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Tese de Doutorado
Volume II
Rio de Janeiro
Abril de 2011
Dionísio Oliveira Soares
Ficha Catalográfica
CDD: 200
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À minha amada esposa, Cynthia, e aos meus filhos Isaque, Daniel e Ágatha, pela
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Ao Dr. John J. Collins e à Drª. Adela Yarbro Collins, da Yale Divinity School,
pelo acolhimento, orientação segura, confiança e aulas ministradas.
Aos amigos Sílvio Simões, Jorge Leite, Ana Valdez e Kimberly Mines, com suas
respectivas famílias, cujo apoio durante a minha jornada no exterior foi
inestimável; que a eternidade os retribua.
Resumo
Palavras-chave
It is well known that the legacy of the Persian culture in the Jewish post-
exilic period cannot be despised, mainly in the end of this period, just when the
apocalyptic literary genre was flourishing. This thesis analyzes the individual
resurrection regarding to the possible relationships between the Persian religion
and the intertestamental Judaism, as well as the Early Christianity. So, the work
begins by reviewing the origins and development of apocalyptic phenomenon.
Then, it focalizes on the literary links that could reveal the connections between
Persian and Jews: the tradition of the Old Avesta (notably the Yasna 30:7 and the
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Yasht 19:11.89) is collated with the text of Daniel 12:1-3. Afterward, the possible
connection between Daniel 12:1-3 and Matthew 27:51b-53 takes place. The aim of
this work is to ascertain the extent to which the text of Daniel would reflect a
development within the Judaism based on the apocalyptic Iranian features. After
this, verify the extent to which the origin of the tradition revealed by the Matthean
pericope would reflect the individual resurrection from the tradition of Daniel. In
spite of the own features of each text, the contact points are quite likely from the
social setting, literary gender and the aim of the texts, mainly between Daniel and
Matthew. The Matthew’s pericope would reveal a tradition drawn from danielic
tradition, where the resurrection was seen as a reward to the Jews who died
because of the divine righteousness. Like the editor of the text in Daniel, the
evangelist reveals a community in conflict, now with the formative Judaism. His
community presents a belief in a messianic kingdom that meets the expectation of
an eschatological era that begins with the death and resurrection of Jesus Christ.
Keywords
1. Introdução 18
7. Conclusão 332
AT ̶ Antigo Testamento
aufl. ̶ Auflage (edição)
ausg. ̶ Ausgabe (edição)
BASOR ̶ Bulletin of the American Schools of Oriental Research
BCE ̶ Before the Common Era
Bd. ̶ Bundahishn (Grande)
BEThL ̶ Bibliotheca Ephemeridum Theologicarum Lovaniensium
BHS ̶ Bíblia Hebraica Stuttgartensia
Bib ̶ Biblica (Roma)
BibInt ̶ Biblical Interpretation
BJ ̶ Bíblia de Jerusalém
BR ̶ Biblical Research
2Br ̶ 2 Baruque
BS ̶ Bibliotheca Sacra
BSOAS ̶ Bulletin of the School of Oriental and African Studies
BYt. ̶ Bahman Yasht
CAH ̶ The Cambridge Ancient History
CBQ ̶ The Catholic Biblical Quarterly
Cf. ̶ Conferir, conforme, comparar, confrontar
CHCL ̶ The Cambridge History of Classical Literature
CHI ̶ The Cambridge History of Iran
CHJ ̶ The Cambridge History of Judaism
col. ̶ coluna
Coord. ̶ Coordenador
CQ ̶ The Classical Quarterly
CgQ ̶ The Congregational Quarterly
CurBS ̶ Currents in Biblical Research
3d ̶ Third edition
d.C. ̶ depois de Cristo
DEB ̶ Dicionário Enciclopédico da Bíblia
DITAT ̶ Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento
DITNT ̶ Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento
Dk. ̶ Dinkard
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n. ̶ nota
NCB ̶ A New Concordance of the Bible
2nd ̶ second (edition, impression)
Neotest ̶ Neotestamentica
NIB ̶ The New Interpreter’s Dictionary of the Bible
NLH ̶ New Literary History
NovT ̶ Novum Testamentum
NT ̶ Novo Testamento
NTA ̶ New Testament Apocrypha
NTG ̶ Novum Testamentum Graece
NTS ̶ New Testament Studies
NVI ̶ Nova Versão Internacional
Op. cit. ̶ Opus citatum (obra citada na mesma página da tese ou na
página anterior)
Org. ̶ Organizador, organizadores
O. Sal ̶ Odes de Salomão
OTP ̶ The Old Testament Pseudepigrapha
p. ̶ página (s)
par. ̶ paralelos (textos)
pass. ̶ passivo
passim ̶ aqui e ali (citado em vários lugares da mesma obra)
pes. ̶ pessoa
PIBA ̶ Proceedings of the Irish Biblical Association
pl. ̶ plural
PR ̶ Pálavi Rivayat que Acompanha o Dadestan î Denig
PRSt ̶ Perspectives in Religious Studies
4Q491 ̶ Manuscrito da quarta gruta de Hirbet Qumran
QH ̶ Qumran Hodayot
QR ̶ Quarterly Review
RB ̶ Revue Biblique
RBI ̶ Rivista Biblica Italiana
3rd ̶ third (edition)
repr. ̶ reprinted, republicado (em)
rev. ̶ revista, revisada, revised
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WZ ̶ Wizidagiha î Zadspram
Y. ̶ Yasna
Yt. ̶ Yasht
ZAW ̶ Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft
ZThK ̶ Zeitschrift für Theologie und Kirche
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KaiV taV mnhmei~a a*newv/cqhsan kaiV pollaV swvmata tw~~n kekoimhmevnwn a&givwn
h*gevrqhsan
E os sepulcros foram abertos, e muitos corpos dos santos que haviam dormido se
levantaram.
Mateus 27,52
1. Introdução
partir da morte está presente já nas mais antigas civilizações, moldando ideias que
foram se adaptando a novas formas de conceber a questão. Pelo estudo da História
Comparada das Religiões, sabe-se hoje que Israel, desde sua formação, não foi
uma espécie de povo santo, isolado das demais nações em termos políticos e só-
cio-culturais; ao contrário, ele interagiu com esses povos assimilando conceitos e,
muitas vezes, adaptando-os. O javismo, por si só, estabeleceu seus pressupostos,
inclusive éticos, com conotações positivas ou negativas, a partir do contato com a
cultura e o imaginário religioso de seus vizinhos e predecessores. Alguns autores
admitem que os antigos israelitas, ao registrarem seus textos, não estavam tão pre-
ocupados com o futuro no pós-morte; seu interesse se concentrava principalmente
na vida presente, focando seu relacionamento de fé com Iahweh, diferentemente
de seus vizinhos.1
Apesar disso, ao longo das Escrituras Hebraicas encontram-se textos que
remetem ao pós-morte, textos esses que merecem apreciação adiante, devendo ser
tratados individualmente. Para tanto, deve-se efetuar também uma análise das
concepções acerca do tema presentes na literatura dos predecessores e vizinhos de
Israel. A temática da vida no pós-morte envolve conceitos que não podem ser tra-
1
Cf., por exemplo, JOHNSTON, P. S. Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament,
p. 69: “A vida em si mesma era o ponto de partida e o foco da fé de Israel, ao passo que a morte e
suas consequências traziam pouca preocupação”.
19
tados de forma isolada, mas sim como parte integrante das sociedades e culturas
em que surgiram e se desenvolveram. O tema normalmente vem à tona no bojo do
fenômeno apocalíptico.
Quanto a esse fenômeno e sua expressividade, iniciou-se uma nova era na
pesquisa acadêmica desde a declaração de Ernst Käsemann de que a “apocalíptica
é a mãe de toda a teologia cristã”2 e o artigo de Wofhart Pannenberg sobre revela-
ção e compreensão histórica do judaísmo e cristianismo.3 Questões sobre defini-
ções, taxonomia e fenômenos que envolvem a apocalíptica se seguiram, com
Klaus Koch4, Hanson e Vielhauer5 e John J. Collins.6
Assim, todos esses trabalhos tiveram como auge o clássico Apocalypticism
in the Mediterranean World and the Near East,7 com trinta e três artigos divididos
em três seções: “The Phenomenon of Apocalypticism”; “The Literary Genre of
Apocalypses”, e “The Sociology of Apocalypticism and the ‘Sitz im Leben’ of
Apocalypses”. Os trabalhos nesta obra descreveram e analisaram quase todas as
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2
KÄSEMANN, Ernst. Die Anfänge christlicher Theologie. In: ZThK 57 (1960), p. 162-185; aqui
p. 180.
3
PANNENBERG, W. Dogmatische Thesen zur Lehre von der Offenbarung. In: Offenbarung als
Geschichte, p. 91-114.
4
KOCH, Klaus. The Rediscovery of Apocalyptic, 1972 (original alemão em 1970).
5
HANSON, Paul D. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological Roots of Early
Jewish Apocalyptic Eschatology, 1975 (2. ed. em 1979); VIELHAUER, Philipp. História da litera-
tura cristã primitiva: introdução ao Novo Testamento, aos Apócrifos e aos Pais Apostólicos, p.
513-555 (original alemão em 1975).
6
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination: An Introduction to Jewish Apocalyptic Literature,
1984 (2. ed. em 1998).
7
HELLHOLM, David (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East: Pro-
ceedings of the International Colloquium on Apocalypticism, Uppsala, August 12-17, 1979 (Se-
gunda edição ampliada com bibliografia complementar em 1989).
20
Mundial, assim como no primeiro século da Era Cristã (sob o domínio do Império
Romano) e também na época macabaica da história de Israel (II século a.C.).
Assim, vários fatores contribuíram para o renascer do interesse pela apoca-
líptica, como a disponibilidade de novos textos (por exemplo, os manuscritos en-
contrados em Qumran),8 o reconhecimento pelos teólogos em geral da importância
da apocalíptica no estudo teológico9 (ao contrário do pequeno valor dado ao tema
no século XIX), ajudando na compreensão não só da profecia do AT, mas também
dos Evangelhos e epístolas neotestamentárias, e a afinidade com o mundo moder-
no, em que incertezas, temores e tentativas de predizer o futuro, tudo calcado em
crises sociopolíticas e religiosas, lembram circunstâncias de escritos apocalípticos.
Atualmente se reconhece que a apocalíptica representa um desdobramento signifi-
cativo no judaísmo intertestamentário, sendo fator importante para a compreensão
do contexto histórico e teológico do NT, sobretudo em relação às crenças de teor
escatológico e messiânico.
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Uma das tendências nos estudos modernos é mudar o foco sobre a literatu-
ra apocalíptica: do papel de resistência cultural desempenhado pelos textos (enfo-
que dado do início da segunda metade do século XX até a década de 1980) para as
experiências visionárias descritas nos textos (da década de 1990 em diante). Não
se pode esquecer, porém, de que em muitos casos a experiência do visionário está
em conexão com a resistência cultural pretendida pelo autor do texto, como repre-
sentante de um grupo. Assim, a ênfase em enxergar a apocalíptica como literatura
de resistência tem, recentemente, ganhado proeminência de novo.
Russell foi um dos pioneiros em afirmar que o gênero apocalíptico “era,
essencialmente, um fenômeno literário que emergiu no judaísmo durante o domí-
nio do rei selêucida Antíoco Epífanes (175-163 a.C.)”.10 Sobre a designação do
gênero, ele assinala que:
A palavra “apocalíptico” é derivada do substantivo grego apokalypsis, que signi-
fica “revelação”. Entretanto, seu uso, com referência a esse gênero de literatura, é
devido com toda probabilidade não ao caráter revelatório dos livros em questão,
8
Nas análises que já foram feitas no material encontrado em Qumran, fica clara uma estreita afini-
dade entre essa comunidade e outros grupos apocalípticos que deram origem a esse material. No
caso de Daniel, por exemplo, foram encontrados pelo menos “sete manuscritos qumrânicos do li-
vro de Daniel, o que certamente acusa sua apreciação entre os membros da comunidade” (RUS-
SELL, D. S. Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica, p. 23). O mesmo ocor-
reu com outros livros do período intertestamentário, como o Livro dos Jubileus (fragmentos de
pelo menos dez manuscritos) e 1 Enoque (material de dez manuscritos aramaicos diferentes).
9
Além de E. Käsemann e W. Pannemberg, citados acima, pode-se acrescentar, dentre outros, Jür-
gen Moltmann.
10
RUSSELL, D. S. Apocalyptic: Ancient and Modern, p. 3.
21
mas preferivelmente ao fato de que eles têm muito em comum com o Apocalipse
do Novo Testamento, com seu linguajar esotérico, sua imaginação bizarra e seus
pronunciamentos relativos à consumação de todas as coisas em cumprimento das
promessas de Deus.11
11
Ibidem. Em nível corrente, palavras como “apocalipse” e “apocalíptica” são, modernamente,
encontradas em temas de novelas, filmes e até em jogos de computador, sempre envoltas em tra-
mas de indescritível terror e derramamento de sangue; nesse aspecto, resumem a ideia de “catástro-
fe absoluta” e “colapso total” da sociedade, indicando completa destruição do gênero humano e
devastação por guerra nuclear do planeta Terra. Afora isso, a apocalíptica tem uma mensagem que,
reinterpretada na forma dos modelos contemporâneos e culturais, pode ser de extrema relevância
para o mundo atual (Cf. RUSSELL, D. S. Desvelamento divino, p. 16).
12
CROSS, F. Moore. New Directions in the Study of Apocalyptic. In: FUNK, Robert W. (Ed.)
Apocalypticism, p. 157-165; aqui p. 159-160; GRABBE, Lester L. Poets, Scribes, or Preaches? The
Reality of Prophecy in the Second Temple Period. In: GRABBE, L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing
the End from the Beginning: The Prophetic, the Apocalyptic and Their Relationships, p. 192-215;
aqui p. 193-197.
13
STONE, M. E. On Reading an Apocalypse. In: COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H.
(Ed.). Mysteries and Revelations: Apocalyptic Studies since the Uppsala Colloquium, p. 65-78;
aqui p. 78.
14
COLLINS, J. J. Apocalyptic Literature. In: PERDUE, Leo G. (Ed.). The Blackwell Companion
to the Hebrew Bible, p. 432-447; aqui p. 432-437.
15
CHARLESWORTH, J. H. A History of Pseudepigrapha Research: The Re-Emerging Impor-
tance of the Pseudepigrapha. ANRW II.19.1 (1978), p. 54-88; Idem. The Old Testament Pseudepi-
grapha and the New Testament: Prolegomena for the Study of Christian Origins, p. 6-26; Di
TOMMASO, L. A Report on Pseudepigrapha Research since Charlesworth’s Old Testament Pseu-
depigrapha. JSP 12.2 (2001), p. 179-207.
22
ticism in the Dead Sea Scrolls and in the Biblical Tradition,20 mais especializada
do que as anteriores, e muitos de seus 23 artigos constituem um novo marco para o
estudo do tema.
O número de estudos ainda tem aumentado desde a última década do sécu-
lo passado, o que torna sua seleção inevitável. Como mais relevantes, além das
coleções indicadas acima, podem ser citados os seguintes: os artigos de Murphy e
de Decock21 possuem ampla abrangência; G. M. Nápole escreveu um longo artigo,
16
BEARDSLEE, W. A. New Testament Apocalyptic in Recent Interpretation. Int 25.4 (1971), p.
419-435; aqui p. 421.
17
COLLINS, J. J. (Ed.). Apocalypse: The Morphology of a Genre. Semeia 14 (1979), 221 p.
18
COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Op. cit. Vários de seus ensaios foram direcio-
nados a tópicos ignorados ou tratados apenas parcialmente no volume de Uppsala. Nesta obra, G.
Boccaccini abrange a contribuição dos autores italianos (Jewish Apocalyptic Tradition; The Con-
tribution of Italian Scholarship, p. 33-50).
19
McGINN, B; COLLINS, J. J.; STEIN, S. J. (Ed.). The Encyclopedia of Apocalypticism (3 v).
Embora alguns de seus artigos sejam tratados de forma maciça e mais abrangente no volume de
Uppsala, outros são direcionados a tópicos não explorados por aquela obra ou por Mysteries and
Revelations, além de atualizar e prover novos insights para o tema. O primeiro de seus três volu-
mes é intitulado The Origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity e inclui treze artigos
relevantes para a origem da apocalíptica no judaísmo e cristianismo. Na introdução geral, os edito-
res afirmam que mais incentivos financeiros foram destinados ao estudo do tema nas últimas três
décadas do que nos três séculos anteriores (p. ix, v. 1).
20
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino (Ed.). Wisdom and Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls
and in the Biblical Tradition, 2003.
21
MURPHY, F. J. Apocalypses and Apocalypticism: The State of the Question. CurBS 2.1 (1994),
p. 147-179; DECOCK, Paul B. Some Issues in Apocalyptic in the Exegetical Literature of the Last
Ten Years. Neotest 33.1 (1999), p. 1-33. Neste artigo Decock discute especialmente a questão da
definição do gênero apocalíptico.
23
22
NÁPOLE, G. M. Desarrollo y evolución de los estudios sobre “la apocalíptica”. EstBíb 59
(2001), p. 325-363.
23
OSWALT, J. N. Recent Studies in Old Testament Apocalyptic. In: BAKER, D. W.; ARNOLD,
B. T. (Ed.). The Face of Old Testament Studies: A Survey of Comparative Approaches, p. 369-390.
24
HOFFMANN, H. Das Gesetz in der frühjudischen Apokalyptik, p. 21-70.
25
WOODRUFF, A. M. Thirty Years of Near Neglect: Apocalyptic in Brazil. JSNT 25.2 (2002), p.
127-139.
26
CHRISTOPHERSEN, Alf. Die Begründung der Apokalyptikforschung durch Friedrich Lücke.
Zum Verhältnis von Eschatologie und Apokalyptik. KuD 47.3 (2001), p. 158-179.
27
KÖHN, A. Ernst Lohmeyer und die Apokalyptik. In: BÖTTRICH, C. (Ed.). Eschatologie und
Ethik im frühen Christentum: Festschrift für Günter Haufe zum 75 Geburtstag, p. 149-167.
28
STURM, R. E. Defining the Word “Apocalyptic”: A Problem in Biblical Criticism. In: MAR-
CUS, J.; SOARDS, M. L. (Ed). Apocalyptic and the New Testament: Essays in Honor of J. Louis
Martyn, p. 17-48; aqui p. 18.
29
MATLOCK, R. Barry. Unveiling the Apocalyptic Paul: Paul’s Interpreters and the Rhetoric of
Criticism, 1996.
30
LEWIS, Scott M. What Are They Saying about New Testament Apocalyptic?, p. 1-70.
31
KNIBB, Michael. Prophecy and the Emergence of the Jewish Apocalypses. In: COGGINS, R.;
PHILLIPS, A; KNIBB, M. (Ed.). Israel’s Prophetic Tradition: Essays in Honour of Peter R. Ack-
royd, p. 155-180.
32
SIM, David C. Apocalyptic Eschatology in the Gospel of Matthew (1996).
24
um enigma o motivo pelo qual os autores dos Manuscritos não usarem muito o
gênero apocalíptico, o qual era bem conhecido no período; apesar disso, os Ma-
nuscritos dão expressão a uma cosmovisão apocalíptica expressa em diferentes
gêneros.
Entretanto, durante muito tempo a tese da influência persa no judaísmo
pós-exílico foi rejeitada (e em parte ainda o é atualmente) tanto por especialistas
em judaísmo antigo quanto por especialistas na literatura iraniana, apesar de haver
fortes indícios advindos desses dois campos de estudo.35 Mais recentemente, espe-
cialistas na literatura iraniana se retiraram da discussão, e os especialistas no cha-
mado Judaísmo36 do Segundo Templo contentaram-se em assumir em notas intro-
33
HAHN, Ferdinand. Frühjüdische und urchristliche Apokalyptik: eine einführung, p. 13-139.
34
Cf. as evidências apresentadas em GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Apocalypticism in the
Dead Sea Scrolls. In: McGINN, B.J.; COLLINS, J.J.; STEIN, S.J. (Ed.). The Continuum History of
Apocalypticism, p. 89-111.
35
Cf. um tratamento geral do tema pela crítica antiga em DUCHESNE-GUILLEMIN, Jacques.
The Western Response to Zoroaster, p. 20-37. Mais recentemente, cf. YARSHATER, Ehsan. In-
troduction; Iranian Influences. In: CHI: The Seleucid, Parthian and Sasanian Periods, p. lxv-lxxv.
v. 3.1. Uma visão panorâmica da discussão encontra-se em WINSTON, D. The Iranian Component
in the Bible, Apocrypha, and Qumran: a Review of the Evidence, HR 5.2 (1966), p. 183-216, assim
como em: SHAKED, S. Iranian Influence on Judaism: First Century B.C.E. to Second Century
C.E. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Persian Period, p.
308-325. v. 1; BOYCE, M.; GRENET, F. A History of Zoroastrianism: Zoroastrianism under Ma-
cedonian and Roman Rule, p. 415-436.
36
Usamos o termo “judaísmo” na designação deste período histórico mas entendemos que, histori-
camente, não havia ainda um “judaísmo” no sentido que o termo adquiriu posteriormente. Assim, o
25
dutórias de suas obras que existiram “influências persas”, ignorando essas influên-
cias no corpo principal de suas pesquisas.
O número de especialistas em ambos os campos de conhecimento (Judaís-
mo do Segundo Templo com sua literatura, e Zoroastrismo ou história iraniana de
um modo mais geral) é, no entanto, extremamente reduzido. Tal fato fez com que
em muitas ocasiões as noções desatualizadas de um campo recebessem nova in-
terpretação no outro. Tais campos de estudo são diferentes em muitos aspectos.
Além de ser em número reduzido, a maioria dos especialistas na literatura
iraniana são linguistas ou especialistas em determinados aspectos da língua e cul-
tura pré-islâmica, e não especialistas na religião persa; seu interesse não é esse.
Pesa também o fato de eles trabalharem em um campo caracterizado por uma
grande escassez de fontes datáveis. Os acadêmicos da área bíblica, por outro lado,
não somente são em número muito mais numeroso como também trabalham em
uma área melhor documentada, mais propícia a questões de datação e localização
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Colloquium Biblicum Lovaniense (BEThL), editado por Van der Woude, com 30
papers das conferências organizados sob quatro títulos principais: bilinguismo e
versões gregas; questões de crítica literária, crítica da forma e da tradição; aborda-
gens literárias e sociológicas; questões gerais de história e história religiosa, além
de outros estudos;40 e o livro de Collins, da Série Hermeneia, o qual fornece um
levantamento abrangente das questões histórico-críticas no que concerne ao texto,
linguajar, composição, gênero, marco social e história da interpretação.41
Mais recentemente, Collins e Flint apresentaram em dois volumes trinta e
dois amplos ensaios divididos em oito seções: temas gerais; Daniel em seu ambi-
ente do Oriente Próximo; questões de interpretação de passagens específicas; am-
biente social; contexto literário (incluindo Qumran); recepção no judaísmo e cris-
42
tianismo; história textual; e a teologia de Daniel. Os ensaios introdutórios de
Collins e Knibb sumariam os temas abordados nos dois volumes.43
Outro trabalho recente digno de nota, dentre tantos outros, é o de W. E.
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Mills, o qual fornece uma bibliografia da pesquisa no século XX, importante para
a compreensão do texto e do background de Daniel.44 Mais de mil entradas estão
organizadas em categorias de citações bíblicas, citações temáticas e comentários.
Dentre os trabalhos antigos, não se pode deixar de mencionar, entre os
mais importantes, a obra de S. R. Driver, um dos pioneiros no tratamento acadê-
mico do livro de Daniel, com ampla introdução abarcando as questões históricas e
literárias e o comentário de todo o texto do livro,45 o comentário de R. H. Charles,
outro pioneiro,46 o livro de J. A. Montgomery, com ampla discussão acerca de
questões linguísticas e de crítica textual de todo o livro,47 e os importantes comen-
tários de Otto Plöger, N. W. Porteous, Mathias Delcor, André Lacocque, Hartman-
Di Lella, além de um comentário de Collins, mais antigo e muito menos abrangen-
te que o da Hermeneia. 48 Somam-se a isso diversos artigos especializados. A pes-
40
VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The Book of Daniel in the Light of New Findings (1993).
41
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel (1993).
42
COLLINS, J.J.; FLINT, P.W. (Ed.). The Book of Daniel: Composition and Reception (2001).2 v.
43
COLLINS, J. J. Currents Issues in the Study of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.).
Op. cit. p. 1-15; KNIBB, M. A. The Book of Daniel in Its Context. In: Ibidem, p. 16-35.
44
MILLS, W. E. Old Testament Series: Daniel (Bibliographies for Biblical Research, 20), 2002.
45
DRIVER, S. R. The Book of Daniel: With Introduction and Notes (1901).
46
CHARLES, R. H. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel (1929).
47
MONTGOMERY, J. A. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel (ICC),
1927.
48
PLÖGER, Otto. Das Buch Daniel, 1965; PORTEOUS, N.W. Daniel: A Commentary (1965);
DELCOR, M. Le livre de Daniel (1971); LACOCQUE, A. Le livre de Daniel (1976); HARTMAN,
27
quisa atual privilegia temas como a utilização do livro em tradições atuais, os gê-
neros literários no livro, os diferentes Sitzen im Leben, a história da interpretação e
questões ético-teológicas levantadas no livro.
Segundo Towner, “nenhuma discussão da autoria do livro pode estar isola-
da, sem atenção para a data e a ocasião histórica da escritura do livro. Entretanto,
em vez de pegar todos esses temas simultaneamente, a questão deve ser levantada
passo a passo”.49 Qualquer aspecto do livro de Daniel deve ser visto no todo que
envolve o livro. No presente trabalho, a importância de Daniel está no tema da
ressurreição individual seguida de um julgamento, o qual aparece pela primeira
vez no AT de forma clara em Dn 12,1-3. Para tanto, tornam-se importantes as
questões de datação, gênero e marco social.
Quanto ao fenômeno apocalíptico no NT, a cosmovisão apresentada por
esse fenômeno representou um papel extremamente importante no judaísmo hele-
nístico e cristianismo primitivo. Em outras épocas, o debate sobre o apocalipsismo
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L. F.; DI LELLA, A. A. The Book of Daniel (The Anchor Bible 23), 1978; COLLINS, J. J. The
Apocalyptic Vision of the Book of Daniel (1977).
49
TOWNER, S. W. Daniel, Book of. In: SAKENFELD, Katharine D. (Ed.). NIB, p. 15-23; aqui p.
17. v. 2.
50
BOERS, H. W. Apocalyptic Eschatology in I Corinthians 15: An Essay in Contemporary Inter-
pretation. Int 21.1 (1967), p. 50-65; FUNK, R. W. Apocalyptic As an Historical and Theological
Problem in Current New Testament Scholarship. In: Apocalypticism, p. 175-191. Käseman chega a
chamar a apocalíptica de mãe da teologia cristã primitiva (cf. adiante). Cf. ainda BULTMANN,
Rudolf. Ist die Apokalyptik die Mutter der christlichen Theologie? Eine Auseinandersetzung mit
Ernst Käsemann. In: Apophoreta. Festschrift für Ernst Haenchen zu seinem 70. Geburtstag am 10.
Dezember 1964, p. 64-69; MARSHALL, I. H. Is Apocalyptic the Mother of Christian Theology?
In: HAWTHORNE, G. F.; BETZ, O. (Ed.). Tradition and Interpretation in the New Testament:
Essays in Honor of E. Earle Ellis for His 60th Birthday, p. 33-42.
28
que afirma que Jesus era “um sábio não-apocalíptico”, pesquisa em campo seme-
lhante, mas do ponto de vista temático.56 Kloppenborg indaga pela razão do inte-
resse ou importância do apocalipsismo de Jesus, e em sua resposta encontra-se
uma análise à suposição implícita de que frequentemente o suporte para um Jesus
apocalíptico flui naturalmente a partir das fontes, ao passo que os argumentos con-
trários procedem necessariamente a partir de interesses ideológicos.57
No que tange à ocorrência do fenômeno nos Sinóticos, Rowland discorre
sobre os pontos de contato entre Mateus, a mística judaica e a tradição apocalípti-
51
ALLISON, D. C., Jr. The Eschatology of Jesus. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of
Apocalypticism, p. 267-302. v. 1.
52
Idem. Jesus of Nazareth: Millenarian Prophet (1998).
53
CORSANI, Bruno. L’Apocalisse e l’apocalittica nel Nuovo Testamento (1997).
54
EHRMAN, Bart D., Jr. Jesus: Apocalyptic Prophet of the New Millennium (1999). Outras obras
importantes e interessantes sobre o tema são: MILLER, R. J. (Ed.). The Apocalyptic Jesus: A De-
bate (2001), com artigos de Allison (fazendo a defesa de Jesus como profeta apocalíptico) e de
Borg, Crossan e Patterson (defendendo opinião contrária); mais recente, LAPORTE, Jean. Les
Apocalypses et la formation des idées chrétiennes (2005).
55
ALLISON, D. C., Jr. The Problem of Apocalyptic: From Polemic to Apologetics. In: KLOP-
PENBORG, J. S.; MARSHALL, J. W. (Ed.). Apocalypticism, Anti-Semitism and the Historical
Jesus: Subtexts in Criticism, p. 98-110; aqui p. 98.
56
MILLER, R. J. Theological Stakes in the Apocalyptic Jesus Debate. In: Ibidem, p. 111-121; aqui
p. 111.
57
KLOPPENBORG, J. S. As One Unknown, without a Name? Co-opting the Apocalyptic Jesus.
In: Ibidem, p. 1-23. Este é um artigo reflexivo que deveria ser de leitura obrigatória para os estudi-
osos de ambos os lados da questão.
29
lecidos, ele argumenta que a escatologia apocalíptica paulina não pode ser reduzi-
da à concepção do apóstolo acerca da parousía e do fim, “mas abrange também a
sua compreensão do advento de Cristo, da morte e ressurreição”.66 Já Roetzel de-
lineia como o pensamento de Paulo solucionou tanto as tensões inerentes ao apo-
58
ROWLAND, C. Apocalyptic, the Poor, and the Gospel of Matthew. JTS 45.2 (1994), p. 504-
518.
59
HUMPHRIES-BROOKS, S. Apocalyptic Paranesis in Matthew 6.19-34. In: MARCUS, J.;
SOARDS, M. L. (Ed.). Apocalyptic and the New Testament: Essays in Honor of J. Louis Martyn,
p. 95-112.
60
COPE, O. L. “To the Close of the Age”: The Role of Apocalyptic Thought in the Gospel of Mat-
thew. In: MARCUS, J.; SOARDS, M. L. (Ed.). Op. cit. p. 113-124; SIM, David C. Apocalyptic
Eschatology in the Gospel of Matthew, especialmente p. 73-249.
61
HORSLEY, R. A. The Kingdom of God and the Renewal of Israel: Synoptic Gospels, Jesus
Movements, and Apocalypticism. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of Apocalypticism,
p. 303-344. v. 1.
62
BEASLEY-MURRAY, G. The Vision of the Mount: The Eschatological Discourse of Mark 13.
Ex Auditu 6 (1990), p. 39-52; DYER, K. D. “But Concerning That Day…” (Mark 13:32). “Pro-
phetic” and “Apocalyptic” Eschatology in Mark 13. SBLSP 38 (1999), p. 104-122; BIRD, M. Mis-
sion as an Apocalyptic Event: Reflections on Luke 10:18 and Mark 13:10. EvQ 76.2 (2004), p.
117-134.
63
YARBRO COLLINS, A. Messianic Secret and the Gospel of Mark: Secrecy in Jewish Apoca-
lypticism, the Hellenistic Mystery Religions, and Magic. In: WOLFSON, Elliot R. (Ed.). Rending
the Veil: Concealment and Secrecy in the History of Religions, p. 11-30.
