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Marcus Reis Pinheiro

EXPERIÊNCIA VITAL E FILOSOFIA PLATÔNICA


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0016082/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Filosofia do Departamento de
Filosofia como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em filosofia.

Orientadora: Maura Iglesias

Rio de Janeiro
Abril de 2004
Marcus reis Pinheiro

Experiência Vital e Filosofia Platônica


Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutro pelo Programa de
Pós-graduação em Filosofia do Departamento
de Filosofia co Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0016082/CA

Profa. Maura Iglesias


Orientadora
Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Prof. Danilo Marcondes de Souza Fillho


Departamento de Filosofia PUC-Rio

Profa. Irley Fernandes Franco


Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Prof. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues


Departamento de Filosofia - UFRJ

Prof. Fernando Décio Porto Muniz


Departamento de Filosofia – UFF

Prof. Jürgen Heye


Coordenador Setorial do Centro de
Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 2004


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho
sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Marcus Reis Pinheiro

Graduou-se em Filosofia (1995) pela UFRJ (Universidade Federal do Rio


de Janeiro). Mestre em Filosofia pela PUC-Rio (1999). Participa do NUFA
(Núcleo de Estudos em Filosofia Antiga) do departamento de filosofia da
PUC-Rio como professor de língua grega.

Ficha catalográfica
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Pinheiro, Marcus Reis

Experiência vital e filosofia platônica / Marcus Reis


Pinheiro ; orientadora: Maura Iglesias. – Rio de Janeiro :
PUC-Rio, Departamento de Filosofia, 2004.

196 f. ; 30 cm

Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica


do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia.

Inclui referências bibliográficas.

1. Filosofia – Teses. 2. Psicagogia. 3. Retórica. 4.


Poesia grega. 5. Conversão. 6. Dialética. 7. Platão. I.
Iglesias, Maura. II. Pontifícia Universidade Católica do rio
de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.

CDD:100
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Wellington e Lucília
Aos meus pais,
Agradecimentos

Sem a participação de certas pessoas, essa tese não teria sido realizada.

Gostaria de agradecer à Professora Maura Iglésias pela ajuda que tem me


oferecido todos esses anos em que trabalhamos juntos.

Ao Professor Charles Kahn pela acolhida carinhosa e pelos comentários e


incentivos tão importantes para a realização desta tese.

A Satoshi Ogihara e Daniel McLean pelas conversas filosóficas, a Myrna,


Marcelo, Kátia e Eduardo pela amizade, aliviando a solidão no estrangeiro.

A Cristina de Amorim Machado pela revisão do texto.

A todo departamento de filosofia da PUC-Rio e da Universidade da Pensilvânia


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pela ajuda na realização desta tese e ao CNPq e CAPEs pela ajuda financeira.

Aos amigos, filósofos e não filósofos, por ouvirem, apoiarem e criticarem as


idéias desta tese.

A Ana Flaksman, eterna amiga e companheira de trabalho, pelo incentivo


constante.

A Felipe Sussekind, amigo sempre presente, em horas mais diversas.

Ao Pedro Sussekind, companheiro de filosofia e amigo dos espantos filosóficos.

Ao Rafael Viegas, amigo dos livros e grande companheiro de conversas.

A minha família querida, refúgio certo em qualquer momento.

A Wellington, pela generosidade na escuta e atenção interessada.

A Lucília, pelo imenso amor.

A Zina Pinheiro por suas brincadeiras e cantorias.

A Marcelo Câmera pela sua música e alegria

A Elide, Fernando, Vinicios e Danilo, por serem a família querida que são.

À Igreja Cristã de Ipanema, lugar de comunhão e alegria, onde aprendi a me sentir


em casa.
A Edson Fernandes, pelas falas entusiasmadas, insuflando de vitalidade e
harmonia os meus domingos.

A Sabrina, pelo seu olhar atencioso, sua escuta carinhosa, pelo amor.

A todos vocês, o meu agradecimento carinhoso.


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Resumo
Pinheiro, Marcus Reis; Iglesias, Maura. Experiência Vital e Filosofia Platônica.
Rio de Janeiro, 2004, p.196 Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Esta tese defende que é através de uma experiência vital que, em Platão, se
efetiva uma compreensão filosófica. Trata-se de sublinhar os aspectos pessoais e
profundos da vivência filosófica para apresentar a idéia de que, em Platão, a
filosofia é uma experiência que, mesmo sendo estritamente racional, perpassa a
totalidade da alma humana. A tese estrutura-se em quatro capítulos. O primeiro e
o segundo salientam o aspecto psicagógico da filosofia, analisando a relação de
Platão com a poesia grega (cap. 1) e a retórica (cap.2). No primeiro capítulo
afirma-se que, mesmo com todas as críticas que Platão apresenta contra a poesia,
ele ainda reserva um aspecto essencial desta, a psicagogia (condução da alma),
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como parte constituinte da filosofia. O segundo capítulo defende que há um


aspecto da retórica – também a psicagogia – que deve estar presente na filosofia
para que esta inscreva o conhecimento na alma do aprendiz. O terceiro capítulo
analisa as críticas de Platão à palavra escrita, presentes na Carta VII e no Fedro.
Defende-se que a filosofia depende de um processo pessoal que não está garantido
ao ser descrito por palavras: precisa, antes, ser vivido por uma experiência vital
para tornar-se vivo naquele que sabe. Por fim, o quarto capítulo apresenta a noção
de dialética na República como uma conversão. A noção de conversão corrobora
esta tese, pois afirma que o processo racional filosófico pretende uma
transformação pessoal e profunda do aprendiz de filosofia.

Palavras-chave
Vida, Filosofia, Retórica, Tragédia, Dialética, Escrita, Platão, Grécia
Abstract
Pinheiro, Marcus Reis; Iglesias, Maura. Vital Experience and Platonic
Philosophy. Rio de Janeiro, 2004, p.196 Doctoral Thesis – Departamento de
Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This thesis claims that a philosophical understanding, in Plato, may only


happen correctly whenever it comes through a vital experience. It intends to
highlight the personal and deep aspects of philosophical experience. The thesis
supports that, in Plato, philosophy is a kind of experience that, although being
strictly rational, the whole soul engages in it. It has four chapters. The first and
second present the psykhagogikos aspect of philosophy, analyzing Plato’s relation
with Greek poetry (chap. 1) and rhetoric (chap. 2). In the first chapter, we claim
that, despite all Plato’s criticism against poetry, he still retain an essential aspect
of it – psykhagogia – as a necessary part of philosophy. The second chapter
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supports that there is an aspect of rhetoric – also psykhagogia – that must be


present in philosophy so that knowledge might be inscribed in the soul of the
student. The third chapter analyses Plato’s criticism against the written word,
present in The Seventh Letter and the Phaedrus. We claim that philosophy
depends on a personal process that is not assured by being described through
words: it is necessary, first, to be felt by a vital experience, so that it may become
alive in one who knows. At last, the forth chapter presents the notion of dialectic
in the Republic as a conversion. The notion of conversion confirms this thesis
because it claims that the rational philosophical process intends a personal and
deep transformation in the student of philosophy.

Keywords
Life, Philosophy, Rhetoric, Tragedy, Dialectic, Writing, Plato, Greece.
Sumário
Introdução p.10

1. Psicagogia, Poesia e Tragédia p.19


1.1. Psicagogia e teatro p.20
1.2. Poesia e tragédia na República de Platão p.24
1.2.1. A primeira educação dos guardiões p.24
1.2.2. A crítica do livro X p.41
1.3. O amante de espetáculos p.55

2. A Retórica como Psicagogia p.62


2.1. Górgias e a noção de retórica p.62
2.2. Fedro, retórica, kairos e psicagogia p.71
2.3. Cármides e a entrega da alma p.89
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2.4. Conclusão dos dois primeiros capítulos p.95

3. Críticas à Escrita e Vivência Filosófica p.97


3.1. A Carta Sétima p.98
3.2. O Fedro e a Escrita p.111

4. Conversão Platônica p.130


4.1. Introdução – Dianoeisthai e Paskhein p.130
4.2. Constrangimento racional e persuasão completa p.137
4.3. Conversão na República p.143
4.4. Idéia de Bem e Religiosidade p.149
4.5. A educação superior dos filósofos p.160
4.6. A Dialética p.174
4.7. Conclusão p.184

5. Conclusão p.187
Apêndice, Regras de transliteração p.190
Bibliografia p.191
Introdução

e[gw h\lqon i{na zwh; e[cwsi kai; perisso;n e[cwsin


Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância

João, 10.10

Os primeiros pensamentos que vieram a constituir a presente tese apareceram quando


eu ainda terminava minha graduação em filosofia, na UFRJ, no final de 1995, enquanto
enfrentava a tarefa de realizar minha monografia. Já ali, um grande fascínio em relação ao
diálogo Fédon me dominava, especialmente no que concernia ao que vim a chamar de
"resposta existencial" de Sócrates frente à sua própria morte. Pois ele estava realmente feliz.
A descrição do personagem Fédon daquilo que teria experimentado estando presente à morte
do mestre me deixava com a clara impressão de que a filosofia platônica não podia estar
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desvinculada da vida daqueles que filosofam, isto é, de que filosofar, para Platão, pressupunha
um engajamento total dos filósofos, a tal ponto que as investigações racionais não passavam
de encaminhamentos e prolongamentos das dúvidas existenciais daqueles presentes. O
thauma é a arkhe da philosophia, com todo o peso e envergadura que essas palavras milenares
podem ganhar.

"Eu, pelo menos, experimentei coisas espantosas (qaumavsia e[paqon) estando


presente. Pois nem a piedade entrou em mim, como é comum ao estar presente à morte de
um homem amigo. Feliz me parecia o homem, oh Echécrates, tanto pelo seu modo como
pelas suas palavras, tão nobre e corajosamente morria; de modo que parecia que mesmo
indo para o Hades, ele não ia sem uma sorte divina, e que, lá chegando, viveria feliz como
nenhum outro homem jamais viveu. Por causa disso, então, nenhuma piedade entrou em
mim, como pareceria natural quando se está presente à dor. Nem, por outro lado, senti
prazer, como era natural quando filosofávamos, pois alguns de nossos discursos foram
filosóficos. Uma experiência sem lugar próprio (a[topovn ti pavqo") tomou conta de mim, e
alguma mistura sem forma, misturando tanto prazer quanto dor, quando pensava que bem
ali, aquele, estava prestes a morrer."1

1
Fédon, 58e-59a. As traduções de Platão seguem, com algumas modificações minhas, em sua grande maioria, as
traduções inglesas da edição Loeb, salvo quando estiver indicado. PLATO. Euthyphro, Apology, Crito, Phaedo,
Phaedrus. Tradução de Harold North Fowler, introdução de W. R. M. Lamb. Cambridge: Harvard University
Press, 1995 (Loeb Classical Library).
11

Essa descrição do estado existencial de Fédon me parecia essencial para que a


investigação racional que se seguia ganhasse a profundidade apropriada: investigavam a
eternidade da alma no momento da morte concreta do mais amado, Sócrates. Todas as
palavras daquela investigação ganhavam uma outra qualidade frente ao fato concreto que os
mirava. A filosofia pressupõe um pathos apropriado, pois, para os gregos, ela é antes uma
forma de viver e não apenas defesa de teorias. Muito influenciado pelo pensamento de
Heidegger e Nietzsche, que me ensinaram a importância da vida na investigação filosófica,
procurei descrever em minha monografia de final de curso a importância desse contexto
dramático para o correto efeito do diálogo: assim como a presente tese, aquela monografia já
defendia que mais do que construir um sistema teórico sobre determinados temas filosóficos,
os diálogos platônicos têm um objetivo prático de transformar a vida daqueles que os lêem,
para que também os leitores possam experimentar essas estranhas sensações, e a partir delas,
questionar vitalmente os temas fundamentais de suas vidas.
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Foi com essa mesma monografia sobre a morte de Sócrates que eu ingressei no
mestrado de filosofia na PUC do Rio de Janeiro, e ainda com o tema sobre a importância da
vida na filosofia é que escrevi a presente tese de doutorado. No decorrer desses oito anos,
duas histórias tornaram-se exemplares para apresentar, por oposição, a filosofia como forma
de vida2. A primeira história se encaixa bem no problema de minha monografia de graduação.
Contam meus familiares que a sogra de meu tio, Dona Índia Barroso, era uma crente
fervorosa, que costumava cantar com muita alegria e comoção diversas músicas nos cultos
dominicais, mas uma em especial chamava atenção: era uma música que discorria sobre a
felicidade que lhe adviria ao morrer, já que estaria próxima do seu bem amado, Jesus. “Da
linda pátria estou mui longe, triste estou. Eu tenho de Jesus saudade, quando será que vou?
Passarinhos, belas flores querem me encantar, oh! vãos terrestres esplendores, não quero aqui
ficar.”3 Tal música, no entanto, chamava atenção pelo fato de Dona Índia ter bronquite e de
sofrer muito todas as vezes que ficava em crise: nesses momentos, ela tinha muito medo da
morte. É fácil ver a contradição que se encontrava a boa senhora: certamente, ao ser
questionada sobre a morte, ela teria um discurso pronto acerca da felicidade e bem-
aventurança do cristão ao morrer, no entanto, sua vida e suas respostas existenciais às
situações concretas da morte nos mostram aquilo em que ela acreditava realmente: que a
morte é um mal.

2
Já apresentei essas histórias para exemplificação desse tema em alguns colóquios e congressos de filosofia, nas
ANPOF de 2000 e 2002, nas semanas dos alunos de filosofia da PUC-Rio, em uma apresentação na Temple
University, na Filadélfia, no colóquio internacional do CPA da Unicamp, em 2003, etc.
3
“Saudade”, Cantor Cristão, 484.
12

O que fundamenta a importância de se prestar mais atenção às respostas existenciais


do que àquilo que uma pessoa defende abertamente é que elas, as respostas cotidianas que
damos sem prestar atenção, estão diretamente relacionadas com a estrutura viva que compõe
nossa compreensão tácita do mundo em que vivemos. Da mesma forma, os momentos de crise
pessoal são de extremo valor para aqueles que desejam desbravar filosoficamente o mundo
não apenas por uma agudeza de coerência racional do sistema teórico, mas, sim,
impulsionados pela dor concreta das angústias vitais. A morte do mestre amado é certamente
um desses momentos de crise existencial, e não é à toa que muitos dizem que a vida de Platão
muda radicalmente nesse momento, e, por isso, vários de seus diálogos descreveriam o que
gira em torno da morte de Sócrates.
A questão que me tocava ao ler o diálogo Fédon era sobre o método apropriado para
que ocorra essa transformação que vemos em Sócrates, isto é, como a filosofia seria capaz de
produzir tamanha transformação pessoal a ponto de as respostas existenciais do indivíduo
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serem transformadas? A hipótese que defendo desde então e que agora, nesta tese, ganha uma
melhor formulação é que, para Platão, a investigação filosófica, por ser tão intimamente
ligada a uma forma de vida, pressupõe um envolvimento total dos interlocutores, uma
experiência radical em que os alicerces conceituais que regulam nossa compreensão de
mundo sejam transformados, enfim, que a filosofia, para que alcance a envergadura
existencial que lhe é própria, deve acontecer em meio a uma experiência vital.
Os assuntos filosóficos são de tal teor que eles não podem ser compreendidos
realmente – e isso implica que eles sejam incorporados à vida daqueles que compreendem –
como os assuntos corriqueiros o são. Assim como não é em qualquer momento nem em
qualquer estado de espírito que compreendemos realmente algo novo sobre a morte, por
exemplo, a filosofia como um todo pressupõe momentos e estados psíquicos específicos que
proporcionam a realização radical de sua investigação. A investigação filosófica pode ou não
se efetivar, mesmo ela sendo lida ou pronunciada coerentemente: o que importa é que o
sujeito passe por uma experiência qualitativamente especial para que haja uma investigação
efetiva e não apenas teórica. Experiência vital é um termo cunhado para tentar expressar
aquilo pelo que deve passar qualquer um que esteja reestruturando os alicerces de sua vida.
Essa expressão procura salientar tanto o aspecto pessoal quanto o profundo de uma
transformação: o termo "experiência" indica que se trata de uma vivência, de algo que não
pode se realizar fora de um indivíduo, e que se estrutura apenas no decorrer do tempo; já o
termo "vital" indica que tal processo não toca o indivíduo apenas superficialmente, mas que
13

estrutura aqueles elementos balizares de sua compreensão do mundo e que orientam as suas
escolhas pessoais.
Assim, o termo "experiência vital" lida apenas com o tipo de processo pelo que passa
qualquer um que esteja reestruturando os elementos primordiais de sua vida, como a morte, a
felicidade, a justiça, o amor, deus, ou qualquer outro que seja fundamental na organização do
seu mundo. Tal termo não indica que esse processo deva ser puramente racional, como parece
ser a proposta de Platão ao descrever a dialética como conversão no livro VII da República.
Esse termo – experiência vital – apenas indica o processo que deve haver quando ocorre uma
transformação dos alicerces da compreensão de mundo. Na verdade, toda educação que seja
realmente estruturadora dos elementos essenciais da vida pressupõe uma experiência vital, já
que deve se realizar por meio de uma vivência pessoal e profunda e, dessa forma, moldar a
alma em seus suportes básicos. A própria criança, ao aprender em que mundo vive, passa por
uma experiência vital. Assim, a primeira educação da República, apresentada nos livros II e
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III, pressupõe também uma experiência vital, pois as histórias míticas contadas com seus
ritmos e melodias apropriadas vão plattein ten psykhen, moldar a alma dos ouvintes e, assim,
fazer com que eles ajam de acordo com esse molde. Da mesma forma, a tragédia, por ser
psicagógica, é também uma forma de experiência vital, pois tem a função de estruturar a vida
daqueles que a assistem: na Grécia Clássica, era nas tragédias onde os gregos aprendiam os
valores fundamentais de sua vida. No entanto, se a tragédia não tivesse a característica de ser
psicagógica, isto é, se não fosse uma experiência vital, ela seria apenas um entretenimento ou
outra coisa qualquer que não transformasse realmente aqueles que participavam de sua
realização.
A experiência vital ocorre em qualquer processo que seja reestruturador dos elementos
primordiais da visão de mundo de um indivíduo. O tema de meu trabalho, desde a graduação,
concentra-se em mostrar que a filosofia, em Platão, visa uma transformação radical e pessoal
daqueles que a investigam e, assim, pressupõe uma experiência vital em seus questionamentos
racionais. O meu trabalho procura salientar os aspectos da obra de Platão que fundamentam a
visão de que, se o processo investigativo da filosofia de Platão não for realizado como uma
experiência vital, ele não alcançou o seu êxito total.
Minha dissertação de mestrado – O Amor e as Sutilezas do Discurso4 – mostrou a
importância e a co-implicação de um estilo apropriado e da noção de eros para a filosofia de
Platão. Ela tratou de características sutis do estilo do texto filosófico e da relação dessas

4
PINHEIRO, M. R. O Amor e as Sutilezas do Discurso. Dissertação de Mestrado, Departamento de Filosofia.
Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1999.
14

características com a função central que o amor exerce na correta realização da filosofia entre
os homens. O ponto principal da dissertação era salientar aspectos literários do texto platônico
com a necessária participação das três partes da alma – e não apenas da parte racional – na
investigação filosófica: a filosofia é tarefa de um amante e, por isso, diversos elementos, além
do racional, devem estar em jogo em sua realização.
Dessa forma, dois aspectos importantes da filosofia de Platão – a filosofia como
exercício do morrer e a noção fundamental de eros –, que corroboram a necessidade de uma
experiência vital, foram tratados em trabalhos anteriores e, agora, no doutorado, parecia-me
importante tratar ainda desse tema na filosofia de Platão de modo mais abrangente, abarcando
aspectos que ainda não havia trabalhado: a relação de Platão com duas instâncias psicagógicas
(que conduziam a alma) – a poesia e a retórica – , e também a descrição da dialética como
conversão. Junto com esses três aspectos, parecia-me necessário aprofundar um estudo já
começado na dissertação de mestrado sobre as críticas à escrita formuladas no Fedro e na
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Carta VII. A tese se articula, assim, em quatro capítulos. Os dois primeiros tratam da relação
de Platão com as instâncias educativas na Grécia clássica, a poesia e a retórica, especialmente
no que diz respeito à sua característica de conduzir as almas – a psicagogia. Esses capítulos
mostram como Platão, mesmo tendo criticado duramente o modo como essas instâncias
educativas eram realizadas, vai corroborar e até trazer para a filosofia a característica de
conduzir a alma: a filosofia, assim como a tragédia e os sofistas, deve convencer e persuadir
totalmente todos aqueles que se aventuram a investigar racionalmente suas questões. O
terceiro capítulo continua a pesquisa que já havia começado no meu mestrado sobre a crítica à
palavra escrita no Fedro e na Carta VII. Nesses dois textos, Platão critica a palavra escrita não
apenas defendendo a superioridade da palavra oral, mas sim defendendo que a verdadeira
palavra, logos, é aquela que está inscrita na alma daquele que sabe (Fedro) e aquela que é
fruto de uma longa convivência com o tema investigado (Carta VII). Assim, nem na palavra
oral nem na escrita encontramos o logos verdadeiro, mas somente inscrito na alma daquele
que sabe. O quarto capítulo, por fim, trata da educação superior dos guardiães, especialmente
da dialética: como ela, mesmo sendo racional por excelência, pressupõe uma conversão da
alma toda, isto é, ela pressupõe que aqueles que devem ser formados na filosofia sejam
transformados em sua vida, passando a encarar o mundo de uma outra forma, isto é, eles
devem passar por uma experiência vital.
A outra história que se tornou lapidar para apresentar a importância, por oposição, de
uma experiência vital no conhecimento filosófico vem de aulas que assisti sobre Wittgenstein,
especialmente sobre o modo que esse encara a filosofia: ela é vista como algo prático, um
15

fazer, uma terapia5. Não encontrei a referência para tal história e acredito que seja quase uma
lenda nos meios acadêmicos. Diz-se de um professor da centenária Universidade de Oxford,
em seu gabinete luxuoso, que provava a inexistência do tempo. Seu argumento seguia linhas
mais ou menos como as que já ouvimos na história da filosofia: o passado não é mais, o
futuro ainda não é, e o presente consiste de um átimo tão pequeno que não pode ter dimensão,
impossibilitando que a expressão é seja aplicada a ele. Nesse momento, toca o sinal da
centenária universidade de Oxford, é meio-dia, hora do bom almoço que o doutor não
perderia por nada. Levanta-se, conferindo seu relógio, e se dirige ao refeitório. Como dona
Índia Barroso, o scholar de Oxford também apresenta uma contradição entre o que ele
defende racionalmente e o modo como ele vive sua vida. Em relação ao filósofo de gabinete
contemporâneo, trata-se de um insulamento entre o questionar filosófico e o modo como vive
sua vida, impossível de ser encontrado na Grécia antiga.
Como contra exemplo, vamos nos dirigir para o helenismo, pois é lá que se torna
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quase uma tautologia afirmar que a filosofia é uma forma de vida. Em verdade, essa expressão
"filosofia como forma de vida" é de Pierre Hadot, e foi com muita felicidade que encontrei os
seus livros.

“Na antiguidade, a filosofia é um exercício de cada instante; ela convida a se


concentrar sobre cada instante da vida, a tomar consciência do valor infinito de cada
momento presente se nos remetemos à perspectiva do cosmos. Pois o exercício da
sabedoria comporta uma dimensão cósmica. Ainda que o homem comum tenha perdido o
contato com o mundo, não veja o mundo como mundo, mas trate o mundo como um meio
de satisfazer seus desejos, o sábio não cessa de ter o Todo constantemente presente ao
espírito. Ele pensa e age na perspectiva universal. Ele tem o sentimento de pertencer a um
Todo que transborda os limites da individualidade. [...] A consciência científica era
objetiva e matemática, enquanto a consciência cósmica era o resultado de um exercício
espiritual que consistia em tomar consciência do lugar de sua existência individual no
grande fluxo do cosmos, na perspectiva do Todo: toti se inserens mundo, “mergulhando
na totalidade do mundo” (Sêneca, Cartas a Lucilius, 66,6).”6

O próprio Hadot cita um trecho da República que mostra a íntima relação daquilo que
é estudado e do modo como alguém segue sua vida.

5
Ver especialmente Investigações Filosóficas, parágrafos 89-134.
6
HADOT, P. Exercices spirituels et philosophie antique. Prefácio de Arnold I. Davidson. Nova edição, revista e
aumentada. Paris: Albin Michel, 2002, p. 301-302.
16

“Você não supõe que uma mente habituada a pensamentos de grandeza e à


contemplação de todo o tempo e toda a existência pode julgar a vida humana grande? –
Impossível, ele disse. – Então, também a morte, o deste tipo (que contempla o todo) não
julga algo terrível? – De forma alguma.”7

O filósofo que contempla a imensidão do cosmos não se apega a sua própria vida, pois
o seu contemplar é um remodelar a visão de mundo que estrutura suas respostas existenciais.
Vemos, a partir dessas citações, a impossibilidade do insulamento entre o modo que se
conduz a vida e as investigações filosóficas, já que essas se processavam por meio de uma
experiência vital. Não havia filósofos de gabinete na Grécia antiga, e a filosofia era vista
como uma forma de vida.
Em verdade, minha tese se encaixa perfeitamente na obra de Pierre Hadot. Apesar de
ele se voltar muito mais para a época helenística, trabalhando especialmente o estoicismo, sua
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concepção de filosofia como forma de vida vem ao encontro da importância de uma


experiência vital para uma correta compreensão filosófica em Platão. Apesar de apenas ter
conhecido sua obra no final da pesquisa, esta tese parece suprir um estudo mais demorado
sobre os elementos textuais da obra de Platão que corroboram a noção de Hadot: sobre Platão,
ele se concentra mais na importância do Eros na filosofia8, na figura de Sócrates9, na filosofia
como exercer a morte, entre alguns outros aspectos10. Hadot parece se voltar para Platão e
Aristóteles como forma de esclarecer elementos que serão usados pelo helenismo na vida
filosófica. Apesar de apresentar estudos apurados e cuidadosos sobre Platão, que claramente
também compreende a filosofia como forma de vida, Hadot não comenta, como faço nesta
tese, a relação que Platão tem com os poetas e com os sofistas, portadores por excelência do
logos psicagógico. Hadot também parece se voltar mais para uma visão histórica do termo
conversão11 do que se aprofundar no texto da República para esmiuçar as relações que tal
termo teria com a educação superior – especialmente a dialética.

7
República 486a.
8
Ver HADOT, P. Qu´est-ce que la Philosophie Antique?. Paris: Gallimard, 1995, “La définition du philosophe
dans le Banquet”, p. 70.
9
HADOT, Pierre. Exercices Spirituels et Philosophie Antique. Paris: ÉtudesAugustiniennes, 1981, “La figure de
Socrate”, p.101.
10
A filosofia como exercício da morte (Fédon) e como assemelhar-se a Deus (Teeteto) são muito citadas pelos
filósofos helenísticos. Ver Exercices, p. 48. DOMANSKI, Juliusz. La philsophie, théorie ou manière de vivre?
Prefácio de Pierre Hadot. Paris: Editions du Cerf, 1996, p.6.
11
Ver Exercices, “Conversion”, p. 223.
17

Mas trechos como os que se seguem, em que Hadot fala da filosofia de Platão e da
Grécia antiga em geral, em muito corroboram a presente tese e mostram que a visão que
defende uma experiência específica para que a filosofia se efetive não é sem fundamento.

“[...] no qual eu tentei mostrar que as obras filosóficas dos Antigos eram de alguma
forma 'exercícios espirituais' que o autor praticava sobre si mesmo e fazia praticar os seus
ouvintes e seu leitor e que toda asserção, em seus escritos, deveria ser interpretada antes
de tudo na perspectiva do efeito que ela visa a produzir e não como uma proposição
exprimindo adequadamente o pensamento e os sentimentos do autor.”12

“Nós encontramos em Platão essa concepção socrática da educação pelo contato vivo e
pelo amor.”13

“Viver de maneira filosófica é acima de tudo se voltar para a vida intelectual e


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espiritual, realizar uma conversão que coloca em jogo 'toda a alma', isto é, toda a vida
moral.”14

“Nós dizíamos mais acima que a ciência, em Platão, não é jamais puramente teórica: ela é
transformação do ser, ela é virtude, nós podemos dizer agora que ela é também
afetividade. Pode-se aplicar a Platão a fórmula de Whitehead: 'O conceito é sempre
revestido de emoção'. A ciência, mesmo a geometria, é um conhecimento que envolve
toda a alma, que é sempre ligada a Eros, ao desejo, ao elã, à escolha. 'A noção de
conhecimento puro, isto é, de puro entendimento', diz ainda Whitehead, 'é de toda a forma
estrangeira ao pensamento de Platão. A época dos professores ainda não havia
chegado.”15

“[...] mas ela consiste em ‘formar’, isto é, em transformar os indivíduos ao fazê-los


experimentar, no exemplo do diálogo a que o leitor tem a ilusão de assistir, as exigências
da razão e finalmente a norma do bem.”16

Por toda a obra de Hadot perpassa a idéia de que a filosofia é feita através de
exercícios espirituais. Poderíamos dizer que o que ocorre em um exercício espiritual é uma

12
HADOT. “Prefácio” in DOMANSKI, Juliusz. La philsophie, théorie ou manière de vivre?. Paris: Editions du
Cerf, 1996, p.VIII.
13
HADOT. Qu´est-ce que la Philosophie Antique?. p. 95.
14
Idem. p. 106.
15
Idem. p. 114.
16
Idem. p. 118.
18

experiência vital e, nesse sentido, a tese de Hadot, como disse, se encaixa perfeitamente em
minha tese. Hadot procura descrever os diferentes métodos de promover uma experiência
vital. O diálogo, como exemplo de exercício espiritual, pretende mais do que simplesmente
analisar questões racionalmente, mas sim fazer operar uma transformação profunda nos que
investigam. Por isso, Hadot enfatiza a função do acompanhamento do interlocutor no
processo investigativo do diálogo, pois, assim, preserva-se o caráter pessoal da investigação.
Trata-se, acima de tudo, de procurar aprender a viver de forma nova e não apenas de treinar o
intelecto a agir bem.
Hadot ainda apresenta dois outros filósofos contemporâneos que procuram resgatar, no
estudo dos antigos, a dimensão vital da filosofia: Domanski e Voelke17. O primeiro,
concentra-se sobre a Idade Média, apresentando aspectos que o próprio Hadot já havia
salientado. Foi no nascimento do cristianismo que a filosofia começou a ser vista como
exercícios abstratos, aptos para aperfeiçoar o intelecto como auxílio à fé cristã, que se torna
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então o lugar da vitalidade. O lugar da "filosofia vivida" torna-se o cristianismo, e à filosofia é


relegada a tarefa de ajudar a compreender e defender os dogmas cristãos. A filosofia chega no
Renascimento já com essa característica de ser exercícios abstratos, sem conexões diretas com
formas de vida, e apenas com Nietzsche e Bergson – de acordo com Hadot – é que se volta a
pensar a filosofia como intimamente ligada à vida, e proporcionando o estudo dos antigos
nessa perspectiva.
Voelke, a partir da noção de Wittgenstein da filosofia como terapia, volta-se para os
filósofos helenistas procurando traçar sua concepção de linguagem e de filosofia a fim de
poder transformar nossa própria visão delas. A citação de Epicuro torna-se central em seu
estudo: “Não se deve fingir que se filosofa, mas filosofar realmente; pois nós não temos
necessidade de parecer que temos boa saúde, mas de verdadeiramente estarmos em boa
saúde”18.
Apenas um último ponto a ressaltar. No decorrer da tese, apresento os argumentos na
primeira pessoa do plural por acreditar que o meu trabalho é fruto de um entrechocar-se de
argumentos e pensamentos que não foram forjados na solidão subjetiva de minha mente:
muitos foram aqueles que de alguma forma contribuíram para que esta tese tenha vindo à luz.
Apenas aqui, nesta introdução, por tratar da minha história pessoal, permiti-me a primeira
pessoa do singular.

17
VOELKE, André-Jean. La philosophie comme thérapie de l’âme. Prefácio de Pierre Hadot. Paris: Edition du
Cerf, 1993. DOMANSKI, Juliusz. La philsophie, théorie ou manière de vivre?. Paris: Editions du Cerf, 1996.
18
EPICURO, Carta a Menece, apud. VOELKE, op. cit. p. 36.
Primeiro Capítulo
Psicagogia, Poesia e Tragédia

Mas o procedimento de Platão também afirma


que a verdadeira natureza da filosofia é visível
apenas àqueles que passaram algum tempo fazendo-a.
Não se pode descobrir o que a filosofia é ao ler livros sobre
“O que é a Filosofia”, mas apenas fazendo um pouco.
Esse é um dos poucos pontos em que alguém pode estar
certo de que Platão pensou consistentemente ao longo de sua vida.

An introduction to Plato’s Republic


Julia Annas

A filosofia na Grécia clássica estava intimamente conectada a uma forma de


viver. Apesar de ser uma atividade intelectual por excelência, lidando com conceitos
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abstratos através de raciocínios, a filosofia não se desconectava das escolhas práticas do


dia a dia do filósofo, nem estava alheia à forma concreta de ver o mundo ao seu redor.
Deve-se esperar de um filósofo grego que sua vida seja um reflexo de suas posições
filosóficas. Acompanhando essa conexão necessária entre vida e filosofia, esta tese
defende a importância para Platão de uma espécie de experiência pessoal e profunda
com a filosofia, experiência essa que possibilite uma real compreensão dos assuntos
filosoficamente abordados.
Para que tenhamos um contato com a tese de forma sintética, elaboramos em
uma frase única sua idéia principal: é através de uma experiência vital que se efetiva
uma compreensão ontológica. No entanto, iremos apresentar formulações provisórias da
mesma com a finalidade de ir clareando-a gradativamente. Assim, como forma de
aproximação, diremos que a compreensão da filosofia de Platão necessita de uma
experiência pessoal que faça com que o aprendiz possa viver o que está sendo
comunicado. Para esclarecer que forma de experiência pessoal é essa, vamos tratar,
neste primeiro capítulo, da relação entre filosofia platônica e teatro grego, já que é nesse
que encontramos mais claramente a experiência pessoal construindo formas de ver o
mundo. A tragédia e as festividades gregas, com sua força de persuasão e comoção,
eram ocasião de educação entre os gregos, quando ouviam e pensavam sobre suas
questões principais, de forma a cunhar um mundo próprio a partir do qual a vida
particular de cada um seria vivida. A filosofia em Platão tem essa mesma pretensão de
20

educar os gregos, quer manter essa mesma experiência educativa, mas ela vem
contrapor-se ao conteúdo do que essas festas e tragédias ensinavam, como uma outra
forma de pensar as mesmas questões principais, como um modo alternativo de
aprendizado de uma forma de viver.
Apresentaremos, então, a noção de psykhagogia, condução da alma, como
ilustração do que seja essa experiência que ocorre tanto em um aprendiz de filosofia ao
compreender um tema filosófico quanto em um espectador de tragédia. Esta noção
aplicada à filosofia contém uma continuidade com o seu uso na tragédia: tanto a
tragédia quanto a filosofia se pretendem uma psicagogia, processo que constrói em seus
participantes uma forma de ver o mundo, cunhando o caráter do povo e por conseguinte
suas atitudes.
Ainda tratando do tema da psicagogia, apresentaremos, no próximo capítulo, a
noção de retórica, não apenas no Fedro, no qual Platão define retórica como uma forma
de psicagogia, mas também no Górgias, no qual todo um outro detalhamento da noção
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de retórica é delineado. Veremos que a noção de retórica tem uma continuidade nos dois
diálogos. Por fim, apresentamos ainda um trecho do Cármides, no qual Platão aponta
para a necessidade de uma entrega da alma à discussão para que haja um acontecimento
filosófico, ratificando assim a filosofia como psicagogia.

1.1 PSICAGOGIA E TEATRO

Martha Nussbaum, em seu livro Love’s Knowledge1, faz uma importante


relação entre a filosofia e a tragédia gregas. Nussbaum afirma que tanto a filosofia
como a tragédia seriam diferentes formas de responder a uma mesma questão, a saber,
a questão de como se deve viver. A filosofia grega seria uma contraposição à
tragédia. Temos, então, que uma aula de filosofia tinha, de alguma maneira, a mesma
função que a representação de uma tragédia. Tal função, Nussbaum nos lembra, é a de
psykhagogia (psykhe + ago = alma + condução), que em uma primeira aproximação
poderíamos traduzir por “condução da alma”.
Na realidade, tal termo psykhagogia é usado em relação a Hermes, o deus
condutor das almas, de forma parecida com o seu epíteto mais conhecido,
"psicopompo", isto é, aquele que envia as almas. Portanto, o sentido estrito desta

1
NUSSBAUM. Love’s Knwoledge. Oxford: Oxford University Press, 1990, p.16
21

palavra seria o de invocar as almas dos mortos. Esse termo existe em português com a
seguinte entrada no dicionário Caldas Aulete : “s.f. cerimônia religiosa, entre os antigos
gregos, para aplacar as almas dos mortos. Evocação mágica das sombras. (Ret.) Arte de
guiar as almas pelo melhor caminho. A própria Retórica segundo Platão. F. gr.
Psykhagogia”2. Temos também o termo psicagógico: “adj. Que diz respeito à
psicagogia. (Méd.) Dizia-se do medicamento que reanima a ação vital em caso de
síncope, apoplexia, etc.” e também o termo psicagogo: “s. m. o que pratica psicagogia.
Mágico.” Em um sentido mais lato, usa-se essa palavra para todos os tipos de sedução e
atração, como em relação à música, à beleza, e à retórica3. Seria a atitude de vencer a
alma de um homem, persuadi-lo4.
Em relação à tragédia, tal termo era usado para designar a força persuasiva de
uma peça, a força de comoção e, conseqüentemente, a sua força pedagógica5. Todos
sabemos que as festividades teatrais da Grécia Clássica não têm o restrito objetivo
lúdico-estético que podemos ver hoje em dia em relação às nossas manifestações
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teatrais6. Se não juntarmos à noção estética também a relação com o sagrado, que é
sempre uma relação que fundamenta a realidade, não entenderemos a tragédia grega. As
tragédias não eram representadas para divertir, mas sim para converter a uma
determinada idéia ou maneira de ver o mundo. Não podemos fazer tão facilmente a
afirmação de que a arte grega era um momento de lazer propício à abstração das tensões
do dia-a-dia, no qual não se pensava sobre as coisas importantes, como facilmente se
entende a atividade cultural hoje em dia7.
Os poetas eram entendidos como os principais professores e pensadores éticos
da Grécia. A eles as pessoas se dirigiam para descobrir o que fazer de suas vidas, como
conduzi-las. Assistir a uma tragédia era engajar-se em uma importante manifestação

2
Apesar da transliteração do Novo Aurélio ser diferente, preferimos manter na presente tese a usada no
Caldas Aulete, que translitera o zeta por ‘dz’, o xi por ‘ks’, e o chi por ‘kh’. Ver apêndice, regras de
transliteração.
3
. “Não seria a retórica em sua totalidade a arte que conduz a alma (psykhagogia) pelas palavras {...}?”
PLATÃO, Fedro, 261a.
4
No verbete “psykhagogia” do Liddell and Scott Abridged Edition temos “an evoking of souls from the
nether world. 2. Metaph. A winning of men’s souls, persuasion.” No diálogo Mino, considerado espúrio
por alguns, o autor nos diz em 321 a, “Pois, entre os tipos de poesia, a tragédia é a mais popular e a mais
poderosa em conduzir almas (yucagwkwvtaton) Mas nas Leis X 909b, e no Timeu 71 a, o verbo
yucagwgw' é usado em relação àquele que conduz os mortos.
5
O termo "pedagogia" é formado pelos étimos de criança, "paid", e de condução, "ago", sendo portanto a
condução da criança, assim como psykhagogia é a condução da alma.
6
“Os contemporâneos não consideravam nunca a natureza e a influência da tragédia de um ponto de vista
exclusivamente artístico.” JAEGER. Paideia. p.293
7
Encontra-se hoje em dia a expressão "O cinema é a maior diversão", e isso sempre nos remete a um
esquecimento das questões cruciais da realidade.
22

político-religiosa, onde as questões cruciais da vida eram encenadas. No entanto,


precisa-se definir melhor o que se entende aqui por uma encenação que seja uma
manifestação político-religiosa e por isso mesmo pedagógica e psicagógica.
Em primeiro lugar, tal encenação pressupunha necessariamente as reações dos
espectadores. O teatro não acontecia em uma sala escura onde facilmente se tem idéia
de uma visão privilegiada e isolada e de um palco iluminado onde ocorrem fatos fora da
minha subjetividade. O teatro grego se dava em uma arena em plena luz do dia, onde se
viam as faces dos espectadores. Isso nos leva a perceber que a comoção dos
espectadores estava implícita na realização do acontecimento sagrado que se
desenrolava naquele ambiente. Tal acontecimento sagrado, que estrutura o real, ocorria
tanto nos espectadores quanto nos artistas, mas especialmente no coro. Como nos
lembra Jaeger8, o fundamento da tragédia está no êxtase dionisíaco que por sua vez
provém dos coros báquicos. No entanto, tal êxtase era um privilégio pedagógico de uma
sociedade que tinha a experiência do sagrado como o veículo da educação. Diz Jaeger:
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“O coro foi a mais alta escola da Grécia antiga, muito antes de existirem mestres que
ensinassem poesia. E a sua ação era com certeza bem mais profunda que a do ensino
meramente intelectual.”9 O coro era como uma escola, onde jovens se preparavam o
ano inteiro para a apresentação, era a chamada “didascalía coral”. No entanto, o que se
aprendia não pode tão facilmente ser comparado com nossas escolas de primeiro e
segundo graus. Sendo um ritual religioso, o povo e especialmente o coro se entregavam
de corpo e alma para aceitar com entusiasmo os ensinamentos que a tragédia
apresentava. Jaeger ainda nos diz que o efeito instantâneo produzido na experiência
vital dos espectadores era maior até do que na epopéia10. O aprendizado era uma
vivência do que ali era encenado, pois os próprios deuses participavam da encenação, e
a comoção do povo era o acontecimento pedagógico por excelência. A alma de todos
era conduzida a realizar o que era encenado de tal forma que aquilo era aprendido e
fazia parte da própria vida deles.
Temos que tentar entender a gravidade da seguinte afirmação: eles viviam o que
encenavam e aquilo a que assistiam. Aqui está concentrada a idéia de psicagogia, que
deve ser relacionada com a filosofia grega para entendermos de que forma a

8
Ibid. p. 294
9
Id. ibid.
10
Ibid. p.295 Aqui Jaeger parece usar o mesmo termo que usamos: “A concentração de um destino
humano inteiro no breve e impressionante curso dos acontecimentos, que no drama se desenrolam ante os
olhos e os ouvidos dos espectadores, representa, em relação à epopéia, um aumento enorme do efeito
instantâneo produzido na experiência vital das pessoas que ouvem”. (grifo nosso)
23

compreensão ontológica se efetiva como experiência vital. Essa mesma vivência é


necessária na filosofia e, por isso, o filósofo é parecido com o amante de espetáculos.
O povo grego era capaz de sentir a força psicagógica da peça, pois estava
disposto a se emocionar num instante de extrema realização espiritual11. A sua comoção
era tanto emocional quanto crítica, e por isso era edificadora de sua própria noção da
realidade. Os festejos teatrais tinham uma função diretiva na comunidade, pois eles
moldavam a estrutura da realidade. Aí vemos o fundamento de Platão expulsar os poetas
de sua república, pois as encenações de suas obras não eram meros itens decorativos,
eram a substância da realidade em que viviam os gregos. Podemos concluir que
psykhagogia era a condução da alma através de uma experiência vital, condução esta
que fazia o conduzido entrar em diálogo com os alicerces da compreensão de sua
realidade.
Nesse sentido, também vemos em que lugar estava a filosofia na cultura grega se
ela se compreendia como uma outra forma de psicagogia. A filosofia tinha como
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objetivo último, assim como a tragédia, formar a alma dos alunos, de modo a conduzi-la
para uma determinada forma de compreender e construir a realidade. Um acontecimento
filosófico, como a tragédia, enchia a alma dos interlocutores de um tal êxtase, de uma
tal comoção, que a vida deles se encontrava em jogo e se reestruturava. Um tal inebriar
acontecia na alma dos filósofos, uma tal comoção e identificação com as questões
levantadas pelos filósofos, que a sua formação ética era posta em xeque, e todo o
direcionamento de sua vida era reformulado. Era um acontecimento psicagógico.
Compreender um sistema filosófico era, assim, passar a vivenciar o mundo a partir dele.
Desta forma, a característica salvífica da tragédia, do êxtase dionisíaco, também estava
presente, de alguma maneira, na filosofia. Como Nussbaum apresenta em seu livro, The
12
Therapy of Desire , a filosofia tem uma tarefa como a da medicina na cultura grega.
Ela era a responsável pela saúde da alma, como também eram os festivais religiosos. A
compreensão filosófica era tal que o aprendiz passava a ter uma outra visão da
realidade, e assim tornava-se são.

11
Acredito que Jaeger usa o termo "realização espiritual" em uma forma parecida com o que aqui entendo
por experiência vital, pois ambos remetem a uma edificação pedagógica.
12
NUSSBAUM, M. C. The Therapy of Desire. Princeton: New Jersey, 1994. Cf. o primeiro capítulo
chamado “Therapeutic Arguments”.
24

1.2 POESIA E TRAGÉDIA NA REPÚBLICA DE PLATÃO


1.2.1 A PRIMEIRA EDUCAÇÃO DOS GUARDIÃES

O presente capítulo apresenta a noção de psicagogia como essencial para uma


filosofia que se entende como uma forma de viver e, conseqüentemente, mostra certo
traço de continuidade nas obras de Platão entre a forma de transmissão de conhecimento
da poesia13, da retórica (segundo capítulo) e da filosofia. Após termos apresentado a
noção de psykhagogia de modo geral, e também descrito como era recitada a poesia
grega e indicado uma primeira aproximação de como entendemos a sua relação com a
filosofia, vamos agora explicitar a posição que ocupa a poesia e, conseqüentemente, a
tragédia, no pensamento de Platão14. Com vistas a isso, vamos nos basear em duas
passagens da República muito importantes para a presente tese como um todo: (1) a
educação primeira dos guardiães (II 376e – III 412b) e (2) a crítica final aos poetas (X
595a – 608b)15. Em um estudo sobre a função dos mitos em Platão – que poderia vir ao
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encontro desta tese –, esses trechos deveriam ser analisados especialmente no que
concerne à forma de transmissão de conhecimento peculiar aos mitos. O que se pretende
agora é salientar a posição de Platão frente à poesia de forma geral, mostrando que, se
por um lado, ele faz críticas contundentes ao conteúdo do que é transmitido pela arte
poética, por outro, ele não apenas pretende utilizar certo tipo de poesia em sua república
ideal, mas também quer utilizar na educação dos seus guardiães e filósofos a mesma
forma de educação que a poesia utiliza. Tal forma de educação é chamada nesses
trechos de moldar a alma (plattei'n th;n yuch;n). No presente capítulo, queremos
salientar como a compreensão de Platão da poesia pressupõe a noção de educação por

13
Ao falarmos "poesia" aqui, queremos indicar todo o âmbito semântico que Platão também dá ao termo
poiésis, significando toda literatura (Tragédia, Épica e Lírica) e também os eventos nos quais essa poesia
era narrada, como nos festivais, com os cantos dos aedos e as tragédias, e privadamente, com as mães e
amas ensinando às crianças.
14
Queria apenas salientar certa dificuldade em se lidar com termos como "o pensamento de Platão", "a
posição de Platão", "Platão disse ...", etc. Tais termos sempre pressupõem que temos acesso direto ao que
Platão gostaria de dizer, o que não é verdade. É importante frisar, e hoje em dia isto é muito estudado (cf.
PRESS, Gerald. Who speaks for Plato? Studies in Platonic anonymity. New York: Rowman & Littlefield
Publishers, 2000.e também MICHELINI, Ann N. (ed.) Plato as Author. The Rhetoric of Philosophy.
Leiden, Boston: Brill, 2003.), que Platão não nos fala (salvo, talvez, nas Cartas) em um discurso direto,
mas sempre se apresenta a partir de seus personagens. Isso cria diversos problemas de interpretação que
não temos tempo nem espaço para tratar aqui.
15
Outros diálogos também são importantes para a correta compreensão da posição da poesia frente à
filosofia na obra de Platão (caso haja uma posição única), como o Íon, entre outros. Listamos aqui as
passagens fornecidas pelo Lexicon Platonicum em que as palavras tragw/diva, ou tragikov", aparecem.
Rep. II 379a, 381d; III 394b, c, 395c, 408b; VIII 577b; IX 577b; X 595c, 602b, 605e; Fedro 268d, 269a;
Górgias 502b; Fédon 115a; Filebo 48a, 50b; Banquete 173a, 223d; Apologia 22a; Mênon 76c; Hipias
Menor 368c; Clitofonte 407a; Leis VIII 838e.
25

uma psykhagogia, condução da alma, e que tal modo de educação não é criticado, pois é
dito apenas que a poesia deve modificar sua atual direção, isto é, deve ser corretamente
orientada para a virtude e não para a multidão de formas que terminam por instaurar um
mau governo na alma16.
A questão que nos guiará na seguinte exposição é “Qual é a verdadeira função da
poesia na educação dos guardiães na República?”. Vamos, primeiramente, distinguir
dois aspectos da poesia grega que precisam ficar claros para que compreendamos o que
Platão critica e o que ele vai preservar em relação à poesia. Um aspecto da poesia é
aquilo que ela ensina, i.e., o conteúdo do que ela passa, as lições que ela transmite, o
tipo de vida que ela exemplifica e ao qual são exortados os seus participantes, ouvintes e
atores. Outro aspecto é o modo pelo qual ela transmite esse conteúdo, i.e., a
identificação, o prazer e a comoção que transformam as almas dos participantes nos
eventos de poesia. No decorrer da descrição dos trechos da República já apontados,
ficará clara tal distinção e como Platão critica a primeira e louva a segunda.
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O começo do livro II – com os discursos de Gláucon e Adimanto, irmãos de


Platão, a favor da vida injusta, enaltecendo suas maravilhas e a conseqüente felicidade
do homem que não for punido por seus atos, e que recebe total liberdade para satisfazer
impunemente todo e qualquer tipo de prazer – é o que impulsiona toda a trajetória da
República: desde a construção da república ideal, com sua correlata psicologia
tripartida, passando pela descrição do processo de conversão do verdadeiro governante,
o filósofo, e também pela degeneração dos governos, até o mito de Er sobre o além-
túmulo, ao fim do último livro, tudo isso tem o objetivo de responder aos filhos de
Aríston17 e à sua angústia sobre a questão central do diálogo, que se impõe já na
conversa inicial de Sócrates com o velho Céfalo: como se deve viver? A partir dos
argumentos brilhantemente expostos por Gláucon e Adimanto, que nos lembram o
discurso de Cálicles no Górgias, Sócrates vai tentar expor uma defesa da vida justa
como sendo a mais feliz. O famoso argumento da isonomia entre estado e alma
transporta a questão da justiça para o âmbito político, e é principalmente nesse nível que
se desenrola toda a argumentação da República, procurando descrever o estado justo e
sua eudaimonia. Paralelamente ao âmbito político, é claro, vão sendo descritas a alma

16
605c “[...] constrói em cada alma individual uma república má [...]” Como já dito anteriormente, as
traduções seguem aquelas de língua inglesa da edição da Loeb, com algumas alterações.
17
Chamar Gláucon e Adimanto de Filhos de Aríston coloca o próprio Platão no diálogo, já que ele
também é filho de Aríston, indicando que a disputa entre a vida injusta e a vida justa acontecia no nível
pessoal do próprio Platão.
26

justa e sua felicidade, já que é a vida justa do indivíduo que deve ser defendida frente ao
desregramento da vida injusta.
Após esses discursos de Gláucon e Adimanto (II 357a-368a), há a construção de
uma primeira cidade (368a–374e), simples, saudável e autônoma, mas completamente
sem luxo, da qual se reclama que mais pareceria uma cidade de porcos: os homens de
uma cidade “[...] reclinariam sobre camas, se não fosse para eles se sentirem
inconfortáveis, e comeriam iguarias sobre mesas e com pratos e talheres [...]”18, reclama
Gláucon. Sócrates começa então a construção de uma cidade luxuosa e, com certeza,
essas serão mais semelhantes às cidades que existiam em sua época. A cidade luxuosa,
em verdade, é a única que realmente pode existir, pois a utopia da simplicidade
primeiramente exposta parece contradizer os desejos dos homens. A partir do luxo da
cidade, a guerra será uma necessidade e, com ela, a figura do guardião, phylaks.
Antes, porém, de tratarmos com mais vagar sobre a natureza daqueles que
deverão ser educados para serem guardiães e sobre como essa educação deve moldar e
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conduzir as suas almas, vamos deixar claro o argumento sobre a divisão do trabalho,
pois tal argumento será importante para entendermos a relação que os guardiães terão
com a encenação de teatro. De 369e a 370c, Sócrates defende que cada homem tenha
uma só atividade principal para contribuir com a sociedade e, em troca, obter a
sobrevivência. Na economia da primeira cidade, haveria quatro ou cinco homens, cada
um produzindo uma das necessidades básicas do ser humano, algo como casa, roupa,
comida e instrumentos de trabalho. Os três pontos a favor da divisão do trabalho
parecem bastante coerentes: 1) em primeiro lugar, seria muito mais complicado cada
homem passar cada quarto do seu tempo se dedicando a uma das suas necessidades –
produzindo de cada uma delas apenas o suficiente para si mesmo – do que se dedicar
apenas a uma única atividade e produzir quatro vezes mais do que precisa, dividindo o
excedente com seus vizinhos e, em troca, recebendo deles as outras necessidades; 2) o
segundo ponto, apresentado sem profunda argumentação, defende a distinção natural
entre os homens, e que cada homem é mais apto a fazer determinada tarefa do que
outro; 3) e o terceiro ponto defende que o trabalho será feito de modo melhor e mais
produtivo se cada homem se dedicar apenas a uma determinada tarefa, especialmente
pelo fato de as atividades terem seu tempo oportuno, kairos, e caso o trabalhador não
tenha tempo livre (scolh;n a[gwn) para se dedicar ao seu trabalho, tal tempo oportuno,

18
372d
27

próprio das coisas bem feitas, poderia ser perdido19. Assim, fica definida a necessidade
de cada homem ter uma e apenas uma função no jogo de tarefas da sociedade, pois
como Sócrates mesmo diz “A partir disso, então, tem-se mais de cada produto, de modo
mais fácil, e os produtos são melhores quando um homem, de acordo com sua natureza
e no momento oportuno, pratica uma única atividade, ficando livre das outras
atividades”.20
A partir da entrada dos elementos luxuosos na construção da cidade ideal, como
já dissemos, fica clara a necessidade da guerra: com tantos elementos inundando a vida
dos cidadãos, por eles almejarem sempre mais do que têm e não se contentarem em
satisfazer as necessidades básicas, a terra da cidade se tornará pequena para alimentar
tantos homens, e eles precisarão invadir seus vizinhos. A partir da necessidade da
guerra, vemos surgir a classe dos guardiães, os phylakes, pois, se a guerra é uma das
atividades da sociedade, pelo princípio da divisão do trabalho, haverá a necessidade de
uma classe de homens que se dedique exclusivamente a ela. Como cada homem tem
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uma natureza específica, e pelo ponto (2) acima, essa mesma natureza o faz apto para se
dedicar somente a uma atividade específica, nasce então a pergunta: qual é a natureza
do phylaks, o homem apto a cuidar da guerra?
Todos sabem que é a partir de tal estrato social21 que nasce o filósofo, lá pelo
fim do livro V, em que Sócrates defende o tão famoso argumento de que o filósofo deve
governar, e é bastante singular o fato de o amante do saber nascer da casta dos
guerreiros. Desse modo, não é leviana a atenção dispensada ao que Platão, pela boca de
Sócrates, vai apresentar como características essenciais ao guardião da cidade. No
entanto, as qualidades inatas primeiramente apresentadas são exclusivamente voltadas
para a guerra, e apenas no resumo delas, apresentado pela comparação com a natureza
canina, é que vemos já delineada a natureza do filósofo: gentileza e grandeza de
espírito22 são as duas qualidades centrais necessárias a um bom guardião.

