situada histórica, social e culturalmente, é seccionada
em infinitos comportamentos e/ou habilidades. Esses comportamentos, mesmo sendo
reunidos posteriormente por meio de uma articulação teórica abstrata, não consegue
resgatar o lugar social da criança como ser que interage com a história do seu tempo,
modificando-a ao mesmo tempo que é modificada por ela. [...] Acabamos nos
convencendo de que a criança é uma categoria desvinculada do social, impermeável
às relações de classe, apenas um organismo em processo de socialização.
Percebe-se que o papel das creches tem sido enfatizado, quando se pensa em
suas contribuições para a educação das crianças, como maneira de garantir o
desenvolvimento de diferentes aspectos da formação ou desenvolvimento humano:
aspectos físicos, emocionais, afetivos, cognitivos e sociais. Tal visão fica ainda mais
complexa quando acompanhada do discurso de que a creche deve procurar fornecer
os estímulos necessários para o desenvolvimento das possibilidades socioafetivas,
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escola, isso tem se revelado como uma aparente saída de cena do adulto-professor
desse processo, cujo discurso pedagógico coloca a criança como centro e importância
suprema. O que se mostra contraditório e ambíguo é que, quanto mais o adulto parece
sair de cena, mais os tempos e espaços se tornam regulados; quanto mais distante da
criança o professor se coloca, mais autoritário se torna, mais enfatiza sua
incompetência e a incompetência e dependência da criança. Corre-se o risco de perder
de vista o lugar do adulto nessa relação.
A idéia de que a criança deve ser o centro do interesse e atenção da escola tem
impelido as professoras a uma postura de observação das crianças, no sentido apenas
de captar e diagnosticar comportamentos, esvaziando o foco sobre as relações, bem
como o próprio envolvimento pedagógico. É como se a criança, ao entrar em cena,
levasse o adulto-professor a ocupar um lugar secundário, muitas vezes, subjugado
pela própria criança, que passa a ditar o ritmo, os significados e o percurso da relação
pedagógica ou o que deveria ser a singularidade dessa relação. Nesse contexto, nem
crianças, nem adultos conseguem expressar-se como sujeitos nas relações. Como
ressaltam Bazílio e Kramer (2003, p. 79),
191
Kramer (2003, p. 81), em um contexto que, muitas vezes, nos distancia da efetivação
de direitos, isso nos expõe a um agravamento da desigualdade e da injustiça social.
De um lado, as crianças enfrentam situações cada vez mais difíceis e complexas,
convivendo com problemas para cuja solução seu conhecimento ou sua experiência
não permitem responder; de outro, os adultos parecem não saber responder ou agir
diante de situações que não enfrentaram ou não se constituíram como experiência
coletiva.
Ao tomar como princípio que a ação humana é coletiva – depende da
constante presença de outros (crianças, adultos, outras crianças, outros adultos) –, que
as diferentes maneiras de inserção nos espaços de convivência tensionam as
possibilidades de intervenção e construção no mundo, problematizo a importância de
recuperar o espaço educativo como espaço público, em que diferentes pessoas
ocupam o centro da cena, o protagonismo das relações e são capazes de, assim, e só
assim, entrelaçar interesses, consolidar novos laços, refazer elos e ressignificar seu
papel na esfera social coletiva. Reafirmo, por isso, que nem a ação das crianças nem a
ação dos adultos podem ou deveriam ser tomadas de forma isolada.
A condição socioistórica moderna, que coloca homens, mulheres, crianças, em
suas muitas idades e diferenças, separados entre si, tem diluído a capacidade política
de convivência e a capacidade de agir. Não é à toa que as crianças têm assumido um
lugar de profunda tirania em relação aos adultos, os quais devolvem essa tirania com
192
uma ação cada vez mais autoritária e distante das crianças, abandonando-as a dar
conta sozinhas de seus conflitos, incoerências e incompetências. Se, em sua condição
humana, e não de infância, as crianças se expressam como sujeitos incompletos,
dependentes, em processo de formação, os adultos também não se expressam à
imagem da plena perfeição. Procuro focalizar, ao contrário, um processo de formação
humana e social que tem como centro de atenção os diferentes atores que partilham a
cena social e nela precisam intervir não como idealização da escola ou das relações,
mas como condição humana.