64
Idem. Christian Messianism and the First Jewish War with Rome. In: HEMPEL, C.; LIEU, J. M.
(Ed.). Biblical Traditions in Transmission: Essays in Honour of Michael A. Knibb, p. 333-343.
65
De BOER, M. C. Paul and Jewish Apocalyptic Eschatology. In: MARCUS, J.; SOARDS, M. L.
(Ed.). Op. cit. p. 169-190; Idem. Paul and Apocalyptic Eschatology. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The
Encyclopedia of Apocalypticism, p. 345-383. v. 1.
66
Idem. Paul and Apocalyptic Eschatology. In: Ibidem, p. 379.
30
tula que, em sua concepção de “mundo espiritual”, Paulo não se baseou no back-
ground do apocalipsismo do Segundo Templo, e nem se ocupou em desmitificar
as ideias apocalípticas.73 Segundo ele, os paralelos mais próximos ao poder de
persuasão do linguajar paulino podem ser encontrados na filosofia platônica. O
background paulino, então, seria a filosofia grega.
Hall investiga a natureza apocalíptica da retórica em Gálatas,74 e G. Willi-
67
ROETZEL, C. J. Paul as Organic Intellectual: The Shaper of Apocalyptic Myths. In: HILLS,
Julian V. et al (Ed.). Common Life in the Early Church: Essays Honoring Graydon F. Snyder, p.
221-243.
68
TRONIER, H. Åbenbaring, himmelrejse og opstandelse hos Paulus. DTT 63.1 (2000), p. 36-63
(cf. a resenha em inglês sobre esse artigo em PETERSEN, A. K. JSJ 31.1-4 (2000), p. 459).
69
Idem. The Corinthian Correspondence between Philosophical Idealism and Apocalypticism. In:
ENGBERG-PEDERSEN, Troels (Ed.). Paul beyond the Judaism/Hellenism Divide, p. 165-196,
294-298; aqui p. 196.
70
RUDOLPH, Enno. Apokalyptik und Eschatologie: Endzeit und Zeitende in der Johannes-
Apokalypse und bei Paulus. In: Theologie, diesseits des Dogmas: Studien zur systematischen
Theologie, Religionsphilosophie und Ethik, p. 16-28; Idem. Politische Apokalyptik –
apokalyptische Politik. In: HOLZHEY, H.; KOHLER, G. (Ed.). In Erwartung eines Endes:
Apokalyptik und Geschichte, p. 113-128.
71
PENNA, R. Enochic Apocalypticism in Paul: The Idea of Sin. Henoch 21 (1999), p. 285-303.
72
SEGAL, A. F. Paul’s Thinking about Resurrection in Its Jewish Context. NTS 44.3 (1998), p.
400-419. Cf. também o estudo mais antigo de HAYS, R. B. “The Righteous One” as Eschatologi-
cal Deliverer: A Case Study in Paul’s Apocalyptic Hermeneutics. In: MARCUS, J.; SOARDS, M.
L. (Ed.). Op. cit. p. 191-215.
73
FORBES, Chris. Paul’s Principalities and Powers: Demythologizing Apocalyptic? JSNT 82
(2001), p. 61-88.
74
HALL, Robert G. Arguing Like an Apocalypse: Galatians and an Ancient Topos outside the
Greco-Roman Rhetorical Tradition. NTS 42.3 (1996), p. 434-453.
31
75
WILLIAMS, Guy. An Apocalyptic and Magical Interpretation of Paul’s “Beast Fight” in Ephe-
sus (1 Corinthians 15:32). JTS 57.1 (2006), p. 42-56.
76
MATLOCK, R. Barry. Unveiling the Apocalyptic Paul: Paul’s Interpreters and the Rhetoric of
Criticism, p. 23-340.
77
YARBRO COLLINS, A. The Book of Revelation. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia
of Apocalypticism, p. 384-414. v. 1. Ainda sobre a apocalíptica joanina, cf. COURT, J. M. The
Book of Revelation and the Johannine Apocalyptic Tradition (2000), KORNER, R. J. “And I
Saw”… An Apocalyptic Literary Convention for Structural Identification in the Apocalypse. NovT
42.2 (2000), p. 160-183; ARCARI, L. Apocalisse di Giovanni e apocalittica “danielico-storica” del
I sec. e.v.: prospettive per una “nuova” ipotesi. Vetera Christianorum 39.1 (2002), p. 115-132; e os
estudos mais antigos de AUNE, D. E. The Apocalypse of John and the Problem of Genre (p. 65-
96) e HELLHOLM, D. The Problem of Apocalyptic Genre and the Apocalypses of John (p. 13-64),
ambos em YARBRO COLLINS, A. (Ed.). Early Christian Apocalypticism: Genre and Social
Setting. Semeia 36 (1986). Cf. ainda, sobre a polêmica apocalíptica em Jo 8,38-47, VON
WAHLDE, Urban C. “You Are of Your Father the Devil” in its Context: Stereotyped Apocalyptic
Polemic in John 8:38-47. In: BIERINGER, R.; POLLEFEYT, D.; VANDECASTEELE-
VANNEUVILLE, F. (Ed.). Anti-Judaism and the Fourth Gospel: Papers of the Leuven Collo-
quium, 2000, p. 418-444.
78
VIELHAUER, P. Apocalyptic in Early Christianity. In: HENNECKE, E.; SCHNEEMELCHER,
W. (Ed.). New Testament Apocrypha, p. 608-642. v. 2 (1965, original alemão em 1964).
79
LEWIS, Scott M. What Are They Saying about New Testament Apocalyptic?, 2004.
80
SCHÜSSLER FIORENZA, E. The Phenomenon of Early Christian Apocalyptic: Some Reflec-
tions on Method. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the
Near East, p. 295-316; aqui p. 297.
32
81
HOLMAN, C. L. Till Jesus Comes: Origins of Christian Apocalyptic Expectation, p. 153-158. A
reinterpretação de antigas fontes para atender às necessidades da comunidade é um importante
aspecto abordado pelo presente trabalho em relação à comunidade mateana e ao ciclo daniélico (cf.
infra).
82
O estudo panorâmico de Fusco é digno de nota (cf. FUSCO, V. Apocalittica ed escatologia nel
Nuovo Testamento: tendenze odierne della ricerca. In: CANNOBIO, Giacomo; FINI, Mario (Ed.).
L’eschatologia contemporanea. Problemi e prospettive: atti del IV corso di aggiornamento per i
docenti di teologia dogmatica, Roma, 2-5 gennaio 1994, p. 41-80).
83
CHARLESWORTH, J. H. Ancient Apocalyptic Thought and the New Testament. In:
KRAFTCHICK, S.J.; MYERS, C.D., Jr.; OLLENBURGER, B.C. (Ed.). Biblical Theology: Prob-
lems and Perspectives in Honor of J. Christiaan Beker, p. 222-232; aqui p. 222.
84
MYERS, C. D., Jr. The Persistence of Apocalyptic Thought in New Testament Theology. In:
Ibidem, p. 209-221; 323-327.
85
ROWLAND, C. “Upon Whom the Ends of the Ages Have Come”: Apocalyptic and the Interpre-
tation of the New Testament. In: BULL, Malcolm (Ed.). Apocalypse Theory and the Ends of the
World, p. 38-57; aqui p. 40.
86
Idem. Apocalypse, Prophecy and the New Testament. In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R. D.
(Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 149-166.
87
YARBRO COLLINS, A. Cosmology and Eschatology in Jewish and Christian Apocalypticism
(1996).
33
no final do século XX. Mark A. Powell inicia sua análise da monografia de David
Sim (já citada neste trabalho como importante para o estudo da escatologia de Ma-
teus) com o seguinte comentário: “Chame isso de febre de milênio, se quiser, mas
o assunto até aqui negligenciado da escatologia de Mateus está subitamente rece-
bendo muita atenção”.92 Pela mesma época, “escatologia” foi o tema da SBL para
o estudo do Evangelho de Mateus (encontro de 1996) e uma série de trabalhos re-
lacionados ao tema foram publicados pouco tempo antes e depois do encontro.93
No entanto, desde a virada do milênio, a ênfase parece ter se esvaído um pouco.
Por um lado, pode ser que a forma básica da interpretação de Mateus no que tange
aos eventos finais quase não tem sido contestada, e nessa forma básica há pouca
88
AUNE, David E. Understanding Jewish and Christian Apocalyptic. Word & World 25.3 (2005),
p. 233-245; um estudo indicado especialmente para não-especialistas.
89
Idem. Transformations of Apocalypticism in Early Christianity. In: GRABBE, Lester L.;
HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 54-64.
90
MARSHALL, J. W. Apocalypticism and Anti-Semitism: Inner-Group Resources for Inter-Group
Conflicts. In: KLOPPENBORG, J. S.; MARSHALL, J. W. (Ed.). Apocalypticism, Anti-Semitism
and the Historical Jesus: Subtexts in Criticism, p. 68-82; aqui p. 81.
91
Para o tema da ressurreição no NT, a recente obra em homenagem a J. Lambrecht é de extremo
valor: BIERINGER, R.; KOPERSKI, V.; LATAIRE, B. (Ed.). Resurrection in the New Testament:
Festschrift J. Lambrecht (2002).
92
POWELL, M. A. Review of David Sim, Apocalyptic Eschatology in the Gospel of Matthew. JBL
117.3 (1998), p. 534-536; aqui p. 534.
93
Cf., por exemplo, ORTON, D. E. The Understanding Scribe: Matthew and the Apocalyptic Ideal
(1989); CHARETTE, B. The Theme of Recompense in Matthew’s Gospel (1992); BALABANSKI,
V. Eschatology in the Making: Mark, Matthew, and the Didache (1997); GIBBS, J. A. Jerusalem
and Parousia: Jesus’ Eschatological Discourse in Matthew’s Gospel (2000); e, mais recentemente,
WILSON, A. I. When Will These Things Happen?: A Study of Jesus As Judge in Matthew 21-25
(2004).
34
carrega o peso que é depositado sobre eles” e, se vier a ocorrer algum delonga-
mento, este pode ser entendido como sendo uma pequena demora.97
Por outro lado, ao passo que as publicações mais recentes tendem a assu-
mir que Mateus tem uma visão consistente acerca dos eventos do fim, parece ha-
ver um consenso bem menor sobre o que essa visão possa ser e sobre como resol-
ver as tensões na apresentação do evangelista. De fato, essa conciliação permane-
ce sem conclusão satisfatória, e os estudiosos do Evangelho de Mateus continuam
a busca por mais soluções. Como James Dunn observa, o próprio evangelho, em
sua forma final, parece estar “notavelmente impassível pela presença da tensão
presente/futuro em sua tradição”, fazendo declarações contraditórias aparentemen-
te “sem qualquer sinal de tensão” na acomodação dessas oposições.98
Em uma recente publicação, Ben Cooper intenta resolver esse conflito “tra-
tando o Evangelho de Mateus como uma narrativa convincente, isto é, uma narra-
tiva concebida para evocar uma resposta que se constrói a partir de seus leito-
94
HAGNER, D. Matthew’s Eschatology. In: SCHMIDT, T.E.; SILVA, M. (Ed.). To Tell the Mys-
tery: Essays on New Testament Eschatology in Honour of Robert H. Gundry, p. 49-71; aqui espe-
cialmente p. 65-66.
95
Ibidem, p. 66-68.
96
STRECKER, Georg. Der Weg der Gerechtigkeit: Untersuchung zur Theologie des Matthäus, p.
41-49.
97
SIM, David C. Apocalyptic Eschatology in the Gospel of Matthew, p. 148-177; aqui p. 151.
98
DUNN, J.D.G. The Significance of Matthew’s Eschatology for Biblical Theology. SBLSP 35
(1996), p. 150-162; aqui p. 151.
35
res”.99 Uma determinada escatologia deve ser lida em sua localização dentro do
enredo da narrativa e levar em consideração sua função naquele determinado pon-
to em questão. No caso de Mateus, a partir de uma ampla escatologia judaica se
adapta o presente progressivamente em uma escatologia cristã, tendo como influ-
ência a história mateana de Jesus; em uma escatologia que é tanto esperada quanto
efetivada, os eventos escatológicos do fim que se esperam são temporariamente
“resolvidos” em duas fases: eles são experimentados primeiramente em Jesus,
tendo Deus como principal agente escatológico, de tal forma a garantir que, poste-
riormente, esses mesmos elementos sejam experimentados da mesma forma por
seus seguidores.
A escatologia que envolve épocas de dificuldade próximas ao final dos
tempos estava já presente em Hesíodo e no zoroastrismo tardio com tradição bem
antiga.100 O Judaísmo do Segundo Templo também evidencia essa noção. Além de
Dn 12, o Livro dos Jubileus descreve um período em que as pessoas gozariam de
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um curto período de vida com aumento de tribulação e opressão (L. Jub 23,11-25),
após o que haveria um tempo de longevidade, justiça e graça (cf. 23,26-31). Isso
não implica que as expectativas fossem as mesmas em todas as ocasiões em que a
noção aparece. No Testamento de Moisés, que alguns estudiosos datam na época
de Antíoco IV, o autor revela uma “visitação e ira como não tem acontecido desde
o princípio até aquele tempo” (cf. T. Mos 8,1, o que lembra Dn 12,1 bem como Mt
24,21); no caso desse apócrifo, esse tempo parece ocorrer no presente momento,
mas será imediatamente seguido pelo Reino de Deus se manifestando por toda a
sua criação e pelo fim de Satanás e da tristeza (T. Mos 10,1). No Testamento de
Levi, a execução de “juízo sobre os filhos dos homens” é o tempo no qual “toda a
criação [estará] em dificuldades” e ocorrerá em algum tempo indeterminado no
futuro (cf. T. Lev 4,1).
Observa-se, entretanto, que não havia uma uniformidade na doutrina esca-
tológica do judaísmo tardio,101 falta de uniformidade que se dá também nas ideias
do judaísmo em geral e do cristianismo primitivo. O como essas noções escatoló-
99
COOPER, Ben. Adaptive Eschatological Inference from the Gospel of Matthew. JSNT 33.1
(2010), p. 59-80; aqui p. 60 (grifo do autor).
100
Cf. infra.
101
ALLISON, D. C., Jr. The End of the Ages Has Come: An Early Interpretation of the Passion
and Resurrection of Jesus, p. 25. Contra o consenso geral, Carson postula tese contrária, chegando
a afirmar que “há mais uniformidade nessa literatura do que parece haver” (cf. CARSON, D. A.
Summaries and Conclusions. In: CARSON, D.A.; O’BRIEN, P.T.; SEIFRID, M.A. (Ed.). Justifi-
cation and Variegated Nomism: The Complexities of Second Temple Judaism, p. 505-548. v. 1;
aqui p. 544).
36
histórico-críticos como aqueles que buscam entender o texto a partir de seus pres-
supostos, intenção e compreensão originais, bem como também as interpretações
sucessivas em seu processo de estabelecimento.107
Os textos primários utilizados neste trabalho são as edições críticas. Para o
texto dos Gathas, os que são considerados como sendo os melhores pela crítica
atual: o texto crítico de Jean Kellens e Eric Pirart, Les textes vieil-avestiques (3 v.,
1988-1991), e o texto de Helmut Humbach, P. O. Skjaervo e J. Elfenbein (Die Ga-
thas des Zarathustra, 2 v., 1959) traduzido para o inglês, The Gâthâs of Zarathus-
tra and the Other Avestan Texts (2 v., 1991). Esses textos foram cotejados com
traduções de Mary Boyce (Textual Sources for the Study of Zoroastrianism, 1990)
e a antiga tradução de L. H. Mills editada por F. M. Müller (SBE v. 31). Para os
demais textos do Avesta Posterior e os da tradição medieval foram usadas as edi-
ções críticas mais conhecidas. Pela extensão das escrituras zoroástricas, não foi
possível analisar de forma abrangente todas as ocorrências referências ao tema;
assim sendo, o trabalho se limitou aos textos considerados de maior importância
102
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja, p. 41 (grifo do au-
tor).
103
Ibidem.
104
Vale ressaltar que a crítica textual não faz parte do método (não é uma etapa): trata-se da fase
preliminar que estabelece o texto para nele se aplicar o método.
105
Ibidem, p. 40.
106
Ibidem, p. 43.
107
SIMIAN-YOFRE, H. (Org.). Diacronia: os métodos histórico-críticos. In: Metodologia do Anti-
go Testamento, p. 73-108; aqui p. 74-75.
39
108
ALAND, K.; ALAND, B. The Text of the New Testament: An Introduction to the Critical Edi-
tions and to the Theory and Practice of Modern Textual Criticism (2. edn. rev. eng., 1989).
40
ferência.
Nos casos em que foram feitas transliterações (especialmente de nomes
próprios e conceitos-chave nas narrativas), foram usadas, para os caracteres gre-
gos, as Normas de transliteração de palavras do grego antigo para o alfabeto la-
tino, adotadas pela Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos,109 e para os caracte-
res hebraicos a proposta do Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamen-
to.110 Para o texto do Avesta, tendo em vista não existir uma padronização acadê-
mica uniforme, optou-se pelas transcrições mais utilizadas pelos estudiosos.
Enfim, por fugir ao escopo e à extensão propostos neste trabalho, deixou-
se de realizar uma análise da aplicação teológica da mensagem de Dn 12,1-3 e de
Mt 27,51b-53 ao mundo contemporâneo, o que seria um importante complemento
ao tema tratado. Em princípio, a realização de tal análise chegou a ser pretendida
em um último capítulo, dada a relevância da mensagem de cada um deles. Entre-
tanto, longe de esgotar o assunto (o que, pelas suas próprias implicações vastas,
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seria impossível), esperamos que este trabalho incentive novos estudos do tema
junto à crítica histórico-literária e à exegese bíblica.
109
Cf. texto e comentários em MURACHCO, H. G. Língua grega, p. 40-42. v. 1.
110
JENNI, E.; WESTERMANN, C. (Ed.). Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento,
p. 20-22. v. 1.
2. O fenômeno apocalíptico: a expressividade pelo gênero
literário
Ele ainda chama a atenção para a cautela no uso dessa tríade como instru-
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Hanson usa o termo apocalipse para designar o gênero literário que pode
ser encontrado ao lado de outros gêneros, como o testamento, o oráculo de julga-
mento e de salvação e a parábola. O Apocalipse de João, nos seus dois primeiros
3
Cf. WEBB, Robert L. ‘Apocalyptic’: Observations on a Slippery Term. JNES 49.2 (1990), p.
115-126; aqui p. 119.
4
A literatura apocalíptica abrange, primeiramente, os escritos judaicos e cristãos compreendidos
ente 250 a.C. e 100 d.C., época em que esse tipo de literatura floresceu abundantemente, embora
traços dela possam ser encontrados em escritos anteriores e posteriores. Entretanto, a palavra “apo-
calíptica”, além de seu uso frequente como simples sinônimo para “cataclismo” na literatura mo-
derna, possui uma gama variada de nuanças e interpretações, ocasionando uma dificuldade óbvia
no estudo desse gênero (cf. RUSSELL, D. S. Apocalyptic: Ancient and Modern, p. 21). Assim, a
designação costuma abarcar, também, outros gêneros que fazem parte do mesmo ambiente (Idem.
Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica, p. 26).
5
HANSON, P. D. Apocalypse, Genre; Apocalypticism. In: CRIM, Keith (Ed.). IDBSup, p. 27-34.
Cf. também STONE, Michael. E. Lists of Revealed Things in the Apocalyptic Literature. In:
CROSS, F.M.; LEMKE, W.E.; MILLER, P.D., Jr. (Ed.). Op. cit. p. 439-443, e o panorama em
WEBB, Robert L. Op. cit.
6
HANSON, P. D. Apocalypses and Apocalypticism. Introductory Overview. In: FREEDMAN,
David N. (Ed.). ABD, p. 279-292. v. 1; aqui p. 279.
7
Ibidem.
43
versos, daria, como paradigma, os quatro pontos da estrutura típica desse gênero:
uma revelação que é dada por Deus; a transmissão se dá por um mediador; o re-
ceptor é um visionário; os temas tratados dizem respeito a eventos futuros.8 Seu
marco social também é tomado do livro do Apocalipse, em 1,19: esclarecer aos
eleitos aquilo que ainda há de acontecer, servindo então de coragem e conforto
numa época de opressão, com o intuito de manter a fidelidade deles. 9 Um exemplo
desse gênero se daria nos capítulos 7 a 12 do livro de Daniel. Hanson assevera que
os escritores utilizaram o gênero apocalíptico com considerável liberdade, adap-
tando-o aos seus propósitos, resultando numa diversidade de expressões. Assim,
um apocalipse não é necessariamente o gênero exclusivo numa obra assim classi-
ficada (é dominante na maioria dos casos), mas encontrado com muitos outros gê-
neros.
Por escatologia apocalíptica ele entende não um gênero, nem um movi-
mento sociorreligioso ou um sistema de pensamento, mas uma “perspectiva religi-
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osa”, uma cosmovisão, ou seja, “um modo de ver os planos divinos em relação
com realidades mundanas”, 10 não sendo exclusividade de uma religião ou grupo
político específicos, mas podendo ser adotada por diferentes grupos ou indivíduos
em diferentes épocas e diferentes níveis. Essa perspectiva concebe a ação salvífica
de Deus como uma realização para fora da ordem presente, caminhando para uma
ordem transformada e futura; essa nova ordem, diferentemente da escatologia dos
profetas do AT (os quais concebiam uma reabilitação da ordem presente), implica
necessariamente o fim da presente ordem pela sua destruição. O futuro é tomado
como contexto de julgamento e salvação eterna; nessa perspectiva acerca do futu-
ro, a escatologia apocalíptica “pode ser vista como uma continuação da escatolo-
gia profética”. 11
8
Na pesquisa, a expressão apocalíptica foi usada pela primeira vez para designar o gênero por
Friedrich Lücke (1791-1855); entretanto, de fato, a Igreja Cristã utilizou, a partir do II século, a
expressão “apocalíptica” para indicar todo escrito semelhante ao Apocalipse canônico, pegando
deste o nome para designar o estilo de escrever, ou seja, o gênero. Assim, além da função adjetiva,
a expressão é usada também como substantivo coletivo, podendo ainda designar tanto a “literatura
apocalíptica” quanto o conjunto de ideias que a produzir, ocasionando confusão no debate apoca-
líptico no correr dos anos. J. J. Collins apresenta três razões para esse uso indistinto do termo: o
uso do nome “apocalipse” para designar um amálgama de elementos literários, sociais e fenomeno-
lógicos; a falta de clareza no reconhecimento e na classificação desse gênero na Antiguidade (rotu-
lado como gênero somente a partir do Apocalipse neotestamentário), e o fato de os próprios apoca-
lipses judaicos abrangerem várias formas literárias distintas, como visões, preces, legendas, testa-
mentos e outros (COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 2-3).
9
HANSON, P. D. Apocalypse, Genre; Apocalypticism. In: CRIM, Keith (Ed.). Op. cit. p. 27.
10
Ibidem, p. 29.
11
Ibidem, p. 30. Isso não significa, entretanto, que essas duas escatologias, em essência, sejam a
44
mesma coisa (cf. HANSON, P. D. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological
Roots of Early Jewish Apocalyptic Eschatology, p. 11).
12
Idem. Apocalypse, Genre; Apocalypticism. In: CRIM, Keith (Ed.). IDBSup, p. 28.
13
Ibidem, p. 30 (cf. também The Dawn of Apocalyptic, p. 433).
14
Idem. The Dawn of Apocalyptic, p. 434-435.
45
15
Notem-se já anteriormente os comentários sobre este aspecto em GLASSON, T. F. What Is A-
pocalyptic? NTS 27.1 (1980), p. 98-105.
46
trar que havia um estilo apocalíptico em torno da virada da era, ou seja, o apoca-
lipse constituía tipo literário reconhecível, apesar do caráter complexo e de absor-
ver em si mesmo outros gêneros. A “apocalíptica” seria um termo coletivo indi-
cando “um movimento de mente” histórico, cujos motivos19 também seriam identi-
ficáveis, embora não tão fáceis como as marcas crítico-formais do apocalipse co-
mo gênero literário.
Segundo Koch, os motivos desses escritos seriam as condições existenciais
em termos da iminente convulsão em uma grande catástrofe cósmica como ápice
do curso predeterminado da história, em que desempenham papel importante os
“anjos das nações”. Após a catástrofe, os justos viveriam uma salvação paradisía-
ca que nasce no trono de Deus e se torna visível como “o Reino de Deus” sobre a
Terra ou como “a era vindoura” em contraposição a “era presente”; muitas vezes,
a redenção final está associada a “um mediador exercendo funções reais” e é des-
crita como “ressurreição gloriosa” que caracterizará a era vindoura no céu.
Koch identifica oito grupos de temas presentes nos escritos apocalípticos:
uma insistente expectativa de iminente destruição de todas as condições terrestres;
16
COLLINS, J. J. Prophecy, Apocalypse and Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester
Grabbe. In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning: The
Prophetic, the Apocalyptic and Their Relationships, p. 44-52; aqui p. 46.
17
KOCH, Klaus. The Rediscovery of Apocalyptic, p. 33.
18
Ibidem, p. 18-35.
19
O termo aqui, obviamente, usado no sentido da motivgeschichte (“história dos motivos”).
47
o fim através de uma imensa catástrofe cósmica; a relação entre o tempo do fim e
a história antecedente da humanidade e do cosmos; anjos e demônios; catástrofe
seguida por salvação; a entronização de Deus com a vinda de seu reino; o apare-
cimento de um mediador com funções reais; e a glória da era que virá. Ele acredita
que “os oito grupos temáticos que escolhi podem ser indicados para ser distribuí-
dos mais ou menos uniformemente por todos os diferentes apocalipses”.20
Em verdade, ele se baseia no critério de listas formais para determinar a
natureza da apocalíptica, propondo uma solução para o problema da definição ao
listar seis características formais e oito elementos idealizados, um procedimento
cuidadosamente refinado por ele e também por J. G. Gammie,21 severamente criti-
cado por Hanson e W. R. Millar.22 Estes últimos autores propõem substituir o mé-
todo de “lista formal” por um método “contextual-tipológico” construído sobre as
técnicas da crítica da forma e as tipologias de métrica poética (estrutura), tipo de
oráculo profético e continuidade escatológica.
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20
Ibidem, p. 33.
21
GAMMIE, John G. The Classification, Stages of Growth, and Changing Intentions in the Book
of Daniel. JBL 95.2 (1976), p. 191-204.
22
Cf. HANSON, P. D. Jewish Apocalyptic Against Its Near Eastern Environment. RB 78.1 (1971),
p. 31-58; MILLAR, William R. Isaiah 24-27 and the Origins of Apocalyptic, p. 1-9.
23
Cf. VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento, p. 546-552. v. 2.
24
Cf. MOWINCKEL, Sigmund. He That Cometh: The Messiah Concept in the Old Testament and
Later Judaism, p. 125-126.
48
tro”.25 A única coisa que Collins considera essencial nessa definição é a ideia de
um “fim definitivo”.26
Não deixa de ser útil também reiterar as definições de Collins,27 uma vez
que ele estabeleceu a definição que se tornou referência para o estudo posterior da
apocalíptica, e seus postulados continuam a ser os mais conhecidos e mais fre-
quentemente citados. Para ele, um apocalipse “não é constituído por um ou mais
temas distintivos, mas por uma combinação de elementos, os quais são encontra-
dos em outros lugares”.28 Collins define apocalipse como:
Um gênero literário de revelação com uma moldura narrativa, na qual uma reve-
lação é mediada por um ser sobrenatural a um receptor humano, revelando uma
realidade transcendente que é simultaneamente temporal, na medida em que prevê
a salvação escatológica, quanto espacial, na medida em que envolve outro mundo,
29
este sobrenatural.
25
COLLINS, J. J. Apocalyptic Eschatology As the Transcendence of Death. CBQ 36.1 (1974), p.
21-43; aqui p. 25 (repr. Seers, Sybils and Sages in Hellenistic-Roman Judaism, p. 75-97).
26
Ibidem.
27
Cf. o primeiro tratamento do tema pelo autor em COLLINS, J. J. Introduction: Towards the
Morphology of a Genre. In: Apocalypse: The Morphology of a Genre. Semeia 14 (1979), p. 1-20;
Idem. The Jewish Apocalypses. In: Ibidem, p. 21-59.
28
Idem. The Apocalyptic Imagination: An Introduction to Jewish Apocalyptic Literature, p. 8.
29
Idem (Ed.). Apocalypse: The Morphology of a Genre, p. 9; cf. também Daniel, with an Introduc-
tion to Apocalyptic Literature, p. 4, e The Apocalyptic Imagination, p. 5, onde ele retoma a mesma
definição. Essa não foi a primeira tentativa de definição acadêmica de “gênero apocalíptico’, pelo
menos de “apocalíptica” ainda entendido como termo sinônimo: Robert Noth havia alguns anos
antes definido apocalíptica como sendo “qualquer escrito dito como ou parecendo ser divinamente
inspirado a explanar o verdadeiro sentido e a relevância de revelações anteriores para o futuro ou
os últimos dias, aplicando-os enigmaticamente a eventos presentes em uma estrutura histórica e
astro-cósmica unificante de erudição teórica, com imagens estranhas ou extra-espaciais, e relacio-
nado a um mundo intensamente ativo de seres cuja natureza se encontra entre o divino e o huma-
no” (NORTH, Robert. Prophecy to Apokalyptik via Zechariah. In: ANDERSON, G. W. et al.
(Ed.). Congress Volume: Uppsala 1971 (VTSup 22), p. 47-71; aqui p. 61). Sua definição não en-
controu muita aceitação à época.
49
30
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 6-19.
31
Ibidem, p. 14.
32
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: The Encyc-
lopedia of Apocalypticism, p. 129-161. v. 1; aqui p. 147. Cf. também Prophecy, Apocalypse and
Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester Grabbe. In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R.
D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 44-52; aqui p. 46.
33
O mesmo se dará neste trabalho, embora essa terminologia requeira um estudo adicional (especi-
almente no que diz respeito à historiografia e à teologia da história), o qual foge ao escopo desta
pesquisa.
34
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: Op. cit. p.
147.
50
referir à visão de mundo dos apocalipses: uma visão de mundo que enfatiza a ati-
vidade de agentes sobrenaturais e que olha para o julgamento escatológico além da
história, que inclui o julgamento individual dos mortos”.35 Embora o apocalipsis-
mo seja a ideologia (visão de mundo) dos apocalipses, transcende o gênero. Ele
circunscreve mais do que preocupações escatológicas, mas suas coordenadas são
definidas principalmente pela expectativa escatológica e pelo mundo sobrenatu-
ral.36
Quanto à questão da escatologia apocalíptica, Collins assevera que as esca-
tologias apocalípticas são tão distintas quanto as composições literárias das quais
fazem parte, mas em seu núcleo há uma transcendência que “olha para uma retri-
buição além dos limites da morte”.37 De acordo com ele, a antecipação do julga-
mento individual no pós-morte distingue a escatologia apocalíptica de outras ex-
pectativas para com tempo futuro.38 Essas definições assumem que a escatologia
apocalíptica é um tipo de escatologia, enquanto questões escatológicas são fre-
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envolvendo esses fenômenos deve ser iniciada com os próprios textos antigos.41
Conforme Koch corretamente compreendido,42 esses textos são produtos
de um movimento histórico e devem ser compreendidos dessa forma. Essa prerro-
gativa é ignorada em diversos estudos que buscam analisar o contexto social dos
antigos apocalipses com pouca referência aos textos em si mesmos ou ao seu
background histórico.
A despeito de diversas dificuldades, incluindo uma tendência a ser molda-
do ao seu conteúdo, o rótulo “literatura apocalíptica” permanece uma definição
útil em termos gerais, embora deva ser restringido a casos em que definições pre-
cisas sejam desnecessárias ou inapropriadas. Ele engloba, potencialmente, textos
que funcionam como apocalipses, mas que não são exemplos formais do gênero e,
em termos característicos, uma nebulosa associação de composições cujas defini-
ções permanecem em questão, mas que, tendo em vista determinados fins, podem
ser incluídas numa categoria mais vasta. Conforme a afirmação de Collins, os que
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41
COLLINS, J. J. Response: The Apocalyptic Worldview of Daniel. In: BOCCACCINI, G. (Ed.).
Enoch and Qumran Origins: New Light on a Forgotten Connection, p. 59-66; aqui p. 59; Idem.
Prophecy, Apocalypse and Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester Grabbe. In:
GRABBE, L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 44-52; aqui p. 47;
Idem. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism, juntamente com Appen-
dix: A New Proposal on Apocalyptic Origins. In: Op. cit. p. 13. Cf. também ADLER, W. Introduc-
tion. In: VANDERKAM, J. C.; ADLER, W. (Ed.). The Jewish Apocalyptic Heritage in Early
Christianity, p. 1-31.
42
KOCH, Klaus. The Rediscovery of Apocalyptic, p. 23.
43
COLLINS, J. J. Prophecy, Apocalypse and Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester
Grabbe. In: Op. cit. p. 44-52.
44
No presente trabalho, empregamos a designação apocalíptica com certa parcimônia, procurando
seguir a orientação de justificar seu uso. Em linha geral, essa literatura inclui conflito, escatologia e
universalismo. A história humana e a cósmica pertencem conjuntamente a um desdobramento do
grande e dramático conflito entre bem e mal. A era de conflito será difícil e amarga, mas se encer-
rará brevemente. O triunfo do bem, liderado por sua divindade, está assegurado, e junto com ele o
triunfo de seu povo. Essa vitória se alcançará não por desenvolvimento natural, mas ou por revolu-
ção ou, preferivelmente, por uma intervenção catastrófica e sobrenatural. A própria divindade do-
minará sobre a história em um ato poderoso de julgamento e estabelecerá seu reino. Essa noção de
final da história é um tema recorrente nessa literatura, e é esse fim que dá sentido ao presente e ao
passado; e, também nele, todas as coisas, na Terra e no Céu, receberão sua recompensa merecida.
52
em si mesmo”.45
Para Gerhard Von Rad, a apocalíptica não representaria um “gênero” espe-
cífico do ponto de vista literário. Pela história das formas ela é, na verdade, um
mixtum compositum que levaria a uma pré-história muito complexa do ponto de
vista da história das tradições.46
J. G. Gammie também assevera que a literatura apocalíptica não constitui
um bloco monolítico. Ele classifica as variadas formas literárias da apocalíptica
como “subgêneros”:
Os subgêneros recorrentes da literatura apocalíptica são: comunicação de visão,
vaticínio ex eventu, parêneses, gêneros litúrgicos (bênçãos, lamento, hinos e ora-
ções), sabedoria natural, estórias, fábulas, alegorias, diálogos, enigmas, mashal ou
47
parábola, interpretação de profecia ou pesharim e previsões escatológicas.
45
BOCKMUEHL, M.N.A. Revelation and Mystery in Ancient Judaism and Pauline Christianity,
p. 24, nota 2 (grifo no original).
46
VON RAD, G. Daniel e a apocalíptica. In: Teologia do Antigo Testamento, p. 723-744; aqui p.
738, n. 453.
47
GAMMIE, J. G. The Classification, Stages of Growth, and Changing Intentions in the Book of
Daniel. JBL 95.2 (1976), p. 191-204; aqui p. 193.
48
SANDERS, E. P. The Genre of Palestinian Jewish Apocalypses. In: HELLHOLM, D. (Ed.).
Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 447-459.
49
Ibidem, p. 456.
50
Sanders define “monismo de aliança” como sendo “a visão de que a posição ocupada pelo indi-
víduo no plano de Deus é estabelecida com base na aliança e que esta exige do homem, como res-
posta apropriada, a obediência aos seus mandamentos, ao mesmo tempo provendo meios de expia-
ção pelas transgressões (...) A obediência mantém a posição do indivíduo na aliança, mas não con-
quista a graça de Deus como tal (...) Justiça, no judaísmo, é um termo que implica a manutenção da
53
condição social entre o grupo dos eleitos” (cf. SANDERS, E. P. Paul and Palestinian Judaism: A
Comparison of Patterns of Religion, p. 75, 420, 544). Em outras palavras, a obediência à Lei nunca
foi considerada um meio de entrar na aliança, mas sim um meio para manter o relacionamento de
aliança com Deus. Sobre isso, Jacob Neusner, embora crítico da metodologia de Sanders, em rese-
nha sobre a obra afirma que “até onde Sanders se propõe a demonstrar a importância do nomismo
da aliança, da eleição, da expiação e de coisas semelhantes para todos os tipos de judaísmo antigo,
seu trabalho pode ser considerado um grande sucesso” (cf. NEUSNER, J. Comparing Judaisms.
HR 18.2 (1978), p. 171-191; aqui p. 180).
51
COLLINS, J. J. Ethos and Identity in Jewish Apocalyptic Literature. In: KONRADT, M.;
STEINERT, U. (Ed.). Ethos und Identität: Einheit und Vielfalt des Judentums in hellenistisch-
römischer Zeit, p. 51-65.
52
Cf. ROWLAND, C. The Open Heaven: A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christiani-
ty, p. 12.
53
Cf. STEGEMANN, H. Die Bedeutung der Qumranfunde für die Erforschung der Apokalyptik.
In: HELLHOLM, D. (Ed.). Op. cit. p. 495-530.
54
Cf. o tratamento da questão, por exemplo, em MALINA, Bruce J. On the Genre and Message of
Revelation: Star Visions and Sky Journeys (1995); GRABBE, L. L. Prophetic and Apocalyptic:
Time for New Definitions – and New Thinking. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing
the End from the Beginning, p. 107-133.
55
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination, p. 10; Idem. Genre, Ideology, and Social Move-
ments in Jewish Apocalypticism. In: COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries
and Revelations, p. 11-32; aqui p. 15; WEBB, R. L. ‘Apocalyptic’: Observations on a Slippery
Term. JNES 49.2 (1990), p. 115-126.
54
dos segredos divinos, mas vê isso como um elemento comum nas literaturas profé-
tica, apocalíptica e mântica.59 Sturm se concentra sobre o conceito teológico em
detrimento do gênero apocalíptico, uma abordagem que ilumina o conceito central
de revelação.60 Bilde assevera que “o núcleo da mensagem apocalíptica e dos li-
vros apocalípticos pode ser descrito como o desmascaramento dos planos secretos
de Deus”.61
Alguns criticaram a definição de gênero apocalíptico da SBL como sendo
não-histórica.62 Collins responde sublinhando o caráter fundamentalmente históri-
56
OWEN, Paul. The Relationship of Eschatology to Esoteric Wisdom in the Jewish Pseudepigra-
phal Apocalypses. In: EVANS, Craig A. (Ed.). Of Scribes and Sages: Early Jewish Interpretation
and Transmission of Scripture, p. 122-133. v. 2.
57
DAVIES, P. R. The Social World of Apocalyptic Writings. In: CLEMENTS, R. E. (Ed.). The
World of Ancient Israel: Sociological, Anthropological and Political Perspectives, p. 251-271;
aqui p. 254.
58
BAUCKHAM, R. Apocalypses. In: CARSON, D.A.; O’BRIEN, P.T.; SEIFRID, M.A. (Ed.).
Justification and Variegated Nomism: The Complexities of Second Temple Judaism, p. 135-187. v.
1; aqui p. 135.
59
GRABBE, L. L. Prophetic and Apocalyptic: Time for New Definitions – and New Thinking. In:
Op. cit. p. 107-133; aqui, especialmente p. 123.
60
STURM, R. E. Defining the Word ‘Apocalyptic’: A Problem in Biblical Criticism. In: MAR-
CUS, J.; SOARDS, M. L. (Ed.). Apocalyptic and the New Testament: Essays in Honor of J. Louis
Martyn, p. 17-48.
61
BILDE, P. Gnosticism, Jewish Apocalypticism, and Early Christianity. In: JEPPESEN, K.;
NIELSEN, K.; ROSENDAL, B. (Ed.). In the Last Days: On Jewish and Christian Apocalyptic and
Its Period, p. 9-32; aqui p. 20.
62
Cf., por exemplo, RUDOLPH, K. Apokalyptik in der Diskussion. In: HELLHOLM, D. (Ed.).
Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 771-789; TIGCHELAAR, E. J.
C. More on Apocalyptic and Apocalypses. JSJ 18.2 (1987), p. 137-144; e a resenha da obra de
Uppsala em GARCÍA MARTÍNEZ, F. Encore l’apocalyptique. JSJ 17.2 (1986), p. 224-232.
55
63
COLLINS, J. J. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism. In: COL-
LINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 11-32.
64
HELLHOLM, D. Methodological Reflections on the Problem of Definition of Generic Texts. In:
COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Op. cit. p. 135-163.
65
Cf. especialmente COLLINS, J. J. The Jewish Apocalypses. In: Apocalypse: The Morphology of
a Genre. Semeia 14 (1979), p. 21-59.
66
COLLINS, J. J. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism. In: Op. cit.
p. 14.
67
Idem. Prophecy, Apocalypse and Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester Grabbe.
In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 44-52; aqui
p. 44-45.
56
que “a apocalíptica não é uma ideologia, mas sim um gênero”.68 Grabbe continua
a utilizar o substantivo “apocalíptico” para descrever um corpo de literatura,69 em-
bora ele também empregue “literatura apocalíptica”, a qual pode ser ou não um
substituto para “escritos apocalípticos e afins”.70 Davila também emprega o termo
“apocalíptico” para se referir a uma coleção de textos literários.71 Neste aspecto,
Collins refuta tanto Grabbe quanto Davila.72
Bloomquist mantém o rótulo de “apocalíptico” à luz de sua crítica acerca
da inadequação das atuais definições.73 García Martínez também prefere o termo,
“pela falta de um nome melhor”.74 Ele define “apocalíptico” como uma corrente
conceitual originada na tradição profética ou sapiencial, mas moldada durante um
longo período de tempo dentro do contexto cultural e religioso da época do Juda-
ísmo do Segundo Templo, no qual essa corrente reagiu de forma interativa com
outras correntes de pensamento, e em diferentes obras hoje designadas “apocalip-
ses”.75 Boccaccini, ao descrever a contribuição da escola italiana para o estudo dos
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68
BAUCKHAM, R. Apocalypses. In: CARSON, D.A.; O’BRIEN, P.T.; SEIFRID, M.A. (Ed.).
Justification and Variegated Nomism, p. 135-187. v. 1; aqui p. 135.
69
GRABBE, L. L. Poets, Scribes or Preaches? The Reality of Prophecy in the Second Temple Pe-
riod. In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 192-215; Idem. Prophetic and Apo-
calyptic: Time for New Definitions - and New Thinking. In: Ibidem, p. 107-133.
70
Idem. Poets, Scribes or Preaches? The Reality of Prophecy in the Second Temple Period. In:
Ibidem, p. 197.
71
DAVILA, J. R. The Animal Apocalypse and Daniel. In: BOCCACCINI, G. (Ed.). Enoch and
Christian Origins: New Light on a Forgotten Connection, p. 35-38; aqui p. 36.
72
COLLINS, J. J. Response: The Apocalyptic Worldview of Daniel. In: BOCCACCINI, G. (Ed.).
Op. cit. p. 59-66; aqui p. 59-60.
73
BLOOMQUIST, L. Gregory. Methodological Criteria for Apocalyptic Rhetoric: A Suggestion
for the Expanded Use of Sociorhetorical Analysis. In: CAREY, G.; BLOOMQUIST, L. G. (Ed.).
Vision and Persuasion: Rhetorical Dimensions of Apocalyptic Discourse, p. 181-203.
74
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Qumran and Apocalyptic: Studies on the Aramaic Texts
from Qumran, p. x.
75
Ibidem, p. x, nota 9.
76
BOCCACCINI, G. Jewish Apocalyptic Tradition: The Contribution of Italian Scholarship. In:
COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 33-50.
77
DIMANT, D. Apocalyptic Texts at Qumran. In: ULRICH, E.; VANDERKAM, J. (Ed.). The
Community of the Renewed Covenant: The Notre Dame Symposium on the Dead Sea Scrolls, p.
175-191; aqui p. 179.
57
tipo e nem limitada aos apocalipses em suas manifestações. Sobre gênero e ideo-
logia, ele afirma:
A própria distinção entre um gênero “apocalíptico” e um modo apocalíptico é a-
penas um modelo para explicar as enormes diferenças entre os textos que são to-
dos chamados apocalípticos por uma razão ou outra. Uma aplicação rígida desse
modelo possui dois inconvenientes. O modelo não serve para explicar esses textos
em si mesmos, mas apenas sua relação com um problema surgido a partir de ou-
tros textos. Portanto, essa abordagem provavelmente não produzirá uma nova
perspectiva acerca do problema da apocalíptica. Finalmente, a distinção proposta
entre um gênero apocalíptico e um modo apocalíptico pode não corresponder a
todos os aspectos de forma e conteúdo nos textos chamados proto-apocalípticos.
Primeiramente, pode-se perguntar em que extensão um gênero corresponde à
forma e um modo está relacionado ao conteúdo. Em segundo lugar, a distinção
tradicional entre forma e conteúdo pode ser útil em alguns aspectos, mas, uma vez
que essas são categorias de diferentes tipos, não será possível diferenciá-las cla-
78
ramente em qualquer texto individualmente.
78
TIGCHELAAR, E.J.C. Prophets of Old and the Day of the End: Zechariah, the Book of Watch-
ers, and Apocalyptic, p. 243.
79
SAEBO, M. Old Testament Apocalyptic in Its Relation to Prophecy and Wisdom: The View of
Gerhard von Rad Reconsidered. In: JEPPESEN, K.; NIELSEN, K.; ROSENDAL, B. (Ed.). In the
Last Days: On Jewish and Christian Apocalyptic and Its Period, p. 78-91; aqui p. 85-87.
80
BOCKMUEHL, M. N. A. Revelation and Mystery in Ancient Judaism and Pauline Christianity,
p. 24.
81
COOK, S. L. Mythological Discourse in Ezekiel and Daniel and the Rise of Apocalypticism in
Israel. In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 85-
106; aqui p. 85.
58
82
SIM, David C. Apocalyptic Eschatology in the Gospel of Matthew, p. 21-92.
83
HIMMELFARB, M. The Experience of the Visionary and Genre in the Ascension of Isaiah 6-11
and the Apocalypse of Paul. In: YARBRO COLLINS, Adela (Ed.). Early Christian Apocalyptic-
ism: Genre and Social Setting. Semeia 36 (1986), p. 97-111; aqui p. 109.
84
NICKELSBURG, G.W.E. The Apocalyptic Construction of Reality in 1 Enoch. In: COLLINS,
J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 51-64.
85
ELGVIN, Torleif. Wisdom with and without Apocalyptic. In: FALK, D. K.; GARCÍA
MARTÍNEZ, F.; SCHULLER, E. M. (Ed.). Sapiential, Liturgical, and Poetical Texts from Qu-
mran: Proceedings of the Third Meeting of the International Organization for Qumran Studies,
Oslo, 1998, p. 15-38; aqui p. 16.
86
AUNE, David E. Transformations of Apocalypticism in Early Christianity. In: GRABB, Lester
L.; HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 54-64; aqui p. 56,
87
KREITZER, L. J. Apocalyptic, Apocalypticism. In: MARTIN, R. P.; DAVIDS, P. H. (Ed.).
DLNTD, p. 61-66.
88
MARSHALL, J. W. Apocalypticism and Anti-Semitism: Inner-Group Resources for Inter-Group
Conflicts. In: KLOPPENBORG, J. S.; MARSHALL, J. W. (Ed.). Apocalypticism, Anti-Semitism
and the Historical Jesus: Subtexts in Criticism, p. 68-82; aqui p. 70.
59
ção às histórias do Gênesis, outro conectando os profetas desde Moisés até Sofo-
nias, e um terceiro ligado a figuras contemporâneas à destruição do Primeiro ou do
Segundo Templo.89 Mais tarde, em outro ensaio, ele reduz esse número a dois ra-
mos: o da época pré-diluviana e o de circunstâncias de pós-destruição.90
Por fim, o tema da escatologia apocalíptica possui fortes pontos de contato
com várias outras questões importantes. A expectativa de julgamento individual
no pós-morte como uma característica definidora de escatologia apocalíptica é
suscetível de ser qualificada por um determinado ponto de vista sobre a interpreta-
ção de trechos críticos, como Is 26,14.19 e Ez 37,1-14, e, possivelmente, também
sobre o valor da categoria “proto-apocalíptica”. Muitas questões acerca da escato-
logia apocalíptica ainda precisam ser mais bem respondidas; algumas são funda-
mentais, como a relação entre escatologia e gênero, e têm sido respondidas satisfa-
toriamente;91 já outras apontam para caminhos os quais os estudos acadêmicos no
século XXI estão trilhando: (1) se a designação de “apocalíptico” deve ser reser-
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vada para os textos que claramente presumem ou pressupõem revelação; (2) se ela
deveria ser aplicada a textos cuja revelação base é de fato um apocalipse; (3) se a
escatologia dualística, mítica provém de textos de revelação; (4) se a autoridade é
concedida aos autores de semelhantes textos por meio de tal revelação.
89
GRUENWALD, I. The Cultural Setting of Enoch-Apocalypticism: New Reflections. Henoch 24
(2002), p. 213-223.
90
Idem. Apocalypticism and the Religion and Ritual of the “Pre-Sinaitic” Narratives. In: BOC-
CACCINI, G. (Ed.). Enoch and Qumran Origins, p. 148-151.
91
Importantes questões sobre a revelação e função da escatologia apocalíptica em Qumran são
levantadas por NICKELSBURG, G. W. E. The Nature and Function of Revelation in 1 Enoch,
Jubilees, and Some Qumranic Documents. In: CHAZON, E. G.; STONE, M. E. (Ed.). Pseudepi-
graphic Perspectives: The Apocrypha and Pseudepigrapha in Light of the Dead Sea Scrolls. Pro-
ceedings of the International Symposium of the Orion Center for the Study of the Dead Sea Scrolls
and Associated Literature, 12-14 January 1997, p. 91-119; aqui especialmente p. 112-113.
92
Para um tratamento inicial do tema, cf. WILDER, Amos N. The Rhetoric of Ancient and Mod-
ern Apocalyptic. Int 25.4 (1971), p. 436-453.
60
tes à criação e queda dos homens e dos anjos, a fonte do mal no universo e a parte
desempenhada nele por influências angelicais, e o conflito entre bem e mal (que se
dá na forma de luz e trevas, ou Deus e Satanás); além disso, ele acrescenta o sur-
gimento de uma figura transcendental chamada “Filho do Homem” e o desenvol-
vimento da crença em vida após a morte em seus vários compartimentos (como
Inferno, Geena, Paraíso e Céu), com a progressiva ênfase no aspecto individual da
ressurreição e do juízo. Tais aspectos dariam, segundo ele, a impressão de perten-
cerem a um modo particular de pensamento e de crença.95
Quanto às características estritamente literárias (sem levar em conta o con-
teúdo da mensagem), Russell distingue quatro, as quais, além de identificar o mé-
todo adotado pelos apocalípticos, acentuam a diferença de seus escritos para com
os escritos proféticos: o caráter esotérico, a formulação por escrito, o linguajar
simbólico e a pseudonímia da autoria.96 Segundo ele, o caráter esotérico reside no
fato de que os livros apocalípticos alegam ser revelações de segredos divinos fei-
tas a certos indivíduos ilustres, os quais as registraram para instrução e encoraja-
mento aos justos e eleitos entre o povo de Deus. Esses segredos normalmente são
93
AUNE, D.; STEWART, E. From the Idealized Past to the Imaginary Future: Eschatological Res-
toration in Jewish Apocalyptic Literature. In: SCOTT, James M. (Ed.). Restoration: Old Testa-
ment, Jewish, and Christian Perspectives, p. 147-177; aqui p. 175.
94
Cf. RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 105.
95
Ibidem.
96
Ibidem, p. 107-139.
61
às vezes são figuras que não têm origem mitológica, como o caso da visão dos
quatro animais em Dn 7 (leão com asas de águia, urso com três costelas na boca,
leopardo com quatro asas e quatro cabeças, e um grande animal com dez chifres e
grandes dentes de ferro). Com certeza, esses símbolos eram parte de material tra-
dicional cujo uso ajudava a manter o senso esotérico de segredo e mistério. Tal
simbologia aparece também em relação aos números, como o três, o quatro, o sete,
dez, doze e setenta, ou múltiplos deles, com uso recorrente nos escritos apocalípti-
cos.
De fato, os elementos míticos desempenham um importante papel no lin-
guajar apocalíptico, refletindo inclusive antigos mitos no conteúdo de certos apo-
calipses, particularmente os mais antigos.97
A quarta característica literária é a autoria pseudonímica (no caso de Dani-
el, o apocalipse mais maduro do AT, os seis primeiros capítulos são de autoria a-
nônima e os demais pseudônimos). As visões são creditadas a grandes nomes do
passado; suas revelações se dão na forma de profecia ex eventu. 98
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97
Cf. especialmente HANSON, P. D. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological
Roots of Early Jewish Apocalyptic Eschatology, p. 292-388.
98
Sobre a pseudonímia dos escritos apocalípticos, trataremos adiante.
99
Cf. YARBRO COLLINS, Adela. The Book of Revelation. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyc-
lopedia of Apocalypticism, p. 384-414. v. 1.
63
100
YARBRO COLLINS, Adela. Persecution and Vengeance in the Book of Revelation. In:
HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 729-
749; Idem. Crisis and Catharsis: The Power of the Apocalypse (1984). Yarbro Collins retorna ao
assunto da retórica apocalíptica em um ensaio sobre temas apocalípticos na literatura bíblica (cf.
Idem. Apocalyptic Themes in Biblical Literature. Int 53.2 (1999), p. 117-130). Ela comenta que
existem dois tipos de temas apocalípticos na literatura bíblica. O primeiro é intrínseco ao gênero
apocalíptico, inclui elementos formais como viagens transcendentais e reivindica visões revelado-
ras, adicionadas às ideias fundamentais relativas ao cumprimento da história encontrado em muitos
exemplos. O segundo contém temas como o do Anticristo e o do mito do combate, menos relacio-
nados ao gênero, mas ainda assim significantes. Ela afirma ainda que o poder da linguagem apoca-
líptica é parcialmente baseado em seu uso de temas e imagens desenfreadamente vívidos, pitores-
cos e míticos para dirigir-se a tensões específicas e preocupações universais de parte de sua audi-
ência.
101
Sobre o linguajar apocalíptico dos primitivos cristãos, cf. também SCHÜSSLER FIORENZA,
E. The Phenomenon of Early Christian Apocalyptic: Some Reflections on Method. In: HELL-
HOLM, D. (Ed.). Op. cit. p. 295-316.
102
CAREY, G. Introduction. Apocalyptic Discourse, Apocalyptic Rhetoric. In: CAREY, Greg;
BLOOMQUIST, L. G. (Ed.). Vision and Persuasion: Rhetorical Dimensions of Apocalyptic Dis-
course, p. 1-17; aqui p. 10.
103
Ibidem. Em outro artigo, Carey enfatiza os meios retóricos pelos quais o discurso apocalíptico
estabelece autoridade para o autor e à mensagem do texto (cf. CAREY, G. Apocalyptic Ethos.
SBLSP 37 (1998), p. 731-761).
104
BLOOMQUIST, L. G. Methodological Criteria for Apocalyptic Rhetoric: A Suggestion for the
Expanded Use of Sociorhetorical Analysis. In: CAREY, G.; BLOOMQUIST, L. G. (Ed.). Op. cit.
p. 181-203.
64
105
Ibidem, p. 190.
106
Cf. SANDY, D. Brent. Plowshares & Pruning Hooks: Rethinking the Language of Biblical
Prophecy and Apocalyptic, p. 58-128, onde é feito um estudo minucioso acerca do linguajar profé-
tico e apocalíptico, mas restringido aos textos bíblicos.
107
Cf. especialmente HANSON, P. D. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological
Roots of Early Jewish Apocalyptic Eschatology (1979).
108
MORRIS, Leon. Apocalyptic, p. 34-67.
65
dição profética.
resolução que foi articulada como sendo uma destruição escatológica dos poderes
dos governantes e uma justificação da comunidade.115 Esse ponto de vista se apoi-
ou, em parte, pelo pressuposto de que o livro de Daniel foi o primeiro exemplo do
gênero, seguido de perto por outros apocalipses históricos, como o Apocalipse das
Semanas. A mais recente datação do antigo material de Enoque feita por Michael
Stone,116 baseada em fragmentos do Enoque de Qumran, obrigou a uma reavalia-
ção do já bastante difundido conhecimento tradicional sobre apocalipses, incluin-
do sua origem e finalidade. A função de revolução social histórica já não poderia
servir como a única explicação para a composição dos apocalipses.
Aune chama a literatura apocalíptica de “protesto”, a qual embora relacio-
nada com a literatura de crise, nem sempre se trata da mesma coisa.117 Já Lebram
analisa a finalidade exortatória dos apocalipses.118 De acordo com Hellholm, os
113
Ibidem, p. 7.
114
COLLINS, J. J. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism. In: COL-
LINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 11-32.
115
FREEDMAN, D. N. The Flowering of Apocalyptic. In: FUNK, Robert W. (Ed.). Apocalyptic-
ism, 166-173.
116
STONE, Michael E. The Book of Enoch and Judaism in the Third Century BCE. CBQ 40
(1978), p. 479-492 (publicado novamente em Selected Studies in Pseudepigrapha and Apocrypha,
with Special Reference to the Armenian Tradition, p. 184-197).
117
AUNE, D. Understanding Jewish and Christian Apocalyptic. Word & World 25.3 (2005), p.
233-245. Cf. também o estudo clássico de EDDY, S. K. The King Is Dead: Studies in the Near
Eastern Resistance to Hellenism, 334-31 B.C. (1961).
118
LEBRAM, J. C. H. The Piety of Jewish Apocalypticists. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Op. cit., p.
171-210. Seguindo essa mesma “linha exortatória”, Maier e Prostmeier concentram-se nos exem-
67
plos cristãos antigos (cf. MAIER, Harry O. Staging the Gaze: Early Christian Apocalypses and
Narrative Self-Representation. HTR 90.2 (1997), p. 131-154; PROSTMEIER, F. R. Hoffnung und
Weltverantwortung: Zum Motiv “Zeiten(w)ende” in der frühchristlichen Apokalyptik. In:
EBERTZ, M. N.; ZWICK, R. (Ed.). Jüngste Tage: Die Gegenwart der Apokalyptik, p. 82-103).
119
HELLHOLM, D. The Problem of Apocalyptic Genre and the Apocalypses of John. In: YAR-
BRO COLLINS, A. (Ed.). Early Christian Apocalypticism: Genre and Social Setting. Semeia 36
(1986), p. 13-64; aqui p. 27.
120
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: The Encyc-
lopedia of Apocalypticism, p. 129-161. v. 1; aqui p. 158-159; Idem. The Sense of an Ending in Pre-
Christian Judaism. In: KLEINHENZ, C.; LeMOINE, F. J. (Ed.). Fearful Hope: Approaching the
New Millennium, p. 25-43; aqui p. 40.
121
IBÁÑEZ RAMOS, M. A. El renacer de la esperanza en el judaísmo en crisis. El reino de Dios
en la literatura apocalíptica. In: CASCIARO, J. María et al (Ed.). Esperanza del hombre y revela-
ción bíblica: XIV Simposio Internacional de Teología de la Universidad de Navarra, p. 453-460.
122
DASCHKE, D. Mourning the End of Time: Apocalypses and Texts of Cultural Loss. In:
GREENSPOON, L. J.; SIMKINS, R. A. (Ed.). Millennialism from the Hebrew Bible to the
Present. Proceedings of the Twelfth Annual Symposium of the Philip M. and Ethel Klutznick Chair
in Jewish Civilization, October 10-11 1999, p. 159-180; aqui p. 162 (Studies in Jewish Civiliza-
tion, 12).
123
YARBRO COLLINS, A. Meaning and Significance in Apocalyptic Texts. In: Cosmology and
Eschatology in Jewish and Christian Apocalypticism, p. 1-20; aqui p. 8.
124
Essa ideia de que a apocalíptica teve origem em grupos oprimidos tem sido questionada tam-
bém no Brasil (cf. GARMUS, Ludovico. Traços apocalípticos em Ezequiel 38-39. In: Apocalípti-
ca. EstBib 65 (2000), p. 35-47. Para ele, o texto de Ezequiel tem características apocalípticas e
provém de um grupo sacerdotal).
68
crise e sua resolução mais a partir de sua perspectiva coletiva, já outro a partir do
ponto de vista do destino final do indivíduo, ao passo que um terceiro, como o li-
vro de Daniel, pode incluir ambas as perspectivas. Agourides compreende a ênfase
coletiva como sendo um produto dos interesses nacionais da tradição sapiencial
judaica.125 Contudo, ele rejeita o ponto de vista de que os apocalipses do Período
do Segundo Templo contenham duas escatologias distintas, nacional e dualística,
as quais pudessem refletir esses focos.
Collins reconhece corretamente que a utilidade do significante “grupo em
crise” é limitada: partes ou o todo do povo judeu esteve em crise ao longo da anti-
guidade, e os tipos de crise diferiam entre si.126 A mesma lógica pode ser aplicada
para a explicação das privações relativas. Tigchelaar identifica várias falhas meto-
dológicas graves em relação à hipótese de crise.127
Apesar disso, pode-se admitir que a consolação e a exortação sejam fun-
ções primárias dos apocalipses, e assim foram para uma grande parte deles devido
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a uma sensação de que o mundo estava “fora de controle” e nas garras de poderes
hostis. Em um ensaio sobre os calendários apocalípticos, Lars Hartman observa
que, entre todos os apocalipses judaicos antigos, somente o livro de Daniel contém
informações quanto à data precisa do fim.128 Ele assevera que estes calendários
desempenham diversos propósitos: informativo, religioso, exortativo, um teste de
fé, uma explicação da presença do mal no mundo, cada um dos quais sustentando
uma função do texto. Criticamente, tais textos informavam às suas audiências que
o fim estava iminente. Tal mensagem liga-se facilmente à visão de que os apoca-
lipses históricos funcionaram para consolar e/ou exortar, o que, por sua vez, im-
plica certas características sociais acerca de suas audiências. Newsom observa que
a partir de uma perspectiva histórica, o calendário de Daniel provou ser um ins-
trumento contundente, ainda que os fiéis pudessem considerar e, de fato, conside-
ravam, as discrepâncias entre revelação e realidade uma questão interpretativa.129
125
AGOURIDES, S. The Jewish Apocalyptic Writings: A National or Dualistic Eschatology? In:
OVADIAH, Asher (Ed.). Mediterranean Cultural Interaction, p. 71-80.
126
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: Op. cit., p.
129-161.
127
TIGCHELAAR, E. J. C. Prophets of Old and the Day of the End: Zechariah, the Book of
Watchers and Apocalyptic, p. 264-265.
128
HARTMAN, Lars. The Functions of Some So-Called “Apocalyptic Timetables”. NTS 22.1
(1975), p. 1-14.
129
NEWSOM, Carol A. The Past as Revelation: History in Apocalyptic Literature. QR 4.3 (1984),
p. 40-53. Isso pode ser constatado claramente, também, num trabalho de Adler acerca das formas
nas quais um calendário apocalíptico como o das setenta semanas de Dn 9 desempenha um impor-
tante papel entre os elementos do apocalipsismo no judaísmo tardio e em autores cristãos (cf. AD-
69
nem foram desenvolvidos unicamente neste período. Embora muitos dos textos
que ele examina sejam produtos de crises históricas e/ou culturais, Lange sustenta
que a evidência revela que essa configuração não era inevitável.
Sachi propõe que os apocalipses se desenvolveram principalmente a partir
de uma intensa preocupação com a origem do mal.132 De certa forma, essa ideia
foi antecipada por estudiosos como Crenshaw,133 os quais sustentaram que tanto a
literatura apocalíptica quanto a sapiencial foram respostas funcionais a uma relu-
tância profética em abordar o problema do mal, e afirmaram ainda que os primei-
ros materiais de Enoque foram também os primeiros apocalipses. Como Sacchi
LER, W. The Apocalyptic Survey of History Adapted by Christians: Daniel’s Prophecy of 70 We-
eks. In: VANDERKAM, J. C.; ADLER, W. (Ed.). The Jewish Apocalyptic Heritage in Early
Christianity, p. 201-238). Tal papel é importante também no conceito de translatio imperii (cf.
PODSKALSKY, G. Byzantinische Reichseschatologie: die Periodisierung der Weltgeschichte in
den vier Grossreichen (Daniel 2 und 7) und dem tausendjährigen Friedensreiche (Apok. 20), e De
BOER, S. Rome, the “Translatio Imperii” and the Early-Christian Interpretation of Daniel II and
VII. RSLRF 21.2 (1985), p. 181-218), cujo último antecedente bíblico foi Dn 2 e 7. Já Irshai
discute os cálculos dos escritores apocalípticos judaicos e cristãos na antiguidade tardia (cf.
IRSHAI, O. Dating the Eschaton: Jewish and Christian Apocalyptic Calculations in Late Antiquity.
In: BAUMGARTEN, A. I. (Ed.). Apocalyptic Time, p. 113-153).
130
LANGE, A. Interpretation als Offenbarung: zum Verhältnis von Schriftauslegung und
Offenbarung in apokalyptischer und nichtapokalyptischer Literatur. In: GARCÍA MARTÍNEZ, F.
(Ed.). Wisdom and Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls and in the Biblical Tradition, p. 17-33.
131
Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistemática, p. 207-220.
132
SACCHI, P. L’apocalittica giudaica e la sua storia (1990); Idem. Formazione e linee portanti
dell’apocalittica giudaica precristiana. RSB 7.2 (1995), p. 19-36; Idem. Impurità e male nel
pensiero apocalittico. In: CERUTTI, M. V. (Ed.). Apocalittica e gnosticismo: atti del Colloquio
internazionale, Roma, 18-19 giugno 1993, p. 45-58.
133
CRENSHAW, James L. Prophetic Conflict: Its Effect upon Israelite Religion, p. 39-109.
70
ral para a produção de apocalíptica histórico-política, ela não parece ser tão apro-
priada àqueles textos preocupados com ascensão celestial e temas relativos a esse.
De fato, um dos principais pontos do trabalho de Sacchi é que a perspectiva do
material de Enoque difere do restante da literatura apocalíptica.137 Como Collins
observa, a teoria de que apocalipses foram produzidos por grupos em crise se en-
caixa em alguns apocalipses, não em todos eles, e os apocalipses com ascensão
celestial nem sempre se encaixam nesse molde.138 De fato, a teoria dos “grupos
em crise” parece pouco adequada para explicar o interesse de certos apocalipses
no conhecimento científico-sapiencial, sendo, portanto, inadequada para delinear a
134
Cf., por exemplo, COLLINS, J. J. The Origin of Evil in Apocalyptic Literature and the Dead
Sea Scrolls. In: EMERSON, J. A. (Ed.). Congress Volume: Paris, 1992, p. 25-38 (republicado em
Seers, Sibyls, and Sages in Hellenistic-roman Judaism, p. 287-299); LUPIERE, E. Il problema del
male e della sua origine nell’apocalittica giudaica. In: GIANOTTO, Claudio. (Ed.). La domanda di
Giobbe e la razionalità sconfitta, p. 31-51.
135
STUCKENBRUCK, Loren T. The “Angels” and “Giants” of Genesis 6:1-4 in Second and Third
Century BCE Jewish Interpretation: Reflections on the Posture of Early Apocalyptic Traditions.
DSD 7.3 (2000), p. 354-377.
136
Cf. MARCONCINI, B. “Ancora sull apocalittica: una luce da non spegnere. RBI 45 (1995), p.
199-209; COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination, p. 11. Veja-se, entretanto, a afirmação de
A. Segal: “Para mim, a única coisa que parece ser universal em todos eles [apocalipses] é que to-
dos visam a questões de teodiceia” (SEGAL, A. F. Apocalypticism and Life After Death. PIBA 22
(1999), p. 41-63; aqui p. 61).
137
Cf. as respostas ao trabalho de Sacchi reunidas em GIANOTTO, C. et at. Ancora a proposito di
apocalittica. Henoch 20 (1998), p. 89-106. Um resumo é dado por Sacchi em SACCHI, P. La
teologia dell’enochismo antico e l’apocalittica. MG 7.1 (2002), p. 7-13.
138
COLLINS, J. J. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism. In: COL-
LINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 11-32.
71
139
Cf. STONE, Michael E. Apocalyptic Writings. In: Jewish Writings of the Second Temple Pe-
riod, p. 383-441.
140
Plöger (1962) e Vielhauer (1964) descreveram os apocalipses como expressões da esperança
escatológica de pequenos grupos desprivilegiados, não-emancipados. (cf. PLÖGER, Otto. Theo-
cracy and Eschatology; VIELHAUER, P. Apocalypses and Related Subjects. Introduction. In:
HENNECKE, E.; SCHNEEMELCHER, W. (Ed.). NTA, p. 581-607. v. 2).
141
GARCÍA MARTÍNEZ, F.; TREBOLLE BARRERA, Julio. Os homens de Qumran, p. 81.
142
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination, p. 145.
143
Ibidem, p. 175.
144
Cf. a discussão sobre esses grupos adiante.
72
145
Cf. RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 43. Outras caracterís-
ticas consideradas apocalípticas encontradas em Qumran são: a crença em que todas as coisas es-
tão reguladas de acordo com os mistérios de Deus, a periodização da história em vista a uma ba-
talha final em que os poderes da luz derrotarão os poderes das trevas (referência ao já citado dua-
lismo), a expectativa messiânica, e alguma noção de continuidade da vida no pós-morte, com paz e
luz eternas para os bons e terror e desonra eternos para os maus (cf. a análise dessas outras caracte-
rísticas apocalípticas nos Manuscritos de Qumran em COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imaginati-
on, p. 150-174).
146
Cf. HANSON, P. D. Apocalypse, Genre, and Apocalypticism. In: CRIM, Keith (Ed.). IDBSup,
p. 27-34, de 1976, e especialmente The Dawn of Apocalyptic (1975).
73
apocalípticos tardios. Collins vai além: para ele, a evidência indica uma multipli-
cidade de pequenos grupos apocalípticos em vez de um movimento monolítico.155
Em resposta, Lange, embora reconhecendo diferenças entre certos textos,
postula um ambiente social compartilhado baseado em símbolos e técnicas visio-
nárias e relacionados à tradição sapiencial de Israel.156 Collins responde novamen-
te afirmando que há uma diferença entre uma cosmovisão expressa através de uma
forma literária e uma cosmovisão compartilhada com um ambiente social, e que
está claro que todos os textos apocalípticos não compartilham isso. Ele também
questiona o simples uso de “sabedoria”, pois por algum tempo os estudiosos reco-
nheceram que alguns elementos da tradição sapiencial do antigo Oriente Próximo
eram mais importantes para o apocalipsismo do que outros.157
Nickelsburg já havia feito uma boa introdução concernente aos principais
152
Ibidem, p. 117.
153
YARBRO COLLINS, A. Introduction. In: Early Christian Apocalypticism: Genre and Social
Setting. Semeia 36 (1986), p. 1-11; aqui p. 6.
154
TIGCHELAAR, E.J.C. Prophets of Old and the Day of the End: Zechariah, the Book of Watch-
ers and Apocalyptic, p. 4.
155
COLLINS, J. J. Pseudepigraphy and Group Formation in Second-Temple Judaism. In: CHA-
ZON, E. G.; STONE, M. E. (Ed.). Pseudepigraphy Perspectives: The Apocrypha and Pseudepi-
grapha in Light of the Dead Sea Scrolls, p. 43-58.
156
LANGE, A. Dream Visions and Apocalyptic Milieus. In: BOCCACCINI, G. (Ed.). Enoch and
Qumran Origins, p. 27-34.
157
COLLINS, J. J. Response: The Apocalyptic Worldview of Daniel. In: BOCCACCINI, G. (Ed.).
Op. cit. p. 59-66.
75
158
NICKELSBURG, G.W.E. Social Aspects of Palestinian Jewish Apocalypticism. In: HELL-
HOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 641-654.
159
Ibidem, p. 648.
160
Cf. DAWSON, Lorne L. Comprehending Cults: The Sociology of New Religious Movements
(2006). Embora o uso de estudos antropológicos ou sócio-científicos ou mesmo modelos teóricos
nos estudos bíblicos não fosse desconhecido antes de 1989 (cf. ISENBERG, S. Millenarism [sic] in
Greco-Roman Palestine. Religion 4.1 (1974), p. 26-46; HANSON, P. D. The Dawn of Apocalyptic
(1975); GAGER, J. G. Kingdom and Community: The Social World of Early Christianity (1975);
SMITH, Jonathan Z. Map Is Not Territory: Studies in the History of Religions (1978)), dois influ-
entes artigos publicados neste ano estabeleceram o marco para a pesquisa subsequente: DAVIES,
P. R. The Social World of Apocalyptic Writings. In: CLEMENTS, R. E. (Ed.). The World of An-
cient Israel, p. 251-271; GRABBE, Lester L. The Social Setting of Early Jewish Apocalypticism.
JSP 4 (1989), p. 27-47.
161
DAVIES, P. R. Op. cit. p. 260.
76
162
Ibidem, p. 258.
163
Ibidem, p. 263 (grifos do autor).
164
Cf., por exemplo, a crítica de Sim em: SIM, David C. The Social Setting of Ancient Jewish
Apocalypticism: A Question of Method. JSP 13 (1995), p. 5-16.
165
GRABBE, Lester L. Op. cit. p. 29. Grabbe rejeita o uso de privação relativa como a única ex-
plicação para o apocalipsismo.
166
O que já havia sido notado por STONE, M. E. Scriptures, Sects and Visions: A Profile of Ju-
daism from Ezra to the Jewish Revolts, p. 44, e corroborado novamente por Grabbe em Prophetic
and Apocalyptic: Time for New Definitions – and New Thinking. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R.
D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 107-133.
167
GRABBE, Lester L. The Social Setting of Early Jewish Apocalypticism. JSP 4 (1989), p. 39.
77
cia sobre a morte: “Ao contrário, o mito futurista, bem como outro mito, funciona
para criar uma experiência no presente de realidades que ele retrata através de uma
vasta gama de experiência humana, mas especialmente em relação à manutenção
da identidade social em um momento de graves dificuldades”.170
Zerbe considera vários dos mesmos textos antigos de uma perspectiva dife-
rente.171 Ele conclui que quatro “escritos apocalípticos” (Daniel, Testamento de
Moisés, 2 Baruque e Apocalipse) defendem o que poderia ser chamado de “resis-
tência passiva” e incentivam a fidelidade e perseverança. Nenhum deles defende
uma resposta militar ou espera que os eleitos participem da batalha final. Ao con-
trário, a vitória final é promessa e responsabilidade de Deus e seus agentes.
Zerbe alega, no entanto, que rotular esses textos como “pacifistas” trans-
cende as evidências, especialmente porque nenhum texto explicitamente rejeita a
opção militar. Nesse ponto ele difere um pouco de Cristofani, o qual afirma que
pelo menos um segmento do (s) grupo (s) por trás desses apocalipses era milena-
168
ESLER, Philip F. Political Oppression in Jewish Apocalyptic Literature: A Social-Scientific
Approach. JRC 28.2 (1993), p. 181-199.
169
Ibidem, p. 188.
170
Ibidem, p. 193.
171
ZARBE, G. M. “Pacifism” and “Passive Resistance” in Apocalyptic Writings: A Critical Evalu-
ation. In: CHARLESWORTH, J. H.; EVANS, C. A. (Ed.). The Pseudepigrapha and Early Biblical
Interpretation, p. 65-95.
78
172
CRISTOFANI, J. R. Dor e resistência: jovens, mulheres e crianças na origem social do apoca-
lipsismo judaico – relendo Daniel 11,29-35. EstTh 34.1 (1994), p. 87-100.
173
REID, Stephen B. Enoch and Daniel: A Form Critical and Sociological Study of the Historical
Apocalypses (2004).
174
COOK, Stephen. L. Prophecy & Apocalypticism: The Postexilic Social Setting, p. 46.
175
Ibidem, p. 52.
176
Ibidem, p. 26.
177
Ibidem, p. 53.
79
pectiva radical, revolucionária, que foi duramente crítica em relação à sua situação
política contemporânea e aguardava sua iminente resolução. Essa perspectiva era
essencialmente quietista e concentrou-se nas distinções entre a opressão e a cor-
rupção do presente, o qual ela rejeitou e condenou veementemente, com a pureza
do esperado mundo futuro.
Sweeney amplia a reconstrução de Cook acerca do background social Za-
doquita através da análise do papel das citações bíblicas e alusões nos textos cha-
mados proto-apocalípticos.180 Ele argumenta que todos esses textos são Zadoqui-
tas: cada um reutiliza antigo material profético e do Pentateuco para definir um
núcleo de perspectivas sacerdotal e executar a função essencial de ensino da Torá.
Em alguns casos, como Joel, Ez 38-39 e Zacarias, isso seria patente. Em outros,
como Is 24-27 e 55-66, a sua afirmação da centralidade do Templo, o uso de mito-
logia e ênfase nos temas de transformação e restauração (de Israel e de Criação) os
marca também como composições Zadoquitas.
Esse argumento, representativo de uma linha de pensamento sugerida ou
178
BAUMGARTEN, Albert I. The Flourishing of Jewish Sects in the Maccabean Era: An Inter-
pretation, p. 165.
179
COLLINS, J. J. Temporality and Politics in Jewish Apocalyptic Literature. In: ROWLAND, C.;
BARTON, J. (Ed.). Apocalyptic in History and Tradition, p. 26-43; aqui p. 29 (republicado em
Encounters with Biblical Theology, p. 129-141).
180
SWEENEY, M. A. The Priesthood and the Proto-Apocalyptic Reading of Prophetic and Penta-
teuchal Texts. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p.
167-178.
80
buscada por vários estudiosos, é atraente em vários níveis, embora uma maior in-
vestigação sobre o tema seja necessária. Por exemplo, uma vez que tais alusões
bíblicas, citações e temas aparecem também nos apocalipses judaicos clássicos de
um período posterior, pode-se perguntar se eles também deveriam ser considera-
dos produto do sacerdócio zadoquita. Se não, como provavelmente é o caso, pode-
ria se perguntar quais teriam sido os processos históricos que levaram ao abando-
no dessa visão de mundo pelo sacerdócio zadoquita e/ou a sua subsequente apro-
priação por parte de outros grupos.
O uso generalizado de dados e modelos sociológicos para iluminar a con-
figuração social de gênero e ideologia não tem sido poupado de críticas. Também
é um equívoco supor que todos os seus defensores são uníssonos em seus argu-
mentos e conclusões. Da mesma forma, trata-se de um erro a divisão da pesquisa
em dois campos opostos: aqueles que utilizam os frutos da investigação científico-
social e os que não os utilizam. Alguns questionam o valor desse tipo de pesquisa;
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o debate se dá mais no âmbito das condições de seu uso. Por exemplo, enquanto
afirma veementemente a grande capacidade da utilização da abordagem sociológi-
ca, Sim adverte contra seu uso indevido quando as teorias baseadas nesse modelo
orientam indevidamente a evidência.181 Ele questiona o pressuposto básico de
Grabbe de que o apocalipsismo judaico antigo pode ser classificado sob o âmbito
genérico de “milenarismo” e lista uma série de dúvidas sobre as fontes nas quais
Grabbe apoia sua pressuposição, afirmando que não há uma conexão automática
entre grupos milenaristas e a produção de apocalipses. Sim argumenta citando a
eficiente máxima de Nickelsburg de que os modelos não devem formatar a evi-
dência textual de forma predeterminada.182
A suposição mais recente de que os apocalipses e escritos a ele relaciona-
dos sejam necessariamente produto de comunidades milenaristas também é ques-
tionada por Grabbe183 (como já havia feito em relação ao apocalipsismo). Essa
linha de questionamento é seguida por outros estudiosos, especialmente contra a
visão de Hanson acerca das origens sociais dos textos chamados de proto-
apocalípticos. Em sua monografia sobre Zc 9-13, Larkin conclui que a escatologia
181
SIM, David C. The Social Setting of Ancient Apocalypticism: A Question of Method. JSP 13
(1995), p. 5-16.
182
Grabbe reitera seus argumentos em Prophetic and Apocalyptic: Times for New Definitions –
and New Thinking. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 108-109, n. 4.
183
Ibidem, p. 107-133. Cf. também a resenha do livro de S. L. Cook (Prophecy and Apocalyptic-
ism: The Postexilic Social Setting, 1995) feita por Grabbe em JTS 49.1 (1998), p. 189-191.
81
184
LARKIN, Katrina J. A. The Eschatology of Second Zechariah: A Study of the Formation of a
Mantological Wisdom Anthology (1994).
185
BOEVE, Lieven. God Interrupts History: Apocalypticism As an Indispensable Theological
Conceptual Strategy. LS 26.3 (2001), p. 195-216.
186
POLASKY, D. C. Authorizing an End: The Isaiah Apocalypse and Intertextuality, p. 13-25.
187
BARKER, Margaret. Beyond the Veil of the Temple: The High Priestly Origins of the Apoca-
lypses. SJT 51.1 (1998), p. 1-21.
188
Ibidem, p. 19-20 (grifos do autor).
82
189
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 4-5.
83
portância do luto e da dor. Fortes emoções podem ser poderosos agentes psicoló-
gicos, especialmente quando elas são vivenciadas ao longo de um período de tem-
po continuado, como é comum acontecer em grandes tristezas. Segundo ela, a dor
prolongada pode precipitar as condições associadas, psicológicas e fisiológicas,
cujos elementos se combinam para produzir uma depressão que poderia iniciar um
processo inconsciente que leva a um “sonho acordado”.
Segal discute os chamados Estados de Consciência Interpretados Religio-
samente na Bíblia Hebraica.192 A categoria abrange os sonhos e visões, mas em
seu vocabulário e imaginário intercepta fenômenos como o sono, transes, êxtase e
possessão espiritual. Segal discute os rituais e as técnicas para indução (ou produ-
ção) de tais estados. Ele assevera que o conteúdo dos apocalipses não pode ser
simplesmente o resultado de exegese, mas deve ser atribuído também à experiên-
cia do visionário. Ele cita o exemplo da visão do Ancião de Dias e de “um seme-
lhante a um ser humano” em Dn 7, o que ele chama de um “sonho-visão’. Eles não
são, de acordo com Segal, midrashim, homilias, targumim ou pesharim. Esse meio
de revelação foi levado a sério pelos judeus da época de Daniel, e por aqueles do
190
MERKUR, D. The Visionary Practices of the Jewish Apocalypticists. In: BOYER, L. Bryce;
GROLNIK, S. A. (Ed.). The Psychoanalytic Study of Society, p. 119-148. v. XIV.
191
YARBRO COLLINS, A. Meaning and Significance in Apocalyptic Texts. In: Cosmology and
Eschatology in Jewish and Christian Apocalypticism, p. 1-20.
192
RIBAs, a sigla em inglês. Cf. SEGAL, A. F. Apocalypticism and Life After Death. PIBA 22
(1999), p. 41-63.
84
autênticos; e (4) o uso intenso desses três primeiros elementos faria sucumbir
qualquer cerne de autenticidade, deixando-a fora do alcance de recuperação.
Entretanto, usando o exemplo de 4 Esdras e seguindo uma linha de pensa-
mento que ele desenvolveu a partir de seu comentário da série Hermeneia e logo
depois,196 Stone demonstra sistematicamente que “quase todas [essas objeções]
cessam no momento em que a ‘realidade’ da experiência religiosa pode ser de-
monstrada”.197 Ele argumenta que a sofisticação dos relatos denota a sua veracida-
de e observa que convenção literária e elementos do cabedal cultural não contradi-
zem a realidade da experiência. Stone não faz distinção entre o “Esdras” do texto e
o autor do texto: a fonte da descrição da revelação é o “conhecimento direto ou
mediado da experiência religiosa”.198 Esse relato só poderia ser comunicado em
um linguajar cultural específico que usava e reusava certas palavras e imagens,
uma vez que “não há nenhuma outra linguagem que possa ser usada por eles”.199
193
HIMMELFARB, M. Revelation and Rupture: The Transformation of the Visionary in the As-
cent Apocalypses. In: COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revela-
tions, p. 79-90; aqui p. 87.
194
Idem. The Practice of Ascent in the Ancient Mediterranean World. In: COLLINS, J. J.; FISH-
BANE, M. (Ed.). Death, Ecstasy, and Other Worldly Journeys, p. 123-137.
195
STONE, Michael E. A Reconsideration of Apocalyptic Visions. HTR 96.2 (2003), p. 167-180.
196
Idem. Fourth Ezra: A Commentary on the Book of Fourth Ezra (Hermeneia, 1990); Idem: On
Reading an Apocalypse. In: COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Op. cit. p. 65-78.
197
Idem. A Reconsideration of Apocalyptic Visions. Op. cit. p. 177.
198
Ibidem, p. 178.
199
Ibidem, p. 179 (grifo do autor).
85
Dado o exposto e seja como for, o fato é que os leitores apocalípticos en-
tendiam a veracidade da mensagem, independentemente de considerarem a expe-
riência do visionário concreta ou não. O mais importante era o conteúdo da mes-
ma. Para tanto, era extremamente neste processo de comunicação o fenômeno da
pseudonímia.
200
Cf. ROWLAND, C. The Open Heaven: A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christian-
ity, p. 243.
201
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 128.
86
de e aceitação ao escrito, uma vez que a Torá era, nessa época, a autoridade maior,
fato que dificultava a aceitação de revelações recentes. Outro fator é que duas par-
tes (coletâneas) das Escrituras Judaicas já estavam cristalizadas por volta de 200
a.C. Somente entre os Hagiógrafos continuaram a ser admitidos livros até 100
a.C.; no entanto, esses escritos teriam que remontar no mínimo ao tempo do per-
sonagem Esdras para ser aceitos. O único apocalíptico que conseguiu admissão foi
o livro de Daniel, entre os Hagiógrafos, talvez pela aceitação do mérito antigo de
seu nome.
Rowley dá uma sugestão mais pragmática, explicando a origem da pseu-
donímia pelo livro de Daniel. 202 O escritor desse livro teria publicado histórias so-
bre Daniel anonimamente; quando escreveu as visões da segunda parte, o fez em
nome de Daniel para simplesmente estabelecer sua identidade com o escritor da
primeira parte do livro (as histórias dos capítulos 1 a 6). Assim, a pseudonímia não
foi feita com uma intenção consciente, mas como uma técnica literária que foi co-
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piada pelos outros escritores. Entretanto, ao que se consta, a pseudonímia não pa-
rece ter sido um simples recurso literário; a maior parte dos escritos apocalípticos
parece ter sido aceita pelos leitores como revelação genuína, e a mesma convicção
parece estar firmemente alicerçada na mente dos escritores. Collins assevera que:
Devemos assumir, pelo menos, que os círculos imediatos dos autores estavam
conscientes da maneira pela qual as obras eram de fato produzidas. Em contraste,
a atribuição dos livros apocalípticos [à pseudonímia] era aparentemente aceita pe-
lo público em geral, e não há evidência de que a convenção literária era comu-
203
mente reconhecida no judaísmo ou cristianismo primitivo.
202
ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica: um estudo da literatura apocalípti-
ca judaica e cristã de Daniel ao Apocalipse, p. 39-40.
203
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 56.
204
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 127-139.
205
Ibidem, p. 137.
87
O próprio Russell reconheceu que não há provas disso nos escritos;206 en-
tretanto, assinala que há indicações em muitos livros apocalípticos de que a esco-
lha do pseudônimo não foi totalmente arbitrária, mas sim em consonância com a
perspectiva do escritor, ou seja, frequentemente existe uma conexão entre o pseu-
dônimo escolhido e os problemas que ocupavam a mente do escritor.
Além do uso específico do nome na cultura hebraica, Russell emprega ain-
da duas noções para defender seu argumento: a de “personalidade corporativa”, ou
seja, o grupo engloba a todos os indivíduos que a ele pertencem, de tal forma que
existe uma “identidade” entre o indivíduo e os membros desse grupo, e a da “con-
temporaneidade”, ou seja, dois eventos separados podem ser equiparados e vistos
como um só por causa da semelhança em seu “conteúdo psicológico”.207
Essa ideia da “união quase mística” entre o escritor apocalíptico e o nome
da tradição na qual está inserido recebeu muitas críticas, sendo até mesmo desa-
creditada pelos estudiosos em geral. De fato, elas vão além do que dizem os escri-
tos. Russell mesmo reconheceu sua fragilidade posteriormente.208 Mas continuou
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206
Ibidem, p. 138.
207
Ibidem, p. 132-137.
208
Idem. Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica, p. 97.
209
Ibidem, p. 99-100.
210
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Vision of the Book of Daniel, p. 72.
88
211
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 109-113.
212
Cf. PRITCHARD, J. B. (Ed.). ANET, p. 265.
89
data a obra como sendo, provavelmente, do I século a.C., juntamente com o Tes-
tamento de Abraão.216
Durante muito tempo o livro foi conhecido pela tradução etiópica desco-
berta na Etiópia em 1769 (daí sua alcunha “Enoque etiópico”).217 Com as desco-
bertas em Qumran, foram encontrados fragmentos aramaicos de todas as seções do
livro, exceto para as chamadas Similitudes ou Parábolas de Enoque (capítulos 37-
71). O fragmento mais antigo pode ser datado da primeira metade do século II
a.C., confirmando a hipótese de Rowley. Isso atesta, pelo menos, que a maior par-
te da obra que se conhece atualmente era já conhecida da comunidade de Qumran
em época pré-cristã. O livro 5 (91-108, a Epístola de Enoque) possui fragmentos
correspondentes aos capítulos 91-94 (onde se menciona a ressurreição corporal)
encontrados em Qumran datados de cerca de 50 a.C.,218 sendo as ideias escatoló-
gicas apresentadas neles, com certeza, bem mais antigas que essa data, podendo
representar uma tradição mais antiga que a do livro de Daniel.
213
Eclo 44,16: “Enoque agradou ao Senhor e foi arrebatado, exemplo de sabedoria para as gera-
ções”; 49,14: “Ninguém sobre a terra foi criado igual a Enoque, ele que foi arrebatado da terra”.
214
RUSSELL, D. S. Desvelamento divino, p. 64.
215
ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica, p. 57.
216
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination, p. 35.
217
Pela mesma razão, o 2 Enoque é conhecido como Enoque eslavônico e o 3 Enoque como o Li-
vro hebreu de Enoque.
218
Cf. MILIK, Jazef T. (Ed.). The Books of Enoch: Aramaic Fragments of Qumrân Cave 4, p. 6.
90
geiras. Em Ezequiel (14,14.20; 28,3) ele aparece sob a forma Dan’el, sendo asso-
ciado a Noé e a Jó em 14,14.20 como três heróis populares louvados no texto por
sua justiça e poder de intercessão, e em 28,3 por sua sabedoria e conhecimento
acerca das tradições secretas. Fora de Israel sua justiça e sabedoria são louvadas
nos poemas de Ras Shamra (em tabletes encontrados no norte da Síria, em Ugarit,
datados no XIV século a.C.), na legenda de Aqatu, onde é feita menção a certo
Dan’el, um homem justo que zelava pelos órfãos e viúvas na angústia deles.219
Não é certo que o Dan’el de Ras Shamra se refira ao de Ezequiel, nem que
ambas as referências possam ser identificadas com o Daniel apocalíptico, mas a
evidência torna essa identificação bastante plausível. É provável que o redator de
Daniel conhecesse o livro de Ezequiel, como já conhecia na mesma época Ben
Siraque (Eclo 49,6-7), o que também pode ser atestado quando se compara o orá-
culo de Ez 31 com Dn 4.220
Portanto, o redator de Daniel deve ter retirado o nome de seu herói da tra-
dição do herói antigo, provavelmente a partir de Ezequiel; o fato de o antigo
Dan’el ser renomado por sua justiça e sabedoria em revelar segredos e mistérios
deu o recurso necessário para que o escritor adotasse seu nome. De fato, em Dn
219
Cf. PRITCHARD, J. B. (Ed.). ANET, p. 149-155.
220
A grandeza do Faraó é descrita em Ezequiel por meio de uma parábola que evoca a grandeza do
cedro do Líbano, mesmos termos utilizados para descrever a grandeza de Nabucodonosor no capí-
tulo 4 do livro de Daniel.
91
1,4 o herói do livro e seus três companheiros são descritos como “instruídos em
toda sabedoria, conhecedores da ciência e sutis no entendimento”, além de instruí-
dos na “escrita e língua dos caldeus”. Como nas outras duas tradições, Daniel é
orientado a manter segredo sobre as revelações (8,26; 12,4.9), mantendo o livro
lacrado até o tempo determinado; é a expressão do caráter esotérico presente tam-
bém nesta tradição.
Esses três nomes não esgotam os pseudônimos usados nos apocalípticos,
sendo apenas os principais; aparecem também, por exemplo, Abraão, os Patriar-
cas, Salomão, Isaías e Baruque. Em relação à possibilidade de ciclos de escritos
formados por nomes de heróis lendários, Trebolle Barrera afirma que:
Possivelmente existissem ciclos de escritos apócrifos, cada um colocado sob a au-
toridade de um personagem bíblico ou neotestamentário como Daniel, Esdras,
Maria, Pilatos, os apóstolos e outros personagens do cristianismo nascente. Estes
ciclos estavam relacionados, quem sabe, com escolas, que seguiam um mestre e
221
representavam uma linha determinada da tradição.
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Por muito tempo a apocalíptica foi vista como uma literatura e forma de
pensar completamente separada do profetismo, da escatologia e da literatura sapi-
encial. Os trabalhos de estudiosos como Betz,222 Cross223 e especialmente Martin
Hengel224 estabeleceram um forte fundamento para o estudo moderno da origem e
desenvolvimento dos apocalipses antigos e do apocalipsismo. A influência do
221
TREBOLLE BARRERA, Julio. A Bíblia hebraica e a Bíblia cristã, p. 285.
222
BETZ, H. D. On the Problem of the Religio-Historical Understanding of Apocalypticism. In:
FUNK, Robert W. (Ed.). Apocalypticism, p. 134-156 (1969; original alemão de 1966).
223
CROSS, F. M. New Directions in the Study of Apocalyptic. In: FUNK, R. W. (Ed.). Op. cit. p.
157-165.
224
HENGEL, Martin. Judaism and Hellenism : Studies in Their Encounter in Palestine during the
Early Hellenistic Period. 2 v. (1974, original alemão de 1969).
92
225
HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East (1989).
226
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: McGINN,
B.J.; COLLINS, J.J.; STEIN, S.J. (Ed.). The Continuum History of Apocalypticism, p. 64-88.
227
Dentre todas essas obras, as que mais interessam para o objetivo deste trabalho (a questão das
mudanças nas concepções judaicas acerca do pós-motre, especialmente a ressurreição individual
seguida de julgamento, com desdobramentos no cristianismo primitivo) além de Daniel são 1 Eno-
que 2 Macabeus. Em relação ao primeiro, conforme já assinalado supra, a obra faz parte de uma
tradição judaica do Período do Segundo Templo que tinha a figura do Patriarca Enoque em alta
93
estima, o que vale também para a tradição cristã primitiva: em Jd 14.15, Enoque é descrito como
um profeta, o “sétimo dos patriarcas a contar de Adão”, que profetizou o juízo de Iahweh contra os
ímpios e o julgamento de todos os homens. Trata-se de uma referência a 1En 1,9, obra à qual cer-
tamente se creditou alguma autoridade como livro sagrado no cristianismo primitivo.
228
ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica, p. 23.
229
Ibidem, p. 14.
230
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 178-202.
231
Ibidem, p. 181. Deve-se ressaltar, no entanto, que a escola britânica (da qual Russell e Rowley
são dois dos principais representantes) foi grandemente influenciada no século passado pelos estu-
dos de R. H. Charles (erudito do final do século XIX e início do XX); Charles descreveu a origem
da apocalíptica principalmente em função da profecia veterotestamentária. Apesar de a profecia ser
considerada, de fato, a principal fonte da literatura apocalíptica também por outras escolas, a assi-
milação exagerada da profecia na apocalíptica pode levar a perder de vista os componentes mitoló-
gicos e cosmológicos estrangeiros presentes nessa literatura (cf. COLLINS, J. J. The Apocalyptic
Imagination, p. 15). De qualquer forma, apesar de fundamentarem a apocalíptica a partir da profe-
cia, Russell e Rowley também admitiram a influência estrangeira na apocalíptica judaica.
232
RIST, M. Apocalypticism. In: BUTTRICK, G. A. (Ed.). IDB, p. 157. v. 1.
94
233
Cf. especialmente FROST, Stanley B. Old Testament Apocalyptic: Its Origins and Growth, p.
19 passim.
234
CROSS, F. M. New Directions in the Study of Apocalyptic. In: FUNK, Robert W. (Ed.). Apo-
calypticism, p. 157-165; aqui p. 163.
235
CARROLL, R. P. When Prophecy Failed: Cognitive Dissonance in the Prophetic Traditions of
the Old Testament. Cf. ainda, do mesmo autor, Second Isaiah and the Failure of Prophecy. ST 32
(1978), p. 119-131; Twilight of Prophecy or Dawn of Apocalyptic? JSOT 14 (1979), p. 3-35.
95
plo tentaram recapturar a ênfase na predição,236 a qual tinha sido a esfera de ação
da profecia israelita clássica, mas foi abandonada em favor de uma ênfase no arre-
pendimento através da Torá.237
Arcari compreende o aumento do apocalipsismo em termos de um desen-
volvimento social e literário de um novo modo de interpretação dos textos proféti-
cos, que começou no início do período pós-exílico e continuou por todo o judaís-
mo e cristianismo antigos.238 Aranda Pérez argumenta que a perda do Templo, as
experiências do exílio e as exigências do retorno expandiram e alteraram o concei-
to de revelação ao longo de linhas que alcançariam sua expressão plena nos apoca-
lipses clássicos.239
Hanson, conforme já assinalado supra, também fez uma reavaliação da a-
pocalíptica retornando a busca da sua origem muito antes do livro de Daniel. Ele
acredita que a origem da apocalíptica se dá a partir da escatologia profética.240
Mais especificamente, a apocalíptica teria sua raiz na tradição profética antiga.
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236
CLEMENTS, Ronald E. Prophecy and Tradition, p. 73-86.
237
Cf. também KNIBB, M. Prophecy and the Emergence of the Jewish Apocalypses. In: COG-
GINS, R; PHILLIPS, A.; KNIBB, M. (Ed.). Israel’s Prophetic Tradition: Essays in Honour of
Peter R. Ackroyd, p. 155-180, onde a escatologia apocalíptica representa uma continuação da ex-
pectativa futura dos profetas (p. 176).
238
ARCARI, L. La titolatura dell’Apocalisse di Giovanni: “apocalisse” o “profezia”? Appunti per
una ri-definizione del “genere apocalittico” sulla scorta di quello “profetico”. Henoch 23 (2001), p.
243-265. Cf. também, do mesmo autor, Sui rapporti tra apocalissa “con viaggio ultraterreno” e
“senza viaggio ultraterreno”. Indagine per una “storia” de “genere apocalittico”. Henoch 26 (2004),
p. 63-85.
239
ARANDA PÉREZ, G. El destierro de Babilonia y las raíces de la apocalíptica. EstBíb 56
(1998), p. 335-355.
240
HANSON, P. D. Old Testament Apocalyptic Reexamined. Int 25.4 (1971), p. 454-479; Idem.
The Phenomenon of Apocalyptic in Israel: Its Background and Setting. In: The Dawn of Apocalyp-
tic, p. 1-31; Idem. Apocalypticism. In: CRIM, Keith (Ed.). IDBSup, p. 29-34; Idem. (Ed.). Intro-
duction. In: Visionaries and Their Apocalypses, p. 1-15; Idem. Israelite Religion in the Early Post-
Exilic Period. In: MILLER, P.D., Jr.; HANSON, P.D.; McBRIDE, S.D. (Ed.). Ancient Israelite
Religion: Essays in Honor of Frank Moore Cross, p. 485-508.
241
Sobre a proto-apocalíptica nos textos de Ezequiel e Zacarias, cf. também COOK, S. L. Prophe-
cy and Apocalypticism: The Postexilic Social Setting, p. 85-166; COLLINS, J. J. The Eschatology
of Zechariah. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p.
74-84.
242
A tendência da crítica atual é considerar o trecho de Is 24-27 como sendo exílico ou do início
do pós-exílio (cf. HANSON, Paul D. The Dawn of Apocalyptic, p. 27.313-315. Hanson considera
Is 24-27 como sendo um “apocalipse primitivo”). Sobre a datação deste trecho de Isaías, cf. ainda
JÜNGLING, Hans-Winfried. O Livro de Isaías. In: ZENGER, Erich (Ed.). Introdução ao Antigo
Testamento, p. 380-398; aqui p. 395. Millar também defende Is 24-27 como um “proto-apocalipse”
(cf. MILLAR, W. R. Isaiah 24-27 and the Origin of Apocalyptic). Muitos estudiosos discordam
96
247
justifica.
dessa opinião: cf., por exemplo, a conclusão de N. O. Skjoldal: “Os capítulos 24-27 de Isaías não
fornecem auxílio na reconstrução do background histórico e sociológico da literatura apocalíptica”
(SKJOLDAL, Neil O. The Function of Isaiah 24-27. JETS 36.2 (1993), p. 163-172; aqui p. 172).
243
COOK, S. L. Prophecy and Apocalypticism: The Postexilic Social Setting, p. 167-210; SWEE-
NEY, M. A. The Priesthood and the Proto-Apocalyptic Reading of Prophetic and Pentateuchal
Texts. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 167-187; PLÖGER, Otto. Theocracy
and Eschatology, p. 26-105.
244
ATTRIDGE, H. W. Greek and Latin Apocalypses. In: COLLINS, J. J. (Ed.). Apocalypse: The
Morphology of a Genre. Semeia 14 (1979), p. 159-186. Wilson considera que a Crônica Demótica
“também pode ter sido criada como propaganda política (...) O texto como um todo foi criado pro-
vavelmente pelo mesmo tipo de grupo oprimido responsável pelo ‘Oráculo do oleiro’, servindo
para articular os pontos de vista próprios do grupo” (Cf. WILSON, Robert R. Profecia e sociedade
no antigo Israel, p. 160). Entretanto, Wilson classifica o texto como “outro exemplo de profecia
periférica em forma escrita” (Ibidem, com referências para a discussão do tema).
245
OLSON, D. C. Jeremiah 4.5-31 and Apocalyptic Myth. JSOT 73 (1997), p. 81-107.
246
JOHNSON, T. J. Job As Proto-Apocalypse: Proposing a Unifying Genre. PhD Dissertation,
Marquette University, 2004.
247
Idem. Job As Proto-Apocalypse: A Fresh Proposal for Job’s Governing Genre. SBLSP 43
(2004), p. 227-250; aqui p. 236. Collins já havia observado que o livro de Jó “tem grandes afini-
dades com a apocalíptica” (cf. COLLINS, J. J. Cosmos and Salvation: Jewish Wisdom and Apoca-
lyptic in the Hellenistic Age. HR 17.2 (1977), p. 121-142; aqui p. 140. Na nota 74 dessa mesma
página ele afirma que o livro de Jó é “o livro da sabedoria hebraica que tem as maiores afinidades
com a apocalíptica”). Collins alega que Jó, assim como outros apocalipses, “surge de uma falha em
encontrar a ordem e a justiça no mundo”, e a “revelação sobrenatural” advinda no turbilhão da
tempestade ajuda a Jó na superação dessa questão. Christopher Rowland dedicou duas páginas de
seu clássico estudo sobre a literatura apocalíptica às características apocalípticas de Jó e concluiu
que “a estrutura de Jó como um todo oferece uma forma embrionária dos apocalipses tardios” (cf.
ROWLAND, C. The Open Heaven, p. 206-207). F. M. Cross achou interessante que a Comunidade
de Qumran tenha preservado o livro de Jó em paleo-hebraico; segundo ele, é “intrigante que a im-
portância de Jó não foi esquecida nos círculos apocalípticos” (cf. CROSS, F. M. New Directions in
the Study of Apocalyptic. In: FUNK, R. W. (Ed.) Apocalypticism, p. 157-165; aqui p. 162-163).
97
248
CLEMENTS, Ronald E. The Interpretation of Prophecy and the Origin of Apocalyptic. In: Old
Testament Prophecy: From Oracles to Canon, p. 182-188.
249
BECKING, B. Expectations about the End of Time in the Hebrew Bible: Do They Exist? In:
ROWLAND, C.; BARTON, J. (Ed.). Apocalyptic in History and Tradition, p. 44-59; aqui p. 44.
250
Ibidem, p. 57-59.
251
Cf. SOARES, Dionísio O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho
da estátua de Nabucodonosor. Dissertação de Mestrado, PUC-Rio, 2006.
252
ALLEN, Leslie C. Some Prophetic Antecedents of Apocalyptic Eschatology and Their Herme-
neutical Value. Ex Auditu 6 (1990), p. 15-28.
253
REVENTLOW, Henning G. The Eschatologization of the Prophetic Books: A Comparative
Study. In: Eschatology in the Bible and in Jewish and Christian Tradition, p. 169-188.
254
SWEENEY, M. A. The Priesthood and the Proto-Apocalyptic Reading of Prophetic and Penta-
teuchal Texts. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p.
167-178; aqui p. 167.
255
UFFENHEIMER, Benjamin. From Prophetic to Apocalyptic Eschatology. In: REVENTLOW,
H. G. (Ed.). Op. cit. p. 200-217; aqui p. 201. Mariano Bianca também propõe uma classificação
em quatro tipos de escatologias, uma das quais é um modelo de “apocalíptica”; entretanto, sua
classificação serve mais como modelo de guia, muito menos baseada historicamente (cf. BIANCA,
98
Ressalta-se ainda que a própria profecia surgiu num ambiente religioso mí-
tico, com a atividade divina situada num plano cósmico, sendo a esfera mundana
considerada somente reflexão do drama dos deuses. Assim, segundo Hanson, as
influências que fizeram surgir a literatura apocalíptica judaica se devem, primei-
ramente, a uma renovação com maior intensidade de material mítico enraizado em
solo israelita muito antes do Período Helenístico, o qual Russell já havia apontado
anteriormente, como já assinalamos. Daí a necessidade de análise de textos da lite-
ratura profética mais antigos.
Hanson também aponta diferenças: no profetismo clássico, a história hu-
mana era a esfera para a relação de alianças de YHWH com seu povo, não estando
presa a uma pré-determinação em direção a um final (o povo podia se arrepender e
YHWH mudar seus planos, tudo com o intuito de realizar as promessas da alian-
ça); na apocalíptica, a história é usada como uma espécie de calendário que aponta
para o fim, quando o poder do mal que aprisiona os eleitos será quebrado (dualis-
mo); além disso, a apocalíptica usa muito mais a profecia ex eventu para firmar a
credibilidade do vidente. O profetismo possui a tensão de relacionar expressamen-
te a esfera divina com a humana, ausente no caráter esotérico do apocalipsismo;
tóricas e terrenas. O profeta interpreta como o plano divino para Israel e o mundo
“será efetuado no âmbito do contexto da história da nação deles [profeta e povo] e
da história do mundo”.261 Em contrapartida, a escatologia apocalíptica:
Concentra-se na revelação (geralmente de natureza esotérica) ao eleito da visão
cósmica da soberania de Iahweh – especialmente quando ela se relaciona com a
atuação de Iahweh para libertar seus fiéis – revelação essa que os visionários em
grande parte deixaram de traduzir em termos de história comum, políticas reais e
instrumentalidade humana, devido a uma visão pessimista da realidade, a qual era
crescente nas áridas condições do pós-exílio, dentro das quais aqueles associados
ao visionários se encontravam. Essas condições pareciam ser para eles inadequa-
262
das como contexto para a almejada restauração do povo de Iahweh.
261
HANSON, P. D. The Dawn of Apocalyptic, p. 11.
262
Ibidem.
263
OSWALT, J. N. Recent Studies in Old Testament Apocalyptic. In: BAKER, D. W.; ARNOLD,
B. T. (Ed.). The Face of Old Testament Studies: A Survey of Contemporary Approaches, p. 369-
390; aqui p. 380.
101
264
POLASKI, D. C. Authorizing an End: The Isaiah Apocalypse and Intertextuality, p. 1-241, 280-
361.
265
Ibidem, p. 48.
266
Ibidem, p. 18.
267
GRABBE, L. L. The Social Setting of Early Jewish Apocalypticism. JSP 4 (1989), p. 27-47;
Idem. Poets, Scribes, or Preachers? The Reality of Prophecy in the Second Temple Period. SBLSP
37 (1998), p. 524-545; BAUMGARTEN, A. I. The Pursuit of the Millennium in Early Judaism. In:
STANTON, G. N.; STROUMSA, G. G. (Ed.). Tolerance and Intolerance in Early Judaism and
Christianity, p. 38-60.
268
GRUENWALD, I. Priests, Prophets, Apocalyptic Visionaries, and Mystics. In: From Apocalyp-
ticism to Gnosticism: Studies in Apocalypticism, Merkavah Mysticism and Gnosticism, p. 125-144.
102
269
SIM, David C. The Major Characteristics of Apocalyptic Eschatology. In: Apocalyptic Escha-
tology in the Gospel of Matthew, p. 23-53.
270
AUNE, D. E. Understanding Jewish and Christian Apocalyptic. Word & World 25.3 (2005), p.
233-254; aqui p. 236.
271
Ibidem, p. 236.
272
ALISSON, D. C., Jr. Apocalyptic. In: GREEN, Joel B.; McKNIGHT, Scot (Ed.). Dictionary of
Jesus and the Gospels, p. 17-20; aqui p. 18.
273
Ibidem, p. 18.
103
tivos e temas acerca da ideia de fim que Collins separa mais plenamente em outros
trabalhos.276 O judaísmo primitivo experimentou dois grandes resplendores na
produção de apocalipses: na primeira metade do II século a.C., pouco antes e du-
rante a Revolta dos Macabeus, e novamente nas décadas seguintes ao ano 70 d.C.,
um período representado por 4 Esdras, 2 e 3 Baruque. No entanto, o apocalipsismo
e a literatura apocalíptica não desapareceram nos séculos intermediários, e Collins
identifica diversas preocupações e interesses escatológicos que se desenvolveram
ou se tornaram proeminentes durante esse período.
Em uma longa e valiosa contribuição, a qual parcialmente confronta seus
trabalhos anteriores sobre temas relacionados, Grabbe afirma que é hora de se es-
tabelecer novas definições para o que se chama de “profético” e “apocalíptico”.277
Sua argumentação se dá na sobreposição dos modos (ou formas) de pensamento
profético, apocalíptico e mântico. Poucos negariam atualmente que existe tal so-
breposição, mas Grabbe entende que ela é heuristicamente significativa o suficien-
274
MARSHALL, J. W. Apocalypticism and Anti-Semitism: Inner-Group Resources for Inter-
Group Conflicts. In: KLOPPENBORG, J. S.; MARSHALL, J. W. (Ed.). Apocalypticism, Anti-
Semitism and the Historical Jesus: Subtexts in Criticism, p. 68-82; aqui p. 70.
275
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: The Encyc-
lopedia of Apocalypticism, p. 129-161. v. 1.
276
Cf. especialmente The Apocalyptic Imagination, p. 43-115.
277
GRABBE, Lester L. Prophetic and Apocalyptic: Time for New Definitions – and New Think-
ing. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 107-133.
Esta obra é a mais recente e importante sobre o tema das escatologias profética e apocalíptica.
104
278
Ibidem, p. 123; cf. também, do mesmo autor, Poets, Scribes, or Preaches? The Reality of
Prophecy in the Second Temple Period. SBLSP 37 (1998), p. 524-545, republicado com pequena
revisão em Knowing the End from the Beginning, p. 192-215; na p. 212 Grabbe afirma: “Qualquer
que seja a diferença real entre profecia e apocalíptica, em nível literário elas parecem ter funciona-
do de uma forma muito semelhante”.
279
GRABBE, L. L. Prophetic and Apocalyptic: Time for New Definitions – and New Thinking. In:
Op. cit. p. 130.
280
Cf. o artigo de Rowland no mesmo volume: ROWLAND, C. Apocalypse, Prophecy and the
New Testament. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 149-166. Cf. também, sobre
esse tema, GREENSPAHN, F. E. Why Prophecy Ceased. JBL 108.1 (1989), p. 37-49, e ALEX-
ANDER, P. S. “A Sixtieth Part of Prophecy”: The Problem of Continuing Revelation in Judaism.
In: DAVIES, J.; HARVEY, G; WATSON, W.G.E. (Ed.). Words Remembered, Texts Renewed:
Essays in Honour of John F. A. Sawyer, p. 414-433.
105
literários prematuros) sob uma categoria mais ampla, como “adivinhação”, não
avança o conhecimento acerca dos temas, uma vez que ainda é preciso distinguir
uma subcategoria das outras. Mesmo se definições categóricas precisas forem im-
possíveis, “uma abordagem que não enxergue diferença entre Isaías e Daniel, ou
entre astrologia e profecia não é, em última instância, muito útil para a compreen-
são de coisa alguma em sua especificidade”.286
Vê-se assim que a ligação entre a profecia e apocalipse é mais articulada
regularmente em termos de suas escatologias.
Outra linha de pensamento acerca da origem da apocalíptica é a tese de que
sua origem se dá na literatura sapiencial.287 Seu mais conhecido expoente, Gerhard
Von Rad, vê a origem da apocalíptica na literatura sapiencial, identificando o ele-
mento central da apocalíptica como sendo a interpretação da história e a observa-
ção de diversos “tempos”.288 Segundo ele, “a apocalíptica parece ter as suas ori-
gens principalmente nas tradições da sabedoria”.289 Mais recentemente, Gammie
retomou essa tese e a expandiu.290
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286
Ibidem, p. 51.
287
A sabedoria como saber prescritivo é um fenômeno sem fronteiras no Oriente Antigo, expresso
em diversas formas literárias. Poderia ser definida, grosso modo, como um saber prático baseado
na experiência e utilizado com o intuito de orientação. Uma definição escolar, em geral, perde-se
nos detalhes, pois essa sabedoria constitui “ao mesmo tempo um corpo literário, um modo de pen-
sar e uma tradição” (cf. ASENSIO, V. M. Livros sapienciais e outros escritos, p. 32).
288
Cf. VON RAD, G. The Divine Determination of Times. In: Wisdom in Israel, p. 263-283.
289
Idem. Daniel e o apocalipse. In: Teologia do Antigo Testamento, p. 723-744; aqui p. 724.
290
GAMMIE, J. G. From Prudentialism to Apocalypticism: The Houses of the Sages amid the Va-
rying Forms of Wisdom. In: GAMMIE, J. G.; PERDUE, Leo G. (Ed.). The Sage in Israel and the
Ancient Near East, p. 479-497.
291
1En 37,2 relata: “Este é o início das palavras de sabedoria as quais eu desejo transmitir em alta
voz, dizendo àqueles que habitam na Terra: ‘Escutai, vós Patriarcas, e olhai vós, os descendentes,
as palavras do Único Santo, as quais eu ensino diante do Senhor dos Espíritos’” (cf. CHARLES-
WORTH, J. H. (Ed.). OTP, p. 29-30. v. 1).
107
O próprio “Filho do Homem” não vem de Israel, mas “desce das nuvens”, fazendo
da salvação um ato escatológico e futuro. Essa pré-determinação histórica e a in-
terpretação desta por meio de sonhos e visões é função do “homem sábio”: “De
fato, a tarefa principal dos sábios em toda a história espiritual do antigo Oriente
foi compreender os tempos, interpretar os oráculos e sinais, decifrar os sonhos dos
reis”.294 A interpretação dos sonhos já era considerada uma “ciência empírica” pe-
los antigos egípcios, e a ideia da pré-determinação é uma noção essencial da anti-
ga sabedoria oriental. Essa determinação dos tempos encontra eco na literatura
sapiencial do AT em Eclesiastes (3,1ss) e no Sirácida (4,20; 20,6ss; 27,12); se-
gundo este, Deus já determinou o bem e o mal “desde o começo” (Eclo 39,25).
Von Rad compara ainda a interpretação do sonho dada por Daniel com a
de José em Gn 41, verificando que possuem mais pontos em comum do que dife-
renças; entre outras coisas, observa também que na narrativa de José o intérprete
carismático já propõe um esquema periódico da história (divisão em tempo de sal-
vação e tempo de desgraça).
A tese da origem da apocalíptica na sabedoria foi rejeitada por muitos es-
292
VON RAD, G. Daniel e o apocalipse. In: Teologia do Antigo Testamento, p. 723-744; aqui p.
736.
293
O esquema da sucessão de impérios presente em Dn 2 já devia existir no VI século a.C., como,
por exemplo, nas profecias dinásticas (cf. GRAYSON, A. K. Babylonian Historical-Literary
Texts, p. 13-37); cf. tratamento infra.
294
VON RAD, G. Op. cit. p. 731.
108
do apocalipsismo; “este material pode levar muito facilmente a uma pista erra-
da”.298 Ele acredita que Von Rad chega a conclusões equivocadas por partir de um
ponto metodologicamente equivocado. A maioria das ideias apocalípticas que Von
Rad ancora na sabedoria são comprovadas por obras secundárias em relação a Da-
niel. Osten-Sacken, como Von Rad, também vai buscar referência em Dn 2, mas
em relação ao Dêutero-Isaías. Nesse particular, ele se aproxima de Hanson.
Com relação à tese de que a característica apocalíptica da determinação es-
quemática da história está já presente no Eclesiastes, Osten-Sacken assevera que
em lugar algum da literatura sapiencial os enunciados deterministas (inclusive os
do Pregador) se referem à história como um todo político a movimentar as nações
levando-as a um fim no qual tudo se consumará, como ocorre na apocalíptica; di-
zem respeito apenas ao indivíduo e ao processo natural, situando a pessoa humana
como parte da Criação, contrapondo Criador onipotente e criatura impotente.
Osten-Sacken aceita que o apocalipsismo recebeu cunho sapiencial em fase
relativamente tardia. Conclui que “o apocalipsismo é filho legítimo, se bem que
295
Cf. por exemplo HANSON, P. D. Apocalypses and Apocalypticism. Introductory Overview. In:
FREEDMAN, David N. (Ed.). ABD, p. 279-292. v. 1; aqui p. 281.
296
RUSSELL, D. S. Desvelamento divino, p. 44.
297
Entretanto, conforme demonstrado neste trabalho, a apocalíptica judaica possui paralelos bem
anteriores aos séculos III e II a.C. (época dos livros de 1 Enoque e Daniel, respectivamente, sendo
o livro de Daniel um desenvolvimentos já maduro do gênero apocalíptico).
298
OSTEN-SACKEN, Peter von der. Die Apokalyptik in ihrem Verhältnis zu Prophetie und
Weisheit. ThEH 157 (1969), p. 18-34; aqui p. 20.
109
299
Ibidem, p. 34.
300
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination, p. 92.
301
Collins chama a atenção também para o fato relevante de que a história de José também é situa-
da num lugar de exílio: o Egito (assim como a dominação estrangeira no marco social de Daniel).
Idem, loc. cit.
302
Trata-se aqui do Aicar assírio, ou seja, Palavras de Aicar, no qual são reunidos os temas de
conselhos à juventude escritos por Aicar (talvez fictício) no intuito de educar seu herdeiro (Aicar
foi conselheiro dos reis Senaqueribe, 704-681 a.C., e Assaradon, 680-669 a.C.). A data desta obra é
incerta: Víctor M. Asensio a coloca no V ou IV século a.C. (cf. ASENSIO, V. M. Livros sapienci-
ais e outros escritos, p. 84), e José V. Líndez afirma que sua versão egípcia já existia no VI século
a.C. (cf. LÍNDEZ, J. V. Sabedoria e sábios em Israel, p. 27). Trata-se da história de um funcioná-
rio real que, após ser traído por seu sobrinho, caiu em desgraça. Entretanto, os enigmas que o so-
brinho traidor precisava esclarecer eram superiores à sua capacidade perceptiva. Aicar os desven-
dou e voltou triunfante para a corte; então castigou seu sobrinho e lhe dirigiu censuras. Em Tb
1,21-22; 2,10; 11,18; 14,10 esse legendário personagem é citado (cf. o texto em CHARLES, R. H.
(Ed.). APOT, p. 715-784. v. 2; para uma versão em língua espanhola, cf. BOROBIO, E. Martínez.
In: MACHO, A. Díez (Ed.). Apócrifos del Antiguo Testamento, p. 169-189. v. 3).
110
Deus de Israel), o que já não ocorre no relato de Aicar. O que é certo em ambos é
o caráter alegórico; entretanto, isso não exclui o aparecimento de personagens e
fatos do âmbito histórico, sem, com isso, pretender autenticidade histórica. A rela-
ção com a história de Aicar (a qual é geralmente considerada como originária na
Mesopotâmia por causa de seu marco social na corte Assíria) é importante por re-
velar que esse tipo de relato era muito difundido no Antigo Oriente Próximo:
É evidente que a história de Aicar pertence ao mesmo tipo de literatura que o li-
vro de Daniel, em termos de marco social, tipo de intriga e, em parte, devido ao
linguajar. As afinidades de Daniel com Aicar são importantes porque elas mos-
tram que esse tipo de literatura não era somente de tradição intrabíblica ou intra-
303
judaica.
303
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 41. Vale ressaltar que esses
relatos do Antigo Oriente são encontrados sobretudo no historiador grego Heródoto.
304
ASURMENDI, J. M. Daniel e a apocalíptica. In: CARO, J. M. Sánchez (Ed.). História,
narrativa, apocalíptica, p. 451-453.
305
Ibidem, p. 451.
111
uma coleção de textos mânticos ex eventu datada entre o final do terceiro e mea-
dos do primeiro milênio a.C. que provê informações futuras via presságios.308 Ele
argumenta que os textos acadianos representam um dos primeiros estágios no de-
senvolvimento do apocalipsismo.
De fato, em relação à filosofia da história presente no livro de Daniel (Dn 2
e 7), ou seja, a ideia de que a história universal é dividida por uma sucessão de
reinos (divisão da história em períodos, característica da apocalíptica presente em
diversas obras), foi levantada a tese de que essa filosofia tenha vindo do Antigo
Oriente Médio, tese apoiada por textos provindos da Babilônia persa ou selêucida,
os quais A. K. Grayson classificou como profecias acadianas.309 Entre elas está a
306
Cf. COLLINS, J. J. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism. In:
COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 11-32; aqui p. 20-
22. Em relação à questão das influências persas e iranianas, ponto ainda bastante debatido, tratare-
mos adiante.
307
Cf. ATTRIDGE, H. W. Greek and Latin Apocalypses. In: COLLINS, J. J. (Ed.). Apocalypse:
The Morphology of a Genre. Semeia 14 (1979), p. 159-186; COLLINS, J. J. Persian Apocalypses.
In: Ibidem, p. 207-217; SALDARINI, A. J. Apocalypses and “Apocalyptic” in Rabbinic Literature.
In: Ibidem, p. 187-205.
308
RINGGREN, H. Akkadian Apocalypses. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Me-
diterranean World and the Near East, p. 379-386. Cf. também o artigo homônimo de GRAYSON,
A. K.; LAMBERT, W. G. Akkadian Prophecies. JCS 18.1 (1964), p. 7-30.
309
GRAYSON, Albert K. Babylonian Historical-Literary Texts, p. 13-37. Segundo o próprio
Grayson, elas não devem ser confundidas com as profecias bíblicas por serem muito diferentes
(Ibidem, p. 14). De fato, embora os textos pareçam estar relacionados com literatura apocalíptica,
eles não têm a forma do apocalipse clássico (para estudo crítico das formas desses textos, cf. HE-
INTZ, J. G. Note sur l’origine de l’apocalypse judaïque à la lumière des “prophéties akkadiennes”.
In: RAPHAËL, Freddy et al. L’apocalyptique, p. 71-87).
112
denominada profecia dinástica, publicada pela primeira vez por Grayson. Nesse
tipo de profecia está presente o conceito de ascensão e queda de impérios, que de-
ve ter suas raízes na tradição dinástica da cronologia mesopotâmica; em Daniel,
esse conceito aparece de forma similar.310
Robert Wilson assinala que “é claro que as profecias acádicas são ‘predi-
ções após o evento’ (vaticinia ex eventu) e que pelo menos algumas delas foram
produzidas com o objetivo de apoiar os pontos de vista de seus criadores sobre
eventos políticos correntes”.311 De fato, pelo menos em uma delas aparece a tenta-
tiva de predizer a queda dos reis helenistas, cumprindo um papel semelhante ao da
propaganda política. Apresenta a sequência de reinos na história universal como
sendo Assíria – Babilônia – Pérsia – Macedônia. Nela subjaz também a esperança
de um mau regime ser derrubado e substituído por um reino mais justo e duradou-
ro, como no livro de Daniel. Não há, entretanto, a ideia de um clímax e conse-
quente fim da história mundial. A sequência de reinos difere de Daniel (que omite
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a Assíria e inclui a Média), mas este paralelo da profecia dinástica a Daniel é mui-
to interessante na medida em que também usa a profecia ex eventu de sucessivos
reinos para desenvolver a propaganda contra o reino dominante.312
VanderKam amplia a discussão e salienta que os textos acadianos contêm
muitas características semelhantes aos apocalipses do Período do Segundo Tem-
plo, incluindo a pseudonímia, um pendor para o linguajar enigmático e profecia ex
eventu.313 Em estudo mais recente acerca do caráter dos textos acadianos, Nissinen
argumenta que nem o termo “profecia” e nem “apocalipse” seriam uma definição
adequada para esses textos.314 Além dos elementos mencionados por Vanderkam,
Nissinen cita a periodização da história e outras características compartilhadas
com o livro de Daniel. Mas, segundo ele, apesar de algumas semelhanças, a sim-
ples qualidade de predição dos textos acadianos não é suficiente para justificar que
310
Tal similaridade tem servido também de argumentação para a defesa da tese conservadora e
tradicional da datação do livro de Daniel no período babilônico, pois certamente esse tipo de pro-
fecia era conhecido na Babilônia do VI século a.C., já que parte dessa literatura pode remontar pelo
menos à época de Nabucodonosor I, por volta de 1126 – 1105 a.C. (cf. BALDWIN, J. G. Daniel,
an Introduction and Commentary, p. 44-47). Entretanto, esse argumento isolado é fraco e, ampli-
ando-se a discussão, não convence.
311
Cf. WILSON, Robert R. Profecia e sociedade no antigo Israel, p. 153.
312
Cf. COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 168.
313
VANDERKAM, J. C. Prophecy and Apocalyptics in the Ancient Near East. In: SASSON, Jack
M. (Ed.). Civilizations of the Ancient Near East, p. 2083-2094. v. 3.
314
NISSINEN, Martti. Neither Prophecies nor Apocalypses: The Akkadian Literary Predictive
Texts. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 134-148.
Em relação à profecia, ele corrobora o que já havia concluído Grayson.
113
sejam rotulados como “profecias”, e muito mais tendo em conta as rigorosas qua-
lidades formais da profecia bíblica.
Embora as ligações entre apocalipsismo e os textos acadianos sejam fortes,
a falta de uma escatologia transcendente e características inerentes a ela desquali-
ficam esses textos como exemplos formais do gênero apocalíptico. Nissinen esta-
belece para eles a designação de “textos de literatura predicativa”, e compreende o
material acádio como parte de um processo complexo da Era Helênica onde diver-
sas (e frequentemente relacionadas) formas de expressar a predição foram desen-
volvidas e formuladas. Wilson conclui que “embora os textos na verdade pareçam
estar relacionados com literatura apocalíptica, não têm a forma do apocalipse clás-
sico. Por isso, parece melhor no momento reter a designação tradicional de ‘profe-
cias’”.315 Essas profecias dinásticas têm levantado várias questões em sua inter-
pretação; entretanto, o fato é que elas estabelecem, pelo menos, a existência de um
gênero literário conhecido no Antigo Oriente Médio com o qual o livro de Daniel
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315
Cf. WILSON, Robert R. Op. cit. p. 152, n. 224. No entanto, devido à semelhança maior das
profecias acadianas com a literatura bíblica apocalíptica do que com a literatura bíblica profética,
alguns autores chamam os textos mesopotâmicos de “apocalipses acadianos” (cf., por exemplo,
HALLO, W. W. Akkadian Apocalypses. IEJ 16 (1966), p. 231-242).
316
VANDERKAM, J. C. From Revelation to Canon: Studies in the Hebrew Bible and Second
Temple Literature, p. 255-275.
317
Cf. também EDDY, S. K. The King is Dead: Studies in the Near Eastern Resistance to Hellen-
ism, 334-31 BC (1961).
114
318
GONZÁLEZ BLANCO, A. La apocalíptica, fenómeno mediterráneo. In: BORREL, A. et al
(Ed.). La Bíblia i el Mediterrani: Actes del Congrés de Barcelona 18-22 de setembre de 1995, p.
205-225. v. 1; aqui p. 224.
319
CLIFFORD, R. J. The Roots of Apocalypticism in Near Eastern Myth. In: COLLINS, J. J.
(Ed.). The Encyclopedia of Apocalypticism, p. 3-38. v. 1.
320
LINCOLN, B. Apocalyptic Temporality and Politics in the Ancient World. In: Ibidem, p. 457-
475.
321
CHARLESWORTH, J. H. Folk Traditions in Jewish Apocalyptic Literature. In: COLLINS, J.
J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 91-113.
322
COLLINS, J. J. Apocalyptic Genre and Mythic Allusions in Daniel. JSOT 21 (1981), p. 83-100.
323
ABUSCH, T. Ascent to the Stars. In: COLLINS, J. J.; FISHBANE, M. (Ed.). Death, Ecstasy,
and Other Worldly Journeys, p. 21-39.
115
alguns folhetos mais antigos da tradição de Enoque.324 Fröhlich sustenta que essas
três tradições coexistiram e frequentemente se encontram misturadas na literatura
do judaísmo da época helenística, especialmente nos primeiros apocalipses.
Com relação à escatologia, Benjamim Foster afirma que:
A evidência para a escatologia na Mesopotâmia é tardia para os padrões de uma
cultura que já poderia escrever pelo final do quarto milênio, pois a evidência data
dos períodos de dominação aquemênida e macedônia, isto é, após o último quartel
do sexto século a.C. Isso é feito tentando associar o pensamento escatológico na
Mesopotâmia com descontentamento e protesto contra uma nova ordem imposta
por um poder estrangeiro aparentemente invencível, como tem sido frequente-
325
mente alegado para a escatologia judaica e cristã.
324
FRÖHLICH, Ida. Pesher, Apocalyptical Literature and Qumran. In: TREBOLLE BARRERA,
J.; MONTANER, L. Vegas (Ed.). The Madrid Qumran Congress: Proceedings of the International
Congress on the Dead Sea Scrolls, Madrid, 18-21 March, 1991, p. 295-305.
325
FOSTER, B. R. Mesopotamia and the End of Time. In: AMANAT, A.; BERNHARDSSON, M.
(Ed.). Imagining the End: Visions of Apocalypse from the Ancient Middle East to Modern America,
p. 23-32; aqui p. 25.
326
Ibidem. Segundo ele, “maior atenção tem sido dada, consideravelmente, a um pequeno grupo de
documentos tardios normalmente chamados de ‘profecias’ ou ‘apocalipses’. Esses se referem a
eventos futuros em linguajar velado, alguns dos quais parecem relacionados com os governantes
aquemênidas e helenísticos” (Ibidem).
327
Cf. BETZ, H. D. The Problem of Apocalyptic Genre in Greek and Hellenistic Literature: The
Case of the Oracle of Trophonius. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterra-
nean World and the Near East, p. 577-597. Trofônio foi um arquiteto que ajudou a construir o
Templo de Delfos. O Oráculo de Trofônio ficava na Beócia, Grécia antiga, onde o arquiteto foi
sepultado. Segundo consta, ele permitia, entre outras coisas, “visitas” ao mundo subterrâneo dos
mortos.
328
BURKERT, W. Apokalyptik im frühen Griechentum: Impulse und Transformationen. In:
Ibidem, p. 235-254.
116
329
CANCIK, Hubert. Libri fatales. Römische Offenbarungsliteratur und Geschichtstheologie. In:
Ibidem, p. 549-576.
330
Cancik retorna ao tema da escatologia Greco-romana e ao apocalipsismo em artigo posterior
para The Encyclopedia of Apocalypticism (cf. CANCIK, H. The End of the World of History, and
of the Individual in Greek and Roman Antiquity. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of
Apocalypticism, p. 84-125. v. 1) . Neste caso, ele aborda a adivinhação, os oráculos e os cultos, e
discute ideias pertinentes ao tempo e seu fim na mitologia, história e filosofia Greco-romanas.
331
GRIFFITHS, J. G. Apocalyptic in the Hellenistic Era. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Op. cit. p.
273-293. Cf. ainda, nesta mesma obra, o artigo de J. Assman (ASSMAN, J. Königsdogma und
Heilserwartung. Politische und kultische Chaosbeschreibungen in ägyptischen Texten. In: Ibidem,
p. 345-377) e o artigo introdutório ao tema de J. Bergman (BERGMAN, J. Introductory Remarks
on Apocalypticism in Egypt. In: Ibidem, p. 52-60). Sobre o Oráculo do oleiro, Wilson afirma que a
obra é conhecida em documentos do II ou III séculos a.C. mas pode refletir um original mais anti-
go; ele acredita que “os regentes estrangeiros mencionados no texto são provavelmente os persas e
gregos, devendo todo o texto ser possivelmente interpretado como a obra de um grupo oprimido no
Egito ptolemaico que tentava resistir às pressões do helenismo (...) Por meio da profecia, os autores
oprimidos buscavam reformar a presente situação política e tentavam fazer retornar o poder políti-
co às próprias mãos. O texto pode ter continuado a funcionar da mesma maneira em épocas poste-
riores quando os romanos substituíram os Ptolomeus como os opressores” (cf. WILSON, Robert R.
Profecia e sociedade no antigo Israel, p. 159-160).
332
SIMON, M. Sur quelques aspects des Oracles Sibyllins juifs. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Op.
cit. p. 219-223. Collins também abordou, em vários outros artigos (muito numerosos para serem
citados), a maioria dos aspectos relevantes concernentes a esses Sibilinos Judaicos.
117
333
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 4 (grifo do autor).
3. O Zoroastrismo: apocalíptica, ressurreição e contatos
com o Judaísmo primitivo
confronto final entre o bem e o mal, juízo final e a restauração do mundo, junta-
mente com a ressurreição dos mortos. Para tanto, é necessária a compreensão da
religião de Zoroastro, seu surgimento, a figura do profeta, suas escrituras e princi-
pais ideias escatológicas.
No que tange especificamente à ressurreição dos mortos (noção que tem
sua origem em grupos apocalípticos), é interessante notar sua fenomenologia no
Oriente antigo, bem como na Grécia arcaica e helenística, e traçar possíveis para-
lelos com o judaísmo primitivo e pós-exílico. O contato dos judeus com culturas
estrangeiras teria amadurecido e ampliado antigas ideias, especialmente a partir do
período chamado de Judaísmo do Segundo Templo.
1
REITZENSTEIN, R. Vom Töpferorakel zu Hesiod. In: REITZENSTEIN, R.; SCHAEDER, H. H.
(Ed.). Studien zum antiken Synkretismus aus Iran und Griechenland, p. 38-68. A obra é um dos
clássicos da Escola da História das Religiões; nela, Reitzenstein alega que a literatura apocalíptica
da época helenística (bem como antigas ideias gregas e platônicas subjacentes a ela) foi fortemente
influenciada pelas antigas tradições iranianas. Um ponto central de seu argumento é que o mito de
uma sequência de idades que se deterioram (cada uma associada a um metal) encontrado no Mito
das cinco raças, de Hesíodo, também faria parte da tradição iraniana. Reitzenstein usa como prin-
cipal fonte iraniana o Zandi î Vahman Yasht (chamado também de Bahman Yasht), o qual recebeu
sua redação final no IX ou X século d.C., mas que, segundo ele, representa uma tradição iraniana
muito antiga. Sobre Hesíodo, o mesmo ponto de vista é postulado atualmente por M. L. West em
sua edição crítica de Os trabalhos e os dias (cf. WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p. 172-
177). Paralelos entre o Bahman Yasht e o sonho de Nabucodonosor sobre uma estátua compósita
em Dn 2,31-45 também foram postulados, bem como entre o mito hesiódico e o texto daniélico (cf.
SOARES, Dionísio O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho da
estátua de Nabucodonosor. Dissertação de Mestrado, PUC-Rio, 2006. p. 185-194).
120
antigas tribos pacíficas e as novas tribos guerreiras. As tribos antigas eram criado-
ras de gados, nômades, cuja única preocupação era encontrar boas pastagens para
sua sobrevivência. Mas essas tribos estavam sendo devastadas por tribos com car-
ruagens de guerra e novos tipos de armas, as quais estavam massacrando esses cri-
adores de gado e tomando posse de seus rebanhos.5
Zoroastro acabou sendo considerado também, a partir dessa reforma, o
fundador do Zoroastrismo, a qual teria se tornado religião oficial do Império Persa
no século VI anterior à Era Comum. Alguns acreditam que Zoroastro teria vivido
entre o IX e o VI século a.C.; a tradição zoroastriana afirma que ele teria vivido
258 anos antes de Alexandre, o Grande, portanto em meados do VI século. Entre-
tanto, a pesquisa recente demonstrou que esse cálculo estava equivocado; a ten-
2
COHN, Norman. How Time Acquired a Consummation. In: BULL, Malcolm (Ed.). Apocalypse
Theory and the Ends of the World, p. 21-37; aqui p. 21.
3
O nome Zoroastro é a forma grega do persa Zaratustra, a qual provavelmente significa, no persa
antigo, “aquele que controla camelos”, ou “aquele que possui camelos reais” (cf. Y. 44,18). Não há
um consenso acerca do significado de “zarath”, que pode ser “camelos amarelos”, ou “camelos
selvagens” (daí a definição “aquele que controla camelos”). De qualquer forma, o significado do
nome reflete a época de uma sociedade pastoril tradicional, anterior à prática da agricultura, o que
também é usado para atestar a longa antiguidade da figura do profeta. O nome grego se dá a partir
de uma etimologia popular: zôrós (“puro”, “não-misturado”, com vinho), e ástron (“estrela”, pro-
vavelmente incorporado devido à identificação posterior do profeta como sendo a fonte do conhe-
cimento astrológico); cf. HUMBACH, Helmut. The Gâthâs of Zarathushtra and the Other Old
Avestan Texts, p. XXI. v. 1.
4
O termo no persa antigo é Mazdayasna, “Reverência à Sabedoria”.
5
COHN, Norman. Cosmos, Chaos, and the World to Come: The Ancient Roots of Apocalyptic
Faith, p. 94-95.
121
dência atual é considerar que ele teria vivido num período muito anterior,6 entre
cerca de 1550 e 1200 a.C., ou pelo menos antes do ano 1000.7
Mary Boyce é uma das principais defensoras da antiguidade do profeta, va-
riando bastante a datação ao longo de suas publicações: em 1975 ela concluiu que
“na ausência de qualquer evidência externa vigorosa, portanto, parece natural con-
cluir que o profeta viveu em algum tempo entre, digamos, 1400 e 1000 a.C., numa
época em que seu povo estava talvez ainda habitando no norte da Ásia Central,
antes de ir para o sul em seu desvio de direção para fixar residência no Khwa-
rezm”. 8 Em 1977 ela escreveu: “é preciso lembrar que Zoroastro viveu muito tem-
po atrás, possivelmente por volta de 1500 a.C. ou mesmo antes”.9 Em 1979, ela
datou Zoroastro novamente entre 1700 e 1500 a.C., mas admitiu que “é impossível
estabelecer datas fixas para a época de sua vida.10 Em 1982, ela o colocou antes de
1200 a.C.11 Por fim, ela afirmou que “a data mais provável, portanto, parece ser
entre 1400 e 1200 a.C.”.12 Os seus argumentos são baseados especialmente nas
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afinidades linguísticas dos Gathas com o Rig Veda e no ambiente cultural refletido
neles. Por exemplo, sendo o gado muito importante, não há metáforas ou analogi-
as provenientes da agricultura nos Gathas (hinos sagrados).13
Já há muito se levantou a tese da época remota de Zoroastro (pelo menos
no início do primeiro milênio a.C.).14 Entretanto, Henning e Zaehner defendiam o
VI século a.C.15 Mais recentemente, Alan Segal forneceu um veredicto mais equi-
librado, afirmando que Zoroastro “pode ter vivido em qualquer época entre o dé-
cimo-primeiro e o sétimo século a.C., mas provavelmente viveu em torno do iní-
6
O cálculo usado pela tradição baseava-se em uma ficção da época grega: a fixação da primeira
era da humanidade em 312/311 a.C. pelos Selêucidas: cf. BOYCE, Mary. Textual Sources for the
Study of Zoroastrianism, p. 15; cf. também SHAHBAZI, Shapur. The ‘Traditional Date of Zo-
roaster’ Explained. BSOAS 40.1 (1977), p. 25-35; aqui p. 32. A análise detalhada das razões para
isso pode ser verificada em KINGSLEY, Peter. The Greek Origin of the Sixth-Century Dating for
Zoroaster. BSOAS 53.2 (1990), p. 245-265.
7
GNOLI, Gherardo. Zoroaster’s Time and Homeland: A Study on the Origins of Mazdeism and
Related Problems, p. 159-179. Em geral, a datação varia de 1700 a 600 a.C.
8
BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: The Early Period, p. 190.
9
Idem. A Persian Stronghold of Zoroastrianism: Based on the Ratanbai Katrak Lectures, p. 16.
10
Idem. Zoroastrians: Their Religious Beliefs and Practices, p. 2.
11
Idem. A History of Zoroastrianism: Under the Achaemenians, p. 3.
12
Idem. On the Antiquity of Zoroastrian Apocalyptic. BSOAS 47.1 (1984), p. 57-75; aqui p. 75;
Idem. Textual Sources for the Study of Zoroastrianism, p. 11.
13
Idem. A History of Zoroastrianism: The Early Period, p. 14.
14
CHARPENTIER, Jarl. The Date of Zoroaster. BSOAS 3.4 (1925), p. 747-755. Charpentier acre-
ditava que “o Masdeísmo floresceu na Média no máximo por volta de 700 a.C” (Ibidem, p. 755).
15
Cf. HENNING, W. B. Zoroaster, Politician or Witch-Doctor?, p. 35-51, aqui p. 41; ZAEHNER,
R. C. The Dawn and Twilight of Zoroastrianism, p. 33 (o título desta obra é significativo: de fato, o
autor praticamente ignora o que seria o “ínterim” da “aurora” e do “crepúsculo” na história do zo-
roastrismo).
122
16
Cf. SEGAL, Alan F. Life After Death: A History of the Afterlife in Western Religion, p. 176. De
qualquer forma, os estudiosos ainda se dividem na questão da historicidade de Zaratustra (a tenta-
tiva mais recente contra a historicidade dele encontra-se em KELLENS, Jean. La quatrième nais-
sance de Zarathushtra, 2006), mas não acerca da importância da narrativa de Zaratustra para o
desenvolvimento do zoroastrismo (cf., por exemplo, STAUSBERG, Michael. Die Religion Zara-
thushtras: Geschichte, Gegenwart, Rituale, p. 62-67. v. 1).
17
Cf. Y. 44,20.
18
Cf. BOYCE, Mary. Zoroastrians: Their Religious Beliefs and Practices, p. 19. Boyce assevera
que mesmo antes do advento do zoroastrismo, Ahura Mazda era reconhecido pelos Medos e Persas
como sua divindade principal (cf. Idem. A History of Zoroastrianism: The Early Period, p. 39).
Ahura significa “senhor”, e “Mazda” “sábio”, daí “Senhor da sabedoria” (cf. Idem. Ahura Mazda.
In: YARSHATER, Ehsan (Ed.). Encyclopaedia Iranica, p. 684-687. v. 1). Nos textos em pálavi
(tardos) Ahura Mazda é chamado de Ozmard e Angra Mainyu (divindade do mal) de Ahriman.
19
O Avesta (iraniano medieval abêstag) é a coleção de escritos sagrados; significa “A injunção” de
Zoroastro (cf. KELLENS, J. Avesta. In: YARSHATER, Ehsan (Ed.). Op. cit. p. 35-44. v. 3).
20
COHN, Norman. How Time Acquired a Consummation. In: BULL, Malcolm (Ed.). Apocalypse
Theory and the Ends of the World, p. 21-37; aqui p. 30.
21
Idem. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 78.
123
Em relação aos escritos sagrados, sua reunião é chamada de Avesta. Ele in-
clui dezessete hinos cuja composição é atribuída ao próprio Zoroastro, divididos
em cinco grupos, chamados de Gathas. 22 Eles se destacam do restante do Avesta,
juntamente com um pequeno texto chamado de “Yasna de Sete Capítulos”, pois
estão escritos em avestan (daí esse idioma ser chamado “gathic” avestan).23 Ao
contrário de outras línguas iranianas antigas, o avestan não pode ser atribuído a
nenhuma das tribos iranianas atualmente conhecidas pela história. Tanto uma ori-
gem no noroeste iraniano quanto no oriente iraniano foram sugeridas, mas pelo
menos a primeira hipótese foi descartada.24 Outra conhecida hipótese é a possibi-
lidade de o avestan ter sido um idioma religioso tradicional, ou seja, uma “língua
sagrada” adotada pelo profeta para sua finalidade religiosa e preservada artificial-
mente25 (uma espécie de “latim medieval”, o qual continuou presente na literatura
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e nos rituais religiosos centenas de anos depois de deixar de existir como língua
falada). Entretanto, os estudos mais recentes não comprovam essa teoria; ao con-
trário, a linguística revela os traços de uma poesia composta e recitada em uma
tradição oral, nos moldes da época de Homero e do Rig Veda, o que corrobora a
data anterior ao sexto século para os Gathas e o próprio Zoroastro.26
Os hinos que compõem os Gathas estão inseridos na parte mais antiga do
22
Em avestan, “Gatha” significa “forma estrófica”, ou seja, os Gathas são hinos de uma determi-
nada forma de estrofes, ou grupo de hinos com a mesma forma estrófica. Em védico, gáttha signi-
fica simplesmente “música” (cf. HUMBACH, Helmut. The Gâthâs of Zarathshtra and Other Old
Avestan Texts, p. 3. v. 1). O número de estrofes é variável, mas cada uma possui o mesmo número
de linhas (3 a 5), basicamente isossilábicas (variando algumas vezes com uma sílaba a mais ou a
menos), com uma cesura ou quebra fixa.
23
Cf. BOYCE, M. Persian Religion in the Achemenid Age. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN,
L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Persian Period, p. 279-307, aqui p. 279; HULTGÅRD, A. Per-
sian Apocalypticism. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of Apocalypticism, p. 39-83. v.
1; aqui p. 65. O avestan (ou “gathic” avestan) é um idioma muito antigo do Irã oriental. Uma des-
crição gramatical pormenorizada da morfologia e fonologia do avestan tanto em seus aspectos his-
tóricos quanto sincrônicos pode ser encontrada em HOFFMANN, Karl. Avestan Language. In:
YARSHATER, Ehsan (Ed.). Op. cit. p. 47-62 (v. 3), e KELLENS, Jean. Avestique. In: SCHMITT,
Rüdiger (Ed.). Compendium Linguarum Iranicarum, p. 32-55.
24
Cf. HUMBACH, H. Op. cit. p. 6. Por outro lado, a língua do Avesta como um todo, conforme
foi transmitido, não é homogênea; provavelmente contém elementos de dialetos pertencentes a
diversas regiões, bem como aos diversos extratos cronológicos, o que dificulta ainda mais a ques-
tão da datação dos textos.
25
Ibidem, p. 8.
26
A similaridade linguística dos Gathas com o Rig Veda indiano é um dos principais argumentos
para a datação daqueles no II milênio a.C. (cf., entre outros, WIESEHÖFER, Josef. Ancient Persia:
From 550 BC to 650 AD, p. 97; HUMBACH, H. Op. cit. p. 72-73). Alguns estudiosos têm afirma-
do que a data em torno de 600 a.C. ainda pode ser considerada plausível, partindo do princípio de
que o avestan dos Gathas foi, em verdade, uma língua sagrada preservada artificialmente. Entretan-
to, conforme assinalado acima, essa ideia não encontra muito respaldo na crítica atual.
124
Avesta, chamada Yasna27 (a qual, apesar de ser a mais antiga, contém textos mais
recentes que os Gathas). Os Gathas correspondem aos Y. 28-34, 43-51 e o 53, per-
fazendo dezessete hinos.28 Cada um desses hinos constitui um “capítulo” do Yas-
na, e cada um dos cinco Gathas consiste de um a sete “capítulos”. O agrupamento
em cinco se deve às cinco diferentes métricas sob as quais eles são constituídos. É
bem possível que o arranjo puramente formal dos hinos de acordo com suas res-
pectivas métricas reflita a ordem original de composição conforme teria sido pla-
nejada pelo próprio escritor (Zoroastro), apesar de a procura por uma linha temáti-
ca (por exemplo, moral, ou ética) ao longo dos Gathas ter se revelado infrutífera.29
O texto dos Gathas constitui, portanto, a parte mais antiga e mais importante da
literatura zoroástrica, no sentido de se estabelecer e conhecer os primórdios da re-
ligião em relação ao profeta fundador e sua doutrina original, apesar de ser con-
senso que o texto dos Gathas é de difícil tradução e interpretação.30
Os Gathas se tornaram objeto de veneração já na época do Avesta Mais
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Novo, como costuma ser denominado o restante do Avesta (ou Avesta Posterior).
27
Segundo Humbach, “Yasna, em avestan, significa ‘liturgia’, literalmente ‘adoração’. Em Védico
‘yajñá’ significa ‘adoração, devoção, prece’” (cf. HUMBACH, H. Op. cit. p. 4). O Yasna é a parte
do Avesta que contém os textos recitados durante o ato de adoração (yasna), divididos em 72 se-
ções numeradas. Cf. a tradução completa de L. H. Mills em MÜLLER, F. M. (Ed.). The Zend-
Avesta Part III: The Yasna, Visparad, Âfrîganân, Gâhs, and Miscellaneous Fragments (SBE v.
31), 1887 (repr. 1965).
28
O Y. 53, uma espécie de liturgia de casamento para a filha de Zoroastro, só foi incluído no grupo
dos Gathas posteriormente, ou seja, primeiramente eram contabilizados 16 hinos para os Gathas
(cf. YAMAUCHI, Edwin M. Persia and the Bible, p. 403).
29
Foram feitas diversas tentativas de se estabelecer uma suposta ordem original dos Gathas, dife-
rente da ordem tradicional, especialmente por DUCHESNE-GUILLEMIN, Jacques. Zoroastre;
étude critique, avec une traduction commentée des Gâthâ, p. 23-44, e por LOMMEL, Herman. Die
Gâthâs des Zarathustra, p. 186-237. v. 1 Almut Hintze conclui que “conforme a pesquisa sobre
sua composição avança, é cada vez mais evidente não só que os hinos estão individualmente estru-
turados internamente por paralelismo e composição em círculo, mas também que a forma como os
Gathas estão dispostos em sequência é deliberada, com referências cruzadas para frente e para trás.
Os hinos gáticos estão dispostos em círculos concêntricos ao redor do Yasna Haptanhâiti, o qual
marca o ponto alto da liturgia de toda a cerimônia” (cf. HINTZE, A. On the Literary Structure of
the Older Avesta. BSOAS 65.1 (2002), p. 31-51; aqui p. 50).
30
As traduções mais conhecidas ou usadas são: em inglês, MILLS, L. H., The Zend-Avesta (The
Sacred Books of the East 31, 1887, reimpresso em 1965, é a mais antiga, com diversos problemas
na tradução); DUCHESNE-GUILLEMIN, Jacques. The Hymns of Zarathustra (1952); ANKLE-
SARIA, Behramgore Tehmurasp. The Holy Gâthâs of Zarathustra (1953); INSLER, S. The Gâthâs
of Zarathustra (1975); em francês, DUCHESNE-GUILLEMIN, Jacques. Zoroastre; étude critique,
avec une traduction commentée des Gâthâ (1948); KELLENS, J.; PIRART, E. Les textes vieil-
avestiques, 3 v. (1988-1991), a melhor tradução em francês; em alemão, BARTHOLOMAE,
Christian. Die Gatha’s des Awesta (1905), e duas outras boas traduções, a de LOMMEL, Herman.
Die Gathas des Zarathustra (1959), e a de HUMBACH, H.; SKJAERVØ, P. O.; ELFENBEIN, J.
Die Gathas des Zarathustra, 2 v. (1959, com versão inglesa The Gâthâs of Zarathushtra and the
Other Avestan Texts em 1991). Esta última e a de KELLENS-PIRART são consideradas as melho-
res e são as usadas para os textos do Avesta neste trabalho. Mary Boyce também apresenta uma
boa tradução de vários textos selecionados do Avesta e da literatura pálavi, também usada neste
trabalho (BOYCE, Mary. Textual Sources for the Study of Zoroastrianism, 1984).
125
31
Cf. a tradução por James Darmesteter em MÜLLER, F. M. (Ed.). The Zend-Avesta Part II: The
Sîrôzahs, Yasts, and Nyâ (SBE v. 23), 1883.
32
Sobre essas divindades, Boyce comenta que se trata de seres beneficentes de estatuto menor, que
não são exatamente “deuses”, mas divindades menores, criadas por Ahura Mazda (tendo em vista
que a criação operada por ele inclui todas as divindades beneficentes), dignas de adoração pela
posição que ocupam. Sua posição é maior do que aquela dada aos anjos de outras religiões monote-
ístas quando elas precisam transpor o abismo entre o homem e a divindade (BOYCE, Mary. A His-
tory of Zoroastrianism: The Early Period, p. 196). Os parsis modernos comparam os yazatas com
os anjos ou santos cristãos.
33
Cf. GERSHEVITCH, Ilya. The Avestan Hymn to Mithra, p. 22;
34
Cf. BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: The Early Period, p. 20, n. 76. O certo é que,
pela crítica das tradições, sabe-se que grande parte do material provém de tradição muito antiga,
especialmente o relativo à escatologia (cf. adiante).
35
A única tradução completa continua sendo a de James Darmesteter em MÜLLER, F. M. (Ed.).
The Zend-Avesta Part I: The Vendîdâd (SBE v. 4), 1895 (repr. 1965).
36
Existe ainda o Khorda Avesta (“pequeno Avesta”), uma coleção de hinos compilada durante o
reinado do rei sassânida Shapur II (309-379 d.C.). Trata-se de um livro de orações para uso diário.
37
Língua da literatura zoroástrica a partir do século III d.C. Para uma visão bem fundamentada da
tradição manuscrita desse período, cf. CERETI, Carlo G. La letteratura pahlavi: introduzione ai
testi con riferimenti alla storia degli studi e alla tradizione manoscrita (2001).
38
Cf. MADAN, D. M. (Coord.). The Complete Text of the Pahlavi Dinkard, 2 v. (1911).
126
39
Cf. ANKLESARIA, B. T. (Translit. and transl.). Zand-Âkâsîh: Iranian or Greater Bundahišn
(1956).
40
Trata-se de um Zend (comentário anotado, em pálavi, acerca de um texto mais antigo).
41
Boyce considera o uso do termo “apocalíptico” para textos do Avesta fora dos Gathas, em senti-
do delimitador: “Em estudos zoroastrianos ele [o termo] pode ser útil para distinguir as ‘revela-
ções’ secundárias, como a encontrada no Yt. 19 em diante, das que são rastreadas nos próprios
Gathas” (BOYCE, M.; GRENET, F. A History of Zoroastrianism: Zoroastrianism under Macedo-
nian and Roman Rule, p. 383, n. 89).
42
Cf. a edição crítica de CERETI, Carlo G. The Zand î Wahman Yasn: A Zoroastrian Apocalypse
(1995). O que se tem hoje é apenas um comentário (um zand) produzido no Período Sassânida
(224 d.C. – 651) do original avéstico.
127
rão destruídos e é informado de que sinais serão revelados nas estrelas e planetas.
Após esses sinais, uma espécie de salvador (Saoshyant) inaugurará uma época
chamada de Renovação, com a ordem pacífica estabelecida e todos os povos agin-
do conforme os preceitos do zoroastrismo.
O Wizidagiha î Zadspram (WZ), o Dadestan î Denig (DD) e o Pálavi Ri-
vayat que Acompanha o Dadestan î Denig (PR) também são parte da literatura
pálavi que contém temas escatológicos. O Wizidagiha î Zadspram (literalmente,
“As seleções de Zadspram”) é datado no IX século d.C.; seu autor, Zadspram,
compilou a obra a partir de fontes da tradição (os dois últimos capítulos, 34 e 35,
contêm as descrições de eventos escatológicos).43 O Dadestan î Denig também foi
composto no IX século d.C. por um irmão de Zadspram chamado Manushcihr,44
um sumo sacerdote do zoroastrismo no Irã; a composição tem o formato de per-
guntas e respostas, sendo que as questões 34 a 36 tratam de temas escatológicos,
especialmente a ressurreição dos mortos e a natureza do mundo imediatamente
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43
Cf. WEST, Eduard W. (Transl.). Selections of Zâd-sparam. In: MÜLLER, F. M.; WEST, E. W.
(Ed.). Pahlavi Texts Part I, p. 153-188.
44
Cf. JAAFARI-DEHAGUI, M. (Transc., transl. and commentary). Dâdestân î dênîg (1998).
45
Cf. WILLIAMS, A. V. (Ed. and commentary). The Pahlavi rivâyat accompanying the Dâdestân
î denig, 2 v. (1990). Para um tratamento extenso dessa obra, comparando-a com escritos judaicos,
cf. NEUSNER, Jacob. Judaism and Zoroastrianism at the Dusk of Late Antiquity: How Two An-
cient Faiths Wrote Down Their Great Traditions, p. 127-202.
46
Cf. GIGNOUX, P. Le livre d’Ardâ Vîrâz: Translittération, transcription et traduction du texte
pehlevi (1984).
47
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 15.
128
muito mais detalhadas que as do céu. Viraf vê as pessoas sendo fortemente casti-
gadas por inúmeras formas, e os seres divinos lhe informam que o pecado que es-
sas pessoas cometeram as levou a ter esse tratamento.
Deve-se ainda ressaltar que o Avesta conhecido equivale a cerca de apenas
um quarto do original, recebendo sua forma escrita como um todo e a condição de
escrituras sagradas do zoroastrismo apenas no final do Período Sassânida e início
do Período Islâmico (século VII d.C.).48 O impacto dos livros sagrados de outras
religiões antigas (como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo) inspirou a for-
mação de um cânon zoroastriano, o qual tinha como pré-requisito a utilização do
dialeto avestan. A avaliação dos textos pálavi como fontes de crenças apocalípti-
cas iranianas em períodos antes do domínio islâmico deve levar em consideração a
análise histórica da forma desses textos. Em muitos casos, a determinação das
formas e gêneros subjacentes às compilações posteriores ao Período Sassânida se
torna difícil pelo fato de que as citações de textos anteriores são, geralmente, mui-
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48
A partir do Período Aquemênida (550 a.C.) várias tradições do Avesta circularam oralmente por
séculos. Ilya Gershevitch supõe que a composição do Avesta Mais Novo começou por volta de 425
a.C. (cf. GERSHEVITCH, Ilya. Zoroaster’s Own Contribution. JNES 23.1 (1964), p. 12-38; aqui p.
14). Não se sabe, de fato, quando esses textos foram postos por escrito. Tradições tardias zoroastri-
anas no Dinkard responsabilizam Alexandre, o Grande, pela destruição desenfreada do Avesta, o
qual supostamente havia sido escrito com tinta de ouro em doze mil couros, armazenados perto de
Persépolis. A destruição por parte de Alexandre é plausível; entretanto, essa tradição continua, por
enquanto, sem fundamentação histórica.
49
Cf. BOYCE, Mary. Textual Sources for the Study of Zoroastrianism, p. 1; COHN, Norman.
Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 79-80; Idem. How Time Acquired a Consummation.
In: BULL, Malcolm (Ed.). Apocalypse Theory and the Ends of the World, p. 21-37; aqui p. 23.
129
Yasna (72 seções): in- Yasht (21 hinos): bastan- Vendidad: única rema-
clui os Gathas, 17 hinos te antiga e com porções nescente dentre 21 obras
da época dos Gathas chamadas nasks (“ra-
Yasna de Sete Capítulos Khorda Avesta (“Peque- mos”, “feixes”)
no Avesta”): com Yasht
mais recentes
Outras Escrituras mais recentes
Dinkard: resumo de todo o Avesta, contendo textos perdidos dele
Bundahishn (ou “Grande Bundahishn”, chamado assim para ser distinguido do
Bundahishn indiano, menor): cosmologia, criação e fim do mundo
Bahman Yasht: composto de obras apocalípticas
Wizidagiha î Zadspram: contém temas escatológicos
Dadestan î Denig: contém temas escatológicos
Pálavi Rivayat que Acompanha o Dadestan î Denig: temas escatológicos
Livro de Arday Wiraz Namag: apocalipse com viagem transcendental
51
Tabela 01: As Escrituras Sagradas do Zoroastrismo
50
HULTGÅRD, Anders. Persian Apocalypticism. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of
Apocalypticism: The Origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity, p. 39-83. v. 1; aqui p.
40. Para uma visão geral da escatologia do Avesta, cf. MÜLLER, F. M. The Eschatology of the
Avesta. In: Theosophy; Or, Psychological Religion, p.177-207.
51
À junção do Avesta com as Escrituras mais recentes costuma-se dar o nome de Zend-Avesta.
130
52
Cf. Y. 29,4.6; 31,13; 33,13; 45,3.5; 46,19; 48,2-3; Yt. 1,7.8.12.13-14; Vd. 2,1; 19,20.
53
Cf. Bd. 1,53; cf. também BOYCE, Mary. Amesha Spenta. In: YARSHATER, E. (Ed.). Encyclo-
paedia Iranica, p. 933-936. v. 1; Idem. The History of Zoroastrianism: Early Period, p. 192-198.
54
Y. 44,3-7: Cf. a tradução inglesa em HUMBACH, H. The Gâthâs of Zarathushtra and the Other
Old Avestan Texts, p. 157-158. v. 1, cotejada com a tradução de BOYCE, M. Textual Sources for
the Study of Zoroastrianism, p. 34, e de KELLENS, J.; PIRART, E. Les textes vieil-avestiques, p.
149-150. v. 1; Kellens-Pirart traduzem asha por “Harmonia” (fr. l’Harmonie), não por “Verdade”.
131
Assim, Zoroastro deu a Ahura Mazda uma posição muito superior a que
qualquer outra divindade do mundo antigo já recebera. Sendo criado por si mes-
mo, Ahura Mazda foi a causa original de tudo o que é bom no universo, seja divi-
no ou humano, animado ou inanimado, abstrato ou concreto.
No zoroastrismo, o princípio imutável que a tudo faz existir, responsável
pelo cosmo e necessário à ordem cósmica, é denominado asha (equivalente ao rita
védico,55 à ma’at egípcia e ao lógos grego).56 Mas os antigos iranianos reconheci-
am também o princípio que negava asha: o druj (“mentira”, “falsidade”).57
Zoroastro expandiu esses conceitos tradicionais e insistiu em que a perfeita
ordem deve incluir a justiça final, onde os defensores de asha (o bem) seriam re-
compensados e os parceiros de druj (o mal) seriam punidos;58 a ação de druj pode
até prevalecer por mais um pouco, mas no fim todo o universo estará estabelecido
sobre a justiça cósmica. Ao reelaborar o conceito de druj, Zoroastro atribuiu-o ao
opositor fundamental de Ahura Mazda, a negação deste: Angra Mainyu, o espírito
da destruição, o mal ativo.59
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Assim sendo, nenhum mal poderia vir de Ahura Mazda, como nada de
bom poderia vir de Angra Mainyu.60 Um era defensor de asha e outro de druj.61
Há muito que essas duas forças estão em combate:
55
ZAEHNER, R. C. The Dawn and Twilight of Zoroastrianism, p. 48.
56
Cf. SCHLERATH, Bernfried; SKJAERVØ, Prods O. Asha. In: YARSHATER, E. (Ed.). Op. cit.
p. 694-696. v. 2; segundo esses autores, “Asha significa ‘verdade’ em Avestan e deriva do Indo-
iraniano *ṛtá-, um substantivo neutro que tem o mesmo significado. A palavra é atestada no persa
antigo como a¡rta e no indiano antigo como ṛtá-” (Ibidem, p. 694).
57
Cf. NIGOSIAN, S. A. The Zoroastrian Faith: Tradition and Modern Research, p. 20. Sobre o
significado de druj, cf. KELLENS, Jean. Druj. In: YARSHATER, E. (Ed.). Op. cit. p. 562-563. v.
7, fasc. 6.
58
RUSSELL, James R. Asha in Armenia. In: Armenian and Iranian Studies, p. 175-182. v. 9; aqui
p. 176.
59
Cf. assinalado acima, nos textos tardios, em pálavi, Angra Mainyu é chamado de Ahriman, exer-
cendo o mesmo papel (DUCHESNE-GUILLEMIN, Jacques. Angra Mainyu. See Ahrîman. In:
YARSHATER, E. (Ed.). Op. cit. p. 670-673. v. 1.
60
NIGOSIAN, S. A. Op. cit. p. 84.
61
Cf. ZAEHNER, R. C. Op. cit. p. 34-35.
132
(4) E quando esses dois espíritos se confrontam (para competir por uma pessoa),
então (aquela pessoa) decide (de que índole será) o primeiro (estágio de
sua existência):
vida e a ausência de vida, e (por outro lado) de que índole (sua)
existência será no fim:
a do enganador (será) o pior, mas o melhor pensamento (estará reservado)
para o fiel.
62
Y. 30,3-5 (tradução em HUMBACH, H. Op. cit. p. 123-124, v. 1, cotejada com a tradução de
BOYCE, Mary. Op. cit. p. 35, e de KELLENS, J.; PIRART, E. Op. cit. p. 110-111, v. 1). Nas tra-
duções, seguimos a disposição dos versos da edição de Humbach.
63
Y. 45,2 (HUMBACH, H. Op. cit. p. 164. v. 1; BOYCE, M. Op. cit. p. 36; KELLENS, J.; PI-
RART, E. Op. cit. p.155. v. 1).
133
mundo foi criado não-material, num estado espiritual chamado menog; entretanto,
com o intuito de criar um cenário onde a batalha entre bem e mal pudesse ocorrer
e o mal ser derrotado, ele trouxe à existência o mundo material, ou getig. A exis-
tência getig, ou seja, material, é vista como sendo superior ao estado menog; ter a
forma material, no zoroastrismo, é entendido como tendo uma qualidade da cria-
ção, sendo preferível a ter somente o estado espiritual.66 Isso pode explicar o fato
de o zoroastrismo esperar por uma ressurreição física do corpo e uma renovação
da Terra, e não uma existência imaterial em um lugar também imaterial.
Ahura Mazda criou uma única planta, um único animal (um bovino) e um
único ser humano, os quais foram mortos por Angra Mainyu. Entretanto, a partir
desses espécimes únicos vieram a existir todas as plantas, animais e seres huma-
nos, todos com o objetivo de lutar contra o ataque de Angra Mainyu.67 Como con-
traponto, a tudo de bom que Ahura Mazda criou seu oposto, Angra Mainyu, criou
um equivalente mau: criou as trevas para se opor à luz, a mentira à verdade, a do-
ença à saúde, a morte à vida, e criaturas do mal para combater as criaturas do
64
KREYENBROEK, Philip G. Millennialism and Eschatology in the Zoroastrian Tradition. In:
AMANAT, A.; BERNHARDSSON, M. (Ed.). Imagining the End: Visions of Apocalypse from the
Ancient Middle East to Modern America, p. 33-55; aqui p. 47.
65
COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 85-86; ZAEHNER, R. C. The Teachings
of the Magi: A Compendium of Zoroastrian Beliefs, p. 18; Idem. The Dawn and Twilight of Zo-
roastrianism, p. 265.
66
BOYCE, Mary. Zoroastrians: Their Religious Beliefs and Practices, p. 25.
67
KREYENBROEK, Philip G. Op. cit. p. 35.
134
bem.68 Ahura Mazda criara os seis Amesha Spentas para ajudar a manter asha;
opondo-se a isso, Angra Mainyu criou seis seres do mal, espécies de arcanjos em
forma de demônios. 69 Por fim, contra a própria criação como um todo, ele fez uma
espécie de “contra-criação”, na qual começou a era da mistura (bem e mal convi-
vendo juntos), na qual se encontra o tempo presente.
Os seres humanos possuem um lugar especial na criação: eles têm o livre-
arbítrio, sendo os únicos com a capacidade de escolher entre ser bom ou mau, 70 e
essa escolha tem que ser feita, obrigatoriamente. Ao final dos tempos, cada um
será confrontado com seus atos bons ou maus.
Também nos escritos tardios, a conclusão da luta entre as duas divindades
assinalará o tempo do fim: através da obra de um mediador (o Saoshyant, “futuro
benfeitor”),71 Ahura Mazda lançará Angra Mainyu no abismo, vindo em seguida o
fim do mundo, com a ressurreição dos mortos e o juízo final. Inicia-se então a no-
va era em uma nova Terra: druj deixa de existir, prevalecendo asha e Ahura Maz-
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68
NIGOSIAN, S. A. The Zoroastrian Faith: Tradition and Modern Research, p. 86.
69
Cf. Bd. 1,47-49.55.
70
KREYENBROEK, Philip G. Loc. cit.
71
A figura do Saoshyant e seu papel são descritos nos Yt. 13 e 19.
72
Cf. PEREIRA, N. C. Jardim e poder: império persa e ideologia. In: REIMER, H.; SILVA, Val-
mor da (Org.). Hermenêuticas bíblicas: contribuições ao I Congresso Brasileiro de Pesquisa Bí-
blica, p. 121-128.
73
LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 1308.
74
BAILLY, Anatole. AB, p. 1461.
75
A palavra do avestan usada com o sentido de “alma” é uruuan, (em pálavi urvan), a qual repre-
senta “a faculdade espiritual que exerce o livre-arbítrio, a capacidade de escolha entre o bem e o
mal” (PAVRY, Jal D. C. Zoroastrian Doctrine of a Future Life: From Death to the Individual
Judgment, p. 9). O termo “alma” não é o ideal para a tradução; talvez “si próprio” seja melhor (cf.
SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 184).
135
que se finda.76 Após isso, ela segue para a Ponte do Separador (Chinvat Puhl)77
para ser julgada de acordo com seus pensamentos, palavras e ações pelos três juí-
zes das almas, Mitra, Sraosha e Rashnu.78 Com base neste julgamento, seu destino
pode ser o céu, o inferno (pálavi Dushox) ou confinada no lugar de mistura, à es-
pera (nos três casos) da ressurreição, do julgamento final e da Renovação.79 As
“almas” dos enganosos se afastarão de seus corpos no momento em que eles al-
cançarem a ponte, e então “serão hóspedes para sempre na casa da Falsidade”.80
Na Renovação, com a vinda do Saoshyant (o “que restaura a vida”), todas
as pessoas que viverem nessa época não morrerão. Aqueles que estão mortos serão
ressuscitados em um grande ato da ressurreição geral chamada Ristaxez em pálavi
(“ressurreição dos mortos”).81 Geralmente, considera-se que essa ressurreição o-
corre após a eliminação do mal. Em algumas tradições tardias a ressurreição é
considerada como uma realização do Saoshyant com a ajuda de outras figuras es-
catológicas,82 em outras é Ahura Mazda quem recria o corpo do morto.83
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(5) Ormazd respondeu: ‘Como eu produzi o céu terrestre sem pilares, de duração
espiritual, com as extremidades muito distantes, e brilhantes, da substância de aço
brilhante; assim como eu produzi a terra, que carrega (toda) a vida material, e não
76
BOYCE, Mary. Zoroastrians: Their Religious Beliefs and Practices, p. 14-15.
77
Em avestan, Cinuuatô Peretush (Y. 46,10), literalmente “Ponte do Detentor da Conta” (cf.
HUMBACH, H. The Gâthâs of Zarathushtra and the Other Old Avestan Texts, p. 170. v. 1) ou a
“Ponte do Juiz” (KELLENS, J.; PIRART, E. Les textes vieil-avestiques, p. 160. v. 1).
78
SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 186.
79
Cf. DE JONG, Albert. Traditions of the Magi: Zoroastrianism in Greek and Latin Literature, p.
325; BOYCE, M. A History of Zoroastrianism: Zoroastrianism under Macedonian and Roman
Rule, p 363; COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 96.
80
Cf. Y. 46,11; 51,13.
81
Cf. Yt. 19,11.89-90. Essa ressurreição se dará na forma de um corpo chamado de “o corpo futu-
ro”, um tipo de corpo num estado espiritual, aperfeiçoado em relação ao de antes da morte (cf.
SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 190).
82
Bd. 34,3.7-8; PR 48,54.
83
Bd. 34,5-6; WZ 34,19-20.
84
Bd. 34,4-9; WZ 34,1-20; 35,18-30; PR 48,53-65.
136
tem material de escoramento (acima); como eu fiz o sol, a lua e as estrelas a girar
no firmamento com corpos astrais brilhantes; como eu produzi a semente, de mo-
do que elas possam espalhar-se no solo, e ela pode retornar com o desenvolvi-
mento, crescendo novamente; assim como eu produzi cor de vários tipos em plan-
tas; assim como eu produzi o fogo (com) a combustão externa em plantas e outras
coisas; assim como eu produzi e alimentei a criança no ventre da mãe, e atribuí
distintamente (o cabelo), pele, unhas, sangue, pés, olhos, orelhas e outros mem-
bros; assim como eu dei pés para a água de modo que ela possa fluir; (assim co-
mo eu) produzi (a espiritual) nuvem que carrega a água material, e chuvas onde
quer que ela escolha; e assim como eu produzi o ar que sopra à vontade, abaixo e
acima, com a força do vento, como é visível a olho [nu]; ̶ não se pode agarrá-lo
com as mãos; ̶ eu produzi a cada um destes quando sua produção era mais difícil
para eu conseguir do que ressuscitar os mortos; pois, na ressurreição dos mortos,
eu tenho a ajuda dos tais [seres que já existem], a qual eu não tinha quando (eu)
os produzi; o que foi [feito] pode ser [feito] novamente; eis que, se eu fiz o que
não existia, como não posso reformar o que já existia? Pois, naquele tempo, eu e-
xigirei a estrutura óssea [que está com] do espírito da terra, o sangue [que está
com] da água, o cabelo das plantas, e a vida do vento, conforme eles haviam re-
85
cebido no início da criação’”.
85
Bd. 34,4-5. Tradução inglesa em ANKLESARIA, B. T. Zand-Âkâsîh: Iranian or Greater
Bundahišn, p. 285 (cf. também WZ 34,20).
86
Cf. também WZ 34,7; PR 48,55.
87
Bd. 34,6; WZ 34,18-19; 35,19-20; PR 48,56. A restauração da humanidade a um novo estado de
perfeição é normalmente entendida como acontecendo em sucessivos momentos, nos quais a puri-
ficação do ímpio também é incluída. Embora os temas e épocas sejam as mesmas na tradição sub-
jacente, a ordem exata de realização não emerge claramente em todos os textos, e a confusão que
se pode sentir pode ser devido tanto a incongruências redacionais quanto a opiniões diferentes re-
gistradas nas fontes sassânidas ou expressas na época de sua compilação no Período Islâmico. O
significado da Renovação (o “tornar maravilhoso”, “reabilitação da existência”, ou “feitura do no-
vo”, Frashokereti em avestan e Frashegird em pálavi) é fortemente enfatizado na tradição em pá-
lavi, embora seus detalhes sejam descritos apenas em um número limitado de passagens. A ressur-
reição, por exemplo, é descrita no WZ como sendo “semelhante a árvores e arbustos secos a partir
dos quais novas folhas começam a brotar e botões se abrem” (WZ 34,28). Sobre essa tradição do
“tornar maravilhoso”, a qual se relaciona ao tema da Renovação, ao juízo final e à ressurreição dos
mortos, cf. SEGAL, Alan F. Death After Life, p. 197; COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to
Come, p. 99; ELIADE, Mircea (Ed.). The Encyclopedia of Religion, p. 158. v. 1.
137
88
Cf., por exemplo, PR 48,66-68.
89
Cf. Bd. 34,9; também PR 48,57.
90
Cf. WZ 35,32.
91
Bd. 34,11.
92
Bd. 34,13-14; WZ 35,40-45. A separação entre justos e ímpios é descrita de forma vívida: “E
todas as pessoas passarão através de seus próprios atos; os justos chorarão pelos ímpios, e os ím-
pios (chorarão) por si mesmos; nisso pode ser que haja um pai que seja justo e o filho ímpio, ou
pode ser que haja um irmão que seja justo e outro ímpio...” (Bd. 34,15); no WZ, é descrito que
“naquele tempo toda a humanidade lamentará juntamente e derramará lágrimas sobre o solo, pois o
pai verá seu filho ser lançado no inferno, o filho (verá) seu pai, a esposa seu marido, o marido sua
esposa, o amigo seu amigo” (WZ 35,41).
93
Exatamente como nas descrições judaica e cristã do paraíso, em que os justos são retratados con-
templando e louvando a Deus.
138
Como já assinalado neste trabalho, temas escatológicos são uma parte inte-
grante do que poderia ser chamado de literatura apocalíptica. De acordo com
Hultgård, temas escatológicos presentes na tradição tardia, como a expectativa de
sinais e tribulações do fim dos tempos, o confronto final entre o bem e o mal, e a
restauração do mundo, foram baseados em antigas tradições em avestan, as quais
94
Bd. 34,24; PR 48,101.107; WZ 35,52.
95
PR 48,103.107.
139
são anteriores ao III século a.C., e as partes mais antigas do Avesta (os Gathas e o
Yasna de Sete Capítulos) precedem o Império Persa.96 Ele assevera que a difusão
dessas tradições da antiguidade é indicada através de descrições do zoroastrismo
por Plutarco e outros autores clássicos, bem como de antigas compilações como o
Oráculo de Hystapes, as quais carregam uma forte marca iraniana. Em suma,
permitindo certa obscuridade inerente à prova e à possibilidade de adaptação his-
tórica das ideias religiosas, Hultgård conclui que muitas tradições escatológicas e
cosmológicas preservadas pelas compilações em pálavi originaram no pensamento
iraniano antigo.
Quanto à influência do pensamento sobre a apocalíptica judaica e cristã an-
tiga,97 ele afirma que nenhum empréstimo direto ocorreu. Mesmo assim, o desen-
volvimento do apocalipsismo foi consideravelmente influenciado pelas preocupa-
ções e teor do apocalipsismo persa. Por fim, os textos em pálavi, importantes para
o mundo medieval, são igualmente muito importantes para o estudo do apocalip-
sismo também no mundo antigo.98
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96
Cf. HULTGÅRD, Anders. Bahman Yasht: A Persian Apocalypse. In: COLLINS, J. J.; CHAR-
LESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations: Apocalyptic Studies since the Uppsala Col-
loquium, p. 114-134. Bem antes de Hultgård, Benveniste já havia chamado a atenção para os clás-
sicos gregos no estudo da religião persa (cf. BENVENISTE, Emile. The Persian Religion: Accor-
ding to the Chief Greek Texts, 1929).
97
Ele faz um tratamento detalhado do tema em HULTGÅRD, Anders. Das Judentum in der
hellenistisch-römischen Zeit und die iranische Religion: ein religiongeschichtliches Problem.
ANRW II.19.1 (1979), p. 512-590.
98
Cf. HULTGÅRD, Anders. Bahman Yasht: A Persian Apocalypse. In: Op. cit. p. 134.
99
Cf. Y. 43,5; 51,6.
100
Cf. Y. 30,4 (transcrito supra).
140
101
Uma importante noção nos Gathas é a ideia expressa pelo termo “ahu-” (“existência”), a qual
parece ter diversas conotações. Determinada por “astuuant-” (“de osso”), expressa a existência
corporal de humanos e animais; ligado a “mainiiu-”, denota sua existência espiritual. O termo pode
se referir a diversas formas de existência, individual (“vida”) e universal (“mundo”, “universo”).
102
Cf. Y. 32,13.15; 51,14.
103
Cf. também Y. 32,7.
104
Cf. Y. 30,4; 34,13; 43,12; 44,19; 45,7.
105
Cf. Y. 43,4; 47,6 (possivelmente também no Y. 31,3).
106
Cf., por exemplo, o Y 30,7. O ensino gáthico especificamente sobre a ressurreição será tratado
adiante.
141
107
Cf. Y. 30,9; 34,15.
108
Cf. Yt. 19,89.
109
Ou, de acordo com Kellens e Pirart, “e os caminhos retos... a Harmonia, ao final dos quais, ó
Mazda, o mestre [Ahura] habita” (cf. KELLENS, Jean; PIRART, Eric. Les textes vieil-avestiques,
p. 123. v. 1).
142
Yt. 19,11 (repetida no v. 89), na mesma linha do texto gáthico Y. 30,7 citado aci-
ma.113
O nascimento de Asvat-ereta é aludido na estrofe 92, onde se registra que
ele nascerá nas águas do Lago Kâsava e que sua mãe se chama Vîspa.taurvairi.
Ele é o promovedor da Renovação, na qual, segundo os Gathas, tomarão parte
também os fiéis verdadeiros, através de seus bons pensamentos, palavras e a-
ções.114 A batalha final entre Bem e Mal é claramente anunciada. Ele sobrepujará
o grande inimigo, “a má Falsidade, de raízes más e nascida de trevas” (estrofe 95).
110
Cf. Dk. VII, 4,84-86 e PR 47,30. Neste caso, a conexão com o Y. 51,16 parece óbvia, o que
implica uma antiga interpretação daquela estrofe como uma viagem transcendental feita por Vish-
taspa durante a sua vida.
111
O último Saoshyant (pálavi Asvat-ereta, “Que tem a ordem [cósmica] por corpo”, “Personifica-
ção da verdade”, a justiça encarnada), nascerá da virgem Vispa-Taurvairi (“A que tudo conquis-
ta”), cf. Yt. 19,92. Esse último Saoshyant é o supremo Saoshyant, o Asvat-ereta, o qual promoverá
efetivamente a Renovação (Yt. 19, 88-96), conforme também o Bd. 34. Segundo o Bundahishn, a
história do mundo se divide em 12 mil anos, em que nos três primeiros estão os preparativos para a
luta cósmica e no início do segundo quarto de milênio (ano 9000) Zoroastro recebe a revelação de
Ahura Mazda. No último quarto de milênio se dá a batalha final; no entanto, este período também é
dividido em três períodos de mil anos, sendo que ao final de cada um desses milênios os ensinos de
Zoroastro caem no esquecimento, havendo então a necessidade do surgimento de um novo reden-
tor (assim, o Saoshyant acaba sendo triplicado, sendo o Asvat-ereta o último a surgir).
112
Para esse desenvolvimento, cf. HINZE, A. The Rise of the Saviour in the Avesta. In: RECK,
Christiane; ZIEME, Peter (Ed.). Iran und Turfan: Beiträge Berliner Wissenschaftler, Werner
Sundermann zum 60. Geburtstag gewidmet, p. 77-98.
113
Para o tratamento específico desse Yasht, ao lado do Y. 30,7 (a questão da ressurreição dos
mortos), cf. adiante.
114
Cf. Y. 34,23; 46,3; 48,12.
143
115
O Mahabárata é uma legenda que constitui o segundo dos dois grandes poemas épicos da Índia,
com cerca de cem mil versos compostos em mais de 800 anos, com início por volta de 400 a.C.
116
Cf. Yt. 13, 129.145; Vd. 19,5: Y. 26,10; 59,28. No Yt. 13,129 seus dois nomes são explicados:
Saoshyant (“Futuro Benfeitor”) na medida em que ele fará com que toda a existência corporal
prospere, e Asvat-ereta (“Justiça Encarnada”) “na medida em que como criatura corporal (e) viva
ele dará livramento corporal do perigo” (cf. HINZE, A. Op. cit. p. 92).
117
Yt. 13,145; Y. 26,10.
118
Cf. também Y. 62,3 ; Vd. 18,51.
144
texto sagrado, matavam criaturas nocivas como formigas e cobras, e exibiam ca-
dáveres humanos para serem mutilados por “pássaro ou cão”.120 Muitas dessas
práticas correspondem àquelas encontradas em textos zoroastrianos tardios.121
Um contemporâneo de Heródoto, Xantos de Lídia, foi o primeiro ocidental
a mencionar Zoroastro, o que mostra que ele já era conhecido no Ocidente nessa
época. Xantos escreveu em grego e viveu durante o reinado de Artaxerxes I (465-
424 a. C.). Ele era um especialista nos magos, os sacerdotes medos. Em um famo-
so fragmento preservado por Diógenes Laércio (III século a.C) ele chama Zaratus-
tra de Zoroastro (“astro puro”),122 cujo nome parece insinuar que, nessa época,
Zoroastro era conhecido pelas suas conexões com a astrologia e a astronomia ba-
bilônicas, apesar de nos Gathas não haver registro de tal correlação.
Plínio, o Velho, cita Eudoxo de Cnido (IV século a.C.), um discípulo de
Platão, para a ideia de que Zoroastro viveu seis mil anos antes.123 Pelo final do IV
119
HERÓDOTO. História, I.131.
120
Ibidem, I.132.140.
121
MOLÉ, Marijan. Culte, mythe et cosmologie dans l’Iran ancien: le problème zoroastrien et la
tradition mazdéenne, p. 78. Segundo Boyce, “em geral, os comentários de Heródoto sobre a religi-
ão dos persas concordam muito bem com as crenças e práticas zoroástricas tal como elas teriam
sido apreendidas por um observador inteligente e questionador, o qual não procurava penetrar mui-
to na doutrina ou nos atos sacerdotais de culto, mas estava satisfeito em registrar o que ele via por
si mesmo e o que seus amigos poderiam relatar-lhe” (Cf. BOYCE, Mary. A History of Zoroastria-
nism: Under the Achaemenids, p. 183).
122
DIÓGENES LAÉRCIO VI.1.3-4.
123
PLÍNIO. Naturalis Historia XXX.1.3
145
e início do III século a.C., Zoroastro era conhecido pelos gregos como um mago e
um antigo legislador do povo iraniano.124 Estrabão (63 a.C. – 19 d.C.) registra uma
extensa passagem sobre a religião persa: “Agora, os persas não erguem estátuas e
altares, mas oferecem o sacrifício em um lugar alto, sobre os céus, como Zeus, e
eles também adoram Hélio [o Sol], a quem eles chamam de Mitras, Selene [Lua] e
Afrodite (...) mas é sobretudo ao fogo que eles oferecem sacrifício”.125
Outro testemunho importante é o de Plutarco (46 – 127 d.C.) em seu ensaio
De Iside et Osiride (Sobre Ísis e Osíris) 46-47, escrito entre 100 e 127 d.C.126 No
capítulo 46 ele registra:
Esta é a opinião da maioria e dos mais sábios; pois alguns acreditam que existem
dois deuses que são rivais, por assim dizer, na arte, um sendo o criador do bem, e
o outro do mal; outros chamam o melhor desses um deus e seu rival um daemon
[demônio], como, por exemplo, Zoroastro, o Mago, o qual viveu, assim eles regis-
tram, cinco mil anos antes do Cerco de Troia. Ele costumava chamar um de Ho-
romazes e o outro de Areimanios, e mostrou também que o primeiro foi especial-
mente aparentado, entre os objetos da percepção, à luz, e o segundo, ao contrário,
à escuridão e ignorância, enquanto que entre os dois estava Mitra; e é por isso que
os persas chamam Mitra de “o Mediador”. Ele também ensinou que ofertas voti-
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vas e de agradecimento devem ser feitas para Horomazes, mas cerimônias lúgu-
bres para Areimanios, e aquelas destinadas a evitar o mal. Uma delas consiste em
colocar uma libra de determinada erva chamada omômi num almofariz, invocando
Hades e as trevas, e então depois de se misturar com o sangue de um lobo degola-
do eles a levam a um lugar sem sol e a lançam fora. Eles acreditam que também
entre as plantas algumas pertencem ao deus do bem o outras ao daemon do mal, e
que entre os animais alguns, tais como cães, aves e porcos-espinhos da terra, per-
tencem ao bom deus, ao passo que ouriços d’água pertencem à divindade má, e
por essa razão eles consideram feliz qualquer que mata um grande número de-
127
les.
três vezes seu tamanho, retirou-se para tão longe do sol quanto o sol está distante
da Terra, e adornou o céu com estrelas; e uma estrela, Sirius, ele estabeleceu so-
bre todas as outras como um guardião e vigia. Vinte e quatro outros deuses foram
criados por ele e colocados dentro de um ovo. Aqueles que foram criados a partir
de Areimanios foram de igual número, e eles penetraram no ovo... e assim disso
resultou que bem e mal estão misturados. Chegará o tempo destinado quando Are-
imanios, o portador da peste e da fome, deve necessariamente ser totalmente des-
truído e obliterado por estas. A Terra será plana e nivelada, e um modo de vida e
um governo surgirá de todos os homens, os quais serão felizes e falarão a mesma
língua. Teopompo afirma que, de acordo com os Magos, por três mil anos, alter-
nadamente, um deus dominará o outro e será dominado, e que por mais três mil
anos eles lutarão e farão guerra, até que um despedace o domínio do outro. No fi-
nal Hades perecerá e os homens serão felizes; eles não precisarão nem de sustento
e nem de projetar uma sombra, enquanto o deus que terá proporcionado isso fica-
rá tranquilo e descansará, não por muito tempo mesmo para um deus, mas pelo
tempo que seria razoável para um homem que adormece. Essa é a mitologia dos
128
Magos.
tra Mitra”. Isso pode ser comparado com a abertura do mito no Bundahishn: “Or-
mazd estava em suprema onisciência e bondade, pelo infinito ele esteve sempre na
luz... (...) Ahriman estava no fundo das trevas, ignorante e cheio de desejo torpe
para ferir. No meio do caminho entre eles estava o vazio”.130
Plutarco acrescenta que Horomazes e Areimanios “estão em guerra um
com o outro”, e descreve brevemente o trabalho da criação, como dos antigos
moldes surgiram seis divindades que correspondem claramente ao grupo dos A-
mesha Spentas, os “Imortais Beneficentes”.131 Areimanios responde pela criação
de seis entidades opostas, justamente como Ahriman produz os “arquidemônios”
como uma “anticriação” de acordo com o mito pálavi.132 Hromazes adornou o céu
com luminares, e “ele estabeleceu uma estrela sobre todas as outras como um
guardião e vigia, a Sirius”. A primeira afirmação recorda a narrativa do Bd. 2,1:
“Ormazd formou os luminares entre o céu e a Terra”. Já a citação que Plutarco faz
de Sirius parece ser uma citação em grego a partir de uma passagem em avestan
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130
Bd. 1,1-3; cf. relato semelhante em WZ 1,1-2. Em verdade, no Bd. 1,3 uma tradição variante é
relatada, na qual o “vazio” aparece como “caminho” (“vento, atmosfera”) ao mesmo tempo em que
é considerado como uma divindade (avestan Vayu) da mesma dignidade de Mitra.
131
Cf. Bd. 1,53.
132
Cf. Bd. 1,47-49.55.
133
Yt. 8,44.
148
pelas palavras “pestilência e fome”, e a ideia de que elas são produzidas por Are-
imanios mas que também causarão a sua própria destruição está em conformidade
com a tradição pálavi da luta interna mortal dentro do acampamento dos demô-
nios. Quando o fim se aproxima, um aumento da atividade do mal é esperado, co-
mo indicado no Bahman Yasht: “Quando o momento de sua destruição estiver
próximo, o Mau Espírito enganador será mais opressivo e sua forma de governo
pior”.134
A ideia da reviravolta da criação com a chegada da Renovação também é
abordada por Plutarco: a Terra se tornará uma planície, e haverá um só modo de
vida e uma só forma de governo para uma humanidade abençoada em que todos
falam a mesma língua. Pode-se notar que os textos em pálavi da tradição zoroas-
triana tardia também tem como background essas ideias quando tratam da Reno-
vação. A primeira argumentação para a existência de um paralelo claro é que ele é
encontrado no Bundahishn, numa citação a partir de uma antiga tradição sagrada:
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“Essa Terra se tornará uma planície, nivelada, sem inclinações, e não haverá de-
pressões, montanhas e picos, nem para cima e nem para baixo”.135
No Bd. 34,21 também é narrado que, quando a alma for reunida ao corpo,
“a humanidade será reunida e, a uma só voz, ruidosamente dará louvores a Or-
mazd e aos Imortais Beneficentes”.136 Não está claro se esse é o significado que
deve ser atribuído à declaração de Plutarco. Entretanto, a unidade escatológica na
forma de vida e de governo aludida no texto grego e para a qual bons paralelos até
agora não foram apresentados pode, de fato, ser interpretada à luz de algumas pas-
sagens em pálavi acerca da Renovação.137 O Dinkard afirma que “toda a humani-
dade irá se reunir em torno da religião de Ormazd em uma única comunidade”.138
A unidade de pensamento, fala e ação que existe entre os Amesha Spentas será
também característica da humanidade após a Renovação, conforme é expresso nas
declarações proferidas pelos Imortais Beneficentes: “Sendo do mesmo pensamen-
to, do mesmo discurso e da mesma ação, você será sem envelhecimento, sem do-
134
Cf. BYt. 2,54.
135
Bd. 34,33.
136
Cf. os comentários acerca dessa passagem em BIDEZ, Joseph; CUMONT, Franz. Les mages
hellénisés: Zoroastre, Ostanès et Hystaspe, d’après la tradition grecque, p. 77. v. 2;
WIDENGREN, Geo. Leitende Ideen und Quellen der iranischen Apokalyptik. In: HELLHOLM,
D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East: Proceedings of the Inter-
national Colloquium on Apocalypticism, p. 77-162; aqui p. 132.
137
Cf. WIDENGREN, Geo. Loc. cit.
138
Dk. VII: 11,6.
149
139
Cf. WZ 35,2. “Amahraspand” é a denominação em pálavi para os Amesha Spentas (cf. BOY-
CE, Mary. Amesha Spenta. In: YARSHATER, Ehsan (Ed.). Encyclopaedia Iranica, p. 933. v. 1).
140
Teopompo de Chios, na Jônia, teria vivido na mesma época de Platão. Voltaremos a tratar de
Teopompo, adiante, devido à importância de sua afirmação sobre a ressurreição.
141
Cf. Bd. 34,3; Dk. 7:10,8-9; WZ 34,38-41.
142
Bd. 34,1.
150
tro”.143
A citação de Teopompo por Plutarco conclui com a curiosa afirmação de
que Horomazes, o deus que tinha trazido a felicidade final para a humanidade, a-
gora “terá sossego e repouso durante algum tempo”. Isso pode ser explicado a par-
tir da ideia de que Ormazd, tendo efetuado com êxito a Renovação, não precisa
mais desempenhar qualquer ação.144
As concordâncias pormenorizadas entre o relato de Plutarco e os textos em
pálavi revelam que Plutarco e sua fonte Teopompo estavam bem informados sobre
as ideias iranianas de cosmologia e escatologia, sugerindo ainda que esse conhe-
cimento derivou diretamente de informantes persas. Através do testemunho de
Teopompo, ainda se pode saber que o mito cosmogônico básico, com suas impli-
cações apocalíptico-escatológicas, estava em circulação no final do Período A-
quemênida (no IV século a.C.) e, provavelmente, também no V século a.C.
A crença na ressurreição dos mortos não é mencionada explicitamente no
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relato de Plutarco, mas está certamente implícita no que ele afirma acerca do esta-
do de bem-aventurança da humanidade após o desaparecimento do mal. J. G. Grif-
fiths assevera que o estado de felicidade mencionado por Plutarco virá aos homens
quando alcançarem a nova vida após a ressurreição.145 Outros escritores gregos
também se referem a Teopompo como sua principal fonte na atribuição da ressur-
reição dos mortos aos ensinamentos dos magos e de Zoroastro. Assim o faz Dió-
genes Laércio em seu Proêmio: “o qual [Teopompo] afirma que, segundo os Ma-
gos, a humanidade viverá novamente e será imortal. Isso também é relatado por
Eudemo de Rodes”.146 Eudemo é outro autor do IV século a.C. que, aparentemen-
te, conhecia as crenças persas, mas cujas obras também não sobreviveram.
Aenas de Gaza (neoplatonista do VI século d.C.) também se refere a Teo-
pompo para a ideia de ressurreição: “Zoroastro prediz que haverá um momento em
que a ressurreição de todos os mortos acontecerá. Teopompo sabe o que eu afirmo
e ele ensina também aos outros (escritores)”.147
143
Cf. PLUTARCO. Quaestiones Graecae, 39. J. Gwyn Griffiths afirma que “a ideia iraniana de
não projetar uma sombra significa estar na luz, em vida e prazer; a ideia pitagórica implica a morte
e perda da personalidade” (cf. GRIFFITHS, J. G. Plutarch’s De Iside et Osiride. Edited with an
Introduction, Translation and Commentary, p. 482).
144
PR 48,101; cf. também Bd. 34,22.
145
Cf. GRIFFITHS, J. G. Op. cit. p. 481.
146
Cf. DIÓGENES LAÉRCIO. Bivoi kaiV gnw~~mai tw~~n e*n φilosoφivai eu*dokimhsavntwn (Vida e
opiniões dos mais eminentes filósofos) 1.6-9 (Livro 1: Proêmio).
147
Apud BIDEZ, Joseph; CUMONT, Franz. Les mages hellénisés: Zoroastre, Ostanès et Hystaspe,
d’après la tradition grecque, p. 70. v. 2.
151
148
COLPE, Carsten. Hystaspes. In: KLAUSNER, Theodor (Ed.). Reallexikon für Antike und
Christentum: Sachwörterbuch zur Auseinandersetzung des Christentums mit der antiken Welt, p.
1057-1082. v. 16.
149
Desde H. Windisch (iniciador da pesquisa moderna sobre essa obra) que se acredita ser esse
texto um oráculo zoroástrico escrito em grego (cf. WINDISCH, Hans. Die Orakel dês Hystaspes,
p. 13). Entretanto, seu eminente estudo está baseado em duas suposições equivocadas: acreditar
que os Oráculos sejam inteiramente uma obra persa, e, por outro lado, acreditar que tudo o que
possa ser definido como “judeu” ou “cristão” na citação de Lactâncio dos Oráculos não fazia parte
deles. David Flusser propõe que era, na realidade, “um livro judaico em língua grega, baseado em
algum material ou livro zoroastriano. Hispaste é a forma grega do persa Vištâsp, rei e protetor de
Zaratustra” (cf. o tratamento do tema em FLUSSER, D. Histaspe e João de Patmos. In: O Judaís-
mo e as origens do Cristianismo, p. 171-236. v. 2; aqui p. 174. Tanto Windisch quanto Flusser,
entretanto, asseveram que esse texto teve alguma influência sobre a apocalíptica judaica e cristã.
152
conteúdo universal destes sinais e por influências transculturais. Isso faz com que
a separação das ideias genuinamente iranianas de ideias das tradições judaico e
cristã seja uma questão, de fato, intrincada.
As mudanças no cosmos e na natureza anunciando o fim dos tempos pre-
vistas em Lactâncio apresentam afinidades inconfundíveis com o Bahman Yasht,
bem como também com a profecia do Livro Astronômico na coleção judaica de
Enoque e com as previsões em 4 Esdras.150 No entanto, existe uma correspondên-
cia maior na formulação entre as Instituições Divinas e o Bahman Yasht. Lactân-
cio afirma, por exemplo, que “o ano será abreviado e o mês reduzido e o dia enco-
lhido em um curto espaço”.151 As predições paralelas de 1En 80,2a (“Mas nos dias
dos pecadores, os anos serão mais curtos, suas sementes chegarão tarde no país e
nos campos”) e de 4Esd 5,4b (“De repente o sol brilhará no meio da noite, e a lua
durante o dia”) certamente atestam a dissolução da ordem do cosmos; entretanto,
somente o Bahman Yasht fornece o equivalente preciso: “O sol será menos visível
e menor, e o ano, mês e dia mais curtos”.152 O fogo escatológico descrito por Lac-
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tâncio corresponde, pela sua função, claramente ao conceito iraniano e não ao ju-
daico-cristão.153
Os Oráculos enfatizam que o fogo divino queimará tanto o justo quanto o
ímpio, e que o ímpio será julgado pelo fogo divino, mas ele não machucará os jus-
tos (“mas aqueles a quem a justiça plena e a maturidade da virtude impregnaram
não perceberão aquele fogo”), ao passo que ele afetará os ímpios “com uma sensa-
ção de dor”, mas não os destruirá. O fogo “não somente queimará os ímpios, mas
os formará novamente, e substituirá o tanto que consumirá de seus corpos”. Isto
corresponde precisamente ao caráter do fogo escatológico descrito nos textos apo-
calípticos iranianos.
O cenário do final dos tempos nos Oráculos se assemelha muito àquele en-
contrado nos apocalipses “históricos” judaico-cristãos, mas existem detalhes e
formulações que revelam o background original persa. Quando as tribulações es-
catológicas estiverem em seu auge, os justos se separarão dos ímpios e fugirão pa-
ra uma montanha. O rei do mal que domina o mundo ficará cheio de ira ao ouvir
isso, e então cercará a montanha com um grande exército. Os fiéis suplicarão a
150
Cf. LACTÂNCIO. Institutiones Divinae VII: 16.6-11; BYt. 2,31-32; 1En 80,2-8; 4Esd 5,1-12;
6,20-25.
151
LACTÂNCIO. Op. cit. VII: 16.10.
152
BYt. 2,31.
153
LACTÂNCIO. Op. cit. VII: 21.3-7.
153
Deus por ajuda, serão ouvidos e Deus lhes enviará um salvador do céu que, com
seus seguidores, socorrerá os justos e destruirá os ímpios. A expectativa da vinda
do salvador nos Oráculos de Hystaspes pode significar, originalmente, uma figura
persa do salvador que seria Mitra,154 ou último Saoshyant (Asvat.ereta)155 ou o
Dario redivivo.156 O salvador é chamado de “o grande rei”, uma clara alusão à
terminologia da realeza iraniana, e em outra passagem Lactâncio menciona “o lí-
der da comitiva sagrada”, o que claramente alude aos seguidores de Saoshyant, e
talvez seu líder não seja outro senão Pishyotan.157
O cenário com a montanha é mais bem explicado a partir do costume persa
de adoração divina sobre o topo de montanhas, conforme descrito por Heródoto.158
Os justos serão chamados de “seguidores da verdade”, o que recorda a ênfase zo-
roastriana na Verdade e os seus seguidores como sendo os verdadeiros. Em uma
referência explícita à profecia de Hystaspes, Lactâncio reproduz mais diretamente
a narrativa dos Oráculos ao dizer que os fiéis sitiados na montanha suplicarão por
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ajuda e “Júpiter olhará para a Terra e ouvirá as vozes dos humanos e exterminará
os ímpios”.159 Júpiter aparece aqui no lugar de Zeus (era o equivalente ao Zeus
grego na mitologia romana), o qual era o nome grego de uso estabelecido para
Ahura Mazda. É improvável que judeus ou cristãos tivessem usado o nome “Zeus”
em seus próprios escritos no lugar do termo grego theós, de uso geral. Lactâncio
está ciente disso em seu comentário seguinte à citação: “Tudo isso é verdade, ex-
ceto uma coisa, a saber, que ele [Hystaspes] afirmou que Júpiter irá cumprir o que
Deus fará”.160
Assim sendo, o background iraniano das paráfrases de Lactâncio dos Orá-
culos de Hystaspes pode ser constatado,161 e parece razoável concluir que as pas-
sagens nos Oráculos que revelam semelhanças tanto pertinentes à tradição irania-
na quanto aos apocalipses judaico-cristãos devem, primeiramente, ser interpreta-
154
BIDEZ, Joseph; CUMONT, Franz. Les mages hellénisés: Zoroastre, Ostanès et Hystaspe,
d’après la tradition grecque, p. 71. v. 2.
155
Cf. WIDENGREN, Geo. Leitende Ideen und Quellen der iranischen Apokalyptik. In:
HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 77-162;
aqui p. 133.
156
COLPE, Carsten. Hystaspes. In: KLAUSNER, Theodor (Ed.). Reallexikon für Antike und
Christentum, p. 1057-1082. v. 16; aqui p. 1077.
157
Pishyotan é filho imortal de Vishtaspa (Cf. BYt. 6,3).
158
Cf. HERÓDOTO. História, I.131-132.
159
LACTÂNCIO. Institutiones Divinae VII: 17-18.
160
Ibidem, VII: 18.2.
161
Cf. SHAKED, Shaul. Eschatology and Vision. In: Dualism in Transformation: Varieties of Re-
ligion in Sasanian Iran, p. 27-52; aqui p. 31.
154
radas, cuja aparição de cada um introduz um novo milênio. Na mudança dos milê-
nios eventos muito semelhantes ocorrem, caracterizados primeiro pela deteriora-
ção seguida de desenvolvimento.
Assim, a tradição apocalíptica original constante do Yt. 19 e ainda em cur-
so no início da época helenística conforme revelada por Teopompo e pelos Orácu-
los de Hystaspes foi reinterpretada e seus temas distribuídos em três “fim dos
tempos”.
Vestígios do novo arranjo das tradições podem ser encontrados nas incon-
gruências e perda de clareza verificadas em algumas passagens dos livros em pá-
lavi. Pode-se citar como exemplo Pishyotan e a tradição ligada a ele. Originalmen-
te um dos companheiros do salvador final Asvat.ereta, Pishyotan e sua tradição
foram posteriormente transferidos para o final do milênio de Zoroastro, onde ele e
seus seguidores se revelam como precursores de Ushedar, o primeiro salvador a
chegar. No Bahman Yasht se afirma que Ahura Mazda e os Imortais Beneficentes
se manifestarão sobre a Terra e convocarão Pishyotan para restaurar a religião
mazdeísta.163 De acordo com o Dinkard, Pishyotan ferirá o Mau Espírito e os de-
mônios.164 Tanto o Bahman Yasht quanto o Dinkard colocam esses eventos na vi-
162
Cf. BOYCE, Mary. On the Antiquity of Zoroastrian Apocalyptic. In: BSOAS 47.1 (1984), p. 57-
75; aqui p. 68-69.
163
Cf. BYt. 3,25-31.
164
Dk. VII: 8,47.
155
165
Bd. 33,22.
156
Desde que dados textuais são fundamentais para qualquer discussão sobre a
possível "influência" de ideias iranianas no desenvolvimento de ideias judaicas,
dois caminhos foram geralmente traçados para escolha: o primeiro foi a tese da
existência de uma “tradição Zoroastriana” que encontrou sua expressão máxima
na coleção de escritos sacerdotais do Oriente persa no século IX d.C., tese esta
exposta acima. O ponto frágil dessa abordagem seria o fato de ela exigir que do-
cumentos com sua forma final no século IX fossem invocados como prova da “in-
fluência” sobre a evolução que eles próprios teriam tido retrocedendo a mais de
166
Cf. KIPPENBERG, H. G. Die Geschichte der mittelpersischen apokalyptischen Traditionem.
Studia Iranica 7 (1978), p. 49-80; OLSSON, Tord. The Apocalyptic Activity. The Case of Jâmâsp
Nâmag. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near
East, p. 21-49. O Jâmâsp Nâmag (“História de Jamasp”, um dos discípulos mais próximos de Zo-
roastro) é um livro de revelações em pálavi que teria sido composto por volta do VII século d.C.
157
mil anos antes. O segundo caminho foi, então, considerar essa possibilidade im-
provável (apesar das evidências apontadas acima) e aceitar apenas os textos que
eram mais seguramente datados no primeiro milênio a.C., ou seja, o Avesta (origi-
nal e Posterior), o qual contém os textos utilizados em rituais do zoroastrismo.
Não havia muita certeza acerca da datação desses textos também, mas, como vi-
mos, eles são geralmente datados como sendo desde a primeira metade do I milê-
nio a.C. até o V século a.C.
Verificou-se então a escassez e dificuldade de interpretação dessas obras
sem recorrer à literatura tardia. Conforme já citado neste trabalho, os Gathas são
os mais importantes textos, as "músicas" de Zaratustra. Eles pertencem a um gêne-
ro de poesia inspirada no qual a principal divindade desses textos, Ahura Mazda, é
elogiado e seus oponentes, os daevas, são repelidos. Como já visto, existem ape-
nas dezessete destes hinos, agrupados em uma coleção de cinco grupos arranjados
de acordo com a métrica.167 Eles são, aliás, extremamente difíceis de serem inter-
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pretados, por várias razões distintas. Uma das razões é a reduzida dimensão do
corpus, tendo como resultado um grande número de hapax legomena; outras ra-
zões são a natureza simbólica desse gênero de composição, bem como a forma
concisa de alguns versos associada a uma aparente falta de contexto literário onde
aparecem. Como consequência importante, os estudiosos ficaram divididos em
relação à abordagem mais apropriada para a interpretação desses textos.
No início do século XX, os hinos dos Gathas eram vistos como "sermões
em verso", contendo, pensava-se, as instruções do profeta para aqueles que pre-
tendiam conquistar a sua nova religião, uma exposição (por assim dizer) dos prin-
cipais pontos das revelações de seu visionário.168 Essa interpretação permitiu aos
estudiosos seguir o que foi "ensinado" neles em poucas palavras, conforme desdo-
brado na tradição posterior. Como consequência, a tradição posterior passou a ser
vista como contendo elementos de uma “reforma” de Zoroastro que não poderia
ser atribuída aos Gathas em si, mas poderia ser postulada como tendo sido parte de
sua revelação.169 Outros estudiosos, no entanto, rejeitaram essa interpretação, em
virtude de sua noção romântica de "profeta" do Irã antigo.170 Estes se concentra-
ram mais em comparar os Gathas com o (muito mais extenso) corpus de textos
167
Como vimos, pensa-se que este arranjo possa ter se dado mais tarde em uma reestruturação da
liturgia.
168
BARTHOLOMAE, Christian. Die Gatha's des Awesta: Zarathustra's Verspredigten, p. 1-11.
169
Cf. especialmente BOYCE, M. A History of Zoroastrianism: The Early Period, p. 19-20.
170
Cf. STAUSBERG, M. Die Religion Zarathustras, p. 22-68. v. 1.
158
Um não criou o outro, nem o evocou, mas eles sempre estiveram lá, uniformemen-
te equilibrados em poder e continuidade. A escatologia, nesse sistema, não prevê
uma aniquilação do Espírito do Mal, uma vez que esta não foi considerada possí-
vel; ele foi apenas destituído de poder.
Nos Gathas, no entanto, de acordo com algumas interpretações, Ahura
Mazda era superior a dois espíritos, um bom (Spenta Mainyu) e o outro mal (An-
gra Mainyu). Alguns estudiosos acreditam que estes dois espíritos são apresenta-
dos como descendentes gêmeos de Ahura Mazda,173 e todo o sistema do zoroas-
trismo mais antigo poderia, portanto, ser interpretado como um monoteísmo (des-
de que apenas Ahura Mazda seja reconhecido como não-criado), atenuado por
uma "segunda camada” dualística.174 Essa interpretação dos Gathas foi, no entan-
to, questionada por razões filológicas.175 Além disso, sérias reservas são necessá-
rias na aplicação dos conceitos de "monoteísmo" e "dualismo", os quais funciona-
ram principalmente como polêmicos instrumentos normativos em debates entre as
comunidades religiosas que surgiram muito depois do zoroastrismo.
171
Cf. especialmente HUMBACH, H. The Gathas of Zarathushtra and the Other Old Avestan
Texts, p. 72-73. v. 1; KELLENS, J.; PIRART, E. Les textes vieil-avestiques, p. 3-41. v. 1.
172
Cf. DE JONG, Albert. Views of Zoroastrian History. In: Traditions of the Magi, p. 39-75.
173
Cf. Y. 30,3 (transcrito acima).
174
Cf. a famosa declaração de Henning: “A religião de Zoroastro (como são a maioria dos movi-
mentos dualistas) é mais bem compreendida como um protesto contra o monoteísmo” (HENNING,
W. B. Zoroaster: Politician or Witch-Doctor?, p. 46; grifo do autor).
175
Cf, por exemplo, KELLENS, J.; PIRART, E. La strophe des jumeaux: stagnation, extravagance
et autres méthodes d'approche. JA 285.1 (1997), p. 31-72.
159
Os que não aceitam o uso dos Gathas como evidência para possíveis influ-
ências sobre outros textos alegam que esse uso é problemático por várias razões,
especialmente porque as evidências de que os Gathas ou mesmo qualquer outro
texto do Avesta serviram como “fonte” de informação religiosa são apenas indire-
tas.176 Mas, apesar disso, não se deve subestimar a antiga tradição presente nas
fontes persas. O mais importante para a questão das influências é o problema da
datação das fontes persas, ou de fontes antigas, indiretas, que remetam a elas.
A principal função dos textos do Avesta, dentro do zoroastrismo, é litúrgi-
ca. Os textos que chegaram até os estudiosos hoje eram (e continuam sendo para o
zoroastrismo moderno) empregados nos rituais religiosos, onde são citados por
sacerdotes. Esses textos foram compostos e transmitidos no avestan, conforme as-
sinalado acima, um idioma que não pode ser conhecido a partir de nenhuma outra
fonte e nenhum outro descendente. A preservação dos textos neste idioma é a úni-
ca (e irrefutável) prova da propagação da religião que se desenvolveu dentro do
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176
Cf. DE JONG, Albert. The Culture of Writing and the Use of the Avesta in Sasanian Iran. In:
PIRART, E.; TREMBLAY, X. (Ed.). Zarathushtra entre l'Inde et l'Iran, p. 27-41.
177
Cf. BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: Under the Achaemenians, p. 40-48.
160
e da religião védica na Índia.178 Entretanto, entre os dois processos existe uma di-
ferença crucial: a transmissão, em textos rituais, de uma narrativa religiosa que
tem como foco uma pessoa que foi responsável pela presença dessa religião sobre
a Terra, ou seja, Zaratustra. Ele veio para ser visto, já nos tempos do avestan, co-
mo a autoridade que está por trás de todo o corpo textual do Avesta, e estes textos
por si mesmos são tidos como o mais potente instrumento em uma batalha que es-
tava sendo travada neste mundo entre as forças do bem e as do mal.
Entretanto, ao que parece, os textos por si só não foram considerados o ú-
nico instrumento presente nos rituais. Havia uma série de outras instituições e
prescrições que, regulamentadas, dominavam a vida quotidiana. Por exemplo, o
tratamento especial dado ao fogo, considerado como a mais importante manifesta-
ção do divino na Terra, e um extenso código de leis de pureza, concentrados em
duas categorias de impureza (fluidos corporais e cadáveres), cada uma com seu
próprio conjunto de prescrições. Essas prescrições foram acompanhadas pela no-
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ção de que seriam boas para qualquer pessoa, mas absolutamente obrigatórias para
aqueles que optaram por participar na luta contra as forças do mal que os textos
delineavam e, dessa forma, aceitaram a sua mensagem básica.
Os muitos paralelos com a Índia mostram que esse desenvolvimento é pos-
sível, mas também que não irá, por si só, conduzir a um conjunto de crenças e prá-
ticas unificado e coerente. O zoroastrismo é considerado notavelmente coerente.
Essa coerência foi frequentemente atribuída à competência do próprio Zaratustra
como professor da humanidade; entretanto, parece existir uma explicação histori-
camente mais plausível: trata-se da ideia de que a comparativa uniformidade do
zoroastrismo na forma como tem sobrevivido se originou de um processo de cen-
tralização e reformulação do seu núcleo textual, ritual, teológico e expressões so-
ciais, pelos reis aquemênidas.179 A evidência para tal processo é grande, apesar de
que alguns estudiosos sequer aceitam que os reis aquemênidas foram zoroastria-
nos.180 Isso certamente não pleiteia confirmar que após a intervenção dos reis o
zoroastrismo continuou a existir como algum tipo de expressão monolítica acaba-
da da religião iraniana. Todas as evidências levam, na verdade, ao oposto.
Entretanto, algumas inovações do Período Aquemênida (550 – 330 a.C.)
178
Cf., por exemplo, POLLOCK, Sheldon I. The Language of the Gods in the World of Men: San-
skrit, Culture, and Power in Premodern India, p. 37-280.
179
Cf. DE JONG, Albert. The Contribution of the Magi. In: CURTIS, Vesta S.; STEWART, S.
(Ed.). Birth of the Persian Empire, p. 85-99.
180
Quanto a essa questão, cf. adiante.
161
181
Cf. BOYCE, Mary. Further on the Calendar of Zoroastrian Feasts. Iran 43 (2005), p. 1-38 (com
referências).
182
Cf. BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: Under the Achaemenians, p. 225-228.
183
Cf. DE JONG, Albert. The Contribution of the Magi. In: Ibidem.
184
Cf. PSEUDO-PLATO. Greater Alcibiades 1.121-122. Sobre a discussão da autoria platônica ou
não, cf. BLUCK, R. S. The Origin of the Greater Alcibiades. CQ 3.1/2 (1953), p. 46-52, e
CLARK, Pamela M. The Greater Alcibiades. CQ 5.3/4 (1955), p. 231-240. De qualquer forma, a
obra é normalmente datada em cerca de 390 a.C. (cf. YOUNG, Charles M. Plato and Computer
Dating. In: SMITH, Nicholas D. (Ed.). Plato: Critical Assessments, p. 29-49. v. 1).
185
PLUTARCO. De Iside et Osiride 46-47; DIÓGENES LAÉRCIO. Bivoi kaiV gnw~~mai tw~~n e*n
φilosoφivai eu*dokimhsavntwn (Vida e opiniões dos mais eminentes filósofos) 1.6-9 (Livro 1: Pro-
êmio); DE JONG, Albert. Traditions of the Magi, p. 157-228.
162
(330 – 141 a.C), muitos textos esotéricos ou com caráter de magia eram escritos
usando o nome de Zoroastro, sendo ele estimado como um dos maiores magos que
existiram até então. Nenhum desses escritos provém do próprio profeta; entretan-
to, seu status famoso atesta a sua antiguidade já remota nessa época: “Zoroastro
desenvolveu uma reputação como um mestre de conhecimento esotérico, quando
Ele e seus seguidores chegaram a ser associados com os MAGOS descritos por
Heródoto”.186
Em grande parte, as profecias de Zoroastro compartilhavam o teor de al-
guns visionários do judaísmo tardio: dentre outros temas, são mensagens revolu-
cionárias, de pureza religiosa e justiça social, dirigidas contra sacerdotes corruptos
e pessoas poderosas, pessoas essas com muita influência política.
O zoroastrismo “clássico” pode, portanto, ser atribuído a uma fonte mais
recente que a virada do II para o I milênio a.C., embora a transmissão do conhe-
cimento religioso continuasse a ser um processo exclusivamente oral. Em vez da
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186
SKJAERVO, P. Oktor. Zoroaster, Zoroastrianism. In: SAKENFELD, Katharine D. (Ed.). NIB,
p. 993. v. 5 (grifo do autor).
187
Sobre esta ramificação do Zoroastrismo “clássico”, cf. FRYE, Richard N. Zurvanism Again.
HTR 52.2 (1959), p. 63-73.
188
Cf., por exemplo, MICHAUD, Henri. Un mythe zervanite dans un des manuscrits de Qumrân.
VT 5.2 (1955), p. 137-147.
163
189
Cf. SHAKED, Shaul. The Myth of Zurvan: Cosmogony and Eschatology. In: GRUENWALD,
I.; SHAKED, S.; STROUMSA, G. G. (Ed.). Messiah and Christos: Studies in the Jewish Origins
of Christianity Presented to David Flusser on the Occasion of His 75th Birthday, p. 219-240.
164
paralelo entre Ahura Mazda com seus companheiros celestes (os yazatas) e o Deus
de Israel com sua corte celestial cheia de anjos é um paralelo estrutural.
Quanto a imagens de culto, é sabido que os persas não as tinham como um
elemento fixo de sua religião. Há alguma evidência de que o culto a estátuas de
divindades foi introduzido na prática da religião persa no Período Aquemênida,
mas nunca alcançou o status de elemento característico dessa religião.190 Ao con-
trário, parece que o zoroastrismo permaneceu por um período notavelmente longo
como uma religião interna, doméstica, no qual os rituais em maior escala ocorre-
ram em um local preparado para essas ocasiões (pela purificação e pelo desenho
de um sistema de sulcos na terra), o qual poderia ser abandonado posteriormente,
sem deixar, portanto, vestígios arqueológicos.
Essas indicações de entendimento amigável entre judeus e iranianos não
desapareceram com a destruição do Império Persa por Alexandre. Ao contrário, as
configurações iