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José Alfredo Oliveira Debortoli

Infâncias na creche
Corpo e memória nas práticas e nos discursos da Educação Infantil – um
estudo de caso em Belo Horizonte
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0015642/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção


do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação
em Educação do Departamento de Educação do Centro
de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

Orientadora: Sonia Kramer

Rio de janeiro
Março de 2004
JOSÉ ALFREDO OLIVEIRA DEBORTOLI

INFÂNCIAS NA CRECHE: CORPO E MEMÓRIA NAS PRÁTICAS E


NOS DISCURSOS DA EDUCAÇÃO INFANTIL – UM ESTUDO DE
CASO EM BELO HORIZONTE

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo
Programa de Pós-graduação em Educação do Departamento de Educação do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.

Profª Sônia Kramer


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0015642/CA

Orientadora
PUC-RIO

Profª Tânia Dauster


Presidente
PUC-RIO

Profª Zaia Brandão


PUC-RIO

Profª Lucia Rabello de Castro


UFRJ

Profª Maria Machado Malta Campos


FCC

Profª Maria Amélia Gomes de Castro Giovanetti


UFMG

Profº PAULO FERNANDO CARNEIRO DE ANDRADE


Coordenador Setorial do Centro
de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio

Rio de Janeiro, ____/_____/____.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial
do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

José Alfredo Oliveira Debortoli

Licenciou-se em Educação Física na Escola de Educação Física,


Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas
Gerais (EEFFTO/UFMG) em 1989. Concluiu o Mestrado em
Educação pelo programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação
da UFMG em 1996. Professor na EEFFTO/UFMG desde 1997.
Participa da coordenação do Centro de Estudos, Pesquisa e Extensão
em Educação Física Escolar (ProEFE) da UFMG onde propõe
aprofundar o conhecimento da infância na sociedade contemporânea,
em especial, os significados culturais do brincar e da brincadeira e sua
importância nas experiências de infância e formação de professores.
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Ficha catalográfica
Debortoli, José Alfredo Oliveira

Infâncias na creche: corpo e memória nas práticas e


nos discursos da educação infantil – um estudo de caso
em Belo Horizonte / José Alfredo Oliveira Debortoli ;
orientadora: Sonia Kramer. – Rio de Janeiro : PUC-Rio,
Departamento de Educação, 2004.

[10], 231 f. ; 30 cm

Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do


Rio de Janeiro, Departamento de Educação.

Inclui referências bibliográficas

1. Educação – Teses. 2. Infância. 3. Corpo. 4. Memória


. 5. Brincar. 6. Educação infantil. I. Kramer, Sonia. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Educação. III. Título.

CDD: 370
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In memorian à Elza, Júlia e Alice,


que, certamente, olham para tudo isso com orgulho.
Agradecimentos

Como é bom celebrar a vida com pessoas tão queridas, importantes e, sem hierarquia ou
sentimento de pudor, poder dizer muito obrigado!

À Sonia, pela partilha de um processo de orientação preciso, pleno de rigor acadêmico e de


delicadeza humana, em que pude assumir, de forma verdadeira, a autoria e a
responsabilidade de realizar um trabalho de pesquisa.

Às crianças, às professoras, às coordenadoras e às funcionárias da creche pesquisada,


também, sujeitos deste trabalho, que dividiram comigo vida e histórias.

A todos os professores da Pós-Graduação do Departamento de Educação da PUC-Rio, pelo


privilégio de poder usufruir tão rico contexto de elaboração de conhecimentos e formação
de professores e pesquisadores.
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À professora Zaia Brandão, por ter dividido momentos tão bons, pelos estudos em
Sociologia da Educação, pelas contribuições à pesquisa, pelo respeito e, sobretudo, pela
amizade.

À professora Tania Dauster, pelo seu olhar sempre criterioso e pela importância de suas
contribuições em diferentes momentos de minha formação.

À Prefeitura Municipal de Belo Horizonte; ao Grupo de Educação Infantil do CAPE


(Ângela, Cristina, Fernanda, Kelly, Mayrse, Vaninha e Verinha); ao CEI-Barreiro
(Adarlete, Áurea, Cibely, Daniela, Janete e Rosemary); ao CEI-Pampulha (Carla, Cristina,
Elizabet, Rosana e Verinha); à AMAS (Lecy, Maria Helena, Rosângela e Silvana); e às
queridas amigas da CPP (Flávia e Isa), pelo rico diálogo ao longo da pesquisa.

Ao Grupo de Pesquisa coordenado pela professora Sonia Kramer e às professoras da


Educação Infantil do Estado do Rio de Janeiro; à professora Maria Luíza Oswald e às
colegas Cristina Carvalho, Cristina Porto, Fabiana, Fernanda, Luísa, Núbia, Patrícia e
Paulinha; e, de forma especial, ao “Grupo do Olhar” (Anelise, Maria Lucia e Meriane), pelo
muito que pudemos partilhar.

A todos os colegas do Doutorado. Em especial, expresso o meu carinho à Lucília e à


Glória, pela acolhida em todos os momentos no Rio de Janeiro. Também não posso me
esquecer da presença sempre carinhosa da amiga Cláudia. Ao amigo Zé Ângelo agradeço
pela parceria na construção do conhecimento, no enfrentamento das duras viagens, nas
saudades de casa, na partilha da vida.
Aos amigos e amigas da Secretaria do Departamento de Educação, que sempre atenderam
prontamente a todas as minha solicitações.

Aos colegas do Departamento de Educação Física da UFMG, que me possibilitaram


concretizar o Doutorado. Em especial, agradeço ao Tarcísio e à Meily, por terem garantido
o suporte acadêmico necessário à minha liberação. Agradecer-lhes academicamente é uma
ironia do destino. Vocês são grandes e queridos amigos. Também quero retribuir a amizade
e a confiança do Ronaldo. Agradeço à Mirian e à Cinira, pela atenção e o cuidado com cada
um de nós, professores do departamento; e a alguns queridos alunos e alunas da EEFFITO,
que também contribuíram para o meu processo de formação.

Às amigas Fátima, Isabel, “Marines” Mafra, Marília e a todas as companheiras do Fórum


UFMG de Educação Infantil, pela parceria e incansável luta por direitos e dignidade.

À Pró-Reitoria de Pós-Graduação, pela seriedade e competência do trabalho que realizam


na UFMG, em especial as informações precisas e sempre carinhosas de Zenalva.

À CAPES, pelo aporte financeiro necessário à realização da pesquisa, que quero traduzir
como um compromisso com o povo brasileiro, especialmente com a população
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empobrecida e com as instituições públicas de nosso pais.

À Tucha, pela sua cuidadosa e competente revisão de português.

Às amizades que trazem tempero único à minha vida. Como poderia falar de mim sem dizer
do Walter e da Ção; do Tatá, da Annamaria, da Mariana e do Lucca; do Wemerson, da
Meily, de Sarah e Clarisse; do Leo, da Aninha e do André; do Leonardo Jeber; dos queridos
parceiros Tadeu e Chico dos Bonecos; do Zé, da Tati, do Wagner; da Camila, da Eliene, do
Nei, do Ricardo e do Henrique; dentre tantos e imprescindíveis amigos.

Aos queridíssimos João e Walesca. Àqueles que abrem suas casas e dizem: “Venha sempre
que precisar!” Isso é coisa de irmão, e não tem paga. É para sempre. Além do mais, brincar
com o Filipe nas terças à noite foi uma delícia. Igualmente, agradeço ao Carlos e à Helena,
à Andréa, ao Guido e à Izadora. Minha casa também é de vocês.

Ao meu pai Clóvis, simplesmente por tê-lo perto de mim.

À minha querida companheira Cristina, que me concede, dia após dia, o privilégio de
partilhar as coisas mais maravilhosas e saborosas da vida. Amo você.
Resumo
Debortoli, José Alfredo Oliveira; Kramer, Sonia. Infâncias na creche: corpo e
memória nas práticas e nos discursos da Educação Infantil: um estudo de caso em
Belo Horizonte. Rio de Janeiro, 2004. 231p. Tese de Doutorado. Departamento de
Educação, PUC-Rio.

Esta tese apresenta um estudo da infância marcado por processos de partilha das
relações sociais e produção da cultura. Propõe discutir a presença e a importância do
brincar e da brincadeira na formação humana de crianças de 0 a 6 anos, filhos e filhas de
famílias empobrecidas. Mediante a observação do cotidiano, pretendi conhecer processos
de institucionalização de uma Educação Infantil que acontece em uma creche comunitária
conveniada com a Prefeitura de Belo Horizonte. Foram analisados tempos, espaços e
relações pedagógicas que se expressam como uma “educação corporal”. Também foram
realizadas entrevistas individuais e coletivas, trazendo a fala das professoras para o centro
das relações de elaboração da pesquisa. Foram focalizados os lugares sociais e os discursos
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que condicionam e materializam os sujeitos no processo de escrita de uma história da


Educação Infantil, enfantizando, nesse sentido, o projeto cultural que, em Belo Horizonte,
constitui a formação e a trajetória de crianças e professoras. Esta tese vem realçar uma
atenção aos significados que emergem das experiências e da narrativa de uma história
partilhada, destacando a importância de reassumir uma condição de sujeitos na produção
das práticas, das teorias, dos instrumentos e dos processos de apropriação e deciframento
do mundo. As brincadeiras, as artes e as práticas corporais evidenciaram-se como
conhecimentos contextualizados em uma cultura contemporânea. Tanto trazem marcas de
uma institucionalização das relações como abrem brechas para a mediação das experiências
sociais, revelando-se como dimensão ética e estética do humano, tempo-espaço de
ampliação das possibilidades de ler o mundo e escrever uma história coletiva.

Palavras-chave
Educação; Infância; Corpo; Memória; Brincar; Educação Infantil; Formação de
Professores.
Résumé
Debortoli, José Alfredo Oliveira; Kramer, Sonia. Infâncias na creche: corpo e
memória nas práticas e nos discursos da Educação Infantil: um estudo de caso em Belo
Horizonte. Rio de Janeiro, 2004. 231p. Tese de Doutorado. Departamento de Educação,
PUC-Rio.

Cette thèse rend compte d’une étude sur l’enfance, marquée par des processus de
partage des rapports sociaux et par la production de culture. Elle propose de discuter
l’événement et l’importance du jouer et du jeux pour la formation humaine des enfants âgés
de 0 à 6 ans. Par le biais de l’observation du quotidien j’ai eu l’intention de connaître les
processus d’institutionalisation d’une éducation infantine mise en place dans une crèche
communautaire liée à la Mairie de Belo Horizonte. Les temps, les espaces et les rapports
pédagogiques qui s’expriment comme une “éducation corporelle. Des entretiens individuels
et collectifs ont été conduits en mettant la parole des enseignantes sur le centre des rapports
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pour l’élaboration de la recherche. On a mis l’accent sur les places sociales et sur les
discours conditionnant et matérialisant les sujets dans le processus de l’écriture d’une
histoire de l’éducation enfatine en soulignant dans ce sens le projet culturel qui, à Belo
Horizonte, constituant aussi la formation et la trajectoire des enfants et des enseignants. Cet
ouvrage met en relief une attention aux signifiés issus des expériences et de la narration
d’une histoire partagée en relevant l’importance d’assumer encore une fois les conditions
des sujets pour la production des pratiques, des théories, des instruments et des processus
d’appropriation et de déchifrage du monde. Les jeux, les arts, aussi que les pratiques
corporelles se sont montrés comme des connaissances contextualisées dans une culture
comtemporaine, porteuses des empreintes d’une institutionalisation des rapports et qui
ouvrent des brèches pour la médiation des expériences sociales en se révélant en tant que
dimension éthique et esthétique de l’humain, que temps-espace de l’ampliation des
possibilités de lire le monde et d’écrire une histoire collective.

Mots clefs
Éducation; Enfance; Corps; Mémoire; Éducation Enfantine; Formation des
Enseignants.
Sumário

Princípios para um diálogo de pesquisa com crianças 1

1. Construção de uma pesquisa em uma creche comunitária 15

1.1 Sujeitos e relações de pesquisa 17


1.1.1 Uma aproximação do Poder Público 17
1.1.2 A escolha de uma creche para a construção e
experiência de pesquisa 20

1.1.3 A aproximação da creche: familiaridade e


estranhamentos 21
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1.1.4 Uma descrição da creche a partir do olhar dos


próprios atores 24

1.1.5 Uma relação entre diferentes sujeitos:


professoras, coordenadoras e crianças 26

1.2 Partilha do cotidiano e observação sistemática 32


1.2.1 Diálogo com as crianças 33
1.2.2 Diálogo com as professoras e processo de entrevista 35
1.3 Uma produção de pesquisa tensionada por histórias
de diferentes gerações 38

2. Crianças e adultos nos tempos e espaços institucionais 40

2.1 Creche: um espaço-tempo social e relacional 45


2.2 Os sujeitos e seus corpos: comportamentos aprendidos
e o que emerge das relações 55

2.3 As crianças, os adultos e suas brincadeiras 62


2.4 A brinquedoteca e o discurso do direito à brincadeira 78
2.5 As brincadeiras e os conhecimentos escolares 82
2.6 Educação do corpo / educação dos sentidos:
novos-velhos e outros discursos 86
3. Sujeitos, narrativa e discursos: da apropriação de uma história
à possibilidade de sua ressignificação 104

3.1 Sujeitos que tecem uma história que os enreda 105


3.2 Concepções, papéis e lugares sociais
em uma creche comunitária 112

3.3 Diferentes trajetórias de professoras e apropriações


da Educação Infantil 122

3.4 Experiências de formação 128


3.5 Infância das professoras 135
3.6 Participação na construção da história da Educação Infantil 143
3.7 Professoras e crianças no espaço escolar:
uma mútua produção de saberes 154
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4. Cenas e signos de uma história política, ética e estética


dos sujeitos e da Educação Infantil 159

4.1 Entre discursos e ações: “reflexos e refrações”


de uma política de infância 160

4.2 Imagens e reconhecimento social das crianças em


projetos pedagógicos de creches comunitárias 172
4.3 Signos paradoxais de uma infância 180
4.4 Crianças e adultos na construção de uma cultura
pública e coletiva 194

4.5 Formação humana e projeto cultural 201

Considerações finais 206

Bibliografia 214

Anexos 229
Princípios para um diálogo de pesquisa com crianças
Olhar Sociológico da Infância

Esta tese se explicita contextualizada no campo da Educação. Como primeiro


movimento, proponho considerar a emergência de uma sociologia da infância,
apontando princípios para sua apropriação como “categoria” de análise. É importante
que as tensões persistam entre dimensões amplas e específicas de produção do
conhecimento (BRANDÃO, 2002). Ao colocar a infância e as crianças no centro de
uma análise relacional, reforço uma postura de compreensão que procura se
fundamentar pelo olhar e pela análise sociológica.
Em artigos publicados em 1998 na revista Éducation et Societés, traduzidos e
divulgados no Brasil, Sirota (2001) e Montandon (2001) afirmam a emergência e a
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constituição de uma sociologia da infância. Abordam a evolução do objeto e as


perspectivas que resultam desse campo de conhecimento. Sirota (2001; p. 8),
analisando as publicações em língua francesa, remonta a questões postas por Marcel
Mauss, na década de 1930, focalizando as crianças em seus contextos sociais. As
relações entre gerações e as técnicas do corpo constituem temas de grande relevância.
Também Montandon (2001, p. 34), no âmbito das produções em língua inglesa,
assinala como a problemática da infância vem de longa data, contextualizada pela
industrialização, urbanização, imigração, explosão demográfica e expansão da
instrução pública, desencadeada por volta do final do século XIX. Revela o interesse
por questões como o trabalho de crianças e por uma suposta idéia de deficiência e
delinqüência relacionadas às populações pobres.
Entretanto, em meio ao declínio da Escola de Chicago e a obstáculos
metodológicos, foram poucos os estudos da infância com o olhar sociológico. O
desinteresse pelas questões da infância, segundo Montandon (2001), relaciona-se à
pouca legitimidade acadêmica que suscitava, aparecendo como “categoria
minoritária”, “marginal”, “excluída” e “invisível”, tomada como objeto “menor”,
signo de incompletude e dependência do ponto de vista tanto físico quanto moral. Até
meados da década de 1970, predominou uma idéia de socialização no sentido de fazer
acontecer o ser social, definido em um quadro estrutural-funcionalista e configurado
2

segundo os modos de apreensão das crianças como objeto, reconstruída por meio de
dispositivos institucionais, como a escola, a família e a justiça (QVORTRUP, 1995;
CORSARO, 1997).
Em oposição a essa concepção, surgem os primeiros elementos de uma
sociologia da infância, coincidindo com um movimento geral da sociologia que se
volta para os atores sociais. Em uma perspectiva tanto histórica quanto sociológica,
há uma tentativa de romper com a ausência das crianças na análise social. A partir da
década de 1980, a concepção de infância como categoria social é intensificada pela
busca de uma interseção mais consistente das disciplinas que contextualizam suas
produções no campo das ciências sociais, entre elas a sociologia da educação. Cada
vez mais, as crianças deixam de ser tomadas como objeto moldado pela moral e
autoridade dos adultos e instituições, afirmadas como parceiros com os quais é
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preciso dialogar. Essa noção remete a uma compreensão ampliada das experiências
de infância, envolvendo variáveis como classe social, gênero e pertencimento étnico.
Algumas questões permanecem abertas e precisam ser enfrentadas: como
apreender a infância como “categoria” e, ao mesmo tempo, afastar-se de uma visão
estritamente ideológica? Que metodologias possibilitariam alcançar melhor as
experiências das crianças? Como compreender “a infância” como uma categoria em
sentido amplo e genérico sem perder de vista o dramático quadro da infância sofrida e
outras diferentes expressões da infância? Em que circunstâncias as crianças são
produtos ou produtoras da cultura? Existe uma cultura específica da infância? Como
se constrói essa “cultura da infância”? Quais são as especificidades desse grupo
sociológico? Há, também, uma diversidade de quadros teóricos que afirmam
conhecimentos sobre as crianças.

Há na produção científica uma disparidade de posições: uns valorizam aquilo que ela
já é e que a faz ser uma criança, outros, pelo contrário, enfatizam o que lhe falta e o
que ela poderá vir a ser; uns insistem na importância da iniciação no mundo do
adulto, outros defendem a necessidade de proteção face a esse mundo. Uns encaram a
criança como agente dotado de competências e capacidades, outros realçam aquilo
que ela carece. (PINTO, 1997, p. 33)

Tais questões solicitam reflexões de cunho tanto teórico quanto empírico,


procurando compreender em que medida uma apropriação da infância como objeto
3

sociológico pode contribuir e promover articulações fecundas e necessárias com as


ciências humanas. Como ressaltam Souza (2000), Amorim (2001) e Castro (2001),
uma questão importante é o foco da análise na relação entre adultos e crianças, que é,
por natureza, alteritária e requer que a compreensão das presenças sociais não se dê
de forma isolada. Dessa forma, pensar a inserção social e cultural da infância implica,
também, problematizar as condições de vida e as experiências dos adultos.
As problemáticas associadas à infância, como ressaltam Sarmento e Pinto
(1997, p. 9), estão na ordem do dia das agendas políticas, dos meios de comunicação
e da investigação. Situações dramáticas vêm causando impacto público internacional:
crianças mortas pela fome, redes de pedofilia, crianças vítimas em conflitos armados,
perseguições étnicas, entre outros contextos e condições materiais. A consideração e
o tratamento das crianças como atores sociais de pleno direito, não como “menores”
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ou como componentes acessórios da sociedade dos adultos, têm implicado tanto o


reconhecimento da capacidade de produção simbólica por parte das crianças quanto à
compreensão das representações1 e crenças que incidem sobre as crianças em
sistemas organizados.
Contudo, ainda que seja importante ressaltar os diferentes processos de
produção de sentido – a pluralidade dos sistemas de valores, de crenças e de
representações sociais das crianças –, há de se ter cuidado ao afirmar a hipótese de
uma “cultura da infância” como movimento de afirmação do caráter plural dos
sistemas simbólicos. Não se pode ignorar que as “culturas da infância” resultam de
processos de colonização dos respectivos “mundos de vida” pelos adultos que, por
sua vez, são decorrentes do processo de institucionalização da infância e do controle
dos seus cotidianos pela escola, pelos tempos livres, pelas práticas familiares, pelos
meios de comunicação e informação, pelos jogos, etc. (SARMENTO e PINTO,1997,
p. 22)
No estudo da infância com o olhar sociológico, quaisquer idéias de “cultura da
infância” não cabem fechadas em um universo simbólico exclusivo e não estão

1
Quando uso o conceito de representação, faço-o, como Dauster (2000, p. 49), com base em Chartier
(1990), associado a uma concepção de prática cultural e relacionado à construção e interpretação da
realidade. Supõe classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão da realidade como
categorias e correspondem a interesses e relações entre o que é dito e o lugar social daquele que o
profere.
4

alheias à reflexividade social global (GIDDENS, 1996, p. 135). As interpretações da


inserção das crianças nos processos de relação e produção da cultura sustentam-se nas
condições sociais em que as crianças vivem, interagem e que dão sentido ao que
fazem. Não obstante, tais ponderações não contradizem o entendimento das
singularidades – nas diferentes formas de inserção social – de apropriação e partilha
da produção da cultura humana. Pensar a especificidade da infância remete às
contradições e relações de poder que instauram os diferentes processos simbólicos
que constituem uma cultura humana demarcada como construção histórica. As
questões que atravessam a cena social tocam crianças e adultos. A escola, o trabalho,
os tempos de lazer, os brinquedos, as brincadeiras, as artes, as cidades, a imaginação,
a criatividade, o afeto, a sexualidade, a autonomia, a dependência, a educação e o
cuidado nos colocam diante de nossa condição humana relacional.
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Compreendo o movimento político – produzido tanto no contexto acadêmico


quanto nas lutas, resistências e conquistas sociais – em que se propõe consolidar
conhecimentos em que reflitam as formas de inserção e dignidade social das crianças.
Mas tenho cautela ao afirmar uma idéia de “Educação da Infância” como “campo
particular” da Educação, instituindo-se como uma “Pedagogia da Educação Infantil”
(ROCHA, 1999, p. 11). O “campo da Educação” (marcado, em sua trajetória de
constituição, por diferentes campos disciplinares, bem como pelas próprias
contradições internas e relações de poder) já é bastante complexo para serem
inseridas novas e, talvez, desnecessárias fragmentações. Também, porque toda
pedagogia é da infância, da juventude, dos adultos, etc.
Como princípio político, reconheço ser significativo – ainda que avanços
venham ocorrendo – reafirmar a precariedade em que a Educação Infantil ainda está
envolvida, e que muito deve ser feito até que o direito à educação e à escola de
crianças de 0 a 6 anos possa se concretizar (CRAIDY, 1994). Isso requer a
consolidação de prioridades e a superação de uma histórica “menorização” da
presença das crianças na sociedade, e envolve tanto o debate e a formulação de
5

políticas públicas quanto condições e canais de expressão no âmbito das produções


acadêmicas.2
Entretanto, para além do que é estabelecido pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB, 1996) como uma educação em creches para crianças de 0 a
3 anos, em pré-escolas para crianças de 4 a 6 anos e a partir de 6 anos o Ensino
Fundamental, o que de fato constitui uma “Pedagogia da Educação Infantil”, ou
mesmo, uma “Pedagogia da Infância”? Certamente, não cabem mais fragmentações
entre as noções de cuidar, educar e ensinar. São concepções e ações que dizem
respeito a todo contexto de formação humana, seja este com crianças pequenas,
adolescentes, adultos ou pessoas idosas, nas suas muitas diferenças.
Os argumentos utilizados para diferenciar os espaços institucionais da escola e
da creche/pré-escola, também, são frágeis. Segundo Rocha (1999, p. 61-62; 2001, p.
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29), enquanto a escola tem como sujeito o “aluno”, como objeto o “ensino” – nas
diferentes áreas – e realiza-se por meio da “aula”, a Educação Infantil tem como
objeto “as relações educativas” travadas em um “espaço de convívio coletivo”.
Afirma, ainda, que, enquanto o objeto do campo da Pedagogia define-se como o ato
pedagógico em determinada situação, no caso da Educação Infantil esse objeto
concretiza-se pelo contexto das relações educacionais pedagógicas, e não pela análise
de cada um dos fatores determinantes da educação.
Compreendo que esta noção não favorece o entendimento das relações
institucionais entre crianças e adultos, tampouco os processos de mediação,
apropriação e produção da cultura humana. Esta consideração se faz necessária uma
vez que, nesta tese, faço a opção de não operar com o conceito de “Pedagogia da
Infância ou da Educação Infantil”. Tenho observado a emergência de novas formas de
isolamento e especialização da infância, bem como o risco de recair em relações
espontaneístas e abstratas entre adultos e crianças, que reforçam uma menorização da
presença das crianças no contexto social, bem como enfraquece a importância e lugar
social dos adultos, nas relações com as crianças.

2
Reforço a importância da Anped, particularmente do GT Educação da Criança de 0 a 6, que, a partir
da década de 1980, diante da necessidade de um posicionamento dos movimentos políticos pré-
constituinte e, mais tarde, da LDB, buscou ampliar do debate teórico em torno de temas como as
crianças brasileiras, a formação profissional e as políticas públicas para a Educação Infantil.
6

Compartilho a noção de que são muitas as formas de inserção cultural e


produção simbólica, bem como são diferentes os atores que emergem na cena social:
crianças, adolescentes, adultos, homens, mulheres, idosos, etnias, inserções sociais,
geográficas, culturais, expressões do corpo e do movimentar-se humano, etc.
Contudo, não creio ser fundamental, ainda que possível, fixar olhares para sujeitos
específicos, perdendo de foco sua alteridade, o que pressupõe permanente encontro e
confronto (GEERTZ, 1999, p. 33). O que se reivindica não é um olhar para culturas
específicas, de forma isolada, mas formas singulares de diálogo com uma cultura que
se expressa dialética nas formas mais sutis de existência humana.3 Problematizar a
infância, o corpo, as relações entre crianças e adultos, os processos de elaboração do
conhecimento diz respeito à educação humana. A reflexão dos conhecimentos
culturais / escolares e dos processos de institucionalização / controle / disciplina das
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crianças são temas que estão postos para os diferentes contextos e processos de
formação humana.

Infância: uma construção histórica e relacional

Mesmo reconhecendo a afirmação de que a infância como construção social


talvez seja, hoje, quase lugar comum na análise sociológica (SARMENTO, 2001, p.
13), pretendo continuar tocando no ponto de que a infância não é uma idéia abstrata,
tampouco natural, menos ainda neutra. Sua visibilidade está condicionada e
condiciona as relações que os diferentes sujeitos inscrevem e conformam. Esse
entendimento reforça uma concepção de que o estatuto e os papéis sociais que são
atribuídos à infância mudam com as formas sociais de que as crianças são sujeito e
objeto de variação e de mudança em função de dimensões sociais como classe,
contextos culturais e relações de gênero, entre outras.
A propósito, desde os séculos XVII e XVIII, vem se consolidando um
conjunto de representações, discursos, teorias, sentimentos e crenças sobre as
crianças, estruturando dispositivos de socialização e controle (ARIÈS, 1981). Os

3
Como Geertz (1978, p. 15), defendo um conceito semiótico de cultura, que enreda os diferentes
atores sociais em uma complexa teia de significados; um sistema entrelaçado de signos que condiciona
ações e discursos, linguagens e modos de construção de mundo, interações sociais e relações de poder.
7

tempos atuais, por sua vez, introduziram novas circunstâncias e condições à vida e à
inserção social da infância, o que justifica outros olhares e atenção. Pinto e Sarmento
(1999, p. 10), tomando por referência a análise social de Giddens (1996), chamam
atenção para o fato de que a concepção de infância, a partir do século XX, encarnou
uma “reflexividade institucional”, que reconfigurou os modos dominantes de
interpretação da realidade, condicionando olhares, atitudes e práticas dos adultos com
relação às crianças. Em outras palavras, o conhecimento institucionalizado passou a
contribuir, de forma decisiva, para a produção da realidade social das crianças. A
construção simbólica de um estatuto social para a infância, inicialmente conformado
pelo e no discurso médico-psicológico, tendeu a ser pulverizado em variados
domínios de saberes, multiplicando as imagens sociais das crianças.4
São imagens contraditórias, e assim devem ser tomadas e percebidas. A
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expressão das crianças no espaço público, por mais ambígua que seja, possibilitou
outros discursos e olhares das crianças, trazendo a infância para a cena de discussão e
conquista de direitos sociais coletivos e subjetivos. Sabemos que essas imagens
também estão envolvidas em uma crescente institucionalização de um mercado
globalizado, no qual assistimos a uma infância fragmentada entre a produção e o
consumo, que, ao mesmo tempo que gera uma concepção de sujeito de direitos e
anuncia uma imagem de “criança-cidadão”, ganha visibilidade em novos
investimentos e relações de poder.
Entretanto, tal reflexão não pode nublar a importância do discurso da
cidadania da infância ou das crianças como sujeitos sociais, principalmente, quando
significado em um contexto social organizado, como no caso do final da década de
1980, que gerou um movimento de defesa de direitos das crianças em diferentes
campos de atuação social. Mesmo reconhecendo o agravamento das condições de
vida das crianças em diferentes domínios, o discurso da cidadania das crianças
apresenta o desafio de mudanças políticas e sociais que tensionem as formas de
inclusão social, de participação na produção da sociedade e suas instituições. A
visibilidade social das crianças como sujeitos de direitos escancara desigualdades

4
HENDRICK , 1994, apud PINTO e SARMENTO, 1999, p. 16.
8

sociais, submetendo nosso olhar a uma precariedade de relações que envolve adultos
e crianças (KRAMER, 2003, p. 58).
Apoiado nesse princípio, Sarmento (2001, p. 16) toma de empréstimo duas
categorias5 importantes à compreensão dos fenômenos expressos pela idéia de
infância. Se, por um lado, a idéia de infância se expressa de forma “hegemônica” no
contexto das sociedades industriais-capitalistas, demarcada em seus efeitos perversos,
por outro, de forma “contra-hegemônica”, expressa na difusão mundial de direitos,
abre caminhos para um outro tipo de inserção social das crianças, configurando outras
condições de expressão de sua dignidade. Este debate é imprescindível para a
consolidação de políticas sociais efetivas, bem como para a ressignificação da
produção de conhecimentos em outra ordem simbólica e histórica.
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Infâncias, pesquisa e conhecimento

A proposição de uma pesquisa “sobre” e “com” a infância implica reflexão


política, ética e estética da visibilidade histórica das crianças. Sua elaboração
expressa o projeto cultural que a condiciona e anuncia. Como ressalta Larrosa (1998,
p. 68), “a infância é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições já
capturaram”. Sob a legitimidade de saberes científicos, a infância, de diversas
maneiras, foi e tem sido explicada e nomeada: a definição de fases e processos de
desenvolvimento, sua cognição, sua moral, seu comportamento afetivo, bem como as
precariedades sociais de abandono, de miséria, de vidas na rua, de prostituição, de
delinqüência, configurando-se como alvo de recorrentes e permanentes preocupações
e investigação. No contemporâneo, emerge uma idéia de cidadania da infância
tensionada entre o direito e o consumo, marcada por instituições, contextos e objetos
culturais como a televisão, os shoppings, os jogos, os brinquedos, a escola, os lazeres,
as políticas para a infância, etc.
Mas se tanto já foi pesquisado, respondido e apropriado com relação às
crianças, por que é fundamental continuarmos procurando aproximação da infância,

5
SANTOS, 2002, p. 72. Neste texto são ressaltadas as categorias “globalização hegemônica” e
“globalização contra-hegemônica” para uma compreensão dialética da globalização como fenômeno
mundial.
9

das infâncias, das suas histórias, da infância do outro, da nossa própria infância?
Como afirma Larrosa (1989, p. 70-72), se, por um lado, a alteridade da infância não
significa que as crianças não possam ser apropriadas por nossos saberes, por nossas
práticas e por nossas instituições, e, como já ressaltado, foram apropriadas de muitas
maneiras e contextos, por outro lado, sabemos que a alteridade da infância é mais
radical, que resiste enigmática a nós, pesquisadores e instituições. Se devemos
continuar buscando nos aproximar das crianças é porque elas nos inquietam, desafiam
e desconstroem nossos saberes.
As respostas que buscamos dependem da capacidade de assumir
responsabilidades – nisto reside o princípio dessa relação política, ética e estética da
pesquisa e das relações sociais com as crianças – diante daquilo que as crianças irão
mostrar e daquilo que iremos conhecer. Dependem, também, da capacidade de
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colocar em questão os lugares que construímos para ela. A compreensão da infância


que formos capazes de produzir nos expõe, expõe nossa sociedade. Toca em uma
reflexão sobre o poder: até que ponto estamos dispostos a partilhar com as crianças
(poderia referir aqui a atores sociais com histórias singulares, como as mulheres, os
negros e tantos outros grupos humanos que se apresentam enigmáticos pela sua
diferença-beleza-estranheza-exclusão) da reconstrução e ressignificação do nosso
presente/olhar?
A pesquisa da infância coloca no centro da reflexão o lugar que os adultos, as
instituições educativas, as famílias ocupam nos processos de construção, partilha,
transmissão, apropriação e domínio da cultura, das experiências, dos saberes e dos
aparatos técnicos. O conhecimento sobre a infância privilegiou a dominação e o
controle. E, como afirma Rodrigues (1992, p. 119), poucos foram os domínios da
experiência humana que o pensamento ocidental se permitiu elaborar tantas
generalizações e assumir como sendo “naturais” procedimentos dependentes de
convenções, crenças e valores. Ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, materializou-
se em “manuais de civilidade e boa conduta”, em instituições e métodos, com estatuto
de verdade científica. Definiu-se uma norma da infância elegendo uma lógica
desenvolvimentista-positivista como princípio único para estabelecer as diferenças
entre os adultos e as crianças (CASTRO, 2001, p. 19). A Infância foi concebida como
10

um fragmento de tempo a ser deixado para trás, esquecido em nome de um futuro


idealizado, espaço a ser percorrido e vencido em direção ao que se projetou como
maduro, racional, moral e científico.
Nesse contexto, a educação/ escolarização/ socialização da infância significou
objetivamente moralizá-la, expressando-se como um processo longo de inscrição de
um “outro” maduro, moral, racional na infância, encarnado na voz imperativa da
vigilância, da repreensão e da punição (FERNANDES,1996). O olhar da criança –
sua curiosidade, sua imaginação, sua fantasia, sua imprevisibilidade – foi
representado como doença social, pura negatividade, e sua especificidade em relação
aos adultos, julgada como “débito social”, um traço social a ser apagado. Mas que
outra compreensão da infância nos seria possível? Esta é a pergunta que faz Castro
(2001, p. 21) propondo uma inserção da problemática da infância como dimensão
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político-ética, na qual ainda retomo e incluo a dimensão estética (SOUZA, 2001), em


um contexto de produção coletiva da cultura, experimentada nos processos coletivos
de significação do social.
No campo da pesquisa, como em qualquer outro campo social, é preciso
assinalar a histórica “menorização” das crianças na participação da construção da
cultura e na organização dos sistemas sociais. Isso torna urgente, ainda citando Castro
(2001, p. 28), desfocar o debate sobre uma suposta inferioridade ou incompetência da
criança em relação ao adulto, para colocá-la em termos processuais e relacionais,
buscando os significados que emergem na ação e da ação das criança, mesmo, ainda,
mergulhada em relações desiguais de poder e saber. Contrapondo-se a essa
“menorização” das crianças – por razões sociais e ideológicas –, o conhecimento da
infância se revela na capacidade de reconhecer as várias e surpreendentes formas de
expressar sua “voz” e de agir no mundo.
Seguindo as trilhas deixadas por Benjamin (1987a e b), tomo a infância como
categoria central da história, chave para a compreensão de uma época em que
passado, presente e futuro entrecruzam-se. Pesquisar a infância com esse olhar
significou buscar a própria condição humana, entender a história que produzimos e
que nos produz: uma compreensão da infância – que não é romântica, tampouco
11

ingênua – em sua inserção social, cultural e política, em suas formas de participar da


produção da cultura.
Como professor (do Curso de Licenciatura em Educação Física da UFMG),
meu discurso/olhar está marcado pelo meu lugar acadêmico, co-responsável pela
formação de outros professores de educação física, e pelas relações estabelecidas com
as crianças no espaço escolar. Os sujeitos e os contextos das ações pedagógicas que
partilho constituem o princípio de onde parto e falo. A Educação Infantil não foi
desde o início de minha vida acadêmica o trajeto, a fonte prioritária de experiências e
conhecimentos. Mas foi no contexto da Educação Infantil que busquei uma
compreensão da infância e de suas relações sociais. Meu olhar para a Educação
Infantil foi o detonador desse processo de pesquisa e produção de conhecimentos, o
que, também, potencializa enriquecer, fundamentar e articular o conhecimento
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produzido no âmbito da educação física.


Partindo desse lugar discursivo, proponho empreender uma compreensão das
crianças, reconhecendo que esse olhar se constitui dinâmico e parcial. Não proponho
conhecer “a infância”, mas construir uma análise de um grupo singular de crianças,
sob determinado recorte histórico e social. O diálogo com crianças e professoras em
uma escola de Educação Infantil pode ajudar, nesse sentido, a vencer a tentação, ou o
equívoco, de focalizar a infância como uma idéia desencarnada da cultura e
desvinculada das relações sociais, superando visões ora ingênuas ora maniqueístas.
Concordo com Sarmento (1997, p. 26) quando afirma que as metodologias
que se propõem a entender a infância devem ter como foco principal a “voz das
crianças”. Mas, se os discursos não são neutros, também não há olhos e tampouco
ouvidos inocentes. Que discursos emergem desses sujeitos crianças e professoras que
se constituem em um contexto singular? Onde ecoam suas vozes? Como ressalta
Geertz (1999, p. 33), a diversidade, o outro, nem sempre se expressa por um contraste
social bem definido. Se queremos compreender, é preciso, antes, aprender a
reconhecer de que lugar olhamos para sermos capazes de apreender e inscrever o
discurso do outro, entender a distância que nos separa e compreender a densidade e a
complexidade de nossas relações.
12

Interessou-me conhecer os adultos e o contexto social com os quais essas


crianças se relacionam e para as quais direcionam suas práticas sociais. Neste
desenho de pesquisa, fui delineando uma fundamentação teórica em que busquei
elaborar um processo de conhecimento “sobre” e “com” as crianças; crianças que
partilham e experimentam práticas sociais demarcadas pelos lugares de crianças e de
adultos (professoras, pais, mães, comunidade, pesquisador), construindo-se e
reconstruindo-se como sujeitos.
Parto do princípio de que nos corpos dos sujeitos estão “encarnadas” as
“marcas do contemporâneo”. Nesse sentido, a compreensão da infância e de suas
relações sociais também se explicitam no corpo e na memória das professoras,
constituem e conformam seu discurso. Partindo da hipótese de que o brincar se tornou
uma das principais estratégias de efetivação de uma concepção de infância e
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Educação Infantil, seus processos, instrumentos e conteúdos – sabendo que as


práticas corporais não estão isentas de significados e ideologias que a contextualizam
–, isso se tornou fundamental para compreender os discursos que dão materialidade às
políticas de infância e às relações cotidianas.
A reflexão do brincar atravessou a pesquisa, demarcou as relações com as
crianças e professoras. O discurso da relação da infância com o brincar está
impregnado no ideário pedagógico atual da Educação Infantil. No sentido de uma
educação do corpo, constituiu a orientação e foco da pesquisa. Como fundamento
teórico, poderia dizer que esta pesquisa se refere a uma articulação corpo-memória na
expressão dos sujeitos.
A exposição do trabalho está organizada em quatro eixos, que estruturam os
capítulos da tese. No primeiro capítulo, apresento o processo de investigação
realizado. Partindo da delimitação do objeto de pesquisa, proponho contextualizá-lo
no quadro histórico de uma política municipal, ressaltando questões e tensões que
requerem análise. Descrevo o percurso da pesquisa apresentando as relações com os
sujeitos envolvidos e as escolhas representativas na elaboração da metodologia, dos
instrumentos, do desenho da pesquisa e das referências com que dialoguei.
No segundo capítulo, sistematizo os diferentes tempos e espaços de uma
creche comunitária e as relações estabelecidas entre as professoras e as crianças em
13

seu contexto comunitário. Enfoco um processo de classificação e distribuição das


relações que atravessam os corpos dos sujeitos, instaurando signos que vão dando
sentido ao cotidiano escolar, envolvido em um contexto discursivo mais amplo. A
brincadeira aparece como elemento central de um diálogo no qual aponto alguns
constrangimentos que os sujeitos – crianças e professoras – sofrem, sem perder de
vista as brechas que estes encontram para a elaboração de suas relações.
No terceiro capítulo, partilho a narrativa de uma história de constituição do
espaço e das relações institucionais: sonhos e conquistas, papéis sociais
experimentados e incorporados, participação na história da Educação Infantil,
conquista do lugar de professora, experiências de infância, de formação e de inserção
cultural, suas formas de apropriação e reconhecimento de saberes, entre outros temas.
Focalizo os lugares sociais nos quais os sujeitos participam e se apropriam de uma
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história de construção da Educação Infantil no município. São falas, ações, relações,


conceitos e preconceitos que, dia-a-dia, se alimentam, se desconstroem e, também,
são reinterpretados e reconstruídos.
No quarto capítulo, articulo uma análise da política de Educação Infantil no
município às concepções e olhares sobre as crianças na história e nas políticas de
infância no Brasil. Enfatizo o projeto cultural que, em Belo Horizonte, constitui a
formação humana de crianças e professoras. Apresento um olhar sobre as políticas de
Educação Infantil no período posterior a 1993 e mostro como elas vêm se refletindo e
refratando nas instituições conveniadas: uma história que envolve diferentes atores e
instituições, e traz à cena valores públicos e políticos que podem fortalecer a
autoconsciência dos sujeitos que partilham uma trajetória comum, possibilitando-lhes
exercer a capacidade de decifrar uma cultura complexa e contraditória que os
envolve.
Finalizo esta pesquisa reafirmando a atenção aos significados que emergem
das experiências e narrativa de uma história partilhada e reforço a importância de
reassumir uma condição de sujeito na produção das práticas, das teorias, dos
instrumentos e dos processos de apropriação e deciframento do mundo. Considero,
nesse sentido, um processo educativo que se anuncie como caminho humanizador dos
14

diferentes sujeitos que partilham de mesmo tempo-espaço institucional. Apresento,


ainda, algumas sugestões de temas que podem ser aprofundados em novas pesquisas.
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1. Construção de uma pesquisa em uma creche comunitária
Ao propor um olhar e uma fundamentação sociológica para o entendimento da
infância, reafirmo o campo6 da Educação como o contexto de análise e reflexão da
infância experimentada em uma instituição de Educação Infantil, expressa em suas
relações com as professoras e suas famílias, em um projeto cultural, social e político
de formação humana e escolarização. A educação de crianças de 0 a 6 anos, as
relações institucionais e as relações das crianças com os adultos co-participantes
nesse contexto constituem o foco central desta pesquisa, tendo o corpo – a educação
do corpo e a corporeidade de crianças e professoras – como ponto de entrada para a
análise.
O contexto social e cultural da pesquisa é a prática pedagógica realizada em
instituições de Educação Infantil em Belo Horizonte.7 Traz consigo complexas
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marcas decorrentes de uma história de opções políticas que se refletem, hoje, na


dificuldade para a implantação de instituições de Educação Infantil na rede pública de
ensino, como de resto vem acontecendo em outras capitais e municípios. Entretanto,
cabe ressaltar o processo desencadeado desde 1997, envolvendo diferentes atores
sociais na elaboração de uma política de Educação Infantil, recuperando as histórias
das instituições, constituindo grupos de trabalho e formas para o acompanhamento e a
sistematização do trabalho das professoras.
O momento da Educação Infantil no município apresenta um cenário
interessante para o diálogo com as professoras, as crianças e o Poder Público. De um
lado, emergem concepções que expressam uma história densa, que reflete tanto um
amadurecimento político da sociedade civil quanto uma longa relação de tutela com e
do Estado. De outro, há a constituição de uma relação política que vem colocando em
cena várias instâncias e atores que tecem a história da Educação Infantil: o Centro de

6
Utilizo a noção de campo proposta por Bourdieu (1989, p. 69), na qual ele propõe descrever e definir
a forma específica de que se revestem os mecanismos e os conceitos mais gerais (capital, investimento,
ganho), para explicar a gênese social dos atos dos atores, das crenças que os sustentam, do jogo de
linguagem que aí se joga e das coisas materiais e simbólicas em jogo geradas no campo.
7
Existem pré-escolas que fazem parte da rede pública de Belo Horizonte. Todavia, as instituições
comunitárias, filantrópicas e familiares constituem a quase totalidade do atendimento à criança de 0 a 6
anos, sendo por isso representativas da política e da história da Educação Infantil neste município. São
atualmente 170 instituições conveniadas e 13 instituições públicas. No final de 2003, deu-se início à
construção de mais 9 creches públicas, uma em cada regional.
16

Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação (CAPE) e o Grupo de Trabalho de


Educação Infantil, os Centros de Educação Infantil (CEI’s), as creches comunitárias,
as escolas municipais, o Movimento de Luta Pró-Creche (MLPC), a Associação
Municipal de Assistência Social (AMAS), os Fóruns de Educação Infantil e outras
secretarias municipais como a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS),
até início do ano de 2002 denominada de Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Social, a Secretaria Municipal de Cultura (SMC) e a Secretaria Municipal de
Abastecimento (SMAB).
Quanto às concepções de infância e Educação Infantil, alguns princípios
marcam o momento atual e anunciam outros olhares. Sobressai uma compreensão das
instituições de Educação Infantil como espaço coletivo de educação e lugar de direito
das crianças e de suas famílias. Fruto desse processo, também, cada uma das
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instituições de Educação Infantil conveniada à Prefeitura de Belo Horizonte elaborou


um projeto político-pedagógico (PPP), apontando objetivos, processos de organização
e formas de estruturação, explicitando discursos sobre as crianças, os professores e a
organização do trabalho pedagógico.
Produções acadêmicas, materiais elaborados pela Prefeitura de Belo
Horizonte, ao lado do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil,
constituem fontes para a compreensão de concepções de infância e de Educação
Infantil que circulam nas instituições e se expressam na organização do trabalho, nos
conteúdos, nas propostas de formação e na ação pedagógica. Apresento como
problemática central a compreensão dos significados e concepções que as
brincadeiras, a educação física e a organização dos tempos e dos espaços – entre
práticas e discursos que envolvem o corpo dos sujeitos – assumem na escolarização
de crianças de 0 a 6 anos: como são incorporadas e interpretadas no cotidiano da
escola e da Educação Infantil.
Ao construir uma aproximação das crianças e das professoras, algumas
reflexões foram necessárias: as memórias das professoras, suas histórias e infâncias; o
olhar sobre as crianças e a educação; os discursos e teorias pedagógicas que dão
sentido ao trabalho proposto; os conteúdos de ensino; a organização do trabalho
escolar e os espaços e sutilezas da creche (pátio, corredores, salas de aula,
17

brinquedoteca, brinquedos, materiais pedagógicos, barulhos e silêncios, o controle do


e sobre o corpo, as burlas, as teimosias, as resistências, os afetos, os cuidados, os
choros, os gritos, as gargalhadas e, principalmente, as relações entre as crianças e os
adultos).

1.1 Sujeitos e relações de pesquisa

1.1.1 Uma aproximação do Poder Público

Na capital mineira, ao me aproximar do Poder Público, suas ações,


concepções e políticas para a Educação Infantil, toco em uma história que expressa
tanto marcas de tutela, dependência e exclusão na qual populações pobres viram-se
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submetidas e incorporaram como identidade e visibilidade quanto supõe a


sensibilidade a uma história recente de conquista de direitos, reflexo de lutas, avanços
e, também, retrocessos nos processos de organização da sociedade brasileira, bem
como em Belo Horizonte. A trajetória de conquista da Educação Infantil, como
assinala Veiga (2001, p. 27),

trata-se de um movimento rico e complexo, marcado pela confluência de interesses


de diversos grupos (mulheres, políticos, católicos) e instituições (governamentais e
não-governamentais) [...] Os principais atores desta história são pessoas comuns,
representadas por grupo de mulheres, na sua maioria mães e trabalhadoras – pessoas
em movimento, que, em seu cotidiano, reagem à precariedade de suas condições de
vida, atribuindo novos significados às suas experiência.

Em Belo Horizonte, as primeiras creches são de origem filantrópica, tendo


iniciado sua expansão nas décadas de 1950 e 1960. A emergência de instituições de
Educação Infantil, pré-escolas e creches comunitárias é recente, datando do final da
década de 1970. Traziam como discurso hegemônico a necessidade das mães de
terem onde deixar seus filhos com segurança para que pudessem sair para o trabalho.
Nesse contexto, como descreve Silva (2002, p. 6), surgem as primeiras iniciativas
comunitárias de criação de creches, organizadas nas periferias da cidade, por grupos
de mulheres vinculadas a associações de bairro e às comunidades de base. Essas
creches contavam com recursos da própria comunidade e do Poder Público federal,
que nesse período iniciava uma política de conveniamento, com a implantação do
18

Projeto Casulo. Apenas no final da década de 1980 e início da de 1990 novos


discursos entraram em cena, tanto na legislação quanto no processo de organização
popular e no movimento de mães e educadoras, que buscavam fortalecer as
experiências comunitárias já existentes para a educação das crianças de 0 a 6.
A interlocução entre o Poder Público e os setores da sociedade civil também
ganhou impulso no início da década de 1990, após a divulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente, da Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte e da
instalação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, e
cresceu a demanda pela melhoria das condições de atendimento às crianças pequenas.

A criança passa a ser considerada um sujeito de direitos, com necessidades sociais,


afetivas, pedagógicas específicas, necessitando ser acolhida pela sociedade em
espaços que possibilitem o seu desenvolvimento pleno, estimulem seu interesse pelo
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mundo que a rodeia e promovam a ampliação de suas vivências num processo


construtivo de formação da sua identidade. (DALBEN, 2002, p. 31)

Esse momento político coincidiu com o processo de eleições para a prefeitura


do município em 1992, quando as proposições da Frente BH-Popular (coligação entre
o Partido dos Trabalhadores e outros partidos de concepção progressista) traziam
como proposta a ampliação dos canais de diálogo com os setores organizados da
população, em um contexto de reivindicação e conquista de direitos. Ressalto a
emergência, de um novo discurso do Poder Público para a garantia de oferta da
Educação Infantil no município, que passa a referir a educação de crianças de 0 a 6
anos como um direito não mais vinculado aos direitos das mulheres, mães
trabalhadoras.
No contexto das políticas nacionais para a infância, pela primeira vez uma
Constituição Federal (1988) fez referência a direitos específicos das crianças,
definindo a Educação Infantil como responsabilidade do Estado, ainda que o
princípio da descentralização político-administrativa, naquele momento, trouxesse
distorções. Ao ficar a cargo dos municípios, a descentralização da educação esbarrou
nas desigualdades espalhadas pelo território brasileiro, sem que houvesse uma
previsão explícita de recursos para a garantia de ações e políticas para a infância. O
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do
Magistério (FUNDEF), também, não estabeleceu prioridade orçamentária para a
19

expansão ou manutenção do atendimento à Educação Infantil. Belo Horizonte optou


pela constituição de um sistema municipal de ensino próprio, mas apenas em 1998 foi
criado o Conselho Municipal de Educação.8
Nesse contexto, procurei aproximar-me do Poder Público. A partir de 2000
ampliei o diálogo com o Grupo de Educação Infantil do Centro de Aperfeiçoamento
do Profissional da Educação (CAPE) e com a Coordenação de Política Pedagógica
(CPP) da Secretaria de Educação. Diferente da política nacional de construção de
parâmetros e referências nacionais para a formação de professores e para a
organização do trabalho pedagógico nas escolas, em Belo Horizonte foi proposta a
elaboração de uma metodologia de construção coletiva de projetos político-
pedagógicos. De 1997 a 2000, foram realizados seminários, intitulados “Infância na
Ciranda da Educação”, que desencadearam processos de produção e divulgação de
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conhecimentos, de efetivação de grupos regionais de discussão, de registro da história


das instituições e do atendimento à criança pequena: histórias, trajetos, concepções e
conquistas partilhada pelos diferentes sujeitos que participaram desse momento de
discussão política e pedagógica da Educação Infantil.
Nesse momento político da Educação Infantil no município, busquei
compreender avanços e conquistas, bem como atropelos e equívocos. Como superar
uma longa história de posturas clientelistas do próprio Poder Público? Esse processo
foi compreendido, registrado e apropriado como metodologia e diálogo com
professoras, crianças e comunidades? Procurei o entendimento de uma política para a
infância, suas concepções e a participação das professoras na produção desse
momento histórico. Optei por conhecer a Educação Infantil realizada pelas creches,
seus discursos e as relações partilhadas entre crianças, professoras e comunidades
envolvidas.

8
Sua primeira atribuição foi a regulamentação da Educação Infantil, que só se efetivou em 2000
(Resolução CME/BH, n. 01/2000).
20

1.1.2 A escolha de uma creche para a construção e experiência de


pesquisa

Definir o campo da pesquisa – no caso, apenas uma creche, para a qual


remeteria toda atenção e buscaria compreender a infância que emergia nos discursos,
nas práticas e nas relações pedagógicas, nas concepções e na política para a Educação
Infantil – não foi uma escolha aleatória. Significou a própria instauração da pesquisa
e impôs uma definição de princípios teóricos. Não havia neutralidade, mas
intencionalidade. Partia para o campo impregnado de um olhar. Mas também era
necessário incluir outros atores, seus olhares e expectativas.
Entendia que no discurso das professoras existia a possibilidade de elaborar
um certo grau de generalizações. Pesquisaria, no cotidiano de uma creche, as
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condições sociais relacionadas ao contexto político e social do município em questão


e os seus vínculos com o projeto cultural contemporâneo. Ao elaborar critérios para a
definição da instituição e do contexto a partir de alguns pressupostos, não desejava
um tipo de disposição crítica que pressupõe a negatividade dos contextos e dos
sujeitos pesquisados. Atentei-me para as vozes das crianças e das professoras, por
mais contraditórias e ambíguas que fossem, sem perder de vista a reflexividade que
exige um processo de pesquisa e análise.
Por isso, a escolha da instituição pesquisada não foi uma decisão solitária. No
contexto da Secretaria de Educação, iniciei meu diálogo com o Grupo de Trabalho de
Educação Infantil do CAPE e propus construirmos juntos a definição da creche que
constituiu o campo de pesquisa e representaria o contexto pedagógico da Educação
Infantil no município. Defini o local, que entendia fundamental para desenvolver esta
pesquisa. Durante o Mestrado, havia me aproximado do contexto da região Leste de
Belo Horizonte. Queria, naquele momento, compreender uma infância que se
expressava em regiões empobrecidas das cidade. A região do Alto Vera Cruz e
Taquaril era representativa do contexto social a que me propunha conhecer.9 Nesta
pesquisa, além de ampliar o diálogo com a cidade, procurei estabelecer uma relação
com um contexto que tivesse um enraizamento histórico com as próprias questões da

9
DEBORTOLI, 1995.
21

Educação Infantil. A região do Barreiro expressa a própria gênese da industrialização


da capital mineira. Cresceu como domicílio dos trabalhadores e das trabalhadoras das
indústrias que foram implantadas naquela região e foi palco de lutas e movimentos de
organização popular.
Fui, então – apresentado e respaldado pelo Grupo de Trabalho de Educação
Infantil (GTEI) –, ao encontro do Centro de Educação Infantil da Regional Barreiro
(CEI – Barreiro). À luz de novos critérios, propus que o próprio CEI indicasse a
creche onde a pesquisa seria realizada. Era importante que a creche pesquisada fosse
percebida como uma instituição de Educação Infantil que realiza um trabalho
representativo e coerente com o processo de formação e orientação, desde 1997,
partilhado. Nesse contexto, busquei conhecer as crianças e suas infâncias na creche,
suas relações com as professoras e a visibilidade que emergia do discurso das
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professoras.

1.1.3 A aproximação da creche: familiaridade e estranhamentos

Não foi fácil chegar ao campo de pesquisa pela primeira vez, mesmo que o
espaço e o tempo de creches comunitárias não fossem uma novidade para mim.
Todos eram novos sujeitos, com belezas e estranhamentos: coordenadoras,
professoras, crianças e funcionárias. O contrário, de alguma forma, não parecia
recíproco. Já havia uma expectativa, pois diferentes representações haviam sido
construídas e circulavam de forma antecipada.
Desde o primeiro contato, pude perceber relativo acolhimento. Sentia que
esperavam que minha presença potencializasse coisas novas que pudessem, de
alguma maneira, contribuir para o fortalecimento do trabalho desenvolvido na creche
pelas professoras. Mas também emergia um certo incômodo, uma agitação diferente.
Que coisas poderiam ali ser desveladas? Qual a opinião sobre o trabalho ali
desenvolvido? Será que pode contribuir de alguma forma ou será que vem aqui só
para falar mal do trabalho e das professoras?
Percebia que não devia menosprezar a astúcia das pessoas, suas desconfianças
e leituras. Não há relação de confiança construída a priori apenas pelas informações
22

que se têm uns dos outros, muito menos em uma relação de pesquisa. Como
pesquisador, também estava ansioso. Queria conhecer o campo da pesquisa, encontrar
crianças e professoras, construir uma aproximação rica do ponto de vista da
metodologia da pesquisa. Como as professoras me receberiam? Como explicar minha
permanência naquele lugar, combinar a maneira como iria acompanhar as aulas,
tomar notas e observar o que acontecia, compreender as relações, agora, com esse
novo ingrediente: minha presença?
No meu primeiro dia na creche, não me encontrei com as professoras. Cheguei
com a representante do CEI – Barreiro, responsável pelo acompanhamento
pedagógico daquela creche e fui diretamente para a sala da coordenação, que fica
logo na entrada. A primeira impressão da creche foi agradável. Parecia uma
construção feita para ser uma creche, o que não acontece com grande parte das
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instituições comunitárias. Na maioria das vezes, são construções precárias, com áreas
externas restritas a pequenos corredores ou residências adaptadas para o atendimento
das crianças. Desde a entrada, ia percebendo a presença de signos da infância nas
paredes e portas das salas. Além de desenhos e personagens de revista em quadrinhos
(que dão nomes às turmas da creche), o chão todo colorido, trabalhos das crianças
pregados nas parede pareciam anunciar uma concepção de criança e infância que
circulava naquele espaço. Expectativas também vão emergindo no imaginário do
pesquisador.
O primeiro contato foi com as coordenadoras Valéria e Gilce.10 Fiquei
incomodado. As professoras me viam e sabiam o que eu estava fazendo ali, que
estava falando coisas que diziam respeito a elas. Percebi também por parte delas um
misto de incômodo e curiosidade. As crianças faziam seus barulhos costumeiros.
Valéria achou melhor fechar a porta para que pudéssemos conversar. Novo
incômodo: não queria, logo no meu primeiro encontro de pesquisa, uma conversa a
portas fechadas. Aos poucos, percebia que algumas estruturas faziam parte do
cotidiano e da história das relações ali estabelecidas, as quais precisavam ser
respeitadas. Não era o meu ritmo que estava em jogo, mas o da instituição. Era

10
Todos os nomes que são ressaltados na tese são fictícios. Busquei, também, preservar ao máximo os
sujeitos envolvidos na pesquisa.
23

necessário que minha entrada na instituição fosse autorizada. Tomei aquilo como uma
possibilidade de expressão de cuidado com a instituição.
Desde o início, procurei apresentar a pesquisa com cautela para não
potencializar expectativas demasiadas. Não é fácil construir uma relação de pesquisa
em uma escola pequena, onde as pessoas se vêem e se esbarram repetidas vezes, e a
presença do pesquisador fica evidente. As crianças queriam me conhecer, me tocar e
me abraçar. Também não é fácil equilibrar, de forma objetiva, o desejo de
aproximação e envolvimento com o necessário distanciamento. A pesquisa na creche
tem uma peculiaridade. Sentia como se estivesse dentro da casa de alguém, tocando
na intimidade dos quartos, das salas, dos banheiros, da cozinha, de seus diferentes
espaços. Dessa perspectiva, a creche parecia menos um espaço público e mais um
espaço íntimo; parecia mais uma casa do que uma escola. Procurei não precipitar
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análises e julgamentos. Estava construindo a entrada no campo de pesquisa, dosando


aproximação e distanciamento, estranhamento e familiaridade. Desde o primeiro
momento, acurei meu olhar para ver, escutar e sentir o que aquela creche tinha de
interessante, de riqueza de relações, por mais contraditórias que fossem.
Só depois conheceria as professoras. Na metodologia de pesquisa havia
proposto trabalhar com três professoras, dando maior profundidade à observação e ao
diálogo com as professoras e com as crianças. Mas o número de professoras da creche
não era demasiado. Cinco professoras e duas “ajudantes” compunham o grupo de
trabalho, além das duas coordenadoras (administrativa e pedagógica), uma servente e
uma cozinheira. Conversei primeiro com as professoras Rosa e Cíntia, do maternal I;
Andréa, do Maternal II; e Rose, do 2º período. Ficou faltando a professora Fátima,
que é funcionária do SESI e, no período da pesquisa, trabalhava na creche apenas na
parte da manhã. Como nesse dia fui na parte da tarde, não pude conversar com ela.
Marquei para o dia seguinte. Janete e Elaine, que trabalham como ajudantes de turma,
não foram apresentadas como professoras da creche.
As professoras estavam ansiosas para ouvir sobre a pesquisa, mas era como se
eu estivesse ali para tirar outras dúvidas relativas ao trabalho em sala de aula. A todo
momento, pediam opiniões e conselhos sobre o trabalho que realizam. Era uma
oportunidade de estar conversando com um professor da universidade. Os diferentes
24

lugares sociais, na relação de pesquisa, não são neutros, não se quebraram e


atravessaram todo o percurso da pesquisa. No outro dia, pude encontrar-me com a
professora Fátima. Sua postura foi diferente da postura das outras professoras,
querendo saber detalhes da pesquisa e de como seria realizada. No início, expressou
maior desconfiança, mas logo fez questão de se disponibilizar para o diálogo.
O primeiro encontro com as crianças foi em suas próprias salas. Estavam
sentadas à mesa, esperando pelo lanche. Embora eu tenha ficado incomodado, era
fundamental que as relações se expressassem o mais próximo do que é experimentado
na minha ausência, que se supõe não ser a mesma coisa quando na presença do
pesquisador. Mas era inevitável fazer julgamentos: logo cedo, e as crianças em sala,
não fazendo qualquer tipo de atividade, imóveis, esperando pelo café da manhã? Para
um pesquisador ávido para encontrar signos de uma educação corporal, fui logo, e
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“instintivamente”, fazendo meus primeiros juízos de valor. Procurei, mais uma vez,
ser cauteloso: registrei tudo o que acontecia no tempo de minha permanência, mas
com cuidado para não precipitar em um enquadramento “pré-conceituoso”,
estabelecendo uma forma/fôrma prevista para classificar relações, organizações,
tempos e espaços.
Quis apresentar a pesquisa para as crianças. Busquei uma maneira de dialogar
com elas. Avaliei que não haveria problema para a pesquisa se eu as convidasse para
sair da mesa e sentar no chão. Propus uma brincadeira. Procurei não cometer
excessos, não marcando uma atitude muito diferenciada em relação às professoras.
Apenas procurei uma aproximação que pudesse estabelecer canais de diálogo e
expressão. A partir daquele momento, passei a estar na creche três vezes por semana,
em horários variados, tanto pela manhã quanto à tarde, em um período que se
estenderia do início do mês de junho até meados do mês de dezembro de 2002.

1.1.4 Uma descrição da creche a partir do olhar dos próprios atores

Tomando como ponto de partida o texto do projeto político-pedagógico


elaborado pela creche comunitária e apresentado à Secretaria de Educação em
Dezembro de 2001 – mesmo sendo necessária a reflexão sobre o processo de
25

construção e a participação efetiva dos diferentes sujeitos que partilham do dia-a-dia


da instituição, coordenadora, professoras, famílias e as próprias crianças –, procuro
fazer uma breve contextualização discursiva sobre a instituição e seus atores.
Como ressaltado no texto, a creche está situada em um bairro popular, na
região do Barreiro, constituído no início da década de 1980 a partir de casas doadas à
população pelo prefeito da época, como também de algumas invasões. Os moradores
são descritos, em sua maioria, como pessoas oriundas do interior do Estado e de
outras vilas e bairros pobres da capital. Constituem famílias que não obedecem a uma
organização mononuclerar, na qual em alguns casos o pai é o único responsável; em
outros, a mãe; e em outros, os avós. Daqueles que possuem seus empregos, os
homens sobrevivem de pequenos serviços temporários e biscates, sem vínculo
empregatício. As ocupações/profissões mais referidas são as de pedreiro, pintor e
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motorista. Entre as mulheres, predomina os serviços de faxina e empregadas


domésticas. O tempo de lazer dos adultos, segundo o que está escrito, se resume a
“beber no bar da esquina e conversar com os vizinhos”.
As crianças, de acordo com o que é descrito pelas coordenadoras e professoras
da creche, pouco ou nunca saem dos limites do bairro, o que resultaria, no olhar delas,
em uma condição de vida pobre, em sua dimensão material e nas suas experiências de
forma geral, tendo o tempo ocupado por brincadeiras como papagaio/pipa e carrinhos
de madeira construídos pela própria família. Tomando como perspectiva a relação
infância e classe social, as crianças são descritas como oriundas de classe social de
baixa renda, portanto (grifo meu) “com carências afetivas, alimentares, cognitivas,
culturais, emocionais e de lazer”.11 De forma contraditória, as crianças também são
caracterizadas como participativas, espertas, com bom desenvolvimento motor,
interagindo com facilidade dentro da creche. Ressaltam a agressividade e a falta de
limites como características principais das crianças, relacionando-as à idéia de
“família desestruturada”. As crianças são afirmadas como “portadoras de
conhecimentos de sua realidade, portadoras de culturas específicas, com aspectos
como religião, linguagem e contexto, e apresentadas como sendo capazes de pensar,

11
Projeto político-pedagógico da creche pesquisada (2000). O grifo se justifica pela intenção de
assinalar ambigüidades que emergem no discurso do texto escrito e apresentado pela creche.
26

resolver pequenos problemas (grifo meu) cotidianos, construir hipóteses e interagir


com outros colegas e adultos”.
A idéia de educação das crianças funde-se à concepção de desenvolvimento
como evolução, sobressaindo uma percepção das habilidades das crianças descritas
em uma concepção psicomotora: andar, falar, pegar, lançar objetos, utilizar partes do
corpo, andar de bicicleta, brincar no parquinho e jogar bola. Também aparece um tipo
de discurso construtivista, fundado na interação com os objetos de conhecimento e
nas solicitações do meio social. A finalidade da creche ressaltada é a de atender
crianças em “regime de semi-internato”, por meio de abrigo, alimentação, educação,
saúde e desenvolvimento de hábitos de higiene. “A instituição é definida como um
‘equipamento social’ de fins educacionais, destinado a atender crianças de 0 a 6 anos,
com responsabilidade de cuidar e educar, assegurando direitos garantidos em lei”.
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Segundo a concepção explícita no projeto, a creche “tem como objetivo ser uma
continuidade do lar da criança sem, contudo, substituir o papel da família”.
No discurso expresso no projeto pedagógico, as crianças são afirmadas como
centro do processo de aprendizagem. A aprendizagem, neste caso, torna-se sinônimo
de uma idéia de formação integral que recupera uma noção de que a educação da
criança deve se dar em diferentes dimensões, ressaltando-se os aspectos cognitivo,
motor e social/afetivo. Como instituição específica para a infância, o projeto assinala
a importância da creche como tempo e espaço do “lúdico”, enfatizado como a
característica principal das crianças. Também traz um entendimento de que as
crianças não devem ser consideradas apenas objeto de assistência, requerendo
profissionais dedicados e estimulados em sua formação e qualificação. O contato com
as famílias e a comunidade é destacado no sentido da colaboração com o trabalho.

1.1.5 Uma relação entre diferentes sujeitos: professoras,


coordenadoras e crianças

No período da pesquisa, nessa creche, eram atendidas entre 70 e 80 crianças


de 2 a 5 anos. O trabalho pedagógico em 2002 foi estruturado em quatro turmas,
divididas pela idade das crianças: Maternal I (2 a 3 anos), Maternal II (3 a 4 anos),
27

Primeiro Período (4 a 5 anos) e Segundo Período (5 a 6 anos).12 Em 2003, foi aberta


uma nova turma de Primeiro Período com, aproximadamente, 25 crianças. A maior
parte das crianças permanece na creche em período integral. Chegam por volta de
7h30 da manhã, e são buscadas por familiares ou outros responsáveis em torno das
16h às 17h.
A creche não fecha em julho, mês previsto para as férias escolares. Nesse
período, as crianças continuam sendo atendidas pela creche, mas as professoras fazem
um “rodízio de férias”. As turmas são rearranjadas, não mais mantendo como único
critério a diferença de idade. As atividades também mudam seu sentido: as crianças
permanecem mais tempo fora de sala e a “programação” torna-se mais “recreativa”.
As professoras que permanecem na creche se dividem entre as salas de aula, a
cozinha e, até mesmo, a faxina da creche.
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Na composição do quadro de funcionários, as professoras são contratadas


tendo por referência uma entrevista realizada pelas coordenadoras. Com exceção da
coordenadora pedagógica Valéria e da professora Fátima, ambas vindas para a creche
por intermédio do Serviço Social da Indústria (SESI) e detendo formação em
Pedagogia, as demais não possuem formação em curso de nível superior. Duas
professoras organizam o trabalho do maternal I, chamado “Maternalzinho”. O
Segundo Período, além da professora, possui uma ajudante, que faz um papel auxiliar
nas atividade com as crianças. Nas outras turmas, o trabalho é desenvolvido por
apenas uma professora.
No caso do Maternalzinho, embora sejam duas professoras, Rosa toma a
frente do trabalho na maior parte do tempo, enquanto Cíntia ocupa papel secundário,
como se houvesse duas funções distintas, uma relacionada ao cuidado com as
crianças e a outra ao trabalho pedagógico. Mas isso não é tão evidente e demarcado,
tanto que, no início de agosto, logo que as professoras voltaram de suas férias e o

12
Ressalto as representações de infância que ganham visbilidade nas nomenclaturas das turmas. Para
as crianças entre 2 e 4 anos, o termo maternal revela uma imagem familiar de substituição do lugar da
mãe e traduz uma idéia de amor e cuidado para a relação com as crianças. Esta visão, relacionada às
crianças pobres, aproxima-se de uma história de benevolência religiosa, que marca a visibiliade das
creches, onde a representação de mãe também remete nosso olhar para a mãe do menino Jesus. Para as
crianças entre 4 e 5 anos, os períodos remetem a uma concepção de etapas percorridas, expressando
uma concepção de desenvolvimento e uma expectativa escolarizada que remete a um processo de
superação de fases.
28

número de crianças atendidas diminuiu, a Secretaria de Educação não autorizou que


as duas professoras permanecessem na turma. Cíntia continuou desenvolvendo o
trabalho. Mesmo de forma contraditória, a coordenação da creche operou com um
critério interessante do ponto de vista do respeito à trajetória das professoras. Optou
pela professora que trabalha há mais tempo na creche, decisão que provocou um mal-
estar muito grande. A professora Rosa ocupou lugar eventual (se alguma professora
regente não pudesse estar presente, ela assumiria o trabalho), o que trouxe um
sentimento de desqualificação de sua presença e de sua identidade de professora. Essa
situação não durou, e a própria creche resolveu bancar, pelo menos até o final daquele
ano, a presença das duas professoras em sala de aula.13
Quanto ao Segundo Período, turma em que a professora Rose é a regente, a
presença da “ajudante“ é mais definida. O trabalho de Janete consiste em acompanhar
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as crianças nos diferentes espaços e tempos da creche e em ajudar a professora na


confecção dos materiais a serem utilizados em sala de aula. As outras duas turmas
são o Maternal II, da professora Andréa, e o Primeiro Período, da professora Fátima.
Anualmente, o SESI “empresta” uma professora como forma de contribuição e
parceria, além de oferecer vagas para alguns cursos ministrados e orientações
esporádicas ao trabalho da Coordenação Pedagógica, o que abre brechas para
interferências assistemáticas, embora freqüentes, e dissonantes com as concepções de
Educação Infantil que vêm sendo construídas no município.
A professora Rosa tem 26 anos. Trabalha há cinco anos na área da Educação e
há oito meses na creche. Sua formação é de ensino médio. Antes mesmo de concluir o
magistério já trabalhava na Pastoral da Criança de uma cidade do norte de Minas,
onde morava até vir para Belo Horizonte. Em sua trajetória de vida, trabalhou em
casa de família, supermercado, como babá e em uma sorveteria no bar de sua mãe.
Como ela mesma diz, já fez de tudo um pouco. Seu maior desejo é fazer faculdade,
poder ensinar e contribuir mais com a creche.

13
Enfatizo a ambigüidade de uma decisão que exige atenção ao sentido da presença da professora
como profissional da educação na organização do trabalho com crianças de dois anos em uma
instituição que assume um discurso pedagógico, mas ainda não vislumbra com clareza essa nova
concepção.
29

A professora Cíntia tem 37 anos e é a professora com maior tempo na história


dessa creche, na qual está desde seu início, quando ainda funcionava em outro
endereço e de forma bastante precária. Estudou até a 4ª série. Está cursando a
Formação de Educadores Infantis, modalidade Ensino Fundamental. Logo que
chegou do interior, foi trabalhar na creche, porque soube que estavam precisando de
alguém como voluntária para trabalhar com o berçário, ajudar na cozinha e dar banho
nas crianças. Chegou grávida a Belo Horizonte. A creche era um lugar onde poderia
deixar seu filho e ainda ganhar algum dinheiro. Gostaria de se formar, ter um salário
melhor e passar mais coisas para as crianças. Seu maior desejo é ter um salão de
beleza em casa e permanecer menos tempo na creche. Gosta de escrever histórias,
mas não mostra para ninguém, nem para as crianças.
Andréa tem 23 anos e “trabalha com crianças” desde os 15 anos, quando veio
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com sua família do interior da Bahia. Começou a trabalhar em um hotelzinho cuja


proprietária era a patroa de sua mãe. Ela cuidava do pai idoso, acamado. Até então,
nunca havia trabalhado com crianças que não fossem seus irmãos. Começou a
trabalhar para ajudar a mãe. Trabalhava pela manhã e estudava à tarde. Não terminou
o Ensino Médio. Também está cursando a Formação de Educadores Infantis da
Secretaria Municipal de Educação, modalidade Ensino Médio. Gostaria de fazer
faculdade para entender coisas que hoje ainda não compreende.
Rose, 28 anos, começou a trabalhar com crianças em 1995, no Projeto
Curumim, programa do Governo do Estado de Minas Gerais desenvolvido com
crianças que moram em regiões empobrescidas/periféricas e traz como discurso a
retirada das crianças pobres da rua como forma de “prevenção” contra as drogas e a
marginalidade.14 Durante esse período ainda cursava o magistério nível médio. Antes
de vir para esta creche, onde está há três anos, trabalhou em uma “escolinha”
particular perto de sua casa. Tem vontade de fazer Normal Superior para permanecer
em sala de aula e continuar na área da Educação Infantil.
Fátima tem 26 anos. Trabalha com a Educação Infantil há oito anos como
regente em sala de aula. Tem formação de nível superior em Pedagogia e está

14
Alguns programas sociais incluem práticas esportivas e profissionalizantes. Expressam um discurso
compensatório, explicitando ações de “contenção” das crianças em seus bairros para que não “desçam”
para o centro da cidade.
30

cursando Especialização em Educação Infantil. Começou a trabalhar com crianças


pequenas em uma escola particular, onde permanece desde que estava na
universidade até o momento atual. Trabalhou nessa creche apenas no período letivo
de 2002, como professora cedida pelo SESI.
Elaine não está mais em sala de aula. Trabalha na secretaria e faz todo tipo de
serviço na creche. Tem 23 anos. Concluiu o magistério em 1997. Começou a dar
aulas no interior, em uma escola rural, com turmas multisseriadas. Trabalhava com
contrato de substituição: “Sempre que faltava alguém, eu ia”. Está na creche desde
2001. Começou como “ajudante de turma”, logo depois assumindo o trabalho de
secretaria da creche. Na parte da tarde, quando não tem serviço de secretaria,
acompanha as crianças no parquinho. No segundo semestre de 2002, cogitou-se que
ela desse aulas de educação física para que as professoras pudessem participar de
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encontros de planejamento com a coordenadora pedagógica. No final do ano de 2003,


prestou vestibular e foi aprovada para cursar Pedagogia.
Gilce é a coordenadora administrativa da creche. Coordenou a Associação de
Corte e Costura do bairro e assumiu a creche em 1988, substituindo a anterior
coordenadora-presidente, que estava à frente da creche desde 1979 e enfrentava
problemas administrativos relativos à organização financeira da creche. Sua presença
à frente do trabalho na creche marca o início da luta por outro local para o
funcionamento da creche. Tanto em seu depoimento quanto no de outros atores da
creche, foi Gilce quem buscou estabelecer um diálogo com o Poder Público e a
institucionalização do convênio. Está terminando o Ensino Médio, também no Curso
de Formação de Educadores Infantis da prefeitura.
Valéria é a coordenadora pedagógica da creche. Tem formação de nível
superior em Pedagogia. Está na creche desde 2000, em decorrência de uma política de
parceria com o SESI. Iniciou como professora regente. Pouco depois, assumiu a
função de supervisão do trabalho das professoras. É responsável pelo processo de
planejamento, orientação, avaliação e ordenamento do projeto pedagógico da creche.
A presença do presidente da creche, Sr. Getúlio, durante minha permanência
na creche foi esporádica. Fui-lhe apresentado logo na minha chegada, mas sei que
coincidiu com um dia em que Valéria e Gilce estavam prestando conta da
31

administração da creche, e outra vez durante uma reunião de pais, na qual apresentou
uma palestra às famílias das crianças. Para além disso, pouco se fez presente na
creche.
Ao lado das professoras, das coordenadoras e do presidente, o quadro de
funcionários da creche é composto por uma auxiliar de serviços, uma cozinheira e o
vigia da creche.
Janete, uma das acompanhantes de turma, não se dispôs abertamente ao
dialogo com o pesquisador e não se prontificou a participar de nenhum dos momentos
do processo de entrevista.
Quanto às crianças, são meninas e meninos os mais diferentes e comuns,
brancos e negros. Não se pode dizer ou constatar, visivelmente, que as crianças, na
sua maioria, sejam negras, fazendo uma relação direta entre a creche, as classes
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sociais que atende e uma população majoritariamente negra, embora a professora


Fátima, em seu depoimento, tenha afirmado que a maior parte das crianças de sua
turma não é branca. As crianças dessa creche expressam comportamentos variados e
surpreendentes. Às vezes alegres, às vezes nervosas, às vezes agitadas, outras vezes
agressivas, muitas vezes amorosas, mas nada que se possa estabelecer como
características das crianças da creche. A expressão delas depende das relações que
vão estabelecendo nas suas famílias, na chegada da creche, na relação com as outras
crianças e com as professoras. Elas adoram abraçar e sentar no colo dos adultos. É
comum ouvir que essas crianças são carentes porque pedem afeto. Qual criança não
gosta de colo e de aconchego? Esses meninos e meninas expressam-se como crianças
capazes e disponíveis a oferecer o afeto que parecem reivindicar. Se há carência nessa
relação, está no olhar do adulto, e não na criança: uma carência estética. Nessa
creche, não há crianças, como em outras creches comunitárias, que apresentam um
quadro de desnutrição mais intenso, ou crianças com alguma limitação motora.
Todavia, mesmo essas diferenças mais marcantes não poderiam aparecer como
características de determinada creche. O que tenho observado no cotidiano das
creches comunitárias, para além da creche pesquisada, é que essas circunstâncias,
quanto acontecem, mostram-se enriquecedoras das relações entre as crianças e com a
professora. Instauram relações de solidariedade e dignidade, competências que as
32

crianças são capazes de expressar, e não dependem do que é denominado como


características dessa ou daquela criança, mas da qualidade das relações que com elas,
no contexto delas, se é capaz de estabelecer. Como nos lembra Amorim (2003, p. 9),

no final dos anos sessenta e durante toda a década de setenta, um grande número de
pesquisadores em Ciências Humanas trabalhava sobre a situação das crianças de
classes desfavorecidas dentro da escola. Os problemas de repetência e de evasão
escolar impunham-se como uma urgência para todos que se preocupavam com a
dimensão ético-política de suas pesquisas. [...] Uma das importantes descobertas
dessas pesquisas foi [...] desfazer um preconceito [...] arraigado, segundo o qual as
diferenças [...] eram uma forma de incapacidade ou handcap. Nesse contexto, foi
fundamental revelar que muitas dessas diferenças eram fontes ricas de aprendizado e
que deveriam, ao invés de serem desvalorizadas e reprimidas, incentivadas e
trabalhadas.

1.2 Partilha do cotidiano e observação sistemática


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Tendo em vista as opções teóricas e metodológicas que fundamentaram a


elaboração do objeto de estudo, construi condições de produção da pesquisa que
possibilitassem a aproximação e visibilidade das crianças nas relações sociais e
institucionais que partilham. A observação sistemática das relações institucionais que
envolvem crianças e professoras, tensionada por entrevistas (individuais e coletiva
com o grupo de trabalho) com diferentes atores do cotidiano da creche, constituiu o
instrumento central na elaboração de eixos e categorias de análise. Além do registro
em caderno de campo, foram realizadas sete entrevistas individuais (cinco
professoras, uma das ajudantes de turma e a coordenadora administrativa) e uma
entrevista coletiva, da qual também participou a coordenadora pedagógica.
O olhar etnográfico, no sentido proposto por Geertz (1988, p. 24), explicita o
cuidado e a proposta de concepção metodológica. Desde o início, procurei apontar
para uma coleta de dados interpretativa, atento à possibilidade de uma sistematização
e descrição densa dos significados que fizer emergir, tanto na observação das relações
quanto nos discursos que emergiram no diálogo com as professoras. Organizei,
também, uma coleta de dados coerente com os diferentes momentos experimentados
na relação de pesquisa, o que tornou preciso construir e fundamentar as técnicas
33

necessárias para o estudo da instituição de Educação Infantil em questão, como um


tempo e espaço configurado por práticas culturais e sociais (LOPES, 1996, p. 86).

1.2.1 Diálogo com as crianças

Neste processo de estudo da infância como um campo de investigação,


propus, desde o início, tomar crianças e professoras como atores sociais singulares.
Procurei, como expressão da elaboração metodológica proposta, constituir um olhar
coerente com os fatores de diferenciação e heterogeneidade das realidades da infância
e das crianças. Tal postura exigiu tanto uma compreensão da categoria social infância
quanto uma postura reflexiva da presença e da condição relacional das crianças.
Como afirmam Sarmento e Pinto (1997, p. 25-26),
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relativamente às metodologias selecionadas para colher e interpretar a voz das


crianças, os estudos etnográficos, a observação participante, o levantamento dos
artefatos e produções culturais da infância, as análises de conteúdo dos textos reais,
as histórias de vida e as entrevistas biográficas, as genealogias, bem como a
adaptação dos instrumentos tradicionais de recolha de dados, como, por exemplo, os
questionários, às linguagens e iconografia das crianças [...] Porém, para além da
técnica, o sentido geral da reflexividade investigativa constitui um princípio
metodológico central para que o investigador adulto não projete o seu olhar sobre as
crianças, colhendo junto delas apenas aquilo que é reflexo conjunto dos [...] seus
preconceitos e representações [...] O que se encontra aqui em causa é [...] uma atitude
investigativa [...] de [...] confronto do pesquisador consigo próprio e com a radical
alteridade do outro [...]

Mas este trabalho não quer cair na armadilha de produzir conhecimentos sobre
a infância, desprezando sua voz, impedindo-a de falar, deixando-as de lado,
desconsiderando sua presença, deslegitimando sua existência concreta e a
participação em seus contextos sociais (MARTINS, 1991). Contudo, o que se colocou
como fundamental – embora considere importante e necessária a questão de como
coletar os dados de pesquisa com as crianças, como entrevistá-las e como construir
metodologias que expressem a singularidade do diálogo com as crianças – foi uma
postura de não querer tomar a voz da criança de forma ingênua, desconsiderando os
signos ideológicos que a constituem na sua expressão.
Como adverte Castro (1999, p. 24), a infância tem se tornado, cada vez mais,
objeto do cuidado e dos discursos de um número crescente de especialistas, médicos,
34

pedagogos, psicólogos, sociólogos, fazendo com que uma multiplicidade de imagens


sobre a infância constitua sua visibilidade social. Dessa forma, procurei refletir sobre
o sentido da infância examinando a construção histórica e institucional dos discursos
sobre essa infância. Isso tornou necessário escutar o que se fala sobre as crianças e
construir eixos, ainda que provisórios, para a construção de novos olhares da infância
e da prática da pesquisa. Propus-me, partindo das proposições de Giddens (1996, p.
137), conhecer o que e como o conhecimento institucionalizado expressa de
visibilidade das crianças no discurso dos atores sociais.
Nessa perspectiva, Kramer (2001, p. 37), com base em Benjamin (1987),
propõe uma (re)construção do olhar da infância e do projeto de pesquisa como uma
possibilidade teórico-prática de “entrecruzamento” de perspectivas histórica,
filosófica, psicológica, política, cultural, antropológica, artística e ética da condição
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humana. Crianças e adultos são sujeitos históricos que entrelaçam sua expressão,
presente e histórica, de infância. Expressam signos constituidores de infâncias
concretas. Compreender os discursos dos adultos tornou-se condição tanto para o
entendimento da infância quanto para o reconhecimento de uma condição humana na
qual adultos e crianças estão inseridos.
Tomei a difícil decisão de realizar um processo de pesquisa que tem as
crianças e a infância como categoria social, sujeito e objeto central deste estudo,
entrevistando as professoras e reconstruindo seu discurso sobre as crianças. Poder-se-
ia contrapor este estudo como mais uma daquelas aproximações que os adultos fazem
das crianças mas não legitimam e dignificam sua voz. Todavia, afirmo que durante a
pesquisa procurei efetivar o diálogo com as crianças em sua radicalidade. As crianças
foram tomadas como sujeitos relacionais, expressos nas suas relações com as outras
crianças e com os adultos na instituição de Educação Infantil, em que o olhar do
pesquisador pôde materializar-se. O trabalho de campo consistiu em olhar e escutar,
no cotidiano das relações, a presença e a voz das crianças, deixando suas marcas na
organização institucional e na expressão do trabalho e das relações pedagógica,
fazendo-se presente, ao lado de outros signos sociais expressos no discurso das
professoras.
35

Com esta tese, sustentada pela compreensão de que as relações vividas por
crianças e professoras no dia-a-dia da escola são conformadas por práticas e
discursos, procurei ampliar o conhecimento da infância e o entendimento de suas
relações sociais: infância que fala por si mesma, que fala com seu corpo e sua
presença cotidiana, que fala com e na voz de outros atores com quem partilha suas
experiências.

1.2.2 Diálogo com as professoras e processo de entrevista

Muitos autores ressaltam, no processo de pesquisa, a centralidade da


linguagem, focalizando os atores como sujeitos que têm voz, destacando uma
construção dialética que resgata a dimensão dialógica do conhecimento. Nesse
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sentido, a perspectiva analítica de Bakhtin (1988) traz contribuições significativas


para a compreensão dos discursos sobre a infância e seu processo de escolarização,
tendo como foco de análise tanto o conhecimento das formas como estes se
expressam na vida cotidiana quanto as condições e situações sociais que se
materializam como linguagem e podem ser apreendidas no discurso dos sujeitos.
Como assinala Amorim (2003, p. 4),

nas Ciências Humanas conjugam-se as dimensões ética e estética para dar origem a
uma outra dimensão que é a epistemológica. Desse modo, a produção de
conhecimentos e o texto em que se dá esse conhecimento é uma arena onde se
confrontam múltiplos discursos. Por exemplo, entre o discurso do sujeito a ser
analisado e conhecido e o discurso do próprio pesquisador que pretende analisar e
conhecer, uma vasta gama de significados conflituais e mesmo paradoxais vai
emergir.

Propus, dessa maneira, apreender na fala das professoras os discursos sobre as


crianças, os processos e os conteúdos da Educação Infantil. Para Bakhtin (1988, p. 111), no
discurso, os sujeitos se definem e se revelam em relação aos outros sujeitos e em relação à
coletividade, expressando e constituindo relações sociais e culturais. Citando uma vez mais
Amorim (2003, p. 15), ressalto que fazer “pesquisa lidando com a questão da diversidade
convoca um pensamento ético, e não há ética sem arena e confronto de valores”. A
construção da consciência dos sujeitos é fruto do modo como estes compartilham seu olhar
36

com o olhar do outro; revela-se no âmbito das interações sociais e expressa-se como
linguagem.
Nesse sentido, a mesma importância atribuída a Bakhtin (1988, 1992) no processo de
fundamentação teórico-prática da pesquisa também se sustenta nas concepções de Walter
Benjamin (1987a, b e 1989) e Hannah Arendt (1972, 1987, 1997), revelando uma
compreensão das experiências compartilhadas que podem e precisam ser rememoradas e
apropriadas na narrativa histórica da produção social dos sujeitos.

O narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos” parece hoje
algo de antiquado é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em
conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros.
Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a
continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é
necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo
a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na
substância viva da existência tem um nome: sabedoria. (BENJAMIN, 1987a, p. 200)
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Os discursos das professoras sobre as crianças expressam tanto uma


consciência individual quanto o contexto ideológico e cultural no qual interagem e a
análise do discurso das professoras abre perspectivas para a compreensão da infância
como categoria social. Os signos da infância remetem às condições sociais e materiais
nas quais as crianças estão inseridas. Essa relação estabelecida entre o discurso e o
contexto social imediato e mediato pode, por exemplo, ser analisada a partir dos
significados que o corpo e as práticas corporais assumem no contexto de
institucionalidade da Educação Infantil produzida no âmbito das relações entre os
diferentes sujeitos que partilham e constróem a cena social.
Afirmo, fundamentado em Giddens (1996, p. 119-120), que no cotidiano a
consciência dos sujeitos materializa-se em organizações sociais, que, por sua vez,
organizam a consciência dos sujeitos. Interessam, por isso, as construções discursivas
de crianças e professores, tanto nas suas singularidades de crianças e adultos quanto
nos significados que emanam desse encontro, em que crianças e adultos tensionam-se
e reconstroem-se, de forma mútua, como sujeitos institucionais.
Dessa maneira, além da observação sistemática da instituição pesquisada –
relações, percepções e interpretações que foram registradas em um caderno de campo
–, dois tipos de entrevistas foram realizados: sete individuais e uma coletiva. As
entrevistas individuais, embora de característica mais aberta, seguiram um roteiro
37

planejado (ANEXO 1). Na entrevista coletiva, foi dada uma orientação inicial sobre o
que entendiam como relevante, interessante e positivo no trabalho pedagógico que
realizam na creche com as crianças. Entrevistas individuais foram realizadas com
cada uma das professoras. Na entrevista coletiva, além das pessoas que participaram
das entrevistas individuais, foi convidada a participar a coordenadora pedagógica.
Intencionalmente, a palavra da coordenadora foi incluída em situação dialógica com a
dos outros sujeitos envolvidos na pesquisa.
A interação na entrevista coletiva constituiu uma importante experiência para
pesquisadores e participantes. Da gravação, passando pela transcrição até o processo
de análise, a construção coletiva revelou toda a riqueza deste processo, desvelando,
além dos pontos de vista dos entrevistados, os aspectos ambíguos e polêmicos,
trazendo o reconhecimento e a apropriação reflexiva das situações e condições de
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inserção naquele tempo-espaço social.


Na entrevista coletiva, a presença do pesquisador, como ressalta Kramer
(2002), envolveu condutas intencionais, tais como sensibilidade aos gestos e
expressões, percepção das pessoas que permanecem caladas e intimidadas em sua
fala, além da condução do processo. Exigiu problematização, atenção aos silêncios
tanto quanto às falas, dar ênfase a alguma questão relevante e fazer observações de
conceitos e temas abordados. Além do cuidado com o lugar social que o pesquisador
ocupa, estive atento às relações de poder que emergiram na relação de entrevista.
A entrevista coletiva consistiu em um processo de pesquisa rico e tenso. Ao
mesmo tempo que representou um momento de reconhecimento de uma história
coletiva, cada um dos sujeitos pôde se perceber em sua subjetividade histórica, assim
como seu lugar, seu papel, sua legitimidade e a importância que possui nas relações
institucionais. Cada um pôde reconhecer a si mesmo, reconhecer os outros e
reconhecer-se nos outros. Foi um momento de emoção.15 Os discursos expressos nos

15
Assinalo a importância do grupo coordenado pela professora Sonia Kramer na PUC-Rio, que desde
agosto de 1999 desenvolve a pesquisa "Formação de Profissionais de Educação Infantil no Estado do
Rio de Janeiro: concepções, políticas e modos de implementação", com apoio do CNPq e da FAPERJ,
cujo primeiro relatório foi publicado em novembro de 2001. Além de dados coletados em
questionários, o grupo realizou um processo de entrevista que buscou enfatizar as condições de
produção do discurso dos sujeitos, o que foi denominado de “Entrevistas Coletivas”. Esta metodologia
foi elaborada a partir dos estudos de Bakhtin que implicaram na construção de técnicas e processos de
coleta, registro e análise dos dados, bem como da própria relação de entrevista. O uso da entrevista
38

diferentes relatos das professoras entrelaçam vozes e tecem os significados que


emergem em cada uma das entrevistadas (BAKHTIN,1998, p. 88). As entrevistas,
nesse sentido, possibilitaram trocas nas visões de Educação Infantil e fizeram emergir
concepções de educação e de infância. Essa relação de pesquisa inseriu o pesquisador
em uma produção discursiva que exigiu assumir autoria e responsabilidade de análise
e interpretação dos discurso, o que se traduziu nos recortes feitos nas entrevistas, na
forma de organização e na construção do (con)texto de pesquisa (AMORIM, 2001,
p.129). Assumo a autoria de um texto marcado por diferentes e contraditórios
protagonismos que revela a escrita de uma história partilhada, apropriada e
reconstruída.

1.3 Uma produção de pesquisa tensionada por histórias de diferentes


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gerações

O entendimento da infância requer um olhar capaz de reconhecer e apontar


caminhos para a reconstrução da visibilidade histórica e social das crianças, das
estruturas e dos sujeitos que com elas se envolvem. No que diz respeito às
metodologias de pesquisa, é bastante interessante a elaboração de investigações que
levem em conta uma história atenta à longa duração dos processos e permitam
comparações entre grupos geracionais, ampliando a compreensão dos discursos
(BEHNKEN e ZINNEKER, 2001, p. 6). Nesse sentido, a construção de situações de
rememoração da infância e da trajetória de professoras também fez parte da
elaboração do diálogo entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa. Na rememoração
e apropriação dos diferentes olhares e experiências de infância, discursos e relações
puderam ser reconhecidas, abrindo brechas à sua transformação.
Esse processo exigiu partilhar o reconhecimento e a reconstrução de situações
e contextos de infância das professoras. Se, por um lado, a visibilidade da infância se
constitui como linguagem e se materializa empiricamente na vida cotidiana, por outro
lado, ressalto que as definições pedagógico-sociais da infância condicionam uma

coletiva tanto revela a apropriação de um conhecimento produzido coletivamente como quer assinalar
que esta tese se insere no contexto de produções desse grupo.
39

imagem das crianças e das próprias professoras, bem como a maneira de se


relacionarem com as crianças, de se apropriar da cultura e de partilhá-la.
A infância, ao longo dos últimos séculos, foi instrumentalizada por diferentes
aspectos da Modernidade, que materializou uma idéia de infância como projeto
histórico. Mas, ao descolar as crianças de suas relações presentes e históricas, a idéia
moderna de infância acabou por obscurecer uma visibilidade construída e partilhada
socialmente, reforçando idéias que naturalizam as desigualdades e romantizam a
expressão da infância. Nesse sentido, a pesquisa sobre, da e com a infância precisa
instaurar uma maneira de reconstrução da consciência do projeto histórico de nossa
civilização.
Neste caso, recorri à perspectiva socioistórica de Norbert Elias (1990, 1994),
para a compreensão das relações entre as crianças e as professoras, suas práticas e
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seus discursos. Seu modelo teórico aponta para o entendimento das interdependências
sociais que no curso histórico condicionam os indivíduos. Ao propor uma análise do
cotidiano com questões e tensões específicas, procurei incluir os diferentes sujeitos
nessa trama de relações sociais. As imagens de infância expressas no discurso das
professoras constituem dimensão material importante da pesquisa e aparecem
inscritas tanto na memória quanto nas experiências cotidianas (ELIAS e SCOTSON,
2000).
Apresento, nesse sentido, um referencial teórico que possibilite ao
pesquisador e aos sujeitos da pesquisa um reconhecimento de discursos que
condicionam as relações sociais, apresentando elementos que favoreçam o
entendimento da infância a partir de suas expressões e visibilidade, que também são
históricas. Nesta tese, o entendimento da infância está relacionado à compreensão da
história dos sujeitos, bem como da própria história da instituição escolar.
2. Crianças e adultos nos tempos e espaços institucionais

Neste capítulo, tomando como ponto de partida as observações e relações de


pesquisa estabelecidas no cotidiano da creche, registro e sistematizo os diferentes
tempos e espaços que emergem com sentido pedagógico. Apresento uma análise que
enfoca a educação que atravessa os corpos dos sujeitos, instaurando significados que
absorvem sentido em um contexto tanto escolar específico quanto cultural mais
amplo.
Assinalo que o corpo aparece como um objeto extremamente valorizado,
focalizado e solicitado na sociedade e na cultura contemporâneas. Os corpos dos
sujeitos evidenciam signos de pertencimento e exclusão, produção e consumo,
controle e autonomia, que, do ponto de vista do conceito de habitus,17 podem e
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devem ser tomados como locus de inscrição das disposições, dos esquemas
classificatórios que caracterizam os atores e seus estilos de vida em um contexto
histórico, cultural e social.
Ao tomar como ponto de partida a afirmação de que os sujeitos expressam em
seus corpos as marcas e os signos de sua existência social e institucional, recorro ao
ponto de vista de Foucault (1986) para compartilhar uma concepção de que os corpos
dos sujeitos se tornaram objeto e locus de inscrição de uma cultura ocidental
moderna: sobre “os corpos” convergiram olhares, discursos e ações, submetendo-lhes
padrão e norma. Nessa perspectiva, como ressalta Soares (2001, p. 109), é preciso
assinalar uma percepção de que desde a infância incide uma educação que, como
processo histórico, investiu na retidão e buscou conter os excessos do corpo. Os
sujeitos e seus corpos – individualizados e higienizados, civilizados e desenraizados –
foram conduzidos para um território oficial regulado por uma idéia de utilidade e
controle, cuja intervenção pedagógica se incumbiu de redesenhar seu
desenvolvimento e conduta, seus gestos e suas instituições, promovendo o que pode
ser denominado uma “educação dos corpos”.

17
Para Bourdieu (2000), habitus se expressa como princípio de inteligibilidade, um sistema de signos
distintivos que estrutura e organiza as práticas e a percepção das práticas pelos sujeitos. Organiza,
pois, um mundo social que, ao mesmo tempo que é produto da incorporação da divisão de classes
sociais, assinala que estas não devem ser entendidas nem na lógica do mecanicismo, nem na lógica da
consciência.
41

Assim, para que a civilização moderna se desvencilhasse da cultura e do


homem medievais, no sentido ressaltado por Bakhtin (1993, p. 82), de sua
ambivalência, de sua desconfiança diante do sério e de sua fé na verdade do riso e do
corpo, da ambigüidade expressa no cruzamento entre uma cultura oficial da corte e a
máscara e duplicidade carnavalesca de uma cultura pública e popular, seriam
necessárias transformações profundas nos ânimos, vontades e costumes; seria preciso
criar um homem “novo” em sua aparência, linguagem e sentimentos, o que requisitou
outros usos do corpo e de sua expressão, sobretudo do ponto de vista moral
(SOARES, 1998, p. 44). Sua magia e sua imponderabilidade deveriam ser subjugadas
em nome de outra verdade, fundamentada em uma idéia de precisão, utilidade,
objetividade e rendimento. No sentido de Elias (1993), seria necessário incorporar um
novo código social e, para isso, instaurar um (longo e duradouro) processo
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civilizador: do corpo grotesco-ambivalente18 ao corpo civilizado; limpo, útil, preciso


e educado, que pudesse ser conhecido, corrigido e aperfeiçoado.
O corpo, na visão de Elias (1990), é focalizado como instrumento que
conduziu, com acelerada pacificação interna da sociedade, à regulação do emprego
social dos costumes e das emoções, o que pressupõe um controle mediante restrições
que transformaram a vida afetiva da sociedade e dos indivíduos. Os costumes sociais
se constituíram como ciência secular do consumo e das maneiras, e abriram caminho
para que a conduta da classe média se convertesse em uma conduta “natural” de todas
as classes. Em sua análise socioistórica das relações cotidianas da sociedade de corte
– por exemplo as maneiras cortesãs de mesa –, aponta para a instalação de um
processo civilizador, que demarca uma transição para uma cultura burguesa
emergente, onde comer, entre outros códigos de conduta civilizada, vai deixando de
ser uma atividade natural comum, com um mínimo de regulação, para ser uma
situação institucionalizada e circundada por normas que pressupõem um exercício de
controle coletivo de manejo das emoções.
Nesse sentido, Foucault (1991) afirma os corpos como objetivo e alvo de
poder, principalmente a partir da metade do século XVIII: corpos manipulados,

18
No sentido de Bakthin (1993, p. 33), o corpo grotesco aparece entrelaçado a uma vida (cotidiana) em
que não há nada perfeito ou completo; em que o corpo aparece integrado à cultura popular e à
totalidade de uma realidade que faz cruzar pensamento e sentimento, natureza e cultura.
42

modelados, treinados, que obedecem, respondem, se tornam hábeis ou cujas forças


são multiplicadas. Aponta, assim, uma “Política de Coerções”, que produziu um
trabalho calculado sobre o corpo, os gestos e o comportamento dos sujeitos. Traz a
“disciplina” como uma das categorias fundamentais dessa análise, pressupondo uma
distribuição dos indivíduos nos espaços institucionais, bem como um controle das
atividades, das ocupações, dos regulamentos e dos ciclos de repetição, instaurando
recursos como a vigilância e as sanções como instrumentos para o adestramento dos
corpos.
Deste ponto de vista, recupero também a análise de Mauss (1971) sobre as
técnicas e os movimentos corporais, e os usos do corpo em meio aos fenômenos
sociais “diversos”; corpo ressaltado no seu caráter concreto, específico e permanente
por meio do qual cada sociedade constrói, transmite e aprende as técnicas e atitudes
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corporais que lhes são próprias. Por exemplo, pelo jeito que uma criança sabe se
portar à mesa, andar e falar poder-se-ia afirmar e reconhecer seu lugar e expressão
social. Fundamentado em uma noção de “habitus” (que, embora relacionado, se
distingue da noção de Bourdieu, 1983; 1989; 2000), afirma uma educação que
pressupõe aprendizados prestigiosos, e que para isso os sujeitos e seus corpos têm
seus atos ordenados e autorizados, eficazes de acordo com as funções preenchidas por
símbolos morais e intelectuais. Os saberes do corpo constituem técnicas corporais
socialmente classificadas e ordenadas para ser transmitidas e aprendidas.19
Contudo, a partir do século XX, o poder e o controle do corpo foi sendo
deslocado de uma racionalização via repressão para outro tipo de controle via
estimulação, enaltecimento do prazer e da autonomia (VIGARELLO, 1995). Assim,
pode-se identificar uma mudança importante da ação do poder ou do envolvimento do

19
Seguindo a tradição de Mauss e, particularmente, de Bourdieu, BOLTANSKI (1989) aponta uma
análise das demandas social que definem formas e categorias de apreensão do corpo em um sistema de
relação que une os membros de um mesmo grupo por comportamentos que estruturam e são
estruturados nas condições objetivas de sua existência: da resistência à aparência física, das regras de
decoro, das maneiras corretas de interação e, mesmo, das sensações físicas que constituem uma espécie
de código de boas maneiras para viver com o corpo, devendo por isto ser interiorizado e ser comum.
Nesse sentido, as regras que determinam os comportamentos físicos dos agentes sociais e cujo sistema
constitui sua “cultura somática” traduzem uma ordem cultural e constituem expressão simbólica da
relação que os membros de uma classe mantêm com seus corpos, marcando o lugar dos indivíduos na
hierarquia de classe.
43

corpo em uma dinâmica cultural e em um projeto histórico que o envolve, ajusta e


controla as formas mais complexas e sutis.

Se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da


exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande super-ego, se
apenas exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque
produz efeitos positivos a nível do desejo ... e também a nível do saber. O poder,
longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo,
foi através de disciplinas militares e escolares. É a partir de um poder sobre o corpo
que foi possível um saber fisiológico, orgânico. O enraizamento do poder, as
dificuldades que se enfrenta para se desprender dele vêm de todos estes vínculos. É
por isso que a noção de repressão, à qual geralmente se reduzem os mecanismos do
poder, me parece insuficientes, e talvez até perigosa. (FOUCAULT, 1990, p. 148)

Problematizar o olhar e as investidas sobre o corpo que foram e vêm sendo


ainda gestadas no contemporâneo não admite simplificações e nos desafia, como
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assinala Sayão (2002, p. 55), a buscar aproximações das interações que acontecem no
cotidiano dos espaços educativos, produzidas por sujeitos concretos, onde o corpo e o
movimento estão incluídos como instâncias de consumo e produção cultural. Neste
ponto, ressalto a crítica de Bakthin (1988, p. 15) à concepção de linguagem como um
sistema de regras invariáveis a que se deve acatar e a afirmação da linguagem –
processo histórico de significação e relações sociais – como um campo de
possibilidades que se expressam em contextos socais concretos.
Certeau (1994, p. 233), também, desloca a atenção do consumo passivo da
cultura para brechas e possibilidades de uma criação anônima, nascida da prática e do
desvio no uso dos diferentes produtos culturais, atento a outras maneiras de marcar as
práticas sociais. Se, por um lado, a lei para se inscrever sobre os corpos precisou de
um aparelho para mediar sua relação com os sujeitos e pressupôs um sistema
mecânico de articulação social que transformasse os corpos individuais em corpo
social, por outro lado, como também aponta Chartier (1995, p.182),
44

a descrição das normas e das disciplinas [...] com os quais a cultura reformada (ou
contra-reformada) e absolutista pretendia submeter os povos não significa que estes
foram real, total e universalmente submetidos. É preciso, ao contrário, postular que
existe um espaço entre a norma e o vivido [...] O que mudou [...] foi a maneira pela
qual essas identidades puderam se enunciar e se afirmar, fazendo uso inclusive dos
próprios meios destinados a aniquilá-las. Reconhecer esta mutação ... não significa
romper as continuidades culturais que atravessaram os três séculos da idade moderna,
nem tampouco decidir que, após o corte da metade do século XVII, não há mais lugar
para gestos e pensamentos diferentes daqueles que os homens da igreja, os servidores
do Estado ou as elites letradas pretendiam inculcar em todos.

Sem desconsiderar a coerência de uma análise que reforça determinações


sociais que se inscrevem em práticas específicas, condicionam a ação e o discurso dos
atores, definindo relações de poder e de trocas simbólicas, perceber brechas de
“apropriação social dos discursos” também é fundamental para elaborar uma história
social que contempla usos e interpretações.
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Uma sociologia cultural compreendida como uma história da construção da


significação reside na tensão que articula as capacidades inventivas dos indivíduos ou
das comunidades com os constrangimentos, as normas e as convenções que limitam –
mais ou menos poderosamente segundo sua posição nas relações de dominação – o
que lhes é lícito pensar, enunciar e fazer. Esta constatação [...] vale para uma história
das práticas que são, elas também, invenções de sentido limitadas pelas múltiplas
determinações (sociais, religiosas, institucionais, etc.) que definem para cada
comunidade, os comportamentos legítimos e as normas incorporadas (CHARTIER,
1995, p. 185).

Nesse contexto, os discursos sobre o brincar ocupam lugar privilegiado. Se, de


um lado, emergem em um contexto de reconhecimento dos sujeitos, suas
singularidades de expressão e participação na cultura, de outro, também se colocam
como um dos signos principais de uma sociedade que banaliza o prazer, individualiza
as relações sociais e reduz os espaços públicos de produção humana e cultural, ora
idealizando, ora menorizando, de forma ao mesmo tempo ingênua e ideológica, a
participação de crianças e adultos na produção da cultura.
Assinalo, pois, o esforço de superação de uma visão ingênua dos corpos e dos
sujeitos em um momento em que, mais do que nunca, o corpo se tornou alvo de um
mercado cada vez mais globalizado. Como afirma Sant’anna (2002, p. 100), tanto os
investimentos sobre os corpos dos sujeitos ultrapassam a esfera da ação e de
compreensão de cada um quanto ganha importância e exigências cada vez maiores,
45

incluindo novas sensibilidades, que passaram a fazer parte da educação e da


percepção dos “indivíduos” em relação a si mesmos, como as idéias de
individualidade, prazer, cuidado de si, autonomia, cidadania, etc.

2.1 Creche: um espaço-tempo social e relacional

• Corredor de entrada – Trabalhos das crianças, cartazes com imagens


genéricas da infância, retratos de momentos da creche e seus atores anunciam uma
história vivida, expressam relações e concepções. Na porta de cada uma das salas,
estão pregadas as imagens de personagens de outras histórias. Este ano, quem dá o
nome às turmas são os personagens do Maurício de Souza: Mônica, Chico Bento,
Cebolinha, Bidu e cia. Cores e desenhos caracterizam e deixam marcas no chão e nas
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paredes. O espaço não é uma adaptação para o funcionamento de uma instituição de


Educação Infantil. É algo planejado e instaura processos e finalidades: sala da
coordenação, salas de aula, corredores, cozinha, refeitório, banheiros, parquinho e
brinquedoteca. Nas suas contradições, diferentes idéias de infância conformam um
espaço intencional demarcado social e historicamente.
Os sujeitos e seus corpos ocupam cada um dos espaços e se relacionam neles.
Há locais que servem apenas como passagem ou deslocamento. Em determinados
lugares, as crianças estão à vontade, em outros, na maioria das vezes, em fila. Em
alguns locais o acesso é proibido às crianças, alguns intocáveis, outros servem a
muitos usos. Em alguns ouvem-se conversas e barulhos, em outros reina absoluto o
silêncio. Outros são específicos: aqui as crianças brincam, lá elas lêem, ali estudam,
vêem televisão; outros são ressignificados por diferentes usos: almoço, vídeo,
brincadeiras, reuniões, etc.
Os espaços institucionais relacionam-se, nesse sentido, ao tipo de “atividade”
que parece possibilitar à professora sua realização. À primeira vista, não vão além de
certa funcionalidade que a própria rotina da creche lhes condiciona. Nesse sentido, as
professoras mostram-se pouco sensíveis ou mobilizadas à reconstrução dos próprios
significados já instalados, bem como pouco atentas às próprias ressignificações que
46

as crianças apontam e, na maioria das vezes, pouco ou quase nada rompem com o que
já está instalado.

• Salas – Entrando na creche, dá-se de frente para a sala da administração e


coordenação que fica no meio do caminho das salas para o refeitório, cozinha e
banheiros. Para ela todos os corredores convergem ou dela todos bifurcam. Da janela
observa-se o pátio. Não chega a ser um panóptico, como o descreve Foucault (1991,
p. 173), no sentido total da vigilância do olhar, mas anuncia – se assim for utilizado –
uma centralidade de poderes, olhares, ouvidos e percepções.
As salas das crianças, às vezes, são referidas como “salas de aula”, outras
vezes apenas como salas, ou “salinhas”. Nas paredes, as identidades das crianças:
enfeites com desenhos, retratos e nomes pregados ou dependurados. Em todas
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podem-se encontrar letras coloridas, os meses do ano, números, bichos e datas de


aniversários, signos e artefatos de aprendizados previstos. Nas estantes, à mostra,
aparecem livros e materiais diversos: tampinhas de refrigerante, palitos de picolé,
garrafas pet e outros materiais denominados “sucata”, guardados em potes e caixas
feitos pelas professoras e crianças. Em algumas salas há um aparelho de som.
Mesas e cadeiras compõem grande parte do formato e das dinâmicas dos
trabalhos realizados. As crianças sentam-se em pequenos grupos, em que se
“misturam” meninos e meninas. Compartilhar a mesma mesa e o mesmo material não
significa que as crianças trabalhem de forma coletiva. Na maioria das vezes, brincam,
desenham ou “colorem” sozinhas. Há interações em suas tensas e intensas relações.
São trabalhos de colagem, desenhos, registros, livros, brinquedos tipo quebra-cabeça,
jogo da memória e lego, “massinhas”, lápis de cera e vários tipos de material para
“reciclar”. Em alguns momentos, as mesas são afastadas para dar lugar a outra
composição do espaço, na maioria das vezes em roda, onde fazem brincadeiras,
contam histórias e conversam sobre temas propostos pela professora ou sobre o dia-a-
dia das crianças e de suas famílias.
As salas devem ser arrumadas ao final da manhã, dando um tom de
encerramento dos trabalhos. Nas diferentes atitudes e relações entre as professoras e
as crianças o formato e a organização das salas ora permanecem, ora se alteram. Em
47

algumas turmas, a arrumação acontece; em outras, não. Em algumas é motivo de


brigas, algum tom mais ríspido e ameaças de castigos; em outras, a professora não se
altera por mais tumulto que aconteça. Às vezes, a própria professora arruma o espaço.
Músicas ditam o ritmo e os valores implícitos na arrumação.

Eu sou a Mônica, você o Cebolinha, vamos deixar nossa sala bem limpinha. Cascas
no lixinho [...] cata aqui, cata lá, cata acolá, vamos deixar nossa sala bem limpinha
[...] (Professoras e crianças cantam juntas)

As salas destinadas a cada uma das turmas aparecem como o lugar


institucional por excelência. Algumas professoras chegam a afirmá-las como local da
“rotina”, e por isso o lugar onde a instituição acontece. Nas salas (o refeitório também
absorve este sentido, como se fosse uma sala coletiva) é promovida a
institucionalização da alimentação, da higiene, da oração, dos conhecimentos e das
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aprendizagens, daquilo que é “servido” e deve ser ensinado e aprendido.

Na sala, a gente procura trabalhar mais a rotina, que é o café da manhã, a oração, o
banho, a escovação, o repouso. (Rosa)

• Corredores – Os corredores internos não são lugares onde as crianças devem


permanecer. Mas são passagens obrigatórias. Conduzem para dentro antes que se
possa sair para os espaços externos. De uma forma ou de outra, as crianças devem
andar em filas e sem correr. Músicas, na maioria das vezes, são cantadas. Às vezes,
parece que as crianças estão sendo contidas, antes que sejam soltas, em um sentido ao
mesmo tempo de distensão e de “gasto de energia”. Outras vezes, as professoras
parecem constituir um ordenamento do ritmo, do silêncio e da ocupação que esperam
instaurar no momento seguinte, por exemplo, quando as crianças são levadas para
assistir a um vídeo no refeitório. Parecem esboçar um movimento de controle e
elaboração temporal da ação das crianças. Nesse sentido, ressalto que

o controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de


gestos definidos; impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo,
que é sua condição de eficácia e de rapidez. No bom emprego do corpo, que permite
um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado
a formar o suporte do ato requerido. (FOUCAULT, 1991, p. 138)
48

Os corredores externos (frontal e lateral) ganham outros sentidos. Não são


apenas passagens obrigatórias para outro espaço, mas expressam significados
singulares. Nesses lugares, as professoras costumam fazer brincadeiras com as
crianças. Não são as brincadeiras de sala de aula, relacionadas ao conteúdo ensinado
no dia. Nem as brincadeiras do parquinho, em que há poucas e assistemáticas
intervenções. Nesses corredores, as professoras ensinam brincadeiras, o que chamam
de “brincadeiras dirigidas”: ensinam as regras, dividem as crianças e fazem as
dinâmicas dos jogos. Há, também, espaço para as sugestões e dispersões das crianças,
expressando, nesse sentido, um lugar de controle moderado. Entre o interior da
instituição e o espaço do parquinho, o controle cede espaço tanto para um espontâneo
intencional quanto para um imponderável que abre perspectivas para novas e ricas
relações. Como assinala Certeau (1994, p. 42), talvez seja um lugar que permita às
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professoras e às crianças um “breve tempo de fuga”, uma “margem de manobra” na


vigilância que se instala em outros espaços mais regulados.

• Banheiros – A sala do Maternalzinho tem seu próprio banheiro constituindo


parte integrada nas relações de cuidado e higiene das crianças. As demais crianças
têm seu banheiro, “de meninos” e “de meninas”, no corredor, que desemboca no
refeitório. Pressupõe que conhecimentos já tenham sido incorporados e que as
crianças exerçam o que é denominado “higiene” e “cuidado de si” com maior
autonomia. Não é usado para banho. Apenas o Maternalzinho toma banho na creche.
O banho de todas as crianças oneraria o orçamento da creche, que já se mostra
inviável. Às vezes, percebia que as crianças “praticavam” o banheiro com sentidos
não previstos e institucionalizados. Por exemplo, usavam o banheiro para ganhar
algum tempo. Ir lavar a mão ou fazer xixi, em diferentes momentos, parecia ser
usado como motivo para escapar um pouco de um espaço de controle (CERTEAU,
1994, p. 202).

• Cozinha – A cozinha é um local que as crianças não devem freqüentar, como


reforçam as coordenadoras e as professoras, por motivos de cuidado e de higiene. A
menos que seja construída uma ida com a professora e envolvida em algum contexto
49

pedagógico. Mas também observei ser importante que as crianças incorporem, assim
como na sala da coordenação, que aquele não é lugar de criança ficar. É lugar de
adulto, de trabalho, de responsabilidades e habilidades que aparecem como coisa e
“ofício” de adulto, e não de criança. São lugares que instauram diferenças etárias e
sociais. Às vezes, mesmo diferenças de gênero, quando não se tem outra explicação
satisfatória e apenas é dito, como certa vez escutei uma professora dizer, que cozinha
não é lugar de criança, nem de homem. Nesse contexto, parecem reforçar, no sentido
de Mauss (1971, p. 344), um ordenamento dos corpos e das relações, que vão sendo
aprendidas enquanto classificadas, instaurando condutas que vão demarcando lugares
sociais de crianças e adultos, meninas e meninos.
Essas relações são dinâmicas e se mostram distintas em outros tempos e
espaços, como em sala de aula ou em uma brincadeira, quando a professora,
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percebendo a expressão de estereótipos e preconceitos nas crianças, procura temátiza-


los, e meninos e meninas podem brincar juntos, experimentar diferentes papéis, e a
professora procura trazer e tocar em questões importantes que envolvem relações de
gênero, dentre outras diferenças. Entretanto, percebo como essas relações são
complexas do ponto de vista institucional, pois os espaços, os tempos e seus signos
não apresentam, naturalmente, brechas para sua ressignificação. Ao contrário, são
relações mediadas por significados históricos que reclamam intervenções intencionais
com novos sentidos e maneiras de agir segundo um projeto cultural (LOURO, 1998,
p. 177).

Muitos meninos são machistas. Isso já vem de casa: menino não faz isso, menina
não faz aquilo. Se eu estiver fazendo alguma coisa que dá para parar: Pessoal, por
que menino não faz isso? Na casa de vocês quem é que faz comida? ‘Minha mãe que
faz’. ‘Meu pai faz isso também’. O papai cozinha na casa de vocês? Mas vocês
acabaram de falar que cozinha é coisa só de menina? ‘Não, meu pai faz’. Será que
menino pequeno também pode fazer igual ao papai? Então vamos brincar de fazer
comidinha? Aí, vamos brincar na casinha, de ser o pai na casinha. (Fátima)

• Refeitório – O refeitório é um local que pode ser denominado de “multiuso”.


Alimentação, sala de vídeo, espaço de brincadeiras em dias de chuva ou muito calor,
reuniões com os pais, descanso de professoras e crianças. Grandes mesas e bancos
preenchem quase toda a sala. Este, na maioria das vezes, é o formato das relações e
50

dinâmicas pedagógicas. Senta-se às mesas para o lanche e o almoço ou para ver vídeo
e brincar. Por ser um espaço interno, precisa dar alguma forma às relações. É um
lugar de silêncio: silêncio para comer, para ver a televisão e para brincar. Não é lugar
de movimento, e as relações são delimitadas pelas mesas, pelo controle das
professoras e pela impropriedade do lugar, que é pouco aconchegante. O refeitório
também é saída para o pátio externo, o parquinho, embora as professoras prefiram dar
a volta pela frente da creche. Carrega uma ambigüidade importante. Ao mesmo
tempo que é regulado, como assinala Foucault (1991, p. 132), constituindo-se um
lugar onde se define uma organização capaz de instaurar disciplinas e criar um espaço
único, por não ter um “uso” único acaba abrindo brechas para que os sujeitos criem
formas de comunicação, circulando outros desejos e necessidades. Assim, minhas
observações nessa creche coincidem com a percepção de Sayão (2002, p. 8) de que,
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na hora do lanche ou no momento em que as crianças estão assistindo a algum filme,


o refeitório também se expressa como um espaço e momento de interação entre as
crianças, bem como entre elas e os adultos, ainda que haja divisões entre os meninos
e as meninas. A presença nesse espaço se estabelece na tensão entre um tempo de
controles e silêncios, mas também de possibilidades de trocas e experiências que
podem ser ampliadas.

• Parquinho – O pátio externo (externo ao prédio mas delimitado no interior da


instituição) é chamado de Parquinho. Nele há brinquedos de ferro tipo escorregador,
zanga-burrinho, balanços e brinquedos giratórios. É um espaço gramado bastante
ralo. As crianças brincam praticamente na terra, o que faz levantar considerável
poeira. Uma sibipiruna ainda em crescimento ajuda a trazer alguma sombra na parte
da tarde. No canto do pátio, uma pequena horta à porta da brinquedoteca. O pátio,
aparentemente, é local de descanso para as crianças e para as professoras. Entretanto,
não se expressa como um tempo de ruptura, mas, ao contrário, demarca continuidades
na rotina da instituição. No pátio encerram-se as atividades iniciadas em sala ou no
refeitório, espera-se o almoço, ganha-se e perde-se tempo. Absorve um sentido de
liberdade vigiada, embora com cumplicidades. Essa denominação “parquinho”
também está relacionada a uma noção funcionalista de recreação, à idéia de gastar
51

energia das crianças e de compensar a tensão e a imobilidade da sala de aula, uma


forma de ruptura pontual e temporária no tempo e espaço institucional.

Às vezes, eu deixo as crianças mais à vontade para criar as brincadeiras que elas
querem. O outro dia, a gente propõe o que a gente pode estar brincando. (Rosa)

Nesse sentido, essa dispersão temporal, como ressalta Foucault (1991, p. 145),
também se expressa como um tempo de dispersão corporal, envolvida na totalidade
dos tempos institucionais, demarcando uma possibilidade de conservação do domínio
de uma temporalidade que, às vezes, escapa, mas continua seriado, orientado e
cumulativo, instaurando-se como tempo institucional e social. O que vai além do
espaço da sala, na fala das professoras, parece perder um sentido pedagógico
intencional e consciente. Transforma-se em uma espécie de território livre; livre de
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vigilância. As professoras também se permitem uma espécie de “dispersão corporal”


e promovem uma ação de alívio de tensão em relação às crianças: distanciam-se das
crianças em um “espaço de fora” (que não é fora da instituição), aparentemente
“livre” das rotinas, mesmo porque estas já foram, antes, reguladas.

No espaço livre, a gente procura brincar, cantar, fazer brincadeiras de roda e jogos.
A gente procura também usar o espaço lá fora para jogar futebol e fazer corrida,
diferente da brinquedoteca, que a gente procura fazer uma rodinha ou um
combinado. (Rosa)

• Para além dos muros da instituição – Se para as crianças os espaços


externos à creche poderiam representar uma possibilidade de ruptura com algumas
rotinas, enriquecimento das relações, um espaço e tempo de momentânea
desintitucionalização, para as professoras a vigilância não é quebrada. Outros
espaços, também pedagógicos, como as ruas e as praças, não são ou deixam de ser
incluídos pelas professoras nas suas construções e organizações pedagógicas com as
crianças. Assim, crianças e professoras, com limites institucionais que constrangem e
aprisionam seus corpos e experiências, traçam um cotidiano comum, rotineiro,
previsível e controlado.
52

Eu não gosto de sair com as crianças daqui desse espaço, não. Sei que a gente tem
aquele espaço lá fora, mas sei o quanto isso é responsabilidade do professor, você
retirar as crianças desse espaço da escola para poder brincar lá fora. Sei que é um
espaço superlegal, dá para jogar um futebol muito jóia, mas tenho receio de uma
criança machucar e acontecer alguma coisa. Se eu não tiver um papelzinho
autorizando a saída da criança do portão da escola, eu tenho receio, porque isso é
muito sério. (Fátima)

Quando era na pracinha que tem aqui em cima, a gente brincava de bola. A gente ia
para lá, juntava outros meninos da comunidade da mesma idade dos meninos, e
entrava na brincadeira. Adultos também; tem um moço ali de baixo que dava bala
para os meninos. A gente ia muito lá, mas depois teve uns probleminhas e a gente
não foi lá mais não. Problema com droga. Mas era muito bom quando a gente ia.
Pelo menos a gente via todas as turmas. (Andréa)

• Rotina – Na creche, a distribuição dos tempos é denominada “rotina”,


estruturando, distribuindo, organizando, classificando e significando; no sentido de
Mauss (1971), os diversos momentos das relações. Desde o momento de chegada,
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diferente do que observou Sayão (2002, p. 7) em outra instituição de Educação


Infantil, não havia liberdade de movimentação das crianças nos espaços disponíveis.
Na creche pesquisada, percebi relativa contenção das crianças, embora não explícita,
que condiciona a chegada das crianças à sua permanência em um lugar onde se
colocam em postura de espera, até o início das atividades do dia.
Após a chegada, as crianças se reúnem com as professoras em suas salas ou
vão para o refeitório. Na sala ou no refeitório, são indistintas as relações com as
criança e as possibilidades de expressão de seus corpos e movimentos. Chegam,
sentam-se à mesa ou fazem uma roda, sentadas no chão. Assim ficam esperando pelo
lanche, que é servido em meio a pedidos de silêncio, músicas de agradecimento,
orações e muitas conversas paralelas entre as crianças. Algumas crianças
permanecem no refeitório para ver televisão, o que é chamado de “hora de televisão”.
Outras vão para suas salas para fazer o que é considerado “atividade pedagógica”. Na
sala da professora Fátima, que procura estabelecer uma organização mais sistemática
do trabalho, a rotina é descrita no quadro-negro, outras vezes é colada na parede ou
dependurada sob a forma de varal: são escritas, desenhadas ou expressas na forma de
símbolos que traduzem para as crianças a percepção e a identificação das atividades
realizadas ou que acontecerão naquele dia. Nas outras turmas isto poucas vezes foi
observado.
53

As tarefas realizadas pela manhã, da chegada das crianças até o horário do


almoço, são demarcadas por um período denominado “atividades pedagógicas”. A
parte da tarde, com exceção do Maternalzinho, que tem o seu tempo preenchido pelo
sono e pelo banho, é um período em que predomina maior improviso do trabalho,
tendo o parquinho como o espaço que ocupa a maior parte do tempo com brincadeiras
partilhadas entre as crianças, acompanhadas pelas professoras e/ou ajudantes de
turma. Poucas interferências são feitas, e as crianças vão dando àquele lugar os
significados que suas relações e disponibilidades permitem. Exploram os brinquedos,
brincam sozinhas ou em pequenos grupos, disputam um ou outro brinquedo, afastam-
se.
A hora do almoço demarca o fim de uma jornada ou ciclo de atividades com
as crianças. Por volta das 10 ou 10h30, as crianças são levadas para o parquinho,
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onde permanecem até a hora do almoço, entre 11 e 11h30. O almoço é servido pelas
professoras, precedido de músicas e orações. Há um impulso por parte das
professoras para manter o silêncio entre as crianças. Hora do almoço é também ora de
aprender o comportamento à mesa. Nem todas as crianças aceitam o almoço. Há
recusas. Algumas parecem entristecidas neste momento. As orações também fazem
parte de uma rotina de agradecimentos e gratidão que as crianças devem aprender a
exercitar.

[...] quando chegam aqui, eles não sabem fazer isso, agradecer o que estão
recebendo de alimentação, de conforto que a creche está oferecendo a eles.
Agradecer para no dia seguinte ter o dobro, ou até melhor. (Rosa)

Para o Maternalzinho, a tarde se inicia com um período de cochilo. Algumas


crianças dormem ainda na mesa do refeitório, durante o almoço, e são levadas no colo
para os colchões que ficam na sala de aula. Os colchões são espalhados pelo chão, e
as crianças permanecem deitadas ou dormindo até por volta das duas horas da tarde.
Enquanto as crianças dormem, as professoras ficam conversando entre elas,
esperando que as crianças acordem. É também um tempo de descanso para as
professoras. É bonito ver as crianças acordando. Elas vão abrindo os olhos, olham
para as professoras e sorriem. Parecem sentir-se seguras e aconchegadas.
54

Depois da hora do descanso é a hora do banho. À medida que vão acordando,


as professoras dão banho nas crianças e trocam-lhes as roupas. Às vezes, vão um
pouco mais para o parquinho. Tomam mais um lanche, escovam os dentes e ficam
esperando suas mães, pais, avós, irmãos ou outros responsáveis virem buscá-las.
Olhando de fora, a delicadeza das coisas que acontecem desperta certo encantamento.
O olhar e o sorriso das crianças, a hora de trocar de roupa, calçar os tênis e os
chinelos, pentear o cabelo anunciam uma relação corporal no sentido mais pleno do
termo. É um momento que abre a possibilidade de experiências de relação ricas e
intensas. Isso poucas vezes acontece. O cuidado parece burocrático e rotineiro, pouco
prestigioso, sem maiores significados pedagógicos. No olhar das professoras, esse
período se restringe ao descanso, e o que ali se aprende é a higiene, a escovação e o
cuidado com os pertences pessoais. Esse tempo é muito mais que isto. Ressalto, como
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Maranhão (2000, p. 120), o cuidado humano como prática cultural:

O cuidado humano seria a capacidade que temos, pela interação com outros seres
humanos, de observar, de perceber e interpretar as suas necessidades e a forma como
as atendemos. Nesse processo de cuidar do outro também nos desenvolvemos como
seres capazes de ter empatia com o outro, de perceber nossas próprias necessidades e
de desenvolver tecnologias para aprimorar tais cuidados ... Assim, o ato de cuidar
está sujeito também à capacidade daquele que cuida de interagir com o outro, de
identificar suas necessidades, capacidade construída no interior da cultura pelas
aprendizagens específicas de determinados conceitos, habilidades que têm por base
os diversos campos de conhecimento que estudam o processo de desenvolvimento e o
cuidado humano.

As outras turmas não têm essa “hora do sono”. O descanso de crianças e


professoras se dá com a ida para o parquinho. Na parte da tarde, na maioria das vezes,
ou as crianças estavam no parquinho, ou estavam no refeitório vendo televisão. E
assim vai até por volta das 16h, quando as crianças voltam para suas salas, onde
ficam esperando. Esse tempo no parquinho não explicita um planejamento. As
intervenções ou sugestões das professoras são pontuais. Em alguns momentos,
convidam as crianças para fazer algumas brincadeiras, mas deixam a impressão de
improviso. Do horário que antecede o almoço até o último lanche da tarde, no
parquinho, come-se uma boa parte do tempo. As relações neste tempo-espaço
explicita uma angústia nas relações. Perpassa o sentimento de que as professoras (as
55

crianças, eu não diria) estão ali esperando o tempo passar. Ao mesmo tempo, fica a
sensação de que o tempo parou ou, pelo menos, passa muito devagar.
Os tempos institucionais vão constituindo rotinas de distribuição de espaços e
relações. Condicionam ritmos e disposições, em um escoamento controlado daquilo
que vai se tornando disponível às crianças e, por conseqüência, também às
professoras. Momentos de alimentação, descanso e higiene aparecem como tempos
fixos e estruturantes de um ritmo constante e invariante. O que parece variar um
pouco são as estratégias que cada professora usa para preencher os intervalos de
tempo: brincadeiras, histórias, músicas, ou, mesmo, não fazer nada. Como na parte da
manhã há maior predominância de sentido pedagógico e, nesse sentido, de controle,
as relações acabam demarcadas, de forma cronológica, como uma seqüência de
espaços e tempos que precisam ser percorridos, organizados e ritualizados.
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Eu começo o dia com uma rodinha. Não, a primeira coisa que a gente faz é o lanche,
porque quando eu chego na sala o lanche já está lá. É que eu chego às oito. Aí eu
dou o lanche, canto a musiquinha do lanchinho. Depois do lanche eu faço uma
rodinha no chão, para organizar o dia. Aí uso aqueles crachazinhos que você já viu
no varalzinho. Eu organizo o dia. Uma criança tem que saber a hora de tudo, que
tudo tem hora, tem tempo. Não é toda hora que pode fazer isso. E eles são jóia,
porque quando está acabando o ano, eles já conhecem. Depois do lanche eles já
começam a sentar na rodinha. Não tem noção só de hora, mas de tempo, de
organização também. Na rodinha, na brinquedoteca, vai chegando e fazendo a
rodinha para fazer os combinados.20 (Andréa)

2.2 Os sujeitos e seus corpos: comportamentos aprendidos e o que


emerge das relações

Um olhar e uma sensibilidade – afirmados em capítulo anterior – à


positividade das práticas pedagógicas e saberes das professoras não excluem a
importância de uma observação rigorosa e análise reflexiva dos usos e práticas dos
espaços, dos tempos e dos corpos. Se, de um lado, se vê ressaltada uma tendência a
ações pedagógicas assistemáticas e improvisadas, em que professoras e crianças

20
Os destaques foram feitos para chamar a atenção para a quantidade de vezes que as coisas que se
referem às crianças são expressas no diminutivo. Não revelam uma forma carinhosa; ao contrário,
explicitam uma recorrente “menorização” a que as crianças, seus corpos, suas relações, seus
conhecimentos, e os próprios adultos são submetidos.
56

parecem e aparecem aprisionadas, por outro, afirmo que é preciso conhecer e


apreender essas relações para que possam ser superadas.

• Fila – Qualquer um que olhasse de fora ficaria incomodado. É fila para tudo.
Às vezes, não teria a menor necessidade. Fila para sair da sala, fila para ir ao
parquinho, fila para ser atendida pelas enfermeiras do posto de saúde, fila para tudo.
É sutil e quase automática, como se professoras e crianças já tivessem incorporado a
normalidade dessa forma de organização, deslocamento e ordenamento, como se a
fila fosse uma estrutura de relação, forma “natural” de organização, de autoridade e
dinâmica. Às vezes, apesar da permanência de sua forma, ganha outros ingredientes,
como uma brincadeira; outras vezes, é ritmada por uma música; em outras, as
crianças andam de mãos dadas, duas a duas. De qualquer maneira, na fila, criança e
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professoras se entendem, resumem uma história, antecipam explicações. No sentido


de Foucault (1991, p. 138), estas maneiras de ordenamento temporal e espacial das
crianças instauram um tipo de relação que, na perspectiva da disciplina, produz um
controle das ações, passando a estabelecer um conjunto de obrigações e um ritmo
coletivo de respostas que as crianças devem aprender e reconhecer.
Contudo, na maioria das vezes, essa forma de organização não dura muito.
Aos poucos, as crianças vão saindo da fila e as próprias professoras não colocam
nenhuma resistência. É como se não fizesse sentido permanecer naquela forma
automática de se organizar. Mas, se muitas vezes se mostra ineficaz nas suas
variações, a fila continua, dia após dia, uma forma padrão de relação e
comportamento.

• Chamada – Outra questão delicada é a necessidade de fazer a chamada das


crianças. Por um lado, esta é uma tarefa burocrática, uma vez que as professoras
precisam prestar conta para a Secretaria de Abastecimento do número de crianças que
está presente na creche para registrar quantas refeições foram servidas a cada dia. Por
outro, aparece como uma tentativa de introduzir alguns rituais escolares, mas
copiando uma experiência escolar nas coisas que têm de pior, até porque a professora
poderia reconhecer a presença sem chamar pelo nome, ordenadamente, cada uma das
57

crianças. Certa feita, a professora pediu que todas as crianças fossem para a sala que
ela iria fazer a chamada. Ela insistia que as crianças respondessem “presente”. Era o
segundo semestre letivo e, na minha percepção, a professora sabia de cor os nomes de
todas as crianças. Naquele dia, estavam presentes cinco ou seis crianças. Só de olhar
ela poderia saber quem estava presente e fazer o seu registro ou relatório.
Por que a insistência na chamada e na resposta “presente”? Várias crianças
faltaram. A chamada não remeteu qualquer comentário para este fato. Fiquei sabendo
que algumas crianças estavam com catapora. É importante ressaltar que esta prática,
embora em minha observação não produza um efeito simbólico imediato nas
crianças, ganha sentido e forma de vigilância e discriminação, se não das crianças,
das próprias professoras, ainda que não percebam, obrigadas a entregar listas de
chamada e criar formas de organização do trabalho que não trazem reconhecimento,
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não fortalecem sua identidade e não se traduzem em significados para as crianças,


nem para elas.

• As crianças precisam gastar energia? – Entre uma atividade e outra, um


período e outro, as crianças devem ir para o pátio para “gastar energia”. Este é um
discurso comum. As professoras explicam que as crianças ficam das 7h30 até às
16h30, 17h e, como ressalta a professora Rose, “precisam gastar um pouco de
energia, vão ficar aqui até às 5h, ficam loucas e deixam a gente louca”. Entretanto,
proibições e castigos o tempo todo são anunciados: quem não se comportar na sala
não faz brincadeira; quem não participar da brincadeira não vai para o parquinho;
quem ficar saindo do parquinho para beber água ou lavar as mãos vai para a sala da
coordenação. Assim, as crianças não podem brincar, não podem sair da brincadeira,
não podem se sujar, não podem lavar as mãos, não podem beber água, não podem
correr, não podem ficar paradas, etc. Quem desobedece, fica de castigo.
Quando me refiro a castigos, estes não implicam sempre gritos e sanções. Às
vezes, vêm na forma de um discurso educativo, revestido de um conteúdo moral. É
uma idéia pedagógica que reorganiza os sujeitos nos tempos e nos espaços. Vêm na
forma de negociação. É como se sempre tivesse que fazer algo chato primeiro, para
depois fazer o que é tomado como prazeroso: brincar, educação física, parquinho,
58

televisão, etc. Em troca, silêncio, fila, comportamento controlado. Quem não faz o
jogo fica de fora do melhor da “festa”.
Na maior parte do tempo, as professoras são carinhosas com as crianças. Há
uma relação delicada entre elas e as crianças. Mas há também brutalidades. Uma vez
vi a professora Andréa conduzir com o pé uma criança que estava sentada no chão até
o lugar em que ela deveria ficar. Não pareceu perceber que estava sendo bruta; fez
isto na minha frente, de forma “natural”. Às vezes, ouvem-se falas muito ríspidas, que
marcam as crianças. Não é incomum assistir a um choro que expressa dor e mágoa da
criança pela atitude da professora, como no dia em que a criança repetia, de forma
compulsiva, para a professora: “Vou contar para meu pai, vou contar para minha mãe.
Você brigou comigo, você bateu em mim. Vou contar para o meu pai, vou contar para
a minha mãe”. Eu estava presente na sala e não vi a professora agredir a criança. Mas
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a criança estava magoada.

• Choros e mordidas – Se, por um lado, as professoras não percebem, em


alguns momentos, sua própria brutalidade, as crianças são taxadas e caracterizadas
como agressivas, que só sabem bater uns nos outros. Realmente, são freqüentes
brigas, mordidas e choros. Às vezes, só seria necessário uma pequena intervenção,
com no dia em que, enquanto estavam em fila, uma criança deu um tapa na outra, e
bastou a professora pegar a mão da criança e fazer um carinho na menina da frente
que todas as outras começaram a imitar entre risos e gargalhadas. Uma criança
chegou a dar um beijo na outra. Mas, na maioria das vezes, não é o que se vê.
Resolve-se com gritos e ameaças distantes. Sem envolvimento e mediação, resta às
crianças fazer aquilo que sabem expressar com seu corpo: mordidas, tapas,
empurrões, choros, etc.

• Combinados – Fala-se em combinados. Mas qual é o lugar do outro nessa


combinação? Qual é o lugar das crianças na construção das regras que elas irão
partilhar? Na maioria das vezes, às crianças não cabe participar da construção das
regras; apenas cumpri-las. O combinado se torna uma exposição e explicitação do
comportamento que as crianças deverão assumir em determinadas situações ou diante
59

de alguma pessoa, principalmente se esta ocupar um lugar social de importância.


Certa vez, o combinado estava pregado no quadro, e a professora Rosa fez questão de
ler em voz alta para que todos (inclusive eu e ela mesma) pudessem tomar
conhecimento e as crianças serem mais uma vez advertidas:

Nós, turminha da [...], prometemos cumprir com nossa responsabilidade de


comportarmos diante do José Alfredo sem conversar, levantar, ir ao banheiro, beber
água na hora das atividades combinadas. Com a professora, prometemos cumprir
com dignidade nosso compromisso. Ass.

Em outros momentos, o controle é mais sutil, quando, por exemplo, as


crianças sentam-se em roda e devem assumir uma postura corporal também
normatizada. Em um dos dias de observação, sentei-me na roda com as crianças da
turma da professora Fátima, e uma das crianças me disse: “Perninha de índio” –
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referindo-se à maneira em que eu deveria formar a roda. É como se algumas palavras


e posturas assumissem uma reciprocidade: fazer roda e sentar com “perninha de
índio”, sair da sala e formar fila, entrar na sala e sentar-se à mesa, chegar no refeitório
e fazer silêncio, como se cada momento tivesse uma regra, uma postura, um
comportamento com códigos e significados previamente incorporados. Neste ponto,
reforço a análise de Mauss21 (1971, p. 344-346), que chama atenção para o
aprendizado das técnicas corporais que constituem uma classificação e um
ordenamento de maneira específica de ser criança, cujas técnicas do corpo instauram
o aprendizado das tradições, dos modos de viver, bem como os comportamentos
esperados das crianças, que devem ser comportadas, educadas, submissas e, ainda,
permanecer gratas e alegres.
Nesse contexto, as crianças também repetem entre elas autoritarismos e
hierarquias, experimentam relações de poder, que ora se refletem e se reforçam, ora
se refratam e se desconstroem nas maneiras que conhecem de organizar as
brincadeiras e as relações: na divisão dos grupos, quem escolhe, quem diz a hora de
começar e parar, quem brinca com quem, quem terá de esperar, etc. Algumas crianças
também se apropriam de determinados brinquedos, não partilham e não deixam
outras participarem. No pátio, uma criança pára bem no meio, levanta uma das mãos

21
MAUSS, 1971, p. 344.
60

com a palma aberta e diz para as outras: “Quem quiser brincar põe a mão aqui”.
Algumas se submetem a essa relação de comando. Outras não estão nem aí e
continuam brincando como se nada estivesse acontecendo. Essas relações acabam se
dispersando como se fossem naturais. Esses momentos mereceriam uma mediação
mais próxima e intencional dos adultos.

• Uniforme – O uniforme das crianças chama atenção. Observei nos corpos das
crianças dois modelos muito parecidos, porém com uma diferença radical. Em um
dos modelos, apenas o nome da creche aparece à frente, com um desenho de criança.
Em outro modelo – aparentemente mais novo ou, pelo menos, as blusas das crianças
eram mais novas e pareciam menos desgastadas – o nome da creche aparece na parte
de trás da camisa. À frente vem escrito: Federação da Indústria do Estado de Minas
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Gerais (FIEMG), SESI e Associação dos Empresários do Vale do Jatobá.


Literalmente, as crianças foram “passadas para trás”, levadas a usar a estampa com a
marca da benevolência em seus corpos. Elas mesmas não são influenciadas por nada
disso. Isso não constitui um significado a priori para as crianças que usam a blusa.
Mas a marca está lá para todos lembrarem e construírem sua relação corporal com as
crianças: professoras, visitantes, pais, mães. Mesmo que não percebam a diferença,
ela está estampada, é óbvia e expressa uma explícita mercantilização e privatização
do espaço público e das relações.

• Envolvimento corporal – O corpo instaura relações, afetos, valores,


preconceitos, imagens do outro. Nesse contexto, também chama atenção o quanto as
crianças pedem colo. Se, por um lado, isso às vezes é ressaltado pelas professoras –
ao fazer uma relação direta entre o pedir colo e uma idéia de privação de afeto pelas
crianças de creche – como carências das crianças, por outro lado, expressam a
possibilidade de uma rica experiência corporal-afetiva entre os diferentes sujeitos. Em
minhas observações, pude notar que algumas professoras não se envolvem muito com
as crianças, pouco as tocam e pouco se deixam tocar.
Em nenhum momento ouvi qualquer referência para as professores não
tocarem as crianças, mas percebo que o toque é complexo e traz dificuldades e
61

angústia para as professoras e as relações. Quando acontece de forma instrumental,


torna-se natural e constitui tarefa corriqueira: toco o outro para limpar, alimentar,
ensinar, proteger, ajudar ou, mesmo, obrigar e constranger. Mas o que fazer com
corpos que pedem e oferecem afeto? O que fazer com os próprios desejos e
necessidades de afeto? Como se aproximar de corpos sexuados? Como lidar com as
próprias sexualidades? Que conhecimentos e sentimentos os corpos nos permitem ou
nos escondem?
No parquinho, a distância das professoras em relação às crianças parece
aumentar. Algumas vezes, colocam-se diametralmente opostas ao lugar em que as
crianças estão brincando. Ficam conversando enquanto as crianças brincam. Suas
intervenções são pontuais. De vez em quando, fazem-se presente com alguma fala de
reprovação. Às vezes, brincam com as crianças. Propõem brincadeiras ou buscam
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brinquedos e os entregam às crianças. Raros momentos observei uma atividade


proposta pela professora no parquinho que constituísse um envolvimento e um
desdobramento duradouro. São pequenas aproximações, seguidas de novos
afastamentos.
As professoras convidam as crianças para fazer uma roda, mas não parecem
acreditar que as crianças querem estar com elas. As crianças, ao contrário, mostram
adorar ser convidadas pelas professoras para brincar. Às vezes, saem no meio da
brincadeira com se aquilo fosse só para as crianças ou não precisassem delas para
continuar a brincadeira. Não se sujam e não deixam as crianças se sujarem. Algumas
vezes, ouvi as professoras interromperem uma brincadeira quando as crianças
começavam a cair e rolar no chão, abraçando e tocando uns nos outros. As
professoras costumam dizer que os pais vão brigar com as crianças (e com elas) ou
que as crianças não podem se sujar porque na creche não podem tomar banho. Fato é
que permanecem distantes, com pouco envolvimento.
62

2.3 As crianças, os adultos e suas brincadeiras

A brincadeira na creche pesquisada – assim como observado nas falas de


professoras de outras creches, das profissionais do Centro de Educação Infantil, da
Secretaria de Educação, da AMAS, das instituições parceiras, etc. – é um discurso
afirmado em todos os espaços, tempos e relações. A brincadeira é ressaltada em sua
relação direta com as crianças, suas formas de aprendizagem, linguagem e relação
com o mundo. Enfatizada a partir da idéia de especificidade do tempo da infância,
está associada a uma noção do que seria, também, a especificidade da creche e da
Educação Infantil: espera-se que as crianças brinquem na creche para que sejam
felizes, brinquem para aprender, brinquem para se desenvolver, brinquem para
aprender a se relacionar, brinquem como sinônimo de direito à infância, etc. Emerge
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um ideário pedagógico que faz da brincadeira seus conteúdos, seus meios e, muitas
vezes, sua finalidade.

O brincar é muito importante porque é bom para o desenvolvimento motor, afetivo,


social e psíquico. Brincando a criança aprende a engajar-se nas atividades
gratuitamente pelo prazer de participar sem visar recompensa ou temer castigo, mas
adquirindo o hábito de estar ocupada, fazendo uma coisa inteligente e criativa. Ela
aprende fazendo espontaneamente, sem estresse ou medo de errar, mas com prazer
pela aquisição do conhecimento. Ela consegue superar as dificuldades de
aprendizagem. (Creche Pesquisada. Roteiro de Reunião Pedagógica, 30/5/2003)

O ‘brincar’ como processo de desenvolvimento integral da criança; o direito ao


“brincar” como eixo norteador do trabalho das instituições; o ‘brincar’ como
elemento para a construção da cidadania, devendo ser assegurado desde a mais
tenra idade; o direito da criança decidir sobre o que, como, com quem, com o que,
quanto tempo e onde brincar. (Equipe do Projeto Político Pedagógico – profissionais
dos CEI’s-SMED; AMAS; SMDS; Escolas Municipais e Creches Conveniadas –
Revista Ciranda Cirandinha, n.2, p. 16)

O discurso do brincar explicita, nas orientações e publicações da Secretaria de


Educação, nas referências e parâmetros que chegam às professoras, os fundamentos
nos quais devem balizar suas práticas e organização pedagógica. Expressa-se como
positividade absoluta, o que esvazia a compreensão de que as relações e os valores
são ideológicos e contraditórios. No brincar, busca-se garantir a consolidação do que
é tomado como uma nova concepção de infância, atrelada a idéias de cidadania,
63

autonomia e direito. Sua inclusão na Educação Infantil é ressaltada como uma


garantia do direito de ser criança. Contudo, observo que tal postura, em diferentes
momentos, concretiza-se de forma irrefletida e obrigatória, não constituindo passos
significativos para o enriquecimento das relações, dos tempos, espaços e
organizações cotidianas nas escolas. Buscarei, a seguir, detalhar esta análise.

• Brincadeira pedagógica – As professoras denominam algumas brincadeiras


como pedagógicas. Estão relacionadas àquilo que consideram como aprendizagens
escolares e, na maioria das vezes, são articuladas a uma idéia de alfabetização e de
aprendizagens matemáticas. Jogos que promovem o diálogo das crianças com as
letras e os números, brincadeiras do tipo forca, jogo da memória, boliche, trilhas, etc.
Não variam e não parecem ser compreendidas pelas crianças como uma brincadeira.
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A professora faz todo o esforço para dar um tom mais agradável ao que ela quer
ensinar. Percebe-se a incorporação de uma idéia de prazer de aprender como uma
justificativa para esta forma de construir as relações de ensino-aprendizagem
(KHISHIMOTO, 1996, p. 36).

A gente começa a ensinar brincando, que eu digo que a partir da brincadeira é que
eles vão aprender. Aprender a respeitar, aprender a contar, aprender a conversar, e
aí vai. Porque eu acho que as crianças aprendem brincando. Elas nunca vão
aprender uma coisa repetitiva, um mais um, dois. Elas vão gravar aquilo. E
brincando elas vão estar brincando e aprendendo, porque vão estar se divertindo e
aprendendo. (Rosa)

Uma noção de “atividade lúdica” emerge, nesse contexto, relacionada à idéia


de fazer com prazer. A expressão atividade lúdica é ressaltada como maneira de
fazer, outro jeito de aprender, de relacionar-se, etc. A brincadeira é considerada uma
das maneiras, talvez a privilegiada, de fazer as coisas de forma mais agradável e
satisfatória. Entretanto, ainda que não percebam, esse discurso carrega o paradoxo de
afirmar que o que as crianças têm para fazer, conhecer e aprender é tão chato que
precisa de uma outra roupagem para se tornar agradável.
64

Para compreendermos melhor a questão da função lúdica, vamos imaginar que


dentro de cada um existe um personagem chamado Doutor Lúdico. Ele é aquela
parte de nós que está permanentemente em movimento, buscando meios de obter
prazer, alegria, satisfação [..]. brincando, jogando, fazendo de conta, usando a
imaginação, exercitando o seu Dr. Lúdico, a criança constrói o mundo e a si mesma.
Através da brincadeira, a criança toma conhecimento da realidade, fortalece sua
identidade, forma sua personalidade, desenvolve a linguagem e também o seu físico.
(Revista Ciranda Cirandinha, n. 2)

Observei que as crianças, durante as chamadas brincadeiras pedagógicas,


entendidas como maneira “lúdica” de aprender, fazem outras brincadeiras, algumas
delas como um desdobramento da brincadeira proposta pela professora, e se
dispersam e conversam entre elas. A professora organiza a brincadeira para as
crianças. Sua intervenção restringe-se a controlar a dispersão e a chamar a atenção
daquelas que não querem participar ou estão, no olhar da professora, atrapalhando a
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brincadeira acontecer. Nesse sentido, não percebem os contextos de brincadeira que


extrapolam o que é pedido e pensado, inicialmente, como brincadeira; não
problematizam e não colocam em questão temas e questões que emergem daquele
contexto de relações. Esses momentos, também, não parecem acontecer de forma
prazerosa.

• Recreação – Essas relações, em contrapartida, justificam outra concepção –


talvez seja mais apropriado dizer função – das brincadeiras que também acontecem
nas salas, depois das atividades pedagógicas realizadas com as crianças. Nesses
momentos, a brincadeira é ressaltada como recreação e acontece quando as crianças
vão terminando as atividades propostas pela professora e podem pegar alguns
brinquedos e livros para ocupar o tempo; primeiro, até os outros colegas terminarem a
atividade; depois, até dar a hora de sair da sala de aula. Esse período, na maioria das
vezes, é preenchido por brincadeiras improvisadas. Afastam mesas e cadeiras para
fazerem algumas brincadeiras de roda antes de sair da sala. Como assinala Kuhlmann
Jr. (2000a, p. 485), uma concepção de recreação se fez presente na educação das
crianças a partir da década de 1940. Uma visão das crianças tomadas como único
elemento da relação pedagógica produziu um afastamento do lugar do adulto nas
relações pedagógicas e reforçou o entendimento de que pela atividade lúdica,
65

relacionada à idéia de atividades espontâneas, as crianças entrariam em contato com o


ambiente e com os objetos, sendo estes os princípios de mediação do seu
desenvolvimento.
Às vezes, as professoras demonstram ter planejado a inclusão de alguma
brincadeira na dinâmica do dia. Nesse planejamento, restringem-se a escolher
determinada brincadeira e a definir a forma como ela vai acontecer, não prevendo
novas relações e significados que podem emergir. Acabam envolvidas pela riqueza ou
limite das relações que as crianças estabelecem, como no dia em que a professora se
organizou para realizar um jogo de varetas com as crianças. Primeiro, ela catou
pedaços de madeira que podiam servir como varetas para o jogo e levou um tanto
delas para a sala de aula. Definiu que as crianças deveriam se organizar duas a duas.
Achei que ela fosse dividir as varetas entre as duplas. Distribuiu todos para uma única
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dupla de crianças e disse às outras que elas ficariam esperando aquela dupla errar
para, então, poderem jogar, e sorteou a ordem. A partir daí, a brincadeira da
professora perdeu o sentido. As crianças começaram a torcer para que a dupla errasse
e, como erravam rápido, não dava tempo de experimentar e aprender os movimentos
necessários. Ou seja, rompeu com o que poderia ser chamado de brincadeira. Às
vezes, as professoras ressaltam que querem incentivar a troca e a solidariedade entre
as crianças, mas acabam criando um contexto em que cada uma passa a torcer pelo
erro do outro.
O interessante, nessas circunstâncias, são as soluções que as crianças acabam
encontrando e que colocam a professora em uma situação em que não resta outra
alternativa senão ceder ao que elas trazem para cena. A brincadeira referida era o jogo
de varetas, o que, no entendimento da professora, iria ajudá-las a aprender a contar.
Como a maioria ficaria apenas esperando, arranjou uma ocupação para o tempo delas.
Distribuiu pedaços de massinha para cada criança ficar modelando enquanto esperava
a vez. Resultado: a brincadeira de massinha ficou mais interessante do que a
brincadeira de varetas. Surgiram bolas, bichos e outras formas que as crianças iam
dando à massinha. Uma das crianças começou a confeccionar pequenas letras com a
massinha e compor, ao seu jeito, algumas palavras. As crianças deixaram de lado as
varetas com as quais estavam brincando, juntaram-se às outras crianças e começaram,
66

também, a brincar com as massinhas. A própria professora se envolveu com o que as


crianças estavam fazendo com tamanha concentração. A partir daí, começou a
observar criança por criança, perguntando o que elas estavam fazendo. O clima da
sala mudou. Ouvem-se gargalhadas e conversas. Outras brincadeiras e relações
começaram a acontecer. Chamo atenção para o que Certeau (1994, p. 87) ressalta
como um “trabalho com sucata”. Ao contrário do que é chamado de “sucata” nas
escolas, que se refere ao aproveitamento do que sobra para dar novo significado
objetivo, aqui emerge a possibilidade de uma ação e relação até então imponderáveis,
que escapa dos objetivos prévios à relação/interação entre os diferentes sujeitos – e
por isso não se reduz a lucros e objetivos externos definidos por outro –, e talvez por
isso se expresse como possibilidade de ser um “tempo e espaço de liberdade”, um
fazer coletivo e solidário, constituindo, ainda que por um breve momento, um outro
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cenário, uma outra cena para os sujeitos.


Mesmo assim, a sala de aula continua não sendo percebida como um lugar de
brincadeira no sentido pleno da relação. Na sala, só brincadeira pedagógica,
brincadeira para relaxar a atividade realizada ou outros conhecimentos, no discurso,
valorizados e aceitos para a Educação Infantil, como contar histórias, cantar e brincar
de roda. Quando dá o tempo de sair da sala, a professora interrompe a brincadeira das
crianças e diz: “Vamos sair para brincar lá fora”. Um garoto comenta: “Eu ia fazer
uma borboleta”. Outra menina fala baixinho: “Que pena”. Muitas vezes, a professora
não sabe o que fazer com a brincadeira, não percebe a riqueza das relações que
emergem. Nesse contexto, a brincadeira apenas preenche espaço, marca uma
passagem para outra atividade ou lugar, descontrai do que foi feito ou prepara para o
momento seguinte.

• Brincadeiras livres
Eu acho que elas aproveitam todos os espaços que elas têm e que têm condições de
brincar. Até um cantinho lá na parede que elas encontram, lá perto do muro, elas
aproveitam brincando. Eu acho que isso é muito importante. Cada espaço que ela
consegue ela aproveita. (Rosa)

No parquinho, as crianças podem, segundo as professoras, brincar de forma


livre: crianças e professoras livres. Mas livres do quê? Livres de quem? Uma
67

concepção de “brincadeira livre” é utilizada para os momentos em que as crianças


brincam sem interferência da professora, deixando que elas mesmas escolham e
construam suas brincadeiras. Aparece, na fala das professoras, um discurso que
procura valorizar a autonomia das crianças, sem que, na maioria dos casos, tenham
clareza da concepção que trazem, o que acaba por reforçar formas individualizadas de
expressão das crianças, pois pouco problematizam as tensões e contradições das
relações que emergem, bem como não conseguem dimensionar a importância dos
lugares dos adultos nesse contexto. As crianças acabam abandonadas às suas próprias
relações, como se, a priori, fossem capazes de resolver por elas mesmas seus
conflitos.

Acho que porque é hora de brincar. A idade delas é hora de brincar. Não precisa
colocar a criança na escola para aprender a ler. Tem muita gente que faz isso. Na
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hora da brincadeira a criança interage, ela se conhece, desenvolve autonomia, ela


faz papel de adulto, faz papel de bicho. Na hora de brincar, eu acho que elas se
sentem as melhores pessoas do mundo, as pessoas mais importantes. (Andréa)

As crianças sabem se organizar. Dividem bambolês e cordas, partilham


brincadeiras nos brinquedos de ferro, fazem diferentes formas de pegador. Mas elas
expressam as relações que conhecem. Às vezes, esperam com paciência o colega
brincar para, depois, emprestar o brinquedo. Brincam juntos e juntas, e convidam uns
aos outros. Mas nem sempre é assim. Há muitas tensões e relações de poder e,
algumas vezes, vê-se reforçado algo que precisaria ser mais bem trabalhado com as
crianças na direção da construção de suas relações e experiências. Autonomia e
dependência do outro são dimensões que ora se alternam, ora coincidem. Só o
envolvimento, o que impõe todas as mediações necessárias, é capaz de esboçar a
compreensão dos diferentes momentos das interações humanas.
Não há sentido em denominar tais experiências como brincadeiras livres. De
tão reguladas, normatizadas, objetivadas, instrumentalizadas, de tanto buscar
objetivos preestabelecidos, externos e anteriores à própria relação, até mesmo porque
carregam signos ideológicos, e talvez por isso mesmo, criou-se a necessidade de
adjetivá-las. Que outros adjetivos seriam ainda necessários? Nada soa mais absurdo
que a necessidade de ressaltar que uma determinada brincadeira é livre.
68

Compreendo que não é o adulto aquele que irá fornecer o significado último à
brincadeira das crianças, e este é um princípio de liberdade: reconhecer-se nos
processos de significação. Como afirma Benjamin (1984, p. 70), “a bola, o arco como
instrumentos de brincar, são tanto mais autênticos quanto menos o parecem ao adulto.
Quanto mais próximo ao significado dos adultos, mais se desviam da ‘brincadeira
viva’”. Entretanto, de quem a criança recebe seus brinquedos, que histórias marcam
sua apropriação e mediação? Dessa perspectiva, o lugar de adulto é fundamental.
Cabe-lhe, como ressalta Benjamin (1984, p. 41), uma tarefa histórica: a “orientação
rigorosa”, capaz de potencializar questionamentos às experiências e à vida – e nada
como as brincadeiras para fazer entrecruzar passado e futuro – e reconhecer no
presente possibilidades (esperança) de “libertar” o futuro de sua forma desfigurada.
Como assinala Larrosa (2000, p. 328),
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há palavras tão manipuladas, tão manuseadas, tão corrompidas por séculos e séculos
de tagarelice que é quase impossível utilizá-las. Mas o que está acontecendo é que
estamos ficando sem palavras para dizer o intolerável e para afirmar o nosso querer
viver. O certo é que nada existe de mais comum, de mais ambíguo, de mais suscetível
de mal-entendido e manipulações do que a reinvidicação e a defesa da liberdade na
ordem moral, do direito, da política, da arte ou da ciência. O certo é que, muito
freqüentemente, a palavra liberdade nos soa falsa (a brincadeira também22) quando a
escutamos e não tem qualquer sabor quando a pronunciamos. Mas às vezes ela se
oferece a alguém que desejaria apresentá-la como uma nova verdade, como um novo
saber, ainda que para ele seja preciso primeiro libertar a liberdade de todas essas
falsificações que se aderiram a ela e que secretamente a povoam.

As crianças, por sua vez, demonstram gostar de brincar com os adultos.


Gostam da presença do adulto, gostam do envolvimento do adulto. Param de pronto
quaisquer brincadeiras quando a professora convida para fazer outra brincadeira. É
como se estivessem esperando da professora – do adulto – uma interferência, uma
ampliação do que sabem e costumam fazer. Observei as crianças brincando no
parquinho. Quando as professoras as convidavam para fazer, por exemplo, uma
brincadeira de roda, a grande maioria parava o que está fazendo e ia ao encontro da
professora. Mas as professoras pareciam ter dificuldades de perceber o quanto são
importantes e desejadas. No meio da brincadeira, vi várias vezes a professora se
afastar, deixando as crianças sozinhas, como se sua “tarefa” fosse apenas organizar e

22
Grifo do autor.
69

dar início às brincadeiras. Perguntam repetidas vezes para as crianças se elas estão
gostando da brincadeira, mas não parecem acreditar. Vão perdendo o envolvimento
até não ter mais ligação alguma.
Nesse sentido, as professoras não conseguem perceber a riqueza das relações
que vão acontecendo: crianças de mãos dadas, cantando, brincando, juntos meninos e
meninas de diferentes idades. Acontecem também muitas tensões em que as crianças
ficam esperando a mediação da professora. Querem a ajuda dela para organizar e
experimentar as brincadeiras nos brinquedos de ferro, querem que elas ajudem a
descobrir uma maneira de fazer determinado movimento, de brincar com a corda ou o
bambolê. Às vezes, querem apenas ser olhadas, querem que as professoras vejam o
que estão fazendo, querem escutar alguma coisa delas.
Também reclamam muitas e muitas vezes: “Ninguém quer deixar eu pular
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corda”; “Eu também quero ir no balanço”; “Está muito alto e eu estou com medo”;
“Professora, fulano me bateu”; “Eu também quero brincar e ninguém quer deixar”.
Há momentos em que a regra não serve para as relações que as crianças estão
experimentando, e elas não conseguem fazer a síntese por si mesmas; precisam de
alguém que as ajude a compreender o que está acontecendo, para que possam,
crianças e professoras, transformar aquela situação, ressignificar aquelas relações:
libertarem-se.
Em um dia de observação, acompanhei uma criança que queria brincar em um
balanço, mas todos estavam ocupados. Como ninguém se aproximou, perguntei-lhe
se não queria empurrar um pouco o colega, depois eles trocariam de lugar. Como foi
rico aquele momento! Pareceu-me que ela ainda não tinha experimentado aquela
situação e teve de aprender a coordenar o ritmo do balanço e o momento de empurrar
o colega. E como foi interessante vê-las descobrir uma solução simples como aquela.
Acabou trazendo relações inesperadas. Não só trocaram de lugar, como depois
descobriram que as duas cabiam no balanço e podiam ir juntas. Ficaram as duas
abraçadas e sentadas no balanço. Essa cena faz emergir, como também aponta
Kramer (2003, p. 82), a percepção de que pequenas ações e relações cotidianas estão
muito além de seus limites aparentes, estão carregados de signos e valores, e trazem
significados coletivos e públicos para a liberdade. Nesse sentido, fazem emergir,
70

como tarefa histórica, uma busca coletiva de experiências de solidariedade,


reestabelecendo laços de caráter afetivo, ético, social e político.
Em algumas situações, as crianças brincam de uma forma que parece
perigosa, e as professoras nada dizem. Em outros momentos, a professora intervém o
tempo todo: quem senta, como senta, quem empurra, às vezes, sem o menor sentido
para as crianças, apenas diferenciando-se como autoridade, como se refere Arendt
(1972, p.144), nas relações de poder. Por exemplo, a mesma professora que não dava
a menor atenção para um momento que parecia muito perigoso, pois as crianças
giravam um brinquedo, que elas chamam de rodinha, com muita força, e a qualquer
momento alguém podia cair e machucar logo a seguir, quando giravam o brinquedo
devagar, proibiu uma criança de ficar em pé no brinquedo. Naquele momento, não
havia risco de experimentar o corpo com este novo equilíbrio. Ao contrário, poderia
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construir uma relação de cuidado com o colega e incentivar outras crianças a


experimentar novas maneiras de estar e se expressar no brinquedo, ficando em pé, de
frente, de costas, agachados, deitados, etc. Dessa forma, as crianças apenas aprendem
que é errado ficar em pé no brinquedo.
As crianças também conhecem brincadeiras que as professoras não conhecem,
o que não deslegitima seu lugar de adulto. Como no dia em que a professora foi
ensinar uma brincadeira de roda e percebeu que não sabia a letra da música. Pois as
crianças sabiam e continuaram cantando. A professora mudou de brincadeira porque
não sabia brincar. Por que não deixar que as crianças assumam o protagonismo nessa
relação e ajudá-las a fazer isso? Não há apenas uma maneira certa e outra errada de
fazer uma brincadeira. É uma tomada de decisão que vai se desdobrando na riqueza
das interações. Muitas vezes, a intervenção da professora vai apenas na direção de
recuperar o controle da situação. As crianças, aos poucos, desistem da brincadeira,
dizem que estão cansadas, que está chato, e que não querem brincar mais.
Também há momentos em que as professoras elaboram situações que dão
novos ingredientes às relações, aos espaços e às experiências de conhecimento.
Assisti à construção de um brinquedo que a professora propôs que as crianças
levassem para brincar no pátio com as outras crianças. Construíram bichos com jiló e
palitos de fósforo. Os bichos viraram aviões, automóveis, tomaram banho, dormiram
71

e se transformaram em diferentes relações. As crianças brincaram, emprestaram para


outras crianças mais novas, exploraram espaços em que não costumam ir e
inventaram brincadeiras. As crianças do Maternalzinho brincaram com as crianças do
primeiro período, que explicavam e ensinavam a fazer outras coisas. Também foi
interessante o dia em que a professora Elaine propôs construir bonecas com garrafas
pet. Algumas meninas que tinham levado bonecas para a escola guardaram e foram
brincar com aquelas que a professora estava construindo com as crianças. Os meninos
também se interessaram. Fizeram roupas e fantasias, construíram bonecos,
personagens, cenários e histórias.
É bem verdade que as crianças também gostam e querem brincar sozinhas.
Fazem coisas que, muitas vezes, só têm sentido para elas, e qualquer intervenção do
adulto, da professora, é como se quebrasse o encanto daquele momento. Mas elas não
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querem e não parecem gostar de ficar entregues às suas próprias relações. Nesse
sentido, o conceito de “liberdade” não significa necessidade de livrar-se uns dos
outros.

• Brincadeiras dirigidas
Tem as brincadeiras livres, que eles mesmo ficam construindo, e tem a hora das
brincadeiras dirigidas. Às vezes, eles pegam um negócio no parquinho, imaginam
mil coisas, ficam brincando no mundinho deles. As brincadeiras dirigidas são para
eles saberem como é a regra de um jogo, a regra das brincadeiras, como brincar, o
que pode, o que não pode. Então eu acho que tem que ter a brincadeira dirigida
também, para passar para os meninos como é a forma de brincar, qual a maneira
certa de brincar. (Rose)

As brincadeiras também são tomadas sob o ponto de vista de conhecimentos


escolares que devem ser ensinados às crianças. Denominadas brincadeiras dirigidas,
as professoras partem do princípio de que há maneiras “certas” de brincar que
precisam ser ensinadas às crianças. Reforçam uma idéia de que as crianças não sabem
muitas brincadeiras ou não sabem brincar da maneira correta, o que inclui as músicas
que devem cantar, os gestos que devem fazer, as regras que devem respeitar e o
comportamento que devem ter com os colegas e com a professora durante a
brincadeira, a que dão o nome de “valores”. Ensinam brincadeiras de roda e outras
72

brincadeiras populares como amarelinha, chicotinho queimado, passa anel e caí no


poço.
Em alguns momentos, as professoras procuram ensinar diferentes maneiras de
fazer uma mesma brincadeira. Observei uma professora ensinando a brincadeira
amarelinha para as crianças: fez diferentes desenhos e ensinou como poderiam saltar
de um quadrado ao outro até pegar a pedra. Meninos e meninas brincaram juntos, e
aconteceu de forma divertida, sem ênfase em quem ganha, ou quem perde, ou quem é
o melhor. Entretanto, percebi que não conseguem permanecer em uma mesma
brincadeira o tempo suficiente para que as crianças, ao experimentá-la, possam ter a
oportunidade de se apropriar e inventar outras maneiras de brincar.
O objetivo principal ressaltado para essas atividades é o de ensinar a
brincadeira, mas não, necessariamente, de brincar. Assim que cada criança faz uma
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vez a brincadeira, a professora passa para outra ou “libera” as crianças para o


parquinho. Cheguei a presenciar momentos em que, em menos de meia hora, a
professora fez com as crianças mais de dez brincadeiras e músicas. Não dava tempo
para as crianças experimentarem o que estava sendo ensinado; para que emergissem
as tensões fundamentais à brincadeira; para que conflitos e contradições pudessem ser
elaborados.

Acho que é uma brincadeira mais trabalhada, uma brincadeira orientada, é uma
brincadeira que você está ali, você está ali para observar a brincadeira, você não
está ali para você deixar o menino brincar, igual, eu tinha um aluno, que ele
brincava sozinho, sempre sozinho, falava sozinho, ia falando os personagens da
história dele, tudo sozinho. Um dia eu perguntei à mãe dele porque ele brincava
sozinho. Mas ela falou que ele nunca quis brincar com ninguém, que ele ficava no
mundinho dele. Mas ele sabia tudo, era muito inteligente. Sabia os personagens das
histórias. Na hora de brincar ele não importava se estava brincando sozinho ou com
alguém, mas ele estava brincando, não precisava ter alguém com ele. Brincava
sozinho. Se precisasse ficava o dia inteiro, nem almoçava. (Andréa)

Observei que as crianças, enquanto esperavam a sua “vez”, ou esperavam a


brincadeira da professora terminar para poderem ir ao parquinho, começavam a
brincar de outras coisas. Um exemplo foi o dia em que, enquanto a professora
ensinava uma brincadeira do cabra-cega, em que as crianças só podiam pegar quem a
professora indicava, as crianças inventaram outro pegador dentro da brincadeira da
professora, como se houvesse duas dimensões atravessando uma mesma
73

temporalidade e as crianças passassem de uma para outra, com plena consciência do


que estavam fazendo. Certeau (1994, p. 202) chama essa situação de outra ordem de
relações, segundo a qual se instauram novos elementos nas relações de coexistência,
em que o espaço se torna aquilo que o lugar praticado faz circular e cruzar,
fornecendo significados diferentes, construídos em um mesmo espaço-tempo, nas
relações entre os sujeitos. A professora não percebeu, ou não quis colocar ênfase no
que estava acontecendo.

• Lugares de brincadeira – Enquanto as brincadeiras pedagógicas acontecem,


na maioria das vezes dentro da sala de aula, e as brincadeiras livres, no parquinho, as
brincadeiras dirigidas são ensinadas às crianças nos corredores externos, que
assumem um lugar intermediário no processo e no controle pedagógico. Mas se há
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lugares que absorvem seus significados principais como espaço de brincar, há outros,
como o refeitório, em que, além das refeições e de seu uso como sala de vídeo,
também são locais autorizados para acontecer as brincadeiras.
Embora o refeitório condicione as maneiras e os usos das brincadeiras,
também abre brechas para deixar-se transformar pelas relações entre as crianças, as
professoras e os brinquedos. Quando as crianças são levadas para o refeitório ou
permanecem lá depois de um lanche ou de algum filme, no início, a estrutura da sala
não é alterada para essa nova possibilidade de interações. As crianças continuam
sentadas às mesas, mesas grandes, onde se agrupam entre 15 e 20 crianças dos dois
lados e são espalhados brinquedos tipo Lego ou Quebra-Cabeça. Ficam ali brincando
entre pedidos de silêncio e repreensões.
Nesse espaço delimitado, sentar-se à mesa condiciona, mas não define, as
possibilidades de relação e de brincadeiras. Mesmo que as professoras não façam
interferências ou tragam sugestões de brincadeira, aos poucos, surgem relações
interessantes. Em um dia em que observava as crianças no refeitório, um garoto fez
um cavalo com as peças de ligar. Começaram a aparecer outros bichos. Outra criança
fez, como eles dizem, um “hominho” para montar seu cavalo. Uma criança menor
começou a chorar, pedindo-lhe que fizesse um igual para ele. O garoto parou sua
74

brincadeira e começou a ajudar a criança a fazer o seu brinquedo. Entretanto, não


houve qualquer mediação. Essa relação não se desdobrou e se perdeu.
No refeitório, embora as relações de brincadeira fossem condicionadas em um
espaço que se aparenta estático, a qualquer momento, a brincadeira e o espaço
poderiam ser ressignificados e apropriados pelas crianças. A própria mesa, que no
início mantém corpos e movimentos contidos, pode ser transformada em palco de
brincadeiras interessantes. As crianças brincam sob a mesa, brincam com o colega
que está do outro lado, levantam e saem da mesa, sobem nos bancos, debruçam-se
sobre a mesa. As relações ganham mobilidade, e as crianças se envolvem umas com
as outras.

• Algumas brincadeiras passam despercebidas – Algumas brincadeiras são


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valorizadas e reconhecidas como importantes. Assumem o discurso e a representação


de atividades que possibilitam a vivência da imaginação e da fantasia, devendo por
isso ser incentivadas. São ressaltadas por potencializar o aprendizado de papéis e
valores sociais. Contudo, outras experiências de brincadeira parecem não ser
percebidas ou desejadas. Apresentam tensões, conflitos e contradições que as
professoras têm dificuldade de problematizar: sexualidade, preconceito,
agressividade, trabalho, etc.
O parquinho, por ser tomado como lugar de “brincadeira livre”, aparece, no
olhar das professoras, com um sentido de distensão e relaxamento, tempo e espaço de
gastar energia, de compensar o desgaste da sala de aula. Nesse contexto, algumas
brincadeiras não são percebidas. Observei crianças carregando pedaços de madeira.
Diziam que estavam “brincando de trabalhar”. Aproximaram-se perguntando se
podiam deixar as madeira guardadas. Disseram: “A gente estava arrumando a casa,
mas a tia não quer deixar a gente trabalhar agora não”. A professora chamou todas as
crianças e pediu-lhes que se sentassem encostadas no muro, dizendo que iriam brincar
de pular corda. Como a brincadeira proposta não demorou muito, as criança voltaram
para o que estavam fazendo, dizendo: “Vamos continuar arrumando nossa casa”. A
professora não se aproximou, e a brincadeira não ganhou foco, nem importância.
Experiências, relações, movimentos e usos dos brinquedos acontecem, trazem
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significados e expressões sem que as professoras percebam, interfiram ou incorporem


no seu contexto pedagógico. Percebo, nesse sentido, relações que as crianças podem
estabelecer diante de materiais como a madeira, o papel, as pedras e outros objetos a
que, “como caçadora”, ela vai ao encontro (BENJAMIN, 1984: 69).

Hoje talvez podemos esperar uma superação efetiva desse equívoco fundamental, o
qual acreditava erroneamente que o conteúdo imaginário do brinquedo determinava a
brincadeira da criança, quando, na verdade, dá-se o contrário.

As crianças também experimentam os brinquedos de ferro de outras formas


além do seu uso comum: dependuram-se, ficam de cabeça para baixo, escorregam,
descem, sobem, descobrem maneiras de brincar. O que era para balançar passa a ser
usado para dependurar, saltar, empurrar. Algumas crianças brincam no escorregador
como se estivessem em uma barra paralela: tentam dar “cambalhotas”, giram o corpo
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na barra. Outras crianças procuram imitar. Meninos e meninas se misturam. Observei


uma menina mais nova (em torno de 3 anos) tentando imitar os meninos maiores (em
torno de 5 anos). Ela não conseguia fazer o movimento, mas isso não pareceu
importar. Entendi que ela queria experimentar e brincar com o seu corpo. Os
brinquedos ganham outros nomes. Um dos balanços, chamado ônibus, instaura novos
usos, movimentos, fantasias, brincadeiras e até trajetos. Como balanço, não sai do
lugar. Como ônibus, vai até onde as crianças o levarem.

• “Brincar pelo brincar”


A brincadeira acontece de maneira [...] espontânea, brincando. A gente tem as horas
de vir para cá, mas a gente também brinca em sala. Na brinquedoteca, aqui dentro,
eu brinco mais livre. Eu pego as bonecas, eu entro na brincadeira sempre como a
filha, não quero ser a mãe para não ter aquele papel de autoritária. Quando é no
pátio, eu brinco de ‘macaco disse’; quando é lá fora eu brinco de futebol. (Andréa)

Se, por um lado, observei no discurso das professoras que elas têm buscado
superar posturas que hierarquizam e secundarizam o brincar em relação a outras
aprendizagens escolares, procurando se contrapor à idéia de “uso pedagógico” da
brincadeira, por outro lado, continuam operando com uma idéia abstrata e idealizada
do brincar e da infância. Dizem que valorizam o “brincar pelo brincar”. Os conflitos e
as tensões aparecem no olhar das professoras como algo contraditório com uma
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concepção do brincar que o relaciona a uma idéia de relaxamento, prazer e


autonomia.

Esse negócio de ficar pegando, e tem que fazer isso, tem que fazer aquilo [...] Não,
tem que deixar livre. Você já viu meus meninos, os mais bagunceiros. Eu deixo livre.
E os meninos não aceitam essas brincadeiras de ficar assentado o tempo inteiro,
não. Eu deixo mais para lá, brincar mesmo, brincar com água, eu gosto disso.
(Andreá)

Observo que há uma dificuldade de estabelecer mediações nas relações das


crianças em um universo cultural, ao mesmo tempo amplo e singular. Também revela
uma objeção do adulto de se reconhecer e se apropriar de seu lugar na relação com as
crianças. Ou tem um objetivo a priori, em que uma brincadeira serve para
determinado fim, ou não se vislumbra qualquer possibilidade de experiências de
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construção de conhecimentos. As professoras, também, não recorrerem às suas


experiências de brincadeira para estabelecer vínculos com as crianças:

Na escola [...] parece que as crianças pedem para o professor intervir e ele não o faz,
impondo ao invés de dividir com a criança em situações em que poderia fazê-lo, e
exigindo demais quando deveria poupá-la. A questão da sociabilidade se tornou tão
frágil que os adultos [...] não vêem as possibilidades da criança e ora controlam,
regulam, conduzem as crianças ora sequer intervêm, têm medo das crianças e dos
jovens, medo de estabelecer regras, de fazer acordos, de lidar com as crianças no
diálogo e na autoridade [...] ao abrirem mão da sua autoria (de pais e professores), ao
cederem seu lugar só têm, como alternativa, o confronto ou o descaso. (BAZÍLIO e
KRAMER, 2003, p. 80)

• Às vezes, brincar vira uma obrigação – A brincadeira apresenta este


paradoxo para a escola. Ao mesmo tempo que as professoras trazem o discurso do
prazer e da autonomia, não reconhecem as tensões inerentes à brincadeira. Se, de um
lado, o brincar é um convite, e instaura contradições entre tempo-espaço institucional
e tempo-espaço dos sujeitos, seus desejos e ritmos subjetivos, por outro lado, essa
tensão também explicita um princípio da brincadeira, que é a sua dinâmica de
reconstrução e ressignificação.
A brincadeira, ao mesmo tempo que se instaura como uma experiência
coletiva de relação e significação, também é experimentada com sentidos distintos
entre as crianças que brincam juntas e, até mesmo, daquilo que a professora colocou
como foco prioritário. Há muitas maneiras de participar de uma mesma brincadeira,
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em um mesmo tempo e lugar. Nos momentos de observação, assisti a uma professora


ameaçar uma criança que não queria ficar na roda com as outras que a colocaria de
castigo caso ela não entrasse na brincadeira. Percebi que as crianças que
permaneceram de fora da brincadeira, dizendo que não queriam brincar, ficaram
olhando as outras crianças, cantando a música que estava sendo cantada e ficaram
sintonizadas com o que está sendo feito.
Outras vezes, observei como são diferentes os tempos das crianças. Há
momentos em que elas precisam ficar sozinhas, antes que se disponham a estar com o
grupo. Às vezes é o contrário, como no dia em que acompanhei uma brincadeira de
corre-cotia (no Rio chamam essa brincadeira de lenço-atrás), que a professora propôs.
Toda vez que uma criança colocava a bola atrás de uma menina, para que ela corresse
e acontecesse a dinâmica prevista, ela dizia que não estava brincando. Da segunda
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vez que ela repetiu isto, a professora pediu que saísse da roda. A menina disse
baixinho: “Eu quero ficar aqui”.
Há uma riqueza de ações e relações que emergem em uma brincadeira. Mas
nem sempre se é capaz de dar respostas imediatas, nem é preciso assim fazer. Às
vezes, o desenrolar da brincadeira apresenta as soluções necessárias, isso requer uma
percepção ética e estética das relações que circulam. Expressam a materialidade do
que as crianças, na relação com os adultos, trazem como conhecimentos e
necessidades, abrem espaços para o envolvimento e a mediação, demandam um
processo de reconstrução coletiva dos significados incorporados em uma cultura viva.
Percebo que a brincadeira, em alguns casos, também é uma obrigação para a
professora, uma imposição externa.
Observei crianças brincando no bairro, no terreno ao lado da creche, sem a
presença de um adulto: crianças de 3, 4, 5 anos. Se brincam fora da creche, por que a
brincadeira precisa ser vivenciada no espaço escolar, ressaltada como a dimensão que
deve ser explorada com prioridade no trabalho com as crianças? Entendo que há uma
grande riqueza nas brincadeiras que as crianças fazem nas ruas do bairro: o próprio
bairro, as ruas, as relações, até mesmo os preconceitos e valores. Contudo, se, de um
lado, reafirmo um direito de acesso às brincadeiras como expressão de inserção social
e cultural, por outro lado, essas experiências não se efetivam apenas como forma de
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consumo de bens culturais, mas de partilha na produção de uma cultura que é


complexa. Precisamos uns dos outros – crianças e adultos, pais e professores – para
interpretá-la e ressignificá-la. Como assinalam Bazílio e Kramer (2003, p. 81),

as crianças enfrentam cada vez mais situações difíceis e muito mais complexas que o
seu nível de compreensão [...] convivem com problemas além do que o conhecimento
ou a experiência que possuem permite entender. Os adultos não sabem como
responder ou agir diante de situações que não enfrentaram antes, pois também eles –
embora adultos – não se constituíram na experiência coletiva [...] Os adultos só
poderão encontrar soluções para esse vazio de autoridade [...] ressignificando seu
papel, na esfera social coletiva.

2.4 A brinquedoteca e o discurso do direito à brincadeira

A brinquedoteca localiza-se no canto do parquinho, mas continua visível pela


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sala da coordenação. Se, por um lado, parquinho e brinquedoteca são espaços


institucionais para brincadeira, por outro, são bastante distintos. Para o parquinho
sempre se pode ir; para a brinquedoteca, só no horário definido. O parquinho é um
espaço aberto; a brinquedoteca está sempre fechada. Lugar instituído, lugar ordenado
e regulamentado, precisa de explicações e definições a priori.
A existência de brinquedotecas em creches comunitárias é um projeto da
AMAS, que traz o discurso da garantia do direito da criança ao brinquedo e à
brincadeira.23 Entretanto, expressa-se a partir de uma visibilidade das crianças como
dependentes da creche para que a brincadeira aconteça na vida delas. Representadas
como carentes – cultural, moral, cognitiva e afetivamente –, são tomadas como
crianças que não brincam em seu bairro e com seus pais. Se brincam, não brincam
com deveriam brincar, expressando um forte componente de preconceito do lugar e
da cultura das crianças pobres. A brinquedoteca acaba se revelando como extensão de
uma história de benesses, caridades e doações que colocam as crianças no lugar de

23
Assinalo o esforço das profissionais da AMAS para se apropriarem de outros discursos e concepções
das crianças e de como contribuir para a formação das professoras. Emergem temas como cidadania e
cultura, direito de acesso às brincadeiras, atenção à subjetividade das crianças, etc. Contudo, percebo
que ainda têm permanecido distante das questões e problemas que emergem no e do cotidiano das
creche, o que acaba provocando uma falta de clareza tanto na formação das professoras quanto na
contribuição para a elaboração de projetos pedagógicos pelas instituições.
79

beneficiárias das boas intenções da sociedade. Reforçam um discurso de direito, mas


acabam reafirmando um lugar de tutela e benevolência institucional.24
Na “rotina” da creche, a ida à brinquedoteca é um tempo institucionalizado: as
crianças vão uma, duas ou três vezes por semana, onde permanecem em torno de uma
hora. Podem pegar algum brinquedo e brincar dentro da brinquedoteca. Em
contrapartida, devem cuidar para que a brinquedoteca permaneça em ordem. Entre 15
e 25 crianças dividem um espaço de mais ou menos 5 X 5 m2, onde devem brincar,
fantasiar, construir e imaginar, mas sem desarrumar, deixando tudo em ordem para a
próxima turma que virá brincar. Nestas circunstâncias em que se privilegiam normas
de uso, acabam restringindo as relações das crianças.
Na brinquedoteca, poucas interferências são feitas. Tentam conter as crianças
na entrada. Mesmo assim, entram empurrando e disputando os brinquedos. A
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professora parece apavorada. Nos primeiros momentos, ouvem-se ameaças, castigos e


devolução dos brinquedos que foram pegos sem autorização. Só depois que estão
todos sentados e quietos é que a professora autoriza um por um, seguindo critérios
pouco claros, a pegar os brinquedos, ou ela mesma os distribui entre as crianças. Feito
isso, as únicas intervenções previstas ficam por conta do controle do tempo, da
agitação e das brigas entre as crianças.
Relações interessantes acontecem. Se, no início, brincar junto parece
impossível – disputam os brinquedo em meio a empurrões e choros –, aos poucos as
relações vão se transformando. As crianças vestem fantasias e inventam histórias.
Nesses momentos, as professoras se envolvem na brincadeira, dando idéias e
sugestões: promovem um casamento entre as crianças, fazem um baile, propõem
personagens, danças e músicas. Aos poucos, vão encontrando soluções para brincar e
partilhar dos brinquedos. Mas, na maior parte das vezes, as professoras acompanham

24
Segundo Porto (1998, p.183-184), as brinquedotecas, como espaços que valorizam o brinquedo e o
brincar, nasceram em um contexto urbano em que cada vez mais se reduzem os espaços ao direito de
brincar: ruas limitadas aos automóveis e shoppings significados pelo consumo expressam uma
diminuição dos espaços públicos. As brinquedotecas, originárias da década de 1930 nos Estados
Unidos, aparecem como novo lugar de convívio e socialização por meio de brincadeiras. Nos anos de
1960, na Suécia, absorveu um sentido de orientação a famílias, ajudando-as nas interações com seus
filhos. No Brasil, a presença de brinquedotecas se deu a partir da década de 1980 com diferentes
sentidos. Destaco o projeto “Brinquedoteca Terapêutica” (1986), desenvolvido na Apae-SP,
responsável pela propagação de uma concepção voltada para crianças “excepcionais” e pobres,
80

de forma distanciada. Conversam umas com as outras enquanto as crianças brincam.


Ninguém é convidado ou expressa vontade de sair da brinquedoteca, ir fazer alguma
brincadeira no pátio ou em outro lugar.

A brinquedoteca é um local muito rico. Porque eu acho que a vida em casa das
crianças está na brinquedoteca. Lá elas vão brincar de faz-de-conta, vão brincar de
casinha, vão imaginar mil e uma coisa, vão poder tocar em um brinquedo que elas
não têm em casa. Vão poder dividir com o colega e vão estar aprendendo a
compartilhar. A primeira coisa que eu digo é que a gente tem que ensinar a criança
a compartilhar. A criança não pode ter um brinquedo só para ela, porque os
brinquedos da brinquedoteca são para todos. Então tem que aprender a dividir. Eu
brinco um pouco, passo para você, e assim por diante. (Rosa)

A ida à brinquedoteca parece improvisada. As professoras na maioria das


vezes, parecem perdidas. Demonstram uma preocupação de catar os brinquedos e
moderar a bagunça. A obrigação de deixar a brinquedoteca em ordem – uma ordem
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preestabelecida que não considera as relações entre as crianças e a professora – traz o


desejo de não voltar mais. Consideram a ida à brinquedoteca um momento de
desgaste, estabelecendo, por isso, frágeis significados pedagógicos. A vigilância
sobre as professoras é explícita. Mesmo que não percebam, as professoras transferem
essa ameaça para as crianças. Entretanto, como ressalta Benjamin (1994, p. 39),

cada pedra que ela encontra, cada flor colhida e cada borboleta capturada já é para ela
uma coleção, e tudo que ela possui, em geral, constitui para ela uma coleção única ...
Mal entra na vida, ela é caçador [...] Para ela tudo se passa como em sonho: ela não
conhece nada de permanente; tudo lhe acontece, pensa ela, vai-lhe ao encontro,
atropela-a [...] De lá ela arrasta a presa para casa, para limpá-la, fixá-la, desenfeitiçá-
la. Suas gavetas têm de tornar-se casa de armas, zoológico, museu criminal e cripta.
“Arrumar” significaria aniquilar uma construção cheia de castanhas espinhosas que
são maças medievais, papéis de estanho que são um tesouro de prata ...

Em minhas observações, percebi que a brinquedoteca perde sua


potencialidade para a brincadeira, tornando-se um local dos mais institucionalizados
em normas, ordem e formas de instaurar rotinas (KISHIMOTO, 1998, p. 82).
Reforça hierarquias. Bagunça na brinquedoteca é evidente aos olhos de todos. Assisti
à coordenadora pedagógica ir à brinquedoteca em um momento de grande tumulto e

denominadas “carentes”, onde aparecem, de forma ambígua, discursos de assistência, educação e


socialização das crianças e das famílias.
81

colocar professoras e crianças para arrumar o espaço. Para as professoras, representa


uma ameaça nada sutil, encarnada de significados e lugares institucionais.
A brinquedoteca absorve um significado paradoxal: ao mesmo tempo que está
dentro da creche, está fora do espaço interno do prédio da creche e está deslocada do
parquinho. Desejam incorporá-la como “espaço-tempo livre”, mas é um momento de
relações reguladas. O controle é quase total, e a professora se sente vigiada. Sair da
brinquedoteca e não deixar tudo arrumado é a revelação de sua (in)competência. Por
isso, não é qualquer relação de brincadeira que é permitida no interior da
brinquedoteca: só o que puder ser controlado. Deve-se, antes, regular o que as
crianças podem brincar, quando podem brincar, como podem brincar, quando
começam e quando devem parar de brincar.
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A arrumação, minha sala tem dificuldade. Eles acham que se colocar tudo no canto
está arrumado. Isso é da idade, não culpo eles. Eu peço para fazer uma fila e sentar.
Levanto os brinquedos e arrumo direitinho porque se não, depois, puxam minha
orelha. Eles são pequenos. Eu posso morrer dentro dessa sala que eles não juntam
os brinquedos. Falam: ‘Tia, vamos embora. A D. já está com o almoço lá’. Eu junto
os brinquedos, faço tudo sozinha. Aí eu comecei a trabalhar isso. Comecei a fazer os
combinados. Eu acho que era falta de organização minha. Porque eu não tinha essa
obrigação de fazer uma rodinha. Primeiro, combinar. Brincar só depois que eu
apitar. Acho que é por isso que eles não juntavam, não estavam nem aí. Combinado
faz um bem. Eu tenho essa dificuldade. Eu não estou reclamando. Essa é uma
dificuldade que eu tenho. Mas ano que vem eu vou pegar uma turma maior (crianças
menos novas). (Andréa)

Sobre a brinquedoteca, as professoras expressam que gostariam que fosse um


lugar mais prazeroso. Mas as professoras também constroem suas cumplicidades e
estratégias. Muitas vezes, não vão sozinhas para a brinquedoteca. De um lado, ficam
as crianças; de outro, as professoras. Depois, organizam o espaço do jeito possível.
Quando saem da brinquedoteca, costumam ir para o parquinho para que as crianças
possam brincar um pouco e as professoras possam descansar.

A brinquedoteca é um espaço bom, mas é um pouco complicado. Porque se você não


organizar direito, você vem para cá e estressa, estressa os meninos e volta de lá sem
ter feito nada. Se você perder o controle, você fica agitada. As crianças não são
bobas. Se elas olharem para você, elas sabem se você está agitada ou não. Se você
agitar eles agitam também. Pode ser bom se você souber aproveitar. Mas se não
souber, se torna até cansativo. Aí vai da organização de cada um. (Rose)
82

As professoras percebem possibilidades interessantes para a brinquedoteca.


Às vezes, sugerem outras maneiras de organizar o espaço. Entretanto, no dia-a-dia,
encontram dificuldades para encaminhar suas sugestões, e não se articulam para
estabelecer outros usos e significados para aquele espaço. Nesse contexto, as
professoras revelam a forte rotinização que as envolve, criando mecanismos de
controle e constrangimentos, inibindo as professoras de tomar decisões que
transgridam ao já instalado.

Foi colocado para a gente que a brinquedoteca é um lugar que tem que estar sempre
organizado, que a criança vem brincar e depois ela é quem deve guardar o seu
brinquedo. A criança ela organiza o seu espaço, mas não é a organização do espaço
do jeito que as pessoas adultas querem. Para que a gente tenha prazer ao vir à
brinquedoteca, essas coisas não poderiam estar arrumadas desse jeito [...]. Se nós
professoras nos sentássemos, conversássemos como deveria ser o melhor
funcionamento da brinquedoteca e como aproveitar melhor o espaço [...] Eu acho
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esse espaço super rico, mas não é aproveitado. (Fátima)

2.5 As brincadeiras e os conhecimentos escolares

O que é valorizado na Educação Infantil como conhecimento ou


aprendizagem escolar em um contexto que procura legitimar-se como primeira etapa
da educação básica? Diferentes discursos chegam até as professoras. Enfatiza-se que
a importância da brincadeira na escola não deve se justificar como solução para
problemas do desenvolvimento ou comportamento. As brincadeiras também são
afirmadas a partir de seu universo de relações culturais e sociais (BROUGÈRE,1995,
p. 95). Cada vez mais, deixam de ser tomadas como algo natural e espontâneo das
crianças. Nesse contexto, diferentes respostas vêem sendo elaboradas no sentido de
afirmar a importância da brincadeira na educação das crianças, seu significado
pedagógico, seu papel na “socialização”.

• Brincadeira é coisa séria? – Em minhas observações do cotidiano da creche,


parece que para a professora a importância da brincadeira só se evidencia quando, de
alguma forma, está relacionada ao que é reconhecido como “conteúdos” ou
83

“habilidades” escolares, justificando a presença e a possibilidade do brincar na


Educação Infantil. Como ressaltado por Wajskop (1995, p. 22),

a concepção de Educação Infantil que vem se forjando historicamente tem reiterado


as idéias propostas pelos teóricos de fins do século XIX e início do século XX: a
inserção das crianças nas brincadeiras, nos materiais pedagógicos e nos “treinos” de
habilidades e funções específicas.

Para justificar a importância do brincar, as professoras costumam repetir que o


“brincar é coisa séria”. Dizer que o brincar e a brincadeira são coisas sérias reforça
uma tentativa de dar um estatuto de legitimidade a partir da referência daquilo que o
adulto considera importante, como o trabalho e a ciência; ou outros conhecimentos,
como a matemática, a leitura e a escrita; ou comportamentos disciplinados e
considerados como adequados. O brincar, ainda que a professora não tenha clareza
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disso, adquire significado na Educação Infantil, assim como nos primeiros anos do
ensino fundamental, por subsidiar outras aprendizagens, mas não por seus temas,
linguagem, tensões e relações específicas.

• Brincadeiras para aprender ler e contar – As brincadeiras são justificadas,


como também foi observado por Wajskop (1995, p. 82), como formas auxiliares para
o aprendizado de números, letras e regras, ou como uma embalagem mais prazerosa
para relações que demandam concentração, contenção e controle, como se em uma
brincadeira as crianças não experimentassem as mais complexas formas de
concentração e envolvimento. As professoras costumam usar determinadas
brincadeiras acrescentando-lhes outros códigos e conhecimentos. Por exemplo:
dominó com operações matemáticas, jogos de memória com letras e palavras, boliche
com o nome das crianças, quebra-cabeça de montar palavras, etc.
Não percebo isso como um problema em si. Parece significativo o fato de a
professora buscar elaborar alternativas de relação com o conhecimento. Todavia, as
professoras demostram reconhecer a importância das brincadeiras apenas pelos
conhecimentos, na hierarquia escolar considerados mais importantes, que são capazes
de agregar. Isso resulta em um reconhecimento da brincadeira de uma forma
inferiorizada em relação a outras possibilidades de expressão da linguagem. Reproduz
84

um olhar adultizado sobre o conhecimento, restringindo as possibilidades de


ressignificação ou de produção cultural. Acabam não percebendo quando as crianças
entram em cena. Quando isso acontece, números e letras assumem lugar de
brinquedo, permitem ser manipulados, apropriados e transformados pelas crianças.
Observei uma atividade de colagem proposta pela professora. Sem que ela fizesse
qualquer referência, uma criança recortou uma letra dizendo que achou o nome do
colega. Apareceram outras letras, e as crianças começaram a construir outros nomes.
A professora percebeu o que estava acontecendo. Não interrompeu, mas não colocou
ênfase; apenas permitiu que aquilo acontecesse da forma como as crianças estavam
percebendo.

• Nem sempre a brincadeira da professora é brincadeira para as crianças –


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Às vezes, a professora cria uma circunstância chamando de brincadeira algo que para
as crianças não têm nada de brincadeira. As crianças fazem de tudo para se livrar
daquela situação. Dispersam-se e fazem bagunça. A professora acaba ameaçando as
crianças de não deixar fazer as brincadeiras seguintes caso elas não participem da
brincadeira proposta. Essa situação é contraditória. Certo dia, escutei uma criança, no
meio da brincadeira, perguntar à professora quando ela poderia brincar.
Envolvidas em experiências concretas, as crianças o tempo todo se relacionam
com números e letras, e criam seus códigos para expressar o que estão
experimentando. Enquanto eu fazia minhas anotações, uma criança se aproximou e
pediu para escrever no meu caderno: colocou em três linhas distintas os números 1, 2
e 3, e, à frente, fez uma seqüência de letras e traços que imitavam uma escrita e
mostrou-me dizendo: “Escrevi as brincadeiras que a professora fez com a gente hoje”.
As crianças vão construindo inscrições que demandam da professora uma relação e
sistematização, possibilitando que elas se apropriem das lógicas necessárias aos
registros dos conhecimentos (escolares) que aos poucos vão elaborando individual e
coletivamente.25

25
Questões e situações como essa têm sido observadas em diferentes pesquisas. Indico a leitura do
trabalho de ROCHA (2000).
85

• Questões de gênero e outras diferenças – Questões de gênero circulam nas


brincadeiras. Pedem intervenções e mediações, exigem a reconstrução das relações.
Mesmo que as professoras não reforcem uma separação entre as crianças, formam-se
grupos de meninos ou de meninas. Às vezes, brincam de forma interessante, mas há
outros momentos em que preconceitos e disputas emergem, demandando das
professoras que assumam seu lugar de mediação, reconstruindo juntos as relações que
vão estabelecendo entre meninas e meninos.
Observei uma atividade em que só meninos pulavam corda. As meninas se
afastaram e ficaram observando distantes. Embora esboçassem que queriam brincar,
não houve qualquer intervenção, e as meninas não se envolveram na “brincadeira dos
meninos”. Ficaram esperando que eles parassem de brincar para depois, só depois,
pegar a corda e iniciar a “brincadeira das meninas”, sem os meninos. Outra vez,
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durante uma brincadeira que a professora fazia com as crianças, brincadeira chamada
de “Seu Lobo” (um tipo de pegador que tem um ritual: as crianças passeiam na
“floresta” e, quando se aproximam da “toca do lobo”, vão perguntando: “Seu lobo
está?” Ao que este responde: “Tô colocando minha calça, blusa, tomando banho,
passando perfume”, etc.), alguns meninos, na hora que a menina ia fazendo o papel
do “lobo”, começaram a gritar: “Tô colocando a calcinha”. As professoras não
fizeram um comentário sequer, até interromperem a brincadeira dizendo às criança
que era hora de ir para o almoço.
Ainda que não tenham intenção, as professoras acabam reforçando um tipo de
divisão entre meninos e meninas no momento de organizar os grupos, as equipes e os
times. Na maioria das vezes, divide-se a turma dos meninos contra a das meninas.
Não é que isso não possa, às vezes, acontecer, mas é necessário tomar cuidado para
não se tornar a estrutura de separação dos grupos, que desde cedo vão aprendendo
que não devem ficar juntos, quando é exatamente o contrário que acontece quando
estão brincando.
Não é comum a discriminação entre crianças brancas e negras no cotidiano da
creche. Contudo, observei que isso acontece nas formas mais sutis: nas maneiras de
valorizar a beleza das crianças ou na proximidade maior de crianças mais
“bonitinhas”, “limpas” e “fofinhas”. Não é coincidência o fato de uma criança que, de
86

forma visível se diferencia das outras pela sua pele branca, seu cabelo liso, sua
aparência “limpa e saudável”, na “hora do sono”, ser a única a dormir em um colchão
separado e afastado das outras crianças. Nas brincadeiras, as crianças demonstram
gostar de brincar entre si. Parecem gostar de suas diferenças – meninos e meninas,
brancos e negros, inclusive entre crianças de diferentes idades. É mais freqüente
agressões que se referem ao padrão de corpo das crianças: é comum uma criança,
quando quer ofender uma outra, chamá-la de gorda ou feia.
Também observei momentos em que as crianças maiores se mostram
cuidadosas com as menores, tendo comportamentos que surpreendem as professoras,
que, muitas vezes, ficam alheias a alguns perigos que as crianças correm nas
brincadeiras. São curiosas com suas diferenças. Gostam de pegar no cabelo uns dos
outros, e chama atenção quando alguma menina negra usa trancinha. Nesse sentido,
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como enfatiza Sayão (2002, p. 12),

observar constantemente as formas de manifestação das crianças e problematizar com


elas determinadas opções que excluem grupos ou sujeitos é um dos pontos de tensão
em nosso trabalho. De fato, as crianças não reproduzem mecanicamente o mundo do
adulto, mas há uma forte tendência de buscar nele o parâmetro para a expressão de
seus desejos. Isso justifica a necessidade de integrar meninos e meninas nos espaços
educativos voltados para a infância, atribuindo significados para as suas
necessidades. Ter como meta uma política de igualdade social entre homens e
mulheres (entre outras diferenças, sujeitos, individualidades e grupos26) é algo que
precisa ser elaborado desde o nascimento e em todos os tempos e espaços da vida
social, como uma opção político-educacional.

2.6 Educação do corpo / educação dos sentidos: novos-velhos e outros


discursos

• Educação física – A educação física é aqui considerada como prática


pedagógica que, de forma histórica, é produtora e portadora de discursos sobre o
corpo. Na creche pesquisada, não há um tempo demarcado na organização, na rotina
institucional, que inclua a educação física como conhecimento escolar. A expressão
educação física apareceu diante de uma necessidade pontual, para que fosse
introduzida uma nova relação de planejamento do trabalho entre a coordenação e as

26
Grifo meu.
87

professoras. No início do segundo semestre de 2002, ficou definido que as


professoras teriam um tempo de uma hora com a coordenadora pedagógica para
avaliação e planejamento das atividades. Para cada turma haveria um tempo
reservado para esta conversa. Isto seria garantido pela introdução de um novo
componente: a educação física. As atividades seriam desenvolvidas pela professora
Elaine, que ocupa um lugar de “multifunção” na instituição. Pelo seu “jeito com as
crianças” e por não ser considerada “uma professora de sala de aula”, foi escolhida
para ficar com as crianças na hora das reuniões pedagógicas. Ela deveria organizar
brincadeiras, trabalhos manuais, encenações, contar histórias e outras coisas
identificadas como tarefa da educação física e/ou artística.

Eu não sei te dizer se o que acontece na creche é uma educação física. Às vezes, os
meninos pedem para brincar de bola lá fora, fazer um campo, dividir [...] Às vezes, a
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gente brinca de ginástica, só que a gente não dá o nome de educação física. (Elaine)

A educação física aparece relacionada a um discurso recreativo em que são


realizadas brincadeiras sem uma intenção pedagógica clara que vá além da idéia de
ocupação do tempo das crianças, enquanto outras coisas consideradas importantes ou
urgentes são realizadas pelas professoras. Essa idéia de educação física ou de
“atividades recreativas” expressa uma presença espontânea, improvisada e não
constitui conhecimento escolar, bem como se justifica, na forma de um discurso
funcionalista, como suporte ou apêndice das relações escolares propriamente ditas.
No caso específico, só haveria essa “aula” caso a reunião pedagógica
acontecesse, ainda que a professora estivesse com as atividades preparadas e/ou as
crianças estivessem na expectativa desse momento. Diante de problemas
administrativos durante o segundo semestre de 2002, essas reuniões pouco
aconteceram. Foram apenas duas “aulas de educação física” durante todo o semestre,
logo canceladas na rotina da instituição, uma vez que essas reuniões foram suspensas.
A professora Elaine ficou interessada em dar essas aulas e sentiu-se valorizada com a
oportunidade de ter um tempo formalizado para sua relação com as crianças. Ainda
que de forma restrita, representava uma possibilidade de institucionalização desse
conhecimento no projeto pedagógico da creche, mas não foi percebido assim.
88

Outras vezes, observei que a educação física, mesmo que não aparecesse
como conhecimento e com relevância pedagógica, era incluída pelas professoras,
talvez motivadas pela minha presença, em alguns momentos de suas práticas. Nessas
circunstâncias, algumas representações de educação física fizeram emergir
“conteúdos” e “formas” de organização da aula. No corredor lateral da creche, a
professora Rosa propôs a primeira aula de educação física a que assisti. Organizou a
aula a partir do que ela entende por educação física. Colocou as crianças de frente
para ela para fazer o que ela chamou de ginástica. As crianças repetiam os gestos da
professora movimentando braços, pernas e outras partes do corpo. Depois, colocou
um colchão no chão para que as crianças formassem uma fila e fizessem cambalhotas.
Mesmo percebendo que os movimentos que a professora fazia não tinham clareza
pedagógica, as crianças pareciam gostar. Davam gargalhadas e faziam caretas
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engraçadas, imitando a professora.

A gente começa pulando e dançando, e aí vai. Levantam os braços, vamos fazer


abdominal, todos deitam, vamos fazer agachamento. Eles fazem, procuram fazer
semelhante, e aí vai. (Rosa)

Presenciei brincadeiras de apostar corrida em que procuravam ver quem


conseguia chegar primeiro até o outro lado do pátio. Observei uma brincadeira que,
estando distante, pareceu-me um jogo de queimada. Acompanhei a divisão das
equipes, o desenho do campo no corredor e o combinado das regras com as crianças.
Brincaram um pouco e depois foram para o parquinho. Quando estavam descendo,
perguntei a uma das crianças sobre o jogo que estavam fazendo, ao que ela
respondeu: “É jogo de ganhar e de perder”. E acrescentou: “Nós é que ganhamos”.
Dirigi-me à professora e perguntei se estavam fazendo uma brincadeira de queimada,
ao que ela respondeu: “Estou ensinando a elas o jogo de volei”.
Na turma do Maternalzinho, em diferentes momentos – às vezes na sala das
crianças, outras vezes no espaço da brinquedoteca –, assisti às professoras fazendo
massagem nas crianças. Relembro, nesse sentido, as práticas com crianças pequenas
inspiradas nos estudos da professora Helena Antipoff, do final da década de 1930,
que trazia a idéia de “estimulação essencial”, uma “estimulação”, tanto afetiva quanto
89

sensoriomotora, como forma de obter alguns comportamentos esperados das crianças


(KUHLMANN JR., 2000b, p. 16). Como ressalta uma das professoras,

Eu acho que o abraço, o carinho, a massagem corporal, o colo, o toque corporal


facilita muito mais. Porque a partir do momento que a criança tem um carinho, um
afeto, tem um calor humano, ela vai ter uma educação melhor. Ela vai se sobressair
na escola, ela vai aprender tudo com facilidade. (Rosa)

De maneira diferente da pesquisa realizada por Sayão (1996), em Belo


Horizonte, tanto na rede conveniada quanto na rede pública, não há a presença de
professores(as) de educação física, e em poucos casos é ressaltada de forma
sistemática.27 Quando algum tipo de educação física acontece nas creches, expressa
um conjunto de representações que circulam sobre a prática e o papel do professor
“especialista” de educação física, que se enraízam no contexto escolar, social e
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cultural.

A gente procura, procura fazer uma educação física entre aspas, porque a gente não
é propriamente um professor de educação física. Mas acontece. A gente procura
fazer isso acontecer. (Rosa)

A presença da educação física, na maior parte das vezes, revela um discurso


que traz como característica uma espécie de prática “psicológico-terapêutica” do
papel da escola, por meio da qual carências no desenvolvimento e/ou no
comportamento das crianças precisariam ser ajustadas às expectativas da
escolarização. Observei um discurso ancorado em uma idéia de “desenvolvimento
integral” que assume finalidades e objetivos relacionados ao que é considerado como
desenvolvimento físico-motor e se refere a práticas compensatórias, afetivas e
motoras para crianças pobres.

A educação física na creche nem sempre, no meu pensamento, é uma coisa


totalmente corporal, malhando igual o pessoal fica muitas vezes. Eu acho que
desenvolve mais a mente sabe, aproveita um tempo que eles precisam concentrar em
um outro tipo de coisa e esquecem às vezes os problemas que têm em casa. (Elaine)

27
Desde 1999 realiza-se um projeto de ensino e extensão do Curso de Licenciatura em Educação
Física da UFMG, o Estágio Interdisciplinar de Licenciatura, em parceria com o CEI-Pampulha
(SMED/PBH), no qual se busca articular a formação de professores de educação física à formação
continuada de professoras da Educação Infantil, partilhando a elaboração de projetos pedagógicos em
creches comunitárias. Entretanto ainda não foi possível uma partilha sistemática em outras regionais e
com a própria rede.
90

Na creche, a educação física também aparece relacionada a uma noção de


brincadeiras espontâneas, chamadas “recreação”. São atividades, dirigidas ou não
pelas professoras, ressaltadas como momentos prazerosos, nos quais as crianças
podem brincar de forma livre, o que acaba resvalando para outro discurso,
relacionando a brincadeira a um tipo de atividade mais adequado ao que se supõe
como uma natureza infantil (SAYÃO, 1997, p. 595). Como explica a professora,

A gente dá brincadeiras mesmo. Por exemplo, a gente brinca de morto e vivo. De


uma forma de outra eles estão fazendo [...] e acaba sendo uma educação física.
(Rose)

Essas “atividades recreativas” também são valorizadas como suporte de outras


aprendizagens escolares. As brincadeiras, ao serem tomadas como relações
“espontâneas e naturais” das crianças, misturam um discurso que se alterna entre a
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possibilidade de ensinar outros conhecimentos e a preparação das crianças para


momentos em que deverão permanecer em sala de aula fazendo outras atividades que
não supõem a mobilidade das crianças e espera-se uma postura de controle pela
professora. Debortoli, Linhales e Vago (2002, p. 99) assinalam que

Outro processo de fragmentação que toca significativamente a Educação Física diz


respeito aos tempos/espaços escolares. Articulados à fragmentação dos saberes, os
tempos e espaços pedagógicos dessa disciplina têm sido tratados como dispositivos
de compensação de desgastes e insatisfações presentes no cotidiano escolar,
promovendo na maioria das práticas a idéia de um fazer compensatório, pouco ou
nada sistematizado e destituído de intencionalidade. Tempos/espaços dos quais a
escola pode dispor, dispensando-os sempre e como quiser.

Como observam as professoras,

Eu acho que a educação física é um momento de relaxamento, as crianças relaxam.


A partir da educação física, eu noto que as crianças ficam bem mais calmas e
tranqüilas. (Rosa)

Desde o maternal as crianças são obrigadas a ficar sentadinhas, bonitinhas,


arrumadinhas, tudo certinho, até o segundo período. Gostaria que tivesse mais um
rouba-bandeira, uma queimada, umas coisas assim. Sinto falta dessas brincadeiras,
muita falta mesmo. (Fátima)

Assim, quando a educação física aparece – como discurso ou como prática –,


instaura-se um lugar funcional e potencializador do trabalho escolar, ora
reivindicando a canalização de energias contidas, ora evocando um retorno das
91

crianças de forma mais relaxada para a sala de aula. Embora seja realizada de forma
despretensiosa, carrega consigo uma lógica de ajustamento moral das crianças, que
envolve comportamentos, rendimentos e uma disposição corporal esperada:

Na minha sala eu faço educação física quase todo dia. Hora da ginástica. Para
relaxar. Foi minha irmã que me ensinou isso. Na loja que ela trabalha fazem isso.
Todo dia ao meio dia, quase na hora de almoçar, fazem um momento de relaxar.
Todo mundo coloca os braços para cima, deita no chão, tira o sapato, a blusa. Eu
costumo fazer isso. Não que seja uma educação física, mas é uma ginástica.. Depois
que sai dali, sai com coisa que descarregou bastante energia. Porque menino tem
que gastar energia. (Andréa)

Também continua recorrente o discurso de uma educação psicomotora.28 As


teorias que lhe dão sustentação, elaboradas no contexto da década de 1970, em um
quadro desenvolvimentista, reforçam uma postura preparatória de atividades
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escolares futuras, relacionadas à alfabetização e às aprendizagens matemáticas, para a


qual a educação física deveria contribuir com o desenvolvimento de esquemas
corporais, lateralidade, percepção espaço-temporal, dentre outros discursos. Daí
atividades em que as professoras pedem às crianças que desenhem com seus corpos
números e letras, ressaltando objetivos de conhecer partes do corpo, aprender a andar,
correr e saltar, desconsiderando, sobretudo, um rico universo de experiências – tão
motoras quanto culturais – que as crianças trazem para a escola e a educação física:

28
As teorias da psicomotricidade foram ressaltadas e incorporadas à educação física como forma de
trazer respaldo a um discurso científico para a sua presença no contexto escolar. Expressaram-se como
uma forma de instrumentalizar o movimento, o corpo, as relações e as aprendizagens das crianças.
Como assinala Sayão (1997, p. 596), na década de 1970 a psicomotricidade surgiu no Brasil como
possibilidade de “renovação” de uma concepção esportivizante da educação física na escola.
Influenciada inicialmente pelos estudos de Jean Le Boulch (1984), criticava uma concepção dualista e
questionava a exigência de performances motoras das crianças. Fundamentada na psicologia do
desenvolvimento, com bases em aspectos evolutivos (cognitivos, afetivo-emocionais, psicomotores e
sociais), propunha constatar mudanças no comportamento dos indivíduos ao longo de sua existência.
Aperfeiçoou, nesse sentido, métodos e técnicas – testes psicométricos – para avaliar essas mudanças,
que acabaram tomadas como “naturais”. Mesmo no quadro da Psicomotricidade Relacional (Lapierre e
Aucouturier, 1986), esse discurso psicomotor não ajudou a constituir legitimidade à presença da
educação física, nem na constituição de seu objeto de ensino. Se, de um lado, fez um discurso que
propôs valorizar dimensões simbólicas do movimento das crianças e a expressão livre de movimentos,
por outro, o que se pôde observar foi que no cotidiano das escolas resultaram em olhares idealizados
sobre a infância e o desenvolvimento, bem como a falta de sentido e clareza de sua intenção
pedagógica.
92

Educação Física é estar trabalhando o movimento do corpo. É importante que eles


possam estar até conhecendo seu próprio corpo. Acho importante. Mostra uma
parte, diz para que serve, o que é isso, se é lado direito, se é esquerdo. Aí você vai
trabalhando. Tem muitas músicas que falam do corpo e tem várias interpretações
que dão para você envolver brincadeiras. (Rose)

A criança, desde que a gente está trabalhando partes do corpo, ou movimentos do


corpo, a criança está conhecendo o corpo. Vamos bater palma, conhecendo a
mãozinha, vamos bater os pés, vamos rodar, noção de espaço, noção de tudo quando
estamos brincando de movimento; educação do corpo que fala. (Andréa)

As professoras acreditam que o papel da educação física é oferecer


oportunidades de movimento para as crianças de modo a garantir um
desenvolvimento “normal” e ideal, com reflexos na cognição e na afetividade.
Mesmo quando aparecem expressões como contextos sociais e aprendizagens
coletivas, estas são preocupações focalizadas em comportamentos e aquisições
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individuais, desencarnadas da cultura, não estabelecendo quaisquer vínculos com a


produção de significados que emergem de relações concretas, entre as crianças e os
adultos em uma cultura escolar, atravessada e preenchida por signos, marcas, tensões
e contradições sociais.29 Como ressalta uma das professoras,

Confiar no outro, saber dividir a equipe. Eu gostaria muito que essas crianças
pudessem estar aprendendo a conviver em equipe, a trabalhar em equipe. Uma vez
eu fui brincar de rouba-bandeira, eles não estavam interessados em ser uma equipe.
Cada um queria pegar a bandeira. Ficaram lá brigando entre si. Levei esse caso
para a turma e deixei que eles chegassem a uma conclusão. Eu sinto falta do futebol,
da queimada, do rouba-bandeira. Pique esconde a gente até brinca, pare bola,
Maria viola, algumas brincadeiras dessas. (Fátima)

Observei uma aula em que a professora propôs ensinar a brincadeira de pular


corda para as crianças. A professora disse que naquele dia as crianças apenas
passariam por baixo da corda e aprenderiam a saltar de um lado para o outro com
apenas um dos pés. Perguntei-lhe se as crianças não sabiam pular corda, ao que a
professora, de forma objetiva, respondeu: “Ainda não”, acrescentando que na semana

29
É comum a educação física ser instrumentalizada como treino de “habilidades motoras” ou como
desenvolvimento do que é chamado de “capacidades coordenativas”, discursos ligado à “aprendizagem
motora”, no qual a educação física, no contexto escolar, se ocuparia do desenvolvimento físico-motor,
enquanto outros saberes se ocupariam do desenvolvimento cognitivo, principalmente, segundo um
modelo de educação física centrado em uma idéia restrita de esporte, destituído de uma inserção
cultural complexa e contraditória, para a qual requer permanente problematização, reconstrução e
ressignificação das experiências coletivas.
93

anterior ela havia ensinado a descer e subir escada saltando com apenas um dos pés, e
que só depois as crianças aprenderiam novos movimentos.
Mas o que é pular corda como uma experiência cultural? Saber pular corda é
aprender, “de forma mecânica”, uma seqüência de habilidades de complexidade
progressiva? Existe uma maneira certa de pular corda? Maneiras mais prestigiosas,
talvez. Mas o que se quer que as crianças aprendam com as experiências culturais?
Busca-se fazer coisas para saber quem faz melhor ou quem mais se aproxima de um
padrão de desenvolvimento idealizado e esperado? Quanto às diferenças entre as
crianças, suas experiências anteriores, suas maneiras de descobrir o movimento e suas
formas de organização? Quantas maneiras existem de brincar de corda? Quantas
músicas as crianças, os adolescentes e os adultos conhecem e podem partilhar?
Quantos jeitos de experimentar esses movimentos? Quantos desafios individuais e
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coletivos?
Ressalto um sentido histórico da presença do corpo na escola, um processo de
escolarização da educação física, que traz consigo uma marca, ao mesmo tempo,
dualista – relações que dividem corpo e pensamento, dimensões motoras e cognitivas
– e hierarquizada dos seres humanos, colocando o “físico” a serviço do “psíquico”,
expressando ênfase no desenvolvimento de habilidades motoras como pré-requisito,
ou compensação ou suporte de outras aprendizagens (tanto escolares quanto sociais)
desejadas.30
Alternativas de superação dessas visões e possíveis contribuições – tanto para
a legitimação da educação física no contexto escolar quanto para a problematização
das experiências culturais na escola – emergem em um contexto de aproximação
entre as ciências humanas e sociais, refazendo críticas a modelos e padrões lineares
de compreensão dos processos de aprendizagem e desenvolvimento, no sentido de
restaurar em seu interior o lugar histórico, social e cultural dos sujeitos e dos
conhecimentos escolares.
No campo da educação física, a partir da década de 1980, vão emergir críticas
ao até então hegemônico “paradigma da aptidão física e esportiva”, trazendo à cena a
importância de superar uma trajetória marcada por dificuldades de apresentar
94

argumentos que a legitimassem com saberes próprios e uma ação pedagógica singular
(BRACHT, 1992). Nesse sentido, as práticas corporais vêm sendo afirmadas como
conhecimentos culturais construídos historicamente, o que, na educação física, passou
a ser identificado pelo conceito de “Cultura Corporal” (COLETIVO DE AUTORES,
1992, p. 6131), abarcando práticas culturais como as ginásticas, os esportes, as danças,
as brincadeiras, as lutas, entre outras, que passam a ser tomadas como temas
escolarizáveis na educação física, esta compreendida como componente curricular
que precisa ser tratado na especificidade das experiências escolares.
Mesmo considerando que a expressão Cultura Corporal é arbitrária, que
críticas são pertinentes e evidenciam contradições implícitas,32 sua enunciação traz
como fundamento radical a noção de “cultura” – no sentido de desnaturalização da
experiência humana carregada de signos elaborados, partilhados e reconstruídos de
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forma coletiva, nas maneiras mais contraditórias –, rompendo com explicações e


finalidades estritas a um sentido científico-biológico, como a única perspectiva de
legitimação do ensino escolar da educação física. Essa noção é ampliada pela
compreensão do movimentar-se humano como linguagem (BRACHT, 1997, p. 16),
condensada na idéia de “Cultura Corporal de Movimento”.
Contudo, quando o campo de conhecimento da educação física é expresso
como “crítica” – no sentido da ruptura e superação – aos anteriores “modelos”
pedagógicos (instrumentais, técnicos, biológicos), isso acontece em um contexto de
desconstrução do papel social da escola (tomada como aparelho ideológico),
afirmando seu significado na necessidade de apropriação pelas camadas populares
dos instrumentos de uma cultura capitalista como sentido de inserção democrática na

30
Sobre o processo histórico de enraizamento da educação física na cultura escolar, sugiro a leitura de
VAGO (2002). Cultura Escolar, Cultivo de Corpos.
31
Segundo esses autores, “a Educação Física é uma disciplina que trata, pedagogicamente, na escola,
do conhecimento de uma área denominada aqui de cultura corporal. Ela está configurada com temas ou
formas de atividades, particularmente, corporais, como as nomeadas anteriormente: jogo, esporte,
ginástica, dança ou outras, que constituirão seu conteúdo. O estudo desse conhecimento visa apreender
a expressão corporal como linguagem”.
32
Não esgota, nem deve pretender esgotar, as possibilidades de tematização e experiência dos
conhecimentos de que trata a educação física no contexto escolar. De um lado, a noção de cultura
pressupõe o corpo como fundamento de sua materialidade histórica; de outro, reforça uma recorrente
dicotomia corpo-mente, uma vez que deixa implícito que se há uma “cultura corporal”, deve haver
uma cultura “não corporal” (KUNZ, 1994, p. 19).
95

sociedade.33 Essa nova presença escolar da educação física vai ancorar-se em um


conjunto de teorias que a partir do final da década de 1970 e início nos anos de 1980
buscou dar sustentação e instaurar um discurso crítico no Campo Pedagógico, em
especial, a “Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos” (LIBÂNEO, 1985; SAVIANI,
1991).
A legitimidade institucional da escola e de suas práticas esteve marcada na
história pela hegemonia de uma lógica “racional-instrumental”, tanto biológica
quanto política e sociológica. A “crítica”, neste caso, pressupôs um momento
separado e afastado da experiência propriamente dita: um “saber sobre” separado de
um saber que se traduz em um “realizar corporal” (BRACHT, 1997, p. 18), que se
expressa como sabedoria e pode ser narrado, ou seja, apropriado como experiência
viva. Nesse sentido, a síntese possível das “experiências éticas e estéticas” do
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processo de elaboração do conhecimento viriam a posteriori. Dicotomizadas e


hierarquizadas, sua apropriação só poderia ser feita mediante teorias externas à
própria experiência.
O corpo, na história de nossa civilização, foi e tem sido apropriado de forma
separada da reflexão; a memória destituída da história. Corpo e memória, tomados
como instrumento e objeto, acabam deslocados da experiência humana, e a reflexão,
neste caso, revela-se como um momento de pausa que extrai o sujeito da história –
fragmenta sujeito-espaço-tempo (BAKTHIN, 1993, p. 33) –, refazendo um padrão
restrito de racionalidade instaurado na cultura ocidental que afirma o pensamento
lógico-objetivo como fundamento, se não único, pelo menos privilegiado de
compreensão e verdade. Assim, como Daólio (2003, p. 124),

acredito também que a utilização de um conceito mais simbólico de cultura corporal


de movimento propiciará à educação física a capacidade de convivência com a
diversidade de manifestações corporais mais humanas e o reconhecimento das
diferenças a elas inerentes. Isso implica assumir [...] o princípio da alteridade [...],
que pressupõe a consideração do outro a partir de suas diferenças e também levando
em conta a intersubjetividade intrínseca às mediações que acontecem na área de
educação física.

33
COLETIVO DE AUTORES, 1992; BRACHT, 1992 (em especial, o texto “A criança que pratica
esportes respeita as regras do jogo ... Capitalista).
96

• “Música para” comer, “música para” agradecer, “música para” fazer roda
... “música para” quê?

Musicalização é a gente trabalhar música com sons, música com teatro, música com
culinária, [...] isso é importante. Eu fiz, nós fizemos cursos de musicalização. Aí, nós
fizemos a bandinha com sucata. Foi muito legal. Tem aí uns pedacinhos dela até
hoje. E os meninos vão conhecendo os sons, os diferentes sons, os sons que vêm de
fora, os sons que estão aqui dentro. Começam a perceber os sons que tem na vida, no
dia-a-dia. (Andréa)

Assim como a educação física, a música aparece associada a outros objetivos,


tempos e espaços institucionais, assumindo significados que acabam por restringir –
quando não mutila – sua presença. São músicas para arrumar a sala, músicas para
lanchar, músicas para cantar no teatro, músicas de oração, músicas para escovar os
dentes, músicas para lavar as mãos, músicas para aprender matemática, músicas para
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aprender comportamento, etc. Constituem, pois, “saberes-meio” para outros fins.


Por exemplo, mesmo sem que as professoras dessem qualquer indicação,
algumas vezes, as crianças começavam a cantar assim que o lanche chega: “Meu
lanchinho, meu lanchinho, vou comer, vou comer, bem devagarinho, bem
devagarinho, vou comer, vou comer”. Algumas vezes, eu percebia que elas cantavam
para mim, mostrando habilidades e educação. Cantavam sorrindo, antecipando uma
aprovação. As professoras também incorporam essa situação, como no dia em que a
professora Fátima levou as crianças para o almoço. Foi cantando alegre, as crianças
ao seu lado. Brincavam de “Qual é a música?”. As crianças se divertiam e ela não
parecia preocupada se estavam fazendo barulho ou se o refeitório era lugar onde
todos deveriam fazer silêncio. Mas, assim que o almoço foi servido, a professora logo
perguntou: “Quando a gente vai almoçar, o que a gente canta?” As crianças
começaram a cantar: “Ao Senhor agradecemos ...”. Como assinalou uma das
professoras,

Eu acho que a música deixa a criança mais calma. Ela pensa mais, ela imagina, ela
imagina coisas que nem passam pela cabeça da gente o que é. Eu acho que elas
aprendem com a música. (Rosa)

Também observei situações em que as professoras cantavam músicas


convidando as crianças, por exemplo, para fazer uma roda. Enquanto nas músicas que
se restringem a determinados objetivos predomina o controle do que as professoras
97

querem que as crianças façam, nesses outros momentos a professora se envolve com
as crianças e não pede coisas que nem ela acredita que seja necessário fazer. A
melodia e a voz da professora parecem aconchegar as crianças, e cada uma no seu
tempo participa do que a professora propõe ou convida. Todavia, percebi também que
isso vai ficando automático, e todas as vezes que as professoras querem determinadas
formas de organização já associam uma música, descaracterizando a relação que
estão construindo com as crianças. Acabam institucionalizando as músicas,
transformando-as em músicas para fazer alguma coisa:

[...] a música. Primeiro, a gente ouve a música; depois, a gente canta a


música. Na música têm personagens, não têm? O Banana de Pijama, por
exemplo. Então, vamos desenhar o banana de pijama. Aí, eles desenham do
jeito deles. Vamos pintar? Cada um escolhe uma cor que quer pintar. Aí,
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pintam. E assim por diante. (Rosa)

• Festas e teatros – De forma semelhante, percebi que o teatro e as festas não


são apropriados em sua potencialidade para expressão do corpo, dos movimentos e
dos gestos das crianças e das professoras. Observei que são utilizados com finalidades
pontuais e externas às suas possibilidades artísticas e culturais (DESGRANGES,
1998, p. 43). Há na fala das professoras um discurso que se refere a uma idéia de
integração entre as crianças. Em diferentes creches, como relatado em um dos
encontros setorizados promovidos pelo CEI-Barreiro34, reservam a sexta-feira como
“dia de integração”. Esse dia representa um momento mais leve na rotina da creche,
para as crianças e as professoras. São formas de organização que prevêem atividades
mais livres, quando e onde se encontram crianças de diferentes idades, turmas e
professoras. Uma das atividades comuns desse dia é a apresentação teatral das
turmas. Cada professora é responsável por montar uma encenação para apresentar
para as outras turmas.35
É comum as professoras escolherem alguma música para fazer uma
representação. As crianças são incentivadas a aprender a música e a cantá-la com a
professora. Outras vezes, a música é suporte para as crianças fazerem alguns gestos.
98

Também fazem adaptações na letra da música, mesclando uma música conhecida (de
domínio público) com algum tema proposto pela professora. Nestes casos, o que se
observa é um diálogo mínimo com as possibilidades estéticas e culturais, em suas
formas de expressão artística e musical. As crianças fazem gestos mecânicos, não se
apropriam das músicas ou as apreendem descaracterizadas. Músicas que passam de
geração em geração são modificadas para atender a objetivos pontuais, relacionando
temas propostos pelas professoras. As crianças gostam de fazer as apresentações.
Fazem as expressões mais delicadas. Os colegas parecem entretidos. É um momento
de interação e envolvimento importante para as crianças. Todavia, fica a sensação de
que poderia ser mais, no sentido da apropriação e produção cultural pelas crianças.
Neste ponto, reflito sobre o tipo de encenação que, na maior parte das vezes, é
partilhada com as crianças. A escola e os conhecimentos que ela é capaz de relacionar
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são preenchidos com o que já é corrente na vida de crianças e professoras pelos meios
de comunicação. Reforçam programas e apresentadoras de televisão, valorizando
como modelo músicas, brincadeiras e temas que dizem muito pouco àquelas crianças,
quando não as coloca em lugares secundários, em que o que menos importa é a
presença da criança. Escolhem músicas de artistas que circulam na televisão, a
maioria de qualidade duvidosa, mas que são reforçadas às crianças como modelo de
consumo musical ou cultural. Embora eu tenha observado que essas informações são
apropriadas de maneiras diversas, concluí que isso demanda mediações intensas por
parte das professoras, que, muitas vezes, não se mostram mobilizadas a fazê-las.
O teatro também é comum nos dias em que a creche recebe algum visitante
considerado ilustre. Certa vez, as professoras prepararam as crianças para apresentar
um teatro com o tema alimentação para a representante da Secretaria Municipal de
Abastecimento, que estava visitando a creche. A maioria das crianças assistiu ao
teatro. Embora nem todas elas participassem como personagens do teatro, a manhã
inteira foi destinada a esta apresentação. Em sala, as professoras fizeram fantasias e
pinturas de rosto com as crianças que iriam encenar. As outras esperaram em suas

34
Encontro Setorizado organizado pelo CEI-Barreiro, realizado em 26/6/2002, no qual um dos temas
propostos para a reflexão foi “O brincar como desafio da Educação Infantil.
35
Sobre a presença do teatro na escola e as possibilidades de sua tematização, sugiro a leitura de
CARVALHO (1999).
99

salas pela hora do teatro. Brinquedos foram espalhados, e as crianças se viraram com
o que tinham em mãos. Prepararam as crianças para acompanhar, cantando e
dançando músicas tipo “Banana de Pijama”; trocaram a letra de músicas populares
incluindo o tema dos alimentos. Houve, também, coisas interessantes, como a
criação de versos e parlendas declamados pelas crianças.
As crianças ficaram encantadas com o que estava acontecendo. Todavia, era
nítido que a prioridade daquele momento não eram as crianças. Percebia-se um
esvaziamento dos significados que aquele momento adquiria. Observei que esses
momentos eram importantes também para as professoras. Algumas, quando iam
comentar ou ler alguma coisa em público, como as crianças, não o faziam com
tranqüilidade. Outras ficavam tão nervosas que a voz desaparecia, o olhar voltado
para o chão, constrangidas. Como ressalta Desgranges (1999, p. 53), sem ter
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experiências para contar, ficam entregues ao vazio de uma linguagem que nada
acrescenta, superficial e informativa. Apesar de tudo, as crianças adoram partilhar
destes momentos. Todas as oportunidades de colocar uma fantasia, expressar papéis e
representar situações são vividas de forma significativa.
Um exemplo interessante é como a festa junina foi experimentada pelas
crianças. Em muitas creches, é comum a dança de quadrilha ser montada como forma
de apresentação para os pais, com músicas que, muitas vezes, não têm qualquer
relação com o contexto cultural que propõem realizar. É nítida a menorização da
participação das crianças envolvida em algo que é feito para ser mostrado para outras
pessoas. Na creche pesquisada, observei algo que se afastou desse modelo. A
quadrilha foi experimentada no dia-a-dia da creche, e a maioria das crianças quis
participar. A quadrilha ensaiada não trazia uma coreografia forjada. Expressões
tradicionais desse tipo de dança, como “caminho da roça”, “olha a chuva”, “caracol”,
foram ensinadas às crianças. Não havia exigência de um jeito certo de fazer os
passos. As crianças faziam os gestos que davam conta de dançar, e cada uma a seu
modo. O ensaio na escola não parecia um treinamento de algum número para que os
pais assistissem a ele. Percebia-se que era gostoso estar dançando, as crianças e as
professoras envolvidas. No dia da festa, dançaram para os pais. Mas não era um
100

espetáculo. Fizeram o que haviam feito na escola e aprendido de forma significativa:


dançaram e partilharam a festa.

• Televisão – Quanto à televisão na creche, percebo que as crianças são


colocadas em lugar de extrema passividade. A televisão parece ser utilizada como um
objeto capaz de fazer, por ele mesmo, as mediações necessárias à sua apropriação. As
crianças são colocadas defronte ao televisor, como se qualquer coisa pudesse
preencher aquele momento. Várias vezes perguntei às crianças o que elas estavam
assistindo na televisão, e elas diziam que não sabiam. Percebia que estavam diante de
um filme já visto não sei quantas vezes. Em outros momentos, assistiam ao que a
professora levou, mas sequer havia visto antes.
Presenciei com as crianças um filme bíblico de Adão e Eva em que aparecia
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uma visão da mulher como fraca, dependente, que levou Adão a pecar, culpada da
“desgraça” do homem. Tudo vai passando sem uma mediação sequer. Algumas
crianças repetem em voz alta: “Eu que sou o Adão”; “Aquele é igual ao meu pai”;
“Aquela é igual à minha mãe”. Nesses momentos, estabelecem uma permeabilidade a
determinadas representações e valores, sem que se desdobre em mediações
necessárias.
As crianças não assistem a tudo de forma passiva.36 Na maioria das vezes,
fazem outras coisas e sequer olham para a televisão. Outras captam só o que lhes
interessa. Gostam das músicas, cantam e, às vezes, fazem comentários
desconcertantes. Como no dia em que as crianças assistiam a uma fita de vídeo do
filme “Branca de Neve e os Sete Anões”. Um dos garotos comentou: “Tadinha da
Branca de Neve”, ao que uma menina retrucou: “Tadinha de mim”. Entendi com se
ela estivesse dizendo que já não agüentava mais ver aquele filme.
Para as crianças, esses momentos não são agradáveis. Elas são repreendidas e
devem ficar quietas e em silêncio. Ouve-se a todo tempo o psiiiii... característico para
dizer às pessoas que calem a boca. Quando era feito algum comentário, referia-se a
dimensões moralizantes do tipo: “Está vendo que feio que ele fez, que sujeira, que
bagunça”. As próprias crianças repetem essas expressões, e elas mesmas tomam conta

36
Sobre o tema, sugiro a leitura da tese de doutorado de PEREIRA (2003).
101

dos colegas, dizendo umas para as outras: “Vou contar para a tia, viu”. Assim, na
mesa do refeitório, são servidas às crianças coisas que nada servem além de
preencher o tempo ou reforçar conteúdos morais, aproximando as crianças muito
mais de um processo civilizador do que de uma possibilidade de apropriação e
escolha do que vêem na televisão.
As professoras preenchem esse tempo fazendo coisas que não têm relação
com o filme e com a relação proposta. Alheias ao que está acontecendo, conversam
sobre outros assuntos. Por exemplo, enquanto as crianças assistiam a um filme que a
professora escolhera, outra professora começava a puxar um assunto sobre a
necessidade que ela estava tendo de abrir uma conta em um banco e ter talão de
cheques, saindo de cena e abrindo mão de se relacionar com as crianças. Às vezes, o
filme não chega à sua metade, e a professora o interrompe dizendo ser hora de ir para
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o parquinho. Mas nem sempre acompanha as crianças.


O uso da televisão refere-se a mero preenchimento do tempo? A escola é
permeável a tudo que nela chegar? Na creche, às vezes, parece que – como doações,
visitas ou benesses – tudo é bem-vindo. O que chegar se torna digno de
agradecimento. Quando assisti na creche a um vídeo de uma conhecida apresentadora
de televisão, fiquei aterrorizado com as imagens de criança e da própria mulher que
circulam e atravessam a vida daqueles meninos e meninas. São absurdas as coisas que
aparecem com o rótulo de programa infantil. Em um certo quadro do programa,
observei um clipe musical em que eram repetidos movimentos corporais e conteúdos
matemáticos. Sob um pretexto educativo, aparecem crianças em um refrão que traz na
letra uma contagem numérica. Todavia, quem aparece protagonizando a cena é a
própria apresentadora, fazendo caras e bocas. Ao fundo, secundárias, estão uma
criança, um macaco e um cachorro. Um tratamento que menoriza a presença das
crianças, que coloca criança, macaco e cachorro em um mesmo plano, como meros
coadjuvantes, para não dizer objetos. As crianças se divertem. Essa cena acaba
mobilizando uma agitação. As crianças se levantam, ficam pulando e repetindo gestos
e música.
102

• Da privatização do espaço público à privatização dos sujeitos – Cabe


indagar e problematizar a permeabilidade da creche a diferentes aspectos culturais e
institucionais que com ela, mais que relacionam, reivindicam um projeto de formação
que ultrapassa os significados pedagógicos que a Educação Infantil, a duras penas,
vem buscando construir. É como se a creche e as crianças, por sua pretensa carência,
devessem receber, de forma passiva, a tudo que até elas chega e lhes é oferecido.
Certa vez, as funcionárias do posto de saúde – Programa Saúde da Família –
estiveram na creche. Chegaram para pesar e medir as crianças. Não expressaram
qualquer forma carinhosa em relação às crianças. Agiram como se estivessem no
próprio posto de saúde. Algumas crianças choraram de medo. Reproduziram no
espaço escolar uma relação médico-burocrática, usaram a creche como
prolongamento do posto de saúde e seus objetivos. Chamaram as crianças, uma a
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uma, pesaram-nas e fizeram as anotações. Não aproveitaram nada daquela situação


para conversar com as crianças e com as professoras, ou para criar algum outro
significado para aquela ação. O espaço e as crianças vêem-se formalizados por uma
visão das crianças que estão ali para aceitar o que chegar.
Esse tipo de permeabilidade esparrama-se para outras relações e momentos.
Como no dia em que uma família foi à creche para fazer a doação de um lanche para
as crianças. Era dia de São Cosme e São Damião. As relações que as professoras
estavam tendo com as crianças foram interrompidas, todas chamadas para ir ao
refeitório. A coordenadora da creche explicou-me que todo ano aquela família doa
um lanche para as crianças da creche como forma de pagamento de uma promessa.
Sua filha tinha ficado curada de uma doença muito grave. Com todo respeito à família
e à sua atitude, impressiona a confusão das relações que se estabelecem na tensão
entre o público e o privado. A creche comunitária acaba se tornando permeável a
diferentes usos privados que colocam as crianças, sob o discurso de que se quer fazer
o melhor para elas, em uma condição de profunda humilhação, reproduzindo
socialmente uma suposta condição de indigência e carência.
No capítulo seguinte, partilho a narrativa de uma história que, de forma
coletiva, foi e continua sendo experimentada; que precisa ser contada como condição
de sua apropriação e ressignificação. Ressalto, nesse sentido, a importância da
103

atenção às práticas e aos discursos sobre os corpos dos sujeitos que se refletem e se
refratam na organização dos tempos e espaços escolares, e se expressam na
radicalidade de suas relações históricas e culturais. Reconhecer-se nessa história é
condição de sua superação.
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3. Sujeitos, narrativa e discursos: da apropriação de uma
história à possibilidade de sua ressignificação

A história como um texto; texto escrito e inscrito “por” e “nos” sujeitos.


História-texto, no sentido de Benjamin (1987a, 1987b), que reclama ser olhado,
contemplado, revisto, reconstruído. Neste capítulo, enfatizo os temas que emergiram
das entrevistas realizadas com cada uma das professoras e com o grupo de trabalho da
creche. Reafirmo esse processo de pesquisa, fundamentado em Bakhtin (1998, p. 74),
como um palco onde diferentes sujeitos narram uma história vivida, onde tempos e
espaços coincidem e se reforçam.37 Proponho-me a aproximar da escola, dos sujeitos
dessa história, de suas trajetórias e de seus saberes.
Ressalto os diferentes lugares de fala dos sujeitos, bem como suas relações
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hierárquicas e de poder. Neste caso, tanto as entrevistas individuais remeteram os


sujeitos a um espaço-tempo de rememoração de uma história vivida e partilhada em
suas muitas contradições e tensões, quanto a entrevista coletiva constituiu uma
possibilidade de dar ênfase à palavra de cada uma das professoras contextualizada
pelos discursos umas das outras e pelos lugares de onde cada uma fala. Tornaram-se,
nesse sentido, palco de experiências e aprendizados coletivos.38
Professoras e crianças vêem-se envolvidas por um cotidiano repleto de
expectativas, teorias, referenciais, parâmetros dos quais ou não participaram na sua
elaboração ou foram incluídas de forma restrita. Não se reconhecem no que lhes é
passado, mas se vêem obrigadas a executar uma série de orientações. Suas histórias e
saberes, mais que deixados em segundo plano, não são sequer cogitados e não se
revelam. Entre a exigência de teorias e práticas cuja história de formação das
professoras não lhes possibilitou se apropriar e uma trajetória de desgaste nas
instituições de Educação Infantil, em muitos casos, expressam uma prática

37
Amorim (1998: 80), com base em Bakhtin (1998), afirma que o discurso dos sujeitos – objeto
cultural – é objeto polifônico e dialógico. Polifonia pressupõe múltiplas vozes que falam em um
mesmo lugar, o que requer uma síntese dialética das instâncias criadoras do texto. Tal perspectiva
busca, sobretudo, incorporar o lugar da palavra do outro – a alteridade – no interior do texto, sujeitos
que falam tanto quanto o pesquisador, suscitando uma outra inteligibilidade das relações enunciativas.
38
Sobre este tema, sugiro a leitura de FIGUEIREDO, Fabiana et. al. (2003).
105

espontânea e assistemática, que acaba restringindo, quando não desqualifica, suas


relações com as crianças.
Se, por um lado, é relevante questionar os diferentes processos, formas e
conteúdos de formação das professoras, problematizar a expressão do corpo, das
artes, da brincadeira, das concepções de infância, e buscar teorias que possam se
traduzir em outros modelos e práticas pedagógicas (KISHIMOTO, 2000; 2001), por
outro, ao aproximar das professoras da Educação Infantil, mais que apontar conceitos
e concepções para sua prática pedagógica, percebo a riqueza do que as professoras
trazem e expressam, entrelaçando histórias de formação e experiências pedagógicas à
sua condição humana. A elaboração do conhecimento na escola é complexo e
contraditório, marca os corpos, as memórias e as experiências das professoras, o que
Arroyo (2000, p. 241) refere como condição de “humana docência”:
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Faz parte de nosso ofício entender os processos históricos de desenvolvimento e


formação humana, os processos civilizatórios e culturais, o progresso do
conhecimento acumulado, mas também faz parte de nosso ofício entender que esse
movimento não é linear, cumulativo, é um processo truncado pelos brutais
mecanismos de desumanização.39

Afirmo, nesse sentido, o desafio de entender a “densidade dos processos”


experimentados por professoras e crianças na Educação Infantil: as infâncias de
crianças e adultos, suas histórias de precariedade, mas também de resistências.
Ressaltar uma lida cotidiana que se expressa ideológica e envolve crianças e
professoras não se justifica pela conclusão preconceituosa e apressada de que as
práticas pedagógicas expressas no cotidiano das creches apenas se constituem de
forma precária. Talvez, em muitos momentos, se expressem precária, mas não
esgotam o real.

3.1 Sujeitos que tecem uma história que os enreda

São muitos, ricos e distintos os lugares sociais dos quais os sujeitos


participam, narram, se apropriam de suas histórias e partilham da construção da
história da Educação Infantil no município de Belo Horizonte. Nas experiências
106

cotidianas, vê-se tecida uma vida coletiva, uma trajetória que consolida discursos e
significados sociais. São falas, ações, relações, conceitos e preconceitos que, dia-a-
dia, se alimentam, se desconstroem e podem ser reelaborados:

Eu trabalhava na Associação do Bairro. A creche surgiu com as mães para quem era
dado um curso de corte e costura, para que elas tivessem onde deixar os filhos. A
comunidade pediu que tivesse esse tipo de curso, e a associação montou com ajuda
da Secretaria do Trabalho. A demanda era muito grande e não tinha vaga na creche
‘C’40. Então falaram que a gente podia fundar uma creche. (Gilce)

Uma vida partilhada nos bairros vai se constituindo em palco de demandas por
uma situação melhor. Em cada conquista, novos desafios. As primeiras solicitações
da comunidade não se fundam no reconhecimento de direitos. Restringem-se, por
exemplo, a cursos que auxiliam no aprendizado de um ofício e à possibilidade de
alguma geração de renda. Cruzam-se com a necessidade de ter onde e com quem
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deixar as crianças em segurança para que as mulheres possam trabalhar. A demanda


por creche expressa uma realidade comum e coletiva. Como ressalta Campos (1982),
mesmo que não seja, no início, tomada e percebida como direito, mobiliza e articula
os sujeitos, apresentando-se como luta comunitária. Como descreve a coordenadora
da creche,

aí surgiu a anterior presidente da associação. Pegou logo aquela idéia. Ela falou:,
‘Se vocês quiserem, nós vamos fundar uma creche’. Procurou um lugar para alugar
e começou a pegar as crianças das mães no curso, e buscou recurso para ajudar as
pessoas. Muitas famílias hoje contam. Elas falam: ‘Que saudade que eu tenho dela,
ela matou muita fome das pessoas’. Quando ela não podia tirar do próprio dela, ela
pedia ajuda para outras pessoas. A creche passou a pagar um aluguel alto. Ela
recebeu uma proposta de um moço aqui deste bairro, que daria para ela três
cômodos se ela passasse para ele o valor em material de construção. Assim ela fez, e
foi onde a creche funcionou dez anos. (Gilce)

Contudo, há também usos privados e ações pouco explícitas, em um território


onde se faz o que bem se entende. As comunidades confiam em um tipo de liderança
comunitária e expressam-lhe profunda gratidão como referido pela atual

39
Essas questões remontam a reflexões postas por Paulo FREIRE, especialmente, nos textos Educação
como prática de liberdade (1979) e Pedagogia do Oprimido (1987).
40
O nome dessa creche foi omitido, uma vez que traz o nome de sua fundadora. Denúncias de
irregularidade podem ser encontradas nos projetos pedagógicos de ambas as creches, constituindo
documentos elaborados pelas creches e arquivados na Secretaria de Educação da PBH, bem como nos
relatos orais das pessoas que estiveram presentes nessa história.
107

coordenadora D. Gilce, que se expressa de forma ambígua. São sujeitos que ganham
visibilidade por voluntarismo, aparentemente, despretensioso e benevolente, que vai
se enraizando com uma ação de tutela que, ao contrário do que é percebido, absorve
outros ganhos. São lembrados como benfeitores da comunidade, dispostos a ajudar, a
“tirar do seu próprio bolso”. Todavia, além da gratidão da comunidade, recebem o
controle, o poder e a tomada de decisão: não prestam contas das verbas de convênios,
nem das doações arrecadadas, como se pode ver neste depoimento:

Ela já tinha fundado uma outra creche antes no bairro, que tinha problemas que eu
desconheço. Ela entregou a direção da creche. Então eu fui convidada por algumas
pessoas da Associação para tomar conta da creche, porque a creche já estava
tomando um tamanho muito grande e estavam aparecendo muitas dificuldades. Eles
me falaram: ‘Você chega lá e corre atrás para ajudar, se você não for a creche vai
acabar mesmo”. Eu fiquei com aquele pesar. Eu falei: ‘Eu vou lá para ver’. E fui.
Conversei com a representante da AMAS. Ela falou: ‘Olha, essa creche está difícil
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de funcionar porque a D. C. teve problemas com a prestação de conta’. Enquanto ela


estiver na frente da documentação, você não vai conseguir nada. (Gilce)

Às famílias, às crianças e às pessoas que trabalham na creche resta um


atendimento precário, conformado no discurso de que se está fazendo o melhor pelas
crianças. Quando as irregularidades não têm mais como ser escondidas, quem vinha à
frente da instituição sai de cena (às vezes, vai fundar uma outra creche) e deixa para
as pessoas da comunidade, que até então eram tratadas como incompetentes ou atores
secundários, assumir essa tensa história. Resta a percepção de que isso se mostra
como uma oportunidade de aprendizagens e amadurecimentos. Como ressaltado pela
atual coordenadora administrativa, “a creche ganhou novo fôlego” – ainda que não
tenha superado uma história de tutela e benevolência – e outra legitimidade na
aproximação tanto do Poder Público quanto de outros setores privados e não-
governamentais. Abrem-se, nesse sentido, outros parâmetros para o atendimento das
crianças e das famílias, requerendo o envolvimento dos sujeitos na conquista daquilo
que está demandando:

Eu fiquei dois anos e meio atrás dessa construção, acompanhando, fazendo mutirão
com o povo da comunidade. Toda mão-de-obra pesada da creche foi feita com
mutirão. Foi uma luta, mas uma luta, assim, que agora a gente está tendo retorno. O
espaço que tem hoje para os meninos [...] a comunidade toda se envolveu para
ajudar. Tem funcionário que está aqui desde que a creche foi fundada. (Gilce)
108

As histórias das professoras e suas trajetórias nas creches, também, referem-se


a lutas e conquistas, e trazem marcas. É verdade que nem sempre isso reverte na
consolidação de suas identidades, conhecimentos e competências, mas lhes confere
legitimidade em suas narrativas desta história e a possibilidade de se reconhecerem
parte de sua autoria (ARENDT, 1997, p. 191). Neste caso, tocar nas histórias e
discursos apresenta-se como possibilidade de apropriação de experiências e saberes,
bem como da própria história da Educação Infantil. São trajetórias que nem sempre se
expressam em avanços transparentes, mas precisam ser contadas.

• Histórias de precariedades, de sonhos e de conquistas

A creche começou a funcionar no finalzinho de 79 e foi até 86, 87. Não era bem um
atendimento. Era mais as crianças das mães que faziam os cursos. Elas revezavam.
Quem fazia o curso de manhã ficava com as crianças à tarde. As mães que tinham
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feito o curso arrumavam emprego e já não podiam ir para a creche para trabalhar
como voluntárias. As meninas passaram a tomar conta dos meninos, meninas assim
de treze anos, filhas das pessoas que eram alunas. (Gilce)

O atendimento à reivindicação de um espaço para o funcionamento da creche


reflete toda a precariedade na qual está instalada a vida dessas pessoas. As mães
precisavam da creche para fazer um curso profissionalizante. Para fazer o curso,
precisavam, de forma voluntária, tomar conta das crianças de outras mães em outro
horário. Quando terminavam o curso, não podiam mais ficar com as crianças. Diante
dessa situação, outras soluções, mais precárias ainda, vão sendo incorporadas. Como
as mães não podiam mais ficar com as crianças, passaram a indicar suas filhas,
meninas de 12, 13 anos, para assumir a responsabilidade pelos cuidados das crianças.
Nesse momento, a creche, além de não ser reconhecida como um direito das crianças
e das mães, se instala, de forma contraditória, incluindo crianças e adolescentes na
sua sustentação.
A garantia de alimentação e de alguém que tomasse conta das crianças se
expressava como um atendimento concreto de uma necessidade, e por isso já era
considerado uma conquista (VEIGA, 2001, p. 82). Daí, até a compreensão da
Educação Infantil como um direito das crianças, um tempo e espaço de formação
humana e expressão de uma dignidade plena das crianças, das famílias e das próprias
professoras estava longe de se constituir como discurso. A partir dos anos de 1980,
109

contextualizadas em torno da Constituição de 1988, as lutas por creches se inserem


em um movimento por direitos. A educação das crianças pequenas vai deixando de
ser tomada como uma questão privada para adquirir caráter público, de
responsabilidade social (CAMPOS, 1999, p. 124).

Tinha boa alimentação, graças a Deus. A gente preocupava muito com alimentação,
era muito cuidadoso. A gente dava alimentação para os meninos que não tinham. A
gente não pensava ainda na parte pedagógica; estava mais preocupada se o menino
ia ter o banho, comida, carinho e cuidado ali na hora certa. De certa forma, a gente
estava fazendo também a parte pedagógica, só que não tinha conhecimento: ensinar
as crianças a comer, a cuidar do seu corpo, a cuidar da higiene e dele mesmo. Você
está educando, é uma prática educativa. A gente fazia essa prática educativa na hora
dos cuidados, na hora do banho, dos cuidados higiênicos. Falava para a criança: o
que ele estava lavando era o ouvido, a cabeça. Isso a gente fazia. (Gilce)

Como ressaltado, o trabalho voluntário é uma marca da história das creches.


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Durante um tempo significativo, tomar conta das crianças constituiu um mecanismo


de trocas mútuas para garantia de questões básicas. Faziam um trabalho que também
era tomado como “voluntário”, que envolvia tomar conta, dar banho e preparar a
alimentação (SILVA, 2002, p. 69). Assim como as mães que faziam o curso tomavam
conta das crianças para outras mães em outros horários, ou submetiam suas filhas,
também crianças, a tomarem conta de outras crianças, como já faziam no cuidado de
suas casas e irmãos, emergem aquelas que vão ser chamadas de crecheiras, que
cuidam das crianças em troca de um pagamento mínimo, ou de mantimentos, ou de
roupas:

Eu vim não para trabalhar, mas minha tia falou que estava precisando de uma
pessoa lá na creche onde eu trabalho. Aí que eu fui trabalhar lá. Era voluntário. No
final de semana dava alguma coisa para a gente, o que tinha lá na creche. (Cíntia)

Não é à toa que as creches vão sendo denominadas de lar. Do ponto de vista
tanto das demandas pelo atendimento das crianças quanto das práticas que as
professoras davam conta de desenvolver nas suas relações com as crianças, este
contexto não possibilitava nem a quem reivindicava nem às pessoas que realizavam o
atendimento a percepção e a elaboração de uma identidade e de uma “cultura
profissional” (NÓVOA, 1995). Neste caso, a experiência como mãe, ao menos,
110

expressava saberes e constituía critérios mínimos de atendimento relacionados aos


cuidados com as crianças (MICARELLO, 2003, p. 4). Ressalta uma das professoras:

Eu trabalhava no berçário, ajudava a cozinhar, ajudava a dar banho nos meninos.


Não tinha salário, porque não tinha convênio nenhum. O trabalho era voluntário,
mantido pelo Corte e Costura. Na medida que arrecadava, a Dona C. dividia com a
gente no final de semana. Dava dois ou três reais para cada uma. De vez em quando,
no final de semana, a gente ganhava verdura. Mantimento quase não tinha. Nisso
fomos ficando, até que um dia a prefeitura aprovou o convênio. Liberou o alvará e
nós passamos a receber os salários. Mas não tinha férias, não tinha hora extra, não
tinha nada. (Cíntia)

O espaço físico das instituições também expressa um retrato vivo desse


contexto marcado por tantas limitações. Muitas creches começaram a funcionar nos
espaços possíveis que conseguiam. São casas pequenas, sem condições sequer de
habitação. As crianças não tinham outro lugar para ficar além de suas pequenas salas.
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Ao mesmo tempo que atendiam as crianças, faziam as melhorias possíveis e quando


possível. A creche pesquisada, anterior ao seu atual prédio, atravessou uma década
inteira realizando um tipo de atendimento sem oferecer condições mínimas de
desenvolvimento de um trabalho que fosse mais que o de tomar conta das crianças:

Foi fazer rede de esgoto. Nós ficamos na terra, com aqueles buracos enormes no
chão. Os meninos caíam nos buracos. A creche não tinha muro. Nós ficávamos na
sala o dia todo com os meninos porque não podia sair, não tinha terreiro nem nada.
Saía da sala e dava na rua. O banheiro não tinha chuveiro, tinha que jogar água. A
sala era pequenininha demais. Só tinha um banheiro. O que era maior um pouquinho
era só o berçário. Mas aí tinha oito berços que ocupavam a sala toda. Era daqueles
berços de hospital, uns berços de ferro, enormes. (Cíntia)

Somente aos poucos as creches comunitárias vão experimentando outras


conquistas, como terrenos cedidos pela prefeitura, materiais de construção
conseguidos com a Associação Municipal de Assistência Social (AMAS) e mutirões
da comunidade para a construção de novas instalações. Estabelece-se um novo
contexto, que abre um cenário que redimensiona a existência das creches, entrando
em cena a possibilidade de percebê-la, cada vez mais, ainda que de forma ambígua,
como um lugar tanto de cuidado como de educação das crianças. Nesse sentido,
outras perspectivas vão emergindo para a significação do profissional e do
atendimento às crianças, tendo como referência, como ressaltam Mantovani e Perani
111

(1999, p. 91), perspectivas socializantes e educativas. Como descreve uma das


professoras,

só melhorou depois que passou para cá. Não tem nem jeito de falar. Caí no céu.
Para começar, lá as crianças não tinham brinquedo, não tinham onde correr. Lá a
gente ficava só dentro de sala porque não tinha onde ir. Aqui a gente não fica na
sala. Lá, só ficava na sala mesmo. Aqui tem parquinho, tem brinquedo, tem
brinquedoteca, tem brinquedo que a gente leva lá para fora, coloca lá para eles
brincarem. E também a parte pedagógica que não tinha lá, que agora tem, porque
era considerado, igual sempre falam aqui, que era só o cuidar e agora não pode ser
mais isso [...] O mais importante agora é que a criança está em desenvolvimento, e é
importantíssimo você começar desde o início com a criança. (Cíntia)

Se a história das instituições comunitárias de atendimento às crianças de 0 a 6


anos é de precariedades, e isso é verdade, essa mesma história também se refrata nas
muitas lutas e conquistas comunitárias, que, por mais contraditórias, mobilizam
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sonhos, potencializam a reconstrução de indentidades e a visibilidades das crianças,


de suas famílias e dos profissionais que estão inseridos nessa história.

Tem muita coisa que a gente tem vontade de chegar lá com essas crianças. Muita
coisa boa para frente que a gente vai tentar pegar para estar passando para essas
crianças. Porque é agora que eles precisam de estar aprendendo. Lá era criança
carente mesmo. Aquele olhar triste que a gente olhava e não tinha como você estar
ajudando aquelas crianças. Aqui não, graças a Deus. A criança é caidinha aqui, a
gente tem mais o “com quê” e “como fazer” para que aquela criança se desenvolva
e vá para frente. O olhar aqui é totalmente diferente do que era antes. Lá,
trabalhava, trabalhava e ficava em vão. Aqui não, você está vendo que está havendo
crescimento naquilo que está fazendo. (Cíntia)

Nesse sentido, a creche “tornar-se educação”, como as professoras dizem, não


constitui um discurso vazio. Ainda que não compreendam a totalidade do significado
de educar crianças pequenas – bem como o que precisa ser feito para concretizar esse
projeto –, ao incluir o sentido da educação instauram um novo sentimento de direito e
percebem que há algo que pode ser feito para além das condições históricas instaladas
na vida das crianças, de suas famílias, das profissionais e da própria instituição.
112

3.2 Concepções, papéis e lugares sociais em uma creche comunitária

A creche, eu acho que é um lar, uma casa, um lugar que dá vida nova, ... que dá
procedência para as crianças que entram aqui. Eu acho que elas na rua, elas não
teriam o que elas têm aqui. Porque aqui elas têm alimentação, educação, têm
carinho, tudo que eu acho que elas mereciam e merecem. O que eu mais gosto é o
prazer enorme que eu tenho, de chegar aqui na creche e os meninos virem com um
abraço. Isso é muito grande,41 porque eu sei que, não todas, mas algumas não têm
um carinho que merece dos pais. (Rosa)

Nas falas das professoras, a creche expressa papéis que guardam estreita
relação com as próprias concepções e visões que trazem das crianças, das famílias e
da comunidade, bem como a expectativa social que conseguem vislumbrar. Mesmo
hoje, a creche aparece como um lar e como uma segunda casa para as crianças, como
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também para as próprias professoras. A “idéia de lar” amplifica ainda mais uma
dualidade que existe entre a educação que as crianças têm ou deveriam ter nas suas
famílias e o papel que a creche pode assumir neste contexto. A creche absorve
dimensões de uma educação primária, do aprendizado das primeiras relações, onde se
misturam afetos, valores e cuidados fundamentais: professoras e crianças
condicionam e se condicionam nessa relação familiar ambígua. Tomada como lar,
reforça o papel social das professoras como aquelas que estão ali para suprir
necessidades e carências das crianças. Reforçam a idéia de que carinho, brinquedo e
alimentação constituem o centro das ações42 da creche:

Aqui é uma segunda casa. Porque, vindo para a creche, elas não têm o brinquedo
delas aqui, mas elas podem brincar, são delas, elas só não podem levar para casa
[...]. Até o carinho que o pai e a mãe não podem dar em casa elas encontram aqui
nos educadores, na diretora, na pedagoga, na cozinheira, na faxineira, todo esse
papel. (Rosa)

A “idéia de carinho” aparece como uma das primeiras necessidades a suprir, e


com isso reforça uma percepção das famílias como incapazes e incompetentes para
partilhar uma vida afetiva com seus filhos. O carinho e o amor são ressaltados como

41
Embora seja contraditório e ambíguo, é bonito ouvir a professora dizer isso.
42
Ressalto no texto de Kuhlmann Jr. (2000b, p. 13) sua citação da Creche Central do Patronado de
Menores, entidade criada pela iniciativa de juristas e senhoras da sociedade fluminense, em 1908, no
Rio de Janeiro, cujo regulamento se baseava em uma idéia de “suavidade e carinho a serviço das regras
científicas”.
113

contraponto de uma visão de violência e brutalidade que estaria instalada no cotidiano


das relações familiares e comunitárias das criança. Transparece que na falta ou
ausência da creche o que as crianças teriam para viver seria apenas a agressividade, a
desesperança e os perigos de um universo social e cultural precário de afeto e valores
morais:

Eu acho muito importante essa creche existir aqui nesse bairro, justamente porque é
uma creche que acolhe a criança com muito carinho. Eu percebo isso e sempre falo
com as meninas: ‘Vamos receber com todo carinho e com todo amor que a gente
tem, para que amanhã a gente não chore junto com a família a perda desses
meninos. Que cada um trilhe caminhos diferentes, cada um trilhe seu caminho, mas
que a gente tenha contribuído para que eles trilhem bons caminhos e que eles
tenham aqui na creche um lugar em que eles se sintam bem’. (Gilce)

Decorrente dessa visão, outro discurso aparece na fala das professoras: a


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importância da creche no sentido de “tirar as crianças da rua” e da marginalidade.


Dessa perspectiva, as crianças aparecem na fala das professoras como carentes de
carinho e da presença dos pais, abandonadas à sua própria sorte nas ruas, onde a única
coisa que teriam a aprender seriam os vícios e a marginalidade:

Eu espero que sejam bem felizes, que tenham uma profissão, que não caiam nesse
mundo aí. Teve um aqui na creche que já é traficante hoje. Sabe, eu tenho pena deles
depois que saem daqui. Quando saem daqui, a gente não tem mais contato. Se
alguém vai cuidar, porque minha mãe sempre gosta de carregar nas costas a família
e os meninos. Mas eu espero tudo de bom para eles. Espero que lembrem de mim
como uma fase boa na vida deles. (Andréa)

Eu acho que a creche aqui é muito importante porque se elas não estivessem aqui
elas estariam na rua. Talvez não teriam alimentação, talvez estariam se
marginalizando. (Rosa)

Nos diferentes discursos, percebo a importância de que a creche seja


reconhecida pelas crianças como um lugar agradável, algo próximo a um idéia de
“bem-estar social”. Sem desconsiderar a emergência de um olhar que expressa a
sensibilidade da professora para o tempo da infância, é preciso chamar atenção para
uma fragmentação entre o tempo de vida das crianças na creche e o tempo de vida das
crianças com seus pais, marcado pela idéia de desestruturação, desorganização,
incapacidade e dependência, remetendo a creche para um lugar de importância
anterior e superior às relações das crianças com sua família e comunidade. A creche e
114

seus profissionais assumem um papel que denominam “resgate da infância”. Essa


noção revela uma postura redentora que coloca a creche como o único lugar onde a
infância dessas crianças pode ser vivida de maneira socialmente esperada e saudável:
a instituição creche tomada como lar substituto, estigmatiza a responsabilidade de
proteção contra supostos perigos da rua e se torna a única referência para relações
sadias e aceitas, afastando-se de um sentido público da educação como direito. As
brincadeiras da escola, contrapondo-se às relações comunitárias, seriam as únicas
possibilidades de fantasia, infância e educação.

Aqui eu acho que estamos resgatando um pouquinho a infância deles. Porque eles
estão brincando e estão fantasiando. Acho que a creche contribui, sim, só por ter
esse espaço aqui e a gente poder estar trabalhando com eles, estar tirando elas da
rua mesmo. Que às vezes a mãe trabalha, a criança fica na tia, ou com outra pessoa,
às vezes fica até na rua brincando. Então, a gente está trazendo os meninos para cá.
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Acho que a creche contribui com isso. (Rose)

É ainda recorrente, na fala das professoras, uma concepção do papel social da


creche comunitária que traz como discurso sua importância como “suporte para que
as mães possam trabalhar”. Sendo assim, mesmo assumindo um lugar de superação
da imagem de abandono dos filhos que, em suas diferentes histórias, justificou a
relação entre as creches e as famílias, essas instituições e seus profissionais reforçam
um discurso que coloca as famílias em lugar de dependência, tornando este um dos
principais argumentos que lhe dão legitimidade social:

Eu acho que se as mães não tivessem a creche para apoiá-las, para cuidar dos filhos
delas, como elas iriam trabalhar, como iriam ganhar o pão de cada dia? Eu acho
que a creche para a família é muito importante. (Rosa)

Essa imagem se reflete na importância que as professoras atribuem ao


significado da creche, remetendo-as à sua própria trajetória na Educação Infantil.
Trabalhar na creche, para algumas professoras, repete a história de outras mães.
Trabalhar na creche, como no caso da professora Cíntia, significou poder trabalhar
sem que fosse preciso se distanciar de seu filho. Contudo, mesmo condescendentes
com as mães que precisam das creches para poder trabalhar, o discurso das
professoras reforça uma imagem de abandono das crianças. Nesse sentido, observo
um distanciamento de sua importância social sob o ponto de vista da atuação
115

profissional. Ao desqualificar as famílias, algumas professoras desqualificam a si


mesmas. Transparece uma desconfiança do trabalho e da presença da criança na
creche, ou seja, do próprio trabalho que realizam. Isso se expressa de modo distinto
quando as professoras são capazes de reconhecer os saberes de sua atuação e afirmam
a importância da creche para o desenvolvimento das crianças:

A creche, no início, possibilitou meu filho ter onde ficar e de estar comigo. Porque é
muito difícil você estar com a criança pequena, igual a gente vê agora, tem mãe que
a gente morre de dó, ter que deixar a criança pequena na creche para estar saindo.
O coração corta de dó de ter que fazer isso, mas infelizmente precisa trabalhar.
Porque é muito difícil ter que deixar uma criança pequena o dia todo fora da mãe,
mesmo que você confie que estão cuidando direitinho. Eu fiquei o tempo todo ali com
ele. Saiu da creche para ir para o grupo. Ficou na minha sala, depois foi para outra
sala, mas eu estava ali mesmo. (Cíntia)

Mas a creche também é reconhecida como um lugar onde foi possível a


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apropriação de saberes e aparece como lugar de intervenção profissional,


introduzindo uma relação distinta daquela realizada pela família não apenas como
suplência, mas como especificidade pedagógica. As professoras, nesse contexto, são
capazes de perceber e ressaltar que possuem coisas a ensinar para as crianças, para
além de cuidados primários, que também fazem parte do cotidiano da creche:

Primeiro, porque peguei uma prática como professora. Eu tinha prática de ficar só
cuidando. Nunca ensinei nada. Ensinava a comer, a escovar os dentes, a falar. Mas
nunca de ensinar mesmo. Ensinar cores, dar brinquedos. (Andréa)

Para mim, a creche é mais que importante, porque eu acho que aqui eu aprendi
muita coisa, [...] conquistei uma nova família aqui, adquiri novos amigos e acho que
estou crescendo a partir daqui. Foi uma segunda casa que eu encontrei. (Rosa)

Algumas professoras, quando já construíram uma clareza maior de seu papel


profissional, tanto pela sua formação quanto pela experiência em outras instituições,
conseguem construir uma percepção mais ampliada do papel social da creche. Com
freqüência, trazem questões que se referem à tensão dos papéis de cuidado e
educação assumidos pela creche, abrindo caminho para uma compreensão coletiva da
instituição de Educação Infantil como espaço educativo e intervenção profissional
específica. Como assinala a professora,
116

a partir do momento que a criança está na sua responsabilidade, você é responsável


por ela, você tem que cuidar dela. Para mim, o cuidar e o educar é uma visão única.
Não tem jeito de você educar sem cuidar. Não estou assumindo o papel de ninguém,
nem de mãe, nem de pai, mas de educadora. Lógico que eu não vou chegar para a
criança e fazer coisas que os pais teriam que fazer, mas uma coisa que seria parte da
escola eu sou responsável, sim. (Fátima)

Na entrevista coletiva, por exemplo, as falas das professoras e da


coordenadora, quando conversam sobre a instituição comunitária de Educação
Infantil, sua importância e papel social, se deslocam para outro lugar de análise, mais
distanciado e interpretativo. Falam menos de suas próprias referências e necessidades,
constroem um olhar mais coletivo sobre a comunidade, procurando apresentar uma
necessidade de intervenção específica da instituição. Ainda que tragam uma visão
negativa da comunidade e do contexto das crianças que demandam a creche,
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assumem a responsabilidade de uma intervenção social capaz de promover uma


construção positiva da identidade dos sujeitos. Além do cuidado e da educação, o
trabalho da creche se expressa como processo de conquista de dignidade:

A família, às vezes, não tem condições de dar o banho, igual essas que moram
debaixo da lona, que eu cheguei a visitar. Eu falo sempre com as meninas: ‘Tem
coisa que tem que ser cobrada e tem coisas que a gente tem que ajudar eles
conseguir, que não adianta você cobrar. Você vai trazer um problema mais sério
para a pessoa’. (Gilce) 43

Tem a preocupação de como estar ajudando. Conversei com ela a respeito da auto-
estima, porque ela abaixava a do filho quando falava que ele era feio. Ele um dia
falou comigo: ‘Minha mãe falou que eu sou feio. – ‘Mas você não é feio. Você é
muito bonito’. Falei com ele. E eu tenho um problema sério com esse negócio, eu
fui considerada a pessoa mais feia muito tempo da minha vida. Eu senti que esse
menino ia ter o mesmo problema que eu tive. (Gilce)

A entrevista coletiva, como enfatizado por Kramer (2003c, p. 67),


potencializou a narrativa de uma história comum aos diferentes sujeitos. As
identidades das crianças e suas famílias entrecruzam-se com as identidades das
próprias professoras. Sair de um lugar de exclusão e indignidade é um projeto, no
qual todos se percebem e a valorização do outro se expressa como construção

43
As entrevistas coletivas estarão ressaltadas com negrito para diferenciá-las das falas das professoras
nas entrevistas individuais.
117

coletiva, abrindo a possibilidade de novos protagonismos e outra maneira de


participação na partilha e construção da história.

A criança não valoriza o seu nome.44 Então, às vezes, o menino tem um nome e é
chamado de outro. Porque quem pôs o nome na criança foi a avó e não a mãe, que
não gosta do nome. Então é a identidade da criança, o nome dela, que ela deveria
gostar, contar a história. Todo mundo tem uma história do nome. É a sua história
que você começa a carregar, e as crianças então não valorizam isso, não sabem
nem a data do aniversário. Quando você conversa, você vai percebendo
determinadas coisas que eu acho que seriam importantes no nosso papel de
educação, de trabalhar a identidade da criança. (Valéria)

Como ressalta Bakhtin (1992, p. 278),

tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha
consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros [...], e me é dado com a
entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim,
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originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que
servirão à formação original da representação que terei de mim mesmo.

• Uma experiência de relação entre as profissionais de creche e as famílias


– Nas falas das professoras, há o reconhecimento do direito de reivindicação das
famílias. Reforçam que a creche deve estar aberta a todas as solicitações, ainda que
não tenham condições de receber um número maior de crianças. Como não há
número suficiente de creches para atender a todas as demandas, muitas vezes, o
Conselho Tutelar45 comunica à creche que ela terá de matricular a criança. Percebo na
fala das professoras a incorporação de um sentimento de proteção coletiva que
envolve crianças e famílias. Dizer que há um sentimento comunitário e a
sensibilidade de direitos coletivos não significa que resultará em um processo de
organização para a conquista de novos direitos.

44
É interessante perceber a importância do trabalho realizado nas Escolas Municipais de Belo
Horizonte em 1994, pelo professor Francisco Marques Rocha – em parceria entre a PBH a Associação
Movimento Popular Paulo Englert (AMEPPE) desenvolvendo o projeto “A palavra é sua”,
divulgando e tematizando o Estatuto da Criança e do Adolescente. A partir deste trabalho, o “contar a
história do nome” foi uma relação e proposta que passou a circular em diferentes escolas por muitas
professoras.
45
A demanda por creches é bem maior que a possibilidade de atendimento na rede conveniada e/ou
pública. Quando as famílias recorrem ao Conselho Tutelar, este exige que o direito da criança ao
atendimento seja respeitado de forma imediata. Como em muitos bairros ou próximo à residência das
famílias não há outra creche, havendo vaga ou não, as instituições se vêem obrigadas a aceitar a
matrícula das crianças
118

Tem uma pessoa do Conselho Tutelar que fala que todas as pessoas que procuram o
Conselho falam muito bem da creche pela forma de atendimento com a família que
chega. Independente de ter vaga ou não, eu não deixo de conversar com a família.
Eu mando entrar, sentar, converso, explico para ela porque não tem a vaga. Às
vezes, vem com vários problemas. Eu chamo a família para conversar, pergunto o
que está acontecendo e procuro ajudar. Encaminho para algum lugar que possa
estar ajudando ou eu mesmo vou procurar ajuda para aquela pessoa. Eu acabo
carregando os problemas das pessoas para mim. Eu quero ajudar e ver a pessoa ser
ajudada. (Gilce)

Esse sentimento, também, está circunscrito no contexto de imagens que


reforçam uma visibilidade das famílias e das crianças, em diferentes momentos,
tomadas como incompetentes para gerir a própria vida (TIRIBA, 2001, p. 72). O
acolhimento das famílias acaba reforçando um sentido assistencial e tutelar no qual as
instituições comunitárias de Educação Infantil se constituíram e onde as famílias e as
crianças vão sendo envolvidas:
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Essa família que a gente atende, de uma menina que eu peguei com desnutrição,
recomendada pela médica do centro de saúde para não ficar com ela porque a mãe
era muito problemática. Eu falei: ‘Se ela morrer, vai morrer de barriga cheia. Com
fome ela não vai morrer’. Eu não consigo me desvincular dela. Acompanhei na
creche e estou acompanhando na escola. A mãe não consegue emprego, a
alimentação é toda ganhada. Eu ganho para ela todo mês 30 reais desde que a
menina estava aqui. Vou na casa dela e vejo em que estão mais necessitadas, se é
leite, se é feijão, se é arroz. O que tem menos eu compro. Eu fico buscando caminhos
para que seja mais fácil para eles e, amanhã, não ter nenhum sentimento ruim da
creche. (Gilce)

Embora não seja a maioria, algumas famílias procuram a creche assumindo


esse lugar social de carência e dependência. A maioria das creches comunitárias se
alimentou de um sentimento de “filantropia”,46 materializado como dependência,
benevolência, gratidão, piedade, ganhos materiais e simbólicos. Nesse sentido, muitas
pessoas de condição social pobre absorvem uma conduta que as coloca em um lugar
de miséria, lugar de quem espera e cobra do outro suas doações. Constitui, assim, um
conjunto de relações que agrega ganhos secundários difíceis de romper na direção da
consolidação de políticas de direito:

46
O termo filantropia foi aqui tomado, em sentido restrito, como sinônimo de “caridade” para com os
mais pobres.
119

Nós nunca tivemos dificuldade de conversar, de chamar a comunidade aqui para


dentro, por causa da minha mãe. Porque ela é muito conhecida por aqui. E o nome
dela tem um respeito muito grande. Porque ela é da comunidade desde aquela época
que tinha o tíquete de leite, não sei se você lembra, quando dava tíquete, em troca de
leite. Minha mãe, desde essa época que o pessoal tem um certo carinho por ela, um
certo respeito. (Andréa)

Essas relações transformam-se em uma espécie de diplomacia comunitária


entre as profissionais das creches e as famílias, e também como forma de construção
cotidiana dos significados de uma instituição comunitária que, de maneira ambígua,
atende famílias, crianças e comunidade. As professoras lidam com as famílias do jeito
que podem e conhecem. Um jogo comunitário que busca construir a relação possível,
o que nem sempre é simples. São representações e expectativas mútuas que se
expressam em meio a contradições e tensões, como forma de estabelecer uma
aproximação entre a família e a creche. Tais relações se elaboram como parte de um
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processo coletivo de significação de papéis sociais que vão sendo atribuídos a esse
tipo de instituição:

A creche tenta não entrar em atrito com a família. Se chama para conversar, é mais
amigavelmente, para não ter tipo uma guerra entre comunidade e creche. Sempre
tem uma ou outra que é muito brigona. Às vezes, chega de uma creche que não foi
tratada bem. Quando elas chegam aqui dentro, elas mesmas falam: ‘Achei que aqui
ia ser uma chatice, porque toda creche que eu vou sou maltratada’. Chegam aqui,
elas têm outra visão. Tem umas que já chegam com o nariz em pé, com ar de briga.
Quando chega aqui dentro e a gente vai conversar, vê que não é assim que acontece
as coisas. (Andréa)

O que as creche esperam dos pais e das mães das crianças? O que as famílias
esperam da creche? A relação com as famílias é tensa. No caso das creches
comunitárias, o distanciamento entre a creche e as famílias exacerba-se em um
cenário no qual a visibilidade das famílias das crianças é marcada pela imagem de
negligência em relação aos filhos e filhas. Como assinala Tiriba (2001, p. 75), na
maior parte das vezes, ora reforçam essa incompetência e dependência dos pais e
mães das crianças, ora cobram das famílias coisas muito difíceis, para não dizer
impossíveis, de ser cumpridas. As reclamações da creche em relação às famílias se
referem à falta de cuidado, de educação e de higiene das crianças, ao fato de não
comparecerem às reuniões promovidas pela creche e ao atraso ou não-cumprimento
das contribuições solicitadas, que, embora não sejam obrigatórias, são requisitadas,
120

por exemplo, quando se pede algum material, advertindo que se não levarem,
“somente a turma de seu filho vai ficar sem fazer a atividade”. Esperam ainda que
pais e mães, alguns analfabetos, tomem conhecimento dos bilhetes, entendam e
respondam o que a professora solicita:

Em reunião, tem as sugestões. Você vê mais a comunidade reclamar do que tentar


ajudar. Claro que tem gente que ajuda também. Você nunca pode falar assim de
modo geral, porque sempre tem exceção. Mas acho que podia ajudar bem mais do
que ajuda, com certeza. (Elaine)

O convite às famílias para uma aproximação com a creche, nesse sentido, não
diz respeito à inclusão na construção pedagógica da creche, mesmo porque
apresentam dificuldades de compreensão da Educação Infantil. A relação com as
famílias ainda fica restrita a convites para participação em alguma festa ou evento, ou
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para usufruir algum serviço prestado à comunidade, como corte de cabelo ou “exame
de vista”. A creche até procura ressaltar alguma questão pedagógica e dar aos pais
informações sobre o desenvolvimento das crianças. Mas as reuniões pedagógicas
acabam acontecendo muito mais como processo de educação da família do que como
partilha do cuidado e de uma educação mais coletiva das crianças (CUNHA, 2000, p.
459).47 Tais iniciativas, vez por outra, acabam gerando mais preconceitos que
ajudando os pais a lidar melhor com suas crianças:

A creche contribui. Porque a creche esse ano, o presidente trouxe vídeo, trouxe texto
para ler na reunião, para mudar essa visão. Mas eu acho que ainda não
conseguimos. (Andréa)

Tem algumas mães que são participativas. Às vezes, quando tem festa, a comunidade
desce para participar. A creche faz por onde, chamando os pais e a comunidade
para participar. Palestras sobre a violência familiar. Eu acho que isto está ajudando
a comunidade. A gente coloca cartaz lá fora convidando a comunidade. Festas, corte
de cabelo [...] a gente deixa um bilhete lá fora para quem se interessar. Isto tudo é
uma forma de estar trazendo a comunidade. (Rose)

Nas entrevistas coletivas, apareceu um tipo de discurso que aponta, como


assinala Tiriba (2001, p. 78), perspectivas de diálogo e partilha do projeto de
educação das crianças. Não parece ser algo tranqüilo para pais e mães, tampouco para

47
Mesmo não sendo uma constatação específica desta pesquisa, percebo que isso acontece, ainda que
carregada de signos diferentes, tanto nas creche comunitárias quanto em creches privadas que atendem
crianças de classe média.
121

a creche. À medida que a creche, mais que informar ou apresentar o que está fazendo,
se envolve com a família e a convida para participar de sua construção, esta passa a se
apropriar da educação das crianças, e a creche ganha outros sentidos. Quando as
professoras conversam com os pais sobre suas propostas, pouco a pouco, vão
acontecendo transformações significativas na compreensão das famílias sobre o
trabalho realizado com as crianças. Acontecem reações inesperadas. Algumas mães
buscam qualificar não apenas seu entendimento do que está sendo proposto para a
educação de seu filho, como também sua condição e seu desejo de participar nos
“eventos” e nas reuniões propostas.

Quando a creche elege princípios de valorização da criança, da família e da


educação, isso vai pouco a pouco envolvendo as pessoas, como, por exemplo
aconteceu com a festa junina, que envolveu muitas pessoas da comunidade.
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(Gilce)

Teve uma reunião na creche que os pais foram para a sala e eu falei que a
dinâmica era brincar. Eles começaram a dizer que não tinham tempo para brincar,
que tinham muita coisa para fazer. Eu acho que brinquei sozinha. [...] Fiquei triste
demais. Eu tinha planejado tudo para não dar em nada. Depois dessa semana eu
percebi que quando eu pergunto para os pais o que eles acham do projeto,
puderam ver o que tinha de valor, que as crianças estão se desenvolvendo. Tem
mãe que até leu um texto, ela colocou assim: ‘A criança, quando brinca,
desenvolve a autonomia, a identidade e a socialização’. Ela colocou um monte de
coisas. Você via que ela leu, para saber mesmo o que estava acontecendo.
(Andréa)

Dar voz ao outro não é tarefa fácil. Envolve tensões e contradições, mas
convida os sujeitos a novas apropriações. As famílias, ainda que não tenham uma
compreensão maior das propostas da creche para a educação das crianças, estão em
contato com outras escolas e querem o melhor para seus filhos. Também expressam e
trazem consigo olhares e conceitos que, embora, muitas vezes, equivocados, não se
distanciam dos próprios discursos que circulam entre as professoras:

Sinto que as famílias vão compreendendo aos poucos. Os pais e as mães estão em
contato com outras escolas. Às vezes, ela fala: ‘O filho da fulana está na outra
“escolinha” e lá é assim’. (Gilce)
122

Eu enviei para os pais um questionário para que pudessem ter oportunidade de


colocar o que eles pensavam sobre o profissional, sobre o professor. Todos falaram
que a professora é carinhosa, atenciosa, que a criança aprendeu muito. Ao mesmo
tempo elas caem em contradição, porque depois falam que está [...] faltando
atividades. Mas lá atrás ela reconheceu que o filho aprendeu. Mas é um trabalho
que a gente tem que fazer com a comunidade. (Valéria)

Observei que as famílias valorizam e cobram aquilo que lhes é ressaltado pela
creche como importante. É a própria instituição infantil que, muitas vezes, coloca em
relevo as coisas que os pais passam a esperar da creche. E o que a creche espera das
famílias, estas vão criar suas próprias estratégias para dar conta. Por que os pais
acham que ler e escrever são os conhecimentos que têm importância na Educação
Infantil? Os pais não querem que o filho vá mal na escola, que não aprenda as coisas
que a professora ensina ou que se comporte mal na escola. A imagem da instituição
circula da creche para a família, e vice-versa, alimentando discursos e, até mesmo,
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preconceitos instalados na escolarização das crianças.

Às vezes, é a própria mãe; às vezes, é a irmã que faz o Para casa.48 Está lá com o
caderno cheio de atividade. Mas a gente tem que ter essa preocupação também,
para atender a família. (Valéria)

3.3 Diferentes trajetórias de professoras e apropriações da Educação


Infantil

As trajetórias das professoras que trabalham na creche são diversas e se


confundem com as histórias de atendimento à infância e a constituição das
instituições de Educação Infantil, seus significados e sua materialização cotidiana.
Nas histórias e trajetórias das professoras, vão sendo incorporados saberes, que dão
sentido aos espaços educativos que estas mulheres-trabalhadoras-profissionais
percorrem e em que permanecem:

48
“Para casa” é o nome dado às atividades propostas às crianças que serão realizadas como exercícios
de aprendizagem. Esta é uma proposição que mobiliza a família e a envolve no processo de
apropriação do conhecimento proposto para as crianças. Embora esta consideração possa parecer
óbvia, ressalto que absorve diferentes discursos e representações que abrem brechas para análises
interessantes. Por exemplo, no Rio de Janeiro é denominado “Dever de casa”; em São Paulo, “Lição de
casa”. De um jeito ou de outro, revela elementos de relação entre as crianças, as famílias e as
aprendizagens escolares.
123

Eu vim lá da minha terra, e minha tia falou que estavam precisando. Eu não vim
para trabalhar. Minha tia falou que estava precisando de uma pessoa lá na creche.
Aí que eu fui trabalhar lá. Eu fui para ficar pouco tempo, porque vim grávida da
minha terra. Ganhei o menino e fiquei quinze dias em casa. Quem foi trabalhar no
meu lugar não deu certo, aí eles me chamaram de novo e eu voltei. Dona C. era
muito boa e falou comigo: ‘Você não precisa pegar peso, nem nada não, é só para
você dar uma ajuda’. Eu fui ficando. (Cíntia)

Nem todas as professoras que hoje estão nas instituições comunitárias de


Educação Infantil tinham como projeto ser professora. Elas passaram a ser absorvidas
porque tinham uma história próxima ao próprio significado dado por uma instituição
destinada ao atendimento de mulheres pobres, que tinham filhos e precisavam
trabalhar. Como já ressaltado, a própria instituição, vivendo de trocas e trabalhos
voluntários, acolheu mãe e criança, misturando trabalho e proximidade do filho.
Embora não instaurasse vínculo de trabalho, absorvia outros ganhos. A creche, nesse
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contexto, inseriu mulheres e crianças em uma ciranda de doações e tutela, ciclo difícil
de ser rompido e, por muito tempo, trouxe sentido, e ainda traz, para algumas
instituições comunitárias de Educação Infantil:

Eu tinha quinze anos. Tinha vindo do interior da Bahia. Não tinha nem idéia. Nunca
tinha trabalhado com criança. Só olhava meus irmãos. Mas é totalmente diferente.
Minha mãe começou a trabalhar em uma casa olhando um senhor, e a filha dele era
dona de uma escola. Ela viu nossa situação: falta de grana. Ela me viu e falou
assim: ‘Eu tenho uma escolinha’. Eu trabalhava só meio horário, de sete ao meio-
dia, e ia para a escola às quatro horas. Era nova, mas tinha responsabilidade. Sabia
que eu não podia fazer maldade, que eu tinha de olhar direitinho. Eu ficava com os
meninos, tudo misturado. Era um hotelzinho. Ao meio dia, eu tinha que entregar
para a professora de banho tomado, almoçado, escovado os dentes direitinho49. Fui
pegando prática. (Andréa)

Outra contradição é o fato de muitas meninas que foram trabalhar em creches


acabaram por abandonar a escola, constituindo um ciclo de desqualificação dos
sujeitos e das instituições e negligência de direitos. Entretanto, ressalto que o trabalho
em algumas creches, por mais precário que tenha se manifestado, também trouxe
relações que apontam possibilidades de qualificação humana de crianças e
professoras. Nesta trajetória de constituição de creches, tornaram-se profissionais,
reconheceram-se e perceberam o trabalho e a Educação Infantil como um tempo e

49
Como ressaltado na nota 20, mais uma vez enfatizo o uso repetido de palavras no diminutivo,
referindo-se às crianças e à Educação Infantil.
124

espaço de dignidade, capaz de abrir caminho para a construção social de uma outra
identidade: muitas mulheres puderam se reconhecer como professoras, reconhecer
saberes, perceber que tinham projetos, que desejavam vê-los acontecer:

O contato com as crianças. Porque a gente também aprende muito com elas. Acho
que isso me fez ficar mais na área da Educação Infantil. Eu tenho vontade de fazer
normal superior. Eu queria poder continuar na área da Educação Infantil, porque eu
gosto é de sala de aula, de estar com os meninos. Por exemplo, ano que vem, se Deus
quiser, eu quero voltar a estudar, e eu quero estar tendo contato com os meninos.
Meu negócio é dentro da sala, eu gosto é da sala. (Rose)

As relações com as crianças também parecem qualificar os sujeitos envolvidos


no cotidiano da educação. Não apenas pelas solicitações que reivindicam soluções
concretas, bem como pela necessidade ou sonho de ir além e percorrer outros
caminhos de formação para estar em “sala” com as crianças. Por mais duro que seja o
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dia-a-dia das professoras, nas rotinas da Educação Infantil elas reconhecem um


trabalho que se coloca como uma possibilidade de ascensão humana, de dignidade, de
inserção social e profissional. A creche aparece para essas mães, meninas, mulheres
como uma perspectiva de superação de suas condições materiais e de uma nova vida
como mulher e profissional, ainda que permeada de paradoxos que ora reforçam, ora
impulsionam a ir além das precariedades instaladas:

Minha experiência mais marcante foi na Pastoral. Lá a gente tentava passar um


pouco do que sabia para as crianças. A gente vivia aquilo junto com eles, a gente
corria atrás mesmo para poder ajudar. A gente tinha que correr atrás de doações,
eram crianças que não tinham como sobreviver, e a gente reciclava de tudo um
pouco. (Rosa)

Algumas professoras também se inserem na Educação Infantil e nas creches


comunitárias por uma opção e trajetória anterior de formação profissional, tanto no
magistério quanto no ensino superior. De forma diferente daquelas professoras que
têm seu saber entrelaçado ao cotidiano das instituições de Educação Infantil onde
iniciaram suas trajetórias, essas professoras que passaram por uma formação inicial
e/ou experimentaram o trabalho em outras instituições trazem críticas, insatisfações,
bem como outras possibilidades de construção e partilha de conhecimentos. Algumas
fizeram estágios, quando puderam refletir sobre a instituição, as crianças e o trabalho
pedagógico.
125

Eu comecei minha trajetória na Educação Infantil foi em uma escola chamada M.,
onde trabalho até hoje. Eu estava cursando a faculdade nessa época. Estava naquele
aprendizado de pedagogia, com a Educação Infantil, e a escola onde eu comecei
trouxe muita base, muita coisa legal sobre o que é a criança. Então, às vezes, eu me
choco com outras realidades de escola. Até os meus 18 anos eu trabalhei como
estagiária, não como regente em sala de aula. Fui para a sala de aula logo em
seguida, há oito anos, mais ou menos 1994. Uma das coisas porque eu escolhi ser
profissional nessa área é que nenhum dia é igual ao outro. Há uma escolha de estar
aqui. Falo sempre comigo: ‘Você está lá, é necessária sua presença. Você está lá
com um objetivo, um propósito. E qual vai ser a sua passagem de vida ali’? (Fátima)

Em diferentes momentos ficam antipatizadas e se vêem envolvidas em


disputas de poder e legitimidade com a própria coordenação pedagógica da creche.
Mas acabam fazendo circular uma necessidade de movimento. Essa insatisfação,
embora muitas vezes rejeitada, passa a ser partilhada pelas outras professoras da
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creche. Uma presença ambígua mas qualificadora, ora promovendo a apropriação e


partilha de novos conhecimentos, ora apenas tensionando ou desconstruindo, mas que
aponta para a necessidade de irem além do que fazem no cotidiano. Percebem que há
muito o que avançar em direção à construção de um projeto pedagógico. Essas
tensões potencializam ricas discussões e impulsionam o desejo de continuidade de
estudos e formação, a necessidade de terem tempo de estudo na própria creche, bem
como outras perspectivas de melhoria do trabalho com as crianças.

• Ser professora é diferente de ser tia: a construção social do lugar de


professoras

A creche é muito importante. Aumentou muito minha auto-estima. (Gilce)

É expressivo o sentimento de positividade que o trabalho nas creches produz


na identidade das professoras. São histórias de superação de dificuldades, de
crescimento, de apropriação de saberes e um lugar social de importância no contexto
da comunidade onde vivem. Ainda que não se deva perder de vista outras histórias,
estas fazem emergir um sentimento de que a vida continuou, de que conquistas foram
alcançadas e de que as relações instauradas constituíram experiências de
reconhecimento de si mesmas nas relações com as crianças e com as comunidades.
126

Puderam se sentir importantes, puderam reconhecer saberes, puderam experimentar


conquistas e sonhos:

Fez diferença porque lá a gente não era nada, não era visto. Agora a gente é visto de
outro jeito. Lá a gente não era valorizado. Todo mundo chegava e olhava assim, as
crianças jogadas num buraco. A gente ouvia de vez em quando falar que lá não
passava de um depósito de criança. (Cíntia)

Percebo, nas trajetórias das professoras, uma ampliação do olhar sobre elas
mesmas, sobre as crianças e sobre as instituições de Educação Infantil. Não é fácil
reconhecer lugares sociais precários onde estiveram e as marcas que lhes afetam a
vida. Mas isso, para as professoras, é algo que precisa ser superado, e elas estão
superando. Possibilita perceber que elas saíram de um determinado lugar e podem ir
mais além. As professoras passam a reconhecer direitos e percebem-se como
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profissionais, o que abre perspectivas para um outro olhar sobre as crianças, as


famílias e vice-versa:

Eles chegam ao ponto de trocar o meu nome pelo nome de alguém que eles gostam
demais. Então, titia [...] apesar de eu não gostar, mas é o jeito deles expressarem. Eu
não vou chegar para a criança e dizer: ‘Eu não quero que me chame assim’. Às
vezes, eu brinco: ‘Vocês já estão caduco demais. Nem lembra meu nome mais, eu
estou com saudade de ouvir meu nome’. Aí um vai e fala meu nome. (Fátima)

Ser professora é diferente de ser tia. Isso vai ficando cada vez mais evidente
para as profissionais da creche. Ser professora implica outras formas de diálogo com
as crianças: planejamentos, concepções e formas de organização do trabalho. Quanto
mais se qualificam, mais expressam outros desafios que fornecem novos sentidos
para a educação das crianças e para a instituição de Educação Infantil. Cada vez mais
se reconhecem e querem ser reconhecidas como professoras. Nesse sentido, o lugar
social de profissional-professora também vai sendo forjado nas relações cotidianas.
As contradições não são poucas; dificultam e desestabilizam a consolidação
de identidades profissionais. Continuam trabalhando com jornada diária extensa, com
ganhos salariais reduzidos, quando se comparam ao tempo de trabalho e salário das
professoras das treze escolas municipais que atendem crianças de 0 a 5 anos.50 Ser
professora de creche comunitária, apesar de uma identidade construída em meio a
127

muitas conquistas, mostra-se como uma expressão profissional na qual não


desejariam permanecer, pelo menos, da mesma forma. Nesses momentos, afirmam
que só permanecem porque não têm condições de ter outros ganhos e ocupações,
mesmo reconhecendo a importância do trabalho e da relação com as crianças:

E eu tenho vontade de ter um salão. Não é deixar a creche. É igual a formar e poder
trabalhar menos horas, ficar mais em casa cuidando das coisas. Eu tenho vontade de
ter um salão e vou ter, se Deus quiser. (Cíntia)

Na entrevista coletiva aconteceu um fato importante no sentido da


compreensão, por elas mesmas, de ser professoras. Uma das professoras, que foi
“deslocada” da sala de aula para o serviço da secretaria, o tempo todo chama a
atenção, sem que seja percebida, para a importância de ter um grupo de alunos com
quem possa planejar e partilhar um trabalho. Ou seja, o que ela quer é exercer seu
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lugar de professora, realizar projetos.

(A professora faz a sua fala chorando e emocionada) – Eu sempre quis dar aulas.
Esse é o projeto que eu tenho comigo. Quero que me vejam como uma pessoa que
está ali, que possa estar sabendo dos problemas que acontecem em casa [...] A
gente tem que fazer o melhor que pode. (Elaine)

As outras professoras não pareciam compreender o que significa não estar em


sala de aula, não poder chamar e reconhecer a si mesma como professora, como se
isso fosse algo isolado e não estivesse acontecendo com uma profissional daquela
creche, ou por não quererem perceber que esta é uma situação que diz respeito a todas
elas, como no caso de Rosa, que não podia permanecer trabalhando em dupla com
outra pessoa, pois o número de crianças em sala não permitia mais um pagamento via
convênio. De um dia para o outro, ela se viu na condição de eventual, substituindo
outras em caso de falta, doenças e outros motivos para se ausentar da escola: desabou,
como se não fizesse mais parte do grupo.

Mas você tem um contato com todas as crianças, e não só com um determinado
grupo. Essa sua posição é uma posição que dá para você ajudar muito mais do que
a gente professor que está dentro de sala de aula. (Fátima)

50
As professoras das Escolas Municipais de Educação Infantil têm uma jornada diária de 6 horas de
trabalho e estão incluídas no plano de cargos e salários dos profissionais da Rede Municipal Ensino.
128

A fala de Elaine expressa que o reconhecimento de competências, por si só,


não é suficiente. Como professora, deseja expressar essa competência e ocupar um
lugar social onde se sinta importante. Entretanto, na situação de entrevista coletiva,
reunindo pessoas que vieram constituindo parte significativa de suas histórias e
saberes na Educação Infantil, a expressão de uma identidade profissional ainda não
parece ser percebida como um direito coletivo.

Quando a Elaine está aqui na minha sala, fazendo uma brincadeira, uma rodinha,
eu vejo a facilidade das crianças de sentar e contar para ela coisa que para mim
eles têm vergonha, e não falam. Eu fico até assim: ‘Como você consegue puxar
isso tudo deles?’ (Andréa)

A Elaine pensa que saiu da sala por incompetência. Não é isso. Nós estamos em
uma situação em que a gente deveria mandar um professor embora, e a gente não
está querendo fazer isso. Nós gostamos das pessoas que trabalham aqui. Quando
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veio a proposta da Secretaria, que queria que nós mandássemos alguém embora,
nós batemos de frente. Então a gente assumiu a parte toda de um salário e encargo
social para manter essa mesma equipe. A Elaine, para nós, onde ela está, ela é útil
também. Quando ela fala que fica igual azeitona na boca de velho, eu tenho
vontade de dar um bufete no pescoço dela para ela cair desmaiada. Ela não está
dando importância ao trabalho que ela está fazendo. Na verdade, é um trabalho
importante. Ninguém tem o perfil que a Elaine tem para fazer esse papel. Ela não
pára, o trabalho é constante, toda hora tem serviço. Eu gostaria que ela entendesse
que o papel dela na secretaria não é menor do que de ninguém, pelo contrário. Às
vezes, eu abandono o meu papel para ser cozinheira. (Valéria)

Velho mordendo azeitona, você já viu? Fico assim. É assim que eu me sinto (risos).
(Elaine)

3.4 Experiências de formação

Na narrativa das profissionais, compreendo que as diferentes experiências e


trajetórias na Educação Infantil as inserem em um rico processo de formação. À
medida que contam a vida de professora, suas memórias, suas tensas e contraditórias
lembranças, elas vão se reconhecendo nesse processo, identificam saberes e a
importância de prosseguir e ampliar as possibilidades de qualificação de seu trabalho:

Quando eu fui trabalhar na creche eu não sabia nada. Desde 1988 até agora eu já
tenho muita coisa boa que eu posso estar passando para a criança. Aprendi muita
coisa. Tem muita coisa que eu falo: ‘Nossa, será que é isso mesmo’? (Cíntia)
129

O trabalho na creche foi uma experiência de conhecimentos. Todo dia eu aprendo


uma coisa boa para mim. Eu nunca achei que eu ia ser uma professora um dia. Eu
aprendi muito aqui. Eu fiz vários cursos depois que eu entrei para cá. Foi importante
em várias coisas na minha vida. (Andréa)

Em Belo Horizonte, o diálogo entre as creches e o Poder Público na última


década potencializou a consolidação da identidade do profissional de creche como
trabalhador da educação, possibilitando emergir diferentes sujeitos, que passaram a se
envolver no processo de instalação das creches no campo da educação. A construção
progressiva e coletiva de Projetos Pedagógicos para a Educação Infantil no município
trouxe desafios no sentido do reconhecimento de histórias vividas, que precisavam
ser contadas, apontando e gerando outro contexto para as creches comunitárias
(SILVA, 2002, p. 150). Para dar conta de realizar a escrita de suas histórias e dos
projetos pedagógicos, as creches passaram a reestruturar seu trabalho, incluindo
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tempos de planejamento e trocas de experiência no dia-a-dia da dinâmica pedagógica.

No início, quando falava de reunião de coordenadores pedagógicos lá no CEI,


minha cabeça até queimava, ardia, porque eu não sabia o que era PPP. Cada dia
que eu ia, voltava de lá mais confusa. Meu Deus, como é que eu vou fazer isso? Tem
que juntar com as profissionais todas. Como vai fazer para esse povo sentar, todo
mundo? [...] A gente não tinha essa sexta-feira que a gente tem para estudos da
prática pedagógica. Não tinha essa hora que a Valéria senta com os educadores,
uma hora com cada educador. Quer dizer, hoje nossa vida aqui na creche está bem
mais organizada. (Gilce)

O significado de contexto educacional ganhou importância. Pensar a creche


como tempo e lugar de educação apresentou às professoras e coordenadoras das
creches muitos e novos desafios. As professoras tiveram de enfrentar a tarefa de
participar da reorganização pedagógica da creche e construir projetos de intervenção,
algo que, em muitos casos, não fazia parte de seu vocabulário, reivindicando outro
olhar e formação para as professoras da Educação Infantil: seu lugar social, suas
relações com as crianças e a instituição.

O mais marcante na relação com a Secretaria de Educação é a educação. Isto é o


que acho mais importante. (Andréa)

No trabalho do Centro de Educação Infantil, por exemplo, as professoras, até


então acostumadas a um tipo de formação pautada em cursos e palestras sobre temas
específicos, passam a experimentar outras metodologias de formação que
130

fortalecem o diálogo no cotidiano das instituições onde trabalham. Passam a


valorizar as trocas de experiência como uma das possibilidades de ampliar os
conhecimentos que levam para as crianças. As profissionais do CEI, com as
coordenadoras das creche, passaram a acompanhar o trabalho das professoras não
com o objetivo de vigilância e fiscalização, mas de registro e reflexão do que
realizam. Essa partilha de experiências é ressaltada pelas professoras como forma de
valorização de sua identidade:

Tem o setorizado, de dois em dois meses, que é riquíssimo. Você viu lá. A gente
aprende muito, tem muitas trocas de experiência. A gente aprende muito com as
outras pessoas e com as próprias profissionais do CEI. (Gilce)

O apoio que eles dão aos coordenadores das creches e aos educadores. Eles não
excluem o educador do coordenador, eles tratam igual a todos. Não tem
diferenciação. E isso é muito bom. Eu acho que devia ter uma pessoa do CEI para
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estar dando apoio diariamente às creches, ou por semana. Elas vêm, mas nem
sempre, porque são muitas creches. (Rosa)

Cursos e palestras, durante muito tempo, foram as únicas perspectivas de


formação que as professoras tiveram e que ainda se faz hegemônico. Esta é a forma
prioritária que algumas “instituições parceiras” acreditam contribuir para qualificar o
trabalho das professoras. Não constituem um direito de todas. As vagas são sorteadas
pelas professoras das creches, e nem todas podem fazer esses cursos. Assim como
roupas e comidas são doadas às crianças, cursos são doados às professoras. Não
aparecem na fala das professoras como algo que experimentam como um direito, e
não possibilitam uma formação enraizada em desafios que perpassam a vida das
professoras das diferentes creches comunitárias.

O SESI, quando tem curso lá, manda chamar aqui também. Todos os cursos que tem
lá: [...] de sexualidade, letramento, tem um que é limite e agressividade, tem uns que
é sobre a relação creche e família, como lidar com a família. Tem palestras – higiene
bucal – de dentista. A gente vai para aprender mais. Sempre eles chamam. E sempre
eles dão certificado. (Andréa)

As professoras não desvalorizam esses cursos. Pelo contrário, elas os vêem


como oportunidades de melhoria de seu trabalho. Contudo, como analisa Kishimoto
(1999, p. 72), sabem que é preciso ir além. Não querem apenas certificados; desejam
uma formação melhor; querem prosseguir em sua escolarização e aprofundar sua
131

formação. Para as professoras que estão fazendo o Curso de Formação de


Profissionais da Educação Infantil,51 por exemplo, na modalidade tanto do Ensino
Fundamental quanto do Ensino Médio, essa formação mobiliza novas perspectivas
para a vida das professoras, o que envolve tanto a possibilidade de melhoria salarial
quanto a qualidade do trabalho que desenvolvem com as crianças.

Alguns cursos que eu tive a oportunidade de fazer, alguns pelo CEI, pelo SESI, pelo
Movimento Pró-Creche, foram muito enriquecedores para a gente como
profissional: com relação às brincadeiras, a relação da matemática com o brincar, a
música, [...] Poderia dar mais oportunidade., Por exemplo, um curso que tivesse
umas 120 horas no ano. Isso, para a gente, ia ser muito bom. Um curso que desse
uma formação melhor para os profissionais de creche. (Rosa)

O CFEI, ele é um curso de formação de educadores da infância. É o curso médio


com Educação Infantil. Como eu parei no segundo ano, eu tive que completar e fazer
um outro curso. E eu estou fazendo tudo junto, em dois anos e meio. Ensino Médio
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com a Educação Infantil. Aí eu já vou sair como professora. É o magistério com a


Educação Infantil. Eu vou sair com diploma de magistério e de Educação Infantil.
(Andréa)

As professoras expressam o desejo de cursar formação superior. Essa


perspectiva aparece como possibilidade de ampliar a relação com o conhecimento e
reflexão sobre a prática. Quanto mais as professoras parecem valorizar suas
experiências práticas com as crianças, mais os estudos acadêmicos parecem fazer
sentido para elas. Cursar uma faculdade, até mesmo uma pós-graduação, não é
ressaltado como maneira de sair da Educação Infantil, mas como nova forma de
inserção e realização da educação das crianças. Contudo, isso não aparece
contextualizado por oportunidades concretas, nem parece que elas enxergam essa
situação como uma possibilidade próxima de realização. Uma formação em nível
superior coloca-se mais como um sonho do que como um projeto. Mas é o anúncio de
uma nova percepção de si mesmas e de seu trabalho, com repercussão no seu olhar
sobre as crianças, sobre as instituições e sobre o trabalho na Educação Infantil.

Meu desejo? Fazer uma faculdade. Não sei, mas todo mudo que faz faculdade
consegue ver as coisas de um outro jeito. Parece que o conhecimento fica tão bom
51
Em 1994, foi implantado o “Projeto Formação do Educador Infantil de Belo Horizonte”, proposto
como curso regular para a qualificação profissional no Ensino Fundamental e “Supletivo” de 5a a 8a
série. Em outubro de 2000, foi implantado o Curso de Formação do Educador Infantil de Belo
Horizonte de Ensino Médio, com a colaboração da Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais
(SEE/MG).
132

que conseguem ver coisas que eu não vejo. Conseguem entender coisas que eu não
entendo. Se Deus quiser, eu não vou parar de estudar. (Andréa)

Eu queria fazer faculdade, pós-graduação, mestrado, tudo que eu tenho direito. E


vou fazer ainda, se Deus quiser. É o sonho da minha vida. E com Educação Infantil
mesmo. Em hipótese nenhuma eu queria mudar. Eu queria ficar dentro de sala
mesmo. Indiferente do quanto eu ia ganhar, indiferente disso, é o que eu gosto.
(Elaine)

O pouco que eu consigo, eu procuro ler. Procuro ter um pouco mais de


conhecimento para ensinar para os meninos da creche. Eu não tenho vergonha de
falar ‘eu não sei’. Então, eu estou aprendendo e trazendo para cá. Às vezes, tem
coisa até que não dá para eu passar para os meus meninos, mas dá para ajudar
outra professora. (Rosa)

Nas entrevistas coletivas, vê-se ainda mais enfatizado um processo partilhado


e coletivo de formação, no qual os sujeitos se mobilizam para a construção de um
novo cenário para a Educação Infantil e para a sua atuação profissional. Nos
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processos de formação, as profissionais que possuem um nível de escolarização maior


mostram-se solidárias umas com as outras e acabam mediando o que é solicitado nos
cursos de formação que outras estão fazendo, instituindo uma produção de
conhecimentos gerados, para além dos momentos de formação, no contexto das
próprias relações estabelecidas no cotidiano das creches. Mostram-se como
interlocutoras e partilham da constituição de redes de formação e circulação de novos
conhecimentos:

Quando elas estavam fazendo o CEFEI, teriam que apresentar um projeto. Eu


incentivei a Andréa, que já estava com algumas idéias, a fazer o projeto brincando
e aprendendo. A Gilce queria tratar do envolvimento com a comunidade. Ela
queria desistir, mas eu não deixei. (Valéria)

Quando falou do projeto, eu falei: ‘Vou fazer um projeto sobre identidade’. Eu não
sabia nem como procurar, nem onde, nem o que fazer para estar trabalhando esse
projeto. Eu queria desistir, porque não achava material, e as pessoas não
conseguiam material para mim lá na escola. Eu também estava procurando. Não
deixei por conta do professor, não. Busquei ajuda em todos os lugares. (Gilce)

Em diferentes momentos, esse diálogo entre as professoras se reflete em novas


metodologias e, às vezes, provoca inovações no trabalho pedagógico. Elas se vêem
estimuladas a pesquisar nas bibliotecas ou a partilhar o conhecimento umas com as
outras, apontando novas possibilidades de organização do cotidiano na creche:
133

Eu não sabia o que era projeto. No início, pensava: ‘Que trem enjoado’! Aí,
quando foi no meio, eu gostei. Os meninos também gostaram, e foi muito bom. É
difícil, mas dá para a gente aprender. Depende de um livro da biblioteca, que às
vezes não tem e fica complicado. Não é porque eu não tive interesse e não tive
vontade. Quando começou, eu achava enjoado, mas depois foi bom. (Cintia)

• Experiências sociais e culturais das professoras –

Não vou ao cinema e ao teatro porque meu marido trabalha à noite. De dia, ele está
dormindo e eu estou aqui no serviço. Quando eu chego do serviço, ele está
dormindo. Aí é aquela rotina. Pego minha menina na escola, vou ensinar para ela o
para casa, e vou fazer o jantar. Passa o ano inteiro. De vez em quando, a gente vai
no Mangabeiras, no zoológico, na casa dos amigos, mas só em dia de folga, e
quando dá tempo. Eu sinto falta. Como diz a minha mãe, eu viveria disso. Algumas
pessoas sentem falta de divertir, outras não. Se eu puder me divertir eu vou ficar
satisfeita, mas também se eu puder ficar estudando, eu também vou ficar. Fazer
minha faculdade primeiro. Daí, ampliar mais meus conhecimentos, poder ensinar e
contribuir mais. (Rosa)
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Vida de professora não é fácil. É vida de mãe, vida de mulher e suas muitas
jornadas de trabalho. As professoras, quando podem, costumam sair com seus
namorados e maridos. Passeios simples, necessidades e desejos básicos. Incorporam
rotinas da creche, do cuidado da casa, dos filhos, do marido. O que extrapolar o
trabalho e a família parece luxo:

Eu gosto de passear e ter dinheiro para comer coisa boa. Comer em restaurante. A
coisa que eu mais gosto é sair e comer em restaurante. Trabalhar em casa também. Eu
gosto muito de trabalhar em casa. Eu tenho vontade de trabalhar por conta própria.
(Cintia)

Gosto de ir ao shopping. Adoro comprar. Se eu pudesse, eu comprava até falar que


chega. (Rose)

Gosto de viajar. Quando eu morava na roça, só fazia comprar passagem. Eu gosto


muito de teatro, embora eu não tenha costume de ir. (Eliane)

As professoras expressam o desejo de uma vida mais agradável, mais


confortável. Muitas vezes, não possuem dinheiro para o básico, quanto mais para
qualquer extravagância! Sonham uma vida melhor. Querem ir a restaurantes e comer
bem, querem ir a um shopping e comprar uma roupa bonita. Gostariam de passear
mais, desejam uma vida mais prazerosa, talvez o oposto de uma sensação de cansaço
e rotina que o dia-a-dia na creche com as crianças lhes impõe. Como também
observou Mamede (2000, p. 361), as possibilidades de experiências culturais acabam
134

sendo esporádicas. Algumas jamais foram a uma apresentação teatral em uma sala ou
teatro da cidade, embora aconteçam em Belo Horizonte festivais de teatro e dança,
com apresentações gratuitas de grupos do Brasil e de outros países em praças
públicas. Nesse sentido, as experiências culturais para crianças e professoras acabam
restritas às próprias experiências escolares:

Teatro vou muito pouco. Eu fui uma vez só, que minha cunhada participou, e eu fui.
Ela estava apresentando. Convidou e nós fomos. Mas é muito pouco. Foi uma vez só
que eu fui ao teatro. Agora que meu marido começou estudar, que ele está fazendo
faculdade, então fica mais difícil da gente estar saindo. (Rose)

Quando as professoras possuem algum tempo de descanso, é como se


precisassem recarregar as baterias para continuar enfrentando o trabalho na creche.
Buscam momentos de entretenimento: assistem a filmes que passam na televisão ou
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alugam alguma fita para ver em casa. O que podem, neste caso, é oferecer uma
presença menos estressada, que abra espaço para que sejam, ao menos, mais
carinhosas e tolerantes com as crianças.

Acho importante a gente estar distraindo, tendo um pouco de lazer. Eu acho que isso
ajuda a gente, porque quando a gente entra em sala de aula a gente pode estar
trabalhando com mais amor, carinho, se solta mais. (Rose)

Na fala de uma das professoras fica explícito que percebem e reconhecem a


importância da ampliação de sua inserção cultural como perspectiva de relações mais
ricas consigo mesmas, com as crianças e com sua ação profissional. Talvez
reconheçam a precariedade da vida a qual estão submetidas. Percebem que o acesso a
novas informações e experiências trariam outras perspectivas de relação com as
crianças, ampliando o próprio significado da educação que partilham. No sentido
proposto por Benjamin (1987a), é a experiência inscrita na memória dos sujeitos que
confere legitimidade à narrativa; nas palavras de Gagnebin (1994, p. 66), “como
viajantes que voltam de longe são aureolados por uma autoridade que a última
viagem lhes confere”. Nesse sentido, elas identificam a importância de ampliar sua
inserção no mundo, mas não reconhecem esse processo como direito, e talvez por isso
mesmo não consigam traduzir o que dizem em possibilidades mais ricas de relações
com as crianças:
135

Eu estava assistindo a um programa, domingo, sobre dois ciclistas. Eles foram para
um lago no Peru. Eles comentaram que as pessoas que viajam, que se envolvem com
outras pessoas, vêem as dificuldades de outra maneira. Conseguem passar pelos
problemas, sempre têm uma resposta, ou os problemas não se tornam um empecilho.
O contato com outras pessoas, com diferentes gostos, cria espaços, amplia a
condição de vida, amplia a mente. Você vai passar para as crianças sua impressão
de ser. Você tem uma visão maior do que é a educação e do que é o ser humano.
(Fátima)

3.5 Infância das professoras

Quando as professoras falam de suas infâncias – assim como observei nas


crianças na creche –, suas lembranças remetem a um duplo sentimento, que revela,
igualmente, tristezas e alegrias, limites e possibilidades de expressão da vida e de
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suas relações. Se, por um lado, uma idealização de suas infâncias marca seus
discursos, de outra forma, sua narrativa vai absorvendo uma expressão concreta,
tornando possível resgatar dimensões que, no sentido de Elias52 (1990), entrecruzam
tempos históricos singulares. Mesmo em cortes temporais demarcados e em contextos
sociais muito distintos, infância das professoras e infância das crianças da creche, em
diferentes perspectivas, apresentam sutis e significativas continuidades (BEHNKEN e
ZINNEKER, 2001, p. 6). A narrativa da infância das professoras, sua percepção e
apropriação remetem à leitura da infância das crianças de hoje, que, ao emergir, abre
caminhos para um outro olhar e compreensão pelas professoras:

Na minha infância, eu comecei a trabalhar muito cedo, mas o tempo que me restava
eu aproveitava. Com sete anos de idade eu já trabalhava em casa de família,
arrumando casa, olhando criança. O tempo que me restava era brincar com o que eu
encontrava. (Rosa)

Experiências duras marcam a infância das professoras. Contudo, quando


comparam com a vida das crianças da creche acabam suavizando e, até mesmo,
romantizando suas infâncias. A infância das crianças da creche, hoje, lhes parece
muito mais precária. Em seus relatos, a dureza da vida que tiveram não expressa uma
memória de tristezas. Procuram descrever momentos de brincadeira e de riqueza de

52
Como assinala Elias (1990, p. 15), os indivíduos, em sua curta história, passam por processos que a
sociedade experimentou em sua longa história.
136

relações, o que traz perspectivas de ressignificação das relações experimentadas. A


vida de seus pais também aparece marcada por dificuldades, bem como um
sentimento de distanciamento e ausência. Mas não expressam mágoa; ao contrário,
trazem lembranças carinhosas e respeitosas. Outras relações ganham foco:

Minha família é muito grande. Minha mãe trabalhava muito. Minha mãe e meu pai
são muito bons, maravilhosos. Só que eles nunca tiveram tempo para a gente. Nunca
judiou, nunca maltratou. Devido ser uma família muito numerosa, nunca tiveram
muito tempo. Meu pai era uma pessoa muito inteligente, embora não tenha estudado,
não tenha tido oportunidade nenhuma. Ele tinha muitas dificuldades, não tinha
tempo para sair com a gente, não tinha tempo para brincar com a gente. Às vezes a
gente nem via pai, de tão tarde que chegava. A mãe, a gente via, mas também não
tinha tempo. A gente assumia responsabilidade muito cedo. Na idade desses meninos
da creche mesmo, 6 anos, eu já tomava conta da minha irmã. Nem sei como eu dava
conta. Minha irmã, praticamente, eu que criei. (Elaine)
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Além da escola e da brincadeira, como assinala Castro (2001, p. 22), o


trabalho também aparece como signos discursivos da infância das professoras. A
escola não é ressaltada por seus significados pedagógicos, mas pelas relações que
possibilitava. Os professores aparecem mais como contra-exemplo do que como
sujeitos fundamentais nas relações e experiências da infância, o que não significa
dizer que a infância tenha assumido qualquer autonomia em relação aos adultos.
Adquirir autonomia e dependência, estar com outras crianças e desejar estar com os
adultos tornam-se marcas constantes nas diferentes narrativas das professoras. À
medida que rememoram a infância, as professoras são remetidas a perceber a
importância dos adultos nas relações com as crianças, seus significados e riqueza.
Como muitas crianças, nos dias de hoje, permaneciam em suas casas com outras
crianças, tempo dividido entre as brincadeiras e a responsabilidade com os irmãos:

Na escola é que a gente brincava. Não que as professoras ensinassem. As


professoras não brincavam com a gente. A gente não tinha liberdade que hoje os
meninos têm com o professor. As brincadeiras passavam de criança para criança.
(Elaine)

Reclamam da falta de tempo de seus pais para estar com elas, descrevem o
longo tempo que passavam no trabalho longe de casa e que pouca oportunidade
tinham de estar juntos. Entretanto, na fala das professoras, percebo que esse tempo
preenchido pelo trabalho e pela distância de seus pais não é tomado como abandono,
137

como às vezes afirmam sobre as famílias das crianças da creche. Reclamam de


solidão, mas não de desafeto. Ao contrário, quando se referem às crianças da creche
que também passam por relações semelhantes, sobressai a idéia de que as crianças
ficam na creche porque os pais precisam trabalhar, que não há ninguém para tomar
conta delas. Isso coloca as crianças da creche em um lugar de carência e abandono.
Desse olhar acaba emergindo um sentido mais assistencial e menos pedagógico dos
papéis assumidos pela creche:

Hoje as crianças encontram um lar que pode dar ou emprestar a elas o que elas não
têm em casa. Porque é um lar, um espaço que elas brincam e têm carinho. Na minha
infância, meu pai trabalhava, minha mãe trabalhava. A gente saía cedo de casa e
chegava à noite. Tinha vez que a gente não via pai, não via mãe. Se a gente quisesse
brincar, a gente tinha que conseguir o que brincar. (Rosa)
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A infância das professoras também é descrita como tempo de brincadeiras. O


brincar das professoras quando crianças não dependia de brinquedos prontos, nem da
professora, nem da escola. De forma diferente, quando falam das brincadeiras das
crianças de hoje, estas aparecem dependentes de brinquedos e da creche. Em suas
memórias, relatam que confeccionavam seus brinquedos, inventavam músicas e
brincadeiras. A rua aparece como espaço de relações. Não havia tempo demarcado
para as brincadeiras. Aconteciam nas contradições dos tempos e dos espaços:
brincavam nas brechas de tempo que tinham e transformavam espaços e objetos em
possibilidades de relação e brincadeira. Mas desejavam brincar com os adultos,
gostariam de brincar com as professoras:

Eu não tive os brinquedos que hoje muitas crianças têm. A gente fazia bonequinha de
manga e sabugo. Pegava retalhos, enrolava e fazia boneca, fazia cabaninha no mato.
(Rosa)

Minha infância foi ótima. Se eu pudesse voltar atrás, eu voltaria porque eu brinquei
demais. Eu brincava na frente da minha casa com as minhas vizinhas. A gente fazia
casinha, fazia o passeio de casinha, cada uma tinha sua casinha. Até hoje, quando eu
vejo uma colega minha, a gente morre de rir. Porque a gente ficava cantando umas
musiquinhas. Andava em cima dos postes. Quando eles estavam pondo os postes nas
ruas, sobrava uns postes, então a gente ficava brincando de passear em cima,
cantando a musiquinha do peixinho. (Rose)

As circunstâncias sociais da infância das professoras, mesmo sendo distintas


do que é hoje, trazem tensões que ainda se fazem comuns às crianças. Quando
138

contam suas histórias ressaltam que as meninas não brincavam com os meninos.
Contudo, revelam momentos em que esses encontros aconteciam. Por exemplo, as
brincadeiras em casa à noite ou nos finais de semana eram momentos que
mobilizavam as pessoas a estarem juntas: contavam histórias, cantavam cantigas de
roda, etc. Em que isto ajudaria a pensar as relações entre crianças e adultos, meninas
e meninos, tempos e espaços institucionais? Que conhecimentos, histórias,
experiências poderiam ser partilhadas com as crianças?

Nos finais de semana nós saíamos para brincar nas fazendas. Eu brincava com as
colegas de casinha. Menino não brincava com menina. Era separado: mocinha com
mocinha, rapazinho com rapazinho. A gente se divertia muito. Fazia comidinha de
verdade, fazia fornalhinha, pegava folha de banana, fazia boneca, fazia cabelo, fazia
boneco com sabugo de milho, colocava cabelo, passava carvão no olhinho, ficava
bonitinho. Fazia comidinha, assentava com as bonecas, fazia café. (Cíntia)
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No domingo, ia toda gente lá para casa. A gente ia passear. Quando era noite,
porque fazia fornalhinha o dia inteiro, a gente ia cantar roda. Era bom mesmo. Eu
tenho lembrança, até hoje, como era bom. Nós cantávamos muito aquela música
“clareia no ar, clareia aqui, clareia esse salão que a fulana invém”. Isso é antigo,
não é? (Cíntia)

As professoras, na infância, inventavam suas músicas, brincadeiras e histórias.


Que brincadeiras as crianças de hoje inventam? Desse encontro de histórias, fantasias,
invenções, lembranças de diferentes momentos, que outras perspectivas de relação
são percebidas? À medida que recuperam suas experiências, as professoras revelam a
possibilidade de ampliação de seus olhares e de suas relações com as crianças; de
percepção dos diferentes processos de inserção das crianças na cultura. Isso abre
brechas para uma reflexão sobre as experiências culturais que compartilham com as
crianças.

A alegria que a gente tinha de estar brincando. Essa ‘musiquinha’ que eu falo, eu
cantava ela assim: ‘Ave quer voar, eu só quero amar, o amor que existe em mim’.
Cantava essas músicas do nada. Nós construíamos. Eu nunca tinha escutado. Nós
inventávamos as musicas e ficávamos cantando. Acho que poderia trazer isso para
os meninos. Acho que é por isso que eu gosto muito de música. Na minha sala, eu
trabalho muita música com os meninos. Acho que é por eu ter gostado tanto de
brincar de cantar. (Rose)

Quando expressam suas percepções das crianças e as relacionam com suas


experiências de infância, as professoras levantam questões que podem ser
139

aprofundadas na compreensão das possibilidades de experiências e produção cultural:


fazem críticas à televisão; relembram coisas que tinham interesse; reconhecem
brincadeiras que aprendiam com seus pais; valorizam os momentos que podiam e
queriam estar com os adultos; e lamentam a ausência dos adultos, inclusive nas
brincadeiras. Ao mesmo tempo que afirmam a creche como tempo de brincadeiras,
parecem perder de vista a riqueza das relações que elas mesmas experimentaram e
que as crianças de hoje demandam:

Hoje em dia, os meninos ficam presos à televisão. Naquela época eu não gostava de
televisão. Meu negócio era acordar cedinho e ir para a rua para brincar. Hoje não.
Hoje, os meninos gostam é de videogame, jogo de computador. Só mesmo na hora
que vão para a escola, ou saem com os pais, é que podem brincar mesmo. Mas acho
um pouco diferente da época da gente. A gente brincava mais. Eu brinquei até os
quinze anos. (Rose)
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As professoras falam da escola como uma possibilidade de experiências e


relações, mesmo que fossem as próprias crianças que fizessem circular as
brincadeiras, como quem circula conhecimentos e cultura. Essas lembranças apontam
para um reconhecimento da Educação Infantil como tempo e espaço para o diálogo e
o encontro, tempo e espaço de experiências culturais, em que crianças e adultos estão
envolvidos em uma rica produção humana e cultural:

A partir do tempo que eu entrei na escola, aí sim eu brinquei muito, brincadeira que
hoje você, às vezes, nem conhece. Não que as professoras ensinassem. As professoras
não brincavam com a gente. A gente não tinha liberdade que hoje os meninos têm com
o professor. Eu lembro que eu não tinha nem liberdade de olhar para elas. A gente
mesmo se organizava e dava certo. Dava muito certo. Coisa de criança mesmo. Era
rouba-bandeira, queimada, esses brinquedos, polícia e ladrão, barra manteiga, um
monte de brinquedo. Era organizado, mas pelos alunos mesmo. Muito difícil um adulto
brincar com a gente. Hoje, o aluno tem liberdade com o professor. Eles sentam no
colo, você vai para casa com a mão cheia de dedos, brinca, conta as coisas que eles
fazem. Eu já tive professora até agressiva, até ao ponto de dar umas reguadas. Talvez
por isso que eu sempre quis ser professor, para poder fazer diferente. (Elaine)

• As crianças e o olhar das professoras

Nós aprendemos a ver a criança com outro olhar. Não é só o cuidar, não é só dar o
carinho que vai resolver. A parte pedagógica é muito interessante na vida das
crianças. É para toda a vida. Pensamos que para o futuro delas vai ser muito bom.
Na área da assistência também, porque a gente não trabalha em uma creche, 8
horas, só educação, mas assistência também. (Gilce)
140

Eu tinha uma visão de que criança era igual na minha época. Criança era para
depois. Ou não tinha vez. Eu achava que o que a criança falava não podia dar muita
importância. Hoje eu sei que eu tenho que ouvir. Elas vão para o lado da
imaginação. Eu tenho que entender por que está acontecendo isso. (Andréa)

Se, por um lado, uma outra visibilidade das crianças e da Educação Infantil é
revelada por uma idéia de direitos e experiências no tempo presente, por outro, ainda
é recorrente uma percepção das crianças pelo que lhes falta e precisa ser suprido –
afeto, alimentação, família, infância, pai, mãe, etc. –, antes que possam ser sujeitos.
Isso pode ser compreendido como parte de um processo de apropriação gradual de
concepções que ainda não se faz tão claro, nem tão óbvio, contextualizado no ainda
incipiente exercício de reflexão que as professoras, nos seus grupos de trabalho, vão
dando conta de fazer:
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É uma infância muito sofrida. Desde a barriga, eles já começam a sofrer, porque os
pais, a mãe, propriamente dita, precisa trabalhar para sustentar, se sacrificando
para poder sustentá-las, educá-las. Depois do nascimento, começa uma vida mais
sofrida ainda. Pega friagem, chuva, tem mães que moram longe para trazer até aqui
na creche e ir trabalhar. (Rosa)

Na percepção das professoras, sobressai a idéia de sofrimentos das crianças de


toda ordem. Este olhar acaba reforçando uma idéia de que as crianças da creche, em
sua maioria, são tristes, sem afeto, e por isso apresentam um tipo de comportamento
ora apático, ora agressivo. Isto também gera uma postura da professora abnegada,
tolerante e paciente, reforçando representações do que as crianças precisam e do que
as professoras podem oferecer:

São pessoas muito sofridas. Eu não sei se a condição financeira está nisso. Porque,
geralmente, quando falta dinheiro, falta o que comer em casa, eles já não têm mais
nada. Então, às vezes, você vê esses meninos. Chegam agressivos, outros chegam
tristes. Você vê as carinhas tristes, porque falta o que comer em casa. O pai às vezes
usa droga. Eu acho que isso afeta muito. Às vezes, penso: ‘Como é que eu vou
agüentar?’ Mas você vê o que eles estão passando, aí você já sabe como vai
agüentar. Você se coloca no lugar deles e já passa a ter um pouco mais de paciência.
Às vezes, as crianças apresentam um comportamento que se você for analisar, tem
um porquê. (Elaine)

A idéia de que as crianças precisam de carinho e paciência é significativa.


Percebo neste discurso o risco de que isto se coloque como a tarefa prioritária da
141

creche. Ganha um sentido de troca benevolente: “Se na creche elas receberem carinho
e amor, elas também oferecerão amor”. Ao mesmo tempo que ressaltam sentidos
pedagógicos para a Educação Infantil, reforçam um olhar que se prende a uma idéia
de carências afetivas, retomando uma confusão entre as relações de assistência e
cuidado, o que restringe a organização do trabalho cotidiano na creche:

Eu encontro nas crianças um grãozinho lá no fundo, cheio de amor, de carinho para


dar, mas que também precisam de amor, de carinho para sobreviver. Eu acho que
elas sentem falta do amor e, através disso, elas oferecem amor. (Rosa)

São crianças que precisam de muito carinho, muita atenção da nossa parte. Eu acho
que elas vêm para cá para estar pegando isso. Às vezes elas não encontram tanto
carinho em casa como deveriam encontrar. Então eu acho que elas vêm para creche
à procura disso: de atenção e carinho. (Rose)

Eu acho que eles não têm o carinho que precisam, e eles não passam carinho. Tanto
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as crianças como os pais. Quando a gente vai entregar uma criança, eles falam:
‘Nossa que sujeira’. Nunca falam: ‘Meu filho, que saudade!’ Igual eu ouvia lá na
outra escola. (Andréa)

A creche aparece, mais uma vez, como lugar de redenção de uma idéia de
infância quase perdida e se torna o lugar onde a infância poderá ser vivida da maneira
correta e saudável: na creche as crianças vão receber carinho e amor; na creche as
crianças vão aprender a se comportar; na creche as crianças poderão brincar, na
creche as crianças vão se afastar de pais descuidados, violentos e drogados; na creche
e a partir da creche, as crianças poderão ter presente e futuro. Algumas posturas dos
familiares talvez sejam de fato negligentes e precisam ser problematizadas, mas,
quando a creche é colocada em um lugar social superior ao das famílias, vê-se
aumentada a distância entre as profissionais da creche e as famílias:

Acho que as crianças não estão tendo o valor que merecem. Às vezes, nem dos
próprios pais. É triste você vê uma criança chegar de manhã sem tomar banho, sem
lavar o rosto, sem escovar os dentes. Tem menino que você vai dá um abraço nele, e
ele, às vezes, te dá até um tapa, porque não acostumou com isso. Isso acontece
muito. Eu acho que a infância deles é aqui na creche. A hora deles da infância é
aqui. Quando eu sento em uma rodinha, na Segunda-feira, eu ouço só briga,
discussão: ‘O que você fez ontem?’ – ‘Nada. Fiquei em casa vendo televisão’. –
‘Brincou com alguém?’ – ‘Não.’ – ‘Brincou com alguma coisa?’ – ‘Não.’ – ‘Passeou
no parque?’ – ‘Não. Fui no bar com o meu pai, fiquei em casa.’ (Andréa)
142

Conceitos, concepções e idéias aparecem de forma contraditória. A mesma


professora que na sua fala procura valorizar a criança como sujeito desvaloriza seu
contexto e cultura. As professoras falam da necessidade de enriquecimento das
relações e das experiências de conhecimento, mas reforçam o desenvolvimento de
aptidões; ressaltam a experiência de infância no presente, mas projetam idealizações
futuras descoladas de suas próprias ações concretas; afirmam direitos, mas
aprisionam-se em sentimentos de pena e dó das crianças e, muitas vezes, demonstram
não saber o que fazer para efetivar um projeto educativo concreto:

Você vê preciosidades. Eu vou conversando com você, e vão passando flashes de


cada carinha, cada sonho, cada desejo, cada potencial. Você vê que já tem aquela
coisa nata, que já está pipocando aptidão, sonho ou a vida que querem ser quando
crescerem. Infelizmente, pela vida social, pode ser que isto venha a ser interrompido
pela localidade. Eu gostaria de bancar o estudo. Eu vejo veterinários, vejo pessoas
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que vão dar excelentes cantores. Pessoas que na área de matemática dariam um
professor super legal. Fico pensando: ‘O que eu posso estar fazendo com essas
crianças?’ (Fátima)

Também expressam concepções interessantes sobre as crianças. Às vezes


emergem das contradições do que produzem e falam com as crianças; outras vezes
são fruto de reflexão sobre suas práticas ou observação das ações das outras
professoras. Percebo que, de forma progressiva e em um contexto coletivo, elas vão
elaborando outros olhares sobre as crianças, suas presenças e competências para agir
e se relacionar:

A gente foi no Parque das Mangabeiras. Minha turma foi ao banheiro sozinha.
Todos ficaram na rodinha, como a gente havia combinado. Lancharam, jogaram o
lanche fora. Eu fiquei observando. Aquilo para mim foi uma coisa muito gostosa. Só
que acharam, pela visão de que a criança está sempre fazendo alguma coisa errada,
que um menino iria pular no tanque. Ele estava junto com um professor olhando os
peixes. Pegaram na mão dele e trouxeram para mim. Aí eu perguntei: ‘O que
aconteceu?’ – ‘Eu estava vendo os peixes.’ Quer dizer, ele não estava querendo
pular, ele estava ali admirando os peixes. (Fátima)

Observo que quanto mais crianças e adultos se envolvem, mais as soluções se


evidenciam. Isso permite-lhes apropriar-se de uma outra visão de si mesmos e dos
outros. Vê-se reforçado um sentido social e relacional das concepções, dos discursos
e dos olhares dos sujeitos:
143

Quando eu estava trabalhando a identidade, como a maioria das crianças é negra,


os que se sentiam diferentes eram os brancos. Isso foi interessante, porque os outros
tinham o cabelo aneladinho, os outros tinham o cabelo mais duro. Mas cada um
tinha suas coisas. Mas os claros é que se sentiram diferentes dos outros. Queriam
dançar igual os outros meninos dançavam. Agora, tem muitos que são machistas.
Isso vem de casa. Dizem que menino não faz isso, que menina não faz aquilo. Na
mesma hora, se eu estiver fazendo alguma coisa que dá para parar, então vamos
brincar de fazer comidinha, vamos brincar na casinha. (Fátima)

Na entrevista coletiva, o sentido de proteção às crianças parece se ampliar,


assumido como um discurso que toca também na identidade da professora. As falas
indicam uma compreensão de que não é possível valorizar as crianças e desvalorizar
suas raízes, sua história e sua cultura. Não há como valorizar as crianças e
desvalorizar os adultos, as famílias e a comunidade onde estão inseridos. Não há
como valorizar as crianças no contexto institucional sem reforçar a importância social
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das professoras, da creche e da Educação Infantil. Ao tomar como princípio uma ação
e uma existência que é coletiva, o direito, a dignidade, o valor social avança de forma
coletiva também, por isso mesmo tensa, ambígua, recorrente e contraditória:

Tem menino que fica aqui de 7 às cinco e meia e quando a mãe chega, vira para
ele e fala: ‘vamos embora, trem feio’. Várias vezes, eu presenciei ela falar assim.
Um dia eu fiquei muito indignada e chamei para conversar. ‘Olha, ele fica o dia
inteiro fora de você. Na hora que você chega para pegá-lo, ao invés de dar um
abraço, você chama ele de trem feio.’ Fiquei muito indignada. Tem gente que fala
que pobre é assim mesmo, que pobre é atrasado, diz que a filha é preta mesmo, que
o povo vai a discriminar ela. (Gilce)

3.6 Participação na construção da história da Educação Infantil

As professoras têm experimentado formas mais coletivas de partilha da vida


como professoras na Educação Infantil. Ainda que permeado de hierarquias, de
diferentes competências e de histórias de participação, de relações de poder, há
emergência de outro contexto discursivo no qual as professoras podem se perceber
nessa história e apropriar-se dela. O processo de elaboração e de escrita do projeto
político-pedagógico das creches é tomado pelos diferentes sujeitos da creche como
um dos elementos que vêm possibilitando outro tipo de inserção e expressão na
Educação Infantil. Cada creche, em sua história, tem buscado conhecer e reconhecer
suas possibilidades, seus limites e os recursos possíveis. As professoras passam a
144

confrontar uma realidade concreta com crianças concretas, com a necessidade de


construção de propostas coerentes, no sentido de instaurar um diálogo que traduza
outras ações e expectativas cotidianas:

Nós fazíamos muito e não registrávamos nada. Quantas coisas que a gente já fez na
área educativa, mas não tinha nada escrito. Com a proposta pedagógica, a gente
passou a trabalhar na realidade da creche, com a realidade de cada profissional,
com o que ele é capaz, o que ele dá conta. Tudo é registrado: uma pequena reunião,
uma fala da coordenadora pedagógica. Eu arrependo de não ter escrito, nem que
fosse rascunho, tudo que eu já fiz na creche desde que eu entrei. (Gilce)

Eu acho que houve uma transformação. A partir daí já teve inovações no projeto e
nos projetos trabalhados aqui dentro. (Rosa)

Encontros, leituras e discussões coletivas também revelam uma necessidade


de constituir outras relações de trabalho. Vêem-se como uma equipe de trabalho e
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passam a trocar experiências que até então não constituíam parte do universo de
organização do tempo e das intervenções das professoras. Em suas falas, revelam a
importância de terem participado do processo de elaboração de projetos, da maneira
possível a cada uma. Passam a reconhecer e afirmar o que fazem e o que querem
fazer, o que pensam ser significativo na educação das crianças. Reforçam a
importância de estar ali contando e escutando o trabalho do outro e de dar conta de
redigir o que fazem para apresentá-lo. Ressaltam essas relações como qualificadoras e
importantes.

A gente elaborou um projeto pedagógico, a gente leu muito os referenciais, a gente


leu muitas revistas que vieram da Secretaria de Educação. (Gilce)

Foi muito importante porque foi um projeto que foi construído em equipe. Foi
colocada a opinião de cada um, o modo de ver de cada um. Foi significativo e foi
grandioso para quem participou. (Rosa)

Nós ficamos muito tempo, sentamos, reunimos. Então nós montamos o PPP com as
atividades que a gente faz aqui na creche: brincar, cantar, lanchar, almoçar, tudo
entra na proposta pedagógica da gente. Nós colocamos tudo no papel, tudo que a
gente faz e que a gente gostaria de fazer. (Rose)

Algumas professoras tiveram dificuldade de participar da elaboração dos


projetos. Viram-se diante dos próprios limites de sua formação. Há professoras que
nunca haviam feito sequer um planejamento de aula. Outras não conseguiam
relacionar atividades trabalhadas, os conhecimentos que as crianças experimentavam
145

e o que a professora queria que fosse apropriado. Nesse sentido, percebo um


envolvimento mais solidário entre as professoras, que passaram a ajudar umas às
outras na organização e no planejamento do trabalho, bem como a efetivação de um
lugar até então ambíguo nas instituições comunitárias de Educação Infantil – o lugar
de coordenação pedagógica:

Sem a Valéria, eu acho que eu não ia dar conta, não, porque eu não sou formada em
magistério. Aí eu tinha dificuldade de fazer plano de aula. Eu escrevia o que eu
dava, mas não colocava os objetivos que eu queria alcançar. Foi ela que me ensinou.
(Andréa)

Embora não seja recente a existência tanto da função de coordenação


pedagógica quanto da coordenação administrativa, estas se fizeram presentes de
forma pouco clara na instituição. Eram funções assumidas de forma voluntária por
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pessoas com histórias em organizações beneficentes e filantrópicas, com apropriações


preconceituosas das crianças, do desenvolvimento infantil e da expressão cultural das
comunidades mais empobrecidas. À medida que esses lugares passam a ser ocupados
com sentido pedagógico, ao lado da própria presença do Centro de Educação Infantil,
percebe-se a constituição de uma “rede de formação” entre os profissionais das
instituições de Educação Infantil. A qualificação dos lugares de coordenação se
reflete na implementação de outros tempos institucionais, que se convertem em
momentos de formação e passam a ser incluídos na organização do trabalho das
creches:

Essa coordenação pedagógica é muito importante, porque a partir daí é que a gente
está tendo novas idéias. Estamos crescendo, cada vez mais, com a Valéria. Ela fez
com que a gente partisse à procura, pesquisasse, lesse, corresse atrás. Está inovando
muito os conhecimentos que a gente tinha. O que eu quero dessa coordenação
pedagógica é que tenhamos um tempo maior, porque está enriquecendo não só o
meu trabalho, mas eu acho que o de todos nós aqui. (Rosa)

A participação na elaboração de projetos pedagógicos toca na organização de


cada professora, trazendo a possibilidade de valorizar e encontrar sentido naquilo que
fazem, promovendo um avanço, ainda que lento, na organização de seu trabalho e
identidade. Alguns limites se evidenciam: o projeto pedagógico da creche ainda
preenche necessidades mais imediatas de registro. Contradições também se
146

explicitam. Muitas das professoras que chegaram depois da elaboração do projeto não
tomam sequer conhecimento do processo. Algumas constatam mudanças, mas não as
planejam.

Gostaria de ter participado mais. Foi importante. A parte pedagógica ajudou muito.
Deu para poder entender e eu peguei muita coisa boa. (Cíntia)

Eu olhei de relance, porque quando eu entrei aqui elas já tinham feito. O que me
passaram é que a gente iria refazer, colocando o que havia renovado. Mas eu não
cheguei a pegar e ler. Inclusive, eu acho que nem está aqui na creche. (Rosa)

Foi a organização da creche que nós colocamos no papel. E nós valorizamos nosso
trabalho, colocando em um livro. (Andréa)

Outras acabam não participando, e por isso não compreendem e não se


envolvem na proposta. No caso da professoras Fátima, que poderia contribuir com
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reflexões, metodologias e um trato singular da organização do conhecimento e da


relação com as crianças, percebo que ela vai ficando deslocada na proposta da creche.
Poucas vezes esteve presente nos momentos de estudo e planejamento coletivo; e não
participa dos encontros setorizados. A professora realiza trabalhos interessantes com
as crianças, mas pouco partilha com as outras professoras; tampouco com a
coordenadora pedagógica, com quem passa a estabelecer uma tácita competição,
alimentada em mão dupla. Seu trabalho acaba perdendo força e não estabelece
articulações com o trabalho das outras professoras. Acaba vítima de sabotagens das
outras professoras, que não legitimam, não ajudam e não se envolvem. A professora
Fátima percebe isso todo o tempo. Seu trabalho fica fragmentado e descontínuo em
relação ao que a coordenadora propõe para as outras professoras:

Eu vim do SESI. Eu vim para cá porque tinha horário de manhã disponível, para que
eu não precisasse abrir mão do outro emprego. Às vezes, eu não sei o que a creche
quer. Eu acho necessário estar sentando para trabalhar de acordo com a proposta,
para você não cair de pára-quedas. É terrível e é muito chato você estar levando as
coisas assim. (Fátima)

Nas contradições desse processo vão sendo revelados os lugares de


importância dos sujeitos, sua visibilidade na instituição e a necessidade de uma
inclusão plena das diferentes pessoas. O caso da professora Elaine é muito
emblemático de como, sem que as pessoas percebam, vão massacrando a identidade
147

do outro, excluindo ou incluindo de forma precária, o que é muito pior, da construção


de uma história da qual todas fazem parte. Fica explicito que se o processo de
trabalho não for reconhecido, apropriado e significado pelo coletivo de professoras,
tanto mais lenta será sua efetivação:

Ano passado eu comecei na sala, mas esse ano a Gilce pediu que eu ficasse na
secretaria. Acho que ela acabou gostando de mim lá. Acho que ela não pretende me
tirar de lá. Eu faço de tudo que precisa: resolvo algum problema na rua, na
secretaria de educação, às vezes no CEI, na casa do presidente, do contador, todo
tipo de serviço. Eu não tenho conhecimento a fundo do projeto político pedagógico
da creche. Ajudei, mas foi mais as meninas que estão na sala. Cada uma trouxe uma
parte e mostrou os projetos para outras pessoas. (Elaine)

Nas entrevistas coletivas, ficaram evidentes os lugares sociais que as pessoas


ocupam, tendo em vista sua inserção nessa história. A professora que participa de
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forma restrita e fragmentada do trabalho cotidiano não reconhece legitimidade de sua


voz, não realça a importância de seu trabalho, não se vê como professora. Sua
identidade fraturada grita para as outras professoras o que está sendo feito com ela,
com seus sonhos e projetos. Pouco contribui com o processo de elaboração da
proposta pedagógica, não se inserindo, por isso, em um processo coletivo de
qualificação. As outras professoras também pouco percebem que têm diante delas um
espelho e que qualquer outra, em outro momento, porventura, poderia estar no lugar
daquela professora. Ao naturalizar uma exclusão, vê-se explícita a precariedade na
qual todos estão enredados. Não é uma incompetência individual que afasta as
professoras da história de construção das práticas pedagógicas; representa, ao
contrário, uma responsabilidade coletiva de encontrar significados para os diferentes
tempos e espaços que constituem essa instituição e de dignificar os diferentes sujeitos
que fazem parte e participam na e da construção de suas histórias:

Eu não tenho o que falar. Eu não tenho projeto nessa escola. De minha parte, é
difícil dizer que vou fazer um projeto. De manhã, eu não estou diretamente com as
crianças e à tarde vai depender do que acontecer na hora que eu chegar. Eu nem
sei o que eu vou fazer quando eu saio de casa. Como qualquer pessoa, eu tenho um
projeto de vida. Isso eu tenho.53 (Elaine)

53
A professora começou a chorar, por isso eu preferi interromper a gravação e sentar-me um pouco ao
lado dela. Mas ela não queria que eu desligasse, queria continuar falando. Eu não seria mais um a
roubar-lhe a voz. Calmamente a abracei e disse que estava ligando o gravador e que ela poderia falar
tudo que quisesse.
148

• Emergência de uma organização pedagógica – Diferentes maneiras de


organizar os tempos, os espaços, os ritmos, as relações com as crianças, os diferentes
papéis e lugares institucionais, o planejamento dos conhecimentos, das intenções e
objetivos, da formação e do diálogo entre os diferentes profissionais, da expressão
como professoras, etc., vão esboçando um sentido pedagógico que envolve a
instituição. Isso não significa uma organização do trabalho pedagógico articulada
com concepções e olhares que lhes permitem uma clareza dos significados de uma
educação formal e institucional de crianças pequenas. São ações cotidianas que
apontam caminhos, que provocam outras ações, que possibilitam à creche e aos seus
profissionais apropriarem-se de um sentido educativo para sua existência cotidiana,
para a consolidação de uma intervenção profissional com as crianças. Reforça um
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espaço de produção, de transformação e de mobilização de saberes que constituem


“ofício de professor”. Como assinala Tardif (2000, p. 121); e pode ser percebido na
fala da professora:

O trabalho cotidiano não é somente um lugar de aplicação de saberes produzidos por


outros, mas também um espaço de produção, de transformação, de mobilização de
saberes que lhe são próprios.

Tem a reunião pedagógica, onde a gente planeja mais ou menos o que cada uma vai
dar. A partir daí, cada um faz seu planejamento, em cima do que vai trabalhar, o que
quer trabalhar. Cada uma bola o seu projeto, e a partir daí dá início ao trabalho.
(Rosa)

As professoras expressam a apropriação de um espaço de intervenção


profissional que até pouco tempo se restringia a ficar com as crianças nos cuidados de
alimentação e higiene, espalhados pelo período que permaneciam na creche, ou a
inclusão de atividades sem uma coerência necessária, sem maiores intenções e
objetivos que fossem além do preenchimento do tempo ou possibilitassem às crianças
“gastar energia”. Não é o caso da creche pesquisada, mas sabe-se de casos em que as
crianças ficavam dentro de salas fechadas com grades, vivendo relações as mais
restritas e restritivas possíveis. Nas falas das professoras pode-se perceber essa busca
de outra dinâmica própria a uma instituição pedagógica:
149

O meu planejamento é semanal. Juntamente com a Cintia, a gente senta e planeja o


que vai dar durante a semana. Mas nem sempre a gente coloca tudo que está
previsto. Às vezes, de um imprevisto surge uma coisa que os meninos interessam
mais do que aquilo que a gente planejou. Então, a gente coloca no papel. A gente
trabalha aquilo. Depois, a gente volta no nosso planejamento e refaz. (Rosa)

Este momento encontra sintonia e articulação com a dinâmica instalada pela


presença da Educação Infantil no “âmbito da educação”. Sem desconsiderar
momentos anteriores em que a Associação Movimento de Educação Popular Integral
Paulo Englert (AMEPPE) desenvolveu um trabalho com as creches, assessorando na
construção de suas propostas pedagógicas, a partir da criação dos Centros de
Educação Infantil (CEI), vinculados à Secretaria Municipal de Educação,
estabeleceu-se outro tipo de relação entre as creches: a escrita da história de cada
uma, a elaboração dos projetos pedagógicos, a presença das profissionais do CEI nas
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creches partilhando discussões, questões e reflexões, o envolvimento das professoras


nos encontros setorizados, as trocas de experiência, tudo isso tem provocado um
movimento nas creches para a realização de um trabalho que faça sentido para a
professoras, um trabalho do qual possam se orgulhar e partilhá-lo. Segundo Tardif
(2000, p. 126), isso reflete importantes “conseqüências políticas”:

os professores serão reconhecidos como sujeitos do conhecimento quando lhes


concedermos, dentro do sistema escolar e dos estabelecimentos, o status de
verdadeiros atores, e não de simples técnicos ou de executores das reformas da
educação concebidas com base numa lógica burocrática ‘de cima para baixo’
(tradução do autor) [...] A desvalorização dos saberes dos professores [...] não é um
problema epistemológico ou cognitivo, mas político.

Percebe-se que as professoras, aos poucos, vão se assumindo como


profissionais e compreendendo seu fazer como prática pedagógica. Expressam a
organização de aulas, objetivos, recursos, avaliação, conhecimentos a serem
ensinados e como serão ensinados. Poder-se-ia buscar refletir sobre o tipo de
apropriação e uso que as professoras fazem desses conhecimentos, mas é importante
ressaltar avanços na organização do trabalho pedagógico, o que se reflete na própria
visibilidade institucional. As professoras falam com orgulho de seu trabalho, gerando
novas ações e outra dinâmica de diálogos, planejamentos e trocas coletivas; têm
150

possibilitado momentos de reflexão e mudanças de direção e intenções. Percebo nas


falas das professoras o esforço de fazer da creche uma instituição educativa:

Faço plano de aula diário. Coloco área de conhecimento, objetivos, recursos e


avaliação. Se não foi bom, eu coloco uma observação e vou tentar outro dia. Por
exemplo, na quarta-feira é matemática. Eu dou o lanche, faço a rodinha e tal. Aí,
faço a matemática com boliche, por exemplo. Coloco: matemática é a área de
conhecimento; o conteúdo é o boliche; os objetivos, eu coloco: quantidade, noção de
espaço. Coloco as cores que têm na latinha, os números e o nome. Eu sempre
trabalho o boliche com os nomes. Depois registro e avalio como foi. (Andréa)

Observo que ainda não foi possível romper com as estruturas institucionais
que se referem a rotinas e separam o que as creches chamam de cuidados do que ela
considera como a parte pedagógica. Não é fácil romper com uma história que se
traduziu em representações e discursos coletivos: crianças de creche, professoras de
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creche, uniforme da creche, doação para creche, creche para criança carente, famílias
desestruturadas e uma série de preconceitos que envolvem os contextos culturais e
sociais dessas crianças. Mas percebo brechas que possibilitam às professoras elaborar
outros significados para a existência e legitimidade desta instituição. Como expõe
uma das professoras,

meu planejamento é tipo uma rotina. Nós fazemos a rotina, do horário, da entrada, a
saída, a chegada, o lanche, tudo. Nós também planejamos nossa aula, para a gente
poder estar trabalhando com as crianças. A gente chega, depois eles lancham, aí
vem a parte do brinquedo pedagógico. Acontece o que eles optarem: se querem
brinquedo, se querem ouvir uma história, tudo é planejado. (Rose)

Fato é que as professoras experimentam no dia-a-dia da creche as relações e a


construção de sentidos que lhes é possível em um contexto de competências,
conhecimentos, recursos, reflexões que estão ao seu alcance. O mais importante é que
concepções e práticas vão se explicitando em um tempo e espaço que têm procurado
se afirmar e firmar como contexto de formação de crianças e profissionais. À medida
que expressam suas ações e constituem uma dinâmica reflexiva, por mais inicial que
seja, outras perspectivas de intervenção, organização e olhar das crianças vão se
tornando possíveis ou necessárias:
151

O que a gente tem aqui na creche, a gente usa. O que a gente não tem, a gente tenta
produzir, estar fazendo uma utilidade para alguma coisa, igual com a garrafa, que
eu entrei com um projeto que eu estou trabalhando agora com os peixes. A gente fica
pensando em fazer as coisa tudo bonitinho, mas já que não tem os materiais, a gente
usa o que tem. É a nossa realidade aqui. (Rose)

As professoras estão construindo suas identidades, e isso também traz um


movimento de reconhecimento de si mesmas e das outras professoras. Olhar para o
trabalho realizado é também olhar para elas mesmas. Às vezes, fazem críticas às
outras professoras, reflexões que poderiam ser aplicadas a elas mesmas. Ao falar do
outro, elas acabam se vendo, todavia, sob outras perspectivas, e se projetando de
outra maneira:

Tem professora, não falando mal de ninguém, que tem um ritmo diferente. Acho que
não consegue pegar. Mas tentamos fazer algumas coisas juntas para quando o
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menino chegar na minha sala não ficar aquela coisa, tipo perdida. (Andréa)

Eu acho que se a gente tivesse uma mesma língua, as crianças sentiriam mais
confiança, talvez o respeito seria maior. Acho que essa agressividade seria menor
também. (Fátima)

Assinalo a importância do lugar de coordenadora pedagógica nesse processo.


No momento da entrevista coletiva, o papel de coordenação se explicitou de
diferentes modos. É a coordenadora pedagógica quem mobiliza as professoras para
que façam seus planejamentos e registros, e assume um lugar de sistematização dos
conhecimentos, concepções, avanços e conquistas no processo de organização do
processo de trabalho:

Eu gostaria que elas colocassem para você a questão dos projetos, a importância
que isso está tendo para elas, já que esse é o primeiro ano que a gente está
trabalhando dessa forma. (Valéria)

Às vezes eu fico brigando com elas: ‘Onde está o planejamento, o registro?’ A


gente vê que existe crescimento e empenho também. Apesar de eu achar que elas
têm capacidade ainda de desenvolver coisas maravilhosas, que ainda não foram
colocadas aqui. Mas tudo é um processo, claro que vai desenvolvendo. (Valéria)

Em alguns momentos, a coordenadora pedagógica acaba falando pelas


professoras e revelando-se na forma de um discurso autoritário. Contudo, mesmo a
coordenadora falando de um lugar diferenciado das professoras, no plano pedagógico,
as relações são mais de solidariedade do que de disputas de poder. Nos limites e na
152

história de cada professora, cada uma tem sido convidada a assumir lugares de
protagonismo e a organizar o trabalho com as crianças, construindo seus próprios
caminhos. Na discussão do trabalho, essa instituição de Educação Infantil tem
representado um espaço de formação para as professoras e de valorização dos lugares
que as crianças ocupam e participam nessa experiência:

No final, acho que estava todo mundo cansado e acho que o envolvimento foi
menor. Eu acho importante elas reconheceram que elas se entregaram. Caíram na
mesmice. Elas reconheceram que erraram. Por que será que isso aconteceu?
(Valéria)

No ano de 2003 eu joguei a responsabilidade para elas. Elas que vão desenvolver
os projetos. Claro que o apoio a gente vai dar, mas é para elas se envolverem mais
e colocarem, também, a criança mais envolvida. Eu acho que isso é importante. O
projeto não é nosso, o projeto tem que ser da criança. Mas, para quem está
começando, eu acho que a gente deu um passo bem grande. (Valéria)
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Esse processo de consolidação de uma rede de formação nas próprias creches,


embora com dificuldades de lidar com os tempos institucionais, representa importante
papel nas inovações pedagógicas com as crianças. Na creche pesquisada, mesmo que
ainda se pautem em uma estrutura cotidiana que define rotinas institucionais e, em
vários momentos, fragmenta o cuidar e o educar, hierarquiza tempos e espaços,
classifica relações e conhecimentos, a emergência de um significado pedagógico tem
possibilitado outras maneiras de organizar o trabalho, os conhecimentos e as relações
com as crianças. Aproximam-se, como ressalta Kramer (2003a, p. 41), do duplo
desafio de pensar e praticar a creche, a pré-escola, a escola como instâncias de
formação cultural; de pensar e agir com as crianças como sujeitos de cultura e
história que são. Como ressaltado pela coordenadora pedagógica:

A gente tentou esse ano entrar com a Pedagogia de Projetos. Cada sala, de acordo
com a necessidade da criança, foi desenvolvendo determinados temas. (Valéria)

Além de buscar caminhos para a organização do trabalho pedagógico na


creche, suas relações vão tecendo um movimento de qualificação humana e
profissional dos diferentes sujeitos envolvidos. Elas falam de suas dificuldades e
surpresas. As crianças também apontam caminhos interessantes, e as professoras têm
153

ficado mais atentas às crianças, em um processo de reconstrução do olhar e das


relações nos diferentes tempos e espaços da creche:

O meu projeto foi parecido com o das meninas. Só que eu não sabia o que era
projeto. Os meninos viram uma borboleta e quiseram saber mais. Achamos um
poema em um livro. Li o poema para eles. Fizemos um mural. Enfeitamos a sala.
No outro dia, uma menina veio com o sonho dela. Ela guardou da aula anterior
sobre a borboleta e veio falar que a borboleta veio levar ela para fazer um passeio.
A turma ajudou. Ela foi contando a história, e os meninos foram entrando no meio
da história. Por fim, todos tinham sonhado. A Valéria me ajudou a montar um
texto. (Rose)

Compreendo, na partilha do cotidiano da creche, um exercício – ora


intencional, ora não tão consciente – de buscar encontrar formas de organização e
significados para os conhecimentos e relações que querem experimentar e partilhar
com as crianças. Desse movimento/envolvimento têm emergido reflexões
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importantes. Ao falar de suas dificuldades, anunciam uma capacidade de apropriação


de novos conhecimentos e concepções; são capazes de apontar suas próprias lacunas,
equívocos e limitações, bem como de perceber seus avanços:

Minha dificuldade de desenvolver projetos é dar continuidade. Você monta aquela


coisa gostosa com as crianças, vai trabalhando, e de repente vem outra coisa. Se eu
tivesse organização, até daria para aliar as duas coisas. Comecei trabalhando a
identidade, depois zoológico, depois, não como projeto, teve a semana das sucatas.
Eu vi que teve resultado realmente foi no finalzinho, que a turma estava ciente de
como é o trabalho. No finalzinho do ano, estava gostoso de trabalhar na turma.
(Fátima)

Quando puderam, na entrevista coletiva, falar juntas do trabalho na creche,


assumiram toda a dificuldade desse momento. Sabem que requer mudanças e
rupturas, e isso não se dá da noite para o dia: mobiliza a necessidade de estudos.
Sabem também que dar prosseguimento à construção de um significado pedagógico
para a creche requerer uma construção coletiva, demanda ações, conhecimentos e
força que, de forma individual, talvez, saibam faltar:

O projeto requer mudança. E toda mudança a gente fica com o pé atrás. Mas o
projeto é também muita pesquisa, muita leitura e isso às vezes põe um pouco de
receio nas pessoas. É muito trabalho. E a gente hoje tem que mudar nossa forma
de pensar. (Valéria)
154

3.7 Professoras e crianças no espaço escolar: uma mútua produção de


saberes

As professoras revelam marcas de suas trajetórias e maneiras como mobilizam


e expressam saberes atravessados por perspectivas teóricas e conceituais que se
cruzam, se tensionam e se complementam. Além da trajetória como mulher e mãe,
trazem saberes de suas diferentes formações, dos cursos e das oficinas, das
intervenções de outras instituições que se intitulam parceiras, dos conhecimentos
“repassados” por coordenadoras ou por outras professoras, das trocas de experiência,
etc. Estes também se articulam às diferentes possibilidades de participação e
envolvimento na construção da Educação Infantil: constituem-se, pois, de
experiências e concepções, atravessados tanto pelas relações sociais quanto pelas
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produções acadêmicas e pelas políticas de infância: são saberes plurais, provenientes


de fontes variadas e de diferentes naturezas (TARDIF, 2002, p. 61).
Ainda que os conhecimentos dos quais as professoras precisam lançar mão
nas relações com as crianças sejam mediados por circunstâncias imediatas (cuidado,
higiene, afeto, diferentes ritmos, comportamentos, demandas, necessidades,
organização, etc.), eles mobilizam as professoras a ampliar seu papel e o da
instituição de Educação Infantil . À medida que conseguem registrar e partilhar ações
e planejamento, suas relações com as crianças, por mais imediatas e contraditórias
que sejam, refratam, no sentido de Bakhtin (1988), um movimento e uma tentativa de
ampliação dos significados do seu fazer pedagógico. Como descrito por uma das
professoras:

Meus meninos tinham dificuldade de aprender lavar as mãos. Chegavam no


banheiro, era água no cabelo, na roupa, porque as crianças acham que estão
brincando com a água. O que eu fiz? Trouxe a água para a sala de aula. Era molhar
o pezinho, a gente brincava de pintar com o pé, depois jogava água no pé; era
brincar de jogar água voando, no parquinho era bolinha de sabão, e eu trouxe a
água para dentro de sala de aula. (Fátima)

A noção de direito de um atendimento de qualidade para as crianças reforça o


movimento de superação da visão de creche restrita à idéia de cuidado. Outras
estratégias e discursos ampliam o reconhecimento dos profissionais e das instituições
de Educação Infantil como tempo e espaço escolar. Ainda que as perspectivas de
155

relações e experiências culturais e sociais entre professoras e crianças pareçam


limitadas, apontam para outra visão e reconhecimento de direitos fundamentais:

Você vê a descoberta deles nesse mundo da escrita, nesse mundo da matemática. Os


pais têm elogiado. Meu filho está falando as letrinhas. Minha turma, onde tiver livro,
para eles não precisa ter mais nada. É uma coisa que eu gosto também e procuro
passar para os meninos. Copiar letra, esse papel eu não concordo. Agora o
professor estar dando informação para a criança, que a criança assimila do jeito
dela, aí eu concordo sim com a leitura e escrita na Educação Infantil. É gostoso você
brincar de um bingo de letrinhas com as crianças. (Fátima)

Entendo que a expressão de outros conhecimentos e práticas das professoras


promove o exercício de atribuição de uma concepção pedagógica à Educação Infantil.
As professoras têm incluido em suas falas e nas suas práticas conceitos e concepções
nos quais procuram identificar argumentos para dar legitimidade ao trabalho com as
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crianças. Atenho, pois, meu olhar, como assinala Machado (2000, p. 195), tanto para
as interações das professoras com as crianças quanto para um processo progressivo de
ampliação de suas experiências e conhecimentos:

Então eu vejo que a Educação Infantil também é lugar de matemática, de português,


de ciências, de geografia, de história. Vai fazer uma culinária com a criança, ela não
está sabendo que ela está estudando química, ciências, mas ela está percebendo uma
transformação daquele ovo que ela coloca, daquela farinha de trigo, na massinha.
Depois, ela vai poder manusear e vai virar uma massinha para ela brincar. (Fátima)

Percebo na fala das professoras uma dificuldade de diferenciar uma idéia de


qual seria o papel de professora – que também envolve uma relação de cuidados e
higiene das crianças – das ações que deveriam ser atribuídas às famílias. No
cotidiano, o lugar pedagógico, em muitos momentos, mistura-se, confunde-se e
substitui o lugar de mãe (mais que o lugar da família), que no olhar das professoras,
por negligência ou falta de competência, caberia à creche e a seus profissionais suprir
na educação das crianças. Tais relações são complexas, uma vez que, como assinala
Maranhão (2000, p. 122), o ato de cuidar, historicamente associado à Educação
Infantil, não se dissocia – nem pode se dissociar – de um pleno significado educativo.
Contudo, também revela uma história de fragmentações, tutela e desprestígio que
precisa ser reconhecida para ser superada:
156

Por que é importante cortar unha, que é uma coisa tão casa? (Referindo a seu
diálogo com as crianças em sala de aula54) Por que é importante cortar unha, alguém
sabe? Vamos brincar de cortar unha hoje? Vamos então pedir ao papai e à mamãe
para estar cortando a unha de vocês. Isso é coisa de levar informação, de cuidar, de
zelar. (Fátima)

Compreendo, também, que essa contradição e essa ambivalência emergem nos


momentos em que as professoras não conseguem se desvencilhar de uma postura
preparatória com relação aos momentos seguintes da escolarização. Misturam um
forte conteúdo moral e refletem toda a dificuldade de superação de uma visão
idealizada, genérica e, às vezes, preconceituosa das crianças:

Ensino a convivência, saber dividir, compartilhar com os outros, a socialização uns


com os outros. Eu acho que isso é muito importante. (Rose)

Compartilho uma concepção de que o cuidado, a atenção e o acolhimento


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precisam estar presentes na Educação Infantil e de que é fundamental assegurar a


expressão da leitura, da escrita e de outros códigos e conhecimentos como processo
de inserção, imersão e produção da cultura. Como assinala Kramer (2003, p. 40), não
ter, muitas vezes, condições adequadas para realizar um trabalho dessa natureza não
pode se refletir no descompromisso com a produção cultural de professoras e
crianças.
Nas entrevistas coletivas, as professoras expressam uma história coletiva que
faz emergir diferentes trajetórias, tanto das professoras quanto das instituições de
Educação Infantil. Se, por um lado, o contexto atual não explicita superação de
condições precárias e, em muitos casos, desqualificante que as professoras da
Educação Infantil vivenciaram ao longo das últimas décadas, por outro lado,
potencializa um reconhecimento de identidade, e com isso uma nova possibilidade de
organização pedagógica e institucional envolvida em um processo de construção de
outra imagem profissional. Referem-se à importância de “pesquisar” o que vão fazer
com as crianças, discutir coletivamente, registrar os limites e as possibilidades de sua
intervenção, incluir questões que dizem respeito à possibilidade, não apenas de
construir, mas de reconhecerem e se reconhecerem na creche e nas relações com as
crianças consolidadas pelo seu sentido educativo:

54
Grifo do autor.
157

A gente percebe preocupação com o registro da criança. Você dá um poema. O que


é um poema para ela? Será que ela entendeu alguma coisa desse poema? Quando
ela registra, você percebe direitinho. O que eu achei mais interessante foi como os
meninos colocaram isso no papel. Você percebia que tinha significado. Porque é
isso que a gente tem que ter a preocupação, do significado que aquilo tem para
eles. (Fátima)

Ainda que em alguns momentos as professoras expressem uma avaliação


negativa do que foram capazes de realizar, e mesmo que assumam um lugar de
culpabilidade pelos limites de seu fazer, também é importante ressaltar que esse
movimento tem provocado uma desestabilização e um movimento de registro,
apropriação e tentativas de implementação de outras perspectivas de relação com as
crianças e o conhecimento:
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Eu acho que ainda falta pesquisar, a gente podia ter aprofundado mais. (Valéria)

Nós deveriamos ter pesquisado mais, foi uma falha nossa. (Rosa)

Nesse sentido, uma concepção ou noção de projeto passou a canalizar a


possibilidade de construção de outra maneira de organizar os conhecimentos e as
relações com as crianças. Nesse tipo de organização do trabalho que as professoras
denominam projetos, passam a relacionar alguns temas que ajudam a pensar o
cotidiano da creche e seu trabalho com sentido pedagógico. Pensar na forma de
projetos tem possibilitado às professoras perceber outra perspectiva de inclusão de
conhecimentos que, ao mesmo tempo, podem ser legitimados como saber escolar,
mas emergem de suas necessidade de diálogo com as crianças, das realidades
culturais e sociais onde se inserem, trazendo questões importantes para todos os
envolvidos – crianças, professoras e instituição – e um progressivo sentido e
significado às suas ações pedagógicas.

A gente tentou esse ano entrar com a Pedagogia de Projetos. Desenvolver projetos,
de acordo com a necessidade da criança, com determinados temas. Eu comecei
como professora e depois passei para a coordenação. Eu vi um crescimento muito
grande de todas. (Valéria)

No início do ano foi o projeto da sexualidade, depois surgiu o da identidade. Esse


último agora foi sobre o Natal [...] surgiram perguntas. Os meninos trouxeram
muita coisa de casa, relacionado a temas. (Fátima)
158

No próximo capítulo, procuro ampliar essa experiência partilhada por


diferentes atores – narrada neste capitulo –, articulando-a aos contextos político,
social e cultural, que constituem relações históricas demarcadas por um universo mais
amplo. Se o cotidiano da creche ganha sentido nas trajetórias das professoras, estas
também estão entrelaçadas à própria história da Educação Infantil. Requer, por isso,
estender e compreender uma rica teia de relações que configuram as políticas de
infância, os signos e discursos que se revelam nos sujeitos. Apropriar-se da história
também coloca-se como condição fundamental à elaboração e efetivação de novos
discursos, experiências e práticas.
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4. Cenas e signos de uma história política, ética e estética
dos sujeitos e da Educação Infantil

Este capítulo está estruturado em duas vertentes, que constituem pontos de


entrada para uma leitura da Educação Infantil em Belo Horizonte. Expressam uma
tensão de caráter macro e microssociológico (BRANDÃO, 2002: 103), em que
proponho articular uma análise da política de Educação Infantil no município à
visibilidade de crianças pobres nas políticas de infância no Brasil. Concepções e
ações revelam signos de reconhecimento que materializam essa infância na cena
social, o que abre brechas para compreender o projeto cultural que marca a formação
humana de crianças e professoras.
Em um primeiro momento, apresento um olhar sobre uma história recente da
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Educação Infantil no município de Belo Horizonte, partilhada e focalizada de


diferentes perspectivas e lugares sociais. Focalizo o registro de atores que estiveram
presentes no movimento social, na gestão pública e no contexto acadêmico, e narram
uma história que vem sendo construída. Elegi, na elaboração deste texto, fontes
documentais que materializam registros e análises realizadas no período posterior a
1993, quando entra em cena uma concepção progressista de gestão municipal, em um
contexto mais amplo de abertura política.55
A seguir, procuro aproximar-me das histórias das instituições de Educação
Infantil que as profissionais escreveram na elaboração de seus projetos político-
pedagógicos.56 Emergem concepções e olhares inscritos nos trajetos e contextos,
explicitando lugares sociais enraizados e um processo de elaboração de outras
perspectivas. Percebo, nesse sentido, que a visibilidade das instituições de Educação
Infantil, bem como de seus profissionais, está relacionada à história de uma infância

55
Ressalto as produções de Batista e Coelho (2000); Veiga (2001); Silva (2002); Dalben (Coord.)
(2002); Vieira (2002); e as publicações da PBH/SMED: Revista Infância na Ciranda na Educação
(Entre 1994 a 2003 foram publicados 5 números: 1994, 1996, 1997, 2000, 2003); os Cadernos
Ciranda Cirandinha (1999 e 2000) e o documento Subsídios para o Projeto Político Pedagógico da
Educação Infantil (2002).
56
Foram lidos e analisados 10 projetos pedagógicos, retirados aleatoriamente entre as 23 Creches
Comunitárias da Região do Barreiro: 1CCBM; 2 CCCA; 3 CCE; 4 CCMB; 5 CCTF; 6 CCVP; 7
CACJ; 8 CLCC; 9 CTC; 10 LFC.
160

atendida por essas instituições, tornando-a visível,57 o que requer reconhecimento,


apropriação e reflexão.

4.1 Entre discursos e ações: “reflexos e refrações” de uma política


de infância

Recorro ao contexto de políticas para a infância que, na recente cena política


brasileira, expressa significativos avanços,58 mas não esconde contradições que
condicionam e marcam a implementação das políticas de Educação Infantil nos
estados e municípios. Como assinalam Corsino e Nunes (2001a, p. 79),

embora a legislação tenha avançado no sentido de entender a criança como cidadã,


sujeito, portanto, de direitos sociais, o mesmo não pode ser dito quanto à uma política
articulada para a infância, em que as diferentes áreas do governo federal atuam em
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prol das crianças [...], principalmente, aquelas relativas às crianças das classes
populares, tradicionalmente excluídas das políticas públicas.

Como ponto de partida, focalizo uma mudança de concepção na Política


Nacional de Educação Infantil do “Ministério da Educação e do Desporto”. Até
meados da década de 1990, em torno do período de 1994 a 1996,59 buscou-se elaborar
uma metodologia de análise de políticas em que estados e municípios pudessem
empreender suas próprias formas de concepção e implementação.60 Este percurso foi
rompido com a divulgação do documento “Roteiro de Metas para orientar o debate
sobre o Plano Nacional de Educação”, com diretrizes destoantes do proposto na
Constituição Federal (1988) e da Lei de Diretrizes e Bases (1996)61. Em seguida, foi

57
Uso o conceito de “visibilidade”, proposto por Nunes (2000, p. 2), referindo a signos que conferem
reconhecimento social às crianças, às famílias, às profissionais e à instituição de Educação Infantil.
58
Especialmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), em que as crianças são concebidas
como sujeitos de direitos, e a LDB (1996), em que a Educação Infantil é situada na Educação Básica,
direito definido como responsabilidade do Estado, com um papel específico no sistema educacional.
59
Período em que Angela Barreto esteve à frente da Coordenação Geral de Educação Infantil do MEC.
60
Como lembra Kramer (2001b, p. 5), várias etapas já haviam sido percorridas: produções teórica
sobre o tema; critérios para análise das propostas e sua implementação. O MEC solicitou das
Secretarias de Educação suas propostas pedagógicas. Foram compostas equipes com participantes do
MEC e consultores que estiveram nos locais das propostas analisadas. Relatórios foram escritos e
publicados em um material para subsidiar as equipes de secretarias municipais e estaduais na análise e
elaboração de propostas em Educação Infantil – MEC/SEF/DPE/COEDI (1996).
61
A Política de Educação Infantil, nesse momento, sofre decisiva influência do Banco Mundial,
retomando linhas anteriores da UNICEF e da UNESCO, apontando para modelos de atendimento não
formais, de massa, apoiados no custeio das comunidades e baixo investimento público, o que não
contribuiu para a efetivação de uma Educação Infantil pública (SILVA, 2002, p. 59).
161

publicado, em 1998, o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil,62


que materializou a desconstrução de um processo que vinha envolvendo diferentes
setores organizados ligados à Educação Infantil, afinados em um contexto de luta por
cidadania e direitos.
O não-reconhecimento de que a história é contraditória, dialética e escrita por
diferentes atores é uma postura política. Não é ingênua e não é neutra. Traduz um
projeto de sociedade e expressa uma decisão deliberada de não legitimar outras
referências elaboradas na experiência social: esvazia a cena histórica, desenraíza
significados, naturaliza equívocos e injustiças, legitima panacéias burocráticas e
científicas. Nesse sentido, como ressalta Kramer (1999, p. 166), perdeu-se

uma rica e interessante oportunidade de provocar situações nas quais, de forma


coletiva e organizada, os profissionais, as crianças, os jovens e os adultos que
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freqüentam as escolas e a população em geral pudessem pensar a educação que temos


hoje, discutir o que queremos, e compreender o que precisamos fazer, questionar e
mudar para conquistá-la.

Em Belo Horizonte, se tomarmos como referência o período posterior a 1993,


observo a emergência de outro tipo de discurso que, naquele momento, propôs
ampliar os canais de debate com a sociedade. O Poder Público no município apontou
para um contexto de discussão que envolveu a formação de profissionais e a
efetivação do que já vinha sendo elaborado como “Critérios para o Atendimento em
Creches que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças” (1995),63 reafirmando
diretrizes e princípios políticos para as ações governamentais e não-governamentais.
Contudo, muitas dificuldades atravessaram a elaboração de outra ação política.
Mesmo em sua trajetória recente, o município de Belo Horizonte, no que diz respeito
à Educação Infantil, continua embaraçado em um tipo de atendimento que traduz uma
visibilidade das crianças relativa à sua situação de pobreza, não efetivando sua
responsabilidade pública com o direito das crianças à Educação Infantil (SILVA,
2002, p. 164).

62
Diante da precariedade de políticas para a infância e formação profissional, sua publicação acabou
por desencadear uma qualificação do debate da Educação Infantil. Contudo, assinalo as críticas
direcionadas ao processo de elaboração, que rompeu com diferentes fóruns de discussão e produção de
conhecimentos, como o GT Educação Infantil da Anped. Sugiro a leitura de alguns dos pareceres
encaminhados ao MEC, publicados em FARIA e PALHARES (org.), 1999; e KRAMER, 1999.
162

Não se deve ignorar que a explicitação de uma perspectiva mais pública e


democrática direcionou outra maneira de reconhecimento de direitos da infância,
trazendo concepções e olhares que puderam se afastar das idéias de falta e carência, e
de ações compensatórias. Entretanto, a Educação Infantil no município, envolvida em
ambigüidades históricas e políticas mais amplas, constitui um processo complexo, em
que ora vem consolidar direitos, ora acaba reforçando hierarquias educacionais e
desigualdades sociais. Nesse sentido, a Política de Educação Infantil em Belo
Horizonte deve ser analisada como resultado de uma história que envolve diferentes
concepções, atores, trajetórias, relações de força e de poder.

• Uma relação ambígua entre o Poder Público e a sociedade civil – Lembro


que uma política nacional de convênios na área de creches foi concebida na década de
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1970 em uma lógica expansionista, pressupondo contrapartida significativa das


entidades sociais e participação voluntária da própria população beneficiária. A
emergência dessa política aconteceu diante da inexistência de uma legislação e de
uma política educacional referente à criança pequena. Crianças e famílias pobres
acabaram penalizadas com um atendimento precário. Tanto as ações públicas como
as privadas ganharam um sentido de doação e de favor.
No final da década de 1980 e início da década de 1990, o cenário das creches
em Belo Horizonte continuava restrito. Havia dificuldades com a sua manutenção e
com o pagamento de seus profissionais. As despesas com alimentação e material de
limpeza contavam com doações de empresas e comunidades. Organizações não-
governamentais prestavam assessorias tanto administrativa quanto pedagógica e
buscavam garantir recursos técnicos e financeiros. Embora representassem um
contraponto às ações do governo, dando visibilidade às demandas de implementação
de políticas públicas sociais, também legitimavam uma dicotomia entre o público e o
privado.64

63
BRASIL/ MEC/ SEF (1995).
64
Veiga (2001, p. 107) ressalta a importância da Associação Movimento de Educação Popular Integral
Paulo Englert (AMEPPE) na efetivação de direitos das crianças e adolescentes. Sua articulação com
Conselhos de Direitos no Fórum Mineiro de Educação Infantil e na Frente de Defesa da Criança e do
Adolescente foi decisiva para as políticas de Educação Infantil em Belo Horizonte.
163

A partir de 1993, ensaia-se uma maior aproximação entre o Poder Público e as


instituições da sociedade civil. Entretanto, mesmo ampliando os canais de diálogo
com a sociedade, as demandas não foram incorporadas a uma agenda política. Veiga
(2001, p. 143), comparando os rumos da política de Educação Infantil em Belo
Horizonte e em São Paulo, ressalta, na capital paulista, a importância da participação
de técnicos ligados a órgãos municipais (em especial a Secretaria de Bem-Estar
Social) para a consolidação de uma proposta de implantação de uma rede de creches
gerida pelo Estado. Ao contrário, assinala como a fragilidade da organização
burocrática em Belo Horizonte e a forma como foram encaminhadas as pressões
sociais não apontaram para a garantia do direito das crianças à Educação Infantil.
Nesse sentido, de um lado, as reivindicações sociais não contaram com o
apoio dos técnicos das Secretarias Municipais, que não ajudaram a quebrar
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resistências internas encontradas em outros órgãos municipais; de outro, as


reivindicações comunitárias reiteraram uma concepção de creche administrada pela
comunidade, apenas com apoio financeiro do Estado, reforçando a prática de
conveniamento (VEIGA, 2001, p. 153). Essa configuração política atravessou a
década de 1990, avançando para além do ano 2000, consolidando-se como o principal
instrumento das ações governamentais.
Com tais reflexões, não proponho, em hipótese alguma, desvalorizar uma
história do movimento social, em particular uma trajetória de luta do Movimento de
Luta Pró-Creche (MLPC), para a compreensão da Educação Infantil como um direito
e sua preocupação com a qualidade do atendimento. Expressam conquistas, e não
devem ser percebidas (e descartadas) como mero resíduo. Essas pressões se
mostraram decisivas na consolidação de processos democráticos e na possibilidade de
formação e exercício de cidadania. Como bem frisa Telles (1999, p. 176),

se os modelos conhecidos de proteção social vêm sendo colocados em xeque pelas


atuais mudanças no mundo do trabalho e que conquistas sociais vêm sendo
demolidas pela onda neoliberal no mundo inteiro, também é verdade que esse
questionamento e essa desmontagem reabrem as tensões, antinomias e contradições
que estiveram presentes na origem dessa história. [...] Esses conflitos, longe de se
reduzirem ao puro confronto de interesses, colocam em pauta o difícil e polêmico
problema da igualdade e justiça em uma sociedade dividida internamente [...]. Será
necessário reativar o sentido político inscrito nos direitos sociais.
164

A luta pelo reconhecimento do direito da criança pequena à educação e a


necessidade de implementar diretrizes de atendimento e qualidade colocaram a
Educação Infantil na pauta de discussão sobre as políticas de educação, requerendo a
efetivação da responsabilidade de assegurar a oferta pública de instituições de
Educação Infantil a todas as crianças. Mas é importante perceber – como
possibilidade de ressignificação e reconstrução de uma história – que em Belo
Horizonte, por não ter sido priorizada a luta por instituições públicas de Educação
Infantil, perdeu-se uma oportunidade de pressionar por mudanças significativas na
política do município.
Neste ponto, recai a dificuldade de efetivação da Educação Infantil como
direito, aprofundada pela desarticulação entre as esferas federal, estadual e municipal
de governo. O gasto público neste setor não ganha visibilidade como prioridade do
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governo federal.65 Em um contexto e concepção de descentralização e


municipalização de políticas sociais, o Brasil, embora acompanhe um movimento
mundial pela valorização social da criança e da defesa de seus direitos, expressa uma
descontinuidade e desarticulação em suas políticas públicas (KAPPEL, 2000, p. 141).
De 1993 a 2001, a população de 0 a 6 anos, na capital mineira, perdeu 10.886 vagas
na rede estadual e a rede municipal deixou de ofertar 707 vagas. Uma perda total de
11.593 vagas públicas (DALBEN, 2002: 50). Em Belo Horizonte, segundo dados do
Censo Escolar (2001), do total de 822 instituições de Educação Infantil apenas 13
instituições são pré-escolas municipais, e não há oferta pública em creches para
crianças de 0 a 3 anos. Destas, 171 creches possuem convênio com a prefeitura e
atendem 18.237 crianças.66 Mesmo assim, não deve ser considerado irrelevante o
atendimento à criança de 0 a 6 anos em Belo Horizonte.
Essa situação se agrava com a desigualdade das condições de atendimento em
diferentes regiões da cidade, penalizando os mais pobres. As creches conveniadas, em
sua maioria, não contam com espaços e condições adequadas. Segundo dados

65
Segundo KAPPEL (2000, p. 139), a proporção dos gastos em programas específicos para a educação
da criança de 0 a 6 anos é mínima, sendo de apenas 4,6% dos gastos com a educação. Dos gastos com
a Educação Infantil, 82,7% são provenientes da esfera municipal, sendo mínimo o investimento na
capacitação e na valorização do magistério (1,1%) – dados que relacionam a Pesquisa Nacional por
amostra de domicílios – PNAD / IBGE (1998) e o Censo Escolar / MEC (1998).
165

analisados por Dalben (2002, p. 63-65), 52% das professoras em exercício não
possuem habilitação mínima exigida pela LDB (Ensino Médio, modalidade normal).
Mais de um terço em 2000, havia sequer concluído o Ensino Fundamental. Apenas
3% têm formação em nível superior (BELO HORIZONTE, 1999c). Grande parte das
professoras nas creches conveniadas cumprem uma jornada semanal entre 40 a 50
horas de trabalho.67
De forma distinta, nas pré-escolas municipais as professoras são habilitadas,
admitidas por concurso público e remunerados por sua formação, inseridas em um
Plano de Carreira aprovado pela Câmara Municipal, prevendo uma semana legal de
trabalho de 22 horas e 30 minutos, envolvendo o planejamento das atividades e
aperfeiçoamento profissional. Segundo levantamento da SMED, para o primeiro
semestre de 1998 aproximadamente 80% dos professores da rede municipal de
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ensino (8965) possuíam formação superior; sendo que 23,06% (2068) já havia
concluído ou estavam cursando especialização, 85 possuíam ou estavam concluindo o
mestrado e 4 professoras cursavam o doutorado (DALBEN, 2002, p. 66). Tais dados
ressaltam a importância do investimento do Poder Público na garantia do direito a
uma Educação Infantil de qualidade para crianças e professores.
Mudanças vêm ocorrendo. Desde 1997, a Assessoria de Educação Infantil foi
integrada à Coordenação de Política Pedagógica (CPP) promovendo a discussão e a
elaboração de propostas de política pedagógica. A transferência da gerência dos
convênios para a Secretaria de Educação teve o mérito de anunciar uma política para
a Educação Infantil fundamentada em uma concepção de infância e de educação
como direito.
Polêmicas e divergências também foram explicitadas. Esse contexto foi
marcado por discussões em torno do papel das instituições e dos lugares da Educação
e da Assistência Social na efetivação desse direito. Observa-se, em alguns casos, o

66
O censo populacional 2000 de Belo Horizonte apresenta os dados de 230 mil crianças de 0 a 6 anos
entre uma população de 2. 232.747 habitantes.
67
Para ampliar essa reflexão sobre os grandes desafios que a constituição de uma política de Educação
Infantil no município, sugiro a leitura da pesquisa Cuidado na primeira infância: a realidade
encontrada em bolsões de pobreza de Belo Horizonte, no ano de 2000, coordenada por Allyson
Carvalho, Janete Ricas e Marília Machado, da UFMG, em parceria com a Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social e da pesquisa Educação Infantil: a construção de um direito, também no ano
de 2000, em parceria com a Secretaria Municipal de Planejamento de Belo Horizonte.
166

surgimento de posições que tendem a reforçar uma dicotomia entre o que seria uma
prática ligada à ação de cuidar e a ação de educar. Como assinala Campos (1999, p.
124),

essas mudanças acirram disputas em alguns campos profissionais. Discute-se se as


creches devem vincular-se à educação ou à assistência social: na área educacional, há
uma resistência muito grande em acolher a creche como parte integrante da educação
pré-escolar e uma rejeição às atividades de cuidado, consideradas ‘assistencialistas’.

Entretanto, novos modelos surgem como contraponto à noção de que a creche


seria um local de guarda das crianças. Nas questões que remetem à identidade do
professor, percebe-se o incremento das discussões sobre valorização dos profissionais
que atuam em creches e pré-escolas68. Tudo isso potencializou o debate sobre as
condições de trabalho, sindicalização e direitos trabalhistas, e a discussão do
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significado da prática educativa e do trabalho pedagógico. Nesse contexto, também,


assinalo

o papel político dos Fóruns de Educação Infantil, em muitos estados, reunindo


instâncias e instituições que atuam nesta área para discutir, conhecer a realidade da
Educação Infantil e propor saídas que contemplem um atendimento de qualidade às
crianças de 0 a 6 anos e a ampliação deste atendimento, e seu evidente papel de
formação (KRAMER, 2000, p. 5).

Diante desse quadro, em 1999 a Prefeitura de Belo Horizonte apresentou um


novo formato de convênio, que passaria a ser gerenciado pela Secretaria de Educação.
Como aponta Dalben (2002, p. 95), foi proposta uma implantação piloto, por um
período de um ano, cuja avaliação apontaria perspectivas para subsidiar definições do
governo municipal no que diz respeito a essa política. Embora representantes das
creches e do MLPC tenham sido convidados a constituir uma Comissão Integrada,
com o objetivo de informar e avaliar o processo e receber sugestões, havia a
expectativa de participação maior. Isso trouxe insatisfações e dúvidas sobre esse
novo modelo de convênio. Como lembra Telles (1999, p. 178-180),

68
Em 1995 foi criado o Grupo de Apoio à Profissionalização do Educador Infantil (GAPEI).
Inicialmente assustou os dirigentes de creches, que temiam o grupo como um forma sindical
embrionária (enquanto a direção do MLPC compunha-se, na sua maioria, por coordenadores de
creches, as integrantes do GAPEI eram, na sua maioria, educadoras leigas). Entretanto, o debate em
torno da valorização, do reconhecimento, da formação e da organização sindical, levou as educadoras
de creche, além de refletir sobre a situação trabalhista, a enfatizar as especificidades das instituições
em que atuavam. (VEIGA, 2001, p. 65)
167

para além de garantias formais inscritas na lei, os direitos estruturam uma linguagem
pública que baliza os critérios pelos quais os dramas da existência são
problematizados em suas exigências de eqüidade e justiça. [...] O que desestabiliza
consensos estabelecidos e instaura um litígio é quando esses personagens
comparecem na cena política como sujeitos portadores de uma palavra que exige seu
reconhecimento – sujeitos falantes –, que se pronunciam sobre questões que lhes
dizem respeito, que exigem partilha de deliberação de políticas que afetam suas vidas
e que trazem para a cena pública o que antes estava silenciado, ou então fixado na
ordem do não pertinente para a deliberação política.

Esse piloto foi proposto a 22 instituições (de um total de 171 creches


conveniadas), mas apenas 13 aceitaram participar.69 Esse formato de convênio
estabeleceu um valor para o repasse mensal às creches, subdividido em duas partes:
um valor baseado no número de professores e do coordenador pedagógico, com
critérios que envolvem a formação profissional e o numero de crianças atendidas,
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acrescido de outro valor que levaria em conta um quadro básico de profissionais para
cada instituição: uma cozinheira, uma auxiliar de cozinha (quando o número de
crianças for superior a 80) e um funcionário para serviços gerais (DALBEN, 2002, p.
86). Essa experiência apontou perspectivas interessantes: veio acompanhada da
regulamentação da Educação Infantil pelo Conselho Municipal de Educação e
apresentou maior controle sobre a prestação de contas e a administração dos recursos
financeiros (DALBEN, 2002, p. 113). Uma dificuldade ressaltada pela coordenadora
da creche pesquisada relaciona-se à contrapartida da instituição. Os recursos
repassados pelo Poder Público, segundo ela, não garantem a manutenção da creche,
cabendo à instituição buscar outras contribuições e ajudas beneficentes. Acabam
solicitando dos pais uma contribuição que não pode ser assumida e buscam recursos
em bazares e festas.
Também trouxe embaraços no gerenciamento das instituições. Algumas
creches continuaram tendo dificuldades de cumprir leis trabalhistas e de fazer a
comprovação negativa dos débitos perante a prefeitura. Essa situação reverteu críticas
e incompreensão por parte das creches, gerando um discurso de que depois que os
convênios passaram para a Educação as creche não conseguiram mais cumprir o que
é exigido (DALBEN, 2002, p. 135). Nesse sentido, contradições persistiram, e a cada

69
Os critérios para a definição das instituições que comporiam o projeto foram deliberados pela
Coordenadoria Integrada e discutidos com equipes dos CEI e da SMDS. (DALBEN, 2002: 89)
168

dia o conveniamento vem se tornando mais oneroso: requer investimentos na


capacitação técnica e política das entidades; várias creches continuam funcionando
em prédios precários; e a preocupação de muitas creches acaba centrada na higiene e
na alimentação das crianças.
No segundo semestre de 2003, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte
anunciou a construção de instituições municipais de Educação Infantil e a
implementação de uma rede pública de creches. Entretanto, essa proposta esbarrou no
discurso da inviabilidade de recursos para sua efetivação. Entraves surgiram no
momento da institucionalização do quadro de profissionais que atuariam nas Escolas
Municipais de Educação Infantil. Quem trabalha nas Pré-Escolas e Jardins de
Infância municipais pertence ao quadro do funcionalismo e recebe seu salário
segundo um Plano de Carreira do conjunto dos professores da Rede Pública
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Municipal. Nesse contexto, o Poder Público sugeriu a criação de uma nova carreira,
“de educadores infantis”, o que provocou uma tensão entre a necessidade de
concretizar uma Educação Infantil pública no município e uma história de lutas e
conquistas no sentido da valorização do profissional e da construção de sua
identidade de professor. Além das 13 escolas de Educação Infantil municipais, 9
escolas (uma em cada regional administrativa) estão em processo de construção.
Ainda que atravessado de contradições, não se pode desconsiderar que o atual
momento expressa um “passo à frente” no que diz respeito a uma política de
Educação Infantil: o que exige consolidar responsabilidades do Poder Público, bem
como a continuidade de uma articulação social que permaneça pressionando para a
efetivação desse direito como política pública.

• Outros princípios e concepções para a Educação Infantil – Quanto à


efetivação de diretrizes pedagógicas, a partir de 1994 a Secretaria Municipal de
Educação propôs desenvolver um processo de elaboração de concepções e princípios
para a Educação Infantil no município de Belo Horizonte, que se intensificou
posterior ao período de 1997, e instituiu uma construção coletiva de um projeto
169

político-pedagógico. Dentre as ações prioritárias, destaco a criação dos Centros de


Educação Infantil em cada uma das nove Regionais Administrativas.70
Os Centros de Educação Infantil (CEI) foram implantados com a finalidade de
se constituírem como centros de apoio pedagógico aos profissionais das creches e
pré-escolas comunitárias de Belo Horizonte. Tiveram como proposta a elaboração e o
desenvolvimento coletivo de uma política de Educação Infantil para o município
articulada à rede de creches e de pré-escolas já existentes. Buscou-se reconhecer as
trajetórias das instituições de Educação Infantil: uma história ligada à área da
assistência que mobilizou órgãos públicos e/ou não-governamentais, mediante
iniciativas filantrópicas ou comunitárias (BELO HORIZONTE, 1996).
Fóruns regionalizados foram propostos e organizados, e instituições foram
convidadas a retomar suas histórias e registros, promovendo um reconhecimento das
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concepções de Educação Infantil. Como desdobramento desse processo, colocou-se


como desafio a elaboração de um projeto político-pedagógico em cada instituição,
com propostas coerentes com uma concepção de criança e de Educação Infantil. A
partir de 1998, foram retomados os encontros denominados Seminário Infância na
Ciranda da Educação (em 1998, o V; em 1999, o VI; e em 2000, o VII Seminário),
buscando aprofundar a discussão e a elaboração de propostas pedagógicas. Foram
tratadas questões referentes à organização e ao planejamentos do trabalho nas
instituições, trazendo de forma enfática a reflexão sobre temas como o “brincar” e o
que se chamou de “múltiplas linguagens”: arte, música, brincadeira, teatro, etc.
(BELO HORIZONTE, 1999b).
Grupos de trabalho buscaram aprofundar e qualificar o debate sobre temas
relevantes. Foi proposta uma metodologia de trabalho que culminou na realização do
VI Seminário Infância na Ciranda da Educação, em 1999, quando foram
apresentados os trabalhos realizados e as questões que os grupos demandavam ver
discutidas. Representou um primeiro exercício de construção coletiva, o que depois
foi ampliado, aproximando-os mais das instituições. Estes passaram a ser
denominados Grupos Regionalizados de Trabalho, constituídos para discutir os

70
Alia-se a ampliação do ensino pré-escolar para as crianças de 4 a 6 anos, priorizando as de 6 anos, a
reorientação do programa “Adote uma creche” e a capacitação das profissionais que atuam em
Educação Infantil em creches conveniadas e pré-escolas públicas do município.
170

princípios e os eixos de um projeto político-pedagógico para a Educação Infantil. A


partir de então, cada instituição de Educação Infantil passaria a se organizar para
registrar e sistematizar suas propostas.
Destaco o Grupo de Trabalho sobre o Brincar, constituído de representantes
das creches, dos CEI, professoras da Educação Infantil e técnicos da AMAS e da
SMDS. Nesse momento, apontou-se a necessidade de conhecer a prática do brincar
nas instituições, de oferecer subsídios teóricos (“banco de textos”) e de contribuir
com a qualificação do debate na construção das propostas pedagógicas. Foi realizada
uma enquete envolvendo 19 instituições de Educação Infantil, focalizando as
concepções do brincar nas instituições. O trabalho foi desenvolvido em setembro de
1998, a partir da proposta de discutir e aprofundar conhecimentos sobre o tema.71
Esse processo resultou na publicação do segundo número do Caderno Ciranda
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Cirandinha, voltado para o tema do brincar no projeto político-pedagógico da


Educação Infantil.
Essa publicação trouxe elementos para a organização dos tempos e espaços
pedagógicos, bem como outro discurso das crianças como sujeitos socioculturais. O
brincar foi ressaltado como direito da criança, concebida como ser que tem um jeito
próprio de reinventar o mundo. Nesse contexto, o brincar absorveu legitimidade nas
creches como “direito fundamental da infância, linguagem prioritária e a
especificidade de suas relações e processos, em torno da qual deveria se desenvolver
o processo educativo” (BELO HORIZONTE, 2000b, p. 6).
A infância é afirmada como “um tempo em si e não de ‘preparação para’,
tempo de brincar, jogar, sorrir, chorar, ouvir histórias, desenhar, colorir [...] tempo
que a criança deve viver como sujeito de direitos” [...] constituir sua identidade e
construir valores”. As crianças foram ressaltadas como “sujeitos que participam de
uma determinada cultura e devem ser o centro da ação educativa”, e a Educação
Infantil foi proposta como um “espaço e tempo privilegiado para a vivência desse
processo de apropriação e construção da cultura” (BELO HORIZONTE, 2002b, p.
21).

71
Essas informações foram obtidas nos relatórios apresentados pelo Grupo de Trabalho, arquivados na
Coordenação de Política Pedagógica da SMED/PBH.
171

A construção de diretrizes político-pedagógicas para a Educação Infantil, de


forma coletiva, possibilitou o fortalecimento dessa concepção de criança como sujeito
de direitos, reafirmando o direto à educação, implicando uma reestruturação
pedagógica e administrativa das instituições de atendimento. Retoma, nesse sentido, a
importância, a responsabilidade e o direito de formação dos profissionais que atuam
nesse nível de ensino. Tais questões passaram a apontar desafios no sentido da
definição tanto de diretrizes pedagógicas quanto da consolidação de uma política
coerente de valorização do profissional da Educação Infantil.
Entretanto, após ter sido desencadeado tal processo de construção coletiva de
projetos para a Educação Infantil em Belo Horizonte, o que pôde ser apropriado pelos
sujeitos que participaram desse momento de consolidação de uma política de infância
no município? À medida que um conjunto de “produções” são elaboradas
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coletivamente, que responsabilidades públicas vão sendo evidenciadas no sentido de


instauração de uma concepção política mais ampla e participativa? Dar
prosseguimento ao processo de apropriação, registro e reflexão coletiva exige atenção
e responsabilidades sociais, sob pena de desconsiderar experiências, tensões e saberes
que emergiram e foram construídos ao longo do processo, e dizem respeito aos
sujeitos envolvidos (crianças, professoras, coordenadoras, representantes da gestão
pública):

Nessa tecitura polêmica da vida política construída no cenário das disputas e


antagonismos [...], que se pode ter uma senda para o deciframento de nossa própria
atualidade, seguindo a configuração [...] polêmica e plural de seus dilemas, as
questões abertas e em aberto na cena pública, e os horizontes de possíveis que
descortinam no campo sempre imprevisível da história [...] pela presença de sujeitos
falantes [...], chave para compreender o sentido forte da alteridade política [...]
construída pela mediação das esferas públicas democráticas nas quais essa palavra
que se pronuncia sobre a ordem do mundo se faz audível e reconhecida na cena
política. (TELLES, 1999, p. 185)

Esse momento coloca Secretaria de Educação e instituições diante do desafio


de continuar a elaboração coletiva de significados para a Educação Infantil em um
contexto de direito e responsabilidade pública. Se o “PPP” é ressaltado como
“instrumento” novo, algo que irá trazer para os profissionais maior clareza à
intervenção pedagógica, esse processo remete à identidade de seus sujeitos. Não se
172

refere apenas à organização do trabalho, mas a uma história vivida que requer
reconhecer discursos, assumir responsabilidades e afirmar lugares políticos e sociais.

4.2 Imagens e reconhecimento social das crianças em Projetos


Pedagógicos de creches comunitárias

A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo


organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da
consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e
suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação
semiótica de um grupo social. (BAKHTIN,1988, p. 35)

Como ressalta Nunes (2000, p. 62), a visibilidade dos sujeitos se expressa nas
relações e nos fenômenos sociais, podendo ser reconhecida como manifestações de
sua existência. Nas interações criam-se representações de si mesmos e dos outros,
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estabelecendo vínculos sociais e afetivos, estruturando as formas de ver e de agir.


Diferentes atores, ações e contextos são constituídos na história de cada instituição e
da Educação Infantil no município de Belo Horizonte.
Os projetos pedagógicos escritos pelas instituições demarcam um recorte
nessa história. Vão além de conteúdos e concepções registradas. Cabem ser
significados pela história que fazem emergir. Suscitam mexer nessas histórias, abrir
baús, não temer as teias, os fantasmas e os monstros escondidos. É verdade que nem
sempre se está preparado para reconhecer conteúdos, formas e concepções que
ousamos recordar. No sentido de Benjamin (1994), lembranças também remetem a
novas relações e experiências. Reivindicam ser pronunciadas em voz alta para que se
possa escutar a própria voz: reconhecer a si mesmo, reconhecer a história como sua,
como nossa; compreender que a história pode ser transformada, ressignificada:

Somente quem soubesse considerar o próprio passado como fruto da coação e da


necessidade seria capaz de fazê-lo, em cada presente, valioso ao máximo para si. Pois
aquilo que alguém viveu é, no melhor dos casos, comparável à bela figura à qual, em
transportes, foram quebrados todos os membros, e que agora nada mais oferece a não
ser o bloco precioso a partir do qual ele tem de esculpir a imagem de seu futuro.
(BENJAMIN, 1994, p. 41)

Não é fácil para as professoras da Educação Infantil, hoje reconhecidas


profissionais, mas há tão pouco tempo chamadas crecheiras, envolvidas em uma
173

existência social e expressão profissional de segundo plano, poder subir ao palco e


assumir o lugar de protagonistas. Como assinala Gagnebin (1994, p. 84), verem-se e
deixarem-se ver através da lente e da história vivida. Buscar conhecer o passado e
tocar em lembranças mobiliza uma capacidade de interpelar o que fomos e o que
somos, de dirigir a palavra, de pedir explicações, de efetivar uma força de
interpolação, transformando, alterando, esclarecendo o que se fez esconder.
Não se trata de buscar “salvar” o passado, mas de reconhecê-lo como herança
cultural que foi legada, colocá-lo em questão e assumir o lugar de narrativa da
história. Nesse sentido, procuro me referir ao processo de elaboração de projetos
político-pedagógicos pelas instituições de Educação Infantil conveniadas com a
prefeitura de Belo Horizonte, como possibilidade de reconstrução de uma história
que, ao tecer signos e identidades, traz à tona questões, princípios, conceitos e
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concepções que fornecem uma visibilidade complexa à organização e dinâmica das


instituições de Educação Infantil em Belo Horizonte, bem como às relações entre os
sujeitos.
Embora mais concentrado no início da década de 1980,72 já no final da década
de 1960 começam a surgir, em Belo Horizonte, outras instituições de Educação
Infantil, trazendo consigo um discurso de caridade e atendimento aos pobres e
“carentes”, um discurso, ambiguamente, filantrópico e religioso:

O termo ‘filantropia’ é ambíguo. Como designação genérica, qualifica o conjunto das


obras sociais, caritativas e humanitárias de iniciativa privada, quer sejam
confessionais, ou não. No sentido específico, são chamadas filantrópicas – em
oposição às fundações religiosas – as obras pluralistas, as obras neutras ou
interconfessionais, sem finalidade missionária. [...] A ‘Filosofia das Luzes’ não
diferenciava, inicialmente, caridade, beneficência e filantropia. A Segunda ‘Geração
das Luzes’ já começava a estabelecer diferenças. A caridade não era mais
considerada uma conseqüência da obra divina, mas uma inclinação da natureza
humana, uma virtude original. (MARCÍLIO, 1998, p. 73)

Esse discurso, enraizado no século XVIII a partir de ações intervencionistas


do Estado em questões de saúde pública e assistência social às populações pobres,
denuncia uma burguesia emergente que buscava a consolidação de uma nova ética,
obstinada pela idéia de ordem, eficiência e disciplina social. Nesse contexto,

72
Dos dez projetos lidos, uma creche teve sua fundação ainda na década de 1960, duas na década de
1970, seis na década de 1980 e uma na década de 1990.
174

inscreveu-se a noção de bem-estar da criança e das populações pobres, para as quais


se buscaria um tipo de ação social que, mais que um sentimento de caridade,
explicitava uma intenção de controlar a vida das populações pobres de modo racional
e inteligente.
Fazendo uma transposição para o contexto dos anos de 1960 no Brasil, este foi
um período no qual se constata um processo intenso de empobrecimento da
população brasileira (ANDERSON, 1996, p. 10). Nesse novo contexto de
industrialização, urbanização e desenvolvimento da sociedade brasileira, muitas
famílias se deslocaram de regiões rural-agrárias, buscando melhores condições de
vida, trabalho e moradia nos grandes centros. Instalaram-se na periferia das
metrópoles, em regiões sem infra-estrutura urbana e sanitária. As possibilidades de
emprego se apresentavam na forma de trabalhos temporários, sem direitos
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reconhecidos. As mulheres passaram a procurar por trabalho nas fábricas e nas


residências como empregadas domésticas. Algumas foram impelidas à prostituição
como forma de sobrevivência. Para Sader (1991, p. 89), contra qualquer visão
otimista desse trânsito,

nesta imagem vemos assinalados os mecanismos de exclusão, desenraizamento,


marginalização, que atingem os migrantes pobres nas metrópoles. Numa pesquisa
feita por J. C. Petrini73 numa comunidade de base na periferia de São Paulo, vemos a
referência às condições da metrópole, que desvalorizam os conhecimentos rurais,
produzindo nos migrantes um sentimento de rejeição. Enfrentando uma cultura
estranha, o migrante se sente perdido, isolado, sem amparo, tendo, no entanto, de
adequar-se a esse sistema.

Produziu-se uma visibilidade das populações pobres, que traduziu um lugar


social de culpabilidade pelo seu próprio “destino”. Transparece uma idéia de que
estas pessoas, pelo fato de terem vindo para a capital, é que são as culpadas pelo
próprio desemprego e pela suas dificuldades de existência. Esse movimento das
famílias expulsas pelas más condições do campo, que chegaram do interior buscando
melhores condições de vida, sequer é compreendido como um direto. O que deveria
ser uma política redistributiva assume perspectiva de ajuda, de favor e proteção, e
converte-se em estigma pessoal, em desqualificação da pessoa, colocada no lugar
social de inferioridade, de carências e necessidades individuais, inserindo os sujeitos
175

nas relações sociais, de forma hierarquizada e ideológica, em um lugar de


subalternidade (PASSETTI, 1999, p. 347).
No contexto do final da década de 1960, estendendo-se ao longo da década de
1970, instituições de inspiração religiosa (católicas, pentecostais ou espíritas) trazem
consigo um discurso de caridade para com os “mais necessitados”. Vai se forjando a
emergência de instituições ligadas às condições de pobreza das famílias, que passam,
como ressalta Nunes (2000, p. 72), a se tornar visíveis, pela situação de desproteção e
abandono das crianças. Em sua condição marginalizada ou pela sua inclusão precária
no contexto social, passam de vítimas a culpadas pela pobreza e abandono de seus
filhos e filhas.
Lembro que, em uma perspectiva histórica e cultural, coube à mulher, como
mãe, a tarefa de ser a guardiã de sua casa e do amor aos filhos. A idéia de amor aos
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filhos foi ressaltada no final do século XIX pelos higienistas como meio eficaz de
controlar a mulher, difundindo uma concepção de maternagem que deveria ser
seguida por todas as mulheres, de todas as classes sociais. Quando as mulheres
pobres passam a sair de suas casas para buscar trabalho, sofrem uma dupla
culpabilidade: o abandono do lar e o abandono dos filhos (NUNES, 2000, p. 79).
As famílias pobres passam a ser identificadas pela idéia de “desestruturada”.
Família desestruturada tornou-se sinônimo daquelas famílias que não obedecem ao
padrão nuclear patriarcal, em que a mãe tornou-se o “chefe de família”, ou é
organizada a partir de outras relações familiares entre tios e avós. A idéia de família
burguesa, cuja mulher era a protetora do lar, cujo amor materno surge como
fundamento e alicerce da nova família. Mesmo não se expressando em grande parte
das famílias brasileiras, nas diferentes classes sociais, ainda é considerada como o
modelo cultural dominante de família ideal.74 Assinala Marques (2001, p. 149):

Quando me refiro ao modelo cultural dominante, estou falando do modelo nuclear


patriarcal, o qual estabelece que ao homem/pai cabe ser o provedor financeiro do
grupo, o chefe e a autoridade máxima da família; e à mulher/mãe, a função de
cuidadora da prole e doadora do afeto, pela sua fragilidade e dependência do homem.

73
PETRINI (1984).
74
Sobre a instituição da família nuclear como célula mater da sociedade brasileira e sobre a definição
dos papéis sociais do homem/pai e da mulher/mãe sugiro a leitura de Jurandir Freire COSTA (1989).
176

Esse lugar social reforçou o reconhecimento do atendimento às crianças a


partir da prática voluntária de assistência aos mais pobres. A justificativa da
necessidade de creches recai na dependência da benevolência de pessoas que se
prontificam a tomar conta das crianças para que suas mães pudessem sair à procura
de trabalho. À medida que o trabalho na creche é entendido como benevolência e o
trabalho das mulheres que precisam das creches assume conotação pejorativa, o
atendimento às crianças distancia-se de uma visibilidade social capaz de efetivar-se
como direito, seja pela demanda da classe trabalhadora, seja pelo reconhecimento do
direito de todas as criança e famílias. Absorve, nesse sentido, uma concepção moral
negativa apoiada no discurso do desajustamento familiar.
Mesmo quando as mulheres começam a se organizar em torno da luta pela
conquista de creches em seus bairros, a presença das crianças nas creches permanece
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circunscrita em um discurso de ajuda voluntária às famílias e às mães pobres,


condição de sustento de seus filhos, que passam a depender de alimentação, proteção,
higiene e moralização de outras pessoas. Apesar da mobilização comunitária, a
conquista de determinadas creches aparece personificada em um doador ou liderança,
e a população se torna visível por sua situação de gratidão e dívida simbólica.
Como exemplo, algumas creches escolhem o nome de seu fundador como
imagem que identifica a instituição. Mesmo quando a creche é uma conquista da
população, muitas vezes é colocada sob a responsabilidade de pessoas e outras
instituições, vinculadas à igreja, para sua manutenção e gestão. Receber ajuda e
doação (terreno, construção, alimentação, brinquedos, roupas, dinheiro, bazares, rifas,
festas beneficentes, etc.) passou a ser exercício corriqueiro e necessidade cotidiana.
Os donatários constituem uma espécie de fonte inspiradora de moral e bondade.
Encontrei afirmações do tipo: “Mesmo com as transformações pelas quais a creche
passou, o objetivo de sua fundadora nunca foi esquecido (Projeto 7), referindo-se a
uma idéia de caridade aos mais “necessitados”.
Constato, também, que as famílias, em muitos casos, são culpabilizadas pelos
fracassos, incompetências, indisciplinas e debilidades físicas e morais de seus filhos e
filhas. Estas acabam se expressando como circunstâncias de humilhações das
famílias, que intensifica um sentimento de rebaixamento pessoal e social. As famílias
177

se tornam visíveis pela necessidade de tolerância, bondade e piedade do outro,


revestida de preconceitos contra as crianças e as famílias pobres. Esse sentido
depreciativo não pode banalizar que tais circunstâncias provocam efeitos negativos na
identidade dos sujeitos, que incorporam sua condição de pobreza, de pedinte e
subalterno (MARQUES, 2001, p. 134).
Embora os discursos da caridade, da doação, da tutela e da gratidão seja
hegemônico na história das creches comunitárias, estes não se constituem como
significados únicos. Do final da década de 1970 e início da década de 1980, também,
percebe-se a emergência de outros discursos nas relações cotidianas das creches. São
mães trabalhadoras organizadas em torno de associações de bairro e comunitárias que
vão dando conta da necessidade de organização e da luta para conseguir aquilo que
lhes é de direito. Nas associações de bairro e comunitárias, organizadas em torno do
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Movimento de Luta Pró-Creche, constituídas por mulheres, vão compreendendo que


é necessário pressionar a sociedade e o governo a uma tomada de posição. Nos
projetos pedagógicos fica explicito o movimento das comunidades pela luta,
conservação e melhoria no atendimento e educação das crianças.
Mesmo assim, o trabalho voluntário continua um discurso presente na
constituição, estrutura e funcionamento das creches: expressa um valor moral, afetivo
e social. São trabalhos voluntários na construção das creches, no trabalho com as
crianças e nas coordenações e administrações das instituições. Em grande parte das
creches, o início do atendimento às crianças é marcado pela não-contratação de
funcionários e pela montagem de uma estrutura que passa a contar com a ajuda de
pessoas amigas, voluntários, bazares e festas:

A creche foi fundada em 25 de maio de 1988, por mães trabalhadoras vinculadas à


Associação de Corte e Costura do bairro que constituiu a entidade mantenedora da
creche neste período. O dinheiro era arrecadado por uma escola de corte e costura e
artesanato, e através de convênios com órgãos públicos. Os alunos dos cursos
pagavam uma taxa simbólica. A creche surgiu da necessidade das mães (alunas do
curso de corte e costura) de um lugar seguro para deixar os filhos enquanto fazia os
cursos e trabalhavam. A creche iniciou suas atividades com uma função
assistencialista e as crianças eram atendidas por mães voluntárias. (Projeto 1)

Também contam histórias de muitas batalhas: mutirão para construir prédios e


salões, encaminhamentos de reivindicações às Associações Comunitárias,
178

mobilização das comunidades para a realização de festas, bazares e outras formas de


arrecadação de recursos para a manutenção das creches. Coincidem com as lutas por
conquista de outros equipamentos sociais, como as pressões por instalação de postos
de saúde nos bairros, vilas e morros.
Uma questão complexa enfrentada em algumas instituições são os constantes
problemas administrativos. Mesmo sendo um equipamento conquistado pela
população dos bairros, a presença dos seus presidentes e patronos como figuras
doadoras descaracteriza, em grande parte, o sentido político e coletivo das creches,
dando margem a muitas formas de uso privado, o que acaba expressando histórias de
dívidas, de não-prestação de contas, de descontrole dos recursos arrecadados,
colocando as creches, por mais doações que recebam, em situação de dependência de
novas doações, verbas e convênios para sua manutenção. Irregularidades emergem.
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Aparecem problemas com o INSS, com o pagamento de taxas públicas, com os


encargos sociais e o balanço contábil. Isso tem constituído empecilho para a
renovação de convênios, bem como dificuldade de gerir a organização da creche em
uma perspectiva pública
A maioria das creches atravessou as décadas de 1970 e 1980 realizando
trabalhos com profissionais sem habilitação, sem direitos reconhecidos. Apenas em
meados da década de 1990 as instituições buscaram regularizar a situação trabalhista
de seus funcionários. O MLPC, em um primeiro momento, e os Centros de Educação
Infantil, de forma mais recente, são reconhecidos como importantes para a superação
dessa situação. Expressam um amadurecimento institucional que passa a viabilizar a
constituição de uma organização pedagógica das creches, até pouco tempo,
instituições estritamente assistenciais.
Fica evidente, como ao longo da década de 1990 outras preocupações entram
em cena: lutam pela profissionalização do educador, procuram estabelecer nas creche
conselhos fiscal e de pais, procuram elaborar formas mais transparentes e
democráticas de gestão das creches. A visibilidade das creches também passa a se
expressar pela sua constituição como espaço pedagógico. Chamo a atenção para o
reconhecimento da atuação da AMEPPE, abrindo caminhos, ao lado do MLPC, para
o desenvolvimento pedagógico e profissional na organização e funcionamento das
179

creches comunitárias. As trocas de experiência entre as profissionais das creches


filiadas também demonstram o fortalecimento de um movimento de conquista de
nova identidade. Nos projetos pedagógicos tomados como referência, percebo uma
apropriação de outros princípios que passam a subsidiar os discursos dessas
profissionais que vão elaborando concepções do trabalho educativo a ser realizado
com as crianças.
Além dos materiais elaborados pela Secretaria de Educação (cadernos,
revistas e seminários), o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil é
também citado. São concepções que se cruzam e constituem discursos que ora se
articulam, ora se complementam, outras vezes se contradizem. A idéia de educação
refere-se a uma multiplicidade de conceitos e imagens do desenvolvimento da
criança: pensamento lógico, ser social, convívio em sociedade, integração social,
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conhecimentos como língua materna, ciências, artes, educação psicomotora, etc.


Ao lado da concepção de criança como sujeito de direitos, percebo a
incorporação do direito à formação continuada como condição de melhoria da
qualidade do atendimento. Esse é um discurso expresso por diferentes sujeitos, nas
creches e no Poder Público, e aparece como um exercício de afirmação de uma
instituição para crianças de 0 a 6 anos no qual educação e cuidado devem caminhar
juntos. Observo que, posterior à LDB de 1996, a finalidade educativa da creche é
cada vez mais afirmada. As crianças que até então eram percebidas pelas instituições
e seus profissionais apenas como objeto de assistência, passam a ser enfatizadas em
seu processo de desenvolvimento, entendido como direito de todas as criança.
Nos projetos pedagógicos, assim como nos depoimentos das professoras,
surgem outras preocupações, como o acesso aos bens socioculturais e artísticos.
Nesse novo contexto, uma questão importante diz respeito à especificidade da
Educação Infantil. Procuram afirmar a infância como um tempo singular, com uma
maneira própria de se relacionar com o mundo e com o conhecimento. A visibilidade
das crianças também aparece nos registros das instituições, ancorada na idéia do
direito ao brincar, tomado como sinônimo do direito de vivência da infância. Na
formação e desenvolvimento das crianças, uma idéia de “lúdico” também é enfatizada
por diferentes sujeitos – professoras, coordenadoras, profissionais do CEI – como
180

característica fundamental. O papel central da creche aparece relacionado à


possibilidade de concretizar o brincar na vida das crianças: maneira singular como
aprendem, se relacionam e conhecem o mundo.
Ressalto nos projetos pedagógicos uma referência ao envolvimento da
comunidade no processo educativo. Quando assim o fazem, reafirmam a importância
da articulação com os movimentos populares e troca de experiências com outras
instituições, ao lado de sua constituição como tempo e espaço de acesso ao
conhecimento e construção de cidadania:

Busca-se assegurar o envolvimento e a participação da comunidade no processo


educativo, tornando-se um centro animador e integrador das pessoas, lutas e
movimentos existentes na comunidade [...] participar no fortalecimento do MLPC,
suas lutas e da Associação de creches da regional Barreiro. (Projeto 6)
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4.3 Signos paradoxais de uma infância

Nesse palco de experiências partilhadas, expressam-se diferentes discursos,


que constituem uma visibilidade complexa das crianças, das professoras e do Poder
Público. Revelam signos que sugerem o reconhecimento de uma trajetória de
elaboração dos sujeitos, apontam para a superação de discursos assumidos e
impregnados, e suscitam ampliar outros que vão ganhando consistência em um
movimento de luta por direitos e uma inserção social com dignidade plena para os
diferentes atores sociais. Nas relações sociais e institucionais, os sujeitos vão criando
representações de si e do outro, condicionando olhares e ações.

• Cidadania ou civilidade infantil? – Para Narodowsky (1994, p. 33), a


infância moderna, delineada no Emílio, de Jean Jacques Rousseau, produz efeitos que
se enraizam como discurso pedagógico e projetam a idéia de educabilidade da
criança, expressa por uma suposta capacidade natural de ser formada. Essa visão de
infância pura, moldável e incompleta consolidou-se no transcorrer da modernidade e
foi sendo apropriada como objeto de estudo, normatização e controle, “corrigida”
sempre que necessário, em seus significados e desenvolvimento. Repetidas vezes,
181

aparece nos projetos pedagógicos uma determinada idéia de “socialização” ressaltada


com um dos principais objetivos institucionais e pedagógicos.
Entendo que a educação expressa fins que são sociais. Como assinala Charlot
(1986, p. 230), o processo educativo pressupõe a escolha e a construção de uma
clareza da sociedade, da cultura e da humanidade que quer formar, o que pressupõe
tensões e paradoxos. Ressaltar os fins sociais da educação envolve, por isso,
ambigüidade sociopedagógica, pois agrega significações e contradições que emergem
de uma sociedade marcada por relações de poder, hierarquias de classe e diferenças
culturais. Se a análise social de Durkheim75 (1978) teve o mérito de salientar o caráter
social da educação, sua análise foi inspirada em um modelo social tomado como
absoluto, um valor sagrado de uma sociedade que deveria se impor e ser imposta aos
indivíduos, em que conflitos e contradições foram tomados como um adoecimento da
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sociedade. Nesse contexto, o desvio era a doença, a norma a saúde.


Como lembra Fernandes (1996, p. 61), educar a criança passou a significar
moralizá-la, fazê-la encarnar uma voz de comando, vigilância, repreensão e punição;
significou conformar individualidades que deveriam se tornar obedientes: criança que
deveria se tornar um adulto normal, aprendendo a moderar instintos insaciáveis e sem
limites, inscrevendo em sua subjetividade a disciplina, a abnegação e a moral.
Esse discurso encontrou na criança expressão e signo. Seu foco e sua ação se
esparramaram, constituindo, no sentido de Foucault (1990, 1991), uma malha de
poder que enredou todo o contexto social e familiar, principalmente das crianças das
classes mais empobrecidas. As famílias se tornaram o alvo privilegiado para o
governo das populações, que geria e controlava a vida delas. Por isso, é importante
compreender os significados que a noção de socialização da infância vai absorvendo
e ocupando um lugar de destaque no discurso de moralização das crianças e das
famílias pobres. Como assinala Bujes (2000, p. 27),

o modelo de família que orientava até (o século XVIII) a arte de governo perde sua
potência. O objetivo do governo passa a ser a população. É preciso gerir a vida dos
indivíduos, agir diretamente sobre a população: estimular ou bloquear a taxa de
natalidade, prevenir a mortalidade, controlar os fluxos populacionais, entender a
população como sujeito de necessidades e aspirações.
182

Emerge uma noção de educação da infância, como ressalta Charlot (1986, p.


259), como um processo de incorporação individual da sociedade, tomada como
ambiente natural, que regula e direciona a participação das crianças na vida social
adulta, se expressa no entendimento de que é necessário afastar e retirar das crianças
(pobres) os aspectos negativos herdados de sua cultura original, de sua família
marcada por débitos morais e sociais, para então incorporar outros hábitos de relação,
comportamento e disciplina.
É bem verdade que, nas creches da regional Barreiro que tiveram seus
projetos pedagógicos analisados, pude encontrar registros que procuram trazer outras
concepções de criança e de desenvolvimento: afirmam a necessidade de superação de
uma idéia de criança como vir-a-ser adulto, maduro, racional, e como tábula rasa,
procurando ressaltar as crianças como sujeitos sociais, participantes da construção da
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cultura e dos conhecimentos. Explicitam princípios de solidariedade e cooperação,


reforçam um olhar das crianças como sujeitos coletivos, participantes na construção
das relações. Contudo, também aparece em alguns projetos um discurso de adaptação
das crianças à creche, que devem ser educadas para estar mais limpas e comportadas,
menos agressivas e dispersas, “aprendendo bons hábitos como o uso dos talheres,
comer de boca fechada, etc.” (Projeto 10). Como processo educativo, encontrei o
discurso de que as crianças devem aprender a respeitar as regras e aprender o bom
comportamento, a higiene e o cuidado com o próprio corpo, saber esperar, saber
ouvir, saber renunciar.
Essas imagens acabam tornando as crianças visíveis pela indisciplina e
desajustamento às regras do “bom viver” e do “bom relacionar”. Tornam-se alvo de
um intenso controle corporal que pressupõe andar em filas, não correr, não
desarrumar, não falar durante as refeições, não bater no colega, aprender a comportar-
se em sala de aula e só fazer as coisas quando a professora mandar.
Tanto nos projetos pedagógicos analisados quanto nas falas das professoras,
dois discursos contraditórios são constantes. De um lado, o esforço de incorporar à
concepção de infância a idéia de cidadania em que as crianças são ressaltadas como
atores sociais e sujeitos de direitos; de outro, um discurso que supõe uma educação

75
Publicado em língua francesa em 1922.
183

para a cidadania, como algo que será experimentado se houver preparação e


merecimento. Uma idéia de cidadania individual, que cada um deve conquistar e
viver, de acordo com o que for capaz de aprender e desejar. Está presente um discurso
preparatório para uma vida social que estabelece direitos, mas pressupõe deveres para
os quais as crianças precisam incorporar um lugar social, antes de atingir outro;
aprender a reconhecer quem são e o que têm, para depois desejar novos valores e se
submeterem a esse processo educativo, refazendo um sentido civilizador para a
educação da infância.
As crianças, muitas vezes, são mencionadas e descritas por supostas
características relacionadas a uma visão preconceituosa de seu contexto social. Sua
visibilidade e suas especificidades vão se constituindo relativamente a uma, também,
preconcebida visão das relações que as crianças vivem em seus bairros e em suas
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famílias. Elas, muitas vezes, são descritas, de forma genérica, como agressivas e
violentas, que só sabem se relacionar por meio de brigas e mordidas, não sabem se
comportar em sala de aula, não respeitam a professora e os colegas, não sabem
brincar com outras crianças ou dividir um brinquedo com o colega.

São famílias, em sua maioria, oriundas do interior do estado e de outras vilas e


bairros pobres da RMBH; Área ocupada há mais de 20 anos, com casebres e casas
simples [...]. Em alguns lugares o esgoto corre a céu aberto, há ligações
clandestinas de água e luz. Não é um lugar bonito. Via de regra, a casa possui um
lugar que é a cozinha e outro onde dorme toda a família. Esta não obedece à
organização mononuclear. Em alguns casos o pai é o único responsável, em outros a
mãe e, em outros, os avós. Os homens sobrevivem de pequenos empregos
temporários e biscates, sem vínculo empregatício, Pedreiros, pintores e motoristas
são algumas profissões encontradas. Entre as mulheres, predomina os serviços de
faxina e empregada doméstica. O tempo de lazer dos adultos expressa-se em beber
no bar da esquina e conversar com os vizinhos. As crianças pouco ou nunca saem
dos limites do bairro. As condições de vida são pobres: materiais e nas experiências
em geral. (Projeto 1)

Segundo a análise proposta por Sarmento (1999, p. 17), a imagem romântica


da infância, ao ser tomada como norma e verdade, acabou por demarcar desvios que
precisaram ser descritos e reconhecidos para especificar diferenças e fundamentar a
necessária vigilância e intervenção nas debilidades de toda ordem. Para tal, buscou-se
estabelecer um aparato institucional para diminuir os supostos riscos oferecidos à
sociedade pelas crianças operárias, delinqüentes, enquadrando-as em uma lógica
184

médico-psicológica-escolar. A inserção social das crianças pobres, tomadas como


“desviantes”, demandou e inventou políticas sociais e instituições específicas para a
regulação do espaço-tempo social das crianças:

Ligadas a esta imagem social, a criação de instituições de guarda de crianças gerou,


perversamente, uma racionalização exaustora de tempos e quotidianos que, conforme
denunciam alguns dos textos referenciados nestas áreas, inibem a expressão da
espontaneidade infantil, promovem uma colonização pelos adultos dos respectivos
mundos de vida e limitam as capacidades participativas das crianças. (SARMENTO,
1999, p. 18)

Crianças e famílias, ao adquirirem uma visibilidade pública, passam a ser


controladas em seus desejos, necessidades e formas de participação na sociedade.
Nesse contexto, a inserção e a participação na sociedade constituem, no sentido de
Elias (1990), expressão de um processo civilizador, no qual crianças e famílias são
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envolvidas em diferentes mecanismos institucionais. Nas falas das professoras, vê-se


reforçada a culpa das famílias por uma suposta má educação das crianças: a ausência
de limites das crianças é explicada pela falta de estrutura familiar e de carinhos nas
relações familiares. As crianças na creche, nesse sentido, tornam-se visíveis como
seres que precisam ser educados para “melhorar” sua relação com os colegas e com
as professoras, adequadas ao espaço institucional em que passam a se relacionar:

A agressividade das crianças é explicada pela falta de limites, possivelmente, em


função da desestrutura familiar ou por compensação de algumas perdas. (Projeto 1)

De forma oposta à concepção de civilidade da crianças, a imagem da criança-


cidadão (gerada nas transformações da sociedade posterior à década de 1980, nas
reflexões teóricas, políticas e pedagógicas e no processo de organização da
sociedade) confere às crianças o estatuto de atores sociais e aponta desafios que
requerem novas formas de inclusão e participação social. Contudo, ainda se faz
recorrente uma imagem de crianças-cidadãos-do-futuro, que aparece mais relacionada
ao processo de aprendizado das “regras do jogo” do que à expressão de uma
existência concreta e singular, capaz de valorizar e dignificar as vozes e as ações das
crianças, condição de participação plena na sociedade.
185

• Pobre, logo carente? – Em muitos casos, as crianças são descritas por uma
condição social e expressão familiar que relaciona uma idéia de pobreza com a noção
de faltas, necessidades e carências. Nesse contexto, as creches ganham significado
pela suplência de carências alimentares, higiênicas, morais, afetivas, motoras, de
brincadeiras, etc., que coloca as crianças em um lugar de dependência e
subalternidade. São crianças pobres, filhas e filhos de pais desempregados, filhos e
filhas de mães que precisam trabalhar fora, filhos e filhas de famílias de classe
popular que precisam da creche como uma instituição importante no processo de
educação de seus filhos, mas não necessariamente carentes.
Se pobreza é um conceito social e econômico, a idéia de carência evoca, ao
contrário, um discurso psicológico-moral que leva à incorporação da condição de
falta como identidade subjetiva e cultural. Esse discurso reforça uma imagem de
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creche como “lugar de criança carente”. Esta imagem se vê reforçada quando, por
exemplo, é incluído como critério ou condição para as crianças serem matriculadas
nas creches o fato de estarem vinculadas a algum tipo de programa social. É
interessante perceber uma relação com as crianças e famílias pobres que as submetem
e vinculam à imagem de dependência da generosidade alheia, que produz a
incorporação de uma visão de si mesmo, como alguém que deve permanecer
submisso e agradecido (MARQUES, 2001, p. 93). Nesse sentido, o reconhecimento
social da creche se perpetua por uma relação direta entre pobreza e carência: “São
crianças oriundas de classe social de baixa renda, portanto com carências afetivas,
alimentares, cognitivas, culturais, emocionais e de lazer” (Projeto 1). Quando alguma
competência da criança é colocada em relevo, parece ser ressaltada como algo que
sobreviveu à precariedade da vida.
A essa postura remete-se outra imagem significativa, que é a de “atenção
especial”. Algumas crianças ganham visibilidade pela necessidade de algum tipo de
atenção especial. A idéia de atenção especial refere-se às crianças que chegam às
creches com algum tipo de dificuldade explícita ou por se afastarem de determinada
idéia de desenvolvimento, normalidade ou saúde. Crianças que se distanciam de um
padrão motor considerado normal, crianças com problemas de desnutrição e outras
186

situações e condições que as definem a partir da noção de “crianças portadoras de


necessidades especiais”.
Essas crianças carregam uma imagem que referenda uma visão de
desajustamentos de comportamentos, problemas de saúde, motor e moral. A ação das
creches volta-se para o encaminhamento das crianças para algum tipo de atendimento
especial – médico e psicológico. É como se a creche e as relações próprias a essa
instituição tivessem pouco a contribuir com essas crianças, pois são crianças que
demandariam uma atenção especial que as creches não estariam preparadas, nem
seria seu papel. Algumas crianças, nesse sentido, vêem-se diante de uma situação de
dupla exclusão.

• Crianças em (des)envolvimento são sujeitos de conhecimentos? – Para


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Charlot (1986, p. 99), a imagem de criança traduz a concepção que se tem de natureza
humana e seu desdobramento como cultura, ou seja, as significações atribuídas à
infância vêm para ela da interpretação da infância em termos de natureza e cultura. A
modernidade afirmando-se em uma política de verdades, definiu normas e desvios, e
produziu uma visão da infância que procurou afirmar uma condição de inferioridade
das crianças perante os adultos. Criança como individualidade desprovida de tudo,
fraca em sua condição biológica e social, ao passo que o adulto expressa-se como
personagem ideal, imagem da maturidade e racionalidade conquistada como processo
secular. Esse olhar fundamentou uma visão normativa da infância como critério único
para especificar diferenças entre adultos e crianças.
O modelo positivista da ciência psicológica se estabeleceu como uma “nova”
moral para a definição da trajetória da vida humana em direção à vida adulta. Ser
criança nesse contexto remete a uma noção de incapacidade e “débito social”, e uma
idéia de que nós humanos devemos nos tornar cada vez mais perfeitos. Percebe-se
uma referência fechada a determinado modelo psicológico desencarnado da cultura,
distante do que se expressa no contexto da ação, relação e produção humanas, mas
que se projeta no espelho a imagem da criança que se deve transformar. Como
assinala Souza (2001, p. 45),
187

o que se evidencia com freqüência é que a criança, jamais vista por inteiro, como
membro de uma classe social situada histórica, social e culturalmente, é seccionada
em infinitos comportamentos e/ou habilidades. Esses comportamentos, mesmo sendo
reunidos posteriormente por meio de uma articulação teórica abstrata, não consegue
resgatar o lugar social da criança como ser que interage com a história do seu tempo,
modificando-a ao mesmo tempo que é modificada por ela. [...] Acabamos nos
convencendo de que a criança é uma categoria desvinculada do social, impermeável
às relações de classe, apenas um organismo em processo de socialização.

Percebe-se que o papel das creches tem sido enfatizado, quando se pensa em
suas contribuições para a educação das crianças, como maneira de garantir o
desenvolvimento de diferentes aspectos da formação ou desenvolvimento humano:
aspectos físicos, emocionais, afetivos, cognitivos e sociais. Tal visão fica ainda mais
complexa quando acompanhada do discurso de que a creche deve procurar fornecer
os estímulos necessários para o desenvolvimento das possibilidades socioafetivas,
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corpóreas e cognitivas das crianças. Apresenta-se como uma história de evolução em


direção a algo melhor. Essa visão de desenvolvimento é descrita por palavras como
evoluir, alterar, modificar e assimilar ganhos e perdas que se alternam no decorrer da
vida de cada indivíduo.
A criança se vê submetida a um processo de desenvolvimento que deve
receber e acatar como ato de gratidão. Sobressai um tipo de discurso no qual a
infância, constituída em um contexto descrito como débil e desestruturado social,
afetivo e culturalmente, deve ser deixada para trás. Uma dupla natureza a ser
superada: a infância e sua precariedade cultural e moral. A vida é anunciada a cada
criança como um dom gratuito para o qual se exige gratidão. Sua gratidão é submeter-
se a um processo de desenvolvimento ordenado, buscando atingir a perfeição do ser
na relação consigo mesmo, com os outros e com o ambiente: aprendizagem e
desenvolvimento que devem começar bem cedo, vencendo estágio por estágio. Como
afirma Castro (2001, p. 21),

essa lógica privilegia o sentido progressivo da história individual e coletiva no


mundo ocidental – lógica desenvolvimentista como solo necessário para pensar a
vida humana – idéia de que nós humanos podemos e devemos nos tornar cada vez
mais perfeitos, “maduros”, “civilizados” – isso se dá através de uma lenta submissão
a padrões racionalizados de conduta onde prevalecem os valores da autonomia, do
racionalismo, da individualização e do auto-centramento.
188

Nesse contexto de experiências sociais, são descritas as diferentes


aprendizagens que as crianças devem apropriar. O “desenvolvimento físico” é
ressaltado de forma significativa. Refere-se à aquisição de habilidades (andar, falar,
pegar, lançar objetos, utilizar partes do corpo, brincar no parquinho, jogar bola –
Projeto 1) fundamentais ao estabelecimento dos limites e estratégias de interação com
o ambiente, percebidas como ponto de partida para acontecer o desenvolvimento.
Esse discurso entra em sintonia ou mistura-se com concepções de desenvolvimento
fundamentadas em uma determinada perspectiva das teorias construtivistas, nas quais
o processo de aprendizado refere-se a um contexto de interações com os objetos de
conhecimento e solicitações de um meio social que se expressa abstrato e perde sua
dinâmica dialética. Refere-se a um desenvolvimento linear, desfocado dos
permanentes conflitos e tensões experimentados por sujeitos concretos e coletivos
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(REY, 1997, p. 20).


Vê-se reforçada uma visão desenvolvimentista como processo de construção
de características comportamentais e da personalidade das crianças a partir da
constituição de habilidades individuais. A idéia de desenvolvimento motor se mistura
a outra suposta perspectiva de desenvolvimento denominado afetivo, que deve se
expressar como sinônimo de equilíbrio: motor e emocional. Assim, ao lado da ênfase
no desenvolvimento físico, alinha-se uma noção de desenvolvimento moral, que
parece relacionado a um tipo de discurso que justifica uma idéia de bem comum, no
qual cada um vai encontrar a justa participação no que é de todos. Nesse contexto,
uma idéia de melhoria da qualidade de vida aparece atrelada à superação de conflitos
e dificuldades de relacionamento, embora não toque em questões que envolvam
relações de poder. Na maioria das vezes, pouco se alteram as relações entre as
crianças, bem como entre as crianças e as professoras. Percebe-se reforçada uma idéia
de desenvolvimento como um exercício de aprendizado e fidelidade a regras e
normas de cuja criação as crianças não participam, mas em nome do bem comum
devem aprender a se submeter e cumprir.
Completando um tripé desenvolvimentista e constituindo o topo da pirâmide,
para o qual todas as ações deveriam convergir, aparece uma ênfase ao chamado
“desenvolvimento cognitivo”, que assume diferentes discursos e visões. Refere-se à
189

formação do senso crítico, à construção da autonomia, à consciência ecológica, ao


aprendizado da leitura e da escrita, à apropriação de conhecimentos culturais,
artísticos e dos fenômenos naturais, entre outros. As crianças também são referidas
como participantes ativos na construção de conhecimentos, afirmadas como sujeitos
curiosos que agem sobre a realidade. Entretanto, para que uma concepção de crianças
como sujeitos de conhecimentos ganhe maior amplitude, impõe superar uma
ideológica “menorização” da infância referida apenas como componentes acessórios
ou “meios” para se chegar à sociedade dos adultos.
O reconhecimento das crianças como sujeitos de conhecimentos implica a
valorização de sua capacidade de produção simbólica, suas representações e crenças.
Como assinalam Sarmento e Pinto (1997, p. 21), tal postura é complexa e implica
compreender as relações ideológicas que lhes são inerentes. Requer um olhar
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dialético das crianças como participantes na relação de produção e consumo da


cultura. Se, de um lado, é importante compreender e ressaltar a infância como grupo
etário, e neste caso instaurador de uma “cultura singular”, de outro, é preciso
reconhecer os processos de colonização e institucionalização dessas crianças,
inseridas em um sistema simbólico e de valores que envolvem relações de poder
(GIDDENS, 1996, p. 126).
Em diferentes discursos, a singularidade das crianças aparece relacionada a
uma idéia de “ludicidade” ressaltada como “a linguagem” prioritária, por meio da
qual as crianças se expressariam de forma particular em uma cultura específica.
Concordo com Souza (2001, p. 47), quando afirma que

a linguagem é o local de produção de sentidos e o ponto para o qual jogo, criatividade


e pensamento crítico convergem [...] Enfatizar a linguagem e o lúdico como
expressões do desenvolvimento da criança é também buscar um caminho conceitual e
metodológico que permita tirar a psicologia do desenvolvimento do “seu beco sem
saída”, superando as correntes de desenvolvimento que trabalham na perspectiva do
progresso e da evolução linear do sujeito humano.

Contudo, ressalto o cuidado de não especializar e reduzir a relação ludicidade


e infância, tomadas de forma desencarnadas dos signos sociais que as contextualizam,
sob o risco de restringir a imagem de infância como tempo de brincadeira e
divertimento. Ressaltar que as formas lúdicas de expressão da cultura sintonizam com
190

a singularidade de relações das crianças com a cultura é importante, mas atribuí-la


como signo por excelência da infância refaz o caminho do isolamento e menorização
da infância nas relações sociais: especializa a infância, dezenraizando, mais uma vez,
a tensão natureza/cultura; e, em nome de uma idéia de expressão singular da cultura,
privatiza e desumaniza a ludicidade como dimensão da linguagem e condição
humana.

• As crianças são o centro da atenção e do interesse da escola? – As crianças


precisariam apenas ser auxiliadas até encontrar seus próprios caminhos em direção à
idade adulta? Quero, neste ponto, recuperar, como o faz Charlot (1986, p. 119), um
olhar inspirado na concepção de infância proposta por Rousseau, que procura dar uma
ênfase de positividade à condição de inacabamento da infância. No cotidiano da
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escola, isso tem se revelado como uma aparente saída de cena do adulto-professor
desse processo, cujo discurso pedagógico coloca a criança como centro e importância
suprema. O que se mostra contraditório e ambíguo é que, quanto mais o adulto parece
sair de cena, mais os tempos e espaços se tornam regulados; quanto mais distante da
criança o professor se coloca, mais autoritário se torna, mais enfatiza sua
incompetência e a incompetência e dependência da criança. Corre-se o risco de perder
de vista o lugar do adulto nessa relação.
A idéia de que a criança deve ser o centro do interesse e atenção da escola tem
impelido as professoras a uma postura de observação das crianças, no sentido apenas
de captar e diagnosticar comportamentos, esvaziando o foco sobre as relações, bem
como o próprio envolvimento pedagógico. É como se a criança, ao entrar em cena,
levasse o adulto-professor a ocupar um lugar secundário, muitas vezes, subjugado
pela própria criança, que passa a ditar o ritmo, os significados e o percurso da relação
pedagógica ou o que deveria ser a singularidade dessa relação. Nesse contexto, nem
crianças, nem adultos conseguem expressar-se como sujeitos nas relações. Como
ressaltam Bazílio e Kramer (2003, p. 79),
191

o reconhecimento social da criança tem levado muitos adultos a abdicarem de seu


papel. Parece que usam uma concepção de “infância como sujeito” como desculpa
para não colocar regras, não expressar seu ponto de vista, não se posicionar. O lugar
do adulto fica desocupado, como se para a criança ocupar um lugar o adulto
precisasse desocupar o seu, o que revela uma distorção profunda do sentido de
autoridade.

Dizer, pois, que as crianças são sujeitos – de direitos ou de conhecimentos –


pode se tornar uma expressão ingênua, pois não pressupõe as relações de poder, nem
consegue afirmar legitimidade à ação das crianças. No sentido de Arendt (1997, p.
194), perde a referência de uma dimensão coletiva do agir humano, imbricado nas
relações sociais, na fabricação da tessitura social, mesmo em suas normas, valores,
ciência e política. As relações e experiências sociais reforçam um caráter de
intervenção nos acontecimentos do mundo. Do contrário, como assinalam Bazílio e
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Kramer (2003, p. 81), em um contexto que, muitas vezes, nos distancia da efetivação
de direitos, isso nos expõe a um agravamento da desigualdade e da injustiça social.
De um lado, as crianças enfrentam situações cada vez mais difíceis e complexas,
convivendo com problemas para cuja solução seu conhecimento ou sua experiência
não permitem responder; de outro, os adultos parecem não saber responder ou agir
diante de situações que não enfrentaram ou não se constituíram como experiência
coletiva.
Ao tomar como princípio que a ação humana é coletiva – depende da
constante presença de outros (crianças, adultos, outras crianças, outros adultos) –, que
as diferentes maneiras de inserção nos espaços de convivência tensionam as
possibilidades de intervenção e construção no mundo, problematizo a importância de
recuperar o espaço educativo como espaço público, em que diferentes pessoas
ocupam o centro da cena, o protagonismo das relações e são capazes de, assim, e só
assim, entrelaçar interesses, consolidar novos laços, refazer elos e ressignificar seu
papel na esfera social coletiva. Reafirmo, por isso, que nem a ação das crianças nem a
ação dos adultos podem ou deveriam ser tomadas de forma isolada.
A condição socioistórica moderna, que coloca homens, mulheres, crianças, em
suas muitas idades e diferenças, separados entre si, tem diluído a capacidade política
de convivência e a capacidade de agir. Não é à toa que as crianças têm assumido um
lugar de profunda tirania em relação aos adultos, os quais devolvem essa tirania com
192

uma ação cada vez mais autoritária e distante das crianças, abandonando-as a dar
conta sozinhas de seus conflitos, incoerências e incompetências. Se, em sua condição
humana, e não de infância, as crianças se expressam como sujeitos incompletos,
dependentes, em processo de formação, os adultos também não se expressam à
imagem da plena perfeição. Procuro focalizar, ao contrário, um processo de formação
humana e social que tem como centro de atenção os diferentes atores que partilham a
cena social e nela precisam intervir não como idealização da escola ou das relações,
mas como condição humana.
Nesse contexto, a infância tem sido afirmada como tempo de brincadeira e as
creches como os lugares por excelência onde as crianças podem ser criança. Os
depoimentos das professoras e os projetos pedagógicos expressam, várias vezes, a
visão de que uma das responsabilidades da creche é possibilitar que as crianças
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vivenciem sua infância. Tomando como pressuposto o entendimento de que é no


brincar que a educação pode garantir a expressão de uma “cultura específica da
infância”, professoras, coordenadoras e profissionais dos Centros de Educação
Infantil afirmam que é no brincar que a criança aprende, que é por meio das
brincadeiras, jogos de faz-de-conta e momentos de fantasia que a creche deverá
organizar o trabalho pedagógico:

Na vida a gente passa por diversas fases. Então, a gente não pode deixar a fase da
infância passar. A infância é relacionada com a brincadeira, com o brincar. Então é
importante eles estarem brincando, estarem construindo. Então, é muito importante
as brincadeiras. É importante brincar na creche, porque é o espaço que elas têm
para estarem brincando e não estarem na rua. Então, é importante eles estarem
brincando aqui dentro da creche. É um espaço reservado para eles. Para eles
poderem brincar mesmo. (Rose)

A imagem da criança como ser que brinca expressa uma síntese do paradoxo
no qual a infância moderna se encontra inserida. Ao mesmo tempo que consolida um
reconhecimento cultural e social singular, reforça uma imagem de isolamento político
da infância, menorizando suas possibilidades de intervenção em um sistema
simbólico mais amplo. Essa imagem recoloca a infância em uma lógica
desenvolvimentista que encerra a infância como etapa preparatória para as etapas
subseqüentes e para o ingresso no mundo produtivo, o que requer uma especialização
193

da infância demarcada pelos territórios da casa e da escola. Como afirma Castro


(2001, p. 23), brincar e estudar foram atos assimilados como dimensão específica de
uma natureza infantil. A participação ativa na sociedade corre o risco de ficar adiada
para mais tarde. Essa imagem da criança acaba por colocar em questão a própria
noção de direitos plenos das crianças. Infância, de um lado, valorizada e concebida
como índice universal do projeto de desenvolvimento humano; de outro, menorizada
e tutelada pelo Estado, pela escola e pela família. O oficio de criança, assim tomado,
seria o de brincar e estudar, restrito à sua condição de dependência e incapacidade
social e política.

• As crianças são protagonistas da história? – Outra imagem recorrente é a


afirmação das crianças como sujeitos de experiências e participantes na construção da
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história, o que reforça outra visibilidade das crianças, fundamentada em princípios


éticos, políticos e estéticos, possibilitando ampliar conceitos, como os de
solidariedade e autonomia, cidadania e democracia, sensibilidade, criatividade,
ludicidade e diversidade cultural. Tal perspectiva, como ressalta Kramer (1996, p.
32), aponta outros eixos norteadores da ótica da infância que contribuem para uma
nova visibilidade das crianças, que supõe a não-infantilização (ou não-menorização)
dos processos de produção da cultura e a desnaturalização de uma infância que não
cabe mais idealizada, ingênua, espontânea e pura. Crianças desestabilizam a ordem e
desafiam olhares adultocêntricos.
Diferentes autores afirmam que para a criança o desvelamento do mundo e a
compreensão das transformações históricas encontram-se circunscritos na esfera do
lúdico – expressão de sua consciência e de suas intervenções – e se manifestam como
possibilidade concreta de ressignificação do lugar social que ocupa e de reconstrução
de significados, bem como a própria relação histórica com os adultos e com a cultura.
Mas, se não há sujeito histórico isolado e se há uma especificidade das crianças
tomadas como grupo etário, chamo atenção para não se reeditar uma visão ingênua e
desencarnada de contradições, para se proceder a uma reconstrução política da
participação de adultos e crianças como sujeitos construtores da história. Se uma
imagem das crianças que se consolidou no discurso corrente refere-se à infância
194

como tempo de direitos – direito à infância, direito à Educação Infantil, direito à


proteção, direito à brincadeira, etc. –, visão esta afirmada na inclusão de uma
concepção das crianças como atores sociais na Constituição Brasileira (1988),
descrita e expressa na forma do Estatuto da Criança e do Adolescente (1996), é
preciso ter coragem de enfrentar ambigüidades políticas, culturais, sociais,
econômicas, sobretudo éticas e estéticas, na direção da concretização desses direitos.
A compreensão das noções de direito e de autonomia, envolve, nesse sentido,
a problematização dos mecanismos de participação na produção institucional da
sociedade. Neste caso, ao buscar compreender as condições atuais de inserção e
inclusão digna de crianças e de professoras como atores sociais, é importante
identificar caminhos a percorrer no sentido da superação de posturas que limitam a
compreensão e, mesmo, a percepção das ações de crianças e adultos na produção da
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cultura e da sociedade.

4.4 Crianças e adultos na construção de uma cultura pública e


coletiva

A civilização moderna, como assinala Arendt (1972, p. 235-237), concebeu


uma infância dependente do adulto e buscou protegê-la do mundo remetendo-a à
segurança da família e das escolas. Nesse sentido, compreendeu a educação como um
processo privado, idealizado e gradual de inserção nesse mundo: desenraizou as
crianças da cultura e das experiências sociais como dimensão pública, elaborou um
desenvolvimento centrado em uma idéia de presente e constituiu um encadeamento
lógico em direção a um futuro previsível e estável. Presa a uma noção de que é
possível romper com o tempo e a tradição, instalando-se como uma nova maneira de
viver, desprezou uma experiência social acumulada e procurou separar a humanidade
de suas lembranças e memórias para se instalar como identidade cultural (ADORNO,
1995, p. 33).
Assim, a modernidade anunciou uma trajetória que culminava com uma idéia
de perfeição: científica, racional, madura, tecnológica, eficiente, disciplinada,
saudável e bela, para a qual as crianças deveriam ser preparadas. Contudo, ao
focalizar seu percurso histórico, mesmo com todo o desenvolvimento tecnológico que
195

fez emergir, o que se assistiu foi a um processo de embrutecimento das relações


sociais: guerras, exploração, escravidão, tortura, prostituição, violência, vida nas ruas,
tráfico, abandono, precariedade de condições de moradia, saúde e educação, enfim,
uma série de violações, desigualdades e descaso com relação à vida humana.
Tal reflexão não se fundamenta em um sentimento de vitimização. Traz
consigo, no sentido de Arendt (1972, p. 239), uma sensibilidade de partilha da
responsabilidade com o mundo, com a história e com os sujeitos. Mesmo porque,
como lembra Todorov (1999, p. 225), o isolamento dos sujeitos constitui uma das
primeiras formas de renúncia à autonomia. Colocar-se no lugar de vítima, neste caso,
consistiria em não se perceber envolvido em uma história que é pública e coletiva,
desresponsabilizando-se pelos seus possíveis destinos. Mas, ao contrário, como
afirma Benjamin (1987b), mobiliza-nos para um despertar da memória que nos leve a
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juntar os cacos dessa história, recuperando um lugar de autoria sobre o mundo.


O movimento de organização das sociedades e de transformação das
concepções e idéias filosóficas desencadeado a partir do final da década de 1960,
reivindicando direitos, voz e dignidade de diferentes sujeitos silenciados na história,
como as mulheres e os negros, é exemplo de uma experiência histórica e cultural
dialética. Esse movimento social também alimentou e foi alimentado por um processo
crescente de produções teóricas e acadêmicas que ajudaram a legitimar e a qualificar
concepções, ações e conquistas. Um novo olhar sobre os sujeitos, a história, a
sociedade e a cultura também apontou para o reconhecimento da presença e
participação das crianças no contexto social. Como pudemos observar, as década
seguintes constituíram-se palco de luta pela legitimação de direitos, e estes, de
alguma forma, desafiam repensar a própria configuração das relações sociais.
Concordo com Pinto e Sarmento (1997, p. 14) quando defendem que a
realidade social não se transforma por efeito direto de normas jurídicas, tampouco
pela emergência de outros olhares e concepções da sociedade e dos sujeitos. Sabemos
que as desigualdades impregnam a estrutura da sociedade, que a história se expressa
em longos e tensos percursos. Mas não devemos desconsiderar que, na dinâmica das
relações sociais, produzem efeitos que desestabilizam discursos, anunciam ações,
reclamam políticas, legitimam direitos e reivindicam conhecimentos que incluam os
196

próprios sujeitos nos seus processos de produção. Neste ponto, recai a importância de
afirmar as crianças – assim como nas questões de gênero e étnicas – em suas formas
singulares de inserção social e produção simbólica. Isso não pressupõe o isolamento
dos sujeitos e requer cuidado com formas ingênuas de compreender suas ações.
Assistimos, ao longo da história, a uma menorização das crianças em relação
aos adultos, das mulheres em relação aos homens, dos negros e dos índios em relação
aos brancos, dos pobres em relação aos ricos, da cultura popular em relação à cultura
erudita, dos saberes cotidianos em relação aos saberes científicos, entre muitas outras
expressões de poder. Nesse sentido, como assinala Castro (1999, p. 13-14), parece
prevalecer uma compreensão de que as crianças não possuem habilidades e
comportamentos adequados, o que acaba deslegitimando sua participação na criação e
recriação da cultura.
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Focalizar o conhecimento da infância nas suas relações com os adultos aponta


para outra percepção e análise, como propõe Giddens (1995, p. 145), que não ignore
os discursos que estruturam e condicionam as ações, mas evidencie contradições que
abram brechas para conceber uma outra dinâmica de produção de significados.
Envolve um processo de descentramento do olhar, solicitando novas experiências
éticas e estéticas das relações humanas. Dizer que crianças e adultos agem no mundo
e instauram formas singulares de relação não implica incorrer em naturalização, nem
na romantização, tampouco na especialização e privatização das diferentes idades e
gerações, o que, em uma história e contextos ideológicos e de relações de poder,
materizou fragmentações, desigualdades, hierarquias e barbárie.
Contradizendo as próprias idéias, expectativas e concepções elaboradas na
modernidade, que supõem um lugar de dependência das crianças em relação aos
adultos, tem se acirrado o isolamento das crianças, que estão cada vez mais sozinhas,
instituionalizadas em tempos e espaços específicos, experimentando relações restritas
a seus próprios pares. Esse isolamento, às vezes, absorve uma idéia de proteção das
crianças. As ruas, as cidades, os condomínios, os bairros, as comunidades, mesmo as
escolas, vão perdendo um sentido de expressão coletiva e de partilha das relações
sociais. As crianças se vêem envolvidas em um mundo de imagens, tecnologias,
produtos e desejos individuais que a maioria sequer tem condições de se apropriar
197

(não por competência, mas por meios de acesso e inserção), mas que, como norma ou
moda, impõem ser consumidos como expressão do novo cidadão contemporâneo.
Na sociedade de consumo, como analisa Pereira (2002, p. 152), as relações
passaram a se instituir tendo como princípio necessidades individuais e
individualizadas, descoladas da história e descaracterizadas de seu sentido coletivo.
Enquanto as crianças vão sendo impelidas a uma jovialidade precoce e inseridas em
um grande mercado consumidor, muitos adultos parecem recusar-se a amadurecer e,
até mesmo, envelhecer, como se o mundo pudesse se reduzir à eternização de um
presente idealizado, em que a felicidade, o prazer, a beleza, o conhecimento, como
bens privados, estivessem disponíveis a todos que pudessem ou merecessem, como
mercadorias, consumi-los (SARLO, 2000, p. 36). Nesse contexto, as crianças
distanciam-se dos adultos e das relações sociais, desligando-se de um processo de
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apropriação e produção da cultura. As imagens, os produtos, as tecnologias falam por


si, são auto-explicativos, expressam-se como verdades inquestionáveis, não pedem
mediações: onde só vale o que é novo e imediato, nem as contradições do passado
nem as do devir cabem ser problematizadas.
Como ressalta Konder (1995), ao reduzirmos o passado a imagens desfocadas
de seus significados, nas quais não nos identificamos ou compreendemos,
bombardeados por novas informações e desejos, tivemos nossa sensibilidade histórica
esvaziada. Iludidos com uma falsa novidade, apassivamo-nos, condenados a repetir o
passado de forma compulsiva e neurótica, acreditando estar empreendendo algo novo.
E, como enfatiza Castro (1999b, p. 198), sem darmos conta da complexidade da
realidade, banalizamos nosso olhar sobre uma infância “traída” e empobrecida,
mesmo sabendo que a igualdade de consumo, de educação, de felicidade, de direitos,
de autonomia, de acesso ao conhecimento e à inserção cultural, etc., quando não
problematizada, torna-se uma mentira e perdemos, todos, a referência ética de um
projeto de sociedade, de um projeto cultural.
Fundamentado em Benjamin (1987a, 1987b e 1989), penso que estas reflexões
não expressam uma visão nostálgica do passado nem prescritiva do futuro: buscam-se
nexos para compreender o presente, e não supõem um passado intacto e idealizado.
Procura-se um contraponto à desumanização, reassumindo um lugar de narrativa de
198

uma história comum e coletiva. A modernidade, em suas noções de ciência e


progresso (SOUZA, 2001, p. 40), ensinou a decifrar a história e as pessoas como
objetos neutros e idealizados, e a construir instrumentos e saberes, sempre novos, que
pudessem objetivar a ação humana, tornando-a eficiente e adequada, segundo um
modelo de desenvolvimento humano e social livre de tensões e contradições.
Todavia, como observa Arendt (1997, p. 242), mesmo quando a modernidade buscou
instrumentalizar a ação humana, não conseguiu desideologizá-la, tampouco
despolitizá-la. Crianças e adultos não são sujeitos abstratos, constituem-se na história
e nas relações sociais, supõem processos de intervenção no mundo. Se, como
instrumento, a ação humana pôde ser idealizada, prevista, controlada, conhecida,
domesticada, aprimorada, tendo como norte a perfeição, como processo e interação
humana é imprevisível, suscita a reconstrução, a recriação, a invenção. Nesse sentido,
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não se presta à idéia de perfeição, mas requer assumir responsabilidades coletivas.


Benjamin (1987a), no texto Experiência e Pobreza,76 narra uma história em
que um pai, já velho, no momento de sua morte, revela a seus filhos a existência de
um grande tesouro enterrado no vinhedo que lhes havia servido durante anos de
trabalho, experiências e colheitas. Após a morte do pai, os filhos, ávidos para se
apropriarem do tesouro, escavaram toda a terra, mas não acharam o anunciado
tesouro. Ainda que decepcionados, sendo o que tinham e o que sabiam fazer, e
aproximando o tempo de plantio para a próxima colheita, descobrem que seu tesouro
não estava em um suposto ouro, mas no trabalho e na sabedoria que tornara a colheita
tão próspera. Esse pai tinha clareza (experiência e sabedoria) do que queria que seus
filhos achassem e se apropriassem. Compreensão de uma “tradição” que precisava ser
apropriada (narrada), mas que fizesse sentido para seus filhos e que encontrasse
significado no contexto de suas experiências, para que pudesse ser ressignificada
(escavada, removida e reconstruída). Sabedoria que se expressa como “conselho”
(mediação), que só se legitima quando pode ser reapropriado, incorporado (tornar-se
parte do corpo/história do outro). Mas esse pai também apostou na competência de

76
BENJAMIN, 1987a. Esta análise também foi proposta por Pereira (2002), em um texto
fundamentado em Souza (2000) e Castro (1999), que considero importante para a compreensão de uma
infância contextualizada no contemporâneo.
199

seus filhos, por mais que fossem atravessados por princípios e valores que lhe
escapavam o controle. Mas que história partilhara? Que conhecimentos e experiências
trocara com seus filhos (projeto cultural)? O que lhes havia ensinado? Como assinala
Arendt (1972, p. 246), se o adulto não pode ensinar às crianças a “arte de viver”, pode
ensinar-lhes a decifrar o mundo sem preconceito e com atenção, reconhecê-lo e nele
se reconhecer – apropriá-lo, participando de sua construção como patrimônio humano
público:

[...] a educação é onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não
expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos e, tampouco
arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova imprevista
para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um
mundo comum. (ARENDT, 1972, p. 247)
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Nesse sentido, é significativo problematizar o lugar e o valor social que temos


atribuído aos adultos e às crianças. A cultura e a civilização moderna nos ensinaram a
conceber uma infância centrada em um “ponto de vista adulto” (entenda-se homem,
branco, ocidental): signo de maturidade, perfeição e autonomia da razão.
Vislumbraram uma infância abstrata e atemporal, relacionada em uma perspectiva
histórica linear e progressiva. Tomada como irracional, espontânea, despreocupada, a
infância foi anunciada como ponto de partida de um futuro idealizado. A cultura
moderna, acreditando-se o topo e final de uma trajetória racional, segundo Larrosa
(2001, p. 22), pretendeu se expressar como instante eterno, em que presente e futuro
se coincidem, para o qual tudo e todos deveriam convergir e preparar-se. Entretanto, a
imagem da infância não está dirigida a uma idéia de tempo homogêneo, infinito,
quantificável e sucessivo. A infância como dimensão do humano – mais que uma
natureza das crianças – entrecruza os diferentes sujeitos em uma temporalidade
presente-passado-futuro e se expressa como crítica a esta ordem instituída: “razão-
memória-corpo”, que lança um olhar para a história em busca de seus destroços,
“brinca” nas ruínas, junta seus estilhaços e, nas palavras de Benjanin (1984, p. 14)77,
desperta a possibilidade de fazer “história a partir do lixo dessa história”: e recriá-la,
ressignificá-la, reconstruí-la.

77
Apud Willi Bolle (1984). In. BENJAMIN (1984). Reflexões: A criança, o brinquedo e a educação.
200

A imagem da criança dependente há muito foi desestabilizada e colocada em


xeque, inclusive como dimensão de nossa própria história de barbárie. Já na década
de 1980, no período da Constituinte, assistimos ao Movimento Nacional de Meninos
e Meninas de Rua explicitando a voz e a vida de sujeitos que o contexto social
preferiria não ouvir, muito menos enxergar. Qual de nós não se viu aterrorizado
diante de crianças pequenas nas janelas de nossos carros, nas ruas ou nos ônibus,
supostamente, ameaçando nossas vidas? Quantos meninos e meninas sustentam seus
pais, mães e irmãos com seu trabalho? Em quantas casas as crianças assumem a
organização, os cuidados e a proteção dos irmãos para que seus pais possam sair para
o trabalho? Para além de exemplos tão duros, Souza (2000), Castro (2001) e Kramer
(2003) têm assinalado outros olhares e narrativas em que a presença das crianças
desconstrói histórias e futuros contados de forma fatalista, em que as relações entre
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crianças e adultos contradizem a próprias hierarquias relativas às contribuições de


cada um.
Neste ponto, retomo a reflexão sobre o brincar compreendido como processo
de inserção em um tempo-espaço social, que se constitui como narrativa e processo
de problematização e reconstrução da realidade. Segundo Vigotski (1998, p. 124), o
brincar se expressa como uma das formas mais sofisticadas de partilha das relações
de significação do mundo: entrecruza histórias, tempos e espaços; brinca-se com uma
memória coletiva que ultrapassa quem brinca e o próprio momento da brincadeira:
objetos, tempos, espaços, substâncias, regiões, épocas, cidades, países, continentes,
rituais, os mais amplos e ricos contextos humanos.
Trazer à cena a reflexão do brincar, no sentido de compreensão de um lugar
das crianças em um contexto que é social, inclui a percepção do processo de
reconstrução e ressignificação da realidade como um princípio de elaboração da
história e da cultura, em que o corpo e a memória, como propõe Souza (2001, p. 54),
expressam-se como possibilidade de experiência e produção “lúdica” (dimensão dos
sujeitos e linguagem que materializa uma racionalidade que envolve o corpo, a
memória, o simbólico e um universo de significação coletiva e não individual) do
mundo ou, como compreende Benjamin (1984), como possibilidade de experimentar
e narrar uma história a partir do que foi tomado como “lixo” dessa própria história:
201

aquilo que foi/é descartado por sua aparente inutilidade pode ser (re)humanizado,
(re)significado, (re)apropriado como sentido, significado.
Por isso, as ações das crianças não constituem parte de uma cultura isolada.
Ao contrário, estão inseridas em uma tradição, em um sistema coletivo de
significações. Como desafio à construção da história, lembra-nos que sempre se pode
incluir, por imperceptível que pareça, algo novo que emerge de uma história coletiva
e das experiências partilhadas. De dentro da história é que se pode reconstruir as
regras, reinventar palavras e jeitos de falar, recriar o mundo com pinturas, esculturas,
festas, brincadeiras, etc.; ressignificar o humano como artistas e artesãos de um
mundo e história que nos enredam.
Nesse sentido, afirmo o lugar social das crianças como sujeitos que
desestabilizam, desfocam e descentram olhares adultos, que provocam e remetem os
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adultos a tocar em suas memórias e experiências, que relembram que os objetos, mais
do que serem instrumentos e terem uma função, no sentido de Bakthin (1988, p. 34),
são um signo:78 materializam relações sociais em sua plena constituição ideológica.
Um cabo de vassora, por exemplo, não é neutro: afirma funções, lugares sociais e
formas de inserção na cultura. Se reinventado, pode ser um cavalo, um foguete ou um
avião, pode levar a lugares, mundos e histórias que, embora já conhecidas, podem ser
partilhadas, narradas, ressignificadas, experimentadas de formas inesperadas.

4.5 Formação humana e projeto cultural

Tais ponderações implicam reconhecer que os significados da brincadeira


precisam ser compreendidos com atenção. De um lado, pode-se observar a
emergência de um discurso que valoriza um lugar social do brincar a partir de uma
visibilidade das crianças, nas últimas décadas, afirmadas como sujeitos de direitos e
competências, valorizadas como participantes da produção da sociedade, capazes de
empreender formas próprias de intervenção e expressão na e da cultura. Partilho desse
olhar. Contudo, por outro lado, não podemos restringir essa reflexão a uma espécie de

78
No sentido de Bakhtin (1988, p. 35), “a consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao
contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social [...] a consciência adquire
forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais”.
202

nova idéia de infância e, tampouco, banalizar discursos que atravessam as relações


sociais, sob o risco de retornarmos, como já ressaltado, a uma postura abstrata,
ingênua e naturalizada da infância.
No contemporâneo, as noções de sujeito e de autonomia aparecem
entrelaçadas à possibilidade de proceder a escolhas entre diferentes produtos
dispostos nas “prateleiras” das relações e instituições sociais, como se fossem um
grande e homogêneo “supermercado”. Distanciadas de um lugar de produção da
cultura e dos processos de relação, as crianças têm se tornado alvo privilegiado de um
mundo de imagens e produtos próprios para esta faixa etária. Como novos cidadãos
consumidores (ao lado da denominada 3ª idade), foram incluídos – como se isto fosse
uma grande conquista – em um novo lugar e valor social (desconsiderando as intensas
contradições na sociedade). Nesse contexto, conceitos de sujeito, direito e autonomia
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evidenciam-se como signos de um novo modelo cultural: brinquedos, jogos, viagens,


festas, roupas, sandálias, filmes, músicas, computadores, celulares, os mais diferentes
produtos nas prateleiras e vitrines dos shoppings. Sob o rótulo “infantil”, fazem
circular valores, normas, desejos, linguagem e relações que vão se impregnando
como projeto cultural, mesmo considerando que as crianças não absorvem as relações
de forma passiva.
Tomada de forma ingênua e descolada das relações social, a brincadeira se
materializa como uma espécie de corolário de um ideal de presente, consumo, prazer,
entretenimento e descompromisso com a produção da sociedade. Disponibilizada às
crianças, ora de forma irrefletida e espontânea, ora como meio para outras
aprendizagens sociais, em muitos casos, acaba reforçando um isolamento das crianças
em tempos e espaços específicos, envolvendo-as em relações desfocadas da
complexidade do mundo. Nesse contexto, tanto as crianças quanto os adultos vêem
limitada sua condição humana de agir no mundo e de assumir um lugar de autoria e
narrativa. Intitulados como sujeitos em substituição ao indivíduo moderno, acabam
deslocados para o lugar de objetos. As relações sociais (entre elas as brincadeiras) são
esvaziadas como processo e experiência, assumindo um lugar instrumental dentro de
uma funcionalidade institucional. Partilho a idéia de que as crianças são sujeitos no
presente. Todavia, essa afirmação traz o risco de nos enredar em um presentismo.
203

Reforço a importância de superação de noções de infância tomada como tabula rasa


ou como um vir-a-ser linear e previsível: um exercício de futurologia que sai do nada
e caminha em direção a uma idéia abstrata de perfeição. Entretanto, como princípio,
não pressupõe abdicar de uma noção dialética de história que também se constitui
como vir-a-ser e se expressa como projeto coletivo.
Assinalo, assim, a importância de recuperar as trajetórias das professoras das
creches comunitárias – sujeitos coletivos que partilham uma história institucional –,
envolvidas em um processo de apropriação, reconstrução e narrativa de uma história
que é constitutiva de sua condição humana. Mesmo em meio à ambigüidade e à
tensão concernentes ao processo de elaboração e implementação de políticas públicas,
o Poder Público na capital mineira, ao envolver os diferentes atores e instituições que
significam a Educação Infantil no cotidiano dos bairros e das comunidades em Belo
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Horizonte, na estruturação de um projeto político-pedagógico para a Educação


Infantil no município, expressou uma postura política que fez emergir valores
públicos. Ao envolver professoras, profissionais, crianças e famílias, que partilham os
trabalhos nas instituições de Educação Infantil, instituiu um processo de construção
política que implicou novas intervenções, interações e, por isso, responsabilidades.
Ao tomar como princípio uma relação que envolve diferentes atores e lugares
sociais no processo de construção da história, instaura-se uma tensão ante um projeto
cultural e abre brechas para a sua problematização e continuidade de sua construção.
Como ressalta Adorno (1995, p. 48), requer, pois, atenção a preconceitos e
estereótipos, para que possam proceder uma “elaboração do passado”, no sentido do
fortalecimento da autoconsciência dos diferentes sujeitos que partilham uma trajetória
comum, possibilitando-lhes exercer a capacidade de decifrar um mundo tão cheio de
histórias que constituem uma cultura complexa, contraditória e, muitas vezes,
dolorosa. Afinal, como nos lembra Benjamin (1986), os documentos de cultura
também consistem em documentos de barbárie, e assim como a cultura
contemporânea não está livre da barbárie, também não está o seu processo de
transmissão. Mas também pode produzir uma perspectiva de emancipação e formas
de liberdade ainda não previstas.
204

Tornar-se narrador, desta forma, implica não repetir e incorporar, de forma


irrefletida, discursos de outrem, sob o risco de ver desfigurada a ação e a identidade
da professora. Mais que contar uma história, as professoras estão empreendendo uma
escrita dessa história, um exercício de síntese em que se constitui imprescindível
identificar discursos, partilhar a reflexão de suas próprias ações, permitir-se ser
desconstruída pelo olhar e ação das crianças, caminhando em direção a um fazer
educativo significado pelos diferentes sujeitos que dele participam, o que abre
brechas para poder decifrá-lo e proceder a novas construções e significações.
Quando problematizo, por exemplo, o uso das brincadeiras intituladas
“pedagógicas” ou brincadeiras para aprender a ler e a escrever (tanto quanto uma
impregnação espontaneísta das relações), isso não deve ser compreendido a partir de
um entendimento de que na Educação Infantil não se deve trabalhar leitura e escrita
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ou, mesmo, que possibilidades de relação entre o brincar e outros conhecimentos não
podem ser pensadas. Mas se essas forem as únicas formas de inclusão da brincadeira,
revelam um recorte pobre da cultura. Ao ser tomado como instrumento neutro e
objetivo, perde-se de vista valores e signos culturais que atravessam a escola e se
instalam como projeto cultural, o que banaliza dimensões de poder que se expressam
nas diferentes experiências de constituição humana, tensionadas em gêneros, raças,
inserção social, habilidades, comportamentos, hierarquias, participação nas decisões,
etc. Ao invés de possibilitar uma apropriação dos meios de produção do
conhecimento, objetiva e dissimula uma histórica desapropriação dos sujeitos dos
significados de sua ação, fornecendo-lhe uma aparência agradável, prazerosa e
desejada. As brincadeiras, nesse contexto, não são compreendidas como uma
possibilidade de tematização da produção cultural que atravessa a escola, a vida das
crianças e das professoras.
Afirmar o significado da brincadeira como dimensão de produção da
linguagem humana é inalienável do direito de apropriar-se de todas as formas de
codificação e interpretação. Tal fragmentação é semelhante a um tipo de pensamento
que parece contrapor o direito de acesso a dimensões técnicas e instrumentais de
apropriação e produção do mundo com uma noção de educação que se expressa com
projeto de formação humana. A constituição do humano pressupõe amplo acesso aos
205

diferentes conhecimentos que se materializam como patrimônio humano e cultural.


Assim como o professor tem o direito de se apropriar de diferentes competências
técnicas que constituem um projeto de formação profissional, isso está imbricado na
constituição de responsabilidades sociais com a formação humana. Neste caso, a
condição de reflexão e reapropriação da produção da história e dos instrumentos
técnicos, decifrando os contextos ideológicos que os constituem nas relações sociais,
implica o direito coletivo de ampliar tempos, espaços e condições de acesso, inserção,
partilha e participação da produção da cultura e das experiências sociais.
A Educação Infantil, concebida como uma política pública de infância, está
relacionada à pluralidade de conhecimentos culturais, entendidos como patrimônio
humano e coletivo, em que se revela uma riqueza de experiências e saberes. Como
tempo e espaço de circulação da cultura, abre-se às histórias, trajetórias, valores e
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formas de decodificação e interpretação do mundo, direito e condição humana de


professoras e crianças. Não cabe, pois, alimentar dicotomias. Apropriar-se dos
conhecimentos e seus meios de produção, decifrar contradições, tensões e
preconceitos se expressam como dimensões constitutivas da humanidade de crianças,
professoras, bem como das formas de gestão pública.
Considerações finais

Nesta tese, analisei os discursos e as práticas que materializam a condição


social das crianças, das professoras e da Educação Infantil no município de Belo
Horizonte. Propus conhecer os processos de socialização e institucionalização
expressos no dia-a-dia de uma creche comunitária (significada pela presença de
crianças e de adultos) e nas experiências narradas pelas professoras (suas trajetórias
humanas e profissionais, e sua participação na construção de políticas e propostas
para a Educação Infantil), abrindo caminhos para o entendimento do lugar social da
educação, da infância, da formação e da atuação de professores no contexto
contemporâneo.
Acolher, atender, cuidar, educar, ensinar, brincar, dentre outros discursos,
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ações e relações, são noções incorporadas de forma complexa, e nelas cabem os mais
paradoxais significados. Nos relatos das trajetórias das professoras, bem como na
história da Educação Infantil em Belo Horizonte, explicitam-se diferentes
concepções, que se expressam de forma dialética: são histórias tecidas entre a
precariedade e a dignidade dos sujeitos, escritas nos espaços possíveis de produção
humana, atravessadas por signos ideológicos que as constituem e conformam.
Nesse contexto, um olhar sobre as crianças como sujeitos, articulado a uma
compreensão sobre a importância do brincar, mostra-se como uma das estratégias de
efetivação de uma concepção de infância, com direitos subjetivos e singularidades em
seu processo de inserção na cultura. Esta visão está presente em diferentes discursos
públicos. No Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, no projeto
político-pedagógico do município e nas propostas que as creches procuram efetivar
em seu cotidiano, a brincadeira é afirmada como princípio fundamental, linguagem
prioritária, direito inalienável, método, processo e conteúdo; conhecimentos dos quais
as professoras precisam apropriar para afirmar a Educação Infantil como concepção
pedagógica. O direito de acesso à brincadeira expressa-se como sinônimo do próprio
direito à infância.
Ao lançar o foco da pesquisa para este quadro e noção, observei no cotidiano
das instituições de Educação Infantil um movimento, que vem emergindo, de
207

“reconfiguração” daquilo que constitui sua estrutura, discurso e ação: anunciam-se


outras formas de organização e intervenção, e incluem-se conhecimentos, como as
artes, a música e a educação física. Mesmo reconhecendo contradições contundente,
não se deve ignorar que esse movimento tem constituído um processo de apropriação
e produção de saberes pelas professoras.
Nesta pesquisa aponto, também, a importância de compreender os discursos e
os significados que atravessam essas relações pedagógicas. Ao me aproximar do
cotidiano de uma creche comunitária, pude registrar os diferentes tempos, espaços e
conhecimentos que emergem com sentido pedagógico e marcam as relações entre os
adultos e as crianças, instaurando um contexto escolar singular significado em um
universo cultural mais amplo.
Integrado ao discurso da importância do brincar e do direito à infância,
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emergem práticas e significados de uma educação dos corpos das crianças


relacionados ao conjunto de solicitações da sociedade e da cultura contemporânea. O
reconhecimento, a compreensão e a apropriação do que é experimentado
cotidianamente pelos diferentes atores que partilham a Educação Infantil e pelo que é
dito pelas professoras sobre suas histórias, relações, conhecimentos, tempos e espaços
institucionais podem abrir caminho para uma reconstrução reflexiva das práticas
escolares com crianças pequenas.
Nesse sentido, as relações pedagógicas que constituem a Educação Infantil
devem ser mais bem compreendidas. Afinal, o que se quer ensinar às crianças? O que
se quer que as crianças aprendam? Como crianças e adultos participam da produção
desse contexto de formação humana?
Concluí que sobressai uma idéia de que o que as crianças têm para aprender é
uma conseqüência direta de uma nova disposição de objetos, instrumentos e
processos. Isso tem reforçado, em diferentes momentos, uma descentração/
deslegitimação da presença/ ação/ intencionalidade do adulto/ professora. Neste
ponto, o discurso da brincadeira afirmado, ora como conteúdo, ora como metodologia
que traduz especificidade à Educação Infantil, se incorporado de forma irrefletida,
traz o risco de reforçar uma idéia de aprendizagens naturais-espontâneas, que recaem
em uma concepção abstrata e idealizada das crianças, suas relações e aprendizagens.
208

No cotidiano das escolas, as professoras, em muitos casos, não conseguem romper


com uma prática, muitas vezes, ingênua e autoritária, que se perde e que perde a
oportunidade de estabelecer mediações ricas e relações de produção compartilhada de
conhecimentos. Também constatei que as professoras, em diferentes momentos,
organizam suas ações pedagógicas sem retomar suas próprias trajetórias e
experiências, seus saberes, suas infâncias, suas brincadeiras, seus projetos.
Contudo, o diálogo do pesquisador com as professoras reforçou o cuidado
para não fazer julgamentos apressados. À medida que as histórias partilhadas por
professoras e crianças podem ser contadas e apropriadas, abrem-se perspectivas para
que determinados discursos possam ser reconhecidos e superados. Ao aproximar-me
das professoras foi possível verificar uma história coletiva que faz emergir as
diferentes trajetórias das instituições de Educação Infantil e traz uma organização
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pedagógica envolvida em um processo de construção de outra imagem profissional,


atrelada a outra visibilidade das crianças. São questões que dizem respeito à
possibilidade das professoras se reconhecerem na creche e nas relações com as
crianças consolidadas pelo seu sentido educativo.
Ressalto uma atenção especial às relações com as crianças no contexto
educativo: são relações que se expressam em práticas concretas e, por isso, podem ser
registradas, partilhadas, apropriadas e reconstruídas. Ainda que persista, em
diferentes momentos, certa fragmentação e hierarquização da tensão teoria e prática,
pude perceber que a experiência de narrativa de uma história abre brechas para a
produção e apropriação de conhecimentos. Ao pensar a formação de professores,
além da importância de compreensão de pressupostos e concepções teóricas, emerge
o direito fundamental de recuperar uma condição de sujeitos na produção dos
significados da prática. Sujeito é uma categoria coletiva. As crianças só podem se
expressar como sujeitos se os adultos com os quais elas se relacionam também
puderem compreender-se e expressar-se como sujeitos. Esse entendimento é
fundamental.
Nesse sentido, os diferentes discursos e práticas que emergem no cotidiano a
partir de noções como o direito à infância e à brincadeira aparecem tensionados e
implicados em uma realidade social que envolve todos – crianças e adultos, homens e
209

mulheres –, e, por isso, são inseparáveis da compreensão dos lugares sociais, onde se
revelam e podem ser decifrados. Ao propor uma reflexão das relações sociais e
culturais entre crianças e adultos, que se realiza como educação escolar em uma
creche comunitária, busquei reconhecer e problematizar contradições éticas e
políticas que estão impregnadas no contemporâneo. A desigualdade de direitos e as
brutalidades sociais que muitas crianças vivem não se referem apenas às crianças.
Estão contextualizadas na fragilidade democrática que crianças e adultos partilham e
que constituem uma inserção social e cultural ainda precárias.
A educação de crianças está atravessada por um tempo-espaço institucional
que coloca em cena para além das dimensões técnicas e instrumentais, um contexto
de mediações culturais e sociais. Uma escola para crianças pequenas, também, revela-
se como possibilidade de desvelamento, tanto de uma tradição quanto de experiências
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culturais e sociais presentes. Colocamo-nos sob o risco de nos ver diante de modelos
contemporâneos, desprovidos de uma história e de experiências capazes de promover
uma existência mais crítica e reflexiva. A escola, como lugar de experiências sociais e
culturais, tempo e espaço de formação humana, pode se traduzir como uma rica
possibilidade de leitura do mundo e de escrita de uma história coletiva.
O conhecimento, como saber gerado nos processos sociais, não se restringe,
por isso, a uma apropriação neutra e objetiva do mundo. Refere-se a uma dinâmica de
produção de significados e de elaboração da cultura. A possibilidade de ler o mundo e
interpretá-lo, significá-lo, inscrevê-lo como história, coloca-se para além (apenas
citando como exemplo) da discussão e aplicação de um melhor método de
alfabetização. Nesta pesquisa, pude perceber que as técnicas estão relacionadas aos
próprios processos históricos de construção dos conhecimentos sociais.
Conhecimentos, técnicas e saberes, em suas mais amplas dimensões,
constituem patrimônio da humanidade e direito inalienável. Isso inclui pensar as
condições de acesso e a compreensão dos meios de sua produção. Envolve, por isso,
uma reapropriação do lugar de autoria e autoridade no processo de elaboração da
cultura. Refere-se, assim, à possibilidade de superação de uma trajetória em que
crianças, adultos, homens e mulheres se viram destituídos dos meios de produção da
sociedade, como uma das faces perversas da injustiça e da desigualdade.
210

O que singulariza os seres humanos é a pluralidade de experiências. A


compreensão do mundo está implicada nos processos, instrumentos e relações que
podem se materializar como cultura: danças, festas, rituais, músicas, brincadeiras,
artes, jogos, cinema, teatro, literatura, nas mais diferentes formas de existência e
expressão do corpo e da memória. Uma política de direitos assume, nessa perspectiva,
papel problematizador das condições de inserção cultural e se refere à possibilidade
de elaboração de experiências políticas, éticas e estéticas. Inserida na capacidade de
crítica, esta tese também procurou refletir sobre o risco que a modernidade vem
submetendo a todos de nos privarmos de nossa capacidade de “narrar” e de ir além do
que a história parece esgotar no momento de sua realização. A narrativa da história,
assumida como forma de partilha das experiências e dos processos humanos, traz
consigo a marca da presença corporal dos sujeitos na produção do mundo.
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A Educação Infantil, concebida como uma política pública de infância,


também está relacionada à pluralidade de conhecimentos culturais, entendidos como
patrimônio humano e coletivo, em que se revela uma riqueza de experiências e
saberes. Como tempo e espaço de circulação da cultura, abre-se às histórias,
trajetórias, valores e formas de decodificação e interpretação do mundo, direito e
condição humana de professoras e crianças. Não cabe, pois, alimentar dicotomias.
Apropriar-se dos conhecimentos e seus meios de produção, decifrar contradições,
tensões e preconceitos se expressam como dimensões constitutiva da humanidade de
crianças, professoras, bem como das formas de gestão pública.
Problematizar a brincadeira – compreendendo que os corpos dos sujeitos
trazem consigo impressa a história da humanidade – pressupõe reconhecer as marcas
que, nas trajetórias humanas, foram e estão sendo deixadas nos corpos e na memória
dos sujeitos. Por isso, o corpo não é território da irracionalidade, tampouco a reflexão
e a criticidade são formas de expressão humana restritas a uma idéia de cognição
como condição racional. Revela-se, nesse sentido, a condição humana em sua plena
dimensão ética e estética. Dessa noção decorre um olhar sobre a formação humana
(de crianças e adultos) como um processo de apropriação das práticas corporais
encarnadas na cultura, com toda sua contraditoriedade. Supõe o reconhecimento de
211

discursos que materializam ideologias e se constituem como relações de consumo e


poder.
Sabemos que as práticas corporais não estão isentas de signos ideológicos. A
arte, a brincadeira, a dança, o esporte, a ginástica, a música, a literatura, a televisão, o
teatro, o cinema evidenciam-se como conhecimentos humanos contextualizados e
significados na história. Trazem preconceitos, violência, isolamento dos sujeitos. Por
isso, denunciam contradições que reclamam mediações. Ao enfocar os processos de
classificação e distribuição que atravessam os corpos dos sujeitos no cotidiano de
uma escola de Educação Infantil, chamo atenção para os controles sutis que crianças
e professoras, dia-a-dia, vão incorporando como formas “naturais” de organização e
expressão, sem que percebam os signos sociais que atravessam suas relações, ações e
discursos.
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Entretanto, também afirmo a importância de ampliar a compreensão das


possibilidades de resistência e produção de outras práticas e discursos. Nesse sentido,
esta pesquisa, atravessada pelo olhar da educação física, insere-se em um campo de
produção de conhecimentos que tem enfrentado o desafio histórico de buscar
aproximar-se da escola como tempo e espaço, que supõe uma partilha de experiências
sociais. Isso pressupõe problematizar os processos de transmissão e produção da
cultura humana – tanto seus fundamentos técnicos quanto seus princípios e
responsabilidades humanas e sociais. Nesse sentido, busquei dar visibilidade aos
lugares, discursos e papéis sociais que marcam o corpo na escola, instituem relações e
constituem os processos de formação humana.
A pesquisa no campo da Educação é complexa. Exige um delicado trabalho de
reconstrução da realidade social, diálogo e interlocução com outros campos
disciplinares e aponta a necessidade de encontrar alternativas às situações práticas
com que se defronta. Esta tese, marcada pelo olhar sociológico, procurou apresentar
uma análise das relações que têm constituído a Educação Infantil no município de
Belo Horizonte: os discursos institucionalizados, os significados que conformam as
relações das crianças com as professoras, as trajetórias de vida e profissional, as
concepções e os processos que materializam as políticas de infância e as histórias da
Educação Infantil. Creio, nesse sentido, ter elaborado um diálogo lúcido e sensível
212

com a problemática da infância e das relações entre as crianças e os adultos, em


especial naquilo que constitui uma “educação do corpo” nos processos de construção
da cultura e de formação humana.
Para finalizar, ressalto alguns temas, dentre tantos outros, como possíveis
desdobramentos da pesquisa:

• As relações entre adultos e crianças no contexto escolar e social


contemporâneo. Nesse sentido, o olhar sociológico apresenta a possibilidade de uma
análise sustentada nos processos de produção da cultura, ancorada nas condições
sociais em que crianças e adultos vivem, interagem e dão sentido ao que fazem.
Dessa forma, ao se buscar aproximação de uma possível especificidade dos processos
e trajetórias da infância, remete-se às relações simbólicas que constituem a cultura
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humana e sua construção histórica e relacional.

• Os significados que as brincadeiras, as artes e as práticas corporais carregam,


materializam-se e podem se expressar no contexto de uma educação escolar. Assinalo
que essas relações constituem formas de realizar uma “educação corporal” e
pressupõem o entendimento das relações sociais e das formas de produção e consumo
cultural. Cabe, nesse sentido, ressaltar a importância de estender a compreensão dos
significados que assumem, como discurso e como prática, nos diferentes tempos e
espaços que constituem a complexa teia social tanto em sua constituição histórica
quanto na sua expressão contemporânea.

• Os contextos de implementação de políticas públicas de Educação Infantil, em


que reflitam as formas de participação e as responsabilidades dos diferentes atores,
instituições e instâncias governamentais e não-governamentais. Assinalo o desafio de
buscar entender a “densidade” dos processos e das “histórias” da Educação Infantil.
As experiências cotidianas partilhadas em diferentes estados e municípios, nesse
sentido, abrem brechas para a apropriação das trajetórias humanas, profissionais e
institucionais que vêm consolidando discursos e significados sociais.
213

• As relações políticas entre os setores da educação e da assistência, no sentido


de promover uma compreensão da Educação Infantil e sua efetivação como uma
política de infância. Isso torna fundamental alargar o entendimento dos
conhecimentos produzidos e das relações vividas no setor da Assistência Social no
contexto da Educação Infantil em diferentes estados e municípios – os diálogos, as
rupturas, as omissões, etc. –, em especial as diferentes histórias de “passagem” da
educação de crianças de 0 a 6 anos para o setor da Educação. Constituem, pois,
relações imprescindíveis para a elaboração de um projeto político interdisciplinar, que
possa se refletir como direito amplo de acesso a uma Educação Infantil pública.

• A prática cotidiana das professoras nas instituições, aproximando-se da escola


e ampliando canais de interlocução que apontem outras concepções, saberes e
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processos para a formação de professores. Ao aproximar-me desse contexto de


relações cotidianas, emergiram histórias, trajetórias e conhecimentos que desvelam
possibilidades de efetivar uma organização pedagógica atrelada a uma imagem
profissional e institucional enraizada cultural e socialmente.

Espero, nesse sentido, ter contribuído para futuros estudos, bem como ter
apresentado análises que dêem lugar à apropriação dos discursos e dos significados
que as brincadeiras, entre outras práticas corporais, têm assumido no espaço escolar,
anunciando perspectivas para que as relações pedagógicas possam ser reinterpretadas
e reconstruídas no cotidiano da Educação Infantil, no encontro entre as crianças e as
professoras.
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229

Anexos

Anexo 1

PREPARAÇÃO PARA O PROCESSO DE ENTREVISTA


PONTOS IMPORTANTES

1. SOBRE A PROFESSORA ENTREVISTADA


• Nome;
• idade;
• tempo trabalha na educação infantil;
• tempo trabalha na creche;
• se atualmente trabalha também em outro local.
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2. SOBRE SUA HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL


• Quando, onde e como começou a trabalhar na educação infantil;
• as lembranças e experiências mais marcantes na educação infantil;
• a importância do trabalho na creche na sua trajetória como professora;
• o que gosta, o que não gosta, o que deseja para a educação infantil.

3. SOBRE A CRECHE
• O que é, e como é a creche;
• a importância da creche para as crianças;
• a importância da creche para as famílias;
• a importância da creche para a professora.

4. SOBRE O TRABALHO PEDAGÓGICO QUE A PROFESSORA REALIZA


COM AS CRIANÇAS
• Como a creche organiza o atendimento às crianças;
• a turma com a qual realiza o trabalho na creche;
• a importância do trabalho pedagógico com as crianças;
• como organiza o trabalho pedagógico nos diferentes momentos e espaços da
creche;
• o que ensina às crianças na educação infantil;
• os materiais disponíveis e outros que seriam necessários;
• o planejamento do trabalho;
• a avaliação do trabalho;
• os trabalhos conjuntos com outras professoras;
• o trabalho da coordenadora pedagógica;
• as experiências mais marcantes do trabalho com as crianças.
230

5. SOBRE AS CRIANÇAS E A INFÂNCIA


• Quem são as crianças com quem trabalha;
• como são as infâncias dessas crianças;
• o que as crianças da creche têm de diferente de outras crianças;
• como é a relação entre as crianças da creche;
• como a comunidade vê as crianças do bairro e o que espera das crianças;
• como a creche contribui para vida das crianças;
• em que podem contribuir para a formação das crianças;
• o esperam das crianças.

6. SOBRE AS BRINCADEIRAS
• Por que é importante que as crianças brinquem;
• por que é importante que brinquem na creche;
• se as crianças da creche brincam em outros momentos e lugares;
• o que é a brincadeira para a professora;
• como acontecem na creche;
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• se a educação física acontece na creche;


• como é essa educação física;
• a importância do trabalho com o corpo das crianças na creche;
• sobre a brinquedoteca: se é importante, se ela se relaciona com outros trabalhos
pedagógicos realizados na creche.

7. SOBRE AS INFÂNCIAS DAS PROFESSORAS


• Como a experiência de infância;
• as lembranças mais marcantes;
• as brincadeiras;
• se existe diferença entre a infância da professora e a infância das crianças da
creche.

8. SOBRE A COMUNIDADE, SOBRE OS PAIS E MÃES DAS CRIANÇAS


• Como é a comunidade e o bairro onde a creche está localizada;
• como são os pais e as mães das crianças;
• se participam do dia-a-dia da creche;
• como a creche se relaciona com os pais, mães e comunidade;
• o que poderia ser feito para melhorar essa relação.

9. SOBRE O CEI E SOBRE A SECRETARIA DE EDUCAÇÃO


• Como é o trabalho realizado pelo CEI;
• como é a relação das professoras das creches com as profissionais do CEI;
• o que é mais significativo nesse trabalho;
• o que poderia ser feito para melhorar este trabalho.
231

10. SOBRE A POLÍTICA GOVERNAMENTAL PARA A EDUCAÇÃO


INFANTIL E SOBRE O RCNEI
• Como percebe a política do governo federal para a educação infantil;
• Se no município de Belo Horizonte essa política é diferente;
• o que tem sido mais marcante na relação entre a Secretaria Municipal de
Educação e as creche conveniadas em Belo Horizonte.

11. SOBRE O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO PPP


• Se conhece o PPP construído pela creche e entregue à SMED;
• como foi a participação na elaboração desse documento;
• se foi importante para a creche elaborar seu projeto político pedagógico;
• o que ficou de mais significativo desse processo.

12. SOBRE A FORMAÇÃO DAS PROFESSORAS


• Qual a formação das professoras;
• se têm tido oportunidade de ampliar essa formação profissional;
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• que tipos de formação já participaram e com qual freqüência acontecem;


• Quais as experiências de formação consideram mais importantes;
• como avaliam as iniciativas da prefeitura de formação de professores;
• o que desejam para melhoria do trabalho realizado na educação infantil;

13. SOBRE OUTRAS INSTITUIÇÕES QUE SE FAZEM PRESENTES NA


CRECHE
• Que instituições contribuem com o trabalho da creche;
• se fazem interferências no trabalho.

14. OUTROS MOMENTOS IMPORTANTES NA VIDA DAS PROFESSORAS


• O que gostam de fazer quando não estão na creche;
• se vão ao cinema ou outras atividades culturais;
• a importância isto tem para a vida pessoal e profissional;
• o que gostariam de fazer com maior freqüência;
• o que desejam para a vida pessoal, profissional e para a educação infantil.

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