19
A posição central que o kairos ocupa nesse terceiro ponto que versa sobre a excelência de qualquer
produto realizado será importante quando tratarmos, mais à frente, sobre a importância do momento
oportuno na retórica para a correta condução da alma. Kairos é termo-chave para uma psicagogia.
20
370c.
21
É a uma estratificação da sociedade que vai levar o argumento da divisão do trabalho, já que cada tipo
de trabalhador ganha também direitos, deveres e bens específicos a partir de seu trabalho. É claro que tais
argumentos a favor da divisão do trabalho geram grandes dificuldades: por exemplo, como poderíamos
responder a quem nos perguntasse qual natureza é propícia para trabalhos como varrer a rua e limpar
banheiros, ou, hoje em dia, apertar um parafuso em meio a uma linha de montagem?
22
pra'on kai megalovqumon, 375c.
28

Comparado com um cachorro de caça, o phylaks, nosso guardião, deve ter a


percepção afiada, ser rápido ao perseguir o que percebe e ser forte e corajoso para lutar
com o que apreende. É com a presença de thymos em sua alma que tais características
vão surgir. Esse termo, thymos, é essencial para a República, especialmente no que se
refere à psicologia tripartida dos livros IV e IX, nos quais as duas partes da alma são
descritas por meio de termos que com ele têm relações etimológicas: thymoeides e
epithymetikos, as partes irascível e desejante. De um modo geral, podemos dizer que tais
partes da alma se contrapõem à parte racional, o logistikon, to; logistikovn, formando
um aspecto inferior da alma humana que deve ser domesticado. No entanto, vemos já
aqui, no começo da República, que tal domesticação não implica de forma alguma um
aniquilamento ou uma exclusão de tais partes da alma na correta conduta do homem
virtuoso, que será descrito mais à frente no livro VII como o ‘convertido’ das trevas da
caverna para a luz do dia.
O âmbito semântico do termo thymos está associado à coragem, ao orgulho e à
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competição23, e engloba todas as qualificações descritas sobre um bom cão de guarda e


relacionadas com o guardião da cidade ideal. No entanto, se apenas tal princípio
prevalecer na alma do nosso phylaks, “como então, oh Gláucon, não serão selvagens uns
com os outros e com os outros cidadãos [...]?”, pergunta Sócrates, em 375b. Aparece,
então, outro traço marcante do phylaks, ele deve ser também gentil, praon, com os que
conhece. A gentileza será a qualidade que faz o guardião proteger os interesses de seus
concidadãos e, sem ela, o phylaks seria pura agressividade e orgulho. Apesar desses dois
traços serem opostos e, assim, parecer uma contradição alguém ser ao mesmo tempo
thymoeides e gentil, Sócrates vai encontrar na natureza do cão de guarda exatamente
essa duplicidade. Sócrates ainda vai descrever essa duplicidade do cão de guarda, de ser
amigo dos conhecidos e inimigo dos desconhecidos, como um traço filosófico: ele tem
horror ao que desconhece e ama o que conhece, é um amante do saber, um filo-sofo24.
Essa duplicidade ainda ecoa a tradicional visão da justiça que diz ser justo aquele que
faz bem aos amigos e mal aos inimigos.
Após a qualificação da natureza dos guardiães, Sócrates passa a descrever a
educação que devem ter para serem bons no que fazem (376e – 412b). É nesse trecho e

23
Ver o estudo de Jean Frère, Les grecs e le désir de l´ être e também o capítulo acerca da tripartição da
alma, na nossa dissertação de mestrado, no qual tratamos melhor dessa questão. PINHEIRO, M. R. O
Amor e as Sutilezas do Discurso. Dissertação de Mestrado, Departamento de Filosofia. Rio de Janeiro:
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1999.
24
Com certeza, esse trecho é um ponto a favor dos cínicos que se diziam verdadeiros cães.
29

no início do livro X que Platão vai apresentar sua atitude frente à poesia de sua época. É
crucial deixarmos claro o objetivo do diálogo, que limita a investigação sobre a natureza
da poesia de sua época: Sócrates, aqui na República, não está discorrendo sobre a poesia
em si mesma, com um olhar puramente estético sobre suas qualidades, potencialidades e
natureza, mas descrevendo a educação adequada aos guardiães de uma cidade justa. As
características intrínsecas da poesia e o valor da literatura em si mesma estão longe de
ser o foco principal na investigação da República. Nesse sentido, é errôneo supor que
Platão tenha uma "teoria da arte"’ ou uma "estética"’, na qual estariam descritas as
qualidades da arte pela arte. Em verdade, não há na Grécia dessa época uma visão
puramente estética da arte25. A poesia é considerada a grande educadora do povo, e suas
habilidades são avaliadas não frente ao que elas apresentam exclusivamente de belo,
mas antes pelo que elas podem apresentar de bom para a sociedade: afinal, belo e bom
não são lá muito discerníveis na Grécia de Platão26.
Esse trecho da República, no qual Sócrates trata da mousike e da gymnastike27,
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que concerne à primeira educação dos filósofos28, vai ser perpassado pela noção de que
é por meio de uma identificação entre os homens e suas atividades que ocorre a
educação primária. Essa noção, que analisaremos em breve, será a noção principal por
meio da qual defenderemos que (1) Platão, na República, afirma que há uma educação
psicagógica na poesia grega e (2) essa poesia, qualificada por certo tipo (typos)
apropriado, faz parte essencial de uma autêntica educação dos filósofos. Para
fundamentar a primeira, apresentaremos os traços básicos que configuram a educação
pela poesia. Já a segunda nos parece bem explícita a partir de trechos do próprio diálogo
que veremos mais adiante.
A primeira educação dos guardiães se divide em duas grandes partes, sendo que
a primeira se divide em mais duas: a investigação da mousike (376e-403c) e da ginástica
(403c-412b) apropriadas, sendo que a primeira ainda se divide no que a mousike deve
apresentar pelos logoi, discursos (376e-392c), e pela leksis, forma do discurso (392c-
403c). Aceita a forma tradicional da educação na Grécia clássica, que prescrevia

25
Ver o capítulo intitulado "Homero como educador" na Paidéia de Jaeger.
26
Veja em Górgias 474d em que Cáliques pretende distinguir a noção de kalos e de agathos e tal
distinção não é natural para Sócrates.
27
O termo mousike apresenta certa dificuldade na tradução. A nossa palavra música fica muito aquém do
seu âmbito semântico. Ela é melhor traduzida por "cultura", pela qual deveremos entender desde a
literatura e as artes até a matemática e a geometria. Por vezes, também vamos traduzi-la por poesia,
quando ela se referir a esse sentido mais restrito.
28
Ou "primeira educação dos guardiães" já que aqui ainda não se sabe que os filósofos provêm da casta
dos guardiães.
30

ginástica para o corpo e "cultura" para a alma, Sócrates passa a fazer uma qualificação
do que deve e do que não deve ser ensinado aos jovens. O trecho que inicia essa
primeira educação dos guardiães, 376e-377d, já apresenta a noção de identificação entre
os homens e suas atividades como fundamental para que tenhamos o devido cuidado
sobre a produção poética de uma cidade ideal. É que essa produção, por meio da
identificação, é a formadora das almas dos jovens, e é especialmente tal tipo de alma
que deve ser cuidada para que não se volte para o caminho errado. O princípio (arkhe) é
o mais importante em tudo que se faz, especialmente em relação à alma, pois é então
que ela é jovem e macia. Esse é o momento em que mais facilmente se molda a alma,
plattein ten psykhen, e que também se imprime certo "tipo" sobre elas. O termo typos,
tuvpo", será central nesse trecho, pois é o cuidado com a qualidade de tal impressão na
alma que vai gerar a primeira censura aos poetas gregos. Tal termo designa
primeiramente a impressão de um selo, a réplica feita a partir de um molde original,
como, por exemplo, nas estátuas de bronze, ou até mesmo o molde original esculpido
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em alto relevo sobre objetos sólidos. A partir dessa idéia original tem-se a noção
também comum de typos como modelo, arquétipo, padrão, dos quais outros fatos
decorrem. Sócrates está enfatizando que a partir do relato das mães e criadas, as
crianças apreendem certos typoi na alma, forjando assim as suas respostas existenciais
às mais diferentes situações.
Nesse trecho inicial em que é descrita a força plástica da poesia sobre a alma,
temos uma primeira formulação de como ocorre a educação dos guardiães: a poesia
imprime certo molde às almas das crianças, forjando uma forma específica que vai ser a
responsável pelo caráter dessas crianças ao crescerem. Já no decorrer da investigação
sobre a mousike e a gymnastike, 376e-412b, temos várias indicações de como a poesia e
a ginástica efetuam sua educação, e podemos resumi-las em cinco pontos, todos se
fundamentando na noção de identificação entre os homens e suas atividades, e dessa
forma se assemelhando à educação por psicagogia. São elas: 1) a autoridade das mães
ou criadas sobre as crianças, ou também aquela delegada aos poetas pelo povo29,
imprime na alma certos typoi; 2) o prazer que se sente ao ouvir os discursos, melodias e
ritmos dos poetas faz com que queiramos ouvir ainda mais certas espécies de poesias; 3)
o hábito ou a regularidade com que se ouve a poesia vai fazendo com que se instaure

29
Iremos investigar mais à frente se, nesse trecho da primeira educação dos guardiães, Sócrates censura a
poesia somente no que se refere às crianças ou se também descreve o que qualquer um do povo pode ou
não ouvir, não importando a idade.
31

tanto uma natureza (physis) quanto um caráter (ethos) específico na alma; 4) a


comparação com figuras paradigmáticas faz com que não apenas se permitam certos
hábitos, mas também se incentive a cultivá-los; 5) a imitação (mimesis), ponto central
na descrição da forma, leksis da poesia, faz com que se crie tanto uma natureza quanto
um caráter específico na alma.30 Defendemos que tais características são bem descritas
pela força psicagógica que se encontra também na retórica e que deve ser defendida no
presente capítulo da tese como ponto fundamental em uma verdadeira educação
filosófica. Nesse sentido, a educação através da mousike e da gymnastike, na medida em
que são psicagogia, contribui também para a formação filosófica, pois como vínhamos
dizendo, a filosofia pretende instaurar uma forma de viver. Depois de compreendermos
como ocorre tal psicagogia nessa primeira educação, poderemos compreender como
deve ser a psicagogia na educação estritamente filosófica, a conversão descrita no livro
VII, que veremos em outro capítulo. A importância de deixarmos clara a noção de
psicagogia na poesia e seu uso correlato na filosofia estrita é para explicitarmos de que
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modo a filosofia platônica precisa ser uma experiência vital para que seja efetiva.
Vamos analisar cada um desses cinco temas apontados referindo-nos a algumas
passagens em que eles aparecem.
1) Platão vê nas histórias que são contadas às crianças um dos momentos
principais em que a educação é realizada31. As mães ou criadas tinham por hábito contar
poemas, como os de Homero e Hesíodo, às crianças e, a partir de tais relatos, não só os
assuntos mais importantes ganhavam corpo, mas também opiniões das mais diversas se
instalavam nas almas dos pequenos, gerando conseqüentemente vícios ou virtudes. Isso
fica bem claro na passagem sobre "moldar as almas", de 376e-377d, mas também em
381e, em que Sócrates afirma: “Nem, de novo, as mães influenciadas por tais poetas
devem amedrontar as crianças ao contarem histórias más (tous mythous kakos), como,
por exemplo, que alguns deuses andam por aí, de noite, aparecendo como diversos
estrangeiros, vindo de diversas regiões, de modo que elas não blasfemem sobre os
deuses, e junto a isso, façam (ajpergavzontai32) das crianças covardes.” Aqui, a censura
sobre os poetas aparece tanto a partir de argumentos teológicos, pela impossibilidade do
deus se transformar, quanto a partir de argumentos morais, pois, pela força da palavra

30
Listamos as passagens em que aparecem, explícita ou implicitamente, os pontos mencionados: 377a-b,
378d-e, 380c, 381e, 382 a-c, 387b-c, 388d, 392 a, 395c, 396 a, d-e, 400d-e, 401 b-e, 402 a, 404d-e, 411a.
31
Cf. Brisson, Les mots e les Mythes.
32
Este termo traz a idéia de trabalhar sobre alguma coisa, "obrar" (ergon) algo, construir ou edificar algo.
Mostra assim que as mães estão cunhando as almas das crianças.
32

da mãe sobre almas novas e "macias", i.e, fáceis de moldar, certa visão de mundo é
instaurada nelas. A posição de autoridade que as mães e as criadas ocupam ao relatarem
sobre "os assuntos de maior importância", i.e, sobre a natureza e as atitudes dos deuses,
heróis e homens33, faz com que as almas sejam conduzidas para determinada
compreensão de mundo. No entanto, ainda falta deixarmos claro que a presente
passagem discutida, dos livros II e III da República, trata não somente sobre os limites
impostos à poesia, quando esta é direcionada às crianças, mas também, pelo poder de
persuasão da poesia, Sócrates termina por tratar dos limites da poesia em geral.
Veremos isso mais à frente.
2) A crítica de Sócrates ao conteúdo moral transmitido pela poesia, como ele
mesmo comenta, acarreta um menor embelezamento da mesma. Porém, isso não quer
dizer que as poesias que tiverem passado pelo crivo dos typoi apropriados serão
completamente destituídas de beleza. Pelo contrário, como Sócrates mostrará mais à
frente34, ao relatar as escolhas amorosas do guardião corretamente educado, as belas
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harmonias, representantes das virtudes e estados de alma louváveis, produzirão maior


fascínio na alma, uma vez que ela já tenha se acostumado com a ordem e a verdadeira
beleza. De qualquer modo, o prazer inerente a qualquer produção poética torna-se um
ponto que atrai os homens, produzindo neles a vontade de conviver com aqueles fatos
narrados ou aqueles ritmos e harmonias ouvidas. Sobre o prazer, podemos ver
especialmente 387b. Ali, Sócrates diz que as passagens que discorrem sobre o fato de a
morte ser um grande mal são poéticas, sim, e prazerosas (hedea), mas, exatamente na
medida em que são poéticas e prazerosas, são prejudiciais àqueles que têm a intenção de
serem homens livres e temerem mais a escravidão do que a morte. O prazer e a beleza
na poesia exercem certo fascínio que produz uma vontade de repetir o fato narrado,
formando, assim, uma identificação natural entre o homem e esse fato. Tal naturalidade
é resultado da condução da alma para agir de determinado modo. O prazer da poesia é
um dos pontos que a fazem ser uma psicagogia e, assim, educar os homens.
3) O hábito ou a convivência é outro fator central para a educação realizada pela
poesia e também pela ginástica. Tanto a repetição de descrições de fatos, como a
repetição de modos de proceder e também de atividades físicas vão forjando certa
natureza em nossa alma. Em 401c, temos uma passagem lapidar para mostrar a força do

33
Em 392a, Sócrates resume esses três elementos, mais os daimones e o Hades, o mundo além-túmulo,
como sendo os assuntos de maior importância.
34
402d
33

hábito. Ali, mesmo Sócrates já ampliando a censura sobre a poesia, dizendo que
qualquer atividade deve se afastar de reproduzir imagens prejudiciais às almas dos
jovens, ele reforça a idéia de que é dia-a-dia, pouco a pouco que a alma vai acumulando
e deixando crescer uma grande quantidade de mal em si mesma. Convivendo em meio
ao mal, a alma vai forjando em si mesma o mal. O que há no hábito que faz com que
nos moldemos de acordo com ele? Em verdade, o hábito forma uma identificação entre
o agente e a ação executada: é como se o homem tivesse em si certa força de inércia que
o dirige para isso mesmo que ele já vem realizando, como se só pelo fato de tal ato ou
história ser comum em sua vida, fizesse este ato ou história já ser mais facilmente aceito
e exercido. Há no hábito a formação de uma identificação, e podemos denominar tal
identificação por condução da alma: o hábito de certa poesia e também de certas
atividades conduzem a alma para certo mundo, e ela passa a viver ali. Dessa forma, o
hábito também é um fator que produz uma psicagogia.
4) O quarto ponto educativo na poesia é o fato de ela apresentar personagens
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paradigmáticos. Em 388d, criticando os poetas que descrevem figuras nobres se


lamentando, temos:

“Pois, caro Adimanto, se nossos jovens ouvissem com seriedade tais discursos
e não rissem como se fossem ditos sem importância, menos ainda seria possível
que algum homem julgasse-os sem importância para si mesmo e afastasse-os de si,
caso ocorresse a ele ter de falar ou fazer algo parecido, mas, sem vergonha e sem
repreensão, cantaria muitos lamentos sobre pequenos sofrimentos”.

As ações que tais personagens, como os deuses, os daimones e os heróis, executam


terminam por virar atitudes louváveis por causa da nobreza desses sujeitos. Esses
personagens tornam-se, assim, incentivo para ações virtuosas ou viciosas. De novo, isso
ocorre, pois há uma identificação natural entre os humanos que ouvem ou relatam as
histórias e os personagens ali descritos. Em toda história, há uma força que a faz
educadora, a força da relação, consciente ou inconsciente, entre nós e os sujeitos das
histórias: colocamo-nos nos lugares deles, comparamo-nos com eles, e assim somos
impulsionados a tomar atitudes relativas às deles. Ainda há mais força na história de
personagens paradigmáticos, como deviam ser os deuses e heróis gregos. Dessa forma,
nossa alma seria conduzida para o mundo apresentado por essas figuras paradigmáticas,
uma vez que o seu poder sobre nós está em que queremos ao máximo nos parecer com
34

elas. Assim, se um Aquiles se debruça a chorar a morte de um ente querido, por


exemplo, nós também, a partir de um desejo natural de ser como Aquiles, permitiríamo-
nos atitudes como essa, que, segundo Sócrates na República, carecem de fundamento
moral. Vemos, assim, a força psicagógica que há na identificação com personagens
paradigmáticos relatados pelas poesias.
5) Por fim, temos o ponto central que indica a força educadora da poesia: a
mimesis, a imitação de uma ação. A noção de mimesis apresentada em 392d é restrita à
noção de discurso direto em oposição ao discurso indireto: o ator, ao apresentar o que
um personagem fala através da imitação de suas palavras e do seu jeito de falar, está
imitando diretamente o personagem35. Diferente do poeta que relata o que alguém disse
utilizando outras palavras, relatando-o em um discurso indireto, o discurso direto força a
representação das atitudes do personagem que se imita, fazendo com que o ator
incorpore diretamente o personagem. Aqui temos a noção de identificação funcionando
de forma explícita como fonte de educação: ao tornarmo-nos parecidos com um
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personagem, vai se formando uma determinada natureza em nós. A força do hábito


também é fundamental para entendermos a força da mimesis, e, somando-se à
identificação por semelhança, temos concretamente a produção de hábitos e naturezas
específicas, forjando a alma e conduzindo-a para agir de determinada forma. A poesia,
junto com todo o mundo que ela traz consigo, encenação, festa, etc., é uma fonte
poderosa de educação para a sociedade que Sócrates está construindo. A expressão
principal que descreve isso está em 395d, “[...] mas os fatos impróprios, eles não
deveriam fazer nem ainda nada desprezível, nem ser bons imitadores desses fatos, pois
a partir da imitação, eles passam a usufruir do ser [daquilo que imitam].”36 Essa idéia
também vai se repetir em 401b, quando Sócrates diz que em meio a imagens do mal a
alma é nutrida, trephomenoi37. No momento da mimesis, a história de alguma forma
toma conta da pessoa e, a partir da repetição e do hábito de tal mimesis, ela passa a viver
de acordo com o que é relatado, incorpora o ser da história em sua própria vida. A
noção de alimento também é correlata à noção de psicagogia, pois o alimento aqui é
uma forma de se tornar parecido, de seguir determinado modo de conduta, forjar a alma
para que ela seja de tal forma. O alimento da poesia conduz a alma para onde quer que a

35
No livro X, a noção de mimesis será alargada para toda arte que copia realidades.
36
i{na mh; ejk th'" mimhvsew" tou' ei\nai ajpolauvswsin.
37
O termo nutrição, trofe, é, inicialmente, quase sinônimo de educação, paideia. Cf. Jaegger e Ésquilo,
Os sete contra Tebas, 18. Também em 409a temos que o juiz não pode ter sido nutrido e ter convivido
com o mal, teqravfqai te kai; wJmilhkevnai
35

poesia esteja indicando. A continuação do trecho de 395d é exemplar: “Ou você não
terá percebido que as imitações, se exercidas desde jovem até tarde, instauram
caracteres e natureza no corpo, na alma e na mente?”38. O ponto central é que a
semelhança gera identificação: homoioo, assemelhar-se é a idéia central desse trecho.
Assim como a necessidade da supervisão39 provém do fato de haver certos typos na
poesia, é justo falar também de semelhança, pois como a noção de typos nos refere a
certas "formas"40, é através da semelhança que essas "formas" vão nascer na alma.
Ainda há outros trechos em que Sócrates descreve o modo como a poesia, isto é,
a mousike, educa, especialmente ao tratar do ritmo e da harmonia que acompanham a
poesia, sempre cantada41. Uma imagem, porém, parece-nos importante salientar, para
compreendermos a força psicagógica da poesia-música da qual fala Sócrates. Em 401c-
d, temos: “[... lugares saudáveis ...] de onde a influência que emana de obras belas possa
entrar no olho ou no ouvido como um vento que carrega a saúde de lugares nobres e
desde criança possa guiá-los, sem ser notado, para a semelhança, amizade e harmonia
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42
com a bela razão.” A força da beleza da obra de arte é comparada com um vento,
aura, que traria saúde para as pessoas. Está presente também a idéia de guiar, de
mostrar o caminho, como se o vento, a partir de sua direção também indicasse por onde
devêssemos ir. Ainda temos a idéia de que a força desse vento que guia e traz saúde
ocorre sem que percebamos seu poder, assim também atua a arte sobre nós: ela vai
forjando em nossa alma um modo de ver o mundo sutilmente, e nós vamos agindo de
acordo com ele sem nem percebermos que estamos agindo sobre uma descrição do
mundo e não sobre fatos concretos da realidade. Essa imagem do vento que guia o
homem desde criança sem ser notado43 é bem interessante para pensarmos o poder que
resume esses cinco pontos expostos, os quais indicam uma identificação entre os
homens e suas atividades, gerando, por fim, uma psicagogia, isto é, uma condução da
alma para determinado lugar a partir do qual ela vai ser saudável ou doente, virtuosa ou
viciosa.

38
eij" e[qh te kai; fuvsin kaqivstantai kai; kata; sw'ma kai; fwna;" kai; kata; th;n diavnoian; O termo
kathistantai indica claramente a noção de "estabelecer", "ordenar", e os termos ethe e physis marcam a
construção da personalidade.
39
O termo principal utilizado por Sócrates para falar da necessidade de censura é ejpistatevon, é
necessário supervisionar.
40
Não me refiro aqui às idéias platônicas.
41
Até mesmo ao tratar da ginástica, Sócrates fala sobre uma educação por identificação, pois, a partir das
atividades físicas, nossa alma vai se tornando mais corajosa ou não, assemelhando-se às atividades que
realiza.
42
Estou parafraseando a tradução do Shorey, na edição da Loeb. O grifo é nosso.
43
ejk paivdon lanqavnh/ ... a[gousa
36

Retomando a exposição da primeira educação dos guardiães, como vínhamos


fazendo para deixar clara a posição de Platão na República em relação aos poetas, nós
havíamos afirmado que era necessário um guardião para a cidade e também havíamos
delineado certas características que tal guardião teria para desempenhar bem o seu
papel: a coragem e a gentileza. Acabamos de deixar claro que a educação proposta para
enaltecer e fomentar tais características, especialmente a mousike, baseia-se na
identificação entre os homens e suas atividades, produzindo psicagogia através de uma
força plástica inerente à poesia. Com tal força plástica, uma severa supervisão,
epistateia, do que é dito às crianças deve ser realizada na poesia para que os futuros
guardiães cresçam aptos para guerrear. Ao descrever os typoi de histórias apropriadas
ou não, no entanto, Sócrates oscila entre uma proibição total de certos typoi ou uma
restrição apenas das pessoas que podem ouvi-las44. Isto ocorre, pois um segundo ponto
advém da descrição da educação dos guardiães. Ao qualificar os typoi, apresentando não
só certas normas morais pré-estabelecidas, mas também argumentos teológicos e morais
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que vão contra alguns trechos de epopéias e tragédias, Sócrates termina por ter que
rejeitar completamente alguns tipos de histórias, por exemplo, atribuir aos deuses a
causa de diversos males. Dos deuses, apenas podem advir bens, e, no entanto, diversos
trechos das tragédias e dos escritos épicos estão repletos de afirmações que dizem ser os
deuses as causas de muitos males dos homens. Desta forma, a descrição da primeira
educação dos guardiães passa a ter uma abrangência bem maior, qualificando o que
pode ou não ser dito poeticamente em uma cidade. Todo e qualquer homem é moldado
pela força psicagógica que há na poesia. Veremos isso também ao tratarmos da força da
tragédia para Platão nos trechos sobre o grande sofista e o amante de espetáculos, em
que veremos o quão "criança" até os adultos ainda são, pois eles também serão
moldados pela poesia. O poder de moldar almas vai valer para todos os homens, em
todas as idades, e não apenas para as crianças ouvindo as criadas e as mães, mas
também em lugares públicos, como nas festas e nas tragédias.
Sócrates está, então, fazendo uma supervisão da poesia como um todo e em
378e, Adimanto pede para ele ser mais específico: começa, aqui, indo até 392c, uma
descrição do que deve ou não ser dito pelos poetas. Primeiramente, será tratado o typos
apropriado para se falar sobre os deuses. São basicamente dois typoi que limitam o

44
Em 378a, Sócrates diz que mesmo as histórias míticas sendo verdadeiras, não deveriam ser contadas
para crianças. Já em 380c, Sócrates defende que certas histórias atribuindo males aos deuses devem ser
totalmente proibidas.
37

conteúdo dos poemas "teológicos": 1) os deuses não podem ser a causa do mal (378e-
380c), 2) os deuses não se transformam e não nos enganam (380d-385e). Esse é o trecho
em que Sócrates faz uma theologia e, como Jaeger45 nos lembra bem, aqui é a primeira
fonte do termo no ocidente. Platão está tratando racionalmente do "que ocorre ao deus
ser", oiJo" tugcavnei oJ qeo;" w\n.
Ao descrever esses typoi, Sócrates apresenta certos pontos importantes de serem
ressaltados. É interessante uma definição de poesia que aparece em 377e que diz ser ela
uma formação de imagens pelo logos46. No entanto, é exatamente isso que o próprio
Sócrates está fazendo ao construir uma cidade ideal: está criando pelo logos as
características de uma cidade para então descobrir a justiça e a injustiça nela. Bem mais
à frente, já no livro V, em 472d, temos Sócrates falando: “e nós não iríamos, eu disse,
construir com palavras um paradigma de uma cidade boa?”47. Será que o próprio Platão
não teria consciência dessa relação? Podemos ver uma clara relação entre o que está
sendo feito por Sócrates e o que a poesia faz. Outro ponto importantíssimo para a
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presente tese e que será mais detalhado no capítulo48 sobre a inscrição da palavra na
alma relatada no Fedro, é aquela em que Sócrates trata da "mentira verdadeira", a que
está inscrita na alma49. Sócrates rejeita totalmente a mentira que está na alma, isto é,
aquela mentira que não apenas está escrita em papel, mas está inscrita na alma daquele
que acredita em algo: esse é um fato que deve ser evitado a todo custo. Essa mentira é
totalmente odiada pelos homens e deuses, mas há ainda uma outra mentira, aquela que é
apenas dita ou escrita, mas não absorvida pela alma. Esse segundo tipo de mentira
também não será aceito de modo algum pelos deuses, pois não há meio de ela ser-lhes
benéfica. Já aos homens, em alguns casos, como para ajudar amigos que não conseguem
compreender a verdade e também para prejudicar os inimigos, será necessária a "falsa
mentira", aquela que não está inscrita na alma50. Ainda mais um ponto é dito por
Sócrates que vale ressaltar, mostrando o quanto a poesia não é descartada totalmente,
apesar de ser criticada duramente. Ao descartar a possibilidade de os deuses nos
enganarem, Sócrates comenta: “Muitas outras coisas louvamos em Homero, mas com
isso não concordaremos [...]”. Ora, se há fatos com os quais Sócrates concorda em

45
Paidéia p. 775.
46
[...]eijkavzetai tw'/ lovgw/
47
ouj kai; hJmei", famevn, paravdeigma ejpoiou'men lovgw/ ajgaqh'" povlew";
48
Capítulo 3, b, “O Fedro e a escrita”.
49
381e-382a
50
Veremos mais sobre a "falsa mentira" ao analisarmos a escrita junto com a Carta VII e o Fedro.
38

Homero, de forma alguma podemos aceitar quem diz que a poesia é descartada na
educação dos filósofos-guardiães da República.
Sócrates ainda apresenta outros typoi necessários à poesia. No começo do livro
III, terminamos com a theologia e começamos a tratar sobre outros typoi, mais
especificamente aqueles que lidam com o heroísmo e a boa conduta. Temos
basicamente seis typoi ao se falar sobre os heróis e suas condutas: 1) não se deve falar
da morte como um mal (386a- 387d), 2) deve-se excluir os lamentos (387d-388e), 3)
deve-se excluir o riso exagerado (388e-389b), 4) deve-se excluir o excesso de prazer
(389d-390d), 5) os homens não devem ser apresentados aceitando suborno (390d-391b),
e 6) os homens não devem ser apresentados se excedendo (391b-391e). Por fim,
Sócrates ainda comenta que apenas poderá negar que sejam apresentados pela poesia
homens injustos vivendo uma vida feliz, se for comprovado, como se pretende fazer no
decorrer da República, que os homens injustos são infelizes. Assim, o typos apropriado
quanto à felicidade ou infelicidade dos homens injustos ainda está por vir.
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Em 392c, termina a supervisão, epistateia, acerca do conteúdo, do logos51, das


poesias. Já vimos aqui, mesmo não tendo ainda tratado da forma do discurso, da leksis,
que Sócrates não critica o poder da poesia de transformar a alma dos homens; pelo
contrário, ele pretende usar esse poder para educar os filósofos e encaminhá-los para
uma vida saudável e correta. O que nos parece já delineado é que a crítica é feita a partir
de certos argumentos éticos e não a partir de uma estética ou de uma teoria do
conhecimento, como é feita no livro X. Retomando a distinção que foi feita no presente
capítulo acerca daquilo que a poesia ensina e do meio pelo qual ela ensina, vemos que
Sócrates está a criticar a primeira e a manter a segunda em sua educação dos guardiães.
Sócrates quer "moldar a alma" dos jovens, mas quer que tal molde seja pautado pelas
virtudes já descritas do bom guardião: coragem e gentileza. Tanto isso procede, que
temos Sócrates oferecendo bons exemplos da poesia, como em 389e.
Mas vamos ainda tratar sobre a leksis do discurso, que inclui três aspectos, uma
análise do typos do (1) estilo literário, isto é, do discurso direto ou indireto, (392c –
397b), do typos de (2) ritmo (397b-398c, 399e-401e) e da (3) harmonia e da melodia
(398c-399e)
Sócrates começa a supervisão da forma da poesia pela distinção entre o discurso
direto e o discurso indireto. O discurso indireto é chamado de discurso puro, aJplh'

51
Aqui, logos é contraposto a leksis, e fica com um sentido mais restrito ao conteúdo da poesia.
39

dihvghsi", isto é, um discurso que reporta o que os personagens disseram sem se


modificar, sem alterar o estilo do discurso que o próprio poeta já havia dado ao poema,
isto é, o poeta não imita o falante, mas usa suas próprias palavras para dizer o que foi
dito. Já o discurso direto, aquele que é feito através da imitação, diav mimhvsew", reporta
o que os personagem dizem como se quem estivesse falando no momento não fosse o
poeta, mas sim o próprio personagem, utilizando suas idiossincrasias, seus jeitos e
modos de falar. É claro que o discurso mimético aqui está reduzido em sua significação,
já que, para Platão e Aristóteles, mimesis é um termo que retrata toda a arte poética,
ficando assim restrito ao discurso direto. O autor do discurso direto, homoioun52,
assemelha-se àquele que fala, ao personagem, criando talvez o que seja de mais
educativo e transformador na arte poética. Logo Adimanto percebe que tanto a tragédia
quanto a comédia são feitos apenas de discursos diretos, e a epopéia intercala tanto
discursos diretos quanto indiretos. De 394d em diante, Sócrates começa a perguntar se
se deve aceitar o discurso direto na cidade ou se seria necessário apenas o discurso
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misto que contenha tanto discursos indiretos quanto diretos. Adimanto, então, interpreta
a pergunta de Sócrates, querendo saber se este está pensando em excluir totalmente a
tragédia e a comédia da cidade ideal, e Sócrates responde que talvez seja ainda mais que
isso. Como aponta Shorey53, talvez aqui já haja uma indicação da restrição mais severa
que será feita no livro X. A supervisão do estilo do discurso começa dizendo que, a
partir do princípio da divisão do trabalho, o guardião não poderá saber imitar
corretamente os mais variados tipos de personagens, já que ele vai ter que se esforçar
em aprender corretamente a defender a cidade. Mas, mesmo que ele tenha que imitar
algo, ele imitará apenas personagens nobres em situações nobres, que enriqueçam ainda
mais o seu amor à virtude. Nós já relatamos aqui o modo através do qual o discurso
direto, diav mimhvsei, que representa também teatralmente o seu personagem, tem um
grande poder de transformação espiritual pela força da identificação entre o ator e o
personagem, conduzindo sua alma a se assemelhar com o personagem. Mas não são
todos os typoi de personagens e situações que devem ser excluídos: em 395c, Sócrates
apresenta uma lista de fatos que podem ser imitados pelo guardião e que realçarão ainda
mais sua disposição natural para as virtudes. Em 396c-d, ele expõe exemplos de boa
conduta que devem ser imitados pelos guardiães. De novo, é plenamente explícito que

52
Infinitivo de homoieo, assemelhar-se, tornar-se semelhante, etc.
53
Na nota a essa passagem em sua tradução para a coleção da Loeb, PLATO. Republic. Tradução e notas
por Paul Shorey, Cambridge: Harvard University Press, 1987 (Loeb Classical Library).
40

Platão pretende ter "poesias" em sua cidade, educando seus guardiães, especialmente
pelo seu poder de conduzir almas, de fazer uma psicagogia.
Por fim, o mesmo modo de argumentar também vai conduzir a supervisão feita
nos ritmos, harmonias, melodias e na ginástica: Sócrates critica certos typoi, louva
outros e suporta a educação por identificação realizada por eles. Em 400d, parece ficar
bem claro o procedimento realizado no resto da supervisão: o ritmo e a harmonia
seguem o estilo do discurso, este segue o conteúdo, logos, e este último deve seguir a
boa disposição da alma54.
Com isso, terminamos a descrição do que Sócrates apresenta nos livros II e III
sobre a poesia e sua educação. Ainda poderíamos detalhar, com mais exemplos, o poder
de persuasão, tanto da mousike quanto da gymnastike, especialmente de 410 a até 412a,
trecho no qual Sócrates fala como ambas educam diretamente a alma, e não são
divididas em uma para a alma e outra para o corpo. Ali também fica claro que o termo
mousike se refere a algo mais abrangente que apenas música e poesia, mas designa algo
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como "cultura".
Há ainda um ponto peculiar, que só ficará claro quando tratarmos mais
detidamente da dialética no capítulo acerca da conversão55, que trata sobre a diferença
entre a primeira educação dos filósofos apresentada aqui nos livros II e III e a educação
avançada, apresentada no livro VII. Parece-nos que aqui ele apenas trata da educação
como um primeiro molde harmônico de uma alma que já tenha certos dons inatos, a
gentileza e a grandeza de espírito. Essas qualidades seriam inatas a certas pessoas, e a
primeira educação não faria nada além de estimular uma natureza básica dos guardiães.
Já na dialética, os guardiães pretendentes a filósofos estariam exercendo outras
características, ou até mesmo adquirindo habilidades novas, como determinar e
diferenciar as idéias umas das outras. Veremos isso com mais vagar ao tratar da
dialética no capítulo sobre conversão.
Concluindo essa análise dos livros II e III, podemos dizer que ficou clara a
posição de Platão na República quanto à poesia no que concerne ao seu poder
educativo: através da identificação entre os homens e a mousike, por diversos traços
inerentes à poesia, o homem é conduzido a um determinado mundo e acredita viver
nele, passa a agir de acordo com o mundo descrito pela poesia. A poesia confere um
poder tal de psicagogia que não podemos permitir que certos typoi sejam apresentados e

54
e{petai tw'/ yuch'/ e[qei
55
Capítulo 4.
41

devemos encorajar os guardiães a cuidarem de outros typoi que os tragam para perto das
virtudes necessárias ao bom defensor de uma cidade. Ainda fica clara a posição de não
excluir de todo a poesia da cidade ideal, e citamos Kathryn Morgan: “Sócrates expulsou
histórias imorais de sua utopia, e define e aprova um uso educacional do mito e da
poesia”56

1.2.2 A CRÍTICA DO LIVRO X

Devemos agora nos voltar para o que Platão diz sobre a poesia no livro X, em
que parece haver uma crítica mais feroz e mais contundente57. Mesmo em relação aos
livros II e III, é importante frisarmos que Platão está atacando o que há de mais sólido e
consistente quanto ao mundo do saber e da autoridade, tanto jurídica quanto educativa.
É lugar comum dizer que Homero educou a Grécia, mas apenas com tal dizer em mente
podemos compreender com a correta clareza as críticas que Platão empreende na
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República. O poder da poesia vai desde manifestações religiosas, passando pelo mundo
jurídico, até o que poderíamos chamar de científico. É contra esse poder totalizante que
Platão quer levantar uma voz, quer abrir um espaço para outro tipo de investigação que
não seja apenas através da voz do aedo. Platão não é o primeiro a criticar a poesia: as
famosas críticas de Xenófanes e Heráclito já circulavam na Grécia na época de Platão
há anos. Aqui não é o lugar para tratarmos da relação que a filosofia trava com os
poetas, já que o próprio Platão nos diz que tal discussão não é nada pequena: “Mas
devemos dizer-lhe [para a poesia], para que ela não nos condene por vulgaridade e
dureza, que há muito existe uma certa briga entre filosofia e poesia.”58 No entanto, é
necessário termos sempre em mente a força dos poetas na época de Platão ao tratarmos
da sua relação com eles.
Vale ressaltar novamente, como forma de retomarmos o fôlego para o que segue,
qual é nosso objetivo ao tratarmos minuciosamente da relação de Platão com os poetas
na República. A presente tese defende certa proximidade entre a forma de educação
cultural exercida pela tragédia – educação essa que chamamos de psicagogia – e certa

56
MORGAN, Kathryn A. Myth and Philosopy from the presocratics to Plato. Cambridge: Cambridge
University Press, 2000, p. 202.
57
Julia Annas e outros afirmam que o livro X da República se parece com um apêndice, e realmente não é
explicito o porquê de Platão voltar a esse tema no fim de toda essa trajetória. Introduction to Plato’s
Republic. p.336.
58
Note o termo "briga", diaphora, que também designa diferença: o{ti palaia; mevn ti" diafora;
filosofiva/ te kai; poihtikh'/, 607b.
42

característica essencial na filosofia grega, a saber: a filosofia deveria ser vivida para ser
compreendida em sua radicalidade, isto é, era inimaginável uma distinção entre filosofia
e vida cotidiana. A tese também se limita a procurar ver a filosofia grega dentro da obra
platônica, e a importância de um detalhamento das passagens em que Platão lida com a
poesia se faz capital especialmente por ser tão gritante certo antagonismo à poesia
presente em algumas delas. A mais conhecida entre essas passagens certamente é o
início do livro X da República. Queremos aqui mostrar como o fato de pretendermos
fundar a filosofia platônica em uma vivência filosófica, quando o conhecimento seria
realmente absorvido, e com isso aproximar a filosofia de certo aspecto da poesia, o de
ser uma psicagogia, não vai de encontro à crítica que é feita no livro X. Como veremos,
assim como já vimos na primeira educação dos filósofos, a crítica é feita sobre o
conteúdo da poesia que aqui é entendido da seguinte forma: temos primeiro uma
investigação do seu lado epistemológico, isto é uma investigação sobre aquilo que ela
capta do real e também sobre o tipo de conhecimento que ela produz, e em segundo,
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uma investigação de suas conseqüências éticas, examinando a parte da alma com que a
poesia se comunica. Contudo, não há uma crítica quanto a sua força de psicagogia
enquanto tal, isto é, Platão não critica a força educativa da poesia nela mesma: pelo
contrário, ele a quer também para a filosofia. Platão quer mostrar que a poesia não pode
ser a “ciência” que conduz à verdade e afirma sua íntima relação com partes da alma
não racionais.
Apesar de, nesse trecho, as críticas contra a poesia serem mais elaboradas e
melhor fundamentadas, e apesar desse trecho ser mais filosoficamente interessante do
que o trecho dos livros II e III, encontramos poucas indicações de um lugar positivo,
apropriado à poesia na cidade ideal. Seria mais interessante, para defendermos a nossa
idéia de modo mais claro e consistente, que encontrássemos nesse trecho uma
explicitação da importância do poder pedagógico da poesia e, conseqüentemente, das
características de seu método, que também pode ser compartilhado pela filosofia.
Mesmo assim, acreditamos que há indícios que sustentam nossa tese.
O trecho do livro X da República que trata da poesia vai de 595c até 608b e
podemos dividi-lo em 6 partes59: 1) Análise epistemológica da arte60 em geral (a noção
de mimesis), isto é, análise do objeto apreendido pela obra de arte; a arte como cópia da

59
Para uma outra divisão desse trecho do livro X, ver Julia Annas, Introduction to Plato’s Republic, p.
335.
60
A noção de arte usada aqui é restrita ao que hoje chamamos de belas-artes (literatura, artes plásticas,
etc) e não relativa às técnicas em geral.
43

cópia (595c-598d); 2) Crítica à autoridade de Homero e resumo do que faz um imitador


(598d-601b); 3) Investigação mais profunda acerca da arte em geral, apresentando os
tipos de saber do feitor, do usuário e do imitador (601b-602b); 4) Análise das
conseqüências éticas da arte, apresentando a qual parte da alma se dirige o mimético
(602c-605c); 5) Resumo, o poder persuasivo do poeta (605c-607a); 6) Conclusão, a
briga é antiga (607b-608b).
Dois trechos dos livros II e III podem nos fazer transpor os sete livros que os
separam do livro X. Um primeiro trecho já foi apresentado aqui, o 394d, no qual
Sócrates questiona se será permitida a entrada do que for mimético na poesia. É
relembrando esse argumento, acerca da força de transformação espiritual do discurso
direto, que Sócrates vai abrir o livro X, retomando a questão dos poetas, agora já com
todo um percurso ontológico, epistemológico e ético trilhado pelos sete livros que
passaram. Sócrates vai retomar as críticas que foram mais superficiais naqueles livros,
para empreendê-las agora com argumentos mais consistentes. Também em 398a,
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Sócrates já havia apresentado o banimento do poeta, especificando que se trata apenas


daquele poeta que apresenta todos os tipos de melodias, harmonias e ritmos, isto é,
Sócrates expulsa o poeta que apresenta qualquer melodia, sem um critério prévio,
orientando-a para a virtude. Vale ressaltar que Sócrates não expulsa os poetas que
apresentam somente melodias, harmonias e ritmos que são austeros, puros e que
inspirem as mais altas virtudes, pois é assim que devem ser os poetas da cidade ideal.
Sócrates vai fazer a mesma ressalva em 607a, depois de apresentar novos argumentos
contra os poetas, pois lá também certos poetas serão aceitos na cidade ideal. Esses são
os trechos explícitos nos quais o poeta é literalmente convidado a se retirar de uma
cidade ideal, apesar de não serem expulsos todo e qualquer poeta, como é
superficialmente dito acerca da República de Platão.
A primeira parte do trecho que analisaremos do livro X, 595c- 598d, é a famosa
passagem em que Sócrates, apresentando a ontologia das Formas, mostra de que modo
a obra do poeta, pintor ou escultor está três vezes separada da natureza. Ele faz isso pelo
questionamento do que seja mimesis e, como introdução a esse questionamento, em
595a-b, Sócrates retoma a questão dos poetas tratada nos livros II e III. Sócrates afirma
que há algo no mimético que é uma corrupção (lobe) do pensamento (dianoia) dos
44

ouvintes, mas não de todos os ouvintes, somente daqueles que não possuem o
"antídoto", pharmakon61, que é saber sobre a verdadeira natureza do mimético.
Na busca desse antídoto, Sócrates vai proceder à investigação do que seja a
mimesis. Todo esse trecho, 595c-598d, que chamamos de análise epistemológica da
obra de arte, pois ele investiga o tipo de objeto que a arte apreende, é uma resposta à
questão, "o que é mimesis?"62. E essa análise é feita com base em um tipo de
investigação habitual para o Sócrates platônico: para investigar o que seja a mimesis, ele
começa com um argumento que eles sempre usam, que estão acostumados a usar:
eijwquiva" meqovdou, o método habitual. A frase que resume o argumento é a seguinte:
“Nós temos o hábito de colocar alguma idéia única para cada um dos muitos, aos quais
conferimos o mesmo nome63.” Gláucon responde que conhece esse tipo de
procedimento e, mesmo assim, Sócrates passa a expô-lo. Não é o lugar, aqui, para
analisarmos detalhadamente o que seria esse método, o uso da teoria das idéias, mas
certas linhas gerais são necessárias para compreendermos o argumento como um todo.
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Vamos seguir a própria descrição de Sócrates nesse trecho.


Quando falamos, por exemplo, que existem diversas camas (klinai) e mesas
(trapedzai) de diversos tipos e tamanhos, estamos concordando em que só há um tipo de
idéia (eidos ou idea64) para cada uma das duas, uma idéia que engloba todas as mesas,
outra, todas as camas. O artesão, demiourgos, ao fazê-las, contempla as suas idéias, mas
não produz (demiourgei) ele mesmo as próprias idéias. O artesão não faz a cama que é,
mas faz uma cama qualquer65. É interessante perceber como a ontologia aqui é montada:
a partir de uma característica da linguagem – o fato de haver apenas um nome único que
designa diversos objetos – uma entidade é "descoberta", a forma, a idéia, a partir da qual
são nomeadas as coisas que dela participam.
Haveria, ainda, um outro artesão que produziria todas as coisas feitas por todos os
artesãos: como com um espelho podemos ser capazes de produzir o sol, também o
pintor (dzographos) pode (re-) produzir todas as coisas visíveis. Gláucon vai ressaltar
que tais produtos são apenas aparências (phainomena) e não o ser com verdade (ouj

61
De acordo com Shorey, na nota de sua tradução para a edição da Loeb, esse termo, pharmakon, é a base
da visão de Plutarco sobre o papel da literatura na educação, cf. Quomodo adolescens poetas audire
debeat 15c.
62
Mivmhsin o{lw" e[coi a[n moi eijpei'n o{ tiv pot v ejstivn; Você poderia me dizer em geral o que é a
mimesis?, 595c.
63
ei\do" gavr pouv ti e}n e{kaston eijwqv amen tivqesqai peri; e{kasta ta; polla;, oi|" taujto;n o[noma
ejpifevromen.
64
Sócrates parece usar esses dois termos indiscriminadamente.
65
ouj to; ei\do" poiei', o} dhv famen ei\nai o} e[sti klivnh, ajlla; klivnhn tinav.
45

mevntoi o[nta gev pou th/' ajlhqeiva)/ . A arte da cópia, a mimesis, copia as coisas que
"existem" no mundo sensível e que, por sua vez, já são cópias dos verdadeiros
existentes. Esses verdadeiros existentes seriam feitos pelo deus e, assim, haveria três
camas: a da natureza, que deus fez, a outra, que o carpinteiro faz, e a terceira, que o
pintor faz. Sem entrarmos nos detalhes e complexidades dos argumentos a favor da
existência da "cama original"66, é importante ressaltarmos que a cama do homem
mimético, o que copia a cópia, é três vezes separada da natureza e, por isso, destituída
de verdade. Sócrates vai mais adiante e diz que o pintor ainda imita apenas um perfil, ou
o ponto de vista da cama a partir do qual vê a cama, e, por isso, ele estaria ainda
imitando apenas a sua aparência e não como a cama é. Sócrates termina por ampliar os
argumentos para que eles valham não apenas para o pintor, que era seu exemplo
principal, mas também para os tragediógrafos e todos os poetas em geral. Ao fim, ele
diz que é porque os imitadores não têm acesso à verdade das coisas elas mesmas que
eles podem apresentar "imagens" de todas as coisas, parecendo ter muito conhecimento.
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O poder de "falar sobre todas as coisas", poder muito parecido com o que os próprios
sofistas afirmavam possuir, vai ser indício na arte de que ela apenas copia a imagem do
ser e, por isso, é duplamente apartada da verdade.
A partir disso, Sócrates afirma que, se um homem nos chega dizendo saber sobre
todas as coisas, ele certamente está apregoando que nós não sabemos distinguir entre o
que é conhecimento, ignorância e imitação (598d), pois, caso saibamos, nunca
acreditaríamos nele: caso conhecêssemos a real natureza da imitação e da coisa imitada,
teríamos o antídoto, o pharmakon, contra o enfeitiçamento da poesia. Veremos mais à
frente que o que realmente precisaríamos para nos "proteger" do feitiço da poesia é um
contra-feitiço, o logos. Como vamos afirmar da retórica, ao lidarmos com os diálogos
Fedro e Górgias, seria interessante, apesar de não o realizarmos aqui, um estudo mais
aprofundado do linguajar da magia relacionado com a poesia, para descrevermos qual é
seu o poder.
Como já dissemos, não precisamos penetrar nos detalhes dos argumentos da teoria
das idéias aqui apresentados, apesar de certamente terem muitos aspectos e problemas.
Podemos salientar, no entanto, que, em meio a toda essa crítica, Sócrates não está
diminuindo o poder persuasivo da arte e, conseqüentemente, o seu poder de educação.

66
Há aqui, também, argumentos que defendem a necessidade de haver uma única idéia e que não haja
muitas idéias acerca de um conjunto de objetos com o mesmo nome. Enfim, trata-se de mais um trecho
em que toda a complexidade da noção de forma é apresentada.
46

Retomando a distinção que já adotamos desde o início dessa análise da relação de Platão
com os poetas67, de novo aqui, o que Sócrates está criticando é aquilo que a poesia
ensina e não o modo como ela transmite. Toda essa longa exposição sobre a falsidade
da poesia imitativa não está criticando o fato de a poesia educar o homem com a
conseqüência de que ele viva o que está sendo transmitido, em verdade, Platão nem trata
aqui sobre isso. Ora, a crítica incide sobre a capacidade de a arte relatar a verdade
(ajlhvqeia) e o ser (o[n) da coisa, e não sobre o poder que ela tem de fazer com que os
homens acreditem no que ela diz e, mais ainda, vivam a partir do mundo que é
apresentado por ela. Em verdade, é exatamente porque o poder de convencimento da
poesia é tão forte, que Sócrates vai tomar o cuidado de fazer essa crítica no final de seu
diálogo de 10 livros. A educação que vai fazer com que o homem viva a partir dela,
agindo em um conjunto de crenças apresentado, deve ser feita com o crivo da filosofia
e, por isso, a filosofia vai insistir para que a poesia escreva de acordo com o que ela
ditar. A transformação espiritual promovida pela poesia será necessária em uma cidade
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onde a filosofia tem um papel de educar para a vida e não um papel de pesquisadores de
gabinete construindo teorias insuladas da vida pessoal de cada pesquisador. A proposta
desta tese, de que há uma aproximação da filosofia platônica com um aspecto da poesia,
isto é, de que ambas são psicagogia e, assim, ensinam um modo de vida, não vai de
encontro às críticas apresentadas nessa primeira parte do trecho que investigamos, a
análise epistemológica da arte imitativa do livro X da República.
Seguindo o texto da República, temos, na segunda parte desse trecho, que vai de
598d até 601b, argumentos contra a autoridade de Homero a partir de fatos concretos
que ele deveria ter deixado nas cidades por onde passou. O argumento principal no qual
essa crítica é baseada diz que se alguém conhece o original daquilo que imita, muito
mais estaria propenso a praticar esse original do que apenas imitá-lo. “Mas se alguém,
penso eu, conhecesse verdadeiramente as coisas que imita, muito mais ele se esforçaria
nas obras do que nas imitações, e realizaria muitas obras belas, deixando memórias de si
mesmo, e desejaria mais ser elogiado do que elogiar.”68 De novo, não nos interessa
entrar nos méritos e deméritos dos argumentos levantados contra Homero, já que ele
não teria nenhuma obra real para apresentar como defesa de seu real conhecimento do

67
“Um aspecto da poesia é aquilo que ela ensina, i.e., o conteúdo do que ela passa, as lições que ela
transmite, o tipo de vida que ela exemplifica e ao qual são exortados os seus participantes, ouvintes e
atores. Outro aspecto é o modo pelo qual ela transmite esse conteúdo, i.e., a identificação, o prazer e a
comoção que transformam as almas dos participantes nos eventos de poesia.”
68
599b
47

que imitava, mas apenas queremos salientar novamente que o real intento de Platão é
abalar a tremenda confiança que teriam os gregos de sua época na poesia de Homero.
Ao fim desses argumentos contra o saber homérico, em 601a, Sócrates apresenta,
como em uma conclusão69, uma analogia entre a pintura e a poesia. A pintura, diria
Sócrates, com suas cores e técnicas de imitação, apresenta um ferreiro, por exemplo, em
sua completa perfeição, sem saber de nada sobre a arte do ferreiro, enganando através
de cores e formas àqueles que não têm conhecimento do que é um verdadeiro ferreiro.
Vejamos o que Sócrates fala então da poesia:

“Dessa forma, penso, também dizemos que o poeta lança, nas palavras e
verbos, as cores das mais diferentes atividades (tekhnai), não sabendo ele próprio
nada mais que imitar, de modo a parecer, para os outros que vêem somente através
das palavras, falar coisas muito corretas, em métrica, ritmo e melodias, mesmo
falando sobre o ferreiro ou sobre o general, ou qualquer outro. Tanto é o grande
feitiço (megavlhn tina; khvlhsin) que os poetas têm por natureza. Mas os próprios
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ditos dos poetas por si mesmos, após serem despidos da cor musical (tw'n th'"
mousikh'" crwmavtwn), acredito que você saiba como eles se mostram. Eu pelo
menos sei, disse ele. Não se parecem belos, eu disse, como as faces do jovens ‘em
flor’ que, quando a ‘primavera’ os abandona, vemos não serem verdadeiramente
70
belos?”

Temos aqui alguns pontos interessantes. Sócrates aponta para o defeito que jaz por
detrás da beleza dos poemas: eles não têm fundamentos sólidos, mas se apóiam em
elementos que podem enfeitiçar os ouvintes. De novo, a crítica aqui de Sócrates não
incide exatamente sobre a utilização ou não de elementos de convencimento, mas do
para que a poesia está convencendo, do conteúdo sobre o qual discorre a poesia. Ele
pretende mostrar que o poder de convencimento da poesia não está no fato de ela estar
apresentando puramente a verdade sobre as coisas, mas reside em certo poder mágico
que ela possui. O fato de a poesia convencer plenamente não lhe confere a posse
absoluta da verdade; antes temos que saber qual a razão de a poesia poder falar sobre
tudo e conseguir convencer a multidão. A "música" tem certos elementos convincentes
que fazem com que aquilo que é apresentado passe por ser a verdade sobre o objeto

69
Não se trata aqui da conclusão desse trecho da crítica à poesia como um todo, que somente virá em
607b, mas apenas do que foi dito sobre a epistemologia da arte.
70
601a-b
48

copiado e, conseqüentemente, o poeta passe por ser sábio sobre o que discorre. Sócrates
está criticando a falta de fundamento, de conhecimento real das coisas sobre as quais os
poetas discorriam, mas não está criticando o poder de persuasão poético em si mesmo.
Sócrates não está dizendo que não devemos de forma alguma utilizar tais elementos
convincentes, muito menos ainda está dizendo que o verdadeiro convencimento não
deve persuadir totalmente o homem, como a poesia convence. Ao criticar o poeta por se
apresentar como quem conhece todas as coisas, utilizando um método específico de
persuasão que não se apóia necessariamente na verdade, Sócrates não está dizendo que,
ao serem educados, os homens não podem ser totalmente transformados pelo poder do
educador. Pelo contrário, a filosofia está querendo ocupar o lugar que pertencia apenas
aos poetas e sofistas, pois esses sim possuíam o poder de transformar as vidas dos
homens e conduzi-los a serem de tal ou tal modo. O problema da poesia não é ela
enfeitiçar os seus ouvintes, mas o fato de que tal feitiço não está fundado na verdadeira
natureza das coisas. A correta investigação sobre as coisas, a filosofia, se quiser
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transmitir a verdade de modo autêntico, deverá convencer tanto ou mais do que a


poesia, e é isso de que se trata aqui na presente tese: a filosofia pensada por Platão não
prescinde da força persuasiva que transforma a alma humana, força essa presente na
poesia e chamada de psicagogia.
Os elementos que Sócrates está chamando de cor da "música", tw'n th'" mousikh'"
crwmavtwn, são aqueles mesmos que já foram investigados nos livros II e III, métrica,
ritmo e melodias. Nós já vimos que está implícito neles certa escolha ética e que, por
isso, é necessária uma supervisão para descobrirmos qual seria o caráter desses
elementos que seriam aceitos na cidade ideal. Aqui, no entanto, eles aparecem como
que desconectados do conteúdo que é transmitido pelo poema, e mostram que têm a
capacidade de enfeitiçar o ouvinte de modo a fazer crescer todo um comportamento
perante a realidade. Ora, ao criticar a "cor da música", Sócrates não está dizendo que ela
não deve estar presente nas manifestações sobre os assuntos mais importantes dos
homens, mas sim que ela deve estar embasada corretamente, o que já eliminará alguns
tipos de ritmos, métricas e melodias. Ele está mostrando que a beleza do jovem, que
tanto enfeitiçava os gregos, deve estar fundamentada em bases sólidas para que
realmente possamos deixar crescer em nós o amor: uma alma que possa se tornar
virtuosa. Também os discursos devem ser belos, com ritmos e melodias apropriadas,
mas que tal beleza não nos ludibrie em relação àquilo que é eticamente superior.
Sócrates não está defendendo o absurdo que somente devem ser amados os jovens que
49

não forem belos, mas sim que a beleza do jovem deve ser bem fundamentada: assim
também devem ser os discursos, belos a tal ponto de nos enfeitiçar, mas bem
fundamentados, para que possamos amá-los de modo a nos engrandecer.
Já tratamos, então, de dois quartos desse trecho do livro X que critica a poesia: da
análise epistemológica da arte e da crítica a Homero. Vale lembrar que estamos aqui
descrevendo a posição de Platão frente à poesia para que possamos esclarecer sobre o
que incide a sua crítica, de modo a defendermos a tese de que deve haver na filosofia
uma persuasão, tal qual ocorria na tragédia e na poesia em geral, a saber, deve haver
uma psicagogia na filosofia para que ela transmita seu conhecimento de modo efetivo.
Em 601b-602b, no que chamamos de terceira parte desse trecho, Sócrates procede à
nova investigação acerca da arte e seu poder imitativo, realçando novamente pontos que
indicam o afastamento do saber poético frente à verdade do real. Apresenta três tipos de
saberes: o saber daquele que utiliza o objeto, o daquele que faz o objeto, e o daquele
que imita o objeto. O primeiro terá o verdadeiro conhecimento, episteme, o segundo
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terá a correta opinião, orthos doksa, já o terceiro, nosso poeta, não terá nenhum dos dois
conhecimentos consagrados pelas investigações da República71. Novamente, não há
nenhum sinal de crítica sobre o modo de persuasão da poesia, mas sim sobre o conteúdo
de que ela trata.
A próxima parte, a que vai de 602b até 605c e trata, entre outras coisas, sobre a
parte da alma à qual se dirige o mimético, é relevante para nossa tese pois vai mostrar
indiretamente que há uma função apropriada para a poesia mimética. Veremos que ela
vai se dirigir eminentemente para as partes desejante e irascível da alma, e, isto posto,
abre-nos o caminho para uma interpretação possível das próprias passagens poéticas dos
diálogos: os mitos platônicos se dirigem às partes inferiores da alma e têm a função de
harmonizá-las para que o logistikon possa governar soberanamente72.
A passagem 601c resume o que vem sendo dito com a seguinte frase: “Por Zeus,
eu disse, então, isto de ‘imitar’ se refere ao que é três vezes (peri; trivton) separado da
verdade?” Com a resposta positiva do interlocutor, Sócrates continua, “Então, em
relação a que tipo (prov" poi'ovn ti) de elemento no homem se volta o seu poder e sua
função?” Como salienta Shorey em sua tradução na Loeb em uma nota relativa a essa

71
601-602a
72
Um excelente livro que conta a história dos estudiosos que analisam os mitos em Platão é MOOR, Kent
F. Platonic Myth. Washington: University Press of America, 1982. O texto que descreveria os mitos se
comunicando com as partes não racionais da alma é EDELSTEIN, L. “The function of Myth in Plato´s
Philosophy” in Journal of the History of Ideas. 10 (1949), p.463-481.
50

passagem, a troca do ‘peri’ pelo ‘pros’ marca a mudança do rumo da investigação que
agora se volta para a parte da alma à qual a poesia mimética se dirige.
Pode-se ver também, nesse trecho, que Sócrates está desferindo um ataque contra
a autoridade da poesia, apresentando argumentos que a afastam do que é verdadeiro e
sensato. A comparação da poesia se dá novamente com a pintura, apresentando
primeiro os aspectos enganadores da visão. A pintura se assemelha com a magia,
goeteia, e com malabarismos ou feitiçaria, thaumatopoiia73, pois ela explora as
fragilidades da visão para produzir ilusões. Sócrates exemplifica tais fragilidades com
as ilusões de ótica, como ver um pedaço de madeira torto dentro d'água. Contra essas
ilusões, teríamos o poder de medição do logistikon, a parte racional da alma. Como já
foi apresentado na investigação anterior acerca das partes da alma, no livro IV, se
houver dois fenômenos anímicos contraditórios, estaremos necessariamente lidando
com duas partes da alma. Assim, com a medição, resultado da investigação do
logistikon, contradizendo-se com a visão, teríamos a indicação de que há um conflito de
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partes da alma, e Platão se posiciona a favor da parte que calcula. Temos, então, que a
arte mimética produz efeitos que não são reais, e se relaciona com partes da alma menos
valorosas do que a do logistikon. Conclui-se, assim, que a arte mimética, da qual a
pintura e a poesia fazem parte, é “uma (atividade) inferior que se relaciona com partes
inferiores (da alma) e produz efeitos inferiores”74.
O mesmo acontece em relação ao ouvido e, conseqüentemente, também em
relação aos efeitos da poesia75. Sócrates não vai se satisfazer com o resultado da
analogia com a pintura, mas vai investigar a poesia em si mesma para mostrar essas
mesmas conseqüências. Começa com uma definição de poesia mimética76: “A poesia
mimética imita as ações humanas feitas sob compulsão ou voluntariamente, e a partir
dessas ações, os homens julgam que se saíram bem ou mal e, em tudo isso, ou se
rejubilam ou se lamentam.”77. Nesses momentos, a alma humana experimenta impulsos
contraditórios, assim como em relação à pintura e à medição. Sócrates apresenta um
exemplo, dizendo que em relação a uma perda, o homem sensato não vai se entregar
muito ao lamento, apesar de poder haver nele um forte impulso para o lamento: trata-se
73
É interessante ressaltarmos a etimologia dessa palavra: thaûma + poiéo, fazer, produzir espantos-
admirações. Em verdade, tanto Platão, no Teeteto, quanto Aristóteles, na Metafísica, definem o thauma,
como a arkhe da filosofia.
74
Fauvla a[ra fauvlw/ xuggignomevnh fau'la genna'/ hJ mimhtikhv
75
603b
76
Shorey, na tradução da Loeb, compara essa definição com dois trechos nas Leis, 655d e 814e, e
também com Aristóteles, Poética, 1448 a 1-2.
77
603c
51

aqui de impulsos contraditórios, o que restringe o lamento, proveniente do logistikon, e


o que quer se lamentar, proveniente de uma parte irracional, alogistikos78.
O problema, no entanto, reside no fato de as emoções irracionais, sem a devida
continência, serem mais múltiplas e mais fáceis para se copiar, gerando assim mais
poemas que imitariam situações de lamento e de medo do que situações que
estimulassem o logistikon e seus ditames ordeiros e virtuosos. Sócrates vai afirmar que,
para ganhar os favores de uma multidão em um teatro, é muito mais vantajoso imitar
ações que levem as partes irracionais da alma a se conturbarem do que procurar imitar a
serenidade e a compostura do logistikon. No entanto, ele não diz que é impossível tal
imitação adequada, apenas que é muito difícil e que não é provável, caso o objetivo da
representação seja a vitória nas típicas festas gregas.
Por fim, em 605b-c, Sócrates completa a analogia com o pintor, afirmando
também para o poeta que esse se reporta a elementos inferiores na alma e que produz
poemas apartados do real. Apresenta, então, a famosa proibição da permanência do
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poeta em uma cidade bem ordenada, eujnomei'sqai povlin, pois ele instaura na alma uma
constituição viciosa, kakh;n politeivan,
É lícito afirmar, no entanto, que Sócrates deixa espaço aqui para uma poesia que
produziria efeitos ordeiros nas partes inferiores da alma e na medida em que tratasse de
assuntos relativos ao logistikon, certamente de pouca popularidade frente à massa, essa
poesia também se reportaria ao que há de mais elevado na alma, educando-a e forjando
nela virtudes nobres. Podemos supor, por exemplo, que o Timeu79, com todo o seu
discurso verossímil, eikon, seja um tipo de "poesia mimética", que imita o kosmos, mas
que também estimula o logistikon: certamente não seria esse o tipo de poesia que
ganharia o concurso que Agatão ganha no dia anterior ao Banquete. Poderíamos
também supor que o mito de Er, ao final da República, aparecendo de modo gritante
logo após tamanha crítica aos discursos poéticos, seja um tipo de "poesia" que estimula
as partes alogistikoi de forma a harmonizá-las e criar nelas a expectativa apropriada
perante a morte. O que queremos afirmar aqui, novamente, é que mesmo a crítica à
poesia e à autoridade conferida a ela pela sociedade grega da época de Platão sendo tão
radical como aqui no livro X, não podemos dizer que todos os aspectos dela sejam
descartados na correta educação de um filósofo. A poesia tem um poder de

78
604a Sócrates aqui não especifica a parte que produz o impulso de se lamentar, se seria do
epithymetikon ou do thymoeides, mas com certeza não seria proveniente do logistikon.
79
Cf. Timeu, 29d, to;n eijkovta mu'qon.
52

convencimento e de relacionamento com as partes inferiores da alma que são


importantes para uma filosofia que se quer um ensinamento de uma forma de viver. A
filosofia se pretende tão psicagogia quanto a poesia.
Não se trata aqui de aceitar ou recusar o mundo ético escolhido pelo Platão da
República; seria ridículo querer defender, frente às afirmações desse trecho, que em
algum discurso imaginário de suas "lições orais", por exemplo, Platão teria em verdade
defendido a poesia homérica em seu conjunto. Platão está aqui criticando claramente
certos aspectos da poesia grega e também a forma como ela termina por deixar a alma
do povo grego. O que nos importa salientar é que a filosofia se baseia em uma condução
da alma total de quem a empreende, condução certamente apoiada nos ditames da razão,
mas que, se esses ditames também não transformarem a vida do aprendiz de filosofia,
não alcançariam o seu objetivo principal. A crítica à poesia não pode ser confundida
com uma crítica à vida necessária a qualquer investigação filosófica. A filosofia trata
dos temas centrais à vida e de forma alguma ela pode se tornar um mero manuseio de
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argumentos, prescindindo de um envolvimento vital com suas investigações: seu objeto


principal era a transformação da vida, e sem alcançar esse objeto, ela não poderia levar
o nome que leva, amor à sabedoria. Essa condução da vida, a psicagogia, é a
experiência vital necessária à compreensão efetiva da filosofia, sempre respeitando os
ditames da razão, respeito esse que não ocorre na poesia, apesar dessa também poder
produzir uma psicagogia.
No trecho que denominamos de quinta parte, 605c até 607a, Sócrates apresenta a
principal acusação contra a poesia, mevgiston kathgorhvkamen. É que o seu poder de
corrupção, fora alguns poucos exemplos, é de toda forma terrível. Aqui, Sócrates vai
finalmente tratar do poder persuasivo do poeta, exemplificando-o da seguinte maneira.

“Os melhores de nós, ouvindo Homero ou algum outro dos tragediógrafos


imitando algum dos heróis em sofrimento, e alongando o seu grande discurso em
seus lamentos, ou cantando e batendo em seu peito, você sabe que nos alegramos e
nos abandonamos nós mesmos a seguir, com simpatia (ksympaskhontes) e zelo, e
nós louvamos como um bom poeta aquele que mais fortemente nos dispuser dessa
80
forma.”

80
605c-d
53

O desenvolvimento do argumento aqui diz que, se na vida cotidiana, ao sentirmos


tais impulsos de nos lamentar, nós nos restringimos e não nos permitimos esse
abandono que o poeta relata sobre o herói. Decorre daí que deveríamos também criticar
o poeta e o herói, pois, caso contrário, estaríamos em contradição. O argumento aqui
ainda diz que se permitimos sentir prazer no lamento do sofrimento alheio, estamos
alimentando em nós mesmos as partes que têm o impulso de se lamentar, tornando-se
assim mais difícil restringi-las. Sócrates vai descrevendo como os prazeres, risos, etc.,
que temos nas tragédias vão nutrindo em nós impulsos ridículos e condenáveis. Os
espetáculos terminam por tornar essas ações, desejos e dores os governantes, e não os
governados, como deveriam ser.
Esse trecho é importante pois apresenta o modo pelo qual a poesia educa e
transmite seu conhecimento. A palavra principal aqui é "sentir, experimentar junto",
ksympaskho. Trata-se aqui, como nos livros II e III, de um princípio de identificação
entre os homens e a história narrada, como se a partir de um acompanhamento natural
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das ações ali desenroladas, nós passássemos a vivê-las e, assim, aprendêssemos a ser
como elas são. As suas experiências passam a ser nossas experiências, aprendemos de
modo radical e vivemos o que é transmitido. Sócrates está mostrando o poder de
persuasão que tem a poesia, e aqui também poderíamos imaginar uma poesia que
enaltecesse o homem a uma vida virtuosa, e que certamente estaria presente na
educação digna do filósofo. Apresentando a questão de modo mais radical ainda,
poderemos dizer que a mesma experiência deve acontecer na filosofia, se ela se
pretende uma educação para a vida. Deve haver uma identificação entre os
investigadores e a investigação para que ela se realize de modo radical e concreto: os
filósofos devem ser ksympaskhontes, co-experimentadores, ou se quisermos, eles devem
passar por uma experiência que seja tão radical quanto a investigação exige: ao se tratar
da morte, devem de alguma forma experimentar a presença da morte; ao se tratar do
cosmos, devem de alguma forma se ver frente à sua própria noção de cosmos; ao se
tratar como se deve viver, devem se ver frente ao modo como eles mesmos estão
vivendo.
O fundamento da psicagogia poética e filosófica é uma experiência em conjunto
com o que se está narrando ou investigando. Sem essa experiência em conjunto,
baseada em uma identificação entre os sujeitos do discurso e o discurso não há uma
educação efetiva e consistente da alma humana.
54

Finalmente, em 607a, Sócrates, com todas as letras, não permite a entrada da


poesia, salvo os hinos aos deuses e aquela que louvar os homens bons81. Vê-se que não
se pode dizer sem pecar por imprecisão que Platão expulsa os poetas e a poesia de sua
cidade ideal: há sim espaço para a poesia, especialmente para o poder de persuasão que
ela tem. Sócrates ainda comenta, em um trecho de conclusão a essa crítica aos poetas no
livro X, que a briga entre a filosofia e a poesia é antiga, e que ele está à espera de
alguém que a defenda, pois seu amor pela poesia é grande.

"E, igualmente, afirmemos o seguinte: que se a mimesis e a poética do prazer


tiverem algum argumento para nos falar – <provando> que é necessário que ela
esteja na cidade bem governada, nós a receberíamos com prazer. Pois nós nos
conhecemos quando estamos sob o seu feitiço [...] Não és também tu enfeitiçado
por ela especialmente quando a contemplas através de Homero? – Muito! – E não a
permitiríamos o retorno caso ela se defendesse em metro ou em outro estilo?"
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Não é sem pena que Sócrates afirma a expulsão de Homero de sua cidade ideal. E
mais ainda, essas últimas palavras parecem mostrar que Sócrates queria, em verdade,
incitar a discussão sobre os benefícios ou malefícios da poesia para a cidade. De acordo
com Shorey, Plutarco, em Quomodo adolescens, Aristóteles, na Poética, e Sidney, em
Defense of poesie, aceitaram esse desafio, e procuram de todas as formas apresentar
razões para a permanência da poesia em uma cidade ideal. Mas, enquanto não aparecer
ninguém com argumentos convincentes o suficiente para mostrar a importância e a boa
função dessa poesia grega para uma cidade feliz, Sócrates vai continuar utilizando o
antifeitiço que é o discurso aqui proferido, analisando e criticando a poesia. Denominar
toda essa análise crítica à poesia de "antifeitiço", ou mesmo "feitiço", ainda nos mostra
a importância da vida que devem ter os argumentos filosóficos, pois eles devem
enfeitiçar tanto ou até mais do que a poesia, e não podemos negar a força vital que está
presente em um argumento que se diz enfeitiçar os ouvintes. Trata-se de encontrar um
rival para a força psicagógica que a poesia tinha na Grécia, um rival à altura de tamanha
vitalidade ética, como eram as encenações poéticas: esse é o papel que a filosofia deve
ocupar na cidade ideal.

81
o{son movnon u{mnou" qeoi'" kai; ejgkwvmia toi'" ajgaqoi'" poihvsew" paradektevon eij" povlin., é necessário
permitir a poesia na cidade somente enquanto ela for hinos aos deuses e encômios aos heróis.
55

Terminamos, assim, a análise dos trechos em que Platão lida explicitamente com a
poesia e os poetas82. Ficamos com o fato de haver, apesar de tamanhas críticas, um
espaço legítimo para a poesia na educação dos filósofos e também em uma cidade ideal,
mas o que mais nos interessava era salientar que Platão não criticava o caráter vital da
poesia grega e afirmar, conseqüentemente, que aos argumentos filosóficos também era
necessária tal vitalidade, concluindo que tanto a poesia quanto a filosofia se pretendem
uma psicagogia.
Certo trecho da República, porém, chama-nos a atenção devido à sua peculiar
afirmação sobre os filósofos, de eles serem amantes de espetáculos da verdade. Vamos
nos ater a ele agora.

1.3 O AMANTE DE ESPETÁCULOS – República 475e – 476b

A expulsão dos poetas da república ideal platônica no livro X83 da República é


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tão famosa que é fácil não se lembrar, como acabamos de mostrar, da função central que
os mitos e a música que os acompanha têm na educação proposta na República II e III.
Está bem claro que Sócrates promove a censura do que pode ser apresentado
poeticamente na cidade ideal, mas de forma alguma descarta toda manifestação poética.
Devemos lembrar que a primeira educação dos guardiães é composta de gymnastike
para o corpo e mousike para a alma. Meu objetivo aqui não é contrário ao da tradição
filosófica. O que pretendo é apenas salientar a importância do modo de persuasão da
mousike na sociedade grega aos olhos de Platão, para mostrar que é necessária uma
experiência pessoal transformadora para que a ontologia platônica seja compreendida.
Isso se tornará evidente na seguinte passagem84 do livro V da República.

"'Não chamamos, com justiça, de filósofo aquele que facilmente deseja provar de
todo conhecimento e vai alegremente aprender e nunca se satisfaz? Ou não?' E
então Gláucon responde: 'Mas para você, então, serão muitos e estranhos os desse

82
Para citar algumas indicações bibliográficas importantes sobre esse tema, temos GOLDSCHMIDT,
Victor. Question Platoniciennes. J. Vrin: Paris, 1970. MURDOCH, Iris. The fire and the sun: why Plato
banished the artists. Oxford University Press: Oxford, 1977. TATE, J. “Imitation in Plato’s Republic” in
Classical Quarterly. Oxford, v. 22, pp. 16-23, 1928. GRIMALDI, Nicolas. “Le statut de l’art chez
Platon.” In Révue des études grecque. Paris, v. 93, p. 25-41, 1980. COLIN, G. “Platon et la poésie.” In
Revue des études grecque. Paris, v. XLI, n 185, p. 1-72, 1923. FAVORITO, M. O. Arte e Mimesis em
Platão, dissertação de mestrado não publicada, Pontifícia Universidade Católica: Rio de Janeiro, 1998.
83
605b
84
475e – 476b
56

tipo. Pois todos os amantes de espetáculos (philotheamones) me parecem ser assim,


por se alegrarem em conhecer qualquer coisa. E seria estranhíssimo colocar os que
gostam de ouvir discussões (philekooi) entre os filósofos, pois eles não querem ir
voluntariamente para conversas e estudos sérios. Como tendo alugado os ouvidos,
ouvem todos os coros e correm atrás das festas dionisíacas, e não perdem nem as
que são nas cidades nem as do campo. E nós iremos chamar todos estes e os outros
que aprendem artes menores e coisas desse tipo de filósofos?' 'De forma alguma',
eu disse, 'mas esses são semelhantes aos filósofos.' 'E como você diz que são os
verdadeiros filósofos?' E eu disse: 'São os amantes de espetáculos (philotheamones)
da verdade.'"

Nessa passagem, que chamaremos de "o amante de espetáculos", Platão faz uma
relação clara e explícita entre aqueles que assistem a espetáculos e cultivam festas
religiosas e os que se dedicam à dialética, os filósofos. Vamos contextualizar essa
passagem para entendermos a importância dessa relação entre filósofos e amantes de
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espetáculos.
A República muda claramente de tom ao fim do livro V. Até esse livro, Sócrates,
Gláucon e Adimanto estão construindo uma cidade ideal para descobrir onde estaria a
justiça nessa cidade, para então descobri-la no indivíduo, já que foi afirmada a isomorfia
entre cidade e indivíduo. Sócrates quer, por fim, descobrir se a vida do homem justo
seria mais digna e feliz que a do homem injusto. Após descrever grande parte da cidade,
a vida dos seus guardiães, as semelhanças e diferenças entre os homens e as mulheres, e
outros de seus aspectos, Gláucon pergunta se tal cidade teria possibilidade de existir.
Até então, Sócrates se esquivara de responder a essa pergunta, apresentando detalhes da
cidade, mas agora Gláucon o pressiona para tratar da existência dessa cidade ideal. Em
primeiro lugar85, Sócrates lembra que a construção da cidade ideal não foi feita para que
ela se realize no mundo material, mas sim como modelo de critério para nossa vida.
Buscou-se construir um paradigma ao qual recorrer para que possamos nos tornar o
melhor possível, tentando copiar o modelo. Encontramos, então, a analogia entre essa
primeira parte da República que constrói uma cidade ideal e uma pintura que retrataria o
mais belo homem possível. Tal pintura, como a construção da mais bela cidade, não
perderia o valor mesmo se esse homem nunca viesse a existir. Aqui temos a analogia
oposta àquela que aparece no livro X, pois lá a pintura é usada como exemplo daquilo

85
472b
57

que é distanciado duas vezes da verdade, já que ela copia o mundo sensível que, por sua
vez, é uma cópia do mundo inteligível. Aqui no livro V, a pintura é tratada como a
construção dialética (entre perguntas e respostas) da cidade ideal, isto é, como um
modelo a ser seguido que tem o seu valor na perfeição do que é narrado e não na sua
exeqüibilidade. Sócrates ainda explica o sentido que ele quer dar à sua construção
teórica da cidade ideal: as coisas que são realizadas no mundo concreto, no mundo
sensível, distanciam-se mais do real do que aquelas que são construídas na linguagem86.
Mesmo com todas as críticas a esse imperativo de examinar a exeqüibilidade da
cidade ideal, Sócrates vai tentar mostrar quais são os pré-requisitos para que uma cidade
seja a mais parecida possível com esse ideal. Aqui, então, apresenta-se a mais famosa
tese da República, a qual sustenta que uma cidade só seria parecida com a cidade ideal
se os filósofos governassem. Frente ao espanto de Gláucon e da conseqüente chuva de
reclamações que este e Sócrates já esperam do povo ateniense caso ele ouvisse tal
afirmação, Sócrates se propõe investigar a natureza do filósofo junto com Gláucon. Há,
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nesse trecho da República, uma guinada na investigação que se torna mais refinada,
abstrata, tratando de temas puramente filosóficos87. Realmente, a obra ganha densidade
filosófica e gravidade nas investigações, apresentando argumentos complexos e
analogias que dão o teor filosófico mais profundo desta obra. A partir dessa afirmação, a
de que os filósofos devem governar, aparecem as analogias do sol e da caverna, tão
marcantes e centrais na obra de Platão. Toda ontologia e epistemologia apresentadas na
passagem da "linha dividida" são também introduzidas pela problemática política deste
trecho do livro V.
Sócrates passa então a explicitar quem ele está dizendo que deve governar, isto
é, passa a esclarecer a natureza do filósofo. A primeira forma de apresentá-la88 será
através do desejo, analisando e definindo de uma forma geral a relação do homem que
deseja com seu objeto desejado89. Em primeiro lugar, o desejo sempre deseja a
totalidade do objeto, e não apenas parte, como se um amante amasse um jovem e não
amasse seu nariz torto, ou sua perna fina. Ao contrário, o amante, ao amar um jovem,

86
473a “Não é verdade que, na natureza das cosias, a execução se aproxima menos da verdade do que o
discurso (logos)?”
87
Não estamos aqui defendendo que os outros trechos não sejam filosóficos, mas a densidade dos livros
VI e VII nos parece clara a qualquer leitor.
88
474c
89
A importância da terminologia do amor e algumas de suas imbricações foram trabalhadas em nossa
dissertação de mestrado, PINHEIRO, M. R. O Amor e as Sutilezas do Discurso. Dissertação de
Mestrado, Departamento de Filosofia. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
1999.
58

ama todas as suas partes, tal é o efeito do feitiço que o amor causa no amante, deixando-
o totalmente ávido pelo seu objeto de amor90. Como é habitual com Sócrates nos
diálogos platônicos, ele começa apresentando exemplos daqueles que amam para
demonstrar que o mesmo deve acontecer no caso do filósofo. O filósofo torna-se mais
um entre os que amam, entre os que philein algo. Os philopaida, amantes de jovens,
amam seu objeto inteiramente, assim como os philoinoi, amantes de vinhos, assim como
os philotimoi, amantes de honra, também os philosophoi, amantes de sabedoria, desejam
de todas as formas aprender. Estão sempre ávidos pelo conhecimento e se entregam a
qualquer disciplina que os instrua em algo. Se algum homem tem repugnância pelo
aprendizado, este de forma alguma tem a natureza do filósofo.
Aqui entra a crítica de Gláucon, que achamos interessante transcrever
novamente para uma nova leitura, agora já com o contexto em mente.

"'Não chamamos, com justiça, de filósofo aquele que facilmente deseja provar de
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todo conhecimento e vai alegremente aprender e nunca se satisfaz? Ou não?' E


então Gláucon responde: 'Mas para você, então, serão muitos e estranhos os deste
tipo. Pois todos os amantes de espetáculos (philotheamones) me parecem ser deste
tipo, por se alegrarem em conhecer qualquer coisa. E seria estranhíssimo colocar os
que gostam de ouvir discussões (phil-ekooi) entre os filósofos, pois eles não
querem ir voluntariamente para conversas e estudos sérios. Como tendo alugado os
ouvidos, ouvem todos os coros e correm atrás das festas dionisíacas, e não perdem
nem as que são nas cidades nem as do campo. E nós iremos chamar todos estes e os
outros que aprendem artes menores e coisas desse tipo de filósofos?' 'De forma
alguma', eu disse, 'mas estes são semelhantes aos filósofos.' 'E como você diz que
são os verdadeiros filósofos?' E eu disse': 'São os amantes de espetáculos
(philotheamonas) da verdade.'"

Acredito que essa passagem resuma claramente a relação que Platão estabelece
entre a filosofia e as representações teatrais ou as festas religiosas da época. Em
primeiro lugar, é importante ressaltar a naturalidade com que Gláucon relaciona o
desejo por conhecer com o desejo de ir a espetáculos. Os espetáculos, as festas e a

90
As três palavras centrais usadas nesta passagem para descrever o desejar e o amar são phileo, erotao e
epithymeteo.
59

tragédia eram o lugar de educação da Grécia clássica91. É para lá que iam os cidadãos
ávidos por conhecer novas maneiras de encarar o real, ávidos por histórias que contam
os encontros e desencontros do homem e seu mundo. O filósofo é parecido com esses
que amam os espetáculos e suas cores, suas manifestações de diferentes emoções e de
diferentes acontecimentos tanto acerca das dores e alegrias da alma, quanto das ações
humanas e de regiões estranhas da Terra. No entanto, tais amantes de espetáculos
também não são exatamente os filósofos. Como descrever tal diferença e, por outro
lado, tal semelhança?
Quando Sócrates descreve aquele que ama aprender (philomathes), com todo
seu impulso e desejo de conhecer todo e qualquer saber e matéria do conhecimento,
Gláucon pensa que Sócrates está falando de amantes de espetáculos, ou de amantes de
ouvir discussões, ou até mesmo de homens que conhecem todas as técnicas pequenas.
A descrição do caráter do filósofo como o que deseja conhecer leva Gláucon a
concluir que qualquer pessoa que deseje conhecer qualquer informação, como o
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curioso, teria um caráter de filósofo. Essas três formas de homens que gostam de
aprender, o amante de espetáculos (philotheamon), o amante de ouvir discussões
(philekooi) e o que aprende qualquer pequena técnica (mathetikous tekhnydrion), no
entanto, não desejam um tipo de aprendizado que o filósofo deseja: aprender as coisas
elas mesmas, sem a comunhão com os sentidos. Aqui é a primeira vez na República
que entra a distinção entre mundo dos sentidos e mundo das coisas em si mesmas,
traços essenciais da tão famosa teoria das idéias. A distinção que é feita aqui,
especialmente quando Sócrates usa esses dois termos, amante de espetáculos,
philotheamon, e amante de ouvir discursos, philekoos, é entre aqueles que são
enamorados dos sentidos e aqueles que conseguem ir além dos sentidos, os que amam
o espetáculo da verdade, o espetáculo das coisas elas mesmas. Esses dois termos
remetem em seus sentidos etimológicos básicos, que são lembrados tacitamente, ao
amor pelos cinco sentidos, especialmente a visão (thea) e a audição (akoe), e, por isso,
o amor pelo conhecimento destes não vai além do mundo sensível. A entrada da teoria
das idéias auxilia Sócrates a diferenciar entre os filósofos e qualquer um que deseje
conhecer qualquer coisa, como os amantes do mundo sensível e também os que
cultivam as outras técnicas, como qualquer artesão, por exemplo.

91
Já tratamos desse tema. Cf. JAEGER, W. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo, Martins
Fontes, 1995, p. 292- 298.
60

Vamos ainda nos ater à diferença entre o amante de espetáculos, como as


tragédias e festas dionisíacas, e o filósofo. Devemos perceber em que medida o
filósofo é um amante de espetáculos e em que medida ele ultrapassa ainda esse em
vontade de conhecer. Em tais festas, há um poder de comoção e de educação
espiritual do povo que é semelhante ao que a filosofia se propõe e que o filósofo
deseja. O "conhecimento" que ocorre nas tragédias e festas não é uma mera absorção
de informações, mas o espírito dos participantes passa por uma transformação pessoal
que constrói uma forma de ver o mundo. O que Platão critica veementemente na
República sobre essas manifestações culturais não é o caráter persuasivo delas, que
molda a alma dos ouvintes, mas é o fato de elas não serem regradas pela verdade das
idéias, das coisas em si mesmas. O que importa aqui salientar é que mesmo com toda
a crítica que Platão faz ao teatro e aos épicos como o fundamento da educação grega,
ele louva a persuasão completa da alma que é feita através da representação poética.
Ele quer essa mesma persuasão completa da alma na filosofia, e aqui ela deve ser
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regrada pelo logos e pela contemplação das entidades em si mesmas, as idéias, as kata
tauton echon. A diferença entre os amantes dos vários espetáculos e do filósofo é que
este contempla o belo em si mesmo enquanto os outros se deleitam com os muitos
belos e não conhecem aquilo que é o realmente belo. Mesmo assim, há uma
semelhança entre o filósofo e o amante de espetáculos, e tal semelhança está em que
ambos têm sede de um tipo de conhecimento que transforme a forma de se ver o
mundo, que processe uma conversão da alma.
Outra passagem na qual Platão assinala o poder das tragédias e demais
ocasiões em que os homens sentam em conjunto é no livro VI, 492a. Sócrates está
aqui mostrando por que muitos homens que têm a natureza de serem filósofos são, na
prática, homens totalmente desregrados e sem virtude. O ponto é que os melhores
também têm o poder para serem os piores, e isso ocorre quando são mal nutridos92. É
a educação o ponto central para que essas almas não se desvirtuem do caminho do
verdadeiro. O primeiro exemplo de uma educação vigorosa e que molda a alma dos
jovens são os momentos em que o povo se reúne e delibera. Mais persuasivo que os
sofistas individuais são os momentos em que o povo senta em conjunto e ouve
discursos e assim aplaudem ou condenam atitudes. Nos campos de batalha, nas
assembléias e nos teatros, a multidão e seus valores são os grandes sofistas que

92
(...) a melhor natureza torna-se a pior com o alimento impróprio.” 491d.
61

moldam as almas dos jovens. A força persuasiva da massa é tão forte que ela é uma
das grandes causas da educação desviada que as almas filosóficas podem ter e assim
se transformarem nos mais terríveis tiranos.
Vê-se claramente que a educação filosófica, para Platão, não é algo que toca e
transforma apenas parte da alma, o entendimento racional, por exemplo. A filosofia
para Platão é uma forma de viver e, para tanto, ela deve moldar a alma, deve
transformar o modo de ser do seu discípulo, assim como o Grande Sofista93, a
multidão, transforma. De novo, Platão não está aqui condenando a transformação que
ocorre através do grande sofista, a multidão, pois é exatamente essa transformação
que deve ocorrer no jovem filósofo. Sua crítica é sobre o conteúdo do que é ali
ensinado.
Vimos que a experiência em grupo e especialmente a do amante de espetáculos é
lapidar para compreendermos que tipo de transformação é esperada no aprendiz de
filosofia para que se possa dizer que ele aprendeu filosofia. A partir de agora,
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analisaremos a noção de retórica em Platão e veremos como ela se relaciona com a


filosofia.

93
Esse termo, Grande Sofista é como Brimley chama o público e os momentos em que nós nos reunimos
em grupos e multidões. Essays, p.224, apud. SHOREY, Paul. Translation and notes on the Republic of
Plato. Cambridge: Harvard University Press, 1987 (Loeb Classical Library), vol. II, p.35.
Segundo Capítulo
A Retórica como Psicagogia

2.1. O GÓRGIAS E A NOÇÃO DE RETÓRICA

Certamente, a retórica e sua relação com a filosofia têm um papel essencial na


presente tese, pois trata-se aqui de mostrar com clareza que sem um correto
envolvimento do leitor ou ouvinte não pode haver transmissão rigorosa de
conhecimento filosófico. A retórica, ao lado de outros recursos, é também responsável
pelo envolvimento do leitor, ela pode contribuir para o acontecimento psicagógico e,
assim, para uma transmissão autêntica da filosofia. No entanto, a noção de retórica na
Grécia Clássica e sua relação com a filosofia são suficientemente problemáticas para,
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por si só, gerarem uma tese, e por isso nos limitaremos ao modo como a retórica aparece
em Platão. Os dois diálogos nos quais Platão discute mais profundamente a retórica são
o Fedro e o Górgias. Já que no desenvolvimento subseqüente trataremos com mais
vagar de tal discussão no Fedro, pois lá é citado o termo psykhagogia, termo essencial
aos dois primeiros capítulos, vamos começar por esclarecer a mesma discussão
apresentada no Górgias,
O diálogo Górgias se estrutura em 4 grandes partes: (1) a refutação de Górgias,
449c-461b, (2) a de Polo, 461b-481b, (3) a de Cálicles, 481b-505e, e, por fim, (4) o
diálogo de Sócrates consigo mesmo, 505e-527e. O Górgias começa como se fosse uma
investigação sobre a retórica, a suposta arte (tekhne) do orador Górgias, e apresenta uma
definição por analogia1, como veremos adiante, em 462b-466a, que não é suficiente
para que consideremos a arte do bem falar o tema central do diálogo. Logo após essa
definição em 466a, o diálogo passa a tratar da questão socrática por excelência,
pw'" biwtevon2, "como se deve viver?". Realmente, o tema central do Górgias é a
questão socrática e, mesmo no primeiro quarto do diálogo, no qual se trata
explicitamente de retórica, temos por meta a questão de como se deve viver. Sócrates
mesmo afirma claramente que a ignorância desta questão seria o que há de mais

1
A rigor, Sócrates não usa o termo "analogia", mas diz que falará como os geômetras, eijpei'n w{sper oiJ
gewmevtrai, 465c.
2
Górgias 492d5
63

vergonhoso, e o seu conhecimento, o que há de mais honroso3. Esse objeto maior do


diálogo já era salientado pelos neoplatônicos4. Por outro lado, não podemos dizer que o
tema da retórica é descartado ou irrelevante, pois ele retorna periodicamente até o fim
do diálogo. Como Dodds defende, os temas da retórica e da felicidade5 estão
intercalados no Górgias, mais ou menos como também se intercalam no Fedro os temas
do amor e da retórica6.
À primeira vista, especialmente se nos limitarmos à passagem em que Sócrates
define a retórica pela analogia com a justiça (dikaiosyne), a retórica parece ser relegada
às atividades sem valor para uma cidade justa e, conseqüentemente, para a filosofia. No
entanto, um olhar mais atento percebe que há um lugar autêntico para a retórica, não só
no caso de ela ter um fim – tornando-se uma arte (tekhne), em lugar de ser uma
atividade por rotina ou hábito (ejmpeiriva kai; tribhv) –, mas também por poder ser guiada
pelo bem e não pelo prazer. Ela é apresentada desta forma mais ao fim do diálogo, em
504e, 508b e 517a. Vamos esclarecer primeiramente a definição da retórica feita por
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Sócrates em 462b-466a, para então tratarmos dos outros trechos em que o filósofo lhe
restitui certa dignidade.
Como introdução à questão da retórica7, gostaríamos de lembrar o início do
diálogo, no qual já é marcada uma distinção entre retórica e dialética. Sócrates se
apresenta como querendo conversar, dialegesthai, e não ouvir as apresentações,
epideiksis, variadas e belas, polla kai kala, típicas dos discursos de Górgias. “Mas será
que ele gostaria de conversar conosco (dialecqh'nai hJmi'n)? (...) Que ele faça sua
apresentação (epideiksin) em outra oportunidade.”8 Logo temos a primeira intromissão
de Polo e também Sócrates mostrando uma primeira lição da diferença entre retórica e
dialética. A lição trata sobre a diferença entre falar o que algo é e falar sobre o seu
valor. Ao ser perguntado com qual nome se deveria chamar Górgias e qual seria sua arte

3
472c-d (...) peri; w|n eijdevnai te kavlliston mh; eijdevnai te ai[sciston: ”(...) acerca dos quais é o mais
honroso saber e não saber, o mais vergonhoso.” O fato de as refutações de Górgias estarem pautadas
sobre a personalidade de cada interlocutor, como defende tão bem Charles Kahn em seu artigo Drama
and dialectics in Plato´s Gorgias, é outro argumento que aponta para a questão ética, pos bioteon, como
se deve viver, ser a central do diálogo.
4
Cf. Dodds, Plato: Gorgias, introduction, p.1 Dodds também cita comentadores contemporâneos:
Wilamowitz Platon i. 234; Taylor Plato, the Man and his Work, 106; Festugière Contemplation et vie
contemplative selon Platon, 382; Pohlenz Als Platons werdezeit, 142, 151.
5
A questão da felicidade, eudaimonia, está claramente implícita na questão socrática.
6
Para um maior esclarecimento de como o diálogo é construído intercalando essas duas questões, retórica
e felicidade, ver introdução do Dodds, Plato: Gorgias.
7
Acreditamos que mais que meras introduções aos temas alheios aos diálogos, os trechos cênicos nos
fornecem chaves interpretativas e apresentam toda uma ambiência psíquica favorável ao que será tratado
no diálogo.
8
447c
64

(tekhne), Polo responde com um elogio, dizendo que a arte de Górgias é a melhor entre
todas. “Mas ninguém perguntou como seria a qualidade (poiva ti") da arte de Górgias,
mas apenas o que (ti") ela é e com que nome se deve chamar Górgias.”9 Sócrates
salienta para Górgias que Polo é mais versado na arte da retórica (retoriken) do que na
da conversa (dialegesthai), pois ele se preocupa mais com louvar do que com definir.
Ora, a retórica tem por hábito louvar, porque tem como objeto especialmente as disputas
jurídicas e o poder público, e não a verdade descoberta pela investigação pura. Já temos
desde o início do diálogo uma primeira diferenciação, que será elaborada mais à frente
(464d, e depois retomada em 500b, etc.), entre aqueles que buscam o bem e aqueles que
buscam prazer ou poder. A rigor, como veremos, a retórica será definida como uma
atividade que não visa o bem, mas sim o prazer. No entanto, há passagens do diálogo
nas quais a retórica é descrita como uma atividade que pode ter um fim correto e, por
meio desse fim, ser importante para a vida virtuosa. Veremos tais passagens após
vermos a definição da retórica.
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Em 462b, depois do elenkhos (ejlegcov")10 com Górgias, Polo assume o papel de


questionador e interroga Sócrates sobre o mesmo que este interrogava Górgias: que tipo
de arte é a retórica? Sócrates faz uma série de afirmações surpreendentes, a começar por
dizer que a retórica não é uma tekhne11, mas sim hábito e rotina (ejmpeiriva kai; tribhv),
uma espécie de experiência adquirida que visa produzir prazer e satisfação. Mais à
frente, é explicado que Sócrates só considera arte aquela atividade que puder dar razão
(logos) pelo que faz e assim souber as causas (aitiai) dos seus produtos. A culinária12,
exemplo logo apresentado em comparação com a retórica, seria também um a[logon
pra'gma, uma atividade sem logos, isto é, que não tem a capacidade de oferecer razões
que fundamentem sua atividade, mas produz suas guloseimas a partir de experiência
(empeiria), coragem e de uma aptidão natural para lidar com os homens. Essas duas,
retórica e culinária, fazem parte de um conjunto de atividades que não são tekhnai e
visam ao prazer: tal conjunto de atividades é denominado por kolakeia, termo que se
traduz por "adulação". Dodds13 salienta o sentido de repúdio moral contido nessa
palavra, e o nosso termo "puxa-saco" seria uma boa tradução para kolaks. Kolakeia será
9
449a
10
Elenkhos é todo o processo de refutação ou de teste de uma posição a partir de questionamentos sobre
os fundamentos, as implicações e decorrências dessa posição.
11
Surpreendente, especialmente por a retórica ser considerada a tekhne por excelência. Há a discussão se
o próprio Polo não haveria escrito um tratado intitulado tevcnh rJhtorikhv, ou tevcnh tw'n lovgwn. Esse tipo
de tratado era comum na Grécia dos séculos V e VI. Cf. Fedro 271c e Aristóteles, Retórica, 1354a12.
12
Opsopoiike palavra formada por opson, carne, e poieo, fazer.
13
Plato: Górgias, nota em 463b1.
65

utilizado mais à frente no diálogo, em sua aplicação política, como a atividade


oportunista que procura mais satisfazer as vontades do povo do que educá-lo.
A definição de retórica que Sócrates oferece logo a seguir14, "a retórica é um
simulacro de uma parte da política"15, inevitavelmente curta e obscura pela falta de um
esclarecimento prévio, vai fazer com que o próprio Górgias peça uma explicação, feita
por meio de um discurso longo (makrous logous), como Sócrates mesmo o chama. O
makros logos, proferido então por Sócrates, está fundado em duas distinções básicas,
aceitas sem contestações por Górgias: (1) a distinção entre alma e corpo e (2) a
distinção entre parecer (dokein) e ser (einai). Essa última distinção, baseada na noção de
bem-estar16 - faz-se a distinção de modo que ela se apresente como entre "aparente bem-
estar" e "verdadeiro bem-estar" –, é uma distinção fundamental em Platão, mas aqui no
Górgias ela vai nortear explicitamente apenas a discussão sobre retórica, apesar de
podermos percebê-la também na discussão sobre o pos bioteon, como se deve viver17.
Começa, então, uma verdadeira diairesis – uma distinção em classes com vistas
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a definições -, mesmo que de forma pouco explícita, pois Platão apenas elabora
explicitamente este método de definição em diálogos tardios como o Sofista. Essas duas
distinções são a base para oito atividades que serão apresentadas usando um recurso dos
geômetras, a proporção. Apresentaremos um quadro baseado no comentário de Dodds18
sobre o Górgias para esclarecer essa diairesis.

tekhne Alma Corpo


Politike Therapeia tou somatos
Regulativa Corretiva Regulativa Corretiva
Genuína

14
Górgias 464e.
15
e[sti ga;r hJ rJhtorikh; kata; to;n ejmo;n lovgon politikh'" morivou ei[dwlon.
16
Eueksian, eujexivan.
17
Nos dois elenkhos em que se discute mais claramente o pos bioteon, com Polo e Cálicles, essa distinção
entre ser e parecer é subentendida. Pode-se dizer que o paradoxo de Sócrates – por um lado, preferir ser
injustiçado a ser injusto e, por outro, preferir ser punido quando injusto a fugir da punição – convence
Polo (ou o deixa desnorteado) quando é demonstrado que a situação inversa parece ser boa, mas em
realidade não é. A vida regrada de Sócrates frente ao impulso desmedido de Cálicles por poder e prazer
pressupõe também a distinção entre a vida daquele que sabe o que faz bem e aquele que se apega ao bem
aparente. Cf. Dodds, Plato: Gorgias, p. 227 “(..) distinção essa que perpassa todo o diálogo daqui em
diante.” Ver também Jaeger, Paidéia, ao tratar sobre o Górgias, p. 646-697.
18
p. 226.
66

nomoqetikhv diakiosuvnh gumnastikhv ijatrikhv


nomothetike dikaiosyne gymnastike iatrike
legislativa jurídica ginástica medicina
Espúria sofistikhv rJhtorikhv kommwtikhv ojyopoiikhv
sophistike retorike kommotike opsopoiike
sofística retórica cosmética culinária

Em primeiro lugar, apresentam-se duas tekhnai que vão procurar o bem tanto da
alma quanto do corpo: para a primeira, temos um nome, politike, já para a segunda, não
temos, e por isso a denominaremos de “cuidado com o corpo”, qerapeiva tou' swvmato".
Em verdade, as duas são formas de cuidado, uma em relação à alma, a politike, outra em
relação ao corpo. O cuidado, therapeia, visando sempre o melhor, pode promovê-lo
tanto de forma regulativa, atuando diariamente para manter o melhor, quanto de forma
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corretiva, atuando quando necessário para restabelecer a boa ordem. Por esse princípio,
cada uma dessas tekhnai, a politike e a therapeia do corpo, ainda se dividem em mais
duas, formando, assim, quatro tekhnai que têm como meta o bem do homem: em
relação ao corpo, temos a ginástica, regulativa, e a medicina, corretiva; em relação à
alma, temos a legislativa, regulativa, e a jurídica, corretiva.
Um fato estranho salta aos olhos nessas primeiras atividades: as therapeiai
voltadas para o corpo são individuais, enquanto as voltadas para a alma são sociais.
Caso a comparação fosse exata, como nos sugere Dodds19, Platão deveria ter utilizado
educação (mousike, cf. República 376e3) como arte regulativa para a alma individual, e
psiquiatria (medicina da alma, psykhe + iatrike) para a sua correção. No entanto, talvez
não possamos descartar a visão de que as instâncias públicas - não só a instituição e
cumprimento das leis (nomothetike), mas também a punição jurídica (dikaiosyne) -
seriam tanto educadoras da alma individual quanto corretivas de qualquer "doença" que
ela viesse a sofrer. E é exatamente esse o sentido que Sócrates confere à dikaiosyne
quando prescreve punições para os injustos por eles estarem doentes na alma, pois a
punição seria uma correção da alma.
A partir dessas quatro tekhnai genuínas, outras quatro espúrias vão surgindo e
ludibriando o homem pelo prazer. Assim como as primeiras quatro ganham unidade por
serem todas voltadas para o melhor (prov" to; bevltiston), estas outras têm sua mira
19
Plato: Gorgias, p. 227.
67

sobre o mais prazeroso (stocavzetai prov" to; h{diston). Isto recebe o nome de
adulação, kolakeia. A partir da apresentação das kolakeiai, o texto personifica as
atividades, ganhando um tom quase mítico ao descrever como elas se fazem passar
pelas genuínas tekhnai, assimilando-se a elas, apoiando-se no prazer para fisgar a mente
ignorante e assumir o título das mais benfeitoras da humanidade. É desta forma que a
sofística toma o lugar da tekhne legislativa (nomothetike), e a retórica, o lugar da tekhne
jurídica (dikaiosyne). Implicitamente, a sofística está sendo apresentada como uma
suposta arte que educa os homens cuidando de suas almas para que permaneçam boas,
atividade realmente pertencente à tekhne genuína da legislação, que através das leis
apresenta o modo saudável de viver. A retórica se faz passar por uma tekhne autêntica, a
jurídica, que imprime nas almas as correções para que volte a viver de modo justo e
correto, e por isso melhor para si mesma, mais feliz e saudável.
Em sua exposição da analogia das tekhnai genuínas e espúrias, Sócrates
apresenta mais detalhadamente as kolakeiai relacionadas ao corpo - a culinária,
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simulacro (eidolon) da medicina, e a suposta arte da cosmética, simulacro da ginástica -


e, por analogia a estas, apresenta sem muitos detalhes as relacionadas com a alma - a
sofística, simulacro da arte legislativa (nomothetike), e nossa retórica - ficando assim
claro o que ele quis dizer com a definição curta e obscura apresentada anteriormente: a
retórica é o simulacro de uma parte da política (a tekhne jurídica). Ao fim da exposição,
ele ainda define mais claramente a retórica, chamando-a de "contraparte da alma do que
a culinária é para o corpo"20. Podemos formar uma relação entre as atividades
regulativas e também outra entre as corretivas, gerando a seguinte proporção: kolakeia
da cosmética está para a sofística, assim como a culinária está para a retórica; e
também a ginástica está para a medicina, assim como a legislação está para a justiça.
Assim, como diz Thompson21, “Retórica é uma culinária espiritual, assim como a
culinária é uma retórica corpórea”.
O que podemos retirar desta diairesis em relação à retórica? Em primeiro lugar,
a analogia com a culinária, contraparte espúria da medicina, mostra o caráter corretivo
da retórica, isto é, a retórica é utilizada nos momentos em que se interfere diretamente
na constituição da alma. Assim como a medicina interfere diretamente no corpo,
prescrevendo remédios e dietas específicas para o retorno da saúde, a culinária
prescreve o que há de mais prazeroso. A noção de culinária aqui tem o sentido restrito

20
ajntivstrofon ojyopoiiva" ejn yuchv/, wJ" ejkei'no ejn swvmati. Górgias, 465e.
21
Thompson, Gorgias, (1871), apud Dodds, Plato:Górgias, p. 232.
68

de produzir alimentos prazerosos, tanto que “se o médico e o cozinheiro tivessem de


entrar num concurso em que crianças fossem juízes, sobre quem mais entendesse da
excelência ou da nocividade dos alimentos, o médico morreria de fome”.22 No entanto, é
a medicina que sabe que tipo de comida é mais saudável para cada homem, assim como
a genuína arte jurídica, com sua capacidade de escolher o melhor, julgar o injusto e
aplicar o devido corretivo na forma de punições penais, enfim, é a arte jurídica que sabe
o que é o melhor para a alma. Já a retórica, arte espúria, por meio da experiência de
lidar com os homens, busca o mais persuasivo e prazeroso com vistas a agradar quem
quer que seja, com interesses obscuros até para si mesma.
O que torna uma atividade uma tekhne, além do que já foi salientado – a
capacidade de oferecer razões (logoi) para suas práticas e indicar a causa (aitia) de sua
eficiência –, é também o fato de esta atividade ter um fim claro e objetivo, o bem23.
Nesse sentido, a retórica por si só não tem o bem (to beltiston), e por isso, os retores,
rJhvtore", não sabem o que realmente desejam. No entanto, em outras passagens do
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Górgias de que trataremos em breve, a retórica vai ter o bem como objetivo, e isso vai
mostrar uma certa duplicidade na noção de retórica, como se pudesse haver um
verdadeiro e falso orador, assim como uma arte retórica legítima e outra espúria; uma
visando o bem, outra o prazer imediato24. É nesse sentido que defendemos, junto com
Dodds25, que há uma continuidade na noção de retórica no Górgias e no Fedro, pois no
Górgias também aparece uma noção genuína de retórica essencial para a filosofia, como
veremos adiante no Fedro.
É importante lembrar a ambiência histórica da qual estamos tratando. O termo
retor designa um orador público e estamos aqui lidando com retorike, a arte deste
orador. Trata-se da Grécia clássica, quando o poder central da sociedade viria da palavra
oral, conferindo à arte do bem falar função central na estrutura da sociedade. Esta arte
deve ser dominada perfeitamente por aquele que quer ser o líder de tal comunidade,
visando ou não o seu bem. Nesse sentido, podemos compreender certa ambigüidade em
Platão ao lidar com retórica, pois ora ele lida com ela de forma concreta, descrevendo o
modo como é usada em seu tempo, e ora descrevendo seu uso ideal, aquele que é
conferido ao governante ideal, o filósofo, para chegar, por fim, a ser somente Sócrates o

22
Górgias, 464e.
23
Ver 503c, trecho em que Sócrates chama atenção para o fato de todas as tekhnai terem o bem como fim.
24
Ver, por exemplo, 522e, passagem que aparece o termo kolakikh'" rJhtorikh'", retórica aduladora, e
também 517a, ajleqinh'/ rJhtorikh'/, verdadeira retórica.
25
Ibid p. 330.
69

verdadeiro orador público. Mesmo não estando a teoria do rei-filósofo explicitamente


presente no Górgias, é bem claro, pelo discurso final de Sócrates, que aqui também tal
teoria seria defendida. “Creio ser um dos poucos atenienses, para não dizer o único, que
se dedica à verdadeira arte política, e que ninguém mais, senão eu, presentemente a
pratica’ (521d). Isso não é uma contradição frente ao trecho 473e no qual Sócrates
afirma não praticar política, pois ao falar individualmente sempre com vistas ao melhor,
ele pratica a arte do orador público, o político, pois faz com que as almas dos homens
sejam melhores. Esta condução da alma para o melhor é a psicagogia que vai aparecer
no Fedro como definição da retórica, só que qualificada pelo fim que ela deve ter, o
melhor, pro;" to; bevltiston. Isso veremos mais à frente ao tratarmos do Fedro.
A introdução de um fim para a retórica não só faz com que ela ganhe o status de
tekhne, mas também a aproxima da arte jurídica, a ponto de ser difícil distingui-las. Se a
arte jurídica é a contraparte "anímica" da medicina, isto é, tem uma ação corretiva sobre
a alma com o fim de restaurar-lhe a saúde, a retórica agora, também qualificada pelo
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cuidado com o bem, passa a cumprir a mesma tarefa. A retórica torna-se a arte de fazer
os cidadãos melhores, persuadindo os juízes sobre quem deve ou não ser justamente
punido. Tanto que Sócrates sugere que a retórica seja usada para acusar os familiares
que forem injustos – contrariando atitudes habituais gregas – para que até eles sejam
tratados com punições com o fim de restaurarem a saúde da alma (508b). A diferença
talvez seja que a retórica tenha ainda um pouco mais de cuidado com o modo de
convencer seus interlocutores, isto é, talvez ainda persista algo da habilidade da
persuasão com vistas ao prazer imediato na verdadeira retórica. Em verdade, e isto é
dito explicitamente no Fedro, nenhuma forma de conhecimento poderia prescindir da
retórica sem acarretar numa inevitável inabilidade de transmitir suas conclusões26. É
importante afirmar isto aqui, pois defendemos uma identificação entre verdadeira
retórica e dialética, e explicaremos tal identificação a seguir.
Duas passagens do Górgias mostram como o proceder de Sócrates com seus
interlocutores tem por fim operar uma transformação pessoal27: a primeira, na qual
Sócrates, vendo a relutância de Polo em responder às questões que lhe impõe, diz “(...)
Não hesites em responder, Polo, em nada te prejudicarás, entrega-te com confiança à

26
Veja para isso o trecho em que Górgias afirma que, sem um retórico, o médico não convenceria o
paciente a utilizar o remédio, em 456b, e também em 453d, em que Sócrates afirma “quem ensina seja lá
o que for, persuade os outros a respeito do que ensina”.
27
Ver o excelente artigo de Charles Kahn sobre o Górgias, no qual defende a extrema relevância do
aspecto pessoal das refutações dos três interlocutores de Sócrates. Os elenkhoi, as refutações, são sempre
ad hominem. Veremos isso melhor no capítulo sobre conversão, e dialética platônica.
70

discussão, como se o fizesses a um médico e reponde sim ou não ao que eu te


perguntar” (475d); e a outra, quando Cálicles se recusa a continuar a discutir, pois está
sendo provado que é preferível ser castigado28 quando se é injusto, Sócrates afirma:
“Este homem não quer permitir-se a vantagem do que constitui justamente o argumento
da conversa, a saber, sujeitar-se ao castigo.” A dialética empreendida por Sócrates com
seus interlocutores tem uma função medicinal na alma deles, pois é através de seu efeito
que vão se livrar da doença de assumirem posições errôneas. São necessárias não só
uma entrega da alma para o argumento realizar o seu efeito29, mas também a permissão
de ser castigado e assim passar pela humilhação30 de se perceber em erro. A própria
dialética, nesse sentido, está fazendo a atividade do político, retor, ao cuidar da alma
(qerapeiva th'" yuch'", definição de politke) dos indivíduos com os quais dialoga, isto é,
julga as afirmações contidas em sua alma, percebe a injustiça e prescreve a punição
adequada que o livra do mal. Nesse sentido, a arte jurídica, a dikaiosyne, a tekhne
corretiva da alma, correlacionada com a medicina para o corpo, é exatamente a dialética
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empregada por Sócrates no nível individual. A dialética, sendo a verdadeira retórica31, é


aquela que encaminha a alma, psicagogia, em erro, para o seu estado de saúde, um
estado em que as virtudes estão presentes, e isso é ensinar filosofia, para Platão. Dessa
forma, chegamos à mesma conclusão a que Sócrates chegará no Fedro, que a verdadeira
retórica, aquela que visa o bem da humanidade e tem habilidade para conduzi-la para
este bem, é a dialética. O governante, o que utiliza a verdadeira retórica, será aquele que
tem o poder de transformar os desejos dos cidadãos, e nesse aspecto ele é um psicagogo,
um condutor de almas32. Fica claro como a filosofia, entendida como "o exercício da
dialética", está sempre relacionada com aspectos pessoais dos que filosofam e, com isso,
pressupõe uma experiência individual radical que transforme o seu modo de ver o
mundo, já que a filosofia tem a função corretiva de erradicar o mal presente na alma
individual e, desta forma, é identificada com a arte jurídica, dialética e retórica.
Há ainda uma passagem importante para citarmos sobre a retórica no Górgias.

28
No caso, o castigo é repreender os impulsos quando se está doente na alma.
29
Como veremos detalhadamente no Carmides ainda no presente capítulo.
30
Em verdade, a refutação é vista como humilhação somente para os que ainda não perceberam seu
benefício, mas Sócrates – como ele não se cansa de repetir – prefere ser refutado do que refutar, assim
como provavelmente preferiria ser castigado do que castigar: o castigo, assim como o ser refutado,
retiram de sua alma o erro, e isso é o melhor que pode acontecer a um homem.
31
517a ajleqinh'/ rJhtorikh'/.
32
Cf. 517b-c. Esse é o trecho no qual Sócrates está criticando os quatro grandes estadistas do passado,
incluindo Péricles, ao dizer que eles não sabiam nem a verdadeira retórica nem a retórica da adulação,
pois uma tornaria verdadeiramente a alma dos cidadãos melhores, o que não aconteceu, e pela outra, seria
formada uma aparência de melhora, fazendo com que os cidadãos não os criticassem, o que aconteceu.
71

“Soc. – Com isso em mira é que o orador honesto e competente (tecnikov"


kai; ajgaqov") deverá dirigir seus discursos à alma dos homens, sempre que lhes
falar, e todos os seus atos; e quer lhes dê ou tire alguma coisa, deverá pensar
sempre no modo de fazer nascer a justiça na alma de seus concidadãos e de banir a
injustiça, de implantar nela a temperança e de afastar a intemperança.”33

Temos, em primeiro lugar, uma citação explícita de que a retórica pode ser uma
arte autêntica pelo uso do termo tekhnikos. Em segundo lugar, temos todo um linguajar
muito similar com um trecho do Fedro34 que será visto mais à frente. Através das
palavras apropriadas, o orador consegue transformar a alma do ouvinte, fazendo nascer
justiça e afastando a injustiça, enfim, ele faz uma psicagogia através de palavras, e esta
é exatamente a definição de retórica no Fedro. Este fazer brotar, fazer nascer
(engignomai) também será importante ao percebermos o poder do mito de moldar as
almas dos jovens35.
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Resumindo, podemos salientar três pontos centrais que alcançamos com o estudo
do Górgias para o presente tema acerca da importância da psicagogia na filosofia:
1) Mesmo assumindo, em sua "diairesis das tekhnai", uma posição de crítica
frente à retórica e ao homem público que a utiliza, Platão vai deixar um espaço legítimo
para o seu uso no aprimoramento da alma dos cidadãos ao apresentar a "verdadeira
retórica";
2) Este uso será exatamente uma psicagogia36: condução da alma dos cidadãos
para corretas compreensões, erradicando suas posições errôneas e trazendo o retorno da
saúde;
3) Há uma identificação entre verdadeira retórica, entendida como a arte de
melhorar os cidadãos, com a atividade de Sócrates e, assim, com a própria filosofia.

2.2. O FEDRO, RETÓRICA, KAIROS E PSICAGOGIA

33
504d-e, trad. de Carlos Alberto Nunes.
34
271c.
35
República 377b
36
A noção de psicagogia, por si mesma, não implica um bem para o qual se conduz o ouvinte ou leitor,
mas isso não impede que vejamos na dialética entendida como verdadeira retórica – condutora dos
desejos dos cidadãos – uma forma de psicagogia.
72

Podemos dizer que o Fedro tem duas grandes partes. Na primeira, encontram-se
o discurso de Lísias e os dois discursos de Sócrates, todos sobre o Amor (227-257c). Na
segunda, temos uma discussão acerca da linguagem, tanto da retórica (257c-274b)
quanto da escrita (274b-279c). Principalmente aqui e no Górgias, encontramos diálogos
sobre a retórica, e é exatamente ao falar dela que Platão apresenta o termo psykhagogia.
No Fedro, Sócrates parece encontrar um lugar positivo para a retórica em meio à
filosofia, chegando até a igualar dialética e retórica37. Também no Górgias, como já
vimos, há lugar para o retórico bom e competente, 504d: a retórica tem a
responsabilidade de “fazer nascer a justiça na alma (...), de implantar (eggignentai) nela
a temperança e de afastar a intemperança.” O retórico vai ter a alma do ouvinte em
mente, para fazer surgir a experiência apropriada que produza nela a justiça, a ordem e a
temperança. Vamos nos concentrar nessa segunda parte do Fedro, especialmente onde
os personagens, Sócrates e Fedro, investigam a natureza da retórica, antes de investigar
a natureza da escrita.
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Um dos pontos centrais na relação entre retórica e filosofia38 é a diferença entre


as duas frente à verdade. A retórica, a arte do bem falar, é muitas vezes desassociada da
verdade, e essa, por sua vez, é a rainha da filosofia. É esse o ponto também que leva os
sofistas, os mestres da retórica, a serem tão diferentes de Platão, já que esse tem a
verdade, especialmente a idéia de beleza, como seu objeto primordial. A filosofia em
Platão pretende conhecer a verdade em sua inteireza, já os mestres da retórica
apresentam fortes argumentos contra a possibilidade de se conhecer a verdade. A
questão sobre a retórica nesse trecho do Fedro gira em torno da possibilidade de ela ser
uma tekhne, uma "arte"39, e, para tanto, ela terá que se relacionar com a verdade. Esse
será o ponto principal da defesa da retórica feita por Sócrates: é necessário que ela saiba
a verdade de algum aspecto do real. Ao fim da investigação ela terá dois
conhecimentos: (1) quais são as coisas passíveis de se assemelharem umas com as

37
Fedro 266b. A retórica de forma alguma é desprezada inteiramente por Platão: ver Górgias, 504d5, e
também o Político, 304a.
38
Para artigos e textos sobre a relação entre filosofia e retórica, temos, além dos próprios comentários do
Fedro como FICINO, M. The Phaedran Charioteer. Los Angeles: University fo California Press, 1981;
HACKFORTH, R. Plato´s Phaedrus. Translation, introduction and commentary. Cambridge: Cambridge
University Press, [1953]; WHITE, D. A. Rethoric and Reality in Plato’s Pheadrus. Albany: State
University of New York Press, 1993; FERRARI, G. R. F. Listening to the Cicades. New York:
Cambridge University Press, [1987] 1990. Temos também SARDI, Sergio. As relações entre diálogo e
dialética em Platão. Porto Alegre: Edipucrs, 1995; FEITOSA, Zoraida. “Dialética e Retórica em Platão.”
In Boletim do CPA, n 4, Campinas: Gráfica do IFCH, Unicamp, 1997.
39
O termo tekhne é de difícil tradução, e seu campo semântico vai além do campo de "arte" como
manifestação artística, incluindo também técnicas de artesãos. Ela trata de um saber específico que
qualifica alguém como capaz de determinada tarefa.
73

outras e (2) das almas e dos tipos de discursos que são mais apropriados para persuadi-
las.
No início da segunda parte do Fedro, 257c, após o seu segundo discurso,
Sócrates pergunta a Fedro se aquele que sabe falar bem precisa ter a verdade daquilo
sobre o que fala, e recebe uma resposta negativa. Fedro afirma que normalmente se
entende "falar bem" como "convencer os outros" e, para isso, não é necessário saber a
verdade40. O fato de os outros estarem persuadidos não implica que eles foram
persuadidos pela verdade, nem que o autor da persuasão saiba a verdade. Estamos aqui
tratando de um diálogo entre dois cidadãos de uma cidade onde a arte da persuasão era
altamente reputada, pois é através dela que se tinha poder político na cidade.
Primeiramente, devemos concordar com Fedro, e afirmar que podemos cair em
erro ao enfatizarmos a comoção do leitor na correta transmissão de um conteúdo.
Podemos dizer que a própria comoção pode ser uma falta de senso crítico para com o
que se diz, já que a comoção pode obscurecer os argumentos e nos levar a enganos. No
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entanto, a capacidade de comoção aqui referida nas páginas precedentes tem um sentido
mais abrangente do que um simples movimento emocional do ouvinte. Ao comover um
espectador, uma cena não necessariamente o convence ou o persuade. Na comoção que
é uma psicagogia, o espectador realiza uma nova experiência com o que está sendo dito
a partir de suas experiências anteriores, e isso faz com que ele tire conclusões próprias
que podem até ir além do que foi transmitido pela cena. O que importa é que, em um
momento psicagógico, o leitor ou ouvinte experimente o que está sendo apresentado de
forma a tocar nos alicerces de sua compreensão daquele tema. Ao se falar do amor, por
exemplo, o discurso que se pretende uma experiência que conduza a alma do leitor deve
produzir nele um conjunto de elementos, racionais e emocionais41, que faça com que
esse leitor tenha uma experiência completa com o amor, não apenas racional ou
emocional, para poder refletir sobre ele de modo total e autêntico, e não parcial e
incompleto. Assim, não é necessário que, ao se comover e ter uma experiência com o
tema, o espectador concorde com o que está sendo afirmado, porém, a comoção faz
parte essencial da possibilidade de o espectador concordar ou discordar, pois para poder

40
Ibid. 260 a
41
Tendo em mente o que já falamos em nossa dissertação de mestrado sobre a importância das três partes
da alma participando da investigação, se torna mais claro o que pretendemos dizer com "um conjunto de
elementos da alma" participando da investigação. PINHEIRO, M. R. O Amor e as Sutilezas do Discurso.
Dissertação de Mestrado, Departamento de Filosofia. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, 1999, parte 2.1, “A tripartição da alma na República”.
74

julgar com rigor, o espectador precisa conhecer bem, isto é, ter vivido o tema discutido
e retomar essa vivência no momento da investigação.
Logo após Fedro afirmar que a persuasão e a verdade não estão necessariamente
associadas, Sócrates replica que a retórica, em sua defesa, poderia contrapor que, sem
ela, a verdade também não poderia ser transmitida, pois não se convenceria ninguém da
verdade de algo sem a arte da persuasão42. Platão, aqui, parece voltar atrás em suas
duras criticas à retórica quando diz: “Soc. Porventura, meu caro, não tratamos a retórica
com mais rudeza do que fora necessário?”43 Podemos também relacionar com esse
trecho a passagem do Górgias, 456b, na qual Górgias diz que de nada adiantaria o
médico saber qual o remédio apropriado para o doente se a retórica não o convencesse
de que ficará melhor tomando o remédio. No entanto, a qualidade de conseguir
persuadir pode ainda não dar o status de tekhne para a retórica. Platão aqui parece citar
claramente sua forma de lidar com ela no Górgias, ao afirmar que alguns a chamam de
tribe, rotina, hábito44.
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Sócrates vai, então, trazer os argumentos que procuram defender a retórica.


Sócrates define retórica como “a arte de conduzir almas (psykhagogia) através de
discursos, não apenas em corte e outras assembléias públicas, mas também em
particular; e não apenas acerca de coisas grandes e importantes, mas de qualquer coisa,
pequena que seja.”45. Aqui está uma das duas passagens na qual é utilizado o termo
central desse capítulo, psykhagogia46. Nota-se a relação desse trecho com os do "amante
de espetáculos" e do Grande Sofista da República. Os três estão frisando a comoção
persuasiva dos momentos em que o povo se reúne e trata das questões centrais da vida,
como a filosofia deve tratar. O ponto diferenciador aqui, que chama atenção de Fedro, é
que ele não tinha conhecimento que a retórica era também usada para questões
pequenas e também nos momentos particulares. Parece que a função educadora tanto
das tragédias quanto das assembléias estava intimamente ligada ao fato de o povo estar,
em conjunto, tratando das questões capitais para a sociedade. O próprio fato de estar em
grupo, a massa, e de a identidade dessa ser maior que a identidade dos indivíduos,
apagando essa última, talvez tenha grande valor para os gregos, especialmente pelo fato
de ali o poder psicagógico ser ainda maior, por estarmos identificados com algo maior

42
260 d
43
260d
44
O próprio Hackforth faz essa comparação intertextual, Plato´s Phaedrus, p. 122.
45
Ibid 261 b “ [Ar! ou\n ouj to; me;n o{lon hJ rJhtorikh; a[n ei[h tevcnh yucagwgiva ti" dia; lovgwn (…)”
46
A outra é em 271d.
75

que nossa individualidade: ao estarmos em meio à multidão, somos como um grande


organismo que tem vida própria, e, por isso, os fatos aos quais a massa responde,
também nós respondemos, moldando e forjando nossa alma. Mas Sócrates assinala a
existência de uma psicagogia também para os momentos privados. Isso nos mostra que
ele está querendo incluir não só os momentos quando sofistas ensinam a persuadir em
pequenos grupos, mas também que na dialética, em que dois dialogam, pode haver uma
condução da alma, psicagogia.
É importante notar ainda, nessa passagem do Fedro, que Hermes, o deus
associado à linguagem, por ser o mensageiro entre os deuses e os homens, é também o
deus psicopompo por excelência (condutor de almas). É ele o encarregado, segurando o
caduceu47 que trocou com Apolo pela lira que tinha inventado, de conduzir as almas
para o reino de Hades. A partir dessa característica do deus de ser trapaceiro e de fazer
trocas, e fazendo uma analogia com a linguagem, já que Hermes é o deus que a preside,
podemos dizer que a capacidade da retórica é fazer com que um fato, que aparecia como
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justo, apareça como injusto, pois ela pode conduzir a alma como ela desejar. Sócrates,
para explicar a Fedro a utilização da retórica em diversos âmbitos da vida, pública e
privada, lembra que a retórica está ligada a disputas verbais (antilego) públicas. Nessas
disputas, a força dos oradores está em ter a capacidade de fazer algo aparecer
(phainesthai) tendo duas qualidades opostas: ora como bom, ora como mau, ora justo,
ora injusto. Isso vai levar ao primeiro pré-requisito para a retórica, definida como
psicagogia, ser uma arte48: “(...) se for uma arte, a retórica é aquela pela qual alguém
produz semelhanças entre todas as coisas que são possíveis, e também traz à luz as
semelhanças que são feitas pelos outros”49. Com isso, em toda situação em que um
discurso sabe como fazer algo aparecer como outro, ele está utilizando a retórica.
Sócrates mostra, portanto, uma primeira necessidade de conhecimento da verdade, já
que, apenas conhecendo as coisas como elas são, pode o homem conhecer também com
o que elas serão mais facilmente semelhantes.
Com esses dois princípios da retórica levantados, o da psicagogia e o da
produção de semelhanças ou assemelhar-se (homoioo), Sócrates passa a uma "análise

47
Caduceu é um símbolo usado hoje em dia pela medicina composto por um bastão com duas serpentes
enroscadas com suas cabeças voltadas para uma chama que sai do topo do bastão.
48
O segundo pré-requisito será o conhecimento da alma junto com o tipo de discurso que pode persuadi-
la.
49
261e
76

estilística de texto". Começando50, então, a recordar o discurso de Lísias, Sócrates passa


a certos elementos estilísticos essenciais para um texto: enfatiza, primeiro, a
necessidade de uma definição do tema no início de qualquer texto. Sócrates diz que no
discurso de Lísias não havia definição alguma do Amor, e que ele ainda começava o seu
texto no meio da argumentação, e que, por outro lado, no primeiro discurso de Sócrates,
havia logo no início uma definição clara do amor51. Talvez se possa entender a
superioridade do discurso de Sócrates frente ao de Lísias pelo fato de Sócrates estar
inspirado pelos deuses. Ao pronunciar seu primeiro discurso, Sócrates afirma estar
inspirado (theion pathos peponthenai), e Fedro concorda, e aqui ele diz que as ninfas,
filhas de Acheolo (o deus de um rio ao norte da Grécia), são mais versadas na arte de
falar do que Lísias, filho de Céfalo.52 Céfalo, em grego, quer dizer cabeça, mas também
é aquilo que é mais nobre no ser humano e, ao cumprimentar um amigo, dizia-se phile
kefale, por ele ser uma boa pessoa. Aqui vemos uma indicação da importância que
Platão atribuía aos mitos e ao mundo divino. O discurso retoricamente competente,
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aquele capaz de transmitir a verdade, é aquele que é inspirado pelos deuses, e não
aquele que vem do melhor do ser humano53. O pai das ninfas, Acheolo, também é pai
das sereias, e todos sabem o poder de persuasão do canto das sereias, e as ninfas, suas
irmãs, certamente não têm o menor poder persuasivo.
Ao continuar a comentar o discurso de Lísias54, Sócrates afirma que, além de
não ter um início apropriado, ele não tem partes que componham um todo coerente. Pois
o discurso deve ter suas partes organizadas como um organismo vivo55, estando eles em
boa relação uns com os outros, assim como os membros do corpo, para que funcionem
corretamente. Sócrates, então, passa a analisar o seu próprio discurso, sempre
lembrando que em verdade eles foram frutos das deusas. Aparecem dois princípios que
um discurso retoricamente competente deve ter. O primeiro é a capacidade de trazer sob

50
262c
51
238 c
52
263 d
53
Todo um estudo da importância da religiosidade e do estado de inspiração seria relevante para expor a
importância de um envolvimento vital com o que se questiona. Cf. MORGAN, M. L. “Plato and Greek
Religion.” In: KRAUT (ed.) The Cambridge Companion to Plato. Cambridge: Cambridge University
Press, 1992.
54
264a
55
264 c. É importante notar que a imagem de um organismo vivo nos lembra que o discurso que produz
conhecimento filosófico pode ser comparado com algo que tenha vida em si mesmo, e seus conceitos são
experiências vivas que acontecem para o leitor "comovido". Todo o linguajar da vida na filosofia pode
convergir para auxiliar o argumento. Confrontar especialmente com a crítica do estrangeiro de Eléia aos
"amigos da forma" no diálogo Sofista, 248a. Lá, é a falta de vida no ser que faz com que se descarte a
posição dos amigos da forma.
77

uma idéia única várias partes desconectadas, fazer uma definição (horidzomai) do tema
tratado. O segundo divide (diairesis) as coisas em classes a partir da divisão natural que
já existe nelas. Assim fez Sócrates, primeiro, ao definir o amor56 e, depois, ao dividir a
loucura em suas partes naturais57, descobrindo em qual delas se encontra o Amor. Os
que assim fazem, definir e dividir naturalmente, são os "dialéticos", e Sócrates afirma
que esses são os verdadeiros retóricos. Temos aqui, portanto, Sócrates chegando à
definição de dialética na investigação do que seja a retórica. A identidade entre essas
duas disciplinas nesse trecho mostra quanto o poder de ambas se perpassam. A dialética
pura e simples, sem certas regras que façam o ouvinte ser persuadido, não pode ser
eficiente, nem a retórica, sem certos princípios básicos que a restrinjam à verdade, pode
ser de algum proveito para a sociedade. Como já dissemos, mesmo o Górgias, diálogo
que à primeira vista tem a função de desqualificar o pretenso poder dos retóricos,
apresenta um lugar próprio para a retórica, pois é ela que faz surgir nos homens a justiça
e outras virtudes afins. Assim como qualquer artesão quer imprimir em seu produto uma
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forma apropriada, também o bom retórico tem a pretensão de imprimir virtude e justiça
na alma dos cidadãos: da mesma forma que o médico impõe ordem no corpo do
paciente com o fim de produzir saúde. “Então é isso que nosso retórico, o bom e
competente, terá em mente quando aplicar nas almas as palavras que ele fala e também
em todas suas ações (...) com o fim de que a justiça nasça na alma dos cidadãos (...)”58
Também em 517a, trecho em que Sócrates trata novamente do verdadeiro retórico,
ajleqinh/' rJhtorikh/', é salientado que este deve saber mudar os desejos dos homens,
metabibavzen ta;" ejpiqumiva". Vemos que a retórica tem o poder de transformar a alma,
e isso implica sempre em uma psicagogia, uma condução da alma, e como a filosofia
tem a pretensão de criar uma vida virtuosa e saudável, a retórica deve também fazer
parte dela.
Nesse trecho do diálogo59, em que Sócrates mostra que o verdadeiro retórico
deve ser o dialético, Fedro não concorda tão facilmente com Sócrates e responde que a
dialética, sim, pode estar bem representada, mas a retórica não se restringe apenas a
isso, ela seria também o estudo de certas regras para compor um texto. Essas regras já
foram discutidas em livros de retórica como os de Teodorus, Evenus e Górgias. Sócrates

56
237c
57
244a. No segundo discurso, Sócrates define o amor como loucura e divide a loucura em suas partes
naturais.
58
Górgias 504d
59
Fedro 266d
78

lembra a importância da verossimilhança para esses autores na capacidade retórica.


Muitas vezes não é importante salientar a verdade, mas sim a possibilidade de algo
acontecer para convencer a audiência de um fato. No entanto, tais autores enfatizam a
importância de uma introdução e de uma recapitulação, ao final, dos pontos importantes
tratados no texto. Essas "pequenas coisas", diz Sócrates, estão sob uma mesma idéia.
Essa idéia é muito importante para explicarmos como Platão entende um discurso e seu
poder de transmissão.
Um médico não é aquele que sabe apenas "fazer alguém que sente frio sentir
calor e alguém que sente calor, frio, e saber fazer pessoas vomitarem ou os intestinos se
moverem"60, mas alguém que sabe a quem e em qual momento fazer tais coisas. Assim
como um médico, o retórico deve conhecer a alma do ouvinte para saber que técnicas
usar com cada pessoa em cada momento61. Pois, cada pessoa sendo diferente vai
compreender o tema através de certos meios de expressão. A retórica é exatamente o
cuidado e a atenção com a transmissão e, por isso, é também um estudo da alma
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humana, de suas sutilezas, de seus humores, de seus momentos, de suas partes. O


músico não é aquele que sabe dar qualquer nota, em qualquer tom, mas aquele que sabe
colocar a nota apropriada em seguida da outra nota apropriada para formar a harmonia.
O homem que sabe dar qualquer nota ou que sabe agir sobre o corpo humano sabe
apenas as técnicas preliminares da música e da medicina, diz Platão. Então, compara
explicitamente a arte da medicina e da retórica dizendo que as duas não podem agir por
rotina ou hábito, mas devem adquirir real conhecimento sobre a alma e o corpo
particular do paciente ou ouvinte e aplicar-lhe remédios e discursos apropriados e ao
tempo certo.
Além da música e da medicina, Sócrates também convida a tragédia para
exemplificar a diferença em se saber as técnicas preliminares e a arte como um todo. A
tragédia aqui é apresentada como algo que contém discursos que produzem os mais
diferentes efeitos na alma dos ouvintes. No entanto, apenas manipular tais discursos não
é ter maestria sobre a arte da tragédia. Ela não é apenas um pasticho de estilos literários
que produzem as mais diferentes reações, mas deve ter um encadeamento significativo,
provocando uma unidade e uma seqüência em sua obra final. É importante salientar o
que já havíamos dito antes: a tragédia ocupa um espaço na cultura grega que educa o
povo através de manipulações da reação dos espectadores.

60
Parafraseando o trecho semelhante do Fedro 268a.
61
Em breve trataremos da noção de kairos na retórica.
79

Trata-se aqui de uma imagem lapidar para exemplificar a importância da


psicagogia na filosofia, lembrando sempre o interesse da filosofia de produzir virtude na
alma humana. A retórica toca na alma humana, isto é, ela tem o poder de fazer a alma
humana reagir ao seu bel-prazer. Assim como a medicina, que além de tocar no corpo
humano, fazendo-o reagir como quiser, precisa ter como foco a saúde, a retórica,
produzindo reações específicas, encaminha a alma através do discurso para a
experiência desejada a fim de produzir a saúde da alma. A presente tese quer chamar
atenção para o fato de a filosofia ter que tocar na alma humana para poder imprimir-lhe
a correta compreensão de um assunto filosófico e, nesse sentido, ela pressupõe
necessariamente a retórica entendida como psicagogia. Aprender conhecimentos
filosóficos não pode ser acumular informações, mas sim se deixar tocar pela força
psicagógica da filosofia e se deixar levar pelas reações necessárias produzidas pela
retórica para que a saúde apropriada da alma nasça. É nesse sentido que uma
experiência vital, uma experiência que conduza a alma, fazendo-a reagir de modo
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apropriado, é o meio através do qual ocorre efetivamente uma compreensão filosófica.


A comparação com a medicina torna-se tão central nessa passagem que a
retórica torna-se a medicina da alma, por isso, podemos dizer que retórica aqui está
sendo identificada com filosofia. Em verdade, Sócrates está dizendo que a retórica
somente será uma tekhne se for filosofia, isto é, se respeitar as regras da dialética. Ao
mesmo tempo, está mostrando a importância da retórica para a filosofia, isto é, que a
dialética só faz sentido se ela possuir o poder de transformar as almas que a retórica
possui. O que se torna visível é que a dialética, entendida como retórica e psicagogia, é
uma forma de prática, isto é, ela é uma ação sobre a alma dos interlocutores. A filosofia
é uma ação que transforma o caráter dos homens e não uma investigação racional que
produz um conjunto de proposições eternamente verdadeiras e sem nenhuma
decorrência na vida dos indivíduos que investigaram62. Veremos, no capítulo
correspondente63, que na Carta VII e no final do Fedro, torna-se muito claro que a
filosofia é uma forma de prática, pois ela se propõe uma inscrição da verdade na alma.
A palavra está grifada no texto a seguir para chamar atenção para o fato de a retórica
proceder também por práticas que produzem o efeito esperado, e essas podem ser as
mais diversas, como as que são praticadas nas festas.

62
Como veremos em uma outra formulação de dialética, no livro VII da República, ela também terá a
função de conduzir a alma, para cima, para a luz do inteligível, operando a conversão psíquica exposta na
alegoria da caverna.
63
Capítulo 3, “Críticas à escrita e vivência filosófica”
80

"So.: O método da arte (tekhne) da medicina é como o da retórica.


Fe.: Como assim?
So.: Em ambos os casos, é necessário analisar a natureza: em um, a do
corpo, no outro, a da alma, se queres agir por arte (tekhne) e não por hábito ou
rotina apenas; uma produz saúde e força no corpo através de remédios e dietas, a
outra, através de discursos e práticas, fornece virtude e a persuasão desejada."64

Logo mais à frente, Sócrates diz que o retórico é aquele que quer produzir
convicção na alma (peiqwv ejn yuch/v poiei'n). Para tanto, é necessário conhecer as almas,
e isso implica um conjunto de conhecimentos relativos a esse saber. Então, Sócrates
narra qual deve ser o saber do retórico.

“Já que é a função do discurso (logos) conduzir as almas (psykhagogia),


aquele que é um homem da retórica deve conhecer as diversas formas (ei[dh) das
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almas. Porém, essas são de tantos tipos, e com tantas qualidades quanto os homens
são diferentes uns dos outros. Depois desses classificados (dih/rhmevnwn), também
os discursos têm diversas formas, cada uma correspondente a um tipo de homem.
Por esta causa, almas de determinada forma são facilmente persuadidas por
discursos de determinada forma a ações e crenças (ta; toiavde) também de
determinada forma. Almas de outra forma não são tão facilmente persuadidas. É
necessário, pois, tendo refletido suficientemente sobre essas formas, e, depois,
percebendo-as nas práticas e como são realizadas, ter a habilidade de segui-las
corretamente com seus sentidos; senão nunca obterá o devido proveito das aulas
que ouviu em conjunto. Mas quando aprender que tal forma de alma é influenciada
por tal forma de discurso, e se tornar capaz, ao se deparar com tal homem, de saber
distingui-lo e convencer a si mesmo que tal discurso que já aprendeu em outras
aulas deve ser utilizado em vez de outro qualquer, e que agora deve fazer uma
aplicação prática dessa forma de discurso para persuadir esse homem a certa ação
ou crença – quando tiver aprendido tudo isso, e adicionado então a noção do
momento oportuno (kairos) para falar e permanecer em silêncio, e tiver distinguido
as ocasiões favoráveis para discursos breves ou discursos de lamento, ou discursos
intensos e todas as outras classes de discursos que ele tenha aprendido, sabendo

64
270b
81

discernir o bom momento (eukairian) e o mau momento (akairian), então, e não


antes, ele terá sua arte completa”65

Este é o trecho central da passagem, no qual Sócrates parece resumir toda a arte
(tekhne) da retórica. É nele que aparece a importância da filosofia, entendida como
psicagogia, conhecer as almas dos indivíduos para transmitir corretamente seus
ensinamentos. Os três pontos principais a serem comentados nesse trecho exposto acima
são: (1) acerca da necessidade de uma prática para se aprender retórica e, com isso,
filosofia, (2) acerca da particularidade necessária a cada discurso para haver uma
adequação ao ouvinte, e também (3) acerca do tempo oportuno (kairos) para cada
discurso.
Primeiramente, examinemos com cuidado o seguinte trecho: “É necessário, pois,
tendo refletido suficientemente sobre essas formas, e, depois, percebendo como são
realizadas e como existem nas práticas, ter a habilidade de segui-las corretamente com
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seus sentidos;”66. Temos aqui, e também na passagem como um todo, uma indicação de
que não pode haver aprendizado efetivo da retórica, isto é, que crie alguém realmente
capaz de "conduzir almas", sem um treino prático, sem a aplicação do que se aprende
teoricamente. A própria distinção entre teoria e prática, que nesse trecho parece estar
delineada67, torna-se obsoleta se pensarmos que a real compreensão da retórica e das
aulas ouvidas que se freqüentavam (h[koue lovgwn xunwvn) só será completa, perfeita
(teléos), na prática. Isto nos mostra uma parte não sistematizável da arte do "bem falar",
já que o tipo de conhecimento que a prática nos proporciona não pode, por definição,
ser apresentado previamente, sem a prática individual. É outra forma de assinalar que,
em última instância, a arte de persuadir e conduzir almas, da qual necessita a filosofia,
só se aprende fazendo, isto é, só se aprende por si própria. Algo na retórica transcende a
classificação e catalogação das almas e dos discursos correspondentes, e esta
transcendência está no próprio fazer concreto do ato de persuadir e conduzir a alma, já
que é neste fazer concreto e particularizado que finalmente ocorre uma inscrição do
saber na alma. A filosofia, sendo uma psicagogia, pressupõe a concretude do ato de

65
271c- 272a. É clara a relação que há entre essa passagem e a já citada passagem do Górgias, em 504e,
na qual Sócrates define a atitude do "retórico bom e competente" (oJ rJhvtwr oJ tecnikov" te kai; ajgaqov").
Lá também o retórico irá "aplicar logous às almas", tanto através de seus discursos como através de seus
atos, para fazer nascer neles justiça e afastar os vícios.
66
Dei'' dhv, tau'ta iJkanw'" nohvsanta, metav tau'ta qewvmenon aujta; ejn tai'" pravxesin o[nta te kai;
prattovmena, ojxevw" th'/ aijsqhvsei duvnasqai ejpakalouqei'n:.
67
Parece mesmo que Sócrates está falando de um momento anterior, quando se aprende teoricamente a
classificar almas e discursos correspondentes, e um momento posterior, quando se pratica a junção delas.
82

filosofar que não se permite abstrata e universal, mas sempre concreta e particular, já
que a compreensão se dá em um momento datado e em um indivíduo específico.
Tratemos agora do segundo item acerca dessa passagem, sobre a necessidade de
que o ensinamento filosófico seja particularizado. É importante notar que, ao falarmos
de retórica e nos remetermos ao Fedro, estamos falando primeiramente de transmissão
oral do saber filosófico68. Nessa transmissão, torna-se mais explícita a característica de
que o saber filosófico não pode se restringir a definições simplesmente decoradas, mas
que deve se inscrever na alma, e, para tanto, as particularidades diárias de cada homem
devem ser levadas em conta. O estilo de um discurso oral abarca sutilezas que o estilo
de um texto escrito não abarca. Porém, ao analisarmos aquele, poderemos compreender
outras sutilezas desse.
Pode-se dizer que a retórica é a parte da filosofia que investiga e estuda o modo
de transmissão do saber filosófico. Sempre lembrando que esse saber para um grego não
se limita à retenção de definições e à habilidade em manuseá-los, mas está ligado a uma
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conseqüente forma de viver, essa transmissão é algo complexo. No Fedro, Platão


claramente diz que o estudo da retórica é de capital importância para a filosofia, pois
sem ele não se inscreve o saber na alma69 do discípulo. Defendemos que ainda hoje se
deve ter um aprendizado filosófico que tenha conseqüências em nossa forma de ver e
viver a vida e, dessa forma, acreditamos ser importante o estudo do estilo e da retórica
na filosofia, já que ela é a causa da apreensão adequada do saber filosófico. No entanto,
esse estilo deve ser adequado para cada aluno em particular, levando em consideração
seu ambiente cultural, seu momento de vida particular, sua cultura específica, seus
interesses e valores, etc. Todo o conjunto dos elementos da personalidade individual de
cada aluno tem relevância em uma transmissão da filosofia que se quer uma
psicagogia70.
Retomemos ainda mais uma vez a passagem para tratarmos da importância do
kairos na transmissão da filosofia. Fica claro no Fedro que o filósofo deve aprender
retórica, e isto indica a importância de se aprender o modo de conduzir uma alma a uma
verdade. Primeiramente, um estudante de retórica, de acordo com o texto citado, deve
empreender classificações, fazer divisões (diaireo) de formas (eide) tanto nos múltiplos

68
A segunda parte do Fedro, na qual é discutida a retórica, é claramente dividida em investigação sobre a
retórica oral (257e-274b) e a retórica escrita (274b-279c).
69
A noção de inscrição na alma será vista no capítulo sobre a parte final do Fedro e sobre a Carta VII.
70
Talvez possamos pensar, de modo mais amplo e como contraponto a isso, que a noção de filosofia
como forma de vida não seja algo que possa ser produzido voluntariamente, mas que depende de vários
elementos sociais, culturais, históricos.
83

discursos quanto nas variadas almas humanas. Esse termo, diaireo71, dividir, separar em
categorias, é um dos pontos de contato entre a primeira e a segunda parte do Fedro.
Pois, no discurso principal da primeira parte, o segundo discurso de Sócrates, a favor do
amor, apresenta-se uma diairesis (253c, etc.), uma divisão da alma em três partes, assim
como é pedido para um bom retórico também uma diairesis, divisão das almas, agora já
tomando a alma como algo social, por tipos de almas. A divisão de que Sócrates fala no
texto citado há pouco (271d) é entre os tipos de almas que existem, podendo enquadrá-
las em grandes grupos de homens que têm formas de almas parecidas. Trata-se de dois
sentidos ligeiramente distintos: a primeira divisão na primeira parte do Fedro é feita
dentro de uma alma particular, os dois cavalos e o cocheiro, e já a segunda divisão é
uma catalogação, uma divisão em espécies, feita entre todas as almas, já que elas são
classificadas de acordo com os tipos de discursos que as persuadem.
Platão aponta como importante uma atenção sistemática para a forma de
compreensão particular de cada ser humano e para o conseqüente meio de expressão
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necessário. Catalogando certos grupos de discursos que se relacionam naturalmente a


certos grupos de almas, o filósofo se familiariza com a necessidade de se moldar e se
adequar o discurso às necessidades de cada ouvinte. Porém, não podemos esperar que
essa sistematização o leve a perder uma flexibilidade mais radical: a de estar aberto para
ter de forjar um novo discurso que não está em nenhuma catalogação feita até então.
Nessa passagem, Sócrates está apontando para o quão particular, concreto e
determinado é cada ato de persuasão retórica, mostrando que é apenas no diálogo
concreto que se fará o treino da escolha de discursos apropriados a cada alma. A
primazia da experiência também se apresenta ao pensarmos que apenas na prática é que
podemos aprender a capturar o kairos, (proslabovnti kairou;"72), pois não há como nos
exercitarmos na captura de momentos oportunos sem estarmos vivenciando momentos
concretos quando eles surgem.
Defendemos que a imposição de aprender a manipular o kairos seja até mais
importante do que a de catalogação dos discursos, apesar de parecer que Platão confere

71
É interessante notar a etimologia do termo diaireo, Trata-se da junção da preposição dia, mais o verbo
haireo, um verbo muito usado e importante na língua grega. Além do sentido mais corriqueiro, o de pegar
com as mãos, de tomar para si, conquistar, há também o de vencer e até matar, e também o sentido
jurídico, no qual, "hairein alguém" (ai{rein tinav) seria condená-lo de algo. A preposição dia, que aqui
entra como prefixo, traz a noção de "através", "ao longo de". O termo diaireo seria etimologicamente algo
como "pegar através" ou "conquistar ao longo", dando a idéia de uma forma de apreensão que se faz
através de todo objeto adquirido. Dividir, cortar, catalogar é um ato de conquistar um objeto
atravessando-o inteiramente.
72
272a.
84

mais importância ao manuseio e aprimoramento da classificação. Não descartamos de


forma alguma a importância de um estudo sistemático e classificatório dos meios de
expressão e das "formas" das almas, e da eficácia de sua inter-relação. Enfatizamos até
mesmo a necessidade de se ter um estudo acerca dos tipos de personalidade em geral73 e
uma investigação do discurso apropriado para cada personalidade. Isso pode ser
realizado por nós mesmos, filósofos, e não por integrantes de outras áreas do saber74 que
não necessariamente conhecem as sutilezas do questionamento filosófico. É
fundamental em um curso universitário de filosofia haver aulas de retórica ou, como há
em certas universidades, cursos de licenciatura, onde se estudaria o modo mais eficaz de
transmitir o conhecimento filosófico, realçando e classificando (diaivrein ei[dh) as
sutilezas necessárias ao discurso para a efetivação do saber filosófico em almas
específicas75.
Em nosso ponto de vista, saber pegar o kairos para falar bem é de extrema
importância e deveria ser praticado nas aulas de oratória; ou melhor, as aulas de retórica
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só podem ter seu coroamento, na prática, onde o kairos, o momento oportuno, existe
concretamente, sendo possível, assim, aprender a manipulá-lo. Um discurso se faz com
gestos, com pausas e entonações apropriadas, e Platão enfatiza quase todos esses
aspectos como importantes na transmissão do saber filosófico. Ele enfatiza que apenas o
uso exaustivo de todas essas técnicas apreendidas pela classificação pode produzir um
conhecimento do kairos de cada uma delas. É necessário explicitar a importância para
Platão de se pegar o kairos do discurso. Essa passagem é bem clara no que se refere a
uma atenção particular ao mundo da prática e da experiência concreta para o correto
aprendizado de qual discurso se relaciona melhor com qual alma. Mesmo aquele que já
descobriu teoricamente qual tipo de discurso é mais aplicado para certo tipo de alma
deve estar atento para o momento oportuno de utilizá-lo, e também para o momento de
ficar quieto e de falar, de usar um estilo mais rude ou um mais sutil, etc.76. Um discurso
que se quer inscrever na alma do ouvinte deve estar livre para poder se ajustar a cada

73
Apesar de não ter me dedicado mais profundamente, já tive informações de que há uma pesquisa
realizada sobre os tipos de personalidade na chamada psicologia profunda de Jung (a Tipologia), e afirmo
que o diálogo com tal área do saber seria de grande interesse para nós, filósofos, pois seria um estudo e
uma organização, como propõe Platão, das almas humanas.
74
A Neurolingüística parece exatamente um estudo profundo de que meios de expressão são aptos ou não
a certos grupos de pessoas e a certos temas.
75
Não quero entrar em detalhes acerca do modo como esses cursos de licenciatura são empregados hoje
em dia, pois acredito que o saber filosófico contém tamanhas sutilezas que há a necessidade de um estudo
particular para a sua transmissão.
76
E saber a oportunidade e a não-oportunidade dessas formas (de discursos) touvton th;n eujkairivan te kai;
ajkairivan diagnovnti.
85

necessidade e, se quisermos usar um linguajar realmente grego, poderíamos dizer: o


discurso deve ser livre para os ditames da deusa kairos. O orador deve fazer perguntas
para seu ouvinte, como Sócrates fazia, e, a partir das respostas, reformular o que disse
ou até encaminhar o discurso para outro assunto que no momento se mostrou mais
apropriado. Parece que Sócrates possuía essa característica de estar aberto para
reformulações e readaptações do caminho da investigação.
A correta explicitação desse termo, kairos, é de capital importância para se
compreender o modo de ação do estilo de um discurso oral. Podemos apresentar em
defesa desse ponto um argumento muito simples e comprovado pelo senso comum: o
mesmo texto, especialmente quando trata de assuntos rebuscados da alma humana,
como é o caso da filosofia, faz surgir compreensões de teores diferentes em momentos
diferentes. É como dizemos cotidianamente que, ao ouvirmos o mesmo discurso em
momentos diferentes de nossa vida pessoal, o texto soa de forma diferente. É claro que
essa diferença não está relacionada com aquilo que o texto tem de denotação da
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realidade, como se uma simples frase proposicional, como "Há um lápis laranja sobre a
mesa", fosse ganhar sutilezas que antes não possuía ao nos debruçarmos sobre ela em
momentos diferentes. Trata-se aqui de um texto complexo, no qual se pretende uma
repercussão de sentidos em diversas esferas de nossa vida (nas diversas partes de nossa
alma, como diria o Platão do Fedro e da República), como se o indivíduo possuísse
ciclos sazonais de compreensão77, e somente estivesse maduro para receber
determinado conhecimento em momentos também específicos. Estamos falando de um
conhecimento que é inscrito na alma do ouvinte78 e, por isso, regulariza e organiza as
respostas existenciais desse indivíduo em seu cotidiano. Tal conhecimento perpassa
vários níveis da personalidade do indivíduo e, dessa forma, tem sua peculiaridade para
ser corretamente transmitido.
A idéia de kairos remete a uma noção dupla: uma (1) circunstância temporal
(efêmera) ou espacial (localizada) composta por vários elementos que é (2) propícia a
determinado evento. Primeiramente, é bom lembrar que a palavra circunstância traz a
idéia de um centro pontual sustentado por uma série de elementos circundantes. A

77
A noção de a possibilidade de compreensão possuir ciclos sazonais está relacionada com a
preponderância do relato dos mitos às crianças. Cf. livro II e III da República.
78
Como será visto, no capítulo sobre a Carta VII, em que também tratamos sobre a quarta parte do Fedro,
em que Sócrates usa a noção de palavra inscrita na alma, o}" met! ejpisthvmh" gravfetai ejn th'/ tou'
manqavnonto" quch',/ "aquela que com ciência é inscrita na alma daquele que sabe". Por fim, a arte da
retórica que inclui saber apreender o kairos de falar e permanecer em silêncio terá sua proveniência desse
saber inscrito na alma, 275e.
86

pontualidade é essencial na noção de kairos. Kairos é um aspecto do tempo e do


espaço, é uma forma de qualificação da realidade. Essa palavra traz imbuída em seu
significado a noção de que a realidade é composta por "oportunidade"79. É como se a
própria língua grega apontasse para um ente e afirmasse, por conseguinte, a existência
desse ente, "oportunidade". Cada realidade particular da existência tem um momento e
um lugar apropriados para se originar, para se desenvolver e para findar. “Há tempo
para tudo”80, assim corre a sabedoria popular. Assim como a agricultura, o corpo
humano, o nascimento ou a morte, toda a natureza e toda realidade é perpassada por um
aspecto de oportunidade temporal para efetivar-se. Porém, essa temporalidade não é
regular e retilínea, mas é composta por movimentos cíclicos e, às vezes, até irregulares e
inesperados, que formam pontualmente o que chamamos de "oportunidade". Essa
particularidade da realidade é kairos. Tudo tem seu momento oportuno para efetivar-se,
tudo tem seu início, seu ápice e seu declínio81. A determinação desse momento envolve
um assunto muito importante e complexo de que não tratarei aqui: a questão do destino.
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Importa salientar, no entanto, que certos fatos do ser do homem não estão sob o seu total
arbítrio, como seu próprio corpo, por exemplo.
O termo kairos, assim como tykhe (sorte, fortuna), eram de suma importância na
medicina da Grécia Clássica82. A palavra para remédio em grego é pharmakon, porém,
essa mesma palavra pode dizer "veneno". A medida correta do pharmakon, na tentativa
de restituir saúde ao indivíduo, era o kairos. As deusas tykhe e kairos ditavam o
momento correto e a quantidade certa de remédio-veneno que o enfermo deveria
consumir. Pois muitos remédios apenas se tornavam eficientes, se dosados de tempos
em tempos específicos, e, se não eram corretamente ministrados, podiam se tornar
mortais ao paciente. Hoje em dia os remédios também são dependentes de kairos
específicos. Assim, em relação à medicina, o momento em que uma ação é realizada
altera completamente sua identidade: na filosofia acontece o mesmo processo. Qualquer

79
Do latim, opportunitas, também traz a idéia dupla de tempo ou espaço apropriado. Já o adjetivo,
opportunus, explicita a etimologia: que impele para o porto, que vem a propósito, etc. É composto de ob,
que diz "ao encontro de", e portus, que diz: Passagem, porta de entrada, entrada do porto. Porto.Fig.
Asilo; refúgio; retiro. Foz dum rio. Esta última, portus, lembra a grega poros, forma de passar o rio,
passagem, caminho, recurso, etc.
80
Cf. o livro de Eclesiastes, 3,1 “Tudo tem seu tempo, há um momento oportuno para cada
empreendimento debaixo do céu.”.
81
O número três (presente na idéia de início, meio e fim) é consagrado às deusas femininas no panteão
Helênico, especialmente à Hécate, a contraparte negra da deusa Ártemis, que é um aspecto da deusa
lunar. A lua é o próprio princípio temporal na astronomia antiga, e o numero três está associado tão
essencialmente ao tempo quanto ao feminino.
82
De novo, temos aqui a analogia entre a medicina e a filosofia.
87

ensinamento que é transmitido pode não se concretizar com a mesma identidade se não
se atentar para o seu kairos específico e, nesse sentido, não se tratará do mesmo dado de
conhecimento.
Nos escritos hipocráticos, há várias passagens nas quais se mostra a importância
do termo kairos. No primeiro aforismo do livro chamado “Aforismos”, temos: “A vida é
curta, e a Arte é longa; o kairos, passageiro; a experiência, perigosa, e a decisão, difícil.
O Médico deve não apenas estar preparado a fazer o que é correto, mas também fazer o
paciente, o atendente e os fatos externos cooperarem.”83 Aqui está claramente exposta
uma característica básica da medicina, que é saber aproveitar o momento oportuno na
aplicação de sua arte. Em seguida, apresentamos certas passagens da literatura grega,
nas quais esse termo ocorre, para tentar elucidar seu sentido.
Kairos usualmente remete a um momento oportuno, ou a um fato ou
circunstância oportuna. Sófocles, em Antigona84, menciona a expressão kairion legein
(kaivrion levgein), utilizando o advérbio de kairos para expressar uma fala apropriada,
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que veio em bom tempo. Assim, o adjetivo nominalizado no plural, ta kairia


(ta; kaivria), remete a um conjunto de fatos que são favoráveis a determinado objetivo.
Porém, esse mesmo adjetivo pode significar as partes vitais do corpo em que uma ferida
pode ser mortal. Na Ilíada85, para dizer que certa lança penetrou a fenda da armadura e
feriu um órgão vital (façanha de um oportunismo exato), é dito que a lança penetrou en
kairioi (ejn kairivw)/ . Em Tucídides86, é utilizada a expressão kairon lambanein
(kairovn lambavnein), significando o feito de não deixar a oportunidade passar, ou
melhor, de "roubar" a oportunidade, pegá-la no momento correto. Platão, nas Leis87, usa
a expressão kairos kheimonos (kairov" ceimw'no") se remetendo à estação do inverno, ao
momento apropriado do inverno. Aristóteles88 usa kairoi somaton (kairioi; swmavtwn),
ao falar do momento favorável do corpo, o corpo jovem, e também do momento
apropriado do corpo para certas atividades, como dormir, comer, etc.
Na mitologia grega, existe uma personificação de kairos. Ela é uma deusa com
cabelos para frente e careca na parte de trás da cabeça. Assim como Hermes, ela tem
asas nos pés e carrega também uma balança que se pendura por uma navalha. Como ela
mesma nos diz em um poema de um autor desconhecido da época clássica, aquele que

83
Hipócrates, Aforismos 1.1
84
724
85
4, 185
86
2, 34
87
709 c
88
Político 7, 16, 11
88

vem ao seu encontro pode pegá-la pelos cabelos, mas depois que a oportunidade passou,
não mais podemos agarrá-la por trás, nem pelos cabelos; as asas nos pés indicam a
velocidade estonteante em que passa pelos homens; a navalha na balança indica sua
minuciosidade na escolha dos seus momentos. Em sua personificação, aprendemos
como a oportunidade é pontual, isto é, ela tem seu momento específico e é irrevogável
em sua chance.
A noção de estação, de ciclos, de mudanças e particularidades espaciais
necessárias para determinada ocorrência, tudo isso está imbuído no significado de
kairos. Para tudo há um momento apropriado, assim, o saber filosófico, que molda a
vida de quem o possui, também respeita essa lei. Como já dissemos, o conhecimento é
sazonal, i.e, ele tem o seu momento próprio para ser aprendido. O saber filosófico trata
das grandes compreensões existenciais, como a morte, a verdade de tudo, o amor, e
pressupõe que elas dependem da boa utilização do kairos para se realizarem. O kairos é
o regente das mudanças em nossas compreensões existenciais mais profundas, sem o
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momento oportuno nunca aprendemos efetivamente acerca desses temas. Estamos


tratando aqui de um tipo de compreensão da ordem da conduta e especialmente de uma
visão de mundo que vem antes até de escolhas conscientes. A visão de mundo, à qual
referimos aqui como dependente do kairos para o seu amadurecimento, é, no linguajar
de Platão, a forma da alma, a qual podemos ver com mais detalhes no livro II da
República89. Uma compreensão, que é fruto de uma condução da alma, de uma inscrição
na alma, de uma conversão e de um molde da alma, é processada bem mais amplamente
que uma simples apreensão de elementos de uma proposição denotativa: ela é um
acontecimento existencial, uma experiência vital que transforma a vida do indivíduo e,
por isso, está além da vontade particular desse indivíduo mas, como todos os
acontecimentos naturais, respeita um kairos próprio.
Porém, um outro problema surge por essas últimas afirmações. Assim como não
temos controle dos processos de crescimento corporal, também não temos controle total
do processo de aprendizado efetivo do saber filosófico. Não podemos simplesmente
decidir que tal texto acerca do amor, por exemplo, será compreendido existencialmente
agora. Isto pode nos levar a uma certa apatia perante o conhecimento, como se de nada
adiantasse procurar aprender algo se a sua efetiva compreensão apenas poderá se
concretizar no seu devido momento. Em oposição a essa apatia, acreditamos que um

89
O termo usado lá é plattein, moldar, e é esse o processo operado pelos mitos nas crianças. República
377b
89

estudo sistemático e conceitual de um texto seja de essencial importância para uma


eventual compreensão existencial do assunto ali tratado. No entanto, como esse tipo
profundo de compreensão é tão difícil de ser manipulado, por se relacionar com a noção
de destino, a academia muitas vezes abdica de tal tarefa e se limita a uma transmissão
conceitual e técnica de textos que apenas ganham sentido em sua efetivação existencial.
É uma afirmação importante e pouco levantada pela academia e pelos filósofos
em geral que o saber filosófico tem seu kairos para efetivar-se. Isso nos faz afirmar que
o modo como normalmente se encara o estudo da filosofia não leva em conta a história
pessoal de cada aluno. Na tentativa de transmitir noções importantes acerca do amor e
da morte, por exemplo, a academia poderia ser menos abstrata e mais intimista, levando
em consideração as particularidades de cada aluno, de cada alma, como o era na Grécia.
A filosofia, forjando um discurso apropriado, pode tentar realizar-se a partir das
necessidades de cada momento e de cada alma. A retórica filosófica proposta aqui, no
Fedro, é essa atenção ao discurso apropriado, ao meio de expressão conveniente para a
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efetivação de um saber que remete a uma mudança de atitude na vida prática, um saber
acima de tudo ético, como era o saber filosófico na Grécia. Fazer da academia um lugar
onde se possam pensar essas questões de forma existencial não é nenhuma utopia, mas
algo que pode ser realizado com o devido esforço e estudo.
Chegamos aqui a uma explicitação do que era um acontecimento psicagógico
para um grego: aquele acontecimento que ocorria em um momento oportuno específico,
no qual a alma do ser humano, individual e particularizada, era moldada e conduzida a
uma certa compreensão da realidade, compreensão essa a partir da qual a vida do
indivíduo era vivida. Lidando ainda com a noção de que uma compreensão filosófica
pressupõe um acontecimento psicagógico onde a alma como um todo é conduzida a tal
compreensão, vamos acompanhar o início do diálogo Cármides, para entendermos a
necessidade da entrega da alma nas conversas filosóficas.

2.3. CÁRMIDES E A ENTREGA DA ALMA

Logo no começo deste diálogo, vemos uma situação que se repete no início do
Teeteto, e que parece ser uma situação comum: Sócrates, retornando a Atenas de uma
batalha, pergunta a amigos quais entre os jovens se destacam na filosofia e quer
conhecê-los. Crítias logo faz Sócrates lembrar-se de Cármides, jovem filho de Gláucon,
90

considerado, além de bom poeta90, o mais belo de seu tempo. É instalada no início deste
diálogo toda uma ambiência que faz ressaltar a beleza do jovem que tratará sobre a
sensatez (sophrosyne). Com certeza, essa ambiência, cheia de sensualidade e
romantismo entre Sócrates e o belo jovem, ambiência que nos lembra, por um lado, os
impulsos de desejo e, por outro, a socrática contenção de si, é importante em um diálogo
que propõe uma investigação viva sobre a sensatez ou a temperança91. Ainda nesse
intróito, construindo uma ambiência frutífera para a investigação da sensatez, Platão nos
lembra da importância da beleza que vai além dos sentidos, a beleza da alma, pois
Sócrates, mesmo contemplando toda a beleza física de Cármides, ainda quer saber se o
jovem tem a alma tão bela como o seu corpo: quer além de desnudar o seu corpo,
desnudar sua alma. Aqui, Platão começa a delinear aquilo a que queremos chamar
atenção: um acontecimento filosófico, aquele que é uma condução da alma, psicagogia,
deve ter a participação plena dos investigadores, seus corpos e almas, e não apenas a
participação de uma parte deles, a racional, por exemplo. Sócrates, ao querer ter um
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diálogo com Cármides, diálogo que seja uma experiência filosófica viva e
engrandecedora, quer desnudar principalmente sua alma, pois é na dimensão desta
última que se processa a filosofia verdadeira.
Crítias pede então para Sócrates que se faça passar por alguém que conhece um
remédio para curar dores de cabeça, mal que Cármides tem reclamado sofrer, e envia
um menino para chamar Cármides. É aqui que entra a passagem sobre a importância da
entrega da alma92 para que ocorra uma filosofia que seja verdadeira e que transforme as
dores da vida. Sócrates diz conhecer um remédio que um médico trácio, aluno de
Zalmoxis93, deus da medicina na Trácia, certa vez lhe deu, e que consiste em uma planta

90
É interessante ressaltar a relação natural que há para os gregos entre os homens de saber, os filósofos, e
os poetas, 155a.
91
A palavra sophrosyne é de difícil tradução. Tem, em seu radical, relação com saos, e phren, saudável e
espírito, mente. Phren, no entanto, também designa a parte entre o coração e o abdômen, o diafragma,
mostrando forte relação com o mundo concreto dos sentidos. Acreditamos que a palavra "sensatez" traduz
bem o termo sophrosyne por conter tanto o aspecto sensorial em seu étimo quanto o espiritual em seu
sentido. As palavras temperança e prudência parecem perder sua força se tivermos em mente toda
discussão da segunda parte do Cármides sobre a sophrosyne ser ou não conhecimento de si e, por isso, ser
ciência das ciências. No entanto, a tradução mais comum para o português é temperança.
92
A expressão literal encontramos em 157 b thvn yuchvn parascei'n th'/ ejpw/dh/', entregar a alma para o
encantamento. A passagem que vamos agora tratar é a 155e – 157d.
93
Zalmoxis era um deus trácio sobre o qual Heródoto (V, 97) nos conta uma lenda. Os gregos do mar do
Ponto diriam que esse Zalmoxis antes de ser um deus era um escravo, discípulo de Pitágoras, e que
chegou a ser rei dos trácios. Cf. PLATON. Charmide. trad. Alfred Croiset. Belles Letters: Paris, 1949. p.
56, nota 2.
91

e certo encantamento94 (ejpw/dhv) que deve ser entoado ao utilizar o remédio. No entanto,
Sócrates não pode entregar a qualquer um o encantamento, pois este tem certas
características especiais: o encantamento não pode curar a dor de cabeça separadamente.
Antes, tais palavras mágicas devem ser ditas somente àqueles que se dispuserem a
entregar a alma para o curador. Trata-se aqui de uma concepção da medicina muito em
voga hoje em dia, o holismo. Diz Sócrates que o tal discípulo de Zalmoxis teria
afirmado que o corpo não pode ser curado separadamente da alma, e que a raiz e fonte
dos males e bens do homem é a alma humana, sendo assim necessário cuidar do homem
enquanto um todo e não apenas de parte.

“... que assim como não se deveria tentar curar os olhos sem curar a
cabeça, e também nem a cabeça sem o corpo, da mesma forma não se deveria
tentar curar o corpo sem curar a alma; esta seria a causa de, entre os gregos, muitas
doenças escaparem aos médicos, pois ignoram o todo (to; o{lon), ao qual é
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necessário prestar cuidado pois, não estando ele bem, seria impossível que a parte
estivesse. De fato (...), todo o mal e todo o bem, para o corpo e para o homem,
provêm da alma e dela dimanam. É preciso, pois, tratar (qerapeuvein) desse aspecto
em primeiro lugar e acima de tudo, se se quer passar bem da cabeça e do resto do
corpo.”95

Cabe lembrar a relevância dessa passagem para o estudo dialético que vai se
desenrolar durante todo o diálogo: Sócrates está aqui introduzindo o questionamento
filosófico e não simplesmente ludibriando o jovem. O que Sócrates quer em realidade é
saber sobre a beleza da alma do jovem, isto é, se ele tem aptidão para a filosofia, e, por
isso, ele vai fazer nascer o questionamento filosófico a partir de um interesse vivo e
particular deste jovem específico. A força psicagógica de todo questionamento posterior
está em ele nascer exatamente de uma necessidade existencial do interlocutor de
Sócrates, a dor de cabeça, e não de imposições alheias ao seu interesse. A necessidade
da entrega da alma, de que se esteja inteiro no questionamento filosófico é premente em
um questionamento que se quer mais que mera elucubração de teorias, ele quer ser uma
condução da alma, uma redenção e transformação vital.

94
Um texto muito esclarecedor sobre as relações entre magia e filosofia em Platão é BELFIORE,
Elizabeth. “Elenchus, Epode and Magic: Sócrates as Silenus” in Phoenix. Vol. XXXIV Numero 2,
Classical Association of Canadá: Toronto, 1980. p. 128-137
95
Cármides 156e. As traduções do Cármides seguem a tradução de Benjamim Jowett, Chicago, Longon,
Toronto: Encyclopedia Britannica, 1952. (Great Books of the Western World)
92

O próximo trecho, então, apenas corrobora o que já suspeitávamos: o


encantamento que deve ser proferido junto com o remédio, para que este tenha efeito,
não é nada mais que o questionamento dialético, o logos, que faz surgir na alma a
sensatez, sofrosuvnh.

“Ele disse que o tratamento da alma (qepareuvesqai de; th;n yuch;n) são
certos encantamentos; tais encantamentos são belos discursos (logous) e, a partir
de tais discursos, a sensatez nasce na alma. Com a sensatez nascendo e estando
presente, é então fácil a saúde entrar na cabeça e no resto do corpo. Então, ao me
ensinar o remédio e o encantamento, ele acrescentou ‘ninguém pode te persuadir a
curar a cabeça com esse remédio se não tiver primeiro entregue a alma ao
encantamento para ser curada por ti. Pois no presente’, ele disse, ‘este é o erro em
meio aos homens, que alguns médicos tentam empreender separadamente a saúde
do corpo e a sensatez.’.”
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Aqui temos explicitamente a formulação de que não se pode fazer filosofia, e


isto sempre implica procurar a felicidade, sem que a alma como um todo esteja
participando da investigação. A filosofia, ao entrar efetivamente na vida de um
discípulo e produzir sua força transformadora, não pode lidar com uma parte do real,
isto é, o ser ou o conhecimento, ou ainda a beleza ou a justiça, etc., sem afetar o
conjunto da alma do homem: sem uma entrega prévia ao questionamento, o efeito do
"remédio" da dialética não pode surtir resultados. Os encantamentos que devem ser
entoados ao tomar o remédio são os questionamentos dialéticos, que investigados com a
devida preparação prévia, a entrega total e irrestrita da alma do ouvinte, provocam uma
transformação de caráter de tal magnitude a produzir a sensatez e temperança no
homem96. A posição que se toma aqui é a de que a própria investigação que é feita no

96
Podemos ainda interpretar esses símbolos da dor de cabeça, da planta e do encantamento de uma outra
forma, apesar de a primeira já apresentada parecer refletir melhor o movimento do próprio diálogo
Cármides. A seguinte interpretação não tem pretensão de resgatar o sentido do texto, mas apenas de
esclarecer o nosso ponto de vista utilizando as próprias imagens do texto. A dor de cabeça seria o
problema existencial por excelência, a questão da felicidade. A planta, algo concreto e de fácil acesso, são
argumentos racionais que podem ser usados a qualquer momento, só que não produzem o efeito adequado
sem o encantamento próprio. São os argumentos racionais que em última instância transformam a forma
de viver do homem, pois a partir deles e do que eles apresentam como real, não é mais possível
compreender a vida de outra forma. Aquilo que é provado por um argumento racional não pode ser
negligenciado pela alma. No entanto, a alma, mesmo tendo acesso aos argumentos racionais, continua
negligenciando-os, pois ela utiliza os argumentos racionais sem o prévio "encantamento" necessário para
que eles forneçam o seu resultado adequado. Os "médicos" de nosso tempo, isto é, os próprios filósofos,
aqueles que exercem a dialética, também utilizam os argumentos racionais sem o devido envolvimento
prévio. O encantamento por sua vez é a própria disposição do ouvinte de se entregar aos argumentos
93

Cármides sobre a sensatez já é o encantamento: aquele que tem sensatez com certeza
sabe o que ela é (158b) e, assim, a investigação do que é a sensatez, se feita sob a
entrega da alma do ouvinte, produzirá a mesma sensatez em sua alma. Mesmo o diálogo
terminando em aporia, pois Sócrates, Cármides e Crítias não conseguem encontrar a
sensatez, um grande resultado é conquistado: Cármides reconhece a ignorância do que
seja a sensatez e se propõe a seguir Sócrates e entregar-lhe a alma, fato que já se iniciou
durante o diálogo, para que possa aprender o que seja a sensatez e receber o
encantamento que a proporciona. O diálogo, em verdade, vai além de seu aparente
motivo principal, que seria o de sanar a dor de cabeça de Cármides, e faz surgir no
jovem a fascinação pela dialética e pela investigação da natureza das coisas. Cármides
quer ser enfeitiçado por Sócrates, e seu tutor, Crítias, ainda sugere que ele faça isso
mesmo.
Vamos ainda analisar esse diálogo em sua estrutura geral, apresentando como a
relação entre enfeitiçamento e filosofia, e a noção de condução da alma, psicagogia97,
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aparecem no decorrer do diálogo. O Cármides tem claramente duas partes: a primeira,


introdutória, em que Sócrates dialoga com Cármides (153a – 162c), e, juntos, colocam
em aporia três respostas desse à pergunta "o que é a sensatez ou temperança"; a
segunda, vai da entrada de Crítias (162c), tutor de Cármides, até o fim do diálogo, no
qual Sócrates volta a conversar com Cármides. A segunda parte, o diálogo com Crítias,
esse sendo mais velho e mais experiente, ganha uma profundidade muito maior e se
permite navegar por mares que Cármides, pela sua idade, não teria fôlego para navegar.
Esse movimento parece espelhar o movimento que a própria filosofia faz ao se
aproximar de um neófito e ali fazer sua morada. Em um primeiro momento, todo um
mundo sensual e sensorial é descrito, com a ênfase na beleza de Cármides e no prazer e
amor que tal beleza provocam. Com o começo da beleza da alma de Cármides se
revelando, e o próprio diálogo ganhando força e beleza, o tema discutido ganha maior
radicalidade e profundidade filosófica, no diálogo com Crítias, abandonando o mundo
sensorial provocado por Cármides e indo para a beleza da investigação nela mesma,
como se tivesse havido uma conversão da alma do mundo sensório para o mundo das

racionais e de estar em um momento adequado para ouvi-los. Sem esses encantamentos, sem uma postura
de amizade com o interlocutor, sem a alma estar em um momento adequado para aquele tipo específico
de argumentação, sem o amor e reverência pelos assuntos tratados pela dialética, sem uma comoção
psicagógica com o que está sendo investigado, os argumentos racionais não podem produzir o efeito de
eliminar a dor de cabeça.
97
É importante lembrar que o termo psykhagogia não aparece explicitamente nesse diálogo, mas pode-se
pressupor que a noção de condução da alma está presente, principalmente na relação com a entrega prévia
da alma para ser curada pelo suposto encantamento de Sócrates.
94

idéias98. Assim, vemos a psicagogia, a condução da alma que parte da beleza de um


mundo mesclado pelos elementos do sentido para a beleza do mundo das idéias em si
mesmas. Essa é a diferença entre o "amante de espetáculos" e o filósofo, pois esse
consegue ir além da beleza do mundo sensório e se descobre em um outro mundo, mais
radical e intenso, onde a beleza ela mesma aparece com mais nitidez e pureza.
É interessante perceber um traço peculiar da mudança de nível do diálogo no
momento da passagem de Cármides para Crítias como interlocutores. Cármides
apresenta em sua terceira tentativa uma definição de sensatez que parece ser de Crítias,
apesar desse negar ser o autor: fazer o que lhe é próprio99. Quando Sócrates refuta
também tal definição, e Cármides afirma que talvez o autor da definição não soubesse o
que estava dizendo, Crítias, que já há algum tempo se mostrava inquieto com seu pupilo
caindo em sucessivas aporias, entra no diálogo. Uma frase, porém, chama atenção: “(...)
pois Crítias não se conteve, mas me pareceu estar irritado com Cármides, assim como
um poeta com um ator que apresenta mal seus poemas”100. O ponto interessante aqui é
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que a diferença entre o poeta e o ator que repete o que o poeta escreveu é que esse tem
em si toda a experiência que o levou a cunhar seu poema, e já o ator não
necessariamente tem tal experiência, experiência essa que em realidade funda e dá
sentido ao poema. Esta frase que marca a entrada de Crítias, que por sua vez mostra a
passagem do diálogo a um nível mais elevado de discussão, e também mostra a
condução da alma para lugares mais ricos em idéias puras, lembra-nos que a diferença
entre os dois níveis está em que o primeiro ainda não fez a experiência que levou a
cunhar as definições, mas apenas repete algo que ainda não compreende totalmente.
Quando a alma começa a ser conduzida para o "alto", ela começa a fundamentar suas
opiniões, isto é, a experimentar aquilo que a levou a chegar a tais opiniões. É como se o
ator que repete os poemas fosse levado a fazer a experiência daquilo que levou o poeta a
cunhar seus poemas.
Por fim, temos também o encantamento do próprio Cármides, a sua conversão
para Sócrates e sua resolução de segui-lo, isto é, entregar-lhe a alma para que ele
também possa ser elevado para a beleza desse mundo onde os conceitos dialogam
consigo mesmos. Vemos também o encantamento de Sócrates sobre Crítias, que,

98
Vale salientar que é senso comum entre os comentadores que não há, ainda, nos diálogos inciais, como
o Cármides, as “idéias platônicas” propriamente ditas. Veremos com mais vagar em outro capítulo a
noção de conversão como essencial para a filosofia platônica.
99
161b
100
162d
95

mesmo sendo mais velho, é levado pelas dúvidas de Sócrates a também ficar em dúvida
sobre o que ele acreditava que sabia: “E Crítias, ao ouvir essas palavras e me ver em
aporia, assim como aqueles que vêem outros bocejando em sua frente experimentam a
mesma sensação, pareceu-me ser forçado pela minha aporia a ele também ser
conquistado pela aporia.” 101

2.4. CONCLUSÃO DOS DOIS PRIMEIROS CAPÍTULOS

Podemos dizer que os dois capítulos precedentes dispõem de dois focos


principais ao analisar a importância do termo psykhagogia para a filosofia platônica: a
poesia-música e a retórica. Em relação à poesia, especialmente à tragédia, que era
compreendida como uma psicagogia, concentramo-nos na República, da qual
analisamos principalmente os livros II, III e X, em que está mais explícita a relação de
Platão com a poesia de sua época. Percebemos ali que as tão famosas críticas que
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Sócrates apresenta à poesia não alcançam o modo de educar realizado por ela,
restringindo-se ao conteúdo do que ela ensina, e também que Sócrates apresenta a
importância do poder de persuasão poético para uma boa educação filosófica. Ainda
lidando com a poesia-música, apresentamos a importância do trecho denominado o
amante de espetáculos para mostrar como o filósofo é também um amante de
espetáculos, mas do espetáculo da verdade, resumindo assim o poder educativo
saudável que pode haver em uma apresentação teatral típica da época.
Em relação à retórica, analisamos trechos de dois diálogos em que Platão parece
expor sua concepção de retórica, encontrando, no Górgias, um lugar apropriado para o
bom retórico e, no Fedro, a definição de retórica como uma psicagogia. A partir desses
textos, apresentamos a necessidade de a própria filosofia ser também uma psicagogia, já
que ela deve conduzir a alma do ouvinte ou leitor para uma concepção específica, e
assim necessitar também da retórica.
Por fim, mostramos, com base no Cármides, a necessidade de uma entrega da
alma para que a discussão possa ocorrer de modo frutífero, isto é, para que ela possa
transformar a vida daquele que investiga.
Esses dois capítulos procuram mostrar que uma filosofia que não se propõe a ser
uma psicagogia, como a tragédia e a retórica se propõem, não cumpre os quesitos

101
169c
96

necessários para que transforme a vida dos seus adeptos, perdendo desse modo o sentido
básico do filosofar grego: alcançar a vida boa. É nesse sentido que a filosofia platônica
pressupõe uma experiência vital, uma vivência radical do que é investigado, pela qual o
filósofo possa realmente compreender algo com toda sua alma, de modo a transformar o
seu modo de viver e ver a vida.
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Terceiro Capítulo
A Crítica à Escrita e a Vivência Filosófica

A partir de muita convivência


com o mesmo tema e de uma vida dedicada a isso,
subitamente, como a luz nascida do fogo,
brota na alma a verdade, para então crescer sozinha.

Carta VII, 341c


E as pessoas que estão apenas começando a aprender
uma ciência podem recitar suas frases, mas não conhecem
o seu significado, já que o conhecimento tem de entranhar-se
nestas pessoas, e isto requer tempo; devemos portanto supor
que as pessoas incontinentes usam a linguagem da mesma forma
que os atores dizendo as suas falas.

Ética a Nicômacos, VIII 1147a 21-22


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Como vimos afirmando desde o início desta tese, o saber filosófico para Platão
só é rigorosamente transmitido através de um processo pessoal, em que há entrega total
da alma à questão investigada e uma transformação ética em conseqüência do processo
de investigação. Em vista disso, a posição que a escrita ocupa nesse projeto de
transformação ética torna-se problemática, especialmente quando percebemos a
fragilidade da garantia que um escrito tem sobre a experiência pessoal pela qual passa o
leitor. Em verdade, nada em um texto garante que a experiência vital necessária à
inscrição do saber na alma do leitor se processe adequadamente. Um fato cotidiano pode
ilustrar tal falta de garantia: todos nós já experimentamos a diferença que o momento
existencial no qual lemos um texto exerce na compreensão que captamos dele. Em uma
determinada época, quando por acaso experimentamos vitalmente certas questões, um
livro ou um texto pode ganhar toda uma ambiência que antes não tinha. Trata-se de
salientar aspectos sutis da compreensão proveniente da leitura e, conseqüentemente, de
criticar certa teoria, não explícita no mundo de hoje, de que o significado de um texto
independe do momento existencial do leitor. Quando lidamos com os assuntos
filosóficos, assuntos estruturais na compreensão de mundo do homem, não podemos
supor que haja uma neutralidade no indivíduo que pode absorver imediatamente
qualquer "informação teórica". É que os caracteres exteriores – a escrita, por exemplo –
não apreendem o que é essencial na transmissão do conhecimento filosófico: o logos
que tem alma e é vivo dentro daquele que sabe. Para participar de tal logos, uma
98

inscrição na alma é necessária, inscrição essa que nos leva além do nome, da definição,
da imagem e até mesmo do conhecimento sobre o tema, e nos lança à contemplação da
coisa em si mesma, para que participemos de sua luz.
A Carta VII e o final do diálogo Fedro são normalmente relacionados pela
crítica que ambos fazem à escrita, e é ela que nos auxilia agora a entendermos o que
Platão quer quando nos deixa os seus escritos: ele quer (1) que possamos brincar com as
brincadeiras com que ele brincou, ou (2) que possamos nos recordar daquilo que já
sabemos, em uma alusão à reminiscência, ou quer indicar sinais (hinos) para que, se
pudermos seguir sozinhos os passos daqueles que nos precederam, e com pouca ajuda
pudermos aprender, (3) que consigamos inscrever em nós o seu logos. É nesse sentido
que esses dois textos nos são relevantes para defendermos a importância de uma
experiência pessoal e radical com o tema investigado para que tenhamos uma real
compreensão.
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3.1. A CARTA SÉTIMA

De muito que as treze cartas se incluem nas obras completas de Platão. Em


Diógenes Laércio, já as encontramos: “[...] e também as Cartas, treze em número, que
são do gênero ético. Nelas, vinha escrito ‘esteja bem’, (eu prattein)1”. Logo em seguida,
temos a sua lista contendo as mesmas que hoje ainda temos: “[...] para Aristodemo,
uma, para Arquitas, duas, para Dionísio, quatro, para Hérmias, Erasto e Corisco, uma,
para Laodamante, uma, para Díon, uma, para Perdicas, uma, para os parentes de Díon,
duas.”2 Diógenes ainda nos diz que desde Trasilo elas estavam assim estabelecidas. M.
J. Souilhé3 nos lembra de que Herman, em sua edição do corpus platonicum, teria ainda
incluído outras cinco cartas, que seriam tão evidentemente espúrias que Souilhé nem se
dá ao trabalho de comentá-las. Apesar de essas treze cartas terem sido objeto de crítica
literária quanto à sua autenticidade, não entraremos nos meandros desses argumentos4.

1
Essa é uma expressão de difícil tradução, contendo um advérbio, eu, que diz “bem” e um verbo,
prattein, que diz “fazer”. A expressão indica uma saudação típica grega, desejando o bem do ouvinte ou
leitor.
2
LAERTIUS, Diógenes. Lives of eminent philosophers. Vol 1, III, 61.
3
Joseph Souilhé é quem estabelece e traduz as Cartas para a edição da Guillaume Boudé, da Les Belles
Lettres. Há também uma respeitada introdução.
4
O crítico mais contundente à legitimidade das cartas é EDELSTEIN, Plato’s Seventh Letter. Leiden: E.
J. Brill, 1966. Rohdes apresenta claramente, no início de seu texto, as confusões em que caem os críticos
literários em relação ao que seria legitimamente de Platão no corpus. RHODES, M. J. Mystic philosophy
in Plato’s Seventh Letter. In PLANINC, Zdravko. (Ed.) Politics, Philosophy, Writings. Plato´s art of
99

Isto porque a carta que mais nos interessa, não apenas por ser filosoficamente a mais
relevante, mas também pelo seu conteúdo relativo à presente tese, enfim, a Sétima carta
está, hoje em dia, totalmente fora dessa discussão sobre a autenticidade5. O próprio
Souilhé é quem nos diz ao fim de sua introdução às Cartas: “Das treze cartas que
constituem a coleção platônica, duas nos parecem apresentar todos os caracteres de uma
incontestável autenticidade, a sétima e a oitava.”6 Também o nosso Carlos Alberto
Nunes, tradutor brasileiro das obras completas de Platão, que só por esse motivo já
merece o nosso respeito, afirma:

“Os historiadores, primeiro – Grote e Eduardo Meyer – para só falarmos nos


maiores, e a pouco e pouco os platonistas – conceito de amplitude igual ao da
filosofia – com Taylor e Ottomar Wichmann a encabeçar a lista, hoje pode-se
afirmar sem receio de contestação que já passou em julgado o célebre processo da
inautenticidade dessas cartas, tirante as ressalvas indicadas no lugar devido.”7
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As Cartas são relativamente pequenas, muitas não passando mais de algumas


páginas. A maioria delas se concentra nos episódios que concernem à Siracusa, cidade
da Sicília, onde o tirano Dionísio II8 governava. Para uma visão geral, listamo-las a
seguir, ressaltando a quem se dirigem e, em seguida, sua suposta ordem:

Cartas a Díon e seus amigos: IV, VII, VIII, X


Cartas a Dionísio: I, II, III, XIII
Cartas a chefes de estado: V, VI, IX, XI, XII

Ordem cronológica das cartas: I, XIII, II, V, IX, XII, III, XI, X, IV, VII, VIII,
VI.

caring for souls. Columbia: University of Missouri Press, 2001. Ver também HACKFORTH. The
Authorship of the Platonic Epistles. Manchester: University Press, 1913.
5
Ver Luc Brisson, “La Lettre VII de Platon, Une Autobiographie?” in BRISSON. Lectures de Platon.
Paris: Vrin, 2000, p. 16, nota 2, “Eu acredito, por minha parte, que somente a Carta VII é autêntica”. Ver
também FRIEDLANDER. Plato. An Introduction. Capítulo XIII, p. 236.
6
Lettres. Texto estabelecido e traduzido por Joseph Souilhé. Paris, Les Belles Lettres, 1926. p. xcviii.
7
__________. Fedro. Cartas. Primeiro Alcebíades. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém:
Universidade Federal do Pará, 1986 (Coleção Amazônica. Série Faria Brito). p. 103
8
Dionísio II era filho de Dionísio I, antigo tirano de Siracusa, e por este ser menos relevante para a
compreensão das Cartas, somente quando se tratar deste é que ressaltaremos o numeral I. Quanto a
Dionísio II, será chamado por Dionísio simplesmente.
100

São bastante conhecidas as viagens de Platão a Siracusa; foram três, sendo que
duas na tirania de Dionísio II. A primeira ida de Platão a Siracusa tem o mesmo
propósito que as duas subseqüentes, somente o tirano é que muda: tentar educar o
governante de uma cidade para que esse possa também ser filósofo, como o queria a
República. Na primeira tentativa, em 386, Platão, com 40 anos, vai educar o pai de
Dionísio II, Dionísio I, mas suas intenções são frustradas quando inesperadamente o
tirano desiste do ensinamento de Platão e expulsa-o. Platão é vendido como escravo,
mas Anicérides o compra, retornando assim para Atenas. Dionísio I morre, já velho e
doente, e seu filho Dionísio II assume o poder. Havia em Siracusa um homem chamado
Díon, pessoa importante naquela tirania desde a época de Dionísio I pelo seu parentesco
com o antigo tirano. Muito amigo e admirador de Platão, admirável filósofo na
concepção do próprio Platão, Díon pretendia ver a realeza instalada em Siracusa em vez
da presente tirania. Sendo influenciado por Díon, Dionísio II, em 366, manda chamar
Platão, agora com 60 anos, para educá-lo em filosofia, mas este reluta em ir. Platão
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acaba cedendo aos rogos do tirano e parte novamente para Siracusa, e, lá chegando, não
se identifica em nada com os excessos da cidade: Siracusa é reconhecidamente uma
cidade voltada aos prazeres e às festas, sem a devida continência louvada por Platão.
Após alguns anos, tendências contrárias ao poder de Díon se revoltam em Siracusa,
conquistando influência sobre Dionísio, que termina por exilar Díon, fazendo com que
Platão, à conta disso, desejasse voltar a Atenas, onde o próprio Díon havia se refugiado.
Seguindo a ordem cronológica das cartas apresentada por J. Souilhé, as três
primeiras, I, XIII, II, todas endereçadas a Dionísio, datam desse período em que Platão
já havia retornado uma segunda vez de Siracusa, e estavam, ele e Díon, em Atenas. As
próximas três, V, IX, XII, são endereçadas a homens de estado, provavelmente ex-
alunos de Platão, e não têm relação com os acontecimentos em Siracusa. O que ocorre,
nesse meio tempo, é que Dionísio passa a almejar a volta de Platão, especialmente pela
reputação que este tem em sua época e, com vistas a isso, condiciona a preservação dos
bens de Díon, que permanecem em Siracusa, a esse retorno. Dionísio se dizia pronto a
aprender realmente filosofia, aspirando em realidade ao status de "amigo de Platão". Por
fim, até mesmo Díon insiste com o filósofo para empreender novamente a viagem, e
Platão parte para a Sicília, agora pela terceira vez, em 360, não sem certo
constrangimento, pois não acredita na melhora de conduta do tirano.
Lá chegando, Dionísio não cumpre sua promessa de preservar os bens de Díon,
retirando finalmente a máscara de suposto amante do saber. O tirano e Platão terminam
101

por se desentender, e este volta para Atenas, após alguma dificuldade em convencer
Dionísio a permitir seu retorno. A carta número III, a Dionísio, foi escrita nesse
período, após o terceiro retorno de Platão a Atenas, com severas repreensões à conduta
do jovem tirano. Com seus bens dilapidados, Díon prepara uma expedição contra
Siracusa e vence Dionísio. Platão prefere se manter neutro nessa guerra, pois tinha a
pretensão de ser um elo de ligação entre Díon e Dionísio, sem, no entanto, obter
sucesso. A quarta carta é endereçada a Díon, durante esse período logo após sua vitória,
e nela Platão o aconselha e previne contra os perigos que corre. Mesmo assim, em
pouco tempo, Díon é traído e morto, e a guerra volta à Sicília, e as últimas cartas, VII,
VIII e VI, são todas desse período após a morte de Díon.
Vamos, então, nos ater mais especificamente à sétima carta. Como já dissemos,
ela é uma das últimas, endereçada aos parentes e companheiros de Díon9, além de ser a
mais extensa. A carta como um todo parece ter dois objetivos básicos: Platão procura
explicitar os fatos ocorridos em Siracusa, que o envolveram e que culminaram na morte
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de Díon, com vistas a defender-se de calúnias, e também aconselhar os parentes e


companheiros de Díon no controle da cidade e nos procedimentos para estabelecer a
ordem e uma boa constituição. Platão começa a história desde sua mocidade, contando
sua vontade de participar da política e de como ela foi se transformando a partir do
conhecimento dos caminhos políticos da Grécia. Logo em 326b, ele reitera a convicção
apresentada na República, quando diz “Não cessarão os males para o gênero humano
antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem
seriamente a filosofar, por algum favor divino, os dirigentes das cidades.”10 É com esse
espírito que Platão aceita o convite de Dionísio II, por insistência de Díon, para ir a
Siracusa, agora pela segunda vez, com vistas a transformar aquela tirania em realeza e,
entre outras coisas, educar o tirano em filosofia. Mas logo, como já sabemos, há uma
revolta em Siracusa, e Dionísio expulsa Díon e mantém Platão quase como um
prisioneiro, apesar de a maioria pensar que eram grandes amigos. Entre vários
conselhos e defesas de sua intenção para com o tirano, Platão vai explicando os
acontecimentos para os parentes de Díon. Platão consegue que Dioniso lhe permita
retornar a Atenas e, de lá, permanece em contato com o tirano.

9
Divwno" oijkeivoi" te kai; eJtaivroi" , “aos companheiros e familiares de Díon”. Sobre a quem realmente
Platão está enviando a carta, ver Rhodes, Mystic Philosophy in Plato´s Seventh Letter, p. 196. Ele
argumenta que a carta não foi enviada aos "amigos" de Díon, mas às pessoas do clã de Díon.
10
Todas as traduções da Carta VII são baseadas na tradução de Carlos Alberto Nunes, salvo alguma
indicação.
102

Começam, então, as insistências de diversas fontes para que Platão volte ainda
mais uma vez a Siracusa. Já em 331a, Platão marca um traço importante de seus
procedimentos, que parece guiar o seu modo de testar Dionísio nessa terceira viagem a
Siracusa. O que ele expressa se parece com a máxima cristã, “Não dê pérolas aos
porcos”, pois Platão afirma que não aconselha quem primeiro não lhe tenha pedido e em
segundo não lhe pareça poder aproveitar os seus conselhos. Não se trata, portanto, de
acordo com Platão, de forçar alguém a compreender sobre os assuntos mais importantes
de sua vida11: esses assuntos seriam “os cuidados que devemos dar ao corpo e à alma,
etc.”. Vemos aqui já um importante passo para pensarmos a questão pessoal que está
por trás de toda investigação filosófica, como defende a presente tese. Platão não se
propõe ensinar filosofia, isto é, não se propõe indicar como dirigir seus atos da melhor
forma possível, a não ser que haja um interesse pessoal do aluno. Não pode haver uma
transmissão impessoal ou forçada dos conhecimentos primordiais da vida: o próprio
aluno deve passar por um processo pessoal no qual o conhecimento será inscrito em sua
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alma, e não absorvido abstratamente, como um conjunto de regras rígidas a serem


seguidas12. A noção de experiência vital, que pressupõe sempre um envolvimento
pessoal, está implícita em uma afirmação que impede a transmissão de assuntos
filosóficos sem a motivação do aluno, sem um interesse próprio do aluno que dê sentido
e configure esses ensinamentos.
Em 338a, Platão começa a expor os motivos que o levaram à sua terceira viagem
a Siracusa. Dionísio voltara atrás em relação ao modo como ele lidara com Díon, e
pedira para este não se considerar um exilado, mas apenas afastado, até que a paz volte
a Siracusa. Havia também mensagens que chegavam a Platão dizendo que Dionísio
estava com grande disposição para a filosofia: Arquitas, pitagórico amigo de Platão, que
havia visitado Dionísio, escreve-lhe dizendo das conversas que havia tido com o tirano.
Platão mesmo esclarece o desejo de Dionísio em ter com ele: “Ora, Dionísio, que, de
fato, apanhava as coisas com facilidade, era excessivamente vaidoso. Decerto,
comprazia-se no que falavam, mas acanhava-se de mostrar que nada aprendera durante
minha estada entre eles; daí, o desejo de vir a informar-se melhor dessas questões, às

11
periv tino" tw'n megivstwn peri; to;n aujtou' bivon, “acerca de algo das coisas mais importantes sobre sua
vida.”
12
Os comentadores que lidam com a crítica de Platão à escrita parecem não levar em conta esse aspecto
da necessidade de uma motivação pessoal do ouvinte para que Platão aceite relatar acerca dos assuntos
capitais da vida. Não encontrei nenhuma indicação a essa passagem tanto no artigo de SAYRE, no de
Rhodes, quanto no de Brumbaugh.
103

quais o levava, também, uma boa dose de vaidade.”13 Platão explica que alguns haviam
presenciado suas conversas com Díon, na outra vez em que esteve em Siracusa, e
achavam que Dionísio estava em dia com os ensinamentos de Platão, pois falava coisas
semelhantes às que Platão, então, havia dito. Temos aqui um termo importante para
compreendermos a crítica à escrita que Platão vai realizar neste próximo trecho da
Carta VII. “Muita gente de Siracusa assistira à minha conversa com Díon, e outros
ainda ouviram alguma coisa dos primeiros, de forma que todos se achavam mais ou
menos empanturrados de fórmulas filosóficas mal digeridas.”14 O termo principal aqui é
parakousma15, algo mal compreendido, mal ouvido. Trata-se daquele ouvir dizer, de
compreender algo sem a devida atenção, apenas superficialmente. Esse termo se refere
a apreender sem ter compreendido, a saber manipular frases compreendidas pela
metade, trata-se da falta de engajamento pessoal no que se aprende e, por isso, passa-se
a utilizar frases e expressões que apenas têm um efeito manipulador dos ouvintes, pois
aparentam sabedoria. Esse parece ser o termo que aponta para a distinção entre aquele
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que não é filósofo e aquele que é realmente. Pois o último tem uma vivência pessoal do
assunto e não simplesmente ouviu dizer. Outra imagem que Platão usa para qualificar
esses homens que somente "ouviram dizer" sobre as questões filosóficas é de um
"verniz de opiniões superficiais"16, como se esses termos mal compreendidos
modificassem apenas o exterior da pessoa sem tocar-lhes a essência. Rhodes, em seu
artigo Mystic Philosophy in Plato’s Seventh Letter, vai dizer que os historiadores
gostariam de homens como os que viviam perto de Dionísio e apenas "tinham ouvido
dizer" algo a respeito de filosofia. Assim como eles, os historiadores não são
verdadeiros filósofos, porque “filosofia não é um conjunto de opiniões e argumentos
que são derramados nas mentes como frases dentro de papagaios, pois essas palavras
não estariam fundadas em hábitos da alma para com a ordem do ser, nem em um caráter
estável, nem em um dom divino de acreditar na verdade”17.
Mas Platão diz ter um método de certificar se as pessoas sabem mesmo ou não
do que estão falando, se os dizeres dos homens são ou não parakousmata. E é com o
espírito cauteloso que nosso filósofo embarca novamente para Siracusa, a fim de ver se
o suposto tirano-filósofo era realmente como diziam. Em 340b, começa especificamente

13
338d-e.
14
3338d.
15
paravkousma, termo composto pelas partículas para, "ao lado de", e de akouo, "ouvir".
16
340d, oiJ de; o[ntw" me;n mh; filovsofoi, dovxai" d v ejpikecrwsmevnoi
17
Rhodes, op. cit. p. 231-232.
104

a passagem que devemos aqui analisar com vagar, mostrando como a forma de
compreender a filosofia e o seu esforço correlato vai ao encontro do que entendemos
por experiência vital. Platão descreve primeiro, em 340c, como um verdadeiro amante
da sabedoria reage frente à imposição da longa tarefa reservada àqueles que desejam
investigar os assuntos mais importantes. A idéia principal do teste é mostrar a grandeza
e a dificuldade da tarefa filosófica e observar-lhe a reação. Souilhé18 aponta a
semelhança entre essa passagem e aquela que descreve a conversão do filósofo rumo à
luz da verdade, na República, 521c. Lá como aqui, o filósofo aparece como um devoto,
como alguém transformado pela beleza e importância do mundo do conhecimento, e
deseja, sem comedimento, empreender a árdua tarefa. Tal homem, nos diz Platão em
340c,

“... além de revelar vocação para tais estudos, ficará maravilhado com o caminho
apontado e no mesmo instante se decidirá a enveredar por ele e a não viver de outra
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maneira. Em seguida, avançando resolutamente e arrastando consigo o próprio


guia, não se deterá antes de atingir a meta que se impôs ou de adquirir a capacidade
necessária para conduzir-se sem o auxílio de ninguém. É nesse estado de espírito
(dianohqei;"19) que tal homem vive; e até mesmo nas ocupações mais triviais, a
todo instante e em quaisquer circunstâncias não se desprega da filosofia, daquele
gênero de vida que o deixara com o espírito sóbrio, capaz de aprender e de ter boa
memória e raciocínio lesto”.

Temos realmente aqui uma descrição do filósofo como um convertido, como um


apaixonado pela filosofia e pela vida que essa lhe proporciona, pronto a empreender a
educação elevada proposta na República, isto é, o estudo de geometria, estereometria,
astronomia e harmonia. É esse caráter e estado de espírito que vai facilitar a
identificação daquele que realmente quer estudar filosofia. Já aqueles que não amam o
saber não têm muita disciplina para o estudo e facilmente acham que já sabem o
suficiente da matéria: um traço daqueles que não amam aprender é acharem que já
sabem o suficiente do assunto. A noção de superficialidade e profundidade é boa para
ilustrar essa distinção entre o amante da sabedoria e o que não ama, já que se trata, ao

18
Nota da p. 49, Lettres. Texto estabelecido e traduzido por Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres,
1926.
19
Dianoetheis, particípio aoristo do verbo dianoeomai, "pensar sobre, intencionar, ter o propósito de".
105

descrever o que ama saber, de marcar o impulso de adentrar o problema e não apenas
lhe tocar a superfície.
Com isso em vista, Platão se aproxima cauteloso de Dionísio e primeiramente
não expõe tudo que pode, com o intuito de ver a reação do tirano. Este dava ares de já
saber de tudo, especialmente sobre as questões mais importantes, e logo se soube que
escrevera um livro acerca delas. A esse respeito, é famosa a opinião de Platão:

“O que estou em condições de afirmar de quantos escreveram e ainda virão a


escrever com a pretensão de conhecer as questões com que me ocupo [...] é que, no
meu modo de pensar, eles não entendem nada de nada de todas essas questões. De
mim, pelo menos, nunca houve nem haverá nenhum escrito sobre semelhante
matéria. Não é possível encontrar expressão adequada para problemas dessa
natureza, como acontece com outros conhecimentos.”20

A crítica que Platão faz aqui sobre a escrita vai ser detalhada no decorrer da
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carta, mas ela se baseia no fato de que a verdadeira compreensão dos assuntos
filosóficos só pode se encontrar na alma do estudante e nunca aprisionada em escritos.
Não quero entrar nos meandros das questões da suposta "doutrina não escrita", doutrina
que se apóia, entre outras passagens, nesse trecho da Carta VII. Como salienta muito
bem Kenneth Sayre21, o que vai importar não é se a doutrina foi escrita ou não, pois o
argumento vale tanto para o que for oral quanto para a escrita: o verdadeiro
conhecimento filosófico encontra-se dentro da alma daquele que sabe, e não em
formulações, sejam orais ou escritas. É importante frisarmos que não se pode falar
desses assuntos como se fala de qualquer outro, e isso vale tanto para o discurso oral
quanto escrito.
Trata-se aqui de enfatizar a vida e a vivência com os assuntos para que eles
surjam dentro da alma. “A partir de muita convivência com o mesmo tema e de uma
vida dedicada a isso, subitamente, ejxaivfnh", como a luz nascida do fogo, brota na alma
a verdade, para então crescer sozinha.”22 A convivência, synousia23, nos fala de um

20
341c
21
SAYRE, K. M. “Plato´s dialogues in the light of the Seventh Letter.” In GRISWOLD, Charles. (ed.)
Platonic writings, Platonic Readings. New York: Routledge, 1988, p. 95 “O conselho da passagem
343c1-3, citado acima, é que nenhuma pessoa inteligente arriscaria colocar o que ele entende na
linguagem – em qualquer linguagem (logos) – apesar de a linguagem escrita ser citada como
particularmente não sendo confiável.” Ver também o artigo de Rhodes, já citado, p. 238.
22
Carta VII, 341c
23
Voltaremos a falar da necessidade da vivência quando tratarmos do trecho 344b, logo a seguir.
106

processo, de um desenrolar existencial que vai configurando e aprimorando a alma para


que ela esteja apta para receber a compreensão que aqui é singularmente descrita como
uma luz proveniente do fogo. Vemos claramente como Platão dá supremacia a um
processo pessoal que configure e estruture a alma com o fim de estabelecer uma
compreensão radical do assunto tratado. Em verdade, o que torna especial o
conhecimento filosófico, como já vínhamos falando, é a peculiaridade do seu saber, pois
não se assemelha aos outros saberes. Trata-se de um tipo de saber que, pelas suas
características próprias (ser algo que estruture a visão de mundo, os pilares da cultura e
da realidade, etc), não se pode lidar com ele como lidamos com outras matérias:
precisamos de uma vivência tal que o configure em nosso íntimo, que o faça
resplandecer em nossa vida e o molde em nossa alma, precisamos de uma experiência
vital para que esse saber se efetive em nossa vida, para que se torne realmente um saber,
isto é, algo inscrito na alma de quem sabe.
Antes de começar a explicitar melhor a sua crítica aos escritos filosóficos, com a
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enumeração dos meios pelos quais se conhece algo, Platão ainda diz que, se fosse
possível escrever sobre tais assuntos, ele mesmo o teria feito, pois não haveria tarefa
mais grandiosa do que essa. “Porém”, nos diz Platão, “não acredito que de tais
explicações advenha proveito para ninguém, com exceção de uns poucos que, com
indicações sumárias, sejam capazes de descobrir sozinhos a verdade.” Novamente
vemos o quão pessoal é o saber filosófico, dependente de um processo particular para
que seja efetivado. É no âmbito individual que se dá o conhecimento filosófico, e isso
vai sempre ressaltar as idiossincrasias de cada indivíduo, marcando a peculiaridade de
cada um para alcançar o conhecimento almejado. Temos aqui a idéia de que somente a
partir de uma predisposição pessoal e de um engajamento, que não depende do
professor, que o aprendiz de filosofia pode aprender. Somente aprendemos algo
filosófico de alguém quando somos capazes de aprender por nós mesmos.
Existe uma passagem muito interessante nas Vidas Paralelas24, na qual Plutarco
fala de uma correspondência entre Alexandre e Aristóteles. Alexandre, ao saber da
publicação dos escritos acromáticos25, isto é, dos escritos que foram ouvidos, reprova
Aristóteles por escrevê-los. Alexandre alega que prefere ultrapassar os outros através da

24
667e, PLUTARQUE. Vies, tome IX. Texto estabelecido e traduzido por Robert Flacelière, Émile
Chambry & Marcel Juneaux, Paris: Les Belles Lettres, 1957-1983.
25
Émile Chambry, o tradutor dessa obra para o francês, afirma em uma nota o seguinte: “Os escritos
acromáticos são o ensinamento esotérico (oposto ao exo-térico) que os filósofos davam a seus alunos
unicamente por via oral e que não se encontravam em nenhum livro. Tais ensinamentos eram uma espécie
de iniciação.”
107

sabedoria, mais do que através do poder, e, se seu mestre escrevesse o que lhe havia
ensinado, qualquer um poderia sabê-lo. Aristóteles responde dizendo que não seria
possível uma pessoa que nunca tivesse ouvido suas aulas ou nunca tivesse já pensado
coisas semelhantes, aprender diretamente dos escritos. Tais assuntos são exatamente os
primeiros princípios e as primeiras causas, os quais podemos relacionar com o que
Platão aqui na Carta VII chama de "questões mais importantes".
Vemos nesse trecho de Plutarco, independentemente da veracidade da carta, uma
opinião semelhante à que Platão nos apresenta. As questões filosóficas devem ter um
traço pessoal, intransponível pela escrita ou até mesmo pela oralidade, já que é através
de uma experiência especial que se efetiva a compreensão desses assuntos. A imposição
de "aprender por si próprio", feita por Platão, aponta para a impossibilidade de tais
"questões mais importantes" serem tratadas pela linguagem como os assuntos
corriqueiros. Como Rhodes também afirma, a forma proposicional de apontar para a
realidade não dá conta da transmissão necessária dos temas dessas questões, pois eles
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não podem ser tratados com a separação habitual entre o que se fala e o sujeito que fala.
Os assuntos filosóficos tratam da própria estrutura da realidade que cada um de nós
carrega dentro de si, e se a investigação se propõe a realmente vasculhar esses assuntos,
não pode se distanciar e ter um olhar objetivo sobre eles: a investigação deve "tocar"
quem investiga, e isso sempre implica em ir além de meras palavras descritivas. Como
diz Rhodes sobre essa passagem, “[...] Isso iria beneficiar somente aqueles que podem
aprender por si mesmos com pouca orientação – o que já me parece querer dizer que os
filósofos em potencial ainda precisariam aprender por si mesmos, pois a verdade séria
não pode ser capturada em palavras, não importando de que forma elas são forjadas
[...]”26.
Vamos, então, passar a descrever a análise dos instrumentos do conhecimento27,
que Platão realiza a partir de 342a. Existem três instrumentos28 a partir dos quais o
conhecimento (episteme) surge: o nome (onoma), a definição (logos), a imagem
(eidolon). Há uma gradação de "proximidade" entre esses instrumentos e o
conhecimento, mas apenas esse último é que seria o mais próximo da coisa mesma, que

26
Rhodes, op. cit., p. 234.
27
Para um estudo muito interessante sobre a forma como Platão apresenta esses instrumentos e a sua
relação com esses próprios instrumentos, ver BRUMBAUGH, já citado.
28
Na grande maioria das vezes, Platão não os nomeia como instrumentos, não os trata com nenhum
nome, dizendo apenas "os três" ou "os quatro". Como modo de clarificação, chamamos os três primeiros
de instrumentos para o conhecimento, como o faz Brumbaugh, pois cumprem explicitamente essa função.
Também utilizamos o termo "elemento" para qualificar os quatro.
108

seria por sua vez distinta de todos os outros. Pegando um exemplo, temos o círculo, cujo
nome é esse mesmo que acabamos de pronunciar e que claramente é diferente da coisa
mesma e não a contém por necessidade. Além da definição, composta de nomes e
verbos e dessa forma igualmente distante do objeto que se visa conhecer, temos a
imagem do objeto, que também nos encaminha para o conhecimento. Platão ainda
chama atenção para o fato de a imagem de um círculo, que se pode criar e apagar, ser
diferente do círculo mesmo, que não sofre nenhuma dessas alterações. Sabemos ainda
que nunca um círculo desenhado ou imaginado será o círculo mesmo para o qual a
definição aponta, pois se trata de um objeto que não pode ter as características dos
objetos visíveis. O quarto elemento abarcará o próprio conhecimento, a inteligência
(nous) e a opinião verdadeira (orthos doksa), todos participando de um mesmo grupo,
que não estaria presente nem nos pronunciamentos nem nos corpos das figuras (en
somaton skhemasin), mas nas próprias almas (en psykhais), e dessa forma é tanto
diferente do círculo ele mesmo quanto dos três elementos citados anteriormente29. No
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entanto, é o quarto elemento, isto é, a inteligência inscrita na alma, que mais se


aproxima por semelhança e afinidade (homoioteti kai suggeneiai30) da coisa mesma e,
por isso, somente ele é que realmente interessaria ao amante do saber.
De 342d até 343c, Platão apresenta com mais detalhes as diferenças entre os
quatro elementos31 e o quinto, a coisa ela mesma. É importante marcarmos que Platão
ainda diferencia dois princípios, a qualidade (poion) e o ser (on), e diz que é este último
que quer conhecer o verdadeiro amante do saber. No entanto, o ser mesmo nunca é
apresentado pelos quatro elementos: por isso sempre podemos refutar quem quer que
queira sustentar que possui a coisa mesma, apresentando-a através deles. Quando
alguém se apega a um dos quatro elementos que nos servem como meio para
alcançarmos a coisa mesma, ele se torna facilmente refutável, pois nunca irá dar conta
da coisa mesma através desses elementos que são sempre imperfeitos. Assim, o que se
refuta não é o conhecimento que alguém possa ter, mas sim a possibilidade de o colocar
em um dos três instrumentos do conhecimento.

29
É interessante comparar essa análise com uma que não pressupõe os objetos matemáticos como
entidades extrapsíquicas. Se, como o são para Kant, os números e realidades matemáticas forem
construções mentais, o conhecimento delas seria idêntico ao que elas seriam em si mesmas.
30
342d
31
Ao utilizarmos "elementos", estamos utilizando a nossa opção de traduzir o conjunto dos três
instrumentos do conhecimento, mais o próprio conhecimento, e também a coisa em si mesma; todos eles
são "elementos" da teoria epistemológica da Carta VII.
109

“Mas, o que eles não sabem é que não é o espírito do escritor ou do orador
que se refuta, senão a natureza de cada um dos quatro elementos, essencialmente
defeituosa. É a força de considerá-los, subindo e descendo de um para outro, que se
gera com muito trabalho no espírito naturalmente capaz32, o conhecimento do que
por natureza é certo.”33

O que temos aqui é Platão colocando explicitamente a importância de uma


experiência com os três instrumentos para então poder possuir o conhecimento da coisa
mesma. Trata-se de um trabalho e de muito tempo (tribes kai khronou pollou).

“Só depois de esfregarmos (tribomena), por assim dizer, uns nos outros, e
compararmos nomes, definições, visões, sensações e de discuti-los nesses colóquios
amistosos (en eumenesin elegkhois) em que perguntas e respostas se formulam sem
o menor ressaibo de inveja, é que brilham sobre cada objeto a sabedoria e o
entendimento, com a tensão máxima de que for capaz a inteligência humana.”34
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Eis aqui em que consiste o trabalho filosófico. Eis também porque não importa
tanto o que está escrito, mas sim o que está vivo dentro da alma do aprendiz. É
interessante o termo "esfregar" que aparece no particípio tribomena, para descrever a
atividade que realiza o aprendiz em relação aos instrumentos de conhecimento. Vamos
nos relacionando com eles, vamos destrinchando-os, convivendo com eles, discutindo
sobre eles, – tudo isso é o esfregar-se – para então, subitamente, nascer em nós o
conhecimento do que almejamos.
Vê-se a distância que há entre essa forma de compreender a filosofia e aquela em
que a compreensão intelectual pode estar desvinculada da prática do dia-a-dia do
filósofo. Ora, se apenas da convivência (synousia) com o tema, junto com muito
"esfregar" de nomes, definições e imagens, é que nos vem a compreensão – como uma
luz provinda de uma chama de fogo –, como podemos dizer que a filosofia para Platão
pode ser circunscrita em uma doutrina estanque, imutável e objetiva, que poderia ser
assimilada por qualquer um, em qualquer momento? Ao contrário, como vemos aqui,
para Platão, a compreensão filosófica pressupõe não apenas um momento adequado e

32
Aqui Platão chama atenção para a aptidão natural necessária ao conhecimento rigoroso filosófico. Não
é qualquer um, em qualquer momento, que pode compreender efetivamente os conhecimentos filosóficos,
mas apenas aqueles aptos para tal.
33
343e.
34
344b
110

um esforço necessário de convivência com o tema, mas também uma habilidade inata
para se apreender tal tema. A dura crítica, tanto de Sayre35 quanto de Rhodes36, à
interpretação esotérica da Carta VII, que afirma a existência de doutrinas não escritas de
Platão, é que nessa carta o que está sendo refutado é exatamente a possibilidade de a
filosofia se compor de doutrinas, de conjunto de proposições verdadeiras sobre a
realidade. A filosofia é antes uma forma de conviver com a própria vida, é uma forma
de viver. A filosofia se compõe das verdades inscritas nas almas daqueles que sabem,
que nasce a partir de uma convivência e da prática pessoal da dialética, e vive dentro
dessas almas, não podendo assim ser aprisionada em qualquer forma de doutrina, oral
ou escrita.
Ressalta-se também no texto citado da Carta VII, 344d, a importância de
aspectos emocionais e psíquicos na investigação através de perguntas e respostas. O
elenkhos deve ser eumenen, isto é, deve ter uma boa mente, uma boa intenção, também
deve ser realizado sem inveja, aneu phthonon. Essas características não são apenas
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acessórias ao que se discute, mas configuram o que se compreende, dão um sentido todo
particular ao que quer que seja conversado e analisado.
A noção do conhecimento como produto ígneo de um trabalho de formação e
destruição de argumentos aparece também na República 434e. A passagem se refere ao
método de conhecimento proposto na República para conhecer a justiça procurando-a
em uma escala maior. Esse método é bastante comentado, no entanto, poucos salientam
que junto com essa procura em uma escala maior devemos também esfregar o que
encontramos lá com o que podemos encontrar na escala menor, para que a partir desse
esfregar, surja a compreensão sobre a justiça :

“Temos que relacionar aquilo que então pensamos ter visto ali [na cidade]
com o indivíduo, e, se for confirmado, tudo estará bem. Mas se algo diferente se
manifestar no indivíduo, nós retornaremos novamente para a cidade e o testaremos
ali, e pode ser que examinando-os lado a lado e esfregando-os (tribontes) um contra
o outro, como se fossem paus de fogo, nós possamos fazer com que uma faísca da
justiça surja, e quando ela assim se revelar, seja confirmada em nossa alma.”

35
Op. cit.
36
Op. cit.
111

A idéia aqui é muito semelhante com a idéia da passagem que citamos da Carta
VII. A investigação filosófica é comparada com o acender de um fogo a partir do
esfregar de dois pedaços de madeira. O conhecimento não virá de nenhuma "madeira",
que aqui é comparada com um argumento, mas sim do esfregar entre essas madeiras. O
conhecimento, sendo o fogo ou faísca que sai desse ato de esfregar argumentos, não é
da mesma ordem que esses argumentos, ele tem outra característica, outro modo de
realizar-se. É nesse sentido que não cabe na escrita o que Platão realmente julga
importante, pois a escrita, ou mais amplamente, o logos, seria apenas o instrumento para
que surja o conhecimento, a luz que provém da fricção de argumentos discordantes, na
busca do ser da coisa37.
A crítica de Platão à escrita na Carta VII, mais que impedimentos à realização de
escritos filosóficos, nos mostra a importância do modo como vivemos o que
aprendemos, a importância da forma como o aprendizado nos toca e nos transforma: é
isso que prova se uma verdade filosófica foi ou não assimilada pelo aprendiz. O escrito
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de Dionísio apenas vem corroborar a suspeita que Platão já tinha de que o tirano estava
mais interessado no status de ser "amigo de Platão e sua sabedoria" do que realmente
enamorado pelas questões filosóficas. O ponto central que pede a sabedoria filosófica é
que se viva de determinada maneira e, por isso, Platão enfatiza que talvez Dionísio “não
seja capaz de viver para a sabedoria e a virtude”. Trata-se aqui da ênfase na vida que
deve levar aquele que se enamorou pelo saber, e somente esse é que realmente
compreende a filosofia, pois ela perpassa-lhe a alma em todos os âmbitos de sua
existência. Tal conversão é o que se espera daquele que viu a chama da sabedoria surgir
em si e por isso compreende o caráter deficiente dos quatro elementos que nos levam
para a coisa em si.

3.2. O FEDRO E A ESCRITA

Outro diálogo diretamente ligado pelo seu conteúdo à Carta VII é o Fedro,
especialmente a parte, ao final do diálogo, referente à crítica ao poder dos escritos38.

37
Rhodes ainda apresenta uma interpretação mística dessa passagem, alegando que Platão estaria falando
de uma iluminação que a alma experimenta. Não pretendo entrar nos meandros dessa interpretação,
apenas desejo salientar que não é disso que se trata aqui, pois o conhecimento proveniente da fricção dos
4 elementos não é um estado afásico da alma, quando ela perderia o poder de se expressar ou comunicar.
38
Praticamente todos os autores que lidam com a crítica à escrita no Fedro, comparam-na com a Carta
VII e também com o trecho do Protágoras 329a. Como diz Kenneth Sayre: “Proponentes dos
ensinamentos não escritos [de Platão] põe, lado a lado, a Carta VII e a estória do rei Tebano ao fim do
112

Essa parte vai de 274b até 278b, e trataremos dela com vagar neste momento,
apresentando de que forma Platão nesse diálogo corrobora a necessidade de uma
experiência pessoal ao se investigar as questões filosóficas. Como um resumo para nos
guiar na presente discussão, dividimos a referida parte em cinco menores, que
enumeramos da seguinte forma: 1) 274c-275d, introdução à questão; o mito da invenção
da escrita e uma crítica ao criticismo literário; 2) 275d-276a, a imagem da escrita
(graphein) como pintura (dzoographein); 3) 276a-b, o irmão legítimo do discurso
escrito; 4) 276b-277a, a imagem do campo e dos frutos; 5) 277a-278b, resumo.
Como salienta muito bem Friedlander39, esse trecho como um todo lida com uma
discussão travada entre os oradores (rhetores) da época de Platão. De um lado, os
oradores que defendiam a escrita como forma legítima e hábil de expressão dos
ensinamentos sofísticos e dos discursos políticos, tendo como expoente máximo
Isócrates, considerado por muitos o maior orador da Grécia Clássica. Pela sua
incapacidade física de proferir discursos na praça pública, os escrevia para serem lidos e
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encorajava seus alunos a fazer o mesmo. De outro lado, estavam os oradores que
criticavam a forma escrita, defendendo a soberania da forma oral de ensinamentos e
discursos, continuando com o modo tradicional de fazer retórica, instaurado
amplamente pelo grande mestre, Górgias. É impressionante a relação que Friedlander
apresenta entre o que Platão descreve aqui nesse trecho do Fedro e o escrito de
Alcidamas, “Contra os autores dos discursos escritos ou sobre os Sofistas”40. Esse texto
de Alcidamas é bastante comentado em relação à cronologia do Fedro, e de acordo com
Hackforth41, Platão teria esse escrito em suas mãos quando escreveu seu diálogo,
indicando, assim, que nosso filósofo retira as críticas centrais à escrita do retórico
Alcidamas42. No entanto, Friedlander salienta bem a nova base em que Platão funda a

Fedro [...]”, “Plato’s Dialogues in Light of the Seventh Letter”, op. cit. p.97. Também Friedlander marca
a semelhança que há entre os dois escritos, Plato, p. 114. Outros comentários ao Fedro são o livro do
Ferrari, Listening to the Cicadas, do White, Rhetoric and Reality in Plato´s Phaedrus, o da Burger,
Plato´s Phaedrus: a Defense of a Philosophic Art of Writing, e o do Hamilton, Plato: Phaedrus and the
Seventh and Eighth Letters, entre outros.
39
Plato. Capítulo IV “The written work”, p. 110.
40
Existe um livro de ALCIDAMAS. The works & fragments. Traduzido, com introdução e notas por J. V.
MUIR, London : Bristol Classical Press, 2001, mas, infelizmente, não pudemos tê-lo em mãos.
41
HACKFORTH, R. Plato´s Phaedrus. Translation, introduction and commentary. Cambridge:
Cambridge University Press, [1953], p. 162.
42
“De acordo com Alcidamas, somente a palavra que surge espontaneamente do pensamento possui alma
e vida (e[myucov" ejsti kai; zh'/, frg. 28). Um discurso escrito não é de forma alguma um “discurso”
genuíno, mas somente uma cópia, uma forma, ou imitação. (ei[dwla kai; schvmata kai; mimhvmata lovgwn,
eijkw;n lovgou). Ele não pode ser assemelhado a um corpo real, mas somente a uma figura plástica ou
pintada (calkw'n ajndriavntwn kai; liqivnwn ajgalmavtwn kaivgegrammevnwn zw/w v n) [...]” Friedlander, p.
111.
113

discussão: o ponto central dos ensinamentos platônicos não é o mesmo que o da


sofística, mas sim a contemplação das idéias impulsionada pelo Eros já descrito nos
trechos anteriores do diálogo. O que cabe a nós aqui salientar é que essa contemplação,
por sua vez, pressupõe uma vivência radical daquilo que se ouve e, por isso, a
necessidade da inscrição da sabedoria na alma daquele que sabe. A filosofia que propõe
Platão como critério para se saber se um logos é bom ou não para o homem pressupõe
uma forma de enamoramento com o saber, pressupõe o filósofo estar apaixonado pelo
que ele conhece, e essa relação erótica com o saber pressupõe o que aqui entendo como
experiência vital, isto é, uma experiência íntima e radical. Assim, a escrita vai ganhar
suas críticas a partir da capacidade que ela tiver de inscrever na alma do ouvinte as
verdades que ela quiser transmitir. Pois é a partir do enamoramento do filósofo com as
verdades que ele quer conhecer que se pode inscrevê-las na alma do aprendiz. Assim, as
críticas à linguagem, presentes tanto aqui como na Carta VII, falam da necessidade de
se ter uma longa convivência (ejk pollh'" sunousiva" gignovmenh") com o tema para
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que ele seja compreendido, e é disso que trata a experiência vital. Ela é uma longa
vivência com o tema, pois pressupõe várias etapas de reestruturação da organização das
três partes da alma43. A filosofia inventa no aprendiz uma nova forma de se conduzir no
mundo, e isso se faz através de longos anos de exercícios em dialética44. Platão, ao
elevar a discussão para o âmbito filosófico, e não somente ao âmbito da retórica, como
Isócrates e Alcidamas, também salienta a importância de uma vivência pessoal nas
conversas filosóficas, isto é, que tenham o fim alcançar a verdade e não apenas
persuadir.
Sócrates começa o tema da escrita com o mito de Theuth. É interessante notar
que, antes de apresentar o mito, Sócrates salienta a relevância de que sejamos nós quem
realmente iremos garantir a veracidade do mito, e não a sua proveniência: “Eu tenho
algo que ouvi dos antigos, mas somente eles sabem se é verdade. Mas se nós mesmos
podemos descobrir se o é, por acaso nos interessariam as opiniões dos homens?”45
Vamos relembrar o mito, para investigá-lo calmamente.

43
Ver o capítulo sobre conversão em que trato também sobre a importância das três partes da alma
estarem envolvidas na investigação filosófica. Ver também minha dissertação de mestrado. PINHEIRO,
M. R. O Amor e as Sutilezas do Discurso. Dissertação de Mestrado, Departamento de Filosofia. Rio de
Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1999.
44
Ou mais especificamente, a proposta de educação na República, com a ginástica e a mousike como
ensino primeiro, depois as quatro matemáticas preparatórias para a dialética, que enfim efetua
definitivamente a conversão do mundo sensível das sombras para o mundo inteligível da luz.
45
274c.
114

“Eu já ouvi que em Naucratis, no Egito, existia um dos antigos deuses daquela
região, aquele cujo pássaro sagrado se chama Íbis, e o nome do próprio deus é
Theuth. Foi ele que inventou os números, a aritmética, a geometria, a astronomia, o
“jogo de damas”46, os dados e, acima de tudo, as letras. O rei de todo o Egito
naquele tempo era o deus Thamus, que vivia na grande cidade na região ao norte,
que os Gregos chamavam de Tebas egípcia, e eles chamavam o deus de Ammon. A
ele veio Theuth para mostrar seus inventos, dizendo que esses deveriam ser
distribuídos a todos os egípcios. Mas Thamus perguntou qual o uso de cada um
deles e, com Theuth enumerando seus usos, o rei louvava-os ou depreciava-os de
acordo com o que ele aprovava ou desaprovava. Diz-se que Thamus disse muitas
coisas para Theuth, mas os louvores e críticas a suas várias invenções seriam muito
longas para repetirmos. Mas quando chegou a vez da escrita, Theuth disse “Essa
invenção, ó rei, tornará os egípcios mais sábios e promoverá sua memória, pois isso
que descobri é um elixir (pharmakon) para a memória (mnemes) e para a sabedoria
(sophias).” Mas Thamus respondeu: “ó muito inventivo Theuth, alguns têm a
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habilidade de descobrir as artes, outros têm a habilidade de saber qual o benefício e


malefício para aqueles que as utilizam. E tu, que és o pai da escrita, foste
conduzido pela tua afeição a atribuir-lhe um poder oposto ao que realmente possui.
Pois isso vai produzir esquecimento na mente daqueles que a aprendem: eles não
vão exercitar a memória por causa da sua confiança na escrita, que é algo exterior
(eksothen), provinda de caracteres alheios, e não vão eles mesmos praticar a
lembrança interior (endothen), por si mesmos. Tu inventaste um elixir da
lembrança (hypomneseos), e não da memória (mnemes), e tu ofereces aos teus
discípulos uma aparência de sabedoria, não verdadeira sabedoria, pois se tornarão
muito informados (polyekooi gignomenoi), sem instrução, (aneu didakhes) e terão,
assim, a aparência de que sabem de várias coisas (polygnomenes) quando na
verdade são, na maior parte, ignorantes e difíceis de conviver, já que não são
sábios, mas apenas aparentam ser.”47

Temos aqui indicações importantes de como Platão entende o que é


conhecimento e memória e também de qual é a função da escrita. Parece haver uma
distinção clara entre memória, mnhvmh, e lembrança, uJpomnhvsi". A lembrança é a ação
de trazer à tona certas memórias. A memória é a própria compreensão viva dentro da

46
Trata-se do termo pepteia, que se refere a um jogo com pedras sobre um tabuleiro, parecido com o
nosso jogo de damas.
47
274c-275c. Para um comentário profundo e enriquecedor, ver o texto La phamacie de Platon, Derrida.
Ele cita outra passagem em que Platão faz referência a Theuth, Filebo 17b-18b.
115

alma. A memória se forma pelo conhecimento existencial de um tema, e por isso Platão,
mais à frente, diz não haver necessidade de cultivo da memória, mas sim da lembrança.
Também na Carta VII, Platão vai dizer que das coisas mais importantes, das quais trata
a filosofia, não é necessário lembrança, já que não podemos esquecê-las48.
Porém, o que mais nos interessa nesse texto é a explicitação da diferença entre
ler um texto e ter um real conhecimento do que ali está escrito. Sócrates fala que "[...]
eles se tornarão muito informados, sem instrução", e isso parece exatamente a diferença
entre ter um conhecimento conceitual e ter um conhecimento existencial, proveniente de
uma experiência pessoal com o tema, de um processo pelo qual o sujeito passe e
inscreva em sua alma o conhecimento sobre o tema. Dois termos aparecem nessa
passagem que nos lembram o termo parakousma, ouvir dizer, má compreensão, que
aparece na Carta VII49: polyekooi e polygnomenes. "Ouvir muito" e "saber muito"
lembram também a polymathia já criticada por Heráclito ao falar de Hesíodo e
Pitágoras50. São termos que remetem a ter muita habilidade e familiaridade com os
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termos eruditos, mas não necessariamente a vivência especial necessária para absorver
esse conhecimento de modo a torná-lo inscrito na alma, vivo e algo que respire dentro
de si. Esses dois termos são normalmente usados em sentido positivo, enaltecendo quem
"ouve muito" e "sabe muito", mas aqui Sócrates está afirmando que eles apenas terão a
aparência de saber muito, mas em verdade não serão sábios, pois não terão a didakhes, a
instrução apropriada.
Trata-se aqui exatamente da idéia de que não se pode transmitir o conhecimento
sem o processo que instaura esse conhecimento na alma, pois o conhecimento somente
pode ser considerado como tal se inscrito na alma. A escrita, de acordo com o deus
Theuth, forneceria memória e a própria sabedoria (sophia), e esse é o perigo de se
desvincular o saber da vivência necessária para se apossar dele. A crítica aqui recai
sobre a possibilidade de verdades filosóficas estarem seguramente garantidas nas
expressões proposicionais da linguagem. Não se trata de rejeitar a possibilidade de
expressões proposicionais enunciarem corretamente, mas de criticar a garantia de
acessibilidade ao que elas enunciam. Na medida em que uma proposição não garante
que o leitor ou ouvinte tenha a "instrução" necessária para que aquilo que ela enuncia

48
Carta VII 344d-e.
49
Carta VII 338b, 340b.
50
Fragmento 40, “Muito saber (polymathie) não ensina sabedoria (noon), pois teria ensinado a Hesíodo e
Pitágoras, a Xenófanes e Hecateu.”, p. 69, LEÃO, E. C. (org.) Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Os
pensadores Originários. Petrópolis: Vozes, 1991.
116

seja incorporado existencialmente, ela não poderá garantir a transmissão rigorosa dos
assuntos filosóficos. É interessante frisar também a seguinte frase de Ammon, que
marca a importância do mundo interno do sujeito frente à esterilidade do mundo externo
dos caracteres escritos: “Pois isso vai produzir esquecimento na mente daqueles que a
aprendem: eles não vão exercitar a memória por causa da sua confiança na escrita, que é
algo exterior (eksothen), provinda de caracteres alheios, e não vão eles mesmos praticar
a lembrança interior (endothen), por si mesmos.” Está claro aqui que o que é superior
não é a linguagem oral sobre a linguagem escrita, mas sim o mundo interno do sujeito
frente ao mundo externo da linguagem, especialmente da linguagem escrita. O que
Ammon realmente quer enfatizar é que o homem não deve se apoiar, quando o assunto é
o saber, em caracteres exteriores a si mesmo, pois o único lugar onde podemos ter
clareza (saphes) e segurança (bebaion) quanto ao saber é no interior de nossa própria
alma.
A simples leitura e o saber manipular os argumentos se parecem mais com a
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prática dos sofistas do que com a do verdadeiro filósofo, que ama o que sabe. Esse
compreende a questão tratada de uma forma tal que não precisa decorar as formulações
exatas que compõem um texto, mas se apega ao vigor do texto, ao que ali tem de forte e
ao que realmente é conhecimento no texto. Por isso, ele vai saber dizer a mesma coisa
sem dizer as mesmas palavras, sem nem precisar ler o que estiver escrito, pois vai
participar do que o texto tem para ensinar, vai ter o conhecimento inscrito em sua alma.
Platão está aqui afirmando que a escrita tomada em si mesma, independente de
fatores externos, não possui o poder de transmitir radicalmente um ensinamento.
Vejamos mais essa parte:

“Aquele que pensa que deixou atrás de si alguma doutrina (tekhnen)51 na


escrita, ou aquele que a recebe julgando que da escrita sairá algo de claro (saphes) e
certo (bebaion), seria realmente uma pessoa simplória e um verdadeiro ignorante da
profecia de Ammon, se ele pensa que a escrita é de alguma utilidade além de
apenas fazer aquele que já sabe o que está sendo dito se lembrar dessas mesmas
coisas.”52

51
Para uma discussão sobre modos diferentes de interpretar esse termo aqui nessa passagem, ver
Hackforth, op. cit. p. 158.
52
275c-d,
117

Antes de analisarmos esse trecho, uma palavra sobre o termo tekhnen aqui
usado. No dicionário português temos para tekhne “arte manual, indústria, ofício;
habilidade; conhecimento teórico, método; artifício, intriga; meio, recurso; obra
artística; tratado sobre uma arte”. Duas interpretações podem surgir dessa frase53: a
primeira, com a qual concordamos, e que Friedlander54 defende, diz que o sentido de
tekhne aqui se refere a um "método" ou "conhecimento teórico". Friedlander o traduz
por "doutrina", como se esse termo estivesse ilustrando o próprio fato de alguns
julgarem que a escrita é algo seguro (bebaion) e claro (saphes). Robin traduz por
"conhecimento técnico"55, também corroborando a idéia de que a intenção do autor é
marcar que não se poderia pensar que na escrita há um conjunto acabado de
conhecimento, claro e seguro. Hackforth56 discorda de Friedlander quanto a essa
tradução. Ele diz que o termo tekhne ilustra somente o que algo escrito já é, um produto
ou um manual, e que o complemento – como se algo claro e seguro pudesse sair dos
escritos – vale tanto para quem está escrevendo e deixando um manual escrito, quanto
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para alguém que o recebe57. Hackforth parece não perceber a força do termo tekhne aqui
usado, como algo sólido e que se pode depositar confiança.
Vamos a uma análise mais geral dessa passagem. Aqui Platão resume o que
importa e o que vai ser usado nas análises subseqüentes sobre o poder da escrita. Nunca
é demais salientar que para Platão não está garantida a transmissão do conteúdo de um
texto apenas por ele estar escrito. Isso é de capital importância para entendermos a
radicalidade da afirmação que defende que só há sabedoria na alma e nunca em escritos.
O fato de determinada noção, conceito ou posição frente a um questionamento
filosófico estar escrito não indica necessariamente que ele possa ser compreendido
efetivamente por todos a qualquer momento, fato essencial para que ele venha a ser
realmente uma peça de conhecimento. Há a necessidade de uma instrução (didakhe)
especial para tal conhecimento ser adquirido. Didakhe é uma instrução que remete

53
O trecho que vamos analisar é Oujkou'n oJ tevcnhn oijovmeno" ejn gravmmasi katalipei'n, kai; au\ oJ
paradecovmeno" w{" ti safe;" kai; bevbaion ejk grammavtwn ejsovmenon […] “Será que aquele que pensa
deixar uma doutrina na escrita, e, por sua vez, aquele que em recebendo-a (julga) que a partir de os
escritos haverá algo claro e seguro […]”
54
Op. cit. p. 113.
55
PLATON. Phèdre. Texto estabelecido, tradução, introdução e notas por Leon Robin, Paris: Les Belles
Lettres, 1947, 275c, “Conclusion: celui qui se figure que, dans des caractères d’écriture, il aura laissé
après lui une connaissance technique [...]”.
56
Plato´s Phaedrus. p. 158.
57
Hackforth, op. cit. p. 152, “Eu assumo w{" ti … ejsovmenon como pertencendo a oJ tevcnhn …
katalipei'n tanto quanto a oJ paradecovmeno": pois dizer que alguém que ‘pensa ter deixado um manual
escrito’, é por si mesmo, sem sentido. Isso pode ser indicado eliminando a vírgula depois de katalipei'n e
colocando travessões depois e ante de au[ paradecovmeno".”
118

sempre a uma transmissão oral do conhecimento, e parece que Platão está exatamente se
referindo à supremacia do conhecimento oral sobre o conhecimento pela escrita. Como
os gregos estão sempre lidando, ao falar de filosofia, com um conhecimento que remete
à ética, que remete sempre às escolhas pelo melhor, a transmissão oral torna-se muito
mais eficaz, muito mais convincente, muito mais apta a inscrever o conhecimento na
alma. Porém, não podemos assumir tão rapidamente que, através da escrita, nada de
novo pode ser transmitido, mas devemos perceber que também pela escrita algo na alma
do leitor pode ser impresso. Sócrates já salienta aqui a possibilidade de a escrita auxiliar
aquele que já sabe, e isso nos remete à teoria da reminiscência, especialmente se
tratando do Fedro. Na escrita, como veremos, há em verdade uma semente que pode ou
não germinar na alma de um aprendiz que, como diz o autor da Carta VII, facilmente
aprende por si próprio58. Sócrates fala que, por brincadeira (paidias kharin) se pode
escrever, e que um fruto pode até nascer de tais brincadeiras. Mas nós veremos isso com
mais vagar no momento da descrição da transmissão do conhecimento como o plantio.
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Deixemos, então, essa primeira parte – o mito da invenção da escrita – do trecho


do Fedro que queremos analisar, e passemos ao trecho 275d-277a, no qual Sócrates
apresenta a imagem da pintura como forma de compreendermos as características da
escrita.

“A escrita (graphe), Fedro, tem essa estranha qualidade, e é muito


semelhante à pintura (dzoographia); pois ela coloca as suas criações como seres
vivos (dzonta), mas se alguém lhes perguntasse algo, continuariam a preservar seu
silêncio solene. Assim são as palavras em um texto. Podemos pensar que elas falam
como se tivessem inteligência (phronountas), mas se lhes perguntamos algo
desejando saber mais sobre seus dizeres, elas sempre indicam só uma única coisa, o
mesmo59. E toda palavra quando é escrita uma vez, está fadada a dizer o mesmo
entre aqueles que compreendem e aqueles que não têm o mínimo interesse, e não
sabe a quem se deve falar e a quem não se deve. Quando mal tratadas ou
injustamente reveladas, sempre precisam de seu pai para ajudá-las, não têm poder
de protegerem a si mesmas.”60

58
Carta VII, 341e.
59
Comparar com o Protágoras, 329a "[...], mas se alguém questionasse alguma coisa, se comportam como
livros, nem respondem nem eles mesmos perguntam; mas se alguém pergunta algo pequeno sobre o que
foi dito, assim como sinos de cobre ressoam longo tempo depois de serem soados, e continuam na nota
até que alguém os toque, os oradores também, quando perguntados algo pequeno, estendem seus
discursos por longo curso."
60
275d-276a
119

Comecemos por relacionar dois termos etimologicamente, como faz


61 62
Hackforth : o termo graphe, escrita, está implicado em dzoographia, pintura , e
provavelmente eles teriam uma relação clara para quem as colocasse assim juntas,
apresentando uma como forma de explicar a outra. Saltam aos olhos também a palavra
dzon63, vivente, aparecendo logo após, e a crítica à pintura, que nos lembra que os
animais parecem vivos no quadro, mas em realidade eles não têm vida alguma. Da
mesma forma, as palavras escritas parecem ter inteligência (phronein), mas não a têm.
"As criações" da escrita seriam aquilo mesmo que é pronunciado quando alguém lê, e
Sócrates chama atenção para o fato de que a vida desse pronunciamento é apenas
aparente, pois em verdade somos nós que estamos lhe conferindo vida.
Um texto escrito não pode se explicar, não pode dizer o que diz em outras
palavras mais apropriadas ao leitor. Isso é muito importante, especialmente pelo fato de
que é nossa compreensão particular de cada palavra que vai conferir o sentido ao texto.
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O texto nunca é apenas as idéias do escritor, mas é também as idéias que o leitor tem
sobre cada palavra que está escrita. A inteligência não está na palavra, ela é apenas uma
representação. Somos nós que lhe conferimos os significados, a inteligência está em
nós. E se lembrarmos que em filosofia estamos tratando de palavras muito abrangentes
quanto ao significado, podemos dizer que o momento específico em que o leitor se
encontra, o kairos em que ele está, proporciona tal ou tal compreensão. Assim, o
significado de um texto filosófico, dependendo da atividade do leitor, depende dos
ditames da deusa kairos para se efetivar.
Alguém poderia argumentar que isso é muito mais explícito na poesia, em que a
própria entonação, ou os diferentes matizes de cada palavra revelam diferentes
interpretações da mesma poesia, mas que a linguagem filosófica tramita em outra esfera.
Pretendo deixar bem claro que não quero entrar na discussão acerca da importância do
kairos para a correta transmissão do conhecimento em todos os textos de filosofia. Há
textos filosóficos nos quais a compreensão do conteúdo parece independer, pelo menos
aparentemente, de um momento apropriado do leitor. Porém, quero argumentar que há
certos textos, e especialmente os de Platão, que tratam de assuntos como o amor, a
beleza e a morte, assuntos que são eminentemente existenciais, enfim, há textos em que

61
Op. cit. p.158.
62
Etimologicamente, dzoographia é a arte de desenhar animais vivos, viventes.
63
Particípio presente do verbo zav-w, zw'n.
120

são inegáveis os diferentes níveis de profundidade de compreensão que se pode ter.


Mesmo lidando com definições e argumentos, os textos de Platão tratam de assuntos
que têm ciclos de amadurecimento dentro do sujeito, assuntos que têm seus momentos
apropriados para serem discutidos. É disso que trata Sócrates quando ele afirma que há
pessoas específicas às quais certos discursos específicos devem ser dirigidos. As
pessoas são qualitativamente diferentes quando se trata dos discursos filosóficos64.
A crítica irônica de Platão ao possível fato de os textos escritos pensarem
(phronein) nos remete ao verdadeiro lugar do pensamento no que quer que seja
pronunciado: a alma. Vemos assim a supremacia do leitor frente ao texto, no que se
refere ao significado do texto em cada momento em que é lido. Nessa perspectiva,
podemos ir além do texto de Platão e salientar que mais do que “sempre indicar somente
uma única coisa, o mesmo”65, dependendo da qualidade do momento existencial do
leitor, a forma de impacto de um texto sobre o leitor pode produzir diferentes resultados
em sua vida. Tendo em mente o fim existencial que a filosofia propõe para seus
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praticantes, podemos afirmar que um texto filosófico escrito pretende mais do que
apenas transmitir informações relevantes, mas pretende influir na forma de o filósofo
ver o mundo e assim modificar sua forma de agir. Quantas vezes não nos deparamos
com o estranho fato de que o mesmo texto lido em momentos diferentes resulta em
ações do leitor também diferentes, em compreensões às vezes mais profundas, às vezes
mais abrangentes, às vezes mais superficiais? Nessa perspectiva, podemos dizer que o
texto não diz sempre a mesma coisa, mas que o grau em que o texto é compreendido
depende da disponibilidade do leitor, que não é voluntária. O que Sócrates reforça aqui
é o fato de o texto não poder alcançar a profundidade da alma de qualquer leitor, nem
em qualquer momento, mas apenas repete, "solenemente", o que já tinha dito antes, e
isso não ajuda, não modifica e não alcança a disponibilidade em que o leitor capta o que
lê.
Trata-se de distinguir dois aspectos do significar de um texto: primeiro, um
sentido mais superficial indica apenas aquelas coisas que de imediato um texto
significa; em um segundo sentido, como estamos aqui descrevendo, realçamos as
implicações vitais do significar de um texto, as diferenças de profundidade de
compreensão, de radicalidade de envolvimento do leitor com o texto.

64
Já tratamos mais demoradamente desse tema e também da importância de kairos no capítulo sobre
retórica e filosofia.
65
eJn ti shmaivnei movnon taujto;n ajeiv.
121

Sócrates salienta que o texto, depois de escrito, kylindeitai, rola por todos os
lados, e se dirige sem distinção para aqueles que estão aptos a ouvir e aqueles que não
estão. O texto repete sempre a mesma coisa porque ele não sabe (epistatai) para quem
se dirigir, nem sabe se defender. Ora, quem sabe se defender é aquele que pode
phronein sobre o tema, aquele que tem o assunto inscrito em sua alma. Dessa forma, o
texto precisa sempre do seu pai para explicar-se66, para apresentar outros lados de si
mesmo com o fim de que seja corretamente entendido. A inscrição na alma, como
veremos a seguir, tem supremacia em relação a qualquer forma exterior de manipulação
ou apreensão do conhecimento.
Passemos agora para o que talvez seja o trecho do Fedro mais relevante para
nossa tese. Trata-se de um pequeno trecho, 276a-b, no qual Sócrates e Fedro apresentam
as características daquilo que podemos chamar do produto da experiência vital
filosófica, isto é, aquilo que é almejado pela filosofia e que uma experiência pessoal e
profunda com um tema produz no aprendiz. Sócrates acaba de falar, como vimos, de um
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logos que não consegue se defender e precisa sempre do seu pai para explicá-lo
corretamente.

"Sóc.: E então? Será que vemos outro discurso, o irmão legítimo desse,
tanto pelo modo de nascimento quanto na medida em que cresce de forma melhor e
mais poderosa do que esse?
Fedro: Quem é ele e como dizes que ele nasce?
Sóc.: É aquele que é inscrito com conhecimento na alma daquele que sabe;
é capaz de por um lado se defender a si próprio, e por outro, sabe para quem deve
falar e calar67.
Fedro: Tu falas do logos daquele que sabe, vivo e com alma, cuja escrita se
chamaria corretamente uma imagem?"68

Em primeiro lugar, vale ressaltar que a referida passagem não critica a escrita
ressaltando em contrapartida o discurso oral. O que Sócrates está defendendo é uma

66
Friedlander chama atenção para a repetição dessa idéia em Isócrates, em sua carta a Dionísio de
Siracusa, “Quando o escritor está ausente, a palavra escrita está privada de seu ajudante”. Isocrates
Epistula I, 3, apud, Friedlander, Plato: An Introduction, p. 112.
67
*O" met v ejpisthvmh" gravfetai ejn th'/ tou' manqavnonto" yuch/', dunato;" me;n ajmu'nai eJautw/',
ejpisthvmwn de; levgein te kai; siga'n pro;" ou}" dei'.
68
To;n tou' eijdovto" lovgon levgei", zw'nta kai; e[myucon, ou| oJ gegrammevno" ei[dwlon a[n ti levgoito
dikaivw"_
122

supremacia do que a alma sabe, frente ao saber que supostamente a escrita conserva69.
Sócrates aponta duas características que tornam esse irmão legítimo, genuíno
(gnesion70): o modo que nasce (gignetai) e o modo como cresce (phyetai) sua natureza,
que é mais poderosa (dynatoteros) e melhor (ameinon) que a do irmão.
Vejamos como nasce esse "irmão legítimo" da escrita. Como Derrida mostra71, é
interessante como Platão, ao falar do modelo a partir do qual a escrita é uma cópia, um
simulacro (eidolon), fala de uma outra escrita e não de algo que é diferente. Trata-se de
algo que é escrito com conhecimento (met’epistemes) na alma daquele que sabe. É
interessante notar que a locução "com conhecimento" serve tanto de forma adverbial,
qualificando o modo como o logos é escrito na alma, quanto como o objeto, isto é,
qualificando o que está sendo inscrito na alma. Que espécie de logos é esse que está
escrito na alma daquele que sabe?
Talvez as duas interpretações da locução "com conhecimento" sejam
pertinentes, especialmente se levarmos em conta o que estamos defendendo nesta tese: o
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conhecimento filosófico (posição de objeto de met’epistemes) precisa de um modo


adequado para ser inscrito dentro de uma alma, isto é, precisa ser inscrito com
conhecimento (posição adverbial). É necessária toda uma experiência apropriada para
que uma verdade filosófica seja corretamente inscrita na alma. E esse seria o filho
legítimo de Theuth, se ele realmente quer que seu filho seja de grande valia para a
humanidade, isto é, faça com que os homens sejam mais sábios (sophoterous) e mais
hábeis quanto à memória (mnemonikoterous72). A verdadeira escrita que Theuth teria
inventado, se ele quisesse que essas habilidades estivessem presentes, seria essa que só
encontramos na alma. Ela é que realmente torna os homens mais sábios, e não apenas
traz uma melhor memória, como também fornece a verdadeira fonte da qual os homens
podem sempre de novo produzir discursos adequados sobre um assunto. Esse filho
legítimo de Theuth parece ser uma das expressões centrais em Platão73 para um
privilégio de um processo de instalação da verdade filosófica na qual a alma como um
todo participa, que é o que defendemos como experiência vital. Sócrates está aqui
chamando atenção para o fato de que o verdadeiro lugar do conhecimento não pode
69
Derrida vai ainda falar que se trata de preferir uma escrita frente a outra, a saber, preferir a escrita que
está na alma à escrita exterior. La pharmacie de Platon. p.115
70
Entrada no Isidro Pereira, “Que provém do nascimento, bem-nascido, de legítimo nascimento,
genuíno.”, p. 115.
71
Op. cit. p.360.
72
Fedro, 274e.
73
Junto com a noção de Eros, do Banquete e do Fedro, e também da noção de Conversão, da República
518.
123

estar em proposições, mas deve estar presente na alma daquele que sabe. A apreensão
do conhecimento não pode ser apenas o repetir proposições verdadeiras, mas deve
passar por um processo no qual esse conhecimento transforme o aprendiz, faça com que
uma nova forma de ver o mundo nasça74.
A inscrição é feita na alma daquele que sabe. Trata-se do real conhecimento
filosófico e não apenas daquele supostamente presente na escrita, que é em verdade um
simulacro (eidolon) de conhecimento. Sócrates descreve os dois pontos que tornam a
escrita na alma superior a uma escrita exterior. O primeiro, nós já descrevemos, trata-se
do modo como ela nasce, isso é, ela nasce como episteme. O segundo, trata da
habilidade de se defender e de saber para quem é necessário falar e calar (legein te kai
sigan). O que é realmente revelador da importância de uma experiência específica na
inscrição do verdadeiro logos é o fato de ele saber para quem se deve calar. Todos
temos a idéia de que aquele que sabe algo e sabe transmiti-lo, sabe especialmente falar,
discursar sobre um tema. No entanto, o que importa aqui não é que a pessoa tenha
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ouvido falar sobre o assunto e assim tenha uma compreensão superficial, parakousma75,
nem que a pessoa pareça muito saber, polugnovmene" ei\nai dovxousin 76, mas realmente
aprenda e, assim, viva de acordo com aquilo que aprende. Nesse sentido, "saber
transmitir" filosoficamente algo será ter a perspicácia de fazer com que a pessoa passe
pelo processo que instaure o saber dentro dela, que inscreva o logos em sua alma;
ensinar filosofia será saber transmitir a experiência que fará a pessoa passar a viver de
acordo com aquilo que aprendeu.
Dessa forma, ensinar será também calar sobre esse algo. Platão tem plena
consciência das delicadezas presentes no processo de real aprendizagem de verdades
filosóficas, aquelas que estruturam a vida como um todo. O momento oportuno, kairos,
com certeza é um dos itens essenciais nessa aprendizagem, e, portanto, de nada adianta
falarmos quando a pessoa não está pronta para absorver aquela verdade. Assuntos como
morte, finalidade da existência, transcendência da alma, verdade inteligível, não são
corretamente assimiladas, isto é, não repercutem existencialmente, salvo em momentos
específicos, através de palavras e vivências específicas. O saber calar, além de
demonstrar discernimento entre as pessoas que realmente querem compreender e as que

74
Pode-se ainda fazer uma relação entre essa inscrição na alma com o poder dos mitos de "forjar a alma"
(plattein tes psykhes) descrito na República, livros II e III. Toda a educação na República é baseada nessa
idéia de transformar a alma dos aprendizes, para que eles possam compreender a verdade de modo
rigoroso e, assim, possam conduzir suas vidas adequadamente.
75
Carta VII 338b, 340b.
76
Fedro 275c.
124

não querem, também demonstra conhecimento do tempo específico de aprendizagem de


cada pessoa. Por vezes, pode ser mais proveitoso para alguém perdurar em uma dúvida
e investigar por si próprio um tema do que receber diretamente a resposta cabal.
Pequenas tensões no processo de absorção de uma verdade filosófica podem ser
importantes para se efetivar, como o quer Sócrates, a inscrição do logos na alma.
Outro ponto relevante sobre a supremacia do discurso inscrito na alma é que
somente ele pode se defender a si mesmo. A imagem de "ter o discurso dentro de si" é
lapidar para falarmos da necessidade de uma experiência vital que fundamente o
conhecimento. A capacidade de se defender vem de um conhecimento interno que não
se esgota em nenhuma formulação exterior. Na verdade, esse conhecimento interno só
pode ser completamente compreendido por outro conhecimento interno, isto é, somente
com a inscrição em uma nova alma desse mesmo logos é que ele pode ser
compreendido corretamente. Esse processo de inscrição do logos é o que aqui estamos
chamando de experiência vital, e quem não tem tal discurso em si não sabe como se
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defender em momentos de exame e críticas, pois não viveu a experiência fundadora do


conhecimento.
A resposta de Fedro a essa descrição do irmão legítimo da escrita é
surpreendente, e realmente lembra o que Alcidamas já havia dito, como nos aponta
Friedlander77. Fedro descreve um logos que vive e tem alma, zw'nta kai; e[myucon,
como se fosse comum tal afirmação. O que vem a ser um logos que tem vida e alma?
Trata-se do saber que realmente está inserido na vida do dia-a-dia daquele que sabe.
Trata-se da própria vida do filósofo, que vive a partir desse logos inscrito dentro de si,
que determina suas escolhas e ações. Esse logos, sendo sobre as questões cruciais da
vida, descreve o que acreditamos, descreve o mundo em que vivemos. Esse é o logos
que pode produzir vários escritos, que sabe se defender e sabe para quem se deve calar
ou falar, pois ele sabe como o outro deve ser, caso venha a participar do mesmo logos.
Exatamente por tal logos ter vida própria ele não pode apresentar o insulamento
filosófico tão freqüente no meio acadêmico, onde a forma existencial de lidarmos com o
tema discutido não entra em questão na discussão. Pelo contrário, para Sócrates, é esse
o logos que realmente comanda qualquer investigação filosófica, pois é ele que está
vivo na alma daquele que investiga, e é com ele que a investigação trava uma luta. Por
isso, a investigação tem sempre um caráter pessoal, a investigação é sempre um

77
Friedlander, p. 111.
125

dialegesthai, uma conversa, um diálogo entre duas pessoas, no qual a posição


existencial do indivíduo entra em jogo na investigação, ela lida sempre com o traço de
personalidade dos interlocutores. Se a investigação filosófica se pretende eticamente
transformadora, como toda filosofia grega se pretende, ela deve ser um diálogo vivo
com o logos vivo dentro do filósofo: caso contrário, será apenas sopro no vento, chuva
no molhado, e não produzirá conhecimento, rigorosamente falando.
Sobre um logos inscrito na alma, temos ainda uma passagem singular da
República78 que vem ao encontro disso que ora tratamos. Trata da descrição da falsidade
inscrita na alma, a pior forma de falsidade que pode haver. Em meio à descrição do que
se deve ou não falar sobre os deuses para que se possa educar corretamente os futuros
guardiães da cidade, Sócrates investiga sobre a possibilidade de os deuses mentirem,
procurando um critério para colocar limites ao que os poetas dizem sobre os deuses. Há
uma diferença entre a mentira nas palavras e a mentira que estaria na melhor parte do
ser, na alma: essa, os deuses não teriam, pois seria exatamente a ignorância sobre um
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assunto. “Soc. Pois certamente seria correto dizer [...] que isso é, em verdade, a
falsidade – a ignorância na alma do homem enganado. Pois a falsidade em palavras é
uma cópia da afecção da alma, um simulacro posterior e não uma falsidade pura”.
Temos, no Sócrates da República, a mesma idéia de que a escrita falsa é um simulacro
(eidolon) daquilo que é realmente a falsidade: a ignorância da alma do homem que não
sabe. Aqui no Fedro, temos a descrição da real verdade, aquela que está inscrita na alma
daquele que sabe, que a escrita é mero simulacro.
Ainda temos outra imagem para analisar, a do agricultor. No próximo trecho, de
276b-277a, Sócrates trata dos motivos que levam alguém a escrever, tratando do valor
da escrita exterior e da escrita interior. A comparação é com o agricultor em seus
momentos de zelo e cuidado, (kedoito, spoudei, 276b) e em momentos de brincadeira e
festa, (paidia'" te kai; eJorth'" cavrin, 276b). Sócrates usa essa imagem para também
descrever o poder de se defender a si mesmo e também de inscrever em outros o mesmo
logos.
Nas festas de Adonis, belo amante de Afrodite que morre prematuramente, havia
a prática de plantar pequenas plantas fora de estação para vê-las morrer rapidamente79,
em alusão ao jovem. Sócrates então pergunta se o agricultor sensato (noun ekhon)

78
II, 382b-c.
79
Ver nota 2 de Robin, p. 90. PLATON. Phèdre. Texto estabelecido, tradução, introdução e notas por
Leon Robin, Paris: Les Belles Lettres, 1947.
126

plantaria as sementes pelas quais tem zelo e as quais deseja ver frutificando em algum
"jardim de Adonis". Ou, pelo contrário, caso realmente tenha zelo por essas sementes,
se não procuraria plantá-las com a técnica da agricultura (th'/ gewrgikh'/ tevcnh/),
semeando em campos apropriados e se alegrando ao ver, no tempo apropriado, elas
alcançarem seu telos. A comparação é feita com aquele que tem conhecimento das
coisas belas, justas e boas, pois ele não plantaria tais sementes, tão nobres, nos campos
das palavras, escrevendo em água80, já que elas não seriam capazes de se defender nem
ensinar efetivamente (hikanos) a verdade.
Há aqui, explicitamente, uma referência a uma técnica apropriada para a
inscrição do logos na alma. Assim como há uma técnica de semear, há uma técnica de
inscrever logoi nas almas. Essa técnica leva em conta o tempo apropriado e necessário
para que algo seja inscrito, cresça e frutifique na alma do aluno. A comparação explícita
é de possíveis oito dias para o amadurecimento de plantas no jardim de Adonis e de oito
meses próprios para as sementes crescerem e frutificarem na terra apropriada. A escrita
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exterior produz rapidamente frutos aparentes, pois a pessoa pode repetir frases feitas
com aparência de sabedoria. No entanto, a verdadeira sabedoria deve ser inscrita na
alma apropriada, esperando os "oito meses" apropriados para que ela cresça e dê seus
frutos. Corroborando o que vínhamos dizendo, é necessário um processo pelo qual passa
o aprendiz para que ele realmente possa saber sobre um assunto.
Em nossa formulação sintética da presente tese – é através de uma experiência
vital que se efetiva uma compreensão ontológica – um termo surge aqui com singular
correspondência com o nosso "se efetivar", o advérbio iJkanw'", suficientemente. A idéia
de algo efetivo vem em contraposição a algo que seria apenas imaginário ou que não
ocorresse realmente. Uma das frases em que o termo aparece é a seguinte: “Não é, pois,
por diligência que escreve essas coisas ‘na água’, semeando, através da tinta e da pena,
com palavras incapazes de salvarem a si mesmas pelo discurso e incapazes de
efetivamente (hikanos) ensinar a verdade.”81 O termo hikanos indica primeiramente a
noção de algo "ser suficiente" para realizar o que se espera dele82. Podemos deduzir que,
quando algo ocorre de modo hikanos, ele efetiva o que intentava realizar.

80
Escrever na água é uma expressão grega que diz algo como nosso escrever na areia, indicando a
impermanência do que se escreve.
81
... ajdunavtwn de; iJkanw" tajlhqe;" didavxei.O tradutor para a Loeb, Harold Fowler, traduz esse termo por
effectively.
82
Exemplo do Liddle Scott, iJkanov" ijatrikhvn, suficientemente versado em medicina.
127

Se a verdadeira instrução modifica aquilo que a pessoa realmente pensa sobre


um determinado assunto, e sendo esse assunto fundamental na estrutura do mundo em
que a pessoa vive, necessariamente tal instrução terá que transformar o modo como a
pessoa vive. No entanto, certos discursos apenas educam superficialmente, apresentando
um verniz de conhecimento; isto é, o ensino não é hikanos, não é suficiente para ensinar
de verdade. Um ensino efetivo, isto é, suficiente, ensina inscrevendo sua verdade na
alma do aluno. Apenas um logos que foi efetivamente inscrito na pessoa, que
efetivamente acorre vitalmente no aluno, pode transmitir esse mesmo logos para outra
pessoa, pode ensinar efetivamente a verdade. No último parágrafo da parte que ora
analisamos, em que Sócrates esclarece a relação do logos inscrito na alma com as
palavras plantadas de modo autêntico, o termo hikanos aparece algumas vezes,
indicando a qualidade de ela ser suficiente para realizar o que pretende.
Ainda com tamanha depreciação da escrita, Sócrates parece conferir-lhe um
lugar positivo. Mesmo ela sendo exercida como brincadeira e em festas, a escrita pode
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vir a produzir frutos importantes. Em relação à recordação, ela pode ajudar àqueles que
já sabiam quando chegam ao esquecimento na velhice. Mas ela também ajuda a todos
aqueles que seguem as mesmas pistas, panti; tw'/ taujto;n i[cno" metiovnti. O termo
ikhnos, sinal, pegadas, pista, é indicativo do que a escrita pode ser àqueles que têm
facilidade em aprender sozinhos, como já foi dito na Carta VII83. A escrita é em verdade
uma pista do caminho que foi concretamente caminhado e que deve ser novamente
trilhado se alguém quiser ter a mesma compreensão, isto é, inscrever em sua alma o
mesmo logos. Se o verdadeiro conhecimento só pode ser transmitido através de um
processo pessoal, no qual as estruturas do indivíduo em questão no momento da
investigação sejam revistas, a escrita não pode ser nada mais do que indicações de
caminhos já trilhados, de diálogos vivos que forjaram modos de ser. Nesse sentido, a
escrita é uma brincadeira superior às outras brincadeiras como os banquetes. Fedro vai
dizer que ela não é de forma alguma phaulen, vulgar ou insignificante. Ser capaz de
contar histórias sobre a justiça, muqologou'nta periv dikaiosuvnh", é uma brincadeira que
pode vir a gerar frutos, além de guardar tesouros para o esquecimento da velhice. Por
algum acaso alguém pode até tirar algum proveito dos sinais impressos no exterior para
produzir os discursos do interior.

83
“[...] com exceção de uns poucos que, com indicações sumárias, sejam capazes de descobrir sozinhos a
verdade.” 341e
128

No entanto, tarefa muito mais digna é aquela em que “alguém, utilizando a


técnica da dialética, recebe uma alma apropriada e planta e semeia discursos com
ciência, os quais sabem efetivamente defender-se a si mesmos, e também a quem os
semeou, e não são infrutíferos, e faz com que outros tenham sementes”. Vemos que a
dialética é a técnica que está sendo comparada com a do agricultor sensato, que sabe
quando e onde plantar suas queridas sementes, assim como o amante do saber sabe
quando e onde pode semear suas verdades. Esses discursos plantados em almas
apropriadas ainda vão gerar frutos com outras sementes, também capazes de serem
semeadas em outras almas apropriadas, criando uma corrente de transmissão de
sabedoria. Por fim, serão esses discursos que possibilitarão ao homem ser feliz o quanto
for possível ao homem. Vemos aqui a repercussão ética que essa inscrição produz, não
podendo, portanto, haver insulamento entre o que se aprende filosoficamente e como se
vive.
Finalmente, chegamos à última parte desse trecho do Fedro, 277a-278b, na qual
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Sócrates parece recordar de toda investigação sobre a retórica. É relevante salientarmos


que Fedro pede a Sócrates para recordar (hypomneson) o que foi dito. Temos aqui
Platão indicando de que modo devemos receber seus próprios escritos, seguindo o que
já tinha sido exposto no próprio mito da invenção da escrita.
Essa passagem, especialmente de 277b-c, é bastante famosa por retomar uma
noção que será importante para os diálogos de Platão ditos tardios, a noção de diairesis.
Nós já analisamos nesta tese a importância da divisão das almas e dos discursos em
grupos correlatos, no capítulo em que tratamos da relação da retórica com a filosofia.
Agora, é retomada essa discussão a partir da necessidade de uma inscrição do logos na
alma, pois é somente se dirigindo com o logos apropriado a almas apropriadas que
poderá haver tal inscrição. Lá na definição da retórica84, Sócrates explicitava os
pressupostos necessários a uma psicagogia, que são os mesmos resultados da inscrição
do logos na alma: ela deve saber para quem falar e para quem calar, e por isso precisa
conhecer as formas das almas e dos discursos e adequá-los corretamente, e deve
conhecer também o momento apropriado para utilizar cada discurso. É nesse sentido
que podemos relacionar a psicagogia com a inscrição do logos na alma, que se faz pela
dialética. Quando a alma é conduzida para a verdade, ela passa a viver a partir do logos,
que ganha vida dentro dela. Essa condução se faz pelo método socrático de perguntas

84
Fedro, 271d, “Já que o poder do logos é ser uma condução a alma (psykhagogia), aquele que pretende
ser um orador deve saber as várias formas que têm as almas”.
129

adequadas em momentos adequados e refutações cíclicas a essas respostas, até alcançar


o que a Carta VII chamou de "chama da verdade", procedendo pela conversão da alma
exposta na República.
Nesse trecho do Fedro, há como um resumo e uma retomada de tudo que foi dito
na digressão final do diálogo sobre o logos, escrito ou oral, e Sócrates salienta que ele
tem o seu fim na educação, e isso indica que a retórica não pode ser considerada com
vistas exclusivamente à persuasão, mas também à educação: “[...] até que ele alcance
tudo isso, ele não será capaz de se expressar pela técnica [...] e nem será capaz de
persuadir nem de ensinar.”85
Com isso, terminamos a análise de duas passagens da obra de Platão que são
relevantes para a idéia de que é através de uma experiência vital que se deve inscrever o
conhecimento filosófico na alma do aluno. As críticas à linguagem escrita, tanto na
Carta VII quanto no fim do Fedro, nos apontam para uma supremacia do modo
existencial como o indivíduo se relaciona com o tema investigado sobre os seus
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discursos ou suas conclusões racionais. É que tais discursos nem sempre estão
relacionados com os logoi inscritos dentro de sua alma. São esses logoi que realmente
determinam o que alguém realmente sabe sobre um assunto, e é com eles que se deve
travar uma "luta" para que haja uma transformação verdadeira naquele que ingressa na
filosofia.

85
277c.
Quarto Capítulo
Conversão Platônica

mh; o[knei ajpokrivnasqai, w\ Pw'le + oujde;n ga;r blabhvsh/ +


ajlla; gennaivw" tw'/ lovgw/ w{sper ijatrw'/ parevcwn ajpokrivnou
kai; h] favqi h] mh; a} ejrwtw'

Não hesite em responder, Polo, pois não te machucarás.


Mas, pelo contrário, entrega-te corajosamente
ao discurso, assim como a um médico,
e responde sim ou não ao que pergunto.
Górgias 475e

tiv pot ; ejsti;n aujto; to; e{n,


kai; ou{tw tw'n ajgwgw'n a]n ei[h kai; metastreptikw'n
epi; th;n tou' o[nto" qevan hJ peri; to; e}n mavqhsi".

... o que é o um ele mesmo?


Dessa forma, o estudo do um seria um dos que conduzem
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para a contemplação do ser, e <para lá> promoveria a conversão.


República 525a

4.1. INTRODUÇÃO – DIANOEISTHAI e PASKHEIN

O presente capítulo traz mais um aspecto da filosofia de Platão que corrobora


esta tese, que defende a necessidade de um envolvimento pessoal e total do aprendiz
para que haja uma compreensão filosófica. Trata-se da descrição da dialética – ponto
culminante da educação dos guardiães – como conversão1, apresentada no livro VII da
República. Na medida em que a educação filosófica é o objeto principal da presente
tese, tanto os livros II e III – em que se apresenta a primeira educação dos guardiães –
quanto o livro VII – no qual encontramos a educação superior daqueles que virão a ser
filósofos – são crucias para entendermos a envergadura e profundidade de nossa
afirmação. Nossa tese se baseia em uma estreita relação entre ética e teoria do
conhecimento, pois ela procura chamar atenção para as implicações éticas presentes no
conhecimento filosófico rigoroso, no entender de Platão. Trata-se de sublinhar os
"longos anos de convívio" com a filosofia e suas questões, com o fim de promover uma
conversão espiritual, retirando o homem das sombras que são o devir, rumo à luz que é

1
Como veremos mais adiante, existem diversos termos em grego que trazem essa idéia de conversão. Os
principais são metastrofe e epistrofe.
131

o inteligível. Para alcançarmos a necessidade da noção de conversão exposta no livro


VII, vamos ainda analisar trechos da obra de Platão nos quais percebemos a mútua
implicação entre conhecimento e ética.
Charles Kahn, em seu artigo intitulado Drama and dialectic in Plato’s Gorgias,
chama atenção para o aspecto pessoal do elenkhos socrático. Estão em jogo, no
desenrolar das três2 refutações do Górgias, por exemplo, aspectos morais de cada
interlocutor de Sócrates, sem os quais a refutação não alcança total êxito.

“Dessa forma, a tese central deste estudo é que todos os três argumentos
são ad hominem: dirigidos contra o homem, e não apenas contra suas afirmações.
Esse caráter duplo do elenkhos, como um exame da verdade e coerência da vida do
interlocutor, assim como de suas afirmações proposicionais, e finalmente como um
teste da harmonia entre a vida e suas afirmações – essa natureza complexa do
elenkhos é refletida artisticamente no jogo de cena entre o pessoal e o dialético,
entre as estruturas dramática e lógica da refutação.”3
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Kahn quer sublinhar que o importante na refutação dialética não é apenas a


coerência dos enunciados entre si, mas também a coerência entre o que cada um procura
em sua vida e o que defende. É em uma comparação entre o que o personagem diz e o
modo como ele conduz a sua vida que Sócrates vai flagrá-lo em contradição. Essa
ênfase na vida pessoal é natural, se percebemos que o verdadeiro objetivo da dialética,
como veremos na República, é concluir o que já deveria estar em processo desde o
nascimento em uma educação ideal: a conversão do mundo do devir para o mundo do
inteligível, e a conseqüente mudança na forma de viver. Isso vai ao encontro de um dos
textos que o próprio Kahn usa como epígrafe do seu artigo, a seguinte passagem do
Laques, 187e:

"Quando qualquer um se aproxima de Sócrates em conversa, mesmo se


começa a discussão sobre um outro assunto, ele não vai parar até que a pessoa seja
obrigada a dar conta de si mesma (didovnai periv auJtou' lovgon)4, de que modo vive

2
As de Górgias, Polo e Cálicles.
3
KAHN, Charles. “Drama and dialectic in Plato´s Gorgias”, in JULIA, Annas. (ed.) Oxford Studies in
Ancient Philosophy, Vol. I, 1983, London: Claredon Press, 1984, p.75-76.
4
A expressão didonai logon será a usada para a definição de dialética na República VII e em várias outras
passagens. Protágoras, 336c, Político 286a, Teeteto 202c, 175c, 183d, Sofista 230a, Fédon 78c-d, 95d,
Cármides 165b, apud, nota f, p. 195, SHOREY. Paul. Introduction and notes to the Republic of Plato.
Cambridge: Harvard University Press, 1987 (Loeb Classical Library).
132

agora e como tem vivido sua vida (bivon bebivwken) até aqui. E uma vez ali, Sócrates
não lhe permite sair, até que o tenha testado em todas essas questões."5

Esta tese tem afirmado desde o início que não pode haver separação entre a
investigação filosófica e a vida particular de cada um. Pelo contrário, a investigação
filosófica em Platão tem como objetivo principal transformar a vida do indivíduo, e isso
ficará explícito na apresentação da educação filosófica como conversão, como a saída
da caverna. Mas já podemos ver indícios da inter-relação entre o que sabemos e como
vivemos no Górgias, como Kahn nos aponta. Kahn vai apontar para o fato de que tal
inter-relação é a causa principal de Platão escolher a forma dialógica para expor a
filosofia. Se os diálogos socráticos não apresentam todo o processo de conversão dos
interlocutores, apresentam pelo menos o início desse processo, no qual aquele que
debate com Sócrates cai em aporia e reconhece que não pode mais sustentar o que antes
sustentava6.
Kahn vai, mais adiante em uma nota7, afirmar que no Banquete temos exemplos
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de homens convertidos à filosofia. Provavelmente, ele retira esses exemplos de


conversão – de Apolodoro e de Alcebíades – de Nock, que já em 1933, em seu livro
Conversion, cita a descrição de Apolodoro no início do Banquete como um exemplo
típico de um convertido à filosofia. “Adesão a Sócrates de alguma forma significava dar
sua alma para ele”8. Apolodoro, quem nos relata a história da festa de Agatão em que se
discutiu sobre eros, logo no início de seu relato (173c-e), nos descreve o prazer que
sente ao falar ou ouvir de filosofia, enquanto não se importa com os outros tipos de
discurso. Ele ainda despreza seus ouvintes que só se interessam por dinheiro, os quais
retrucam que Apolodoro continua o mesmo, desprezando tudo e somente louvando a
Sócrates – por isso ganhou o apelido de manikos, louco, pois tem sempre uma reação
intempestiva frente aos que levam uma vida não voltada para o saber.

5
Cf. também as outras epígrafes, Apologia 38a, 29d-30b, Protágoras 333c.
6
A imagem de Sócrates como uma enguia elétrica que paralisa quem a toca, no Mênon 80a, é lapidar para
mostrar a força existencial do diálogo com Sócrates. O linguajar de enfeitiçamento (gohteuvein, khlei'n,
etc.), usado freqüentemente para caracterizar o poder de Sócrates, também é interessante para apresentar a
repercussão pessoal que as refutações socráticas produzem. Por exemplo, temos Gláucon dizendo que
Trasímaco foi enfeitiçado, República 358b. Ver também o Cármides 157a, em que os encantamentos
(epoidai) são certos discursos (logoi). Cf. BELFIORE, Elizabeth. “Elenchus, Epode and Magic: Socrates
as Silenus.” In: Phoenix. Vol. XXXIV Número 2, Classical Association of Canadá: Toronto, 1980.
7
Kahn, op. cit. p. 115, nota 65.
8
NOCK. Conversion. Oxford: Claredon Press, 1933, p. 166. Ver especialmente o capítulo intitulado
“Conversion to philosophy”. Outra citação que Nock também faz é sobre a imagem de Sócrates relatada
por Alcebíades em contemplação durante uma noite inteira no acampamento de Potidéia e pela manhã
fazendo uma oração ao sol e indo embora. p. 174.
133

A filosofia a que se dedica Apolodoro não é uma investigação insulada da sua


própria vida. Ser filósofo para Apolodoro não se resume a produzir textos coerentes
sobre assuntos acadêmicos nem a articular conceitos e sistemas de conceitos de modo a
torná-los coerentes e defensáveis frente a uma banca. Ser filósofo, para Apolodoro,
significa acima de tudo ter abandonado uma forma de viver e se entregado a uma outra
forma de compreensão de mundo. A filosofia, na época de Platão, estava muito mais
ligada a esse tipo de atitude do que podemos imaginar hoje em dia, quando tão
facilmente nossas opiniões filosóficas não alcançam nossas decisões existenciais.
Nessa mesma nota, e provavelmente também apoiado em Nock, Kahn ainda
chama nossa atenção para o poder pessoal de Sócrates, descrito no começo do discurso
de Alcebíades no Banquete (215b-216c), poder esse capaz de converter uma pessoa à
filosofia. Essa descrição de Sócrates e seu poder sobre as pessoas que o escutam será
especialmente relevante ao explicitarmos o que deve produzir a dialética se ela for
pensada como conversão – isto é, ela deve transformar o modo que a pessoa vive sua
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vida. Alcebíades faz três comparações de Sócrates: com um Sileno de madeira que,
quando aberto, vemos os deuses que lá se encontram, com o sátiro Mársias, com sua
flauta que enfeitiça (ejkhvlei,215c, de keleo, enfeitiçar) os homens, e com uma sereia, a
cujo canto é impossível resistir. Como Mársias, só que sem os instrumentos e apenas
com simples discursos (psilois logois), Sócrates transtorna e arrebata todo o tipo de
gente, homens, mulheres e jovens. Alcebíades faz uma descrição dos estados de espírito
que provavelmente os rituais coribantos (korybantionton) produziam na época, quando
as pessoas choravam (dakrya ekkheitai), o coração batia mais rápido (kardia pedai), a
alma se conturbava (psykhe etethorybeto). É normal vermos alguém como Alcebíades
fazer uma descrição do impacto produzido pelo convívio com Sócrates em termos tão
emotivos e comuns às experiências catárticas das festas religiosas de sua época. A
grande diferença que aparece no caso de Sócrates é que Alcebíades e outros também
sentiam a premente necessidade de modificar sua própria vida. Alcebíades, ele próprio
admite, sente perante os discursos de Sócrates algo que ninguém consegue fazê-lo
sentir, vergonha (aiskhynesthai, 216b). Vê-se aqui, em uma imagem, o que é esperado
da dialética: trata-se da conversão espiritual ocorrendo naqueles que são tocados pela
força persuasiva da refutação pessoal.
134

Aquilo para que Belfiore9 nos chama atenção é que, nessa passagem, Sócrates
não está sendo comparado com um mágico enganador, mas sim com um sacerdote-
médico de rituais catárticos, que usava magia para tirar o medo que se apresenta como
uma doença da alma. O primeiro estágio desses rituais era fazer com que o indivíduo
tomasse consciência de seu medo. Da mesma forma, o primeiro passo no elenkhos
socrático é a pessoa tomar consciência de sua ignorância e, a partir dessa consciência,
querer modificar sua vida.
O que importa salientar aqui é que a descrição do convívio com a filosofia não é
de um aprimoramento do intelecto apenas, de um aprimoramento da capacidade de
defesas esterilizadas de sistemas e teorias. A filosofia de Platão apresenta-se
eminentemente como um paskhein, isto é, como um experimentar, uma forma de
conviver vitalmente com questões que transtornam e abalam nossas estruturas vitais,
nos convertendo para o mundo inteligível. A filosofia de Platão somente pode ser
entendida como dianoeisthai, pensar, se também pensarmos esse dianoeisthai como
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capaz de produzir um paskhein, uma afecção, uma experiência. O dianoeisthai


platônico, sendo um paskhein, transforma tão radicalmente a vida, exatamente porque
não há como refutá-lo, não há como argumentar contra, pois se trata de um argumento
racional que encontra respaldo na totalidade da alma, e não apenas no intelecto. O
dianoeisthai platônico pretende inscrever o logos na alma, como a psicagogia da
retórica do Fedro. Assim como a dialética, vista como suma retórica no Fedro, o
dianoeisthai somente age sobre aquele que está pronto para vivê-lo como um paskhein,
caso contrário, se a pessoa não está pronta para compreender com toda sua alma,
continuará em dúvida mesmo que compreenda racionalmente, como aconteceu com
Gláucon e Adimanto no início da República10. A escada da educação filosófica proposta
na República, que veremos a seguir, na qual podemos perceber uma simetria com a
escada erótica do Banquete, é de tal forma vital que nos força a perceber a verdade e
coerência que há nos raciocínios matemáticos e dialéticos, a ponto de não conseguirmos
ver a vida de outra forma, a não ser aquela que a dialética nos apresenta.
Vamos apresentar, no estudo subseqüente, o quanto existencial e viva é a
condução da educação superior dos guardiães descrita na República, e um trecho do
Górgias nos salta aos olhos por fazer referência à íntima ligação da vida e do que se
estuda. Sócrates, ao conversar com Górgias sobre o que seja a retórica e suas

9
“Elechus, epode and Magic”, op. cit., p. 135.
10
República, início do livro II, 357a ff, como veremos mais à frente.
135

conseqüências para quem a estuda, chega ao impasse de ser necessário, além da


habilidade de convencer, que o aprendiz de retórica aprenda o que é ser justo e injusto.
Essa necessidade nasceu da defesa de Górgias que afirmou não ser legítimo
responsabilizar os professores de retórica se os seus alunos a utilizam para fins
injustos11. Assim como não expulsamos os professores de luta, por seus alunos terem se
comportado mal, também não deveríamos expulsar da cidade os professores de retórica,
se seus alunos utilizam injustamente a arte de persuadir. No entanto, Górgias afirma que
ele mesmo ensinaria o que é o justo e o injusto, caso o aluno não saiba previamente.
A partir dessa afirmação, Sócrates flagra Górgias em contradição, utilizando-se
de uma idéia já presente em Homero: a explicação da conduta moral em termos de
conhecimento. Assim como um homem que sabe construir casas é um construtor, e
alguém que sabe música é um músico, também aquele que sabe as coisas justas é justo.
“Não é verdade, de acordo com o mesmo argumento, que também aquele que conhece
(memathekos) as coisas justas é justo?”12. Antes, Sócrates já havia chegado à noção
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mais geral “[...] aquele que conhece (memathekos) cada disciplina é desse tipo, assim
como essa ciência o faz.”13 Está aqui explícita uma íntima relação entre aquilo que se
conhece e aquilo que se é. Nesse sentido, nenhum aluno de Górgias, se tivesse
aprendido as coisas justas, poderia vir a praticar atos injustos. Dodds vai afirmar que tal
concepção – a que explica a conduta moral em termos de conhecimento – já estaria
presente em Homero, pois a conduta moral na Grécia era pautada no conhecimento e
não na vontade14. O que nos interessa aqui é a estreita relação entre o que se conhece e
como se vive. O mesmo é afirmado em Protágoras 352c, em que se discute o problema
da akrasia, a falta de força de vontade para realizar aquilo que se julga melhor. Não
precisamos aqui entrar no problema da akrasia, apenas é relevante salientar que a
passagem do Górgias, que aponta para a íntima relação daquilo que se sabe com o modo
como conduzimos nossa vida, vem ao encontro da presente tese. É ainda importante
salientar que não se trata de qualquer "saber" que se relaciona com a conduta moral em
geral, mas um saber qualificado, aquele descrito na República como conversão. Pois
somente aquele que viveu o processo de aprendizado, até passar pela dialética e alcançar
11
457a-b
12
Oujkou'n kata; tou'ton to;n lovgon kai; oJ ta; divkaia memaqhkw;" divkaio", 460b.
13
oJ memaqhkw;" e{kasta toiou'tov" ejstin oi|on hJ ejpisthvmh e{kaston ajpergavzetai_
14
DODDS. Plato: Górgias. p. 218. “De Homero em diante, a conduta moral foi explicada em termos de
conhecimento e não em termos de vontade – um conceito completamente ausente no pensamento grego
antigo. Isso era natural em uma sociedade que julgava os homens por suas ações e não por suas intenções
(O pecado de Édipo não era menos pecado por ter sido feito em ignorância). O agathos era aquele homem
que fazia bem as coisas, e fazer bem as coisas envolvia saber como fazê-las [...]”
136

o seu objetivo supremo, é que vai realmente conhecer o que seja o justo. É o que Dodds
vai escrever:

“[Essa investigação socrática] vai em verdade contribuir com um passo


significativo na medida em que ela levanta a questão de que tipo de conhecimento
faz um homem moralmente bom. Evidentemente, não se trata de ter familiaridade
com um conjunto de regras como as que o artesão conhece (cf. Cármides 173e);
nem, é claro, a ‘cultura’ superficial passada por Górgias e seus discípulos. A
resposta de Platão é apresentada de modo mais pleno na passagem sobre
‘conversão’ na República, (518b ff): a moral pode ser seguramente baseada
somente em uma certa visão da natureza do mundo e da posição que o homem
ocupa nele, que habilita o homem a ver qual é seu verdadeiro ‘interesse’; e essa
visão pode ser alcançada somente por um ajustamento da personalidade como um
todo (su;n o{lh/ th'/ yuch'/).”15
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Ao nos encaminhar para o estudo da educação superior na República, vale ainda


ressaltar a importância que vemos, no Górgias, do questionar em conjunto e da boa
predisposição de alma que devem ter os interlocutores. Já vimos, ao tratar do Cármides,
que o discurso socrático tem a função medicinal de purificar a alma e eliminar sua
doença. No entanto, um pré-requisito para que o elenkhos socrático dê certo é a entrega
da alma16, e isso vem ao encontro da necessidade de um estado de espírito amigável
para que ocorra eficazmente a dialética17. O Górgias, que retrata momentos quase
bélicos entre os que dialogam, parece ser lapidar nesse sentido, pois várias vezes nesse
diálogo Sócrates mostra sua boa disposição para ser refutado e também seu
despojamento e abertura para realmente investigar a questão18. O mesmo princípio, de
que é melhor ser castigado quando em erro – pois assim nos livramos de nossa falha –
do que fugir do castigo, está presente no fato de Sócrates preferir ser refutado a refutar,
pois, quando é refutado, consegue se livrar de sua opinião errônea, coisa por demais
temerosa para quem acredita que a verdade traz a completude da vida (eudaimonia).
Também em 487a, Sócrates salienta as boas qualidades de Cálicles – conhecimento

15
DODDS. Plato: Gorgias. p. 218
16
Cármides 157b.
17
Vale salientar que não estou preocupado em distinguir dialética de elenkhos socrático, pois, para esta
tese, as sutilezas de suas diferenças não são relevantes. De acordo com Robinson, no entanto, poderíamos
afirmar que o elegkhos é apenas negativo e a dialética chega a conclusões. ROBINSON, Richard. Plato’s
earlier dialectic. Oxford: Clarendon Press, 1966, p. 61ff.
18
Górgias, 470c-b, 505e-506a, 506b-c, etc.
137

(episteme), boa vontade (eunoian) e franqueza (parresian) – e assinala a importância do


interlocutor para que seja encontrada a verdade. Igualmente na República, Adimanto
também vai pedir para ser refutado ao apresentar os argumentos que o atormentam, os
quais afirmam a vida injusta ser superior à vida justa19. Percebe-se que a investigação
filosófica deve ser conduzida em conjunto20, como amigos fazem, à procura de algo que
lhes é valioso. Novamente vemos que se o "investigar em conjunto" é algo que afeta o
que cada um tem de pessoal, em suas predisposições para se conhecerem e se
investigarem, nunca se poderia supor um insulamento entre vida e filosofia.
Outra passagem importante aparece ainda no Górgias 475e, em que Sócrates
está em vias de refutar Polo, e esse já se mostrava indeciso frente às conclusões que a
dialética socrática o obrigava a afirmar. Ao ver a hesitação de Polo frente a suas
próprias respostas às perguntas de Sócrates, esse o incentiva a continuar: “Não hesites
responder, Polo, pois não te machucarás. Mas, pelo contrário, entrega-te corajosamente
ao discurso assim como a um médico e responde sim ou não ao que pergunto.”
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Novamente, percebemos como o processo de refutar socrático é uma experiência


pessoal na qual os interlocutores se transformam, modificando aspectos essenciais de
sua estrutura vital a ponto de poderem se tornar sãos. O logos socrático é como um
médico da alma de seus ouvintes, pois não tem o objetivo de unicamente transmitir uma
teoria racional sobre os fundamentos do real, mas quer eminentemente tocar na
concepção de mundo dos que o ouvem, e assim transformar sua vida. É um processo de
conversão, e não uma transmissão de informações insuladas da vida.

4.2. CONSTRANGIMENTO RACIONAL E PERSUASÃO


COMPLETA

hJ glw'ssa ou\n uJpesceto, hJ de; frh;n ou[.


A língua certamente jurou, a mente, porém, não.

Banquete, 199a

Vamos agora analisar certo traço do começo da República, que determina todo o
decorrer da argumentação dos livros subseqüentes. Como já dissemos, é inimaginável o
insulamento filosófico na Grécia Clássica. A filosofia deve convencer totalmente os

19
República 367b.
20
Górgias 506a, zhtw' koinh/' meq v uJmw'n.
138

seus alunos e não apenas conceitualmente. Podemos ver como Platão também se
preocupa com o insulamento filosófico na passagem do início do livro II da República.
Trata-se da reclamação de Adimanto e Gláucon de que não foram realmente
convencidos sobre a justiça ser superior à injustiça. Eles querem uma defesa da justiça
em si mesma e por si mesma21. O livro II começa com Sócrates dizendo que julgava ter
terminado com o discurso, quando então descobriu que toda a conversa com Trasímaco
no livro I não havia passado de um proêmio, prooimion. Esse termo será importante
quando analisarmos a educação elevada do livro VII, pois é assim que Sócrates qualifica
todo o estudo das matemáticas frente à dialética, que seria a parte principal. A relação
que podemos fazer entre essas duas ocorrências do termo prooimion é que a discussão
com Trasímaco, que nos deixa em aberto na questão do que seja a justiça, seria como o
estudo das matemáticas, que não alcança o objetivo final de todo conhecimento, a idéia
de bem. Mas vamos analisar o porquê de Gláucon e Adimanto reclamarem uma maior
argumentação.
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Alguns comentadores defendem a distinção do livro I da República do resto da


obra, como se esse livro, com um suposto nome de "Trasímaco", fosse um trabalho da
juventude de Platão, continuado posteriormente com os outros nove livros. Mesmo sem
assumir uma posição nessa querela, podemos notar facilmente que o início do livro II da
República é realmente um novo começo na investigação sobre a justiça, e o resto da
obra é pautado por esse novo começo. De tempos em tempos, no decorrer da República,
Sócrates retoma o desafio de Gláucon e Adimanto de provar o valor da justiça frente à
injustiça. Queria chamar atenção para o modo como esses dois filhos de Aríston
encaminham a questão para Sócrates.
O livro I nos deixa com o revoltado Trasímaco abandonando a defesa da
injustiça como superior à justiça. Já o livro II começa com Gláucon reclamando que
ainda não foi convencido de que a justiça é melhor. E é esta frase que impulsiona o resto
todo da República. “Sócrates, você deseja parecer ter nos convencido ou nos convencer
realmente de que de todo modo é melhor ser justo do que injusto?”22
Gláucon e Adimanto não são más pessoas. Eles não concordam e não vivem
suas vidas de acordo com os argumentos que defendem a vida injusta como mais feliz

21
A parte a que me refiro vai desde 357a até 367d, em que os dois levantam as críticas à justiça e os
louvores à injustiça, e então Sócrates começa a sua investigação. Para uma estudo desses argumentos no
início do livro II, ver AUSLAND. “Socrates argumentative burden in the Republic.” In MICHELINI, Ann
N. (ed.) Plato as Author. The Rhetoric of Philosophy. Leiden, Boston: Brill, 2003, p. 123
22
357b.
139

do que a justa. Pelo contrário, a partir do caráter deles23, Sócrates pode ver que os filhos
de Aríston buscam uma vida justa e não são homens injustos. Chamar Gláucon e
Adimanto de filhos de Aríston é uma forma de Platão mesmo se colocar no diálogo, já
que esses são seus irmãos, e o epíteto "filhos de Aríston" é também uma forma de falar
dele mesmo, e assim se colocar no lugar daqueles que ainda não estão totalmente
convencidos da superioridade da justiça. Com essa frase na boca do filho de Aríston,
Platão quer nos mostrar que a maioria das vezes vivemos na ambivalência entre ser
justo ou injusto. Concordamos, através do raciocínio que Sócrates nos impõe, que a
justiça é superior à injustiça, mas quando ouvimos os argumentos dos que defendem a
vida egoísta e desregrada – a vida do homem que mesmo sendo totalmente injusto leva
a fama de justo e se sai bem de todas as situações – caímos em aporia. Vejamos
Gláucon falando na seguinte passagem:

“Eu farei da seguinte forma, se também parecer melhor para você. Vou retomar o
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argumento de Trasímaco e primeiro vou falar o que eles dizem ser a justiça e de
onde ela vem; em segundo lugar, que todos que a perseguem o fazem
involuntariamente e por necessidade e não como um bem; e em terceiro, que eles
têm razão por agirem assim (serem injustos), pois é muito melhor a vida do injusto
do que a do justo, assim eles falam. Eu pelo menos, Sócrates, de forma alguma
penso assim, mas fico em aporia quando me falam constantemente nos ouvidos,
ouvindo Trasímaco e inúmeros outros [...]”. 24

O ponto principal para o qual desejo chamar atenção é que ser convencido
realmente por um argumento não é algo tão simples. Na maior parte do tempo, vivemos
na ambivalência entre justiça e injustiça, por exemplo, e Platão está chamando atenção
para essa ambivalência. Também no ápice da descrição da educação superior do
governante-filósofo, Gláucon mostra a mesma ambivalência entre aceitar a evidência
dos argumentos e a dúvida: “Eu aceito isso, ele disse, dessa forma. Mas, mesmo assim,
me parece difícil aceitar, mas de novo, por outro modo, me parece difícil não aceitar.”25
Mesmo que, racionalmente, certos argumentos nos pareçam irrefutáveis, nós ainda não
vivemos nossas vidas de acordo com eles. A razão, muitas vezes, nos constrange mas

23
368b
24
358c
25
532d, Shorey coloca uma nota nesse trecho: “Essa frase é fundamental para a compreensão geral da
filosofia metafísica de Platão. Cf. Unity of Plato’s Thought, p. 30, n. 192, What Plato Said, p. 268 e p.
586 sobre o Parmênides, 135c.”, SHOREY, op. cit p. 199, nota c.
140

não nos convence, especialmente se ela age fora do kairos, que possibilita à alma como
um todo compreender o argumento e viver o dianoeisthai como um paskhein. O que
defendemos é que, para sermos realmente convencidos de uma posição filosófica, não
basta apenas compreendermos os passos lógicos dos inúmeros argumentos a seu favor,
mas é necessário um determinado tipo de acontecimento que molde nossa alma de
acordo com essa posição. É isso que Gláucon e Adimanto, os filhos de Aríston, estão
pedindo para Sócrates, que eles sejam radicalmente transformados pelo fato de a justiça
ser superior à injustiça. E, para tanto, tomam o lugar do homem que defende a injustiça
e apresentam os mais terríveis argumentos a seu favor. Todo o resto da República é para
responder a esses argumentos, é uma tentativa de realizar tal vivência dialética de
conversão.
Vamos notar o seguinte: Sócrates nos diz que, a partir do caráter deles
(tou' uJmetevrou trovpou, 368b), pode-se perceber que não estão convencidos dos
argumentos que apresentam a favor da injustiça, apesar de serem argumentos brilhantes.
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Sócrates está aqui dizendo que podemos inferir o que uma pessoa realmente acredita
pelas suas atitudes cotidianas na vida, apesar de ainda poder haver dúvida em sua alma,
e de esta pessoa ser capaz de apresentar argumentos tão terríveis a favor de algo de que
ele não está tão seguro. Isso nos leva a crer que o verdadeiro conhecimento de uma
pessoa está dentro de sua alma e não necessariamente nos argumentos que ouve ou que
pode apresentar. É exatamente isso que Sócrates afirma no Fedro, como vimos, em que
defende que o filho legítimo do conhecimento é o logos que está inscrito na alma e não
o logos escrito no exterior26.
Um outro ponto muito interessante sobre a diferença entre não poder responder a
argumentos (resultado do confronto dialético com Sócrates) e ser realmente convencido
é a passagem 487 b-c do livro VI da República. Logo após Sócrates terminar de
descrever a natureza do filósofo, Adimanto diz o seguinte:

“Oh Sócrates, ninguém é capaz de responder a esses teus argumentos, pois os que
te escutam falar o que disseste agora experimentam algo como o seguinte: julgam
que, pela ignorância em perguntas e respostas, eles são desviados pelo argumento
um pouco em cada pergunta, e, reunidos esses poucos na conclusão dos
argumentos, aparece um grande erro e o oposto do que eles tinham dito primeiro;

26
Fedro 276a.
141

assim como os inexperientes são derrotados pelos bons jogadores de 'damas'27 e não
têm o que mover, dessa forma eles são derrotados e não têm mais o que dizer, por
ser esse outro jogo de 'damas', não com pedras, mas com palavras.”

O objetivo da filosofia de Platão não é apenas apresentar argumentos irrefutáveis


acerca de um assunto. Platão, assim como os gregos em geral, ao filosofar, quer
transmitir uma forma de viver, para assim vivermos nossas vidas a partir do que é dito.
No entanto, o convencimento pela razão nem sempre convence a pessoa como um todo,
e esse é um dos pontos principais que defende a importância de uma experiência vital
para uma correta compreensão de um tema filosófico. Conclui-se daí que é necessário
uma experiência mais profunda com o tema, um processo vivencial mais radical sobre o
assunto para que ele seja compreendido de forma a produzir um modo de vida. Apesar
de a refutação lógica ser um passo no descobrimento de certas posições filosóficas que
vão contra o que o interlocutor acreditava, esse não pode ser o único nem o último
modo de persuasão28. Pelo contrário, parece que, para Platão, aprender algo pela força
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não faz parte da educação dos homens livres. Na passagem do livro VII 536d-e, onde
ele termina de descrever a dialética como o estudo fundamental para o filósofo e passa a
descrever a natureza do filósofo, Sócrates nos diz que o estudo não deve ser algo
imposto pela força, visto que nada que é assim aprendido permanece na alma. O estudo,
especialmente para os jovens, não deve ser exercido sob compulsão, mas como uma
brincadeira (paivzonta" trevfh), pois somente então ele será inscrito na alma.
Temos então que a dialética, para exercer realmente sua função, a conversão da
alma, precisa de algo a mais do que apenas forçar o interlocutor a se calar e não ter mais
respostas. O que Gláucon pede para Sócrates é que ele seja realmente convencido e não
apenas pareça estar convencido. Por isso, defendemos que a dialética necessita do
momento adequado para que ocorra com a sua radicalidade pertinente. A noção de
kairos, o momento adequado, é essencial para que a dialética funcione como é
necessário. Isso se vê espelhado na importância que Sócrates dá as idades dos estudos29
e especialmente por ele insistir que não se ensine dialética para os muito jovens. Pois, se
esses aprendem muito cedo como refutar qualquer argumento, vão ficar indisciplinados
e não vão mais acreditar em nenhuma posição sobre a justiça e o bem. A dialética torna-

27
Trata-se aqui do verbo petteuein, jogar um jogo de tabuleiro, parecido com o nosso jogo de damas.
28
Ver também o Ion 533c, onde Sócrates faz com que Ion não consiga mais responder, no entanto, ele
ainda sustenta sua opinião. Também, Leis 903a, biavzetai toi'" lovgoi", ser forçado pelos argumentos.
29
536c até o final do livro VII.
142

se um jogo sem respaldo e fundamento, um refutar só pelo refutar, e os jovens passam a


desprezar esses valores30. É verdade que Platão não salienta explicitamente o termo
kairos como essencial para o ensino da dialética, mas o conceito de um momento
adequado para cada estudo é central na República.
Essa questão do convencimento verdadeiro em contraste com o convencimento em
aparência se justifica pela importância que Platão dá ao que está na alma em
comparação ao que está apenas nas palavras. Como já vimos no capítulo sobre o Fedro
e a inscrição do logos na alma, também na República, em 382b, Sócrates afirma que é
muito pior ter a falsidade na alma do que tê-la apenas em palavras, e que essa última
seria apenas um cópia do que está na alma.
A dificuldade em ser completamente persuadido, quando apenas o lado racional da
alma está envolvido, também aparece em Górgias. No meio do diálogo entre Cálicles e
Sócrates, quando Sócrates está apresentando argumentos que defendem a necessidade
de um saber especial para o governante da cidade, e não apenas de um saber salvar-se,
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Cálicles diz que, apesar de os argumentos parecerem coerentes, ele experimenta


(pepontha pathos) o mesmo que a massa: não é persuadido por Sócrates. Sócrates
responde que é um eros que não lhe permite ser convencido, o eros pelo povo.
Concordamos com Dodds31, que afirma “Podemos aceitar essa passagem como
expressando o reconhecimento de Platão de que atitudes morais básicas são
normalmente determinadas por razões psicológicas e não lógicas: como diz Pascal, ‘as
provas convencem somente o espírito’. É por isso que Cálicles continua sem ser
convencido até o fim.” O que Dodds não afirma na presente passagem, talvez apenas
por não ser o lugar apropriado, é que a dialética, como será apresentada na República,
sendo exercida com argumentos puramente racionais, deve também transformar as
atitudes morais básicas, pois ela deve ser vivida como um paskhein, como já
assinalamos acima. Em verdade, a dialética, como veremos, precisa de uma preparação
apropriada para que realize seu devido efeito naqueles que a exercem – ela deve ser uma
conversão da vida humana, e nesse sentido também deve apresentar "razões
psicológicas" à alma do aprendiz. A antítese entre nous e eros deve ser superada na
educação superior proposta no livro VII da República, assim como ela também o é na
escada erótica de Diotima, no Banquete.

30
538e
31
DODDS. Plato: Gorgias. p. 352.
143

4.3. A CONVERSÃO NA REPÚBLICA

É inegável que a República ganha uma maior profundidade filosófica ao fim do


livro V, em que Sócrates finalmente afirma que os filósofos deveriam governar a
cidade32. O resto do livro V, e também os livros VI e VII, se concentram especialmente
em mostrar o que é a filosofia, qual é seu conhecimento, seu campo de estudo e sua
educação adequada.
A imagem central para a educação filosófica é uma jornada para cima, uma
anagoge. A linha – se a imaginamos na vertical e com a parte inteligível no lado
superior –, o sol e a caverna são imagens que descrevem com um "olhar para cima" a
ação do filósofo quando contempla a verdade. É quando Sócrates interpreta a última
dessas três imagem, a chamada alegoria da caverna, que primeiro se apresenta a noção
filosófica de conversão. A partir da interpretação da alegoria da caverna, Sócrates vai
apresentar a educação elevada dos guardiães pretendentes a filósofo-governante. Nesse
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trecho da República, 517a - 535a, há 16 passagens33 em que Sócrates lida com a


conversão da alma saindo do "mundo sensível do devir" para o "mundo inteligível do
ser". Há várias expressões que significam conversão, mas os verbos centrais são
metastrepho e peristrepho, com os substantivos correlatos metastrophe e peristrophe, e
também o substantivo periagoge34. O verbo strepho, central nesses termos, indica o
movimento de se virar, dobrar, se curvar. Eles se reportam eminentemente ao mundo
físico, descrevendo o movimento do corpo para uma direção diferente daquela para a
qual está voltado. Mas metastrepho já na Ilíada35 aparece com um sentido figurado e,
junto com nous, indica a mudança de modo de pensar.
Jaeger, citando Nock, salienta, ao tratar dessa paideia superior dos guardiães, que
a filosofia era vista como uma vocação de vida, uma agoge36. Essa palavra torna-se
técnica para descrever a vida que se levava nas escolas filosóficas, e tanto a Academia

32
473d
33
518c, 519b strevfein; 518d, 518e, 521c th'" periagwgh'"; 518e-519a metastrafhvsetai; 526e
metastrevfesqai; 519b periestrevfeto; 521c peristrofhv; 521c ejpavnodo"; 525a metastreptikw'n;
525c 532b metastrofh'"; 525d a[nw a[gei; 530a metalambavnonte"; 533d sumperiagwgoi'"
34
O termo metanoia, arrependimento, é muito usado pelo cristianismo para descrever o processo de
conversão. Cf. NOCK. Conversion, p. 180.
35
HOMERO. Ilíada. Tradução Aroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002, XV,51.ai\ya metastrevyeie
novon meta; so;n kai; ejmo;n kh'r, “transmutaria a mente, unânime conosco!”, tradução literal: “rapidamente
converteria a mente, junto com o meu e o seu coração”
36
JAEGER. Paidéia. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 889
144

platônica quanto o Liceu aristotélico tinham uma agoge específica, e a própria


República apresenta uma agoge ao descrever o modo de vida dos filósofos-governantes.
Toda a descrição da educação superior dos guardiães é uma forma mais concreta e
menos metafórica de apresentar o que Sócrates já disse por meio da alegoria da caverna.
O termo periagein aparece já no começo da alegoria quando Sócrates salienta a
impossibilidade de os prisioneiros virarem a cabeça para trás37. A própria alegoria é
chamada por Sócrates de pathos. “Depois disso, eu disse, compara com a seguinte
experiência (toiouvtw// pavqei) a nossa natureza no que concerne à paideia e à falta de
paideia.”38. Platão, no centro de seu livro central, descreve a educação filosófica como
uma experiência concreta, cheia de descrições de sensações, cheia de vivências que
configuram a subida, que é uma conversão ao mundo inteligível. Ao chamar de pathos,
Sócrates está mostrando que o aprendizado filosófico passa por uma transformação
pessoal, no caso dolorosa, na qual devemos enxergar nossa própria ignorância sobre
assuntos que não estão separados e nem são longínquos da vida do dia-a-dia. Esses
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assuntos tratam daquilo mesmo com que sempre convivemos e, por isso, terminamos
por perceber aqueles que amamos e respeitamos como completamente equivocados
sobre a verdadeira natureza das coisas.
A alegoria da caverna, todos nós conhecemos. Trata de homens que estão
amarrados pelos pés e pescoços desde a mais tenra infância, olhando para o fundo de
uma caverna, vendo somente as sombras de objetos que passam à frente da luz que se
posta atrás desses prisioneiros. Como nunca viram nada além das sombras, acreditam
que elas são o que há de mais verdadeiro e real. Esses homens, mesmo sendo tão
estranhos – atopous 515a –, são em verdade semelhantes a nós mesmos. Subitamente,
por algum motivo não muito bem explicado – Sócrates parece supor que haja um
libertador ou que a própria natureza, physei 515c, o liberte –, alguém é liberto das
correntes e forçado a olhar para trás e ver os objetos que passam por trás dos
prisioneiros, e também o próprio fogo dentro da caverna, que ilumina e projeta as
sombras no fundo. Pensemos na dor, algein 515e, que sentiria aquele que nunca utilizou
seus membros e que agora é forçado a utilizá-los; pensemos também na dor dos próprios
olhos, subitamente, eksaiphnes, sendo forçados a contemplar não apenas os objetos
perto do fogo, como também o próprio fogo; imaginemos a sensação de solidão frente à

37
[...] ta;" kefala;" uJpo; tou' desmou' ajdunavto" periavgein [...], “[...] incapazes de virar as cabeças por
causa das correntes [...]”, 514b.
38
Meta; tau'ta dhv, ei\pon, ajpeivkason toiouvtw/ pavqei th;n hJmetevran fuvsin paideiva" te pevri kai;
ajpaideusiva". 514a.
145

impossibilidade de comunicar a seus antigos amigos o que está acontecendo consigo


mesmo: mais que tudo, o prisioneiro acharia que está ficando louco; pensemos ainda no
desespero, quando dizem que isso que ora se vê “está mais perto do real e está voltado
para coisas mais reais”39; pensemos, por fim, na sensação de aporia quando perguntam
para distinguir as realidades que ora passam pela frente do liberto. “[...] e, então, por
meio de perguntas e mostrando cada uma das coisas que passam, forçasse-o a responder
o que é (oJ ti e[stin;)?40 Não achas que ele estaria em aporia e julgaria as coisas que
então via mais verdadeiras do que as que agora lhe são mostradas? Com toda certeza,
ele disse.”41
Não é leviano salientar o caráter existencial, concreto, pessoal pelo qual passa o
aprendiz de filosofia. Shorey vai dizer “Toda essa passagem é uma óbvia alegoria da
experiência dolorosa daquele que é testado pelo elenkhos socrático nos seus falsos
conceitos de conhecimento.”42 A proposta platônica de conhecimento, mesmo sendo
baseada em um enaltecimento do racional, é eminentemente vital e, se não o fosse, não
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seria platônica tanto quanto uma via puramente religiosa do conhecimento também não
o é, isto é, uma via em que o conhecimento é pautado na revelação divina e não em um
processo gradual e racional de conhecimento. A vitalidade e a racionalidade são dois
ingredientes indispensáveis na proposta pedagógica da República.
Mas o prisioneiro liberto é forçado a ainda mais: é arrastado para fora da caverna
e, após sucessivas etapas de contemplação da realidade, nas quais seu olhar vai se
acostumando com a claridade, ele, por fim, contempla o próprio sol, aquele mesmo sol
que em uma imagem anterior foi usado como analogia para falar da idéia de bem. Assim
como o sol (bem) foi apresentado em 508b pela imagem do sol, também aqui, na
alegoria da caverna, ele é compreendido pelo raciocínio, syllogidzoito 516b, do
prisioneiro liberto como sendo a causa de todas as coisas, aitios panton 516b. Mas, ao
chegar do lado de fora, Sócrates ainda diz que, em um primeiro momento, nosso herói
vai sentir muita dor, odynasthai, e também vai se zangar, aganaktein, com quem o
trouxe para cima. O que nos importa salientar por enquanto é que todo esse processo,
cheio de momentos vitais, é percorrido, no entender de Platão, puramente pelo
inteligível: é o dianoeisthai que promove a conversão do mundo das sombras, que é o

39
nu'n de; ma'llon ti ejggutevrw tou' o[nto" kai; pro;" ma'llon o[nta tetrammevno" ojrqovtera blevpoi, 515d.
40
Essa é uma pergunta técnica em Platão e está diretamente relacionada com a elenkhos socrático.
41
República 515d.
42
Ele ainda chama atenção para uma passagem do Hipólito de Eurípides, 247, “é doloroso ter sua opinião
corrigida.” Shoery ainda cita Mênon 80a, 84b-c, Teeteto 149a, Apologia 23d. SHOREY, op. cit, p. 124,
nota a.
146

devir, para o mundo da luz, que é o inteligível. Novamente, vemos como o dianoeisthai,
em Platão, é uma forma de paskhein, pois se não o for, não poderá promover a
conversão ética tão sonhada pelo filósofo.
Mas o liberto sente pena dos seus companheiros de prisão e, à revelia de sua
vontade, retorna para a caverna, onde são avaliados seus conhecimentos nos tradicionais
testes dos que moram por lá: devem assinalar e distinguir diligentemente as sombras
umas das outras. É claro que o filósofo que acaba de descer da contemplação da luz
inteligível – que também é divina – ainda não se acostumou com a pouca claridade do
mundo subterrâneo e, assim, é objeto de troça entre os habitantes da caverna. Muitos
ainda salientam que de nada adiantou a subida tão dolorosa, e por fim, em um claro
remetimento à morte de Sócrates, Platão nos diz que ainda matariam quem quer que os
desejasse libertar.
Ao fim da descrição da imagem da caverna, Sócrates recomenda que ela seja
comparada (prosapteon) com tudo o que foi dito anteriormente; o lugar que aparece
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pelos olhos (th;n di ; o[yew" fainomevnhn e}dran) – o mundo dos fenômenos descrito na
linha43 - é semelhante à habitação da prisão; a luz do fogo de lá é semelhante ao poder
do nosso sol; a subida para cima e a contemplação das coisas de cima, à subida da alma
para o lugar inteligível (th;n eij" tovn nohto;n tovpon th'" yuch'" a[nodon). Então, Sócrates
louva de forma hiperbólica a idéia de bem: a posição que ela ocupa é central nessa
passagem.

“[...] a idéia de bem é vista por último e dificilmente, e, quando vista, é


necessário raciocinar (syllogistea) que ela é certamente a causa de todas as coisas
corretas e belas, e, por um lado, gera a luz no visível e é seu senhor, por outro, no
inteligível, é ela mesma o senhor e fornece verdade e inteligência (noun), pois
àquele que tem intenção de agir sabiamente, tanto em privado quanto em público, é
necessário contemplá-la.”

A supremacia da idéia de bem realmente nos faz pensar: por que exatamente a
idéia de bem? Por que não teria supremacia a idéia de ser, já que perpassa tão
obviamente a totalidade – a onipresença não é intrínseca à noção de ser? –, mas pelo

43
O trecho da linha dividida vai de 509d até 511e.
147

contrário, o ser nos é dado a partir da idéia de bem44? Antes, porém, de analisarmos as
conseqüências dessa supremacia da idéia de bem, vamos apresentar ainda o que vem
logo a seguir à passagem citada.
Um traço importante, que pode fundamentar até mesmo o repúdio de Platão a se
envolver na vida pública, é a falta de vontade de retornar para a vida e o mundo dos
homens comuns daquele que contemplou as coisas divinas, qeivwn qewriw'n 517d. É
interessante ressaltar que a própria vontade de governar os homens já indicaria que a
pessoa não compreendeu as coisas que lhe possibilitariam ser o melhor governante, a
idéia de bem e o mundo inteligível. O filósofo governa à revelia de sua vontade, pois,
após o necessário tempo de reajuste de sua visão intelectual (phronein) à escuridão
relativa dos objetos dos homens comuns, ele se torna o melhor entre todos para
distinguir as coisas importantes da cidade, já que conhece a verdadeira causa de tudo ser
como é. Percebe-se que a conversão inteligível que ocorre no aprendiz de filosofia é
também uma conversão de seus interesses, pois o contemplar intelectual das idéias não
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afeta simplesmente o que há de racional no homem, mas toda sua alma é reajustada. A
transformação pela qual passa o filósofo, ao subir rumo ao intelecto, é perceptível para
os que convivem com ele, pois percebem a perturbação em que ele passa a viver e sua
mudança de valores.
Sócrates, por conseguinte, chama atenção para diferentes estados de perturbação
(thoryboumenen 518b) da alma, nos quais ela não consegue ver corretamente: ela pode
estar vindo de um lugar com mais luminosidade ou o contrário. E isso nos aponta para a
crítica de Platão aos sofistas, que, supondo que educar seja pôr vistas em olhos cegos,
se apregoam capazes de dar visão para quem não a tem. Finalmente, temos a passagem
central que trata da necessidade de não apenas o intelecto participar na compreensão
filosófica, mas sim toda a alma.

"Aquilo que o presente argumento nos indica, eu disse, é que esse poder
interno da alma, e também o instrumento pelo qual compreendemos cada realidade,
é como um olho que não seria capaz de se voltar para a luz, saindo da escuridão, a
não ser que todo o corpo virasse (xu;n o{lw/ tw'/ swvmati strevfein), dessa forma, é

44
“Pois não é somente fornecido pelo bem ‘o ser conhecido’ às coisas conhecidas, mas o próprio ser e a
essência (to; ei[naiv te kai; th;n oujsivan) é adicionada por ele [...]” República 509b.
148

necessário virar (periakteon)45 toda a alma (xu;n o{lh/ th'/ yuch'/), saindo do devir, até
se tornar capaz de suportar a contemplação do ser e do que é mais claro no ser. Isso,
dizemos ser o bem, não é mesmo?
Sim.
Então, eu disse, disso mesmo deve existir alguma técnica de conversão
(tevcnh th'" periagwgh'"), algum meio de, rapidamente e de modo eficiente,
converter (metastraphesetai) a alma, não de colocar visão nela, mas – como já a
tendo e, no entanto, não estando virada corretamente nem olhando para aquilo que
se deve – de conseguir realizar isso."

A noção de conversão, portanto, nasce de uma crítica à idéia de que a educação e,


conseqüentemente, o conhecimento filosófico, possam ser introjetados no aprendiz
como se se tratasse de objetos exteriores que entram na alma. O poder de adquirir
conhecimento superior é uma característica inerente à própria alma, e a apreensão de tal
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conhecimento vem através de uma mudança interna de perspectiva, e não por


acumulação de fatos simples. Como nos lembra Julia Annas :“[...] a verdadeira natureza
da filosofia é aparente apenas àqueles que se demoram algum tempo exercendo-a. Não
se descobre o que é filosofia lendo livros sobre ‘O que é Filosofia’, mas apenas fazendo
um pouco. Isso é um dos poucos pontos de que se pode ter certeza que Platão defendeu
consistentemente durante toda sua vida.”46
Ocorre uma diferença entre as outras virtudes e a virtude do pensar, hJ tou'
fronh'sai. Aquelas se assemelham mais às virtudes do corpo, pois somente são
introduzidas na alma através do hábito e da prática, ejqesiv te kai; ajskhvsesin, 518e. Já a
virtude do pensar é inerente ao ser humano, e sua utilidade e valor estão na direção para
a qual está voltada47. A diferença dos homens maus, poneroi, e dos homens sábios não é
a falta de acuidade de seu olhar, drimu; me;n blevpei, pois os dois têm percepção aguda48
das coisas para as quais estão voltados. As imagens para descrever a phronesis são
45
Shorey diz em sua nota à essa passagem: “periaktevon é provavelmente uma referência a periaktoi ou
os prismas triangulares de cada lado do palco. Eles revolviam em um eixo e tinham diferentes cenas
pintadas em três faces. Muitos estudiosos têm a opinião de que eles não eram conhecidos no período
clássico, pois somente são mencionados por autores tardios; mas outros não consideram isso uma
evidência conclusiva, pois numerosas peças clássicas parecem precisar de algo desse tipo. Cf. O. Navarre
em Daremberg-Saglio s.v. Machine, p. 1469.”, SHOREY, op. cit., nota c, p. 134.
46
ANNAS, Julia. An introduction to Plato’s Republic. Oxford: Claredon press, 1981, p. 276-277.
47
Shorey vai dizer que esta é a resposta de Platão ao problema "se a virtude pode ser ensinada" do
Protágoras e do Mênon. “A virtude intelectual (para usar um termo de Aristóteles), falando de modo
geral, não pode ser ensinada. Ela é um dom. E a mais alta virtude moral é inseparável da virtude
intelectual corretamente orientada.”, SHOREY. op. cit. p. 136, nota a.
48
[...] ouj fauvlhn e[con th;n o[yin, “ não tendo visão fraca”, 519a.
149

sempre de visão, ojxevw" diora'/, ojxuvteron blevpei, 519a. Podemos perceber já aqui a
diferença entre a primeira educação dos guardiães – mousike e gymnastike – e a
educação elevada: naquela, a alma adquire virtudes por meio de práticas e hábitos, já
através da matemática, e especialmente da dialética, a alma será convertida para o
mundo inteligível. Aristóteles vai distinguir entre as "virtudes intelectuais" e "virtudes
éticas"49, e apesar de Platão não chegar a uma distinção tão clara, podemos salientar que
há uma diferença entre os dois tipos de virtudes, e que as primeiras, como aqui é dito,
não podem ser produzidas em uma alma em que não existiam previamente. Por outro
lado, não podemos supor que não haja um treinamento do pensar, já que todo o estudo
das matemáticas, além de converter, torna também o pensar mais claro, separando-o do
mundo sensível.

4.4. IDÉIA DE BEM E RELIGIOSIDADE


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Agora que temos a passagem da conversão exposta mais claramente, voltemos à


questão da supremacia da idéia de bem. Por que a idéia de bem, e não qualquer outra
idéia? A primeira resposta que nos aparece, e que Platão já nos deu no Fédon50, é que se
trata de uma compreensão teleológica da realidade, na qual as coisas ganham seu ser e
ganham também a possibilidade de serem conhecidas pela sua relação com a finalidade
– o bem – à qual estão direcionadas ontologicamente. Nesse sentido, tudo na realidade
só é o que é à medida que faça parte de um grande todo que está direcionado para o
bem; do mesmo modo, apenas conhecemos as coisas, caso tenhamos acesso a esse bem
que lhes confere sentido.
No entanto, há um outro aspecto da supremacia da idéia de bem que pretendo
realçar junto com Jaeger e Festugière51. Esses dois comentadores aproximam bastante a
educação platônica da religião. Em verdade, há um aspecto ético marcante ao se afirmar
que o objetivo maior de todo conhecimento é a idéia de bem, pois nessa afirmação se
colocam intimamente relacionados elementos valorativos do real – que organizam e
condicionam a condução da vida – e elementos cognitivos. Fica impossível, como
defende esta tese, a dicotomia de uma teoria do conhecimento e do correto viver. Jaeger
49
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, Livro II, 1103a. “Como já vimos, há duas espécies de excelência:
a intelectual e a moral.”
50
Fédon, 96a, começa a relatar sua jornada a procura da causa de tudo. Ver especialmente 98 a-b, “Pois
eu não imaginava que, quando ele dissesse que elas foram ordenadas pelo intelecto, ele iria introduzir
qualquer outra causa que não o fato de ser o melhor para elas serem como são”.
51
FESTUGIÈRE. Contemplation et vie contemplative selon Platon. Paris: J. Vrin, 1975.
150

vai afirmar, como parece ser consenso entre os comentadores52, que, para os discípulos
de Platão, essa identidade entre o objeto supremo do conhecimento e o objeto da
investigação pela boa vida instauram uma nova religião fundada na filosofia:

“Não pode haver a menor dúvida de que os discípulos viram na proclamação


platônica do Bem como causa última do mundo – e assim o prova a elegia do altar
de philia, em Aristóteles – a fundação de uma religião nova e, ao menos uma vez
neste mundo, viram realizada na pessoa de seu mestre, à guisa de exemplo, a fé
platônica na identidade do bem e da felicidade. Seguindo a tradição da Academia e
apoiando-se nos fins que Platão assinalava à Filosofia, Aristóteles chamou teologia
à sua “filosofia primeira”; e teologia é também, realmente, a essência da sabedoria
que o discípulo de Platão, Filipe de Opunte53, põe em apêndice à sua edição das
Leis.”54

Talvez não seja de todo irrelevante apreciarmos de que modo a filosofia de


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Platão é recebida e de que modo ela continua a ser estudada e ensinada dentro e fora da
Academia55. “No platonismo médio, séc. II d.C., Platão foi redescoberto e re-estudado,
não tanto pela erudição de seus textos, mas mais pelo papel de "divino Platão",
autoridade teológica e religiosa suprema.”56 Como já havíamos salientado com Nock, na
Academia, assim como em todas as escolas filosóficas da antiguidade, o que havia era
uma agoge, um ensinamento que era também uma forma de vida. Trata-se da noção de
agoge que realiza a junção que queremos afirmar nesta tese: a junção de conhecimento e
experiência vital. Assim como os pitagóricos, a Academia tinha uma coerência e uma
solidariedade que unificava duas atividades bem específicas: a investigação racional e a
vida virtuosa. A filosofia era uma vocação de vida e não apenas uma repetição de
dogmas. As escolas filosóficas eram lugares de investigação racional mas também onde
uma forma de vida era apresentada e seguida. Toda a escola pressupunha uma forma de

52
Sobre a academia de Platão e especialmente os platônicos da fase média, ver DILLON. The Middle
Platonists. Ithaca: Cornell University Press, 1996.
53
Jaeger está aqui defendendo a tese de que foi esse Filipe que escreveu o texto Epinomis, que é o diálogo
apêndice às Leis.
54
Jaeger, Paidéia. p. 891.
55
Sabe-se que a academia e seus adeptos exerciam determinadas práticas alimentares e de atitude, se
assemelhando aos pitagóricos. JAEGER, W. Cristianismo Primitivo e paidéia grega. Lisboa: Edições 70,
1991.Runia nos chama atenção para a insuficiência da separação que há hoje em dia entre o estudo das
teorias de Platão e do platonismo que lhe segue, do qual, em verdade, podemos aprender muito sobre
Platão. RUNIA, David T. “The language of Excellence in Plato’s Timaeus and Later Platonism.” In:
GERSH, KANNENGIESSER (ed.). Platonism in late antiquity. Indiana: University of Indiana Press,
1992.
56
JAEGER, W. Cristianismo Primitivo e paidéia grega, p. 62.
151

viver não por imposição de uma revelação autoritária, mas sim como meio de atingir o
conhecimento: o próprio modo de viver condiciona o que se pode compreender da
realidade, e é isso que vemos pelo menos na República.
Mas não é somente depois de Platão e perdurando na Academia séculos afora
que podemos perceber certa religiosidade, mas podemos também encontrar traços
marcadamente religiosos nos próprios escritos de Platão57. Jaeger e outros vêem, em
certas formulações platônicas sobre a forma correta de condução da vida, remissões
diretas a deus e ao divino, concluindo assim que há um nível de argumentação de Platão
que se fundamenta em uma concepção religiosa da realidade. Devemos contudo precisar
o que está aqui entendido por religioso. Poderíamos propor entendermos por relação
religiosa toda relação que afirmasse estar se relacionando com deus e o divino. Nesse
sentido, tanto a epistemologia quanto a ética platônicas parecem corroborar essa idéia –
que a filosofia platônica tem um aspecto religioso marcante –, pois a investigação
filosófica almeja um conhecimento divino e é sobre objetos divinos – as Formas –, e a
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apreensão de tal conhecimento faz a alma mais e mais parecida com ele. Como vai dizer
Morgan, que procura mostrar os fundamentos religiosos da educação platônica:

“O aprendizado platônico é um processo de ritual estático58 porque ele é


precisamente organizado, religiosamente motivado pelo desejo de se tornar divino
e facilitado pela suposição de que a alma humana, que é imortal, pode se tornar
divina ou quase divina. O resultado dessa apropriação do modelo ecstático, então, é
uma concepção da filosofia como uma busca pela salvação que dura a vida toda.”59

No entanto, definir a religiosidade como relacionamento com o divino talvez ainda


seja diminuir a força religiosa no pensamento de Platão. Um outro aspecto da religião é
o fato de se tratar de uma realização humana que envolve necessariamente decorrências
práticas: ao se definir como compartilhando de determinada religião, espera-se sempre
de um homem um comportamento adequado aos princípios daquela religião. Nesse

57
Para um excelente resumo da importância da religião nos escritos de Platão ver MORGAN, M. L.
“Plato and Greek Religion.” In: KRAUT (ed.) The Cambridge Companion to Plato. Cambridge:
Cambridge University Press, 1992. Ver também GOLDSCHMIDT, V. A religião de Platão. Trad. Ieda e
Oswaldo Porchat Pereira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970 [1949] e FIEBLEMAN, James.
Religious Platonism. Connecticut: Greenwood Press, 1971.
58
O texto de Morgan analisa os dois aspectos da religião grega – o estático e o délfico – procurando seus
traços na filosofia platônica.
59
“Plato and Greek religion”, p. 232.
152

sentido, mais até do que a noção de filosofia – especialmente como ela chegou até nós
hoje em dia –, a noção de religião implica um mundo teológico no qual se vive e do
qual se retiram resoluções éticas, tanto gerais e abstratas quanto concretas,
influenciando diretamente o modo como se vive o dia-a-dia.
É nesse sentido que entra aqui o famoso trecho do Teeteto, 176 a-b, em que
Sócrates, afirmando a impossibilidade de se ter no mundo dos vivos apenas o bem, vai
defender a fuga do mundo e a prática da semelhança com deus, como expressão máxima
da arete do filósofo.

"Por causa disso é necessário tentar escapar daqui o mais rápido possível.
A fuga é tornarmo-nos semelhantes (homoiosis) a deus tanto quanto possível; pois
essa semelhança é se tornar justo e piedoso com sabedoria."60

Dois pontos nos chamam atenção nessa passagem. Primeiro, o fato de "ser
semelhante a deus" implicar ações éticas no mundo – ser justo e piedoso com sabedoria
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–, exatamente as qualificações éticas que são esperadas do filósofo. Além do mais, essa
passagem aparece no momento em que Sócrates está descrevendo a vida do filósofo em
comparação com aqueles que se interessam pelas coisas terrenas e limitadas, a que se
pode aceder pelos sentidos. Em segundo lugar, a restrição – tanto quanto possível – nos
reporta à impossibilidade de se alcançar a perfeição, na forma como Platão a apresenta.
O sentido dessa passagem no todo do diálogo Teeteto é muito bem analisado por
Burnyeat61. Como o próprio Sócrates salienta, a discussão ético-política em meio à qual
aparece a tão citada passagem acima é uma digressão, parerga, e não trata do assunto
principal da obra, "o que é episteme"62. A primeira interpretação que Burnyeat nos
apresenta sobre a relevância dessa digressão – que em verdade se encontra quase no
meio exato do diálogo – versa sobre a importância ética de se questionar o
conhecimento. “A discussão sobre o que é conhecimento é interrompida para que nós,
por um momento, possamos ser jogados (jolted, sacudidos, impelidos) para a reflexão

60
dio; kai; peira'sqai crh; ejnqevnde ejkei'se feuvgein o{ti tavcista. fugh; de; oJmoivwsi" qew/' kata; to;
dunatovn + oJmoivwsi" de; divkaion kai; o{sion meta; fronhvsew" genevsqai. Esse trecho vem logo depois da
descrição de como é mais sábio investigar as coisas em si mesmas (en autó) do que as realidades
concretas.
61
BURNYEAT, Myles. The Theaeteteus of Plato. Com uma tradução do Teeteto por M. J. Levett.
Indianapolis, Cambridge: Hackett Publishing Company, 1990, p.31-39. Ele ainda cita A. Baker, ‘The
digression in the “Teaetetus”’, Journal of the History of Philosophy, 14 (1976), 457-462.
62
Cornford, no entanto, vai assinalar a importância dessa "digressão", defendendo que ela deve ser vista
de modo mais amplo do que um simples desvirtuamento da questão principal. Plato’s Theory of
Knowledge. Apud. BURNYEAT. The Theaetetues of Plato, p. 37.
153

de que a questão ‘o que é o conhecimento’ é importante porque há certas coisas que são
importantes de serem conhecidas.”63 Burnyeat está defendendo que Platão quer aqui
apresentar-nos o sentido de se questionar o conhecimento, fundamentando-o na boa
vida, sempre o objeto último em qualquer investigação filosófica platônica. A
fundamentação de um típico questionamento socrático na forma do ti estin em tópicos
éticos – ser semelhante a deus – vem ao encontro desta tese que procura fundamentar a
impossibilidade de se dissociarem as investigações éticas das epistemológicas. “ [...] já
que a moral platônica não pode ser separada da busca de uma compreensão total da
natureza das coisas.”64
A doutrina da arete, virtude, como semelhança a deus, homoiosis theoi, influencia
não apenas Aristóteles e outros logo depois de Platão, mas também filósofos da
antiguidade tardia, “infinitamente citada e copiada tanto por pagãos quanto por filósofos
cristãos”65. Burnyeat ainda nos afirma que a idéia de que ser filósofo era se tornar
semelhante a deus foi seguida por diversas escolas, por diversos pontos de vista66.
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Como exemplos de pensadores bem diferentes, temos Aristóteles em Ética a Nicômaco,


X 7, e Plotino em Eneadas I, 2.
Mas outras passagens do próprio Platão ainda nos reportam para essa doutrina. A
própria noção de que o estado ideal deve ser governado por aquele que tem a
capacidade de contemplar as idéias e assemelhar o máximo possível a vida daqui com as
coisas de lá67 é uma outra forma de repetir essa mesma idéia. Eles serão os artesãos do
paradigma divino, moldando a natureza humana de acordo com as formas divinas que
contemplam. É claro que há uma diferença entre copiar as idéias – que são certamente
divinas – e se assemelhar a deus, mas as noções parecem estar implicadas quando
Sócrates diz: “ [...] e guiando-se pelo exemplar que Homero, assim que o encontrava
nos homens, chamava de forma de deus e imagem de deus
(qeoeidev" te kai; qeoeivkelon)”68. Sócrates está afirmando que o homem torna-se divino
e se apresenta com a forma de deus ao compreender o paradigma com o qual deve
moldar a cidade.

63
BURNYEAT, Myles. The Theaeteteus of Plato. p. 36.
64
Id. Ibid.
65
BURNYEAT, Myles. The Theaeteteus of Plato. p. 35.
66
Para a reunião da documentação dessa afirmação, ver Hubert Merki, Homoiosis Theoi: von der
platonischen Angleichung an Gott zur Gottähnlichkeit bei Gregor von Nyssa, Paradosis VII, (Freiburg:
1952), apud, BURNYEAT The Theaetetus of Plato. p. 35, nota 46.
67
República 500d-e, “ [...] aqueles que usam o paradigma divino [...]”, oiJ tw'/ qeivw/ pradeivgmati
crwvmenoi...
68
República 501b.
154

Essa passagem nos reporta também a três outras passagens que tratam do "tornar-
se semelhante a deus", só que, nelas, deus é substituído pelos deuses, identificados com
os objetos celestes. As duas seguintes do Timeu:

“A divindade inventou a visão e no-la concedeu para que, contemplando as


revoluções da inteligência no céu, as utilizemos para as revoluções de nosso próprio
pensamento que lhes são aparentadas, conquanto as nossas sejam desordenadas, e
aquelas, imperturbáveis, e também para que depois de compreendermos tais
movimentos e de alcançarmos a certeza natural do raciocínio, possamos reproduzir
as revoluções absolutamente invariáveis da divindade e impor ordem nos
movimentos aberrantes de nosso íntimo”

[...]

“Em tudo, só há um meio certo de cuidar seja do que for: conceder a cada
coisa a alimentação e os movimentos adequados. Os movimentos aparentados com
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a porção divina dentro de nós são os pensamentos do universo e as revoluções


circulares. São essas que cada um de nós deverá seguir, para corrigir os circuitos
que ao nascimento se iniciaram erroneamente em nossa cabeça, o que se consegue
com o estudo da harmonia e das revoluções do universo e com igualar a parte
pensante, em conformidade com sua natureza original, ao objeto do pensamento, e
com isso, alcançar, no presente e no futuro, a meta proposta aos homens pelos
deuses.”69

E também a passagem do Fedro: “e dessa forma acontece com cada seguidor de


cada um dos outros deuses; ele vive honrando e imitando (mimoumenos) o deus, na
medida do possível”70. Nessas passagens do Timeu e do Fedro, imitar os deuses, suas
revoluções e seus hábitos, aparece como a forma máxima de perfeição na conduta da
vida, aquilo que é almejado tanto por filósofos quanto por qualquer outro homem. A
partir dos trechos citados, percebemos a estreita relação que há entre os elementos
religiosos dos textos de Platão e a conduta ética que decorre de suas investigações
filosóficas. O imperativo ético de "olhar para cima"71, que já salientamos nas três
imagens centrais da República – sol, linha e caverna –, se repete nesses outros diálogos,

69
Timeu 47c e 90d, tradução de Carlos Alberto Nunes.
70
Fedro 252d.
71
Ou "conduzir para cima", porém, há uma estreita relação entre as duas atitudes: a[nw a[gein - a[nw
blevpein.
155

pois neles o "olhar para cima" significa mais do que apenas desvendar os movimentos
dos corpos celestes seguindo com os olhos seus caminhos, mas também significa olhar
para o que há de mais valoroso e de mais elevado, com o fim de o imitar72. Como vamos
detalhar na descrição da educação elevada na República VII, o estudo da astronomia,
que tem por finalidade converter a alma para cima, não lida com o estudo empírico do
movimento dos corpos celestes, mas sim com o que há de inteligível nesses
movimentos: "olhar para cima" nos remete aqui a olhar para o inteligível, onde quer que
ele esteja.
O que estamos reforçando ao salientar os aspectos religiosos da paideia
platônica é que esse "para cima", que descreve o se voltar para o inteligível, nasce de
uma relação que torna o intelecto divino, pois o "alto" configura o divino por natureza.
Assim como no Fedro e no Timeu a noção de "para cima" está diretamente relacionada
com os planetas interpretados como deuses, o "para cima" da República também terá
uma conotação religiosa, pois o inteligível é também o divino por excelência.
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Ao final da República, ainda temos uma frase quase que literalmente idêntica à
do Teeteto. Essa outra famosa passagem da República, 613 a-b, aparece quando
Sócrates está descrevendo o filósofo e diz “ [...] praticando a virtude para, na medida em
que é possível ao homem, ser semelhante a deus”73. Comentadores ainda citam um
outro trecho das Leis74, em que o se tornar semelhante a deus provém da afirmação –
contra a tese de Protágoras – de que deus é a medida de todas as coisas.
Como afirmávamos junto com Jaeger e Festugière, não é leviano salientar um
aspecto religioso na educação platônica que conduz à arete máxima. A doutrina que
afirma a conquista da virtude como sendo o processo de se assemelhar a deus aparece
em algumas obras platônicas e não pode ser desprezada tão facilmente. Jaeger vai
apontar para a tendência geral de hoje em dia de não se considerar relevante o aspecto
religioso da filosofia grega.

“Mas desde o séc. XIX há a tendência cada vez maior a perder de vista, em
face deste aspecto, a função religiosa da filosofia grega, ou pelo menos, a
considerar esta solene roupagem como a simples casca do ovo. Isto nos coloca
numa total incapacidade de compreender Platão, que se destaca de todos os seus

72
Como exemplo de que a visão religiosa desse "olhar para cima" não é leviano nem acrescido ao que
Platão nos expõe, temos que Sócrates compara a condução (anaksei, 521c) desses homens para a luz
como a subida de alguns do Hades para os deuses. w{sper ejx $Aidou levgontai dhv tivne" eij" qeou;"
ajnelqei'n_ 521c.
73
[...] kaiv ejpithdeuvwn ajreth;n eij" o{son dunato;n ajnqrwvpw/ oJmoiou'sqai qew'/.
74
Leis 716a
156

predecessores, em importância religiosa. Só projetada neste fundo se pode avaliar a


sua teoria central sobre a idéia do Bem.”75

O que Jaeger vai afirmar, não sendo o único a fazê-lo76, é uma identificação
entre deus e a idéia de bem – distinguindo a noção de deus platônico da do deus grego
comum –, afirmando assim que a paideia platônica é esse assemelhar-se a deus. “Em
outras palavras: entre a alma do Homem e Deus interpõe-se, segundo a concepção
platônica, o longo e duro caminho da perfeição. Sem perfeição não pode existir a arete.
A ponte que Platão estende entre a alma e Deus é a paideia. Esta é incremento do
verdadeiro Ser.”77 E ainda em outra passagem “Se Deus é bom por essência, mais ainda,
se é o próprio Bem, então a suprema arete acessível ao Homem constitui um processo
de aproximação de Deus, [...].”
Convém salientar, no entanto, que não são todos que aceitam a identidade entre a
idéia de bem e a noção de deus. “Quanto ao problema da idéia do Bem, e sua posição
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divina na República, Solmsen junta-se aos que negam que aquilo que Platão denomina
'princípio do Universo' seja Deus. [...] para não falar de muitos outros, entre os quais
figuram eruditos como Shorey e Gilson.” 78
Outro aspecto religioso nos escritos de Platão é que há neles um respeito por
autoridades religiosas antigas, especialmente os pitagóricos. Chamando atenção para a
força dos pitagóricos como os antigos sábios, Kahn79 cita uma passagem do Filebo 16c
que nos mostra isso: “os antigos, nossos superiores que moravam mais perto dos deuses,
e que passaram essa palavra para nós [...]”. E temos ainda outras passagens em que há
reverência a tradições religiosas, tanto no Mênon80 quanto no Banquete, em que Diotima
é uma sacerdotisa estrangeira. Mas Kahn vai dizer que talvez em Platão essas citações
fossem um adorno e não um fundamento, já que em várias passagens ele também critica
Homero, o autor supremo da religiosidade grega. Além do mais, é exatamente nesse

75
JAEGER. Paideia. P. 873.
76
Archer Hind, em seu comentário ao Timeu afirma que é comum a identificação entre o Demiurgo e a
idéia de bem. “Consistentemente com todo seu ensinamento anterior, Platão aqui faz o auto agathon a
fonte e causa de toda existência; ele é na alegoria simbolizado por um benevolente criador trazendo
ordem a partir de um caos preexistente. [...]”. ARCHER-HIND, R. D. The Timaeus of Plato, with
introduction and notes. New York: Arno Press, 1973. p.91 nota 12
77
JAEGER. Paidéia. p. 890, nota 81.
78
p. 874 nota 39b.
79
Pythagoras and the pythagoreans: a brief history. Indianapolis, Cambridge: Hackett Publishing
Company, 2001. p.64.
80
Mênon, 81a-b “Os que falam são todos aqueles entre os sacerdotes e sacerdotisas a quem foi importante
poder dar conta das coisas a que se consagram.”, tradução Maura Iglésias. Interessante o uso do termo
logos didonai, definição por excelência de dialética, como veremos.
157

sentido que Platão e a filosofia em geral se diferenciam tanto da religião, pois não se
trata de uma revelação divina que condiciona as práticas e a investigação filosóficas,
mas sim o contrário, é a investigação que fundamenta toda a vida do filósofo.
No entanto, como Jaeger mesmo nos afirma na Paideia, o tema "teologia de
Platão"81 não é de pouca monta, e aqui não será o lugar de analisarmos isso com
cuidado. Jaeger vai citar a passagem do Timeu, em que Timeu nos diz: “é difícil
encontrar o criador e pai deste universo; e, tendo-o encontrado, é impossível revelá-lo a
todos”82, e esse depoimento mostra o grau de dificuldade em se falar de um deus em
Platão. Jaeger ainda correlaciona essa passagem com o que se diz na Carta VII, sobre a
impossibilidade de se falar das coisas supremas.
O que novamente nos importa nessa aproximação da filosofia platônica com
aspectos religiosos é o quão vital e existencial é a proposta pedagógica da filosofia de
Platão. Não podemos imaginar um aprendizado filosófico em Platão que prescindisse de
um envolvimento vital com o que se aprende, como nós temos defendido desde o início
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desta tese. A aproximação da filosofia de Platão com a religião, impulsionada pela


interpretação – disputada – de que há uma identidade entre a idéia de bem e a noção de
deus, apenas nos indica mais um aspecto dessa filosofia em que podemos nos apoiar
para defender a visão de que há uma estreita relação entre conhecimento e forma de
vida. Por se tratar de uma atividade que envolve a alma como um todo – em que a vida
do investigador está em jogo –, a filosofia platônica pode se prestar a uma aproximação
com a religião. A educação em Platão, sendo uma conversão, em que o modo de viver
do aprendiz entra em jogo nesse processo, permite estabelecer uma relação com a
religião, em que não podemos separar opiniões defendidas e modo de conduta. Se tal
aproximação é pertinente ou não, e quais são os seus limites, não importa tão
diretamente à tese, mas o fato de que é possível vislumbrar tal aproximação, e que
diversos comentadores respeitados já o fizeram, apenas mostra a pertinência da presente
tese em que se procura aproximar filosofia e forma de vida.
Antes de retornar à República, para darmos prosseguimento à descrição da
educação superior dos filósofos e de como essa educação pode ser pensada como
conversão, vamos analisar a interpretação que Festugière oferece dessa passagem que já
analisamos, 517b-521c, que vai desde o fim da alegoria da caverna até a descrição mais

81
O termo theologia aparece pela primeira vez em Platão, República 379a, e Agostinho já lhe havia
entregado “o cetro de toda a teologia anterior ao Cristianismo” JAEGER, paidéia. p. 873, nota 39a. Jaeger
ainda vai citar o livro do SOLMSEN. Plato’s Theology. Ithaca, 1942.
82
Timeu, 28c.
158

minuciosa da educação elevada dos filósofos, em que aparece claramente a noção de


conversão, não apenas no sentido físico da alegoria da caverna, mas também como
conversão espiritual.
Festugière83, em seu renomado trabalho sobre contemplação em Platão, vai
investigar de que modo a noção de vida contemplativa deixa de ter um caráter prático,
como o tinha nos pré-socráticos, para ter um caráter distanciado, como chega a ter em
Platão e Aristóteles.

“Sólon viaja, no dizer de Heródoto, com o desejo de ver o mundo, de se


encontrar com os homens e de contemplar seus hábitos. A vida teorética do Fédon e
do Teeteto faz do sábio um recluso: ele não sabe nada do mundo, da cidade; ele
ignora as novidades do dia; ele é essencialmente um ‘estrangeiro’. Assim, na
origem, theoria designa um modelo de sociabilidade; ao fim, um tipo insociável.”84
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Analisando o caso específico de Platão, Festugière vai apontar que ele une no
objeto supremo da idéia de bem, tanto a meta da dialética erótica do Banquete quanto a
da dialética científica da República. A idéia de bem é duplamente telos: ela é o objeto
maior de nosso impulso erótico e também é a meta máxima de nosso conhecimento. A
investigação dialética se harmoniza perfeitamente com o aperfeiçoamento dos impulsos
morais, e é na filosofia que se reúnem tanto o desejo de conhecer quanto o desejo de ser
feliz. “Dessa maneira, a dialética da Idéia comanda ao mesmo tempo uma dialética do
conhecimento e uma dialética do amor. A Idéia é duplamente telos. Ser por excelência,
ela é eminentemente o fim do conhecer. O mais divino entre os divinos e, portanto, o
mais belo, ela é o mais alto objeto que nós podemos amar.”85 E ainda “O ser pensado
por aquele que sabe será também um ser amado.”86 A identificação, como o faz
Jaeger87, da idéia de bem com deus aparece ao longo do texto todo de Festugière, e a
aproximação da filosofia com a religião é o tema central do livro.

83
FESTUGIÈRE. Contemplation et vie contemplative selon Platon. Paris: J. Vrin, 1975.
84
FESTUGIÈRE. Contemplation. p. 17
85
FESTUGIÈRE. Contemplation. p. 15
86
FESTUGIÈRE. Contemplation. p. 254.
87
Sobre a identificação da idéia de Bem com a divindade feita por Jaeger, ver especialmente Paideia p.
874-879. Jaeger salienta que Platão evita a palavra theos para qualificar a idéia, mas usa sim to theion, o
divino. Trata-se de um rompimento com a concepção popular de divindade. “A prova fundamental da
dignidade divina por Platão atribuída ao Bem reside no fato de o seu conceito de 'medida' se imprimir no
conceito platônico de Deus, visto que, como se diz nas Leis (716c), Deus é a medida de todas as coisas; e
o é porque é o Bem.” Paideia, p. 876.
159

Novamente, não precisamos nos posicionar frente à discussão do que seria uma
correta interpretação da idéia de bem em Platão, no entanto, o lado vital que surge na
filosofia platônica, ao aproximarmos a idéia de bem dos aspectos religiosos, vem ao
encontro da presente tese. Queremos salientar aqui o quanto o projeto de conhecimento
platônico, que inegavelmente culmina na idéia de bem, é também um projeto ético e
implica uma experiência completa da alma – uma experiência vital – que a transforme
em seus valores básicos para que se efetive radicalmente o conhecimento dessa idéia.
Sem essa transformação, sem essa conversão espiritual não pode haver conhecimento
"científico" rigoroso em Platão.
Nesse sentido, a interpretação que revela valores religiosos fundamentando o
postulado da supremacia da idéia de bem favorece nosso ponto de vista, pois assinala
inequivocamente um compromisso pessoal no processo de conhecimento dos entes
supremos, que termina por transformar as escolhas éticas e a visão de mundo do
homem. No entanto, não queremos nos comprometer com a interpretação que defende
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que o conhecimento em Platão se faz por uma via religiosa. Pelo contrário, afirmamos a
total racionalidade do caminho proposto por Platão na República, por exemplo, para se
alcançar o objeto supremo da sabedoria – a idéia de bem. Porém, defendemos que tal
processo racional deve ser também uma experiência transformadora dos valores pelos
quais se orienta e organiza a vida. A dialética, o nome que esse processo ganha na
República, é tanto racional quanto vital, isto é, ela deve transformar a vida do aprendiz
através de argumentos racionais em perguntas e respostas, necessitando para tanto a
preparação desde criança com a gymnastike e a mousike, e também do estudo das
matemáticas que veremos em breve.
Resumindo, concordamos com Festugière quando ele afirma que tanto o eros do
Banquete quanto a dialética da República, um estando implícito no outro, são caminhos
que levam para cima, anagoge. Esse caminho pressupõe um processo vital que
transforme a alma, nele inscrevendo o logos necessário. Festugière aponta para o modo
harmonioso em que logos e bios se unem em textos como o Fédon88, pois, ao investigar
filosoficamente sobre a eternidade da alma, é impossível perdemos de vista nosso
impulso existencial pela superação da morte. A própria contemplação dos argumentos já
é uma inscrição do logos em nossa alma – como o quer o Fedro – pois se trata de um
momento adequado, kairos, para que isso ocorra realmente.

88
FESTUGIÈRE. Contemplation. p. 84.
160

5.5. A EDUCAÇÃO SUPERIOR DOS FILÓSOFOS

Havíamos deixado a análise mais minuciosa do texto da República antes de


Sócrates entrar detalhadamente na educação superior do filósofo, e notamos a
necessidade de essa educação, como propôs a alegoria da caverna, promover uma
conversão na alma. Vimos ainda que esses homens, corajosos a ponto de contemplar o
bem nele mesmo – poderosamente análogo ao nosso sol que nos dá luz para vermos e
calor para nossa vida e subsistência –, quando conquistam tal felicidade, devem voltar
para dentro da caverna, se acostumar novamente com a escuridão de lá, e governar os
homens. Diferente dos neoplatônicos, como nos mostra a figura de Plotino apresentada
por Porfírio89, Platão tinha um apreço todo especial pelo bem realizável neste mundo: o
imperativo do retorno à cidade parece demonstrar esse apreço, já que a felicidade deve
ser buscada com vistas à cidade como um todo e não apenas ao indivíduo. O tema de o
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filósofo ter que governar, apesar de bastante fértil em problemas, não nos interessa
precisamente, já que queremos nos ater ao processo de conversão da alma, ao processo
que possibilita o filósofo compreender as idéias e conseqüentemente viver uma nova
vida.
Como acontece tal conversão da alma? O que é necessário para tamanha ventura
humana? Que educação é apropriada àquele que deve ter seu pensamento direcionado
para as coisas inteligíveis fugindo do mundo do devir?
A educação superior, proposta por Sócrates para aqueles que devem governar a
cidade ideal, é a resposta para essas questões. Mesmo aparecendo depois da primeira
educação dos guardiães – gymnastike e mousike –, é ela que vai fundamentar realmente
as escolhas éticas propostas nos livros II e III, em que os limites e as regras da primeira
educação são descritos. Os critérios para a censura das composições poéticas vão ser
finalmente fundamentados ao se esclarecer que aquele que deve realmente formular essa
censura será aquele que já compreendeu a idéia de bem90.
Em 521c, Sócrates convida Gláucon a investigar o modo de fazer nascer tal
homem convertido e apresenta duas imagens para explicar que tipo de "condução para a

89
Plotino parecia estar envergonhado de estar encarnado em um corpo. Ver PORPHYRY. On the life of
Plotinus and the order of his books. In PLOTINUS. Ennead I. Trad. A.H. Armstrong. Cambridge:
Harvard University Press, 1966 (Coleção Loeb).
90
Cf. JAEGER. Paidéia. p. 865, em que ele assinala que a segunda educação é ontologicamente anterior à
primeira.
161

luz" é essa. Em primeiro lugar, trata-se de uma subida como a que alguns heróis
realizam do Hades até os deuses. Shorey nos diz que essa passagem já foi muito
discutida, e Linforth argumenta, a partir de Pausânias i, 34, que Amfiareu está
subentendido nessa passagem91. Como já salientamos, é interessante marcar o quanto de
relação com a religiosidade da época tem essa "subida" rumo ao inteligível, pois tal
relação nos mostra de que modo ela era entendida por Platão como uma experiência que
não pode prescindir de um envolvimento total do aprendiz. A outra imagem trata de um
jogo com conchas (ostrakou, 521c) que eram de um lado escuras e de outro claras.
Dividiam-se os jogadores em dois grupos e, conforme a cor com que a concha caísse
para cima, um dos grupos era o perseguidor, e o outro, o fugitivo. Ao se jogar essa
concha, gritava-se nuvx h] hJmevra, noite ou dia92. Sócrates salienta que tal conversão não
se parece com um simples jogo, mas deve ser coisa séria. “Isso, como parece, não seria
o virar da concha <no jogo de criança>, mas é a conversão da alma a partir de um dia
noturno para um verdadeiro, sendo uma subida (epanodos) para o ser, a qual chamamos
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de verdadeira filosofia”93. É como se vivêssemos em uma luz que não é


verdadeiramente clara, assim como o ‘dia’ de dentro da caverna é como uma ‘noite’
para quem conhece a luz do exterior.
Shorey vai afirmar que esse termo, epanodos, subida, é muito citado pelos
neoplatônicos e padres cristãos; a relação entre a subida ao inteligível já foi fartamente
relacionada com uma ascese religiosa, e o próprio Platão faz essa comparação, como já
vimos. No entanto, Shorey vai procurar relegar a um segundo plano todo caráter místico
e metafísico(!) de tal passagem: “Novamente, nós devemos nos lembrar de que o
propósito explícito e reiterado de Platão é descrever um curso de estudo que irá
desenvolver o poder do pensamento abstrato consistente e consecutivo (consecutive
consistent abstract thinking). Toda sugestão mística e metafísica da imagem que
transmite essa idéia é secundária e subordinada.”94 Shorey defende que Platão está
realmente interessado no desenvolvimento do pensamento racional puro, e com certeza
a educação proposta por Platão terá como centro tal desenvolvimento. No entanto, o
claro problema dessa interpretação que Shorey suporta é que ela não aponta para os
meios pelos quais os resultados éticos esperados desse desenvolvimento serão

91
SHOREY. Paul. Introduction and notes to the Republic of Plato. Cambridge: Harvard University Press,
1987 (Loeb Classical Library). P. 146, nota b.
92
Ver a explicação em CHAMBRY, E. Traduction e notes de la République. Paris: Les Belles Lettres,
1946, p.155, nota 1.
93
521c.
94
Shorey, op. cit., p. 146, nota d.
162

realizados. A República demonstra um interesse especial pela educação dos filósofos


com vistas a fins práticos, para que a cidade seja feliz, e, nesse sentido, uma conduta de
vida adequada é necessária para que o resultado esperado dessa educação se comprove.
Se o aprimoramento do "pensamento abstrato" (expressão que Platão não usa) for o
objetivo de Platão ao escolher tal educação superior, ela deve acarretar uma
transformação nos valores e, conseqüentemente, no modo de conduta do filósofo. É por
causa da extrema necessidade de uma transformação pessoal que Platão utiliza tantas
expressões que remetem a educação a uma experiência religiosa com o conhecimento,
experiência essa intrinsecamente ligada ao modo como o homem se conduz.
Sócrates, então, havia falado sobre a viagem do herói saindo do Hades para perto
dos deuses e sobre a brincadeira com a concha como modo de ilustrar aquilo que estava
chamando Gláucon a investigar. “Qual das disciplinas tem esse poder? Qual é, então a
disciplina que puxaria o homem do mundo do devir para o ser?”95. Sócrates faz, no
entanto, uma ressalva, lembrando que eles haviam dito que os guardiães teriam que ser
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atletas de guerra, e as qualificações de guerreiro também devem provir do estudo que


será proposto. Isso nos leva a considerar que o ensinamento filosófico de Platão nunca
perde de vista o seu lado prático, a sua qualidade de remeter para o bem viver aqui da
terra, sem perder de vista as conseqüências morais da educação.
Sócrates lembra que já haviam descrito a educação contendo gymnastike e
mousike, mas aquilo que é agora procurado – o bem em si mesmo – não pode ser
alcançado por essas disciplinas96. Quanto à ginástica, o próprio Sócrates responde que
ela cuida do que nasce e morre (gignomenon kai apollumenon), e conhece o crescimento
e a diminuição do corpo, e nesse sentido não pode ser a resposta para a ciência que
conhece o bem em si mesmo, realidade afastada do que devém (gignoMênon). Quem
descreve aquilo que a mousike alcança é Gláucon, afirmando certos pontos importantes
que nos auxiliam a determinar, por contraposição, que tipo de estudo é esperado quando
se tem por objetivo conhecer o bem em si. A mousike era a contraparte (antistrophe) da
gymnastike, e ensinava por hábitos (ethesi), fornecendo euarmostian (harmonia do
espírito) através da harmonia (melodia); a mousike também fornece eurythmia (graça)
através de rythmon. Vale salientar que não somente através de elementos musicais, mas
também a partir de seus discursos, na forma de mitos (mythodeis), esses hábitos e

95
República 521d
96
521e ff.
163

caracteres (ethe) eram fornecidos. No entanto, a mousike não fornece episteme, e é disso
que precisa o conhecimento do bem em si.
Podemos perceber que certa roupagem exterior – seria interior e natural somente
naquele que já tivesse o conhecimento do bem em si – foi colocada nos guardiães
através de práticas musicais e esportivas que foram moldando sua conduta. Temos
chamado bastante atenção nesta tese para a necessidade de conseqüências éticas
decorrentes da conversão intelectual da alma. Aqui vemos que essas mesmas
decorrências éticas podem estar inscritas no modo de agir do homem, mas não
necessariamente decorrem da conversão intelectual da alma. Um dos critérios que temos
apresentado para nos certificar se o conhecimento foi realmente apreendido pelo
aprendiz é o comportamento dele, especialmente frente a fatos exemplares da vida,
como a morte. No entanto, aqui vemos o oposto acontecer: o guardião, em certa medida,
tem o comportamento adequado do filósofo que compreendeu as idéias, no entanto, ele
não as compreendeu. Em verdade, ele não sabia ainda a causa última do porquê se
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comportar da maneira como se comportava, mas apenas repetia por meio de hábito,
adquirido pela prática da primeira educação. Nesse sentido, o aprendizado não está
completo, pois o homem não conhece a causa última do seu agir, apesar de agir de
acordo com ela. Talvez possamos pensar na noção de orthos doksa, opinião correta,
para explicar que tipo de conhecimento possuem aqueles que foram educados apenas
pela primeira educação. A mousike e a gymnastike forneceram um material prévio com
o qual o aprendiz se prepara para a educação elevada, vivendo de maneira adequada ao
conhecimento superior97. A primeira educação molda98 a alma mas não a lança na
contemplação das idéias.
Qual é, então, a disciplina a ser estudada pelo filósofo? Há algo comum a todas
as ciências (episteme), formas de pensamento (dianoiai) e tekhnai, e isto é uma das
primeiras matérias que todos devem aprender. Trata-se de saber distinguir o um, o dois
e o três99, isto é, o número e o cálculo, ajriqmovn te kai; logismovn. Em primeiro lugar,
Sócrates salienta a importância dessa matéria para o general e a arte da guerra em geral.
Isso parece de novo querer remeter sempre para um lado prático, especialmente se

97
Para os efeitos psicológicos da mousike nos aprendizes, ver o artigo de Belfiore, p. 135, em que é
mostrado como a música vai convencendo a alma a agir corretamente. BELFIORE Elizabeth. “Elenchus,
Epode and Magic: Socrates as Silenus.” In: Phoenix. Vol. XXXIV Numero 2, Classical Association of
Canadá: Toronto, 1980.
98
O verbo principal utilizado por Sócrates ao descrever a ação da mousike na alma é plattein, moldar,
forjar. República 377a-d
99
to; e{n te kai; ta; duvo kai; ta; triva diagignwvskein. 522c.
164

pensarmos na Grécia da época de Platão, onde a arte da guerra é tão relacionada com o
saber mandar. Jaeger vai dizer também que, na época de Platão, a ciência da guerra
estava avançada e compreendia a matemática100. Shorey, no entanto, vai defender que o
interesse de Platão pela guerra não é muito grande, já que, depois de repetir algumas
vezes essa necessidade, vai deixá-lo de lado. No entanto, Sócrates mesmo vai mais
longe ao afirmar que saber aritmética é um requisito até para ser homem101.
O mais relevante, no entanto, é que a aritmética terá o poder que Sócrates e
Gláucon estão procurando, o poder de conduzir o homem naturalmente em direção à
inteligência (noesis) e, assim, de tragar o homem para o ser102. Sócrates ainda vai usar
os termos "coisa que acorda" (egertikos) e "convocar" (parakaleo) para descrever o que
as matemáticas fazem com a noesis. O estudo do "número e do cálculo" será a primeira
ciência que converterá a alma para o mundo inteligível, saindo do sensível. Na
descrição do que podemos chamar de aritmética, Sócrates vai relatar o processo de
"acordar" o intelecto, através das sensações que provocam contradições. Essa descrição
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será o modelo das outras quatro ciências – geometria, estereometria, astronomia e


harmonia – que serão preliminares ao estudo da dialética, configurando assim o estudo
superior do filósofo. A característica principal de todas essas matemáticas será o poder
de converter a alma, e é isso que queremos descrever mais detalhadamente a seguir.
Jaeger vai afirmar que a característica de "tragar para o ser"103 – expressão que descreve
a conversão – trata de um valor totalmente novo para as matemáticas e, na medida em
que a aritmética será a base para as outras quatro ciências, vale a pena estudarmos mais
minuciosamente qual era o estágio em que se encontrava na época de Platão o estudo
das matemáticas.
Sócrates vai afirmar que é Palamedes o inventor da aritmética: Ésquilo, Sófocles
e Eurípides teriam escrito cada um uma tragédia sobre ele, e Górgias, em sua Defesa de
Palamedes104, o coloca como seu inventor. Mas, saindo da mitologia e nos apoiando nos
textos que temos, vemos uma clara distinção entre os estudos que os gregos chamavam

100
“Este argumento prático não se deve tomar apenas num sentido irônico, visto que Platão o torna mais
tarde extensivo da aritmética às demais disciplinas matemáticas, e é sabido que o desenvolvimento da
ciência da guerra no séc. IV requeria um conhecimento cada vez maior das matemáticas.” JAEGER.
Paidéia. p. 897.
101
522e. Cf. Leis, 819d para a repetição da mesma idéia.
102
tw'n pro;" th;n novhsin ajgovntwn fuvsei [...] eJlktikw/' o[nti pantavpasi pro;" oujsivan, 523a.
103
eJlktiko;n pro;" oujsivan
104
Diels, Vorsokratiker II, p. 255-264, apud, CHAMBRY, E. Traduction e notes de la Republique. Paris:
Les Belles Lettres, 1946, p. 157.
165

de arithmetike e logistike, que, segundo Chambry105, podemos chamar de ciência dos


números e ciência do cálculo. Ian Muller, em um artigo não publicado106, assim como
Chambry, vai procurar mostrar de que modo essas duas ciências seriam diferenciadas na
antiguidade. As citações que Muller apresenta são da própria República, 522e, 525a, e
também a que já citamos, nas quais Sócrates apresenta as duas disciplinas distintamente,
e também especialmente no Górgias 451b-c, em que “Sócrates distingue entre
aritmética, que lida com o par e o ímpar, e o cálculo, que lida com as mesmas coisas,
mas diferindo da aritmética porque também investiga como o par e o ímpar são
relacionados em quantidade tanto cada um consigo mesmo quanto com o outro.”107 No
entanto, nas Leis 817e, o ateniense diz que cálculos e aquilo que concerne a números
podem ser um mesmo mathema, disciplina108. Assim, podemos ver certa distinção entre
essas ciências, mas há um nível em que elas se reúnem. Salientar isso é relevante, pois o
termo arithmetike não é sinônimo do que hoje entendemos por aritmética. Como
estamos vendo, na nossa aritmética encontramos aquilo que Platão chamava de duas
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disciplinas, o estudo dos números e o estudo dos cálculos.


Como Muller vai afirmar, “A maioria dos estudiosos assume que, quando Platão
menciona a aritmética, ele está pensando sobre algo muito parecido com aquilo que
encontramos nos livros VII – IX dos Elementos”109, de Euclides. Dentre os treze livros
dos Elementos110, esses são aqueles que lidam com aritmética, e van der Waerden
defende que tais livros viriam diretamente do pitagorismo pré-platônico111. Na
realidade, esse currículo matemático da República, que em breve iremos descrever, tem
forte influência do pitagorismo. Como o próprio Platão afirma em 530d, “Talvez ocorra
que, eu disse, assim como os olhos foram forjados para a astronomia, os ouvidos o
foram para o movimento harmônico, e essas ciências são irmãs umas das outras, como

105
CHAMBRY, op. cit., p. 157 nota 1.
106
MULLER, Ian. The disciplines of mathematics in Plato and Aristotle. Texto não publicado proferido
na Classical Philosophy Conference, na Universidade de Princeton, Princeton , dias 1 e 2 de dezembro de
2001.
107
MULLER, op. cit., p. 22.
108
A nossa palavra matemática vem do adjetivo mathematikos, derivado do verbo que diz tanto aprender
quanto ensinar, o manthano. Outra palavra também utilizada para descrever a matemática é mathema, que
em verdade remete a noção de disciplina.
109
MULLER. op. cit. p. 22. No entanto, o próprio Muller vai argumentar contra essa posição, afirmando
que a matemática do começo do V século a. C. não pode ser pensada de modo tão sistemático como está
apresentada nos elementos de Euclides.
110
EUCLID. Elements. Tradução Sir Thomas L. Heath. Chicago, London, Toronto: Encyclopaedia
Britannica, 1952. (Coleção Great Books of the Western World, v. 11)
111
Citado por MULLER. op. cit. p. 24, nota 15. Novamente, Muller vai ser contra a idéia de que havia já
um estudo sistematizado, como está nos Elementos, da aritmética, tanto na época de Platão quanto antes.
166

dizem os pitagóricos e nós concordamos.”112 Charles Kahn, em seu livro sobre


Pitágoras, vai dizer que, na época de Platão, não era pequeno o número de pitagóricos
na Grécia; “Nós conhecemos certa variedade de pitagóricos no tempo de Platão. O que
mais se sobressaiu deles foi o amigo de Platão, Arquitas de Tarento.”113
A citação que Sócrates faz dos pitagóricos, se referindo mais especificamente à
harmonia e à astronomia, parece provir do próprio Arquitas, pois um dos fragmentos114
que temos dele diz algo muito semelhante. Uma das fontes desse fragmento está no
livro Introdução à Aritmética de Nicômaco de Gerasa, matemático do final do primeiro
século depois de Cristo. No início desse livro, ele lida com duas formas primordiais a
partir das quais todo conhecimento se dá, a magnitude e a multiplicidade. Na procura
das ciências que nos dariam o maior conhecimento dessas duas formas primordiais, ele
investiga as suas características. Analisando a multiplicidade, Nicômaco afirma que ela
tem um aspecto numérico e também um aspecto de relações numéricas, constituindo os
objetos da aritmética e da música; a magnitude será focada pelos aspectos estacionário e
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móbil estudados pela geometria e pela astronomia. Como forma de mostrar a


importância dessas ciências – que em resumo são as ciências matemáticas da República
–, Nicômacos cita Arquitas, logo depois de citar outro pitagórico, na seguinte passagem:

"Da mesma forma, Arquitas de Tarento, no começo de seu tratado Da


Harmonia, fala a mesma coisa nesses termos: 'Parece-me que fazem bem ao estudar
matemática, e não é estranho que eles tenham conhecimento correto sobre cada
coisa, o que ela é. Pois se eles soubessem corretamente a natureza do todo, também
saberiam bem qual é a natureza das partes. Sobre geometria, certamente, aritmética
e astronomia, eles nos legaram clara compreensão, e não menos também sobre a
música. Pois elas parecem ser ciências irmãs, pois lidam com temas irmãos, as duas
primeiras formas do ser' (magnitude e multiplicidade)." 115

112
Grifo nosso para marcar a citação de Arquitas. [...] kai; au|tai ajllhvlwn ajdelfaiv tivne" aiJ ejpisth'mai
ei\nai [...]
113
KAHN. Pythagoras and the pythagoreans. Indianapolis, Cambridge: Hackett Publishing Company,
2001.p. 39
114
BORNHEIM, Gerd A. (org.) Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 97, p. 89, frg. 1 de
Arquitas.
115
NICOMACHUS. Introduction to Arithmetic. Tradução Martin L. D’Oge. Chicago, London, Toronto:
Encyclopaedia Britannica, 1952. (Coleção Great Books of the Western World, v. 11) p. 812. Há, no
entanto, controvérsias se essa citação viria realmente de Arquitas. Ver KAHN. Pythagoras and the
Pythagoreans. p. 13.
167

Vemos que em verdade o quadrivium medieval116 - as quatro ciências que


formavam o estudo superior na Idade Média, aritmética, geometria, música e
astronomia – é diretamente retirado da mais antiga tradição pitagórica, conservada e
reafirmada por Platão na República117. A única diferença em Platão está na distinção
entre a geometria plana e a espacial, a estereometria, que o próprio Platão afirma estar
sendo melhor estudada em sua época. Kahn ainda vai mais longe e afirma uma
influência geral de Pitágoras na filosofia de Platão: “A sociedade pitagórica pode ter
servido como inspiração na instituição educacional que Platão iria organizar na
Academia, e que também estava destinada a sobreviver por muitas gerações”118.
A bibliografia sobre a matemática na obra de Platão é vastíssima, e um estudo
profundo sobre ela não cabe aqui119. Podemos ressaltar como exemplo um problema
muito famoso na época, a duplicação do cubo, o mérito de cuja descoberta se deve a
Hipócrates de Chios120. Mas são Arquitas e Teeteto os maiores nomes da geometria da
época de Platão, e lhes devemos a descoberta dos chamados sólidos platônicos – o
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tetraedro, o cubo, o octaedro, o icosaedro, com exceção do dodecaedro – presentes no


Timeu121, como formas geométricas dos elementos primordiais.
Mas qual é a característica nos estudos dos números e dos cálculos que nos
impulsiona para o ser ao mesmo tempo em que desperta nosso intelecto? A descrição
desse poder e do modo como esse estudo realiza isso é o que Sócrates realiza a seguir,
523a – 524e, e será a base para a escolha das outras ciências matemáticas. Nesse
sentido, vale a pena nos demorarmos a detalhá-los. Em verdade, podemos pensar até
que a descrição do poder da aritmética de despertar o intelecto descreverá também o
poder central de todas essas ciências e, portanto, as resume todas. Dessa forma, nesta
tese, nos dedicaremos a esmiuçar o que Platão nos diz do poder da aritmética.
Sócrates começa por chamar a atenção de Gláucon para o fato de que há certas
percepções, ta; me;n ejn tai'" aijsqhvsesin, que não "convocam o pensar para investigar",
ouj parakalou'nta th;n novhsin eij" ejpivskevyesqai122, pois o nosso julgamento a partir

116
Sobre as artes liberais da Idade Média, o trivium e o quadrivium, ver o excelente livro contendo
diversos artigos organizados por MONGUELLI, Lênia Márcia. (coord.) Trivium e quadrivium: as artes
liberais na Idade Média. Cotia: Íbis, 1999.
117
Temos também a citação dessas ciências no Teeteto 145a.
118
KAHN. Pythagoras and the Pythagoreans. p. 10. Para a influência dos pitagóricos em Platão, ver
especialmente o capítulo “Pythagorean Philosophy in the Time of Archytas and Plato”, p. 39-62.
119
Para um bom resumo da bibliografia relevante sobre matemática na época de Platão, ver CHAMBRY,
E. Traduction e notes d’La République. Paris: Les Belles Lettres, 1946, p. LXX, nota 1.
120
CHAMBRY. Op. cit. p. LXXVI.
121
Timeu 55e-56c
122
523b
168

dessas percepções se basta a si mesmo. Já outras percepções resultam em percepções


opostas, ejkbaivnei eij" ajnantivan ai[sqhsin a[ma123, levando-nos a ter de pensar sobre
elas. Quando a percepção nos leva a perceber não somente um fato mas também o seu
oposto, nosso pensar é convocado a se esforçar para compreender o que está
acontecendo. A imagem que Sócrates apresenta para exemplificar isso é a seguinte: se
olharmos para os dedos da nossa mão, nenhum deles será mais "dedo" do que outro.
Cada dedo é tão "dedo" quanto o outro dedo, pois não é possível percebermos em uma
mesma percepção algo sendo dedo e o seu oposto ao mesmo tempo (o que quer que a
expressão "oposto a um dedo" possa significar). Essa percepção não leva o intelecto a
investigar “o que é um dedo?”, pois o julgamento proveniente dela é suficiente
(hikanos) para a alma. Assim, a percepção de "um dedo" não é uma que acorda
(egertikon) o intelecto.
No entanto, entidades como "grandeza", "pequenez", "dureza", "maciez", etc.
são captadas em certas percepções em que aparecem junto aos seus opostos. O mesmo
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dedo, quando comparado com outro, se mostra pequeno e, ao ser comparado com ainda
outro, pode ser grande; assim como ele também pode ser macio ou duro, caso seja
comparado com um ou outro objeto. Dessa forma, a mesma percepção de um único
dedo nos apresenta características opostas, levando nosso intelecto a "acordar" para
investigar o que isso quer dizer.

“Ou não será o seguinte que faz cada uma dessas percepções? Primeiro, a
percepção que é posta sobre o duro é necessariamente relacionada com o macio, e
ela reporta para a alma que o mesmo é percebido como duro e macio.
É assim mesmo, ele disse.
Então, eu disse, é necessário que nos casos desse tipo a alma fique em
aporia (aporein) sobre o que indica (semainei) a percepção do duro, se ela diz que o
mesmo é macio, e igualmente sobre a percepção do leve e do pesado [...]
É, realmente, ele disse, essas comunicações (ermeneiai) com a alma são
estranhas (atopoi) e o investigar é necessário.”124

Sócrates, então, lembra a Gláucon que sempre concebemos essas qualidades


contrárias como duas realidades distintas e, no entanto, a percepção as apresenta em um

123
523c.
124
524a
169

mesmo objeto. O nous é assim forçado, anankasthe125, a procurar por esses objetos
separadamente da sensação, pois a alma, encontrando-se em aporia, procura o auxílio do
intelecto. Trata-se da importância da consciência da própria ignorância que os diálogos
socráticos nos relatam tão bem. O estranhamento, indicado com o termo atopoi – que
designa "sem lugar próprio" –, e o estado de aporia, ambos provocados pelas percepções
contraditórias, levam a alma a investigar sobre cada um desses objetos – dureza, maciez,
etc. A alma quer realmente saber se são um ou vários, e inicia a investigação das
realidades nelas mesmas, separadas das percepções nas quais elas aparecem: é então que
a alma chega a se perguntar o que é o "duro" e o "macio", o "grande" e o "pequeno", e
perguntando se tais realidades existem no inteligível (noeton) ou no sensível (aistheton),
termina por distinguir, assim, esses dois âmbitos do real.
Platão está aqui fazendo uma descrição do nascimento da investigação abstrata,
descrevendo determinadas realidades – as qualidades duro, quente, macio, etc. – que
não são contempladas nelas mesmas através do sensível, convocando, de acordo com
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ele, o pensamento a procurar por si próprio o que sejam tais entidades. Ao apresentar
todo esse processo de despertar o nous a partir de determinadas percepções, Sócrates
ainda não tratou do caso dos números. Assim, podemos dizer que essa descrição da
convocação do intelecto vai ser relevante não apenas para compreender o que Platão
designa por arithmetike kai logistike, mas também para todos os outros estudos
matemáticos. Todos os cinco estudos – aritmética, geometria, estereometria, astronomia,
e música – nascerão da mesma imposição das percepções contraditórias, já que em todas
elas o que se estuda vai sempre além do que o sensível nos mostra, forçando o intelecto
a se voltar para si mesmo. Durante a descrição dessas ciências, Sócrates sempre salienta
o fato de que não se trata de estudar o sensível126, mas sim os padrões inteligíveis que
nunca se apresentam perfeitamente no mundo sensível. Todas essas ciências são o
caminho que a alma segue ao partir de percepções contraditórias e acordar o intelecto
para forçá-lo – e nós com ele – a sair do mundo sensível para o inteligível, isto é, elas
são o caminho que promove a conversão da alma. O princípio de todas essas
matemáticas da educação superior é o thauma, princípio da filosofia de acordo com

125
524c
126
Na geometria, Sócrates critica aqueles que utilizam sempre um linguajar em conformidade com o
sensível, 527b. Na astronomia, em 529a-b, ele afirma que o "olhar para cima" necessário ao estudo da
astronomia não é jogar a cabeça para cima, mas sim o olhar da alma para o ser e para o invisível, yuch;n
blevpein ... peri; to; o[n kai ajovraton. Na música, em 531a, ele critica aqueles que se utilizam do sensível
para descobrir o que ela seja.
170

Aristóteles e Platão127. A qualidade de thauma das matemáticas é a principal para que


ela possa promover a conversão do espírito, que se torna perfeita pela dialética em
seguida.
Sócrates coloca, então, os números – especialmente o número um – no mesmo
grupo do das qualidades descritas acima, e vai dizer que nada na percepção nos
apresenta o "um ele mesmo por si mesmo", pois “se víssemos ou pegássemos
suficientemente por alguma outra percepção o um ele mesmo por si mesmo (to; e{n aujto;
kaq ; auJto;), ele não seria um impulsionador para o ser (oujk a[n oJlko;n ei[h ejpi; th;n
oujsivan), assim como dissemos sobre o dedo”128. Mas, como a percepção sempre o
apresenta junto com contradições, enantioma, a alma vai cair em aporia e investigar,
ajporei'n kai; zhtei'n, pois terá necessidade de algo que discrimine, epikrinon, entre as
contradições, procurando assim pensar “o que é o um ele mesmo, e dessa forma o
estudo do um seria um condutor para a contemplação do ser, e promoveria a
conversão”129.
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É necessário salientarmos, de acordo com o objetivo desta tese, o aspecto vital e


existencial dessa convocação do intelecto a pensar. Não se trata de imposição artificial
sobre a alma humana forçando-a a buscar os caminhos do mundo inteligível130. Ao
apresentar aqui a convocação (parakaleo) do intelecto e o seu despertar (egeiro),
Sócrates nos diz que isso deve ocorrer a partir das sensações que têm por natureza
determinadas características. Trata-se de uma descrição de qualidades inerentes a certas
percepções que naturalmente despertam o intelecto a pensar por conta própria. É um
momento constitutivo da vida do homem quando ele se depara com certas realidades
que não podem ser descritas cabalmente pela sensação, e a partir delas o nous é
convocado naturalmente131. O impulso pelo estudo dos números provém de um
movimento natural da própria alma, e não forçado artificialmente, que a eleva para o
mundo inteligível, promovendo, através do aporein e dos atopoi, a conversão do mundo

127
Teeteto 155c e Metafísica 982b
128
524d-e
129
Talvez essa seja a frase que mais resume o presente argumento, e por isso serviu como epígrafe a este
capítulo. tiv pot ; ejsti;n aujto; to; e{n, kai; ou{tw tw'n ajgwgw'n a]n ei[h kai; metastreptikw'n epi; th;n tou'
o[nto" qevan hJ peri; to; e}n mavqhsi".525a
130
Platão vai até mais adiante salientar a impossibilidade de um estudo forçado da dialética e das
matemáticas. 536d oujc wJ" ejpavnagke" maqei'n “não como para aprender forçados”.
131
Podemos dizer que há a necessidade de algum "condutor", como aparece misteriosamente na alegoria
da caverna, que nos oriente a perceber as contradições em certas percepções. Mas isso não elimina a falta
de uma imposição artificial para o acordar do inteligível: ele é acordado naturalmente a partir da
consciência das percepções que temos das contradições dessas percepções.
171

sensível para o mundo inteligível. Podemos perceber que, também no Mênon132 e no


Teeteto133, o estar em aporia é o princípio da investigação científica, e isso sempre nos
remete a um estado existencial que nos joga vitalmente no questionamento.
Festugière134, ao analisar essa passagem, apresenta a questão que para nós
também é essencial: “Qual é então, em resumo, o benefício das ciências matemáticas, na
medida em que são estudadas de modo desinteressado, com vistas de formar o espírito,
e não a alcançar um efeito prático?”. O que mais nos estranha na opção de Platão ao
estabelecer esse como o método exemplar de formação da alma – o pensamento que se
desassocia do sensível e que procura através de si mesmo encontrar o ser – é a distinção
que normalmente pressupomos entre os questionamentos vitais e os questionamentos
abstratos, especialmente os matemáticos. Como Platão pensava as matemáticas e,
conseqüentemente, a dialética, para que elas tivessem tal poder de conversão, de
transformação da alma, a ponto de causar a cegueira da luz do inteligível135 e passarmos
a não mais enxergar o que antes enxergávamos?
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Festugière vai afirmar, ao longo de toda a parte que trata da educação superior
da República, que a função das matemáticas é especialmente duas: unificar e purificar.
Apesar de Festugière dar uma importância capital para o número um na presente
passagem da República, com a qual não concordamos inteiramente136, ele diz que a
função das matemáticas é discernir no mundo plural da sensibilidade a unidade que a
estrutura lhe confere. “Com certeza, tal discernimento exige como pré-requisito uma
redução à unidade”137. A própria noção de unidade é fundamental para se pensar em
qualquer número. A purificação está no ato de abstrair: o afastamento do sensível, em
Platão, não é apenas um processo racional, mas há pressupostos éticos nesse ato. A
noção de purificação – mais explícita no Fédon138 como produto da vida filosófica –
também pode ser compreendida aqui na República como o produto da educação
superior, já que, ao afastar o nous do sensível, essa educação purifica o mundo em que o

132
Mênon 80a, quando Mênon descreve seu estado de aporia frente aos questionamentos socráticos.
133
Teeteto, 151a, quando Sócrates descreve as dores do "parto" que sentem aqueles que estão tendo filhos
na alma. Trata-se da dor de se perceber em aporia e não saber responder.
134
FESTUGIÈRE. Contemplation et vie contemplative selon Platon. Paris: J. Vrin, 1975, p. 176.
135
Cf. a passagem sobre as diferentes cegueiras daquele que vai para o inteligível e daquele que volta
para o sensível, República 517e.
136
A importância da unidade que Festugière confere à obra de Platão vai além da República, e não nos
parece que nessa passagem o número um seja nada além de um exemplo dos números em geral que
devem ser estudados.
137
FESTUGIÈRE. Contemplation, p. 176.
138
67a-68a
172

homem se compreende. O ponto é que estudar matemática, aqui na República, é um ato


ético, já que nesse estudo há a intenção de se reformular a conduta moral do estudante.
O ponto que não encontramos em nenhum comentador, e que Festugière poderia
mencionar para auxiliar sua tese, é que há como pressuposto no poder de transformação
ético dos estudos das matemáticas uma certa harmonização prévia das três partes da
alma. Em nossa dissertação de mestrado, foi defendido que a compreensão filosófica
platônica, que tem como conseqüência a transformação ética do indivíduo, apenas pode
se efetivar rigorosamente caso todas as três partes da alma participem do processo de
compreensão139. No entanto, podemos pressupor que certas etapas da educação
filosófica – especialmente como é descrita aqui na República – são mais direcionadas a
certas partes da alma. De forma geral, podemos dizer que a primeira educação –
mousike e gymnastike – é eminentemente voltada para o epithymetikon e o thymoeides.
Sócrates não faz essa relação explicitamente, pois nos livros II e III, em que é discutida
a primeira educação, ele não havia ainda feito a tripartição que virá apenas no livro
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IV140. No entanto, na primeira educação, temos o aprendizado se realizando apenas por


meio de hábitos (ethesi 522a), e ele não convoca e acorda o intelecto, como vemos aqui
as matemáticas fazerem. A mousike irá moldar (plattein 377c) a alma para agir de
acordo com seus logoi e rhythmoi, mas não apresenta clara e racionalmente o porquê de
ser melhor agir como ela diz – não acorda o intelecto. Porém, devemos ainda dizer que,
de alguma maneira, também o logistikon deverá participar nesse primeiro processo de
aprendizado, pois, pelo menos na poesia que a mousike pressupõe, há um discurso141
que precisa do logistikon para ser entendido.
Por outro lado, a educação superior que ora analisamos seria mais voltada para
o logistikon, parte da alma que exerceria a função do dianoeisthai, aquela que capta os
números e as idéias. No entanto, se as partes inferiores da alma não estiverem
domesticadas e não aceitarem as conclusões a que chega o logistikon, isto é, se elas não
estiverem condicionadas a aceitar a parte racional da alma como aquilo que deve

139
PINHEIRO, M. R. O Amor e as Sutilezas do Discurso. Dissertação de Mestrado não publicada,
Departamento de Filosofia. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1999.
140
Especialmente a partir da definição do critério de diferenciação das partes em 436b “É claro que o
mesmo não poderá ao mesmo tempo produzir (poein) e sofrer (paskhein) o mesmo em relação à mesma
parte.”
141
Para um excelente artigo sobre as três partes da alma e suas conexões, ver MOLINE, Jon. “Plato on the
Complexity of the Psyche” in Archiv für Geschichte der Philosophie. Berlin: Walter de Gruyter, 1978.
Ver ainda KAHN. “Plato’s Theory of Desire.” in: Review of Metaphysics 41, PRICE, A. W. “Loving
Persons Platonically”, In: Phronesis, 26, 1981. VLASTOS. “The individual as object of love in Plato.” In
Platonic Studies. Princeton: Princeton University Press, 1973.
173

governar e comandar o indivíduo, de nada adiantaria também todo o esforço da parte


intelectual da alma. Com a primeira educação, o guardião já de alguma maneira
acalmou as duas partes inferiores da alma e elas vão respeitar o que quer que o
logistikon conclua142. Elas já aprenderam que é no nível inteligível que se encontra o
que há de melhor para o todo do homem, e, por causa disso, são comedidas e maleáveis
às determinações racionais da alma.
É interessante salientar o texto de Kahn, que defende que deve haver algum tipo
de racionalidade presente nas duas partes da alma ditas não racionais, no mínimo para
que elas possam compreender os seus respectivos objetos. “Então, um elemento
cognitivo de alguma espécie é um componente essencial em todas as três partes da
alma.”143. A alma estaria harmônica, fruto da educação temperante e sensata que teria
recebido desde criança com os mythoi e ginásticas apropriadas, e esse estado implica
que os lados racionais de cada parte da alma já teriam todos compreendido que é o
logistikon que realmente fornece o bem e o mal para a alma como um todo.
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Nesse sentido, quando quer que o logistikon entre em aporia, a alma como um
todo entra também, e a investigação matemática e filosófica se torna vital por
excelência. O processo de educação pelas matemáticas é vital e caracterizado como
conversão, porque as dúvidas que elas suscitam tocam o todo da alma que já está
educada a ouvir e obedecer ao logistikon. Como vínhamos falando desde o início, é
necessário um kairos para que a argumentação filosófica se realize efetivamente, para
que se concretize a experiência vital necessária à correta compreensão de um tema
filosófico. Se a investigação das matemáticas não se desenrolar no tempo adequado –
como o próprio Sócrates sugere na República144 –, elas não produzirão o seu efeito
principal, a conversão, que é o real objetivo de seu estudo. A própria dialética tem o seu
tempo adequado de ser estudada, sendo até perigoso estudá-la fora de seu kairos145. A
alma como um todo deve participar da investigação, e, nesse sentido, as partes inferiores
da alma devem acatar as resoluções inteligíveis para que se processe realmente a
conversão espiritual esperada da educação superior.

142
Cf. o seguinte trecho “[...] mas se ele, dessa forma, acalmou as duas partes e afiou a terceira, em que
habita a razão, e dessa forma vai descansar, ele está o mais apto a alcançar a verdade.” República 572a.
143
KAHN. “Plato’s Theory of Desire.” in: Review of Metaphysics 41, p. 85
144
Todo o trecho que vai de 537a – 5540b lida com as idades adequadas para cada estudo, afirmando
assim a necessidade de um kairos para cada estudo.
145
“Pois eu acho que não passou desapercebido a ti que os jovens, quando primeiro provam dos
discursos, os usam indevidamente como jogos, sempre os usando como refutações, e imitando os
refutadores, eles mesmos refutando os outros [...] mas um homem mais velho não compartilhará essa
loucura [...]”, 539b-c.
174

Esse talvez seja um dos argumentos principais para a tese aqui proposta – a
educação filosófica tem que ser uma experiência vital que englobe a totalidade da alma
no processo de investigação e opere uma transformação em seus conceitos e decorrentes
modos de agir –, e vale a pena repeti-lo de forma sintética: tal argumento principal
afirma que, mesmo o estudo superior sendo estritamente intelectual e voltado para o
logistikon, as outras duas partes da alma estarão também em transformação, já que
vivem sob a tutela do logistikon por terem sido harmonizadas pala primeira educação.
Shorey vai afirmar que o objetivo de Platão na educação matemática era instigar
(puzzle)146 os alunos, embaraçá-los com enigmas que os fizessem pensar por si próprios
e, nesse processo, transformar o modo de compreender o mundo.

4.6 A DIALÉTICA

“[...] quando quer que alguém, utilizando o método da dialética,


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pegando uma alma apropriada, planta e semeia discursos


com conhecimento, os quais são capazes de salvar a si próprios
e àqueles que os plantaram, que não são infrutíferos, mas doam sementes
a partir das quais outros discursos em outras mentes são plantados,
e são capazes de fornecer esse processo eternamente, e fazem aqueles
que os possuem felizes à medida que é possível ao ser humano.”
Fedro 277a

A análise continua descrevendo as próximas quatro ciências, ou mathemata, já


citadas aqui. Em verdade, para o que nos interessa, essa descrição do poder de despertar
e convocar o nous para pensar por si próprio, descrita ao se apresentar a aritmética, já
apresenta a força essencial das matemáticas. Precisamos, ainda, descrever a dialética e o
seu poder de transformação, e tornar explícito o modo como ela é um processo de
conversão e, assim, um modo de realizar a experiência vital necessária para a
compreensão efetiva e rigorosa da filosofia.
Um dos maiores estudos sobre a dialética em Platão sem dúvida é o de Robinson,
em Plato’s earlier dialectic. Lá, ele afirma o seguinte:

“O fato é que a palavra ‘dialética’ tem uma forte tendência em Platão a significar ‘o
método ideal, qualquer que ele seja’. Na medida em que era apenas um título honorífico,

146
SHOREY. Paul. Introduction and notes to the Republic of Plato. Cambridge: Harvard University
Press, 1987 (Loeb Classical Library), p. 152, nota b.
175

Platão o aplicava em todo estágio de sua vida àquilo que parecia a ele, no momento, o
procedimento mais adequado.”147

Robinson vai afirmar que os dois conceitos principais com os quais a dialética se
relaciona ao longo da obra de Platão é de hipóteses e divisão. Em diálogos como a
República, o Mênon e o Fédon, de acordo com Robinson e Annas148, dialética vai ter a
noção comum de ir além das hipóteses para analisar os princípios em si mesmos149. Já
no Fedro e nos diálogos tardios, como o Sofista, Político e Filebo, dialética será
identificada com o processo de separação por gêneros. É assim “[...] que a dialética na
República deve ser interpretada como fazendo sentido primariamente sobre os
problemas da República.”150 Com isso em vista, apesar das diferentes perspectivas que
podem ser realçadas na noção de dialética ao longo das obras de Platão, iremos nos
concentrar na República, especialmente no trecho em que descreve a educação superior
do guardião, 531d – 535a.
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Após terminar a descrição da quinta ciência matemática, a mousike, 531c,


Sócrates salienta que tais ciências são úteis para a investigação do belo e do bom151.
Mais ainda, essas ciências devem chegar a uma visão de sua unidade e organicidade, e
tal característica vai ser corroborada em 537c, quando Sócrates vai afirmar que a
educação superior leva o aprendiz a uma visão de conjunto, synopsin, de todo o seu
aprendizado.
Gláucon se admira de tamanho trabalho que tal empreitada sugere, e Sócrates
pergunta se ele fala do prelúdio ou se da parte principal: em verdade, as matemáticas
vão funcionar como estudos preparatórios para o estudo principal, a dialética. No
entanto, não se pode entender o caráter preparatório de tais ciências como se elas ainda
não promovessem a conversão, pois, desde o começo de sua descrição, Sócrates está
mostrando que elas já têm o poder de converter o aprendiz em direção à luz do
inteligível. Contudo, a conversão por elas promovida não é definitiva e não alcança os
mais altos graus do ser, como a dialética alcança. Como o prelúdio a uma melodia

147
ROBINSON, Richard. Plato’s earlier dialectic. Oxford: Claredon Press, 1966, p. 70.
148
ANNAS, Julia. An introduction to Plato’s Republic. Oxford: Claredon press, 1981, p. 276.
149
No Fédon, apesar de Platão não utilizar o termo dialética, o método supremo da filosofia parece seguir
hipóteses, e não ir além delas (Fédon, 100a). Mesmo assim, esses diálogos ainda se relacionam
eminentemente com o termo hipótese para falar do método filosófico. Ver p.70, Robinson.
150
ANNAS, id. ibidem.
151
Crhvsimon me;n ou\n, h\n d ; ejgwv, pro;" th;n tou' kalou' te kai; ajgaqou' zhvthsin [...] 531c.
176

principal152, as matemáticas introduzem uma predisposição propícia a uma investigação


mais profunda da natureza das coisas, a dialética. Como Sócrates mesmo vai dizer ao
fim da descrição da dialética, 534e, ela seria como o revestimento final de um muro ou
o ponto culminante, w{sper qrigkov", sinalizando ser ela a parte final de uma construção,
o acabamento sobre o qual nenhuma outra ciência pode se pôr.
Julia Annas parece concordar com nossa tese quando ela afirma a dificuldade em
se definir objetivamente o que seja dialética na República: o ponto principal, de acordo
com a autora, parece ser que ela deve ser experimentada na prática e somente assim
poderá ser claramente compreendida, e nunca com definições abstratas. Vale a pena
citarmos esta passagem, que já usamos como epígrafe para a tese:

“Platão fala quase nada de positivo e direto sobre dialética; ele faz Sócrates
advertir Gláucon de que isso não pode ser feito (532e-533a). Em parte, isso pode
ser porque Platão não está seguro de como definir o pensar filosófico. (Muito
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poucas pessoas, afinal, já estiveram seguras de que poderiam). Mas o procedimento


de Platão também afirma que a verdadeira natureza da filosofia é visível apenas
àqueles que passaram algum tempo fazendo-a. Não se pode descobrir o que a
filosofia é ao ler livros sobre “O que é a Filosofia”, mas apenas fazendo um pouco.
Este é um dos poucos pontos em que alguém pode estar certo de que Platão pensou
consistentemente ao longo de sua vida.”153

Annas está defendendo algo tão intrínseco à cultura filosófica grega que é difícil
encontrá-lo explicitamente salientado: o fato de que é apenas ao experimentarmos o
processo de conversão dialético que realmente poderemos compreender o que quer que
ele seja. No entanto, e ela mesma o afirma logo à frente dessa citação, podemos sim
apontar para definições e modos de encaminhamento disso que se chama dialética na
República.
A primeira descrição da dialética, na referida passagem da República, é a que
comumente se faz em praticamente todos os diálogos em que ela aparece: a capacidade
de dar e receber um logos sobre alguma coisa, dou'nai te kai; ajpodevxasqai lovgon,

152
Os termos usados por Sócrates são proiimion, introdução, prelúdio musical, e nomos, lei ou mesmo
melodia principal de uma música. Dessa maneira, podemos dizer que as matemáticas mesmo ainda não
sendo o tema principal da música, já fazem parte da música; assim como elas não operam a conversão
perfeitamente, já fazem parte da conversão.
153
ANNAS, op. cit. p. 276-277.
177

531e154. Mas esse logos não é sobre qualquer característica do objeto descrito, mas, sim,
acerca daquilo que ele é, ejp ; aujto; o} e[stin - sobre "o que é" ele mesmo ou o próprio "o
que é". Essa é a terminologia típica para descrever as idéias: trata-se de uma expressão,
o{ e[stin, "o que é", mais a palavra "mesmo", auto, no neutro, que indica a auto-
referência, a pureza do "o que é" em questão. A primeira imagem que Sócrates recorda
para ilustrar a dialética, aqui na República, é aquele momento na alegoria da caverna em
que o prisioneiro já liberto contempla as coisas em si mesmas, fora da caverna, para por
fim contemplar o próprio sol. A analogia que podemos fazer aqui é que as matemáticas
seriam comparadas à observação pelo prisioneiro das sombras e imagens das coisas fora
da caverna, e a dialética seria a observação das próprias coisas até alcançar o sol ele
mesmo. A descrição da dialética é tão lapidar nessa passagem que merece ser traduzida
aqui.

“Da mesma forma, quando quer que alguém, pelo diálogo (dialegesthai) e
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afastado de todos os sentidos, tenta através do logos alcançar aquilo ‘que é’ ele
mesmo de cada um, e não desiste até que pegue pelo próprio pensamento (autei
noesei) o aquilo ‘que é’ ele mesmo do bem155, ele chega ao limite do inteligível,
assim como aquele outro [na caverna] alcançou o limite do visível. [...] E então?
Não chamarás esse caminho de dialética? Claro.”156

Sócrates, então, relembra todo o processo de conversão (metastrepho é a palavra


que ele usa aqui) da caverna relacionando-o ao processo de educação das ciências e da
dialética, e todo esse trecho se torna exemplar para apresentarmos a idéia de que,
mesmo a educação filosófica platônica sendo eminentemente racional, ela é claramente
marcada pela exigência de uma transformação pessoal. O traço de racionalidade não
exclui o de vitalidade da educação filosófica na República: a conversão da alma,
descrição claramente vital do aprendizado filosófico, se faz pelo dialegesthai e através
do logos, afastado dos sentidos, descrição claramente racional do mesmo aprendizado
filosófico.
A resposta de Gláucon é bastante elucidativa e reflete a nossa própria disposição
ao ler os argumentos de Sócrates. O irmão de Platão responde que ao mesmo tempo em

154
Shorey ainda vai citar República 534b, Protágoras 336c, Político 286a, Teeteto 202c, Sofista 230a,
Fédon 78c-d, 95d, Cármides 165b, e até mesmo Xenófanes, em Econômico 11.22. Temos ainda a
expressão logon labein, República 402a, Sofista 246c, Teeteto 208d. Apud. Shorey, op. cit. p. 195.
155
aujto; o} e[stin ajgaqo;n
156
República 532a-b
178

que é difícil aceitar totalmente o que Sócrates ora fala, também é difícil recusar, e,
assim, Gláucon se encontra em uma ambivalência típica dos movimentos vitais de
compreensão. Isso nos lembra as críticas de Gláucon e Adimanto no início do livro II,
em que ambos pedem que Sócrates não apenas pareça tê-los convencido sobre o tema
da justiça, mas que os convença realmente157. A analogia com o livro II é ainda mais
forte ao percebermos que lá também158 Sócrates define o que veio anteriormente, o livro
I, como apenas um prooimion daquilo a que realmente a discussão pode levar159. Aqui
no livro VII, Gláucon mesmo diz que esse argumento sobre a educação superior não
deve ser ouvido apenas uma vez, mas várias vezes, até que ele possa ser compreendido
totalmente. Como esta tese defende, Gláucon está dizendo que, mesmo os argumentos
sendo entendidos racionalmente, eles ainda precisam de uma vivência específica para
que sejam incorporados à vida daqueles que os ouvem. Trata-se de uma visão da
compreensão que leva em conta todo o movimento peculiar da alma em relação aos
assuntos mais elevados da realidade, e, nesse sentido, a compreensão a que Gláucon
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alude aqui pressupõe uma experiência vital do assunto tratado, para que a alma seja
completamente persuadida e aja a partir de tal persuasão. Esse aspecto ambivalente e
vital também se torna importante quando vemos que a dialética apenas procede com o
consentimento do interlocutor, dia; sugcwrhvsewn160. Veremos logo a seguir que um
dos traços marcantes da dialética é que ela se faça em conjunto e nunca isoladamente.
Para o que nos interessa, a afirmação de que a dialética promove e ocorre
sempre através de um processo vital nos basta, já que nossa intenção é afirmar a
vitalidade do processo de aprendizagem filosófico na República de Platão. No entanto,
vale salientar alguns aspectos importantes da descrição que Platão dá ao ponto
culminante da educação do filósofo. Iremos aqui tratar do aspecto essencial da dialética
– ela ser um processo através de perguntas e respostas –, seguindo alguns problemas
levantados por comentadores de Platão. Em seguida, indicaremos rapidamente sobre a
dialética na República, em que ela é vista principalmente como uma investigação que
vai além das hipóteses matemáticas chegando a um princípio não hipotético.

157
Ver este mesmo capítulo desta tese, mais acima, “Constrangimento racional e persuasão completa”.
158
357a
159
Sobre a força do livro I como um pooimion, ver AUSLAND, Hayden. “Socrates’ argumentative
burden in the Republic”in MICHELINI, Ann. (ed.) Plato as Author. The Rhetoric of Philosophy. Leiden,
Boston: Brill, 2003.
160
Ver nota f de Shorey, p. 202. Ele ainda cita outras passagens que afirmam, implícita ou explicitamente,
a dialética precisar do consentimento do interlocutor: Leis 957d, Fedro 237c-d, Gorgias 487e, Lisias
219c, Protágoras 350e, Filebo 12a, Teeteto 162a, República 340b.
179

Como já dissemos, a definição mais geral da dialética é o processo de dar e


receber um logos sobre o que algo é (aujto; o} e[stin). Outra descrição muito comum é
aquela que aparece em 534d, em que Sócrates salienta que os filósofos devem saber
perguntar e responder. Shorey vai citar outras passagens161 em que tal é a definição de
dialética, resumida na fórmula to; ejrwtwvmenon ajpokrivnesqai. Sobre o perguntar e
responder, Robinson162 apresenta seis (6) aspectos que resumem as características
básicas desse método.
1) A dialética é um processo de pesquisa que se faz em conjunto, koinh; skevyi"
(Criton, 48d, Cármides 158d, Político 258c). Ela precisa de alguém que pergunte, que
seria o líder e conduziria a conversa, e outro que responda e siga o líder. As perguntas
normalmente são sobre o julgamento do interrogado acerca de uma dada proposição,
isto é, se ele concorda ou não com ela.
2) O que responde deve dizer aquilo que ele acredita sobre a pergunta, e não
procurar mascarar o que ele realmente acredita para chegar a resultados específicos.
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3) A procura de consistência entre todas as respostas. Esse aspecto leva, muitas


vezes, a contradizer aquilo que o interlocutor acreditava anteriormente, como temos em
Teeteto 154c-d: “Teeteto, pode alguma coisa se tornar maior a não ser por se lhe
adicionar algo? O que você diria? Se, Sócrates, eu responder aquilo que parece a mim
como verdadeiro, eu diria que não. Mas se eu considerar a pergunta anterior e cuidar
para não me contradizer, eu direi que sim.” Nesse sentido, vemos a refutação pessoal, o
elenkhos, funcionando, isto é, a pessoa abrindo mão do que acreditava anteriormente
para aceitar a maior consistência.
4) Os dois que realizam a conversa devem concordar entre si. Não pode haver
prosseguimento do questionamento se as respostas e julgamentos não forem aceitos por
ambos que participam da conversa. Não pode haver um "concordar em discordar", cada
um ficando com sua posição, pois a conversa não poderia ir para a frente se os dois não
aceitassem os julgamentos e respostas apresentados.
5) As perguntas não podem ficar sem respostas. Se o interrogado não souber
como responder, é tarefa do interrogante exemplificar e clarificar a pergunta até o
interrogado se decidir sobre ela.
6) Não pode haver argumentos de autoridade na investigação. Não é porque
alguém importante fez tal afirmação que eles devem concordar com ela: antes, as

161
SHOREY. Op. cit. p. 209, nota f, Górgias 461e, Cármides 166d, Protágoras 338d, Alcebíades I 106b.
162
ROBINSON. Plato’s earlier dialectic, p. 77 ff.
180

respostas e julgamentos devem ser examinados pelos participantes da conversa e


somente se eles concordarem é que ela poderá ser aceita.
Robinson afirma que Platão não apresenta motivos para que a investigação
filosófica tenha especificamente esses pontos e não outros, e termina por dizer que
Platão escolhe o diálogo como ferramenta principal por motivos culturais163,
especialmente pela forte influência do elenkhos socrático. Apesar de concordarmos com
Robinson sobre o fato de Platão não apresentar explicitamente argumentos que
defendam essa dialética como o método essencial da filosofia (apesar de Platão nunca
definir cabalmente a dialética), achamos que o caráter vital que tal investigação
comporta, pelo menos, indica qualidades relevantes nesse método. Mais do que
simplesmente "descobrir verdades filosóficas", Platão está interessado em que elas se
tornem vitais naqueles que a descobrem – como diz no Fedro, quer inscrever o
conhecimento na alma daquele que sabe – e, por isso, essas características da dialética
são tão importantes na investigação filosófica. Como a skepsis platônica nunca está
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dissociada de decorrências éticas na vida daqueles que a empreendem, a comunhão, o


falar o que se pensa, a concordância e as demais características apresentadas se tornam
importantes: elas indicam que a investigação está sempre relacionada com o que as
pessoas realmente pensam e como elas levam suas vidas.
Annas também irá tratar desse aspecto da dialética – ela ser um processo de
investigação que ocorre por meio de perguntas e respostas –, dizendo que, em primeiro
lugar, temos aparentemente uma contradição quando dizemos que dialética possa ser a
capacidade de dar e receber um logos e, ao mesmo tempo, ela ser o movimento de se
virar para a luz, saindo das trevas. É que a primeira posição implica necessariamente a
linguagem e, na segunda, utilizando as imagens visuais da caverna e do sol, temos uma
descrição do conhecimento como uma apreensão direta do objeto conhecido, e não
mediado pela linguagem. Annas afirma que aparentemente há uma distinção entre, por
um lado, o processo de conversão e apreensão imediata das idéias suposto pelas
imagens visuais que Platão usa e, por outro lado, a fala essencial ao processo de diálogo
presente na idéia de dialética164.

163
ROBINSON. Op. cit., p. 81 “Não há nos escritos de Platão nenhuma resposta satisfatória para a
questão ‘Por que a pergunta-e-resposta é essencial para descobertas?’. Robinson vai defender que Platão,
mesmo sendo tão fortemente influenciado pelo caráter destrutivo do elenkos socrático, nunca ficou
completamente contente com isso e propõe, em sua dialética, um lado construtivo na investigação
filosófica.
164
Annas, p. 283.
181

A própria Annas responde que essa interpretação que vê uma confrontação entre
a noção verbal e visual do conhecimento dialético está muito impregnada de noções
pós-cartesianas do conhecimento. Essa interpretação pensa o conhecimento como um
estado de ausência de dúvida e total certeza sobre a natureza do objeto, mas não é sobre
isso que Platão trata. Quando esperamos que o conhecimento seja um estado em que a
certeza é garantida, e quando Platão fala que há uma apreensão direta da idéia, não
compreendemos o porquê de ser requisitada ainda a conversa sobre o assunto. Uma
primeira interpretação – bastante famosa – para a resolução desse problema é que Platão
estaria falando de duas etapas do conhecimento dialético: em primeiro lugar, se discute
e conversa sobre o tema, e, então, o aprendiz vislumbra imediatamente a idéia. No
entanto, Annas vê problemas nessa interpretação, especialmente no que concerne à
procedência da certeza dessa visão: o que garantiria que alguém alcançou ou não a idéia
de bem após essa ou aquela conversa? Por que há certeza da correta compreensão em
determinado momento da conversa, e em outros ainda não?
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Annas vai procurar tirar a noção de certeza da interpretação do conhecimento


dialético de Platão, e propõe que a imagem visual para a captação do conhecimento seja
relativa à sua característica de ser imediata, ser completa e perfeita. “As metáforas
visuais enfatizam a imediatidade do conhecimento em questão; mas essa não é a
imediatidade da certeza, mas da completa e não mediada compreensão do assunto em
seus próprios termos [...]”. A apreensão imediata não exclui que possamos falar sobre o
que apreendemos: “Então, a descrição verbal e visual não se excluem; e Platão usa
ambas porque ambas são necessárias para sua concepção do que seja a verdadeira
filosofia.”165 Assim, de acordo com Annas, não há confronto entre essas duas formas de
compreender dialética, a visual e a verbal.
Robinson também critica o linguajar de Descartes para entendermos dialética em
Platão. O filósofo francês trata abundantemente da noção de método, mas de forma
bastante diversa daquela como Platão trata de dialética. Em primeiro lugar, não se pode
imaginar a dialética como um instrumento que pudesse ou não ser utilizado: a dialética
era o próprio proceder da filosofia, visto sob o aspecto metodológico166. Assim, por
exemplo, o que consideraríamos uma teoria lógica da cópula no Sofista, era considerado

165
p. 284
166
ROBINSON. Op. cit. p. 71. “Platão não separava dialética de filosofia como nós tendemos a separar,
digamos, lógica ou metodologia de metafísica. Dialética não era uma propedêutica para a filosofia. Não
era um instrumento que podia ou não ser escolhido para usar em filosofando. Ela era a própria filosofia,
somente considerada em seu aspecto metodológico.”
182

por Platão uma ontologia167. A dialética não era um conjunto de proposições – regras –
que deveriam ser aprendidas e seguidas de cor: ela nunca era mecânica. Robinson vem
bem ao encontro desta tese quando salienta que a dialética era mais considerada como
uma tekhne, uma prática, uma "arte" que era apreendida no uso. A dialética não era um
substituto do pensamento, como se o pensamento tivesse que se incorporar a um
procedimento previamente dado, que qualquer um pudesse segui-lo e que teria
confirmada a garantia de uma investigação correta. A citação que Robinson faz de
Campbell é lapidar nesse sentido, pois ele vai salientar que a dialética tinha aspectos de
inspiração, de divino e, com certeza, era a prática que a estimulava. Trata-se certamente
de uma "arte" viva na pessoa que sabe, que pressupõe uma experiência vital sobre o
assunto, e não apenas algo apreendido e seguido mecanicamente.

“Platão nunca concebeu, como alguns filósofos modernos fizeram, que um


novo método poderia aprimorar o intelecto, ou se tornar um substituto para a
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invenção. Ele nunca imagina uma forma de pensar separada do pensamento. Sua
dialética não é um órgão morto, mas uma inspiração, um dom divino, que pode ser
imperfeitamente descrita em palavras e, por um aprendizado oral, pode ser
acordada e estimulada em alguém de natureza filosófica, mas não pode ser de uma
vez por todas incorporada em um livro de aforismos ou em uma crestomatia.”168

Robinson concorda com isso e afirma algo que poderia servir como outra
epígrafe a este capítulo: “Dialética é uma habilidade a ser adquirida, muito mais que um
corpo de proposições a ser aprendido.”169 O método filosófico não pode estar insulado
do próprio fazer filosófico, não é algo que se tem antes de fazer. Trata-se, de um ângulo
mais específico, da afirmação que vínhamos fazendo desde o início desta tese, de que
não se pode pensar o filosofar em Platão separado de uma forma de viver, algo estanque
e distante de habilidades inatas que podem ser desenvolvidas. Assim, Robinson conclui
que:

“Platão não pensa o trabalho do filósofo ou do dialético como uma


construção ou a acumulação de algo exterior a ele mesmo, mas como a alteração de
sua própria personalidade de modo fundamental, como algo construtor de caráter. A

167
ROBINSON. Op. cit. p.72.
168
Campbell, The Sophistes and Politicus of Plato, xi, apud, ROBINSON. Op. cit. p. 73.
169
ROBINSON. Op. cit., p. 74.
183

natureza de tal alteração é vagamente indicada pela frase ‘se tornar sábio’. Por isso
é que ele freqüentemente insiste no treinamento da alma (exemplo, yuch'"
paivdeusi", Fedro 241c), e é por isso que ele afirma que devemos avaliar ‘a busca
da habilidade de dividir de acordo com as formas’ acima do conhecimento obtido a
partir daí, e que o mais importante é se tornar mais capaz de descobertas
(euJretikwvtero", Político 286d-287a).”

Com isso, nos parece bastante claro como a dialética, mesmo sendo um processo
racional, afastado da sensibilidade, e que investiga a essência (o{ e[stin aujto; ) das coisas
através de conversas com perguntas e respostas, é também uma habilidade que
pressupõe e produz uma transformação vital dos que a empreendem.
Porém, a descrição principal da dialética nessa passagem específica do livro VII
da República se faz pela contraposição às matemáticas, especialmente lembrando a
analogia da linha dividida170 para descrever a função e o método de apreender seus
objetos correspondentes. Como já foi dito na analogia da linha, a afecção psíquica
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(paqhvmata ejn th'/ yuch/' , 511d) correspondente aos entes matemáticos é a dianoia, já a
apreensão das idéias são noesis. A imagem que Sócrates usa em 533b-c descreve a
dialética também em contraposição às outras formas de conhecer. Ele diz que o
conhecimento do mundo sensível e também as matemáticas há pouco analisadas, todos
eles estariam dormindo em relação ao estar desperto da dialética: só esta última toca o
que cada coisa é nela mesma, só através da dialética é que realmente tocamos no ser (to
on, 534b, ousia) de cada coisa. O conhecimento do mundo sensível, correspondendo à
parte mais inferior da linha (se imaginarmos uma linha na vertical e o lado do sensível
ficar para baixo), só tem acesso à geração (geneseis) e às coisas compostas (syntheseis).
As matemáticas, por sua vez, também estão sempre se apoiando no sensível para
construir suas deduções e conhecimentos. Além disso, elas ainda utilizam hipóteses que
não podem dar um logos sobre elas mesmas. A crítica é que se o ponto de partida não é
verdadeiramente sabido, as deduções que se extraem daí também não serão
perfeitamente encadeadas de sentido. Assim, ele parece resumir nas seguintes palavras a
força de conversão intelectual da dialética.

“Não é verdade, eu disse, que somente o método dialético (hJ dialektikh;


mevqodo") caminha dessa maneira, jogando fora as hipóteses, indo sobre o princípio

170
509d-511e.
184

ele mesmo (ejp ; aujth;n th;n ajrchvn) para que seja confirmado; e verdadeiramente,
quando o olho da alma está submerso no lodo barbárico171, a dialética gentilmente
puxa e conduz para cima, utilizando aquelas ciências que descrevemos como
companheiras e ajudantes na conversão (sumperiagwgoi'") [...]”

A descrição principal, portanto, ao se contrapor a dialética às outras formas de


conhecer, é o fato de ela ir para o fundamento das hipóteses, de ela partir das hipóteses
para procurar o que as fundamenta, sem se apoiar em nada estabelecido que não tenha
análise e prova.

4.7. CONCLUSÃO

Esta tese defende que a transmissão de conhecimento filosófico de Platão


pressupõe uma experiência pessoal que transforme existencialmente a postura do
homem perante sua vida. Tal experiência denominamos de vital por ter que perpassar
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todos os âmbitos da vida de um indivíduo. Nesse sentido, deveríamos encontrar, no


próprio método platônico de ensinar filosofia, elementos que indiquem essas
características vitais. Finalmente, neste capítulo, analisamos o aspecto metodológico da
filosofia platônica em seus próprios termos: descrevemos a parte central da República,
em que Platão apresenta o processo de aprendizado superior que vai possibilitar a certos
homens especiais ter habilidade tanto de contemplar as verdades – tarefa designada ao
filósofo – quanto de comandar a cidade – tarefa do governante. A partir da imagem da
linha dividida, da alegoria da caverna e da descrição da educação superior, percebemos
o quão dependente da racionalidade é a proposta pedagógica do rei-filósofo. No entanto,
o aspecto de conversão espiritual – termo central de descrição da transformação operada
pela educação superior da República – nos apresenta o lado existencial e vital de tal
educação, possibilitando-nos afirmar a seguinte frase, resumo do presente capítulo: a
educação do filósofo na República, mesmo sendo solidamente baseada em aspectos
estritamente intelectuais e racionais, não permite a separação entre a investigação
filosófica sobre a verdade e a postura concreta e viva do indivíduo perante o mundo em
que vive. Dessa forma, a educação racional do filósofo pressupõe uma experiência vital
que transforme sua vida, para que ela fique de acordo com as descobertas realizadas
pela filosofia.

171
De acordo com Shorey, trata-se de uma referência aos mitos órficos, que diziam que a alma estava
enterrada nos corpos enquanto estamos vivos. Shorey, tradução e notas da República, Loeb, p. 204.
185

Para descrevermos essa necessidade de uma vivência pessoal e profunda do que


se investiga filosoficamente, isto é, a necessidade de que a investigação racional
operada por meio de perguntas e respostas – a dialética – seja também um aprendizado
de transformação vital – uma conversão espiritual –, apresentamos neste capítulo os
seguintes aspectos:
1) O processo de intelecção das verdades em Platão não está separado de
elementos vivenciais que estruturam e coordenam a vida, e, assim, o dianoeisthai
platônico somente pode ser entendido como um paskhein.
2) A filosofia não pode operar apenas por meio de constrangimento racional, ela
deve almejar, por fim, a produzir uma persuasão completa da alma. Assim, Gláucon e
Adimanto, mesmo depois de terem sido obrigados, junto com Trasímaco, no livro I, a
ficarem calados por falta do que responder ao encaminhamento que Sócrates impôs à
conversa, apresentam novos problemas que os afligem e não lhes permitem estar
totalmente convencidos da justeza da proposta de Sócrates. A refutação puramente
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racional ainda não operou totalmente o aprendizado filosófico platônico.


3) Depois dessas duas partes, procuramos acompanhar a descrição do processo
de conversão já exposto pela alegoria da caverna, e que agora ganha mais detalhes e
argumentação com a descrição das matemáticas e da dialética como acabamento da
educação superior dos guardiães.
4) Ao descrevermos tanto a alegoria quanto os primeiros sinais de que ela será
interpretada como uma conversão espiritual, surge a supremacia da idéia de Bem e se
faz necessário trabalharmos tal noção em relação à religiosidade que poderia estar ali
implicada. Deixando de lado se tal aspecto é relevante ou não para a correta
compreensão da educação superior dos guardiães, a importância do tema – pelo menos
na bibliografia secundária – mostra que o aspecto vital de tal conversão para o Bem é
tão marcante que nos leva ainda a perguntar sobre a relação que a educação superior
teria com uma disciplina intimamente ligada a processos de transformação pessoal,
como é o caso da religião.
5) Acompanhando mais de perto a descrição de como as matemáticas produzem
a conversão da alma – fazendo com que ela saia do mundo da sensibilidade para o
mundo do intelecto –, procuramos mostrar como esse processo é ao mesmo tempo vital
e racional, como também será a dialética.
6) Por fim, analisamos alguns aspectos da noção de dialética na República e na
obra de Platão, procurando mostrar que, mesmo que ela seja estritamente um processo
186

racional, ela nunca deixa de ter também seu aspecto vivencial e de transformação
pessoal.
Com isso, acreditamos ficar claro o quanto a proposta de transmissão de
conhecimento filosófico platônico pressupõe um processo de experiência vital em que
os indivíduos são transformados em suas próprias vidas.
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Conclusão

A partir de certos aspectos dos escritos de Platão, podemos concluir que a


filosofia era entendida por ele como uma prática que visava primeiramente a uma
transformação profunda e pessoal dos que a investigavam. Filosofar era, acima de tudo,
buscar com todo o seu ser melhorar a própria vida. Nesse sentido, é impossível
encontrar em Platão uma proposta filosófica que seja unicamente um aprimoramento da
parte racional da alma e não vise à melhoria de sua totalidade. Do mesmo modo,
filosofar não pode ser entendido como construção e defesa de teorias abstratas que não
remetam diretamente a uma transformação ética. O processo filosófico em Platão não é
insulado da vida que vive o filósofo e, por isso, o próprio processo é, em si mesmo, uma
condução da alma. Essa condução, chamada de dialética na República, é uma conversão
da alma, que intenta inscrever nela o logos apropriado. Com isso em mente, a filosofia
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platônica deve ser entendida como uma experiência vital, pois é apenas através de uma
transformação pessoal e profunda que se efetiva a compreensão filosófica.
A partir da pesquisa apresentada nesta tese, pode-se perceber quatro aspectos da
filosofia de Platão que corroboram essa visão da filosofia. Esses quatro aspectos
formaram os quatro capítulos desta tese: a importância da noção de psicagogia para a
filosofia, presentes na poesia (cap. 1) e na retórica (cap. 2), as críticas à escrita (cap. 3) e
a noção de dialética como conversão (cap. 4).
A noção de psicagogia, central nas práticas poéticas e retóricas da época de
Platão, é fundamental para compreendermos o poder de convencimento que deve ter o
processo filosófico, caso ele queira inscrever na alma humana um logos específico. Tal
noção e a força educativa decorrente encontravam-se, na Grécia Clássica, ligadas aos
poetas e aos homens da retórica. A partir do momento em que defendemos que há uma
continuidade da noção de psicagogia dessas disciplinas para a da filosofia, é necessário
analisar qual a posição que Platão assume frente a elas.
No primeiro capítulo, percebemos que Platão não erradica completamente a
poesia de sua república ideal, como também não afirma que nenhum aspecto da poesia
deve estar presente na filosofia. Pelo contrário, Platão parece dar tanta atenção à poesia
e à sua forma de educar os gregos exatamente porque ela exerce um poder sobre os
homens que também a filosofia terá que exercer. Vimos que esse poder psicagógico da
poesia provém da identificação entre os ouvintes e a história relatada, forjando a alma
188

em um molde específico. A própria filosofia deve se encarregar de que esse molde seja
adequado aos ditames da razão, e a poesia que produzir esse molde torna-se parte da
primeira educação dos filósofos na República, junto com a ginástica adequada. Ainda
no primeiro capítulo, vimos como a crítica aos poetas no livro X da República não
rejeita o aspecto psicagógico da poesia. Fizemos a distinção entre aquilo que a poesia
ensina e o modo como ela transmite, realçando que Platão critica a primeira, mas nunca
a segunda. Dessa forma, confirmamos nossa tese de que o aspecto de condução da alma
da poesia, a psicagogia, deve também estar presente na filosofia. Por fim, tratou-se da
identificação do filósofo como um amante de espetáculos, e afirmamos que, se o
filósofo é tão facilmente identificado com um apaixonado por espetáculos, há algo nas
festas teatrais que qualificam claramente o que seja o processo filosófico. O filósofo é
um amante de espetáculos, no entanto, os espetáculos são da verdade. Isso indica que
não se pode tão facilmente separar a filosofia da experiência psicagógica que há na
poesia grega.
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O segundo capítulo lida também com essa mesma condução da alma, só que
analisa o modo como ela aparece na retórica. A partir do Górgias e do Fedro,
percebemos que há um tipo de retórica que não é desprezado por Platão, mas, pelo
contrário, é incorporado na noção de filosofia. No Górgias, mesmo com todas as críticas
à arte da persuasão, aparece a noção de bom retórico, indicando que há um aspecto da
retórica que é essencial para a filosofia. No Fedro, vemos, com todas as letras, a
dialética ser identificada com a retórica e compreendemos a importância da noção de
kairos para a filosofia. A filosofia não deve ser compreendida como um conjunto de
aforismos que podem ser despejadas sobre um aprendiz. Antes, ela apenas pode ser
efetivada, isto é, ela apenas pode conduzir efetivamente uma alma, caso ela ocorra em
seu momento adequado, cuidando para que os discursos sejam adequados às almas em
diálogo. Assim, afirmamos que o aspecto psicagógico da retórica grega era essencial
para que a filosofia se efetivasse de modo rigoroso, isto é, para que ela fosse uma
experiência vital, que transformasse a vida daqueles que a investigam.
O terceiro aspecto que corrobora a presente tese trata da crítica de Platão à
escrita. No terceiro capítulo, afirmamos que há uma supremacia do modo existencial de
compreender um tema filosófico sobre os discursos, escritos ou orais, que tratam do
tema. Na Carta VII, temos claramente uma indicação de que a filosofia se faz por um
processo, longo e gradual, que leva o aprendiz a incorporar um determinado tema em
sua vida. A verdade de tal tema surge como uma luz dentro de sua alma, e é aí que
189

devemos procurar pelo verdadeiro conhecimento filosófico. Ao encontro disso, temos o


trecho do Fedro que lida com a escrita. Ali temos a afirmação que é no “logos inscrito
na alma daquele que sabe”1 que se encontra o conhecimento, e não na letra escrita.
Talvez essa seja a formulação mais lapidar que dá conta do aspecto vivencial da
filosofia platônica, isto é, que ela é um processo de inscrever em uma alma um logos
determinado. Apresentam-se nessa formulação as duas características do termo
experiência vital: que a filosofia deve ser um processo pessoal e profundo. Pessoal, pois
se trata de inscrever o logos em uma alma específica, levando em conta todas as suas
singularidades, como o seu kairos. Profundo, pois estamos falando do logos filosófico,
o logos daquele que sabe, e, por isso, falamos dos assuntos mais importantes.
Por fim, temos que o processo filosófico exposto na República – a dialética – é
descrito como uma conversão, um movimento de sair das trevas do devir rumo à luz do
mundo inteligível. Nesse sentido, as características dos diálogos, apontadas por
comentadores, que aproximam a filosofia de Platão de aspectos religiosos, vêm ao
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encontro dessa tese. Tais características salientam o aspecto existencial da filosofia


platônica, já que a religiosidade está sempre ligada a uma vivência e não pode ser
compreendida como algo puramente abstrato. O fato de a dialética ser uma conversão
impossibilita uma leitura puramente racional do processo filosófico. Deve-se
compreender que tal processo leva em conta a totalidade da alma humana, mesmo
lidando diretamente apenas com argumentos racionais. A filosofia não pode ser um
processo de constrangimento racional, que apenas obrigue racionalmente o ouvinte a
aceitar fatos que não fazem parte de sua realidade. O dianoeisthai platônico, o processo
de pensar, deve ser também um paskhein, uma afecção que mova o todo da alma
humana.
A tese tem como objetivo afirmar que os escritos de Platão visam uma
experiência vital filosófica no leitor, pois não se pode pensar na filosofia platônica sem
pensar também em uma transformação pessoal e profunda naqueles que a investigam.
Mesmo salientando o aspecto vital da filosofia de Platão, a tese não perde de vista que a
empreitada filosófica tem como seu guia mestre o logos e a faculdade que lhe é
correspondente, o logistikon. Nesse sentido, trata-se de salientar, como faz esta tese,
quais são essas características vitais que deve ter a filosofia e como é que elas se
adaptam ao projeto racional de Platão.

1
2716a-b
Regras utilizadas na presente tese
para transliteração

a a n n
b b x ks
g g o o
d d p p
e e r r
z dz s s
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q th t t
h e u y
i i f ph
k k c kh
l l w o
m m

Regra geral: Quando os termos em grego aparecerem soltos, singulares ou como


expressões, vamos apresentá-los transliterados para a compreensão também
daqueles que não têm conhecimento do grego. Quando a citação for maior, e por
isso mesmo apenas tendo valor para quem souber o grego, aparecerá em
caracteres gregos.
Obs.1: O gama antes de consoante, tendo som nasal, é transliterado por "n".
Obs.2: Nenhuma palavra transcrita do grego será acentuada.
Obs.3: O iota subscrito aparecerá adscrito na transliteração, p.ex.: tei aletheiai,
th/' ajlhqeiva./
191

BIBLIOGRAFIA

BIBLIOGRAFIA PRIMÁRIA
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Jonathan Barnes, 2 vols., Princeton, Princeton University Press, 1984.
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