Nesse contexto, a infância tem sido afirmada como tempo de brincadeira e as
creches como os lugares por excelência onde as crianças podem ser criança. Os
depoimentos das professoras e os projetos pedagógicos expressam, várias vezes, a
visão de que uma das responsabilidades da creche é possibilitar que as crianças
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Na vida a gente passa por diversas fases. Então, a gente não pode deixar a fase da
infância passar. A infância é relacionada com a brincadeira, com o brincar. Então é
importante eles estarem brincando, estarem construindo. Então, é muito importante
as brincadeiras. É importante brincar na creche, porque é o espaço que elas têm
para estarem brincando e não estarem na rua. Então, é importante eles estarem
brincando aqui dentro da creche. É um espaço reservado para eles. Para eles
poderem brincar mesmo. (Rose)
A imagem da criança como ser que brinca expressa uma síntese do paradoxo
no qual a infância moderna se encontra inserida. Ao mesmo tempo que consolida um
reconhecimento cultural e social singular, reforça uma imagem de isolamento político
da infância, menorizando suas possibilidades de intervenção em um sistema
simbólico mais amplo. Essa imagem recoloca a infância em uma lógica
desenvolvimentista que encerra a infância como etapa preparatória para as etapas
subseqüentes e para o ingresso no mundo produtivo, o que requer uma especialização
193
cultura e da sociedade.
próprios sujeitos nos seus processos de produção. Neste ponto, recai a importância de
afirmar as crianças – assim como nas questões de gênero e étnicas – em suas formas
singulares de inserção social e produção simbólica. Isso não pressupõe o isolamento
dos sujeitos e requer cuidado com formas ingênuas de compreender suas ações.
Assistimos, ao longo da história, a uma menorização das crianças em relação
aos adultos, das mulheres em relação aos homens, dos negros e dos índios em relação
aos brancos, dos pobres em relação aos ricos, da cultura popular em relação à cultura
erudita, dos saberes cotidianos em relação aos saberes científicos, entre muitas outras
expressões de poder. Nesse sentido, como assinala Castro (1999, p. 13-14), parece
prevalecer uma compreensão de que as crianças não possuem habilidades e
comportamentos adequados, o que acaba deslegitimando sua participação na criação e
recriação da cultura.
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(não por competência, mas por meios de acesso e inserção), mas que, como norma ou
moda, impõem ser consumidos como expressão do novo cidadão contemporâneo.
Na sociedade de consumo, como analisa Pereira (2002, p. 152), as relações
passaram a se instituir tendo como princípio necessidades individuais e
individualizadas, descoladas da história e descaracterizadas de seu sentido coletivo.
Enquanto as crianças vão sendo impelidas a uma jovialidade precoce e inseridas em
um grande mercado consumidor, muitos adultos parecem recusar-se a amadurecer e,
até mesmo, envelhecer, como se o mundo pudesse se reduzir à eternização de um
presente idealizado, em que a felicidade, o prazer, a beleza, o conhecimento, como
bens privados, estivessem disponíveis a todos que pudessem ou merecessem, como
mercadorias, consumi-los (SARLO, 2000, p. 36). Nesse contexto, as crianças
distanciam-se dos adultos e das relações sociais, desligando-se de um processo de
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76
BENJAMIN, 1987a. Esta análise também foi proposta por Pereira (2002), em um texto
fundamentado em Souza (2000) e Castro (1999), que considero importante para a compreensão de uma
infância contextualizada no contemporâneo.
199
seus filhos, por mais que fossem atravessados por princípios e valores que lhe
escapavam o controle. Mas que história partilhara? Que conhecimentos e experiências
trocara com seus filhos (projeto cultural)? O que lhes havia ensinado? Como assinala
Arendt (1972, p. 246), se o adulto não pode ensinar às crianças a “arte de viver”, pode
ensinar-lhes a decifrar o mundo sem preconceito e com atenção, reconhecê-lo e nele
se reconhecer – apropriá-lo, participando de sua construção como patrimônio humano
público:
[...] a educação é onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não
expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos e, tampouco
arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova imprevista
para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um
mundo comum. (ARENDT, 1972, p. 247)
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77
Apud Willi Bolle (1984). In. BENJAMIN (1984). Reflexões: A criança, o brinquedo e a educação.
200
aquilo que foi/é descartado por sua aparente inutilidade pode ser (re)humanizado,
(re)significado, (re)apropriado como sentido, significado.
Por isso, as ações das crianças não constituem parte de uma cultura isolada.
Ao contrário, estão inseridas em uma tradição, em um sistema coletivo de
significações. Como desafio à construção da história, lembra-nos que sempre se pode
incluir, por imperceptível que pareça, algo novo que emerge de uma história coletiva
e das experiências partilhadas. De dentro da história é que se pode reconstruir as
regras, reinventar palavras e jeitos de falar, recriar o mundo com pinturas, esculturas,
festas, brincadeiras, etc.; ressignificar o humano como artistas e artesãos de um
mundo e história que nos enredam.
Nesse sentido, afirmo o lugar social das crianças como sujeitos que
desestabilizam, desfocam e descentram olhares adultos, que provocam e remetem os
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adultos a tocar em suas memórias e experiências, que relembram que os objetos, mais
do que serem instrumentos e terem uma função, no sentido de Bakthin (1988, p. 34),
são um signo:78 materializam relações sociais em sua plena constituição ideológica.
Um cabo de vassora, por exemplo, não é neutro: afirma funções, lugares sociais e
formas de inserção na cultura. Se reinventado, pode ser um cavalo, um foguete ou um
avião, pode levar a lugares, mundos e histórias que, embora já conhecidas, podem ser
partilhadas, narradas, ressignificadas, experimentadas de formas inesperadas.
78
No sentido de Bakhtin (1988, p. 35), “a consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao
contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social [...] a consciência adquire
forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais”.
202
ou, mesmo, que possibilidades de relação entre o brincar e outros conhecimentos não
podem ser pensadas. Mas se essas forem as únicas formas de inclusão da brincadeira,
revelam um recorte pobre da cultura. Ao ser tomado como instrumento neutro e
objetivo, perde-se de vista valores e signos culturais que atravessam a escola e se
instalam como projeto cultural, o que banaliza dimensões de poder que se expressam
nas diferentes experiências de constituição humana, tensionadas em gêneros, raças,
inserção social, habilidades, comportamentos, hierarquias, participação nas decisões,
etc. Ao invés de possibilitar uma apropriação dos meios de produção do
conhecimento, objetiva e dissimula uma histórica desapropriação dos sujeitos dos
significados de sua ação, fornecendo-lhe uma aparência agradável, prazerosa e
desejada. As brincadeiras, nesse contexto, não são compreendidas como uma
possibilidade de tematização da produção cultural que atravessa a escola, a vida das
crianças e das professoras.
Afirmar o significado da brincadeira como dimensão de produção da
linguagem humana é inalienável do direito de apropriar-se de todas as formas de
codificação e interpretação. Tal fragmentação é semelhante a um tipo de pensamento
que parece contrapor o direito de acesso a dimensões técnicas e instrumentais de
apropriação e produção do mundo com uma noção de educação que se expressa com
projeto de formação humana. A constituição do humano pressupõe amplo acesso aos
205
ações e relações, são noções incorporadas de forma complexa, e nelas cabem os mais
paradoxais significados. Nos relatos das trajetórias das professoras, bem como na
história da Educação Infantil em Belo Horizonte, explicitam-se diferentes
concepções, que se expressam de forma dialética: são histórias tecidas entre a
precariedade e a dignidade dos sujeitos, escritas nos espaços possíveis de produção
humana, atravessadas por signos ideológicos que as constituem e conformam.
Nesse contexto, um olhar sobre as crianças como sujeitos, articulado a uma
compreensão sobre a importância do brincar, mostra-se como uma das estratégias de
efetivação de uma concepção de infância, com direitos subjetivos e singularidades em
seu processo de inserção na cultura. Esta visão está presente em diferentes discursos
públicos. No Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, no projeto
político-pedagógico do município e nas propostas que as creches procuram efetivar
em seu cotidiano, a brincadeira é afirmada como princípio fundamental, linguagem
prioritária, direito inalienável, método, processo e conteúdo; conhecimentos dos quais
as professoras precisam apropriar para afirmar a Educação Infantil como concepção
pedagógica. O direito de acesso à brincadeira expressa-se como sinônimo do próprio
direito à infância.
Ao lançar o foco da pesquisa para este quadro e noção, observei no cotidiano
das instituições de Educação Infantil um movimento, que vem emergindo, de
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mulheres –, e, por isso, são inseparáveis da compreensão dos lugares sociais, onde se
revelam e podem ser decifrados. Ao propor uma reflexão das relações sociais e
culturais entre crianças e adultos, que se realiza como educação escolar em uma
creche comunitária, busquei reconhecer e problematizar contradições éticas e
políticas que estão impregnadas no contemporâneo. A desigualdade de direitos e as
brutalidades sociais que muitas crianças vivem não se referem apenas às crianças.
Estão contextualizadas na fragilidade democrática que crianças e adultos partilham e
que constituem uma inserção social e cultural ainda precárias.
A educação de crianças está atravessada por um tempo-espaço institucional
que coloca em cena para além das dimensões técnicas e instrumentais, um contexto
de mediações culturais e sociais. Uma escola para crianças pequenas, também, revela-
se como possibilidade de desvelamento, tanto de uma tradição quanto de experiências
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culturais e sociais presentes. Colocamo-nos sob o risco de nos ver diante de modelos
contemporâneos, desprovidos de uma história e de experiências capazes de promover
uma existência mais crítica e reflexiva. A escola, como lugar de experiências sociais e
culturais, tempo e espaço de formação humana, pode se traduzir como uma rica
possibilidade de leitura do mundo e de escrita de uma história coletiva.
O conhecimento, como saber gerado nos processos sociais, não se restringe,
por isso, a uma apropriação neutra e objetiva do mundo. Refere-se a uma dinâmica de
produção de significados e de elaboração da cultura. A possibilidade de ler o mundo e
interpretá-lo, significá-lo, inscrevê-lo como história, coloca-se para além (apenas
citando como exemplo) da discussão e aplicação de um melhor método de
alfabetização. Nesta pesquisa, pude perceber que as técnicas estão relacionadas aos
próprios processos históricos de construção dos conhecimentos sociais.
Conhecimentos, técnicas e saberes, em suas mais amplas dimensões,
constituem patrimônio da humanidade e direito inalienável. Isso inclui pensar as
condições de acesso e a compreensão dos meios de sua produção. Envolve, por isso,
uma reapropriação do lugar de autoria e autoridade no processo de elaboração da
cultura. Refere-se, assim, à possibilidade de superação de uma trajetória em que
crianças, adultos, homens e mulheres se viram destituídos dos meios de produção da
sociedade, como uma das faces perversas da injustiça e da desigualdade.
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Espero, nesse sentido, ter contribuído para futuros estudos, bem como ter
apresentado análises que dêem lugar à apropriação dos discursos e dos significados
que as brincadeiras, entre outras práticas corporais, têm assumido no espaço escolar,
anunciando perspectivas para que as relações pedagógicas possam ser reinterpretadas
e reconstruídas no cotidiano da Educação Infantil, no encontro entre as crianças e as
professoras.
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Anexos
Anexo 1
3. SOBRE A CRECHE
• O que é, e como é a creche;
• a importância da creche para as crianças;
• a importância da creche para as famílias;
• a importância da creche para a professora.
6. SOBRE AS BRINCADEIRAS
• Por que é importante que as crianças brinquem;
• por que é importante que brinquem na creche;
• se as crianças da creche brincam em outros momentos e lugares;
• o que é a brincadeira para a professora;
• como acontecem na creche;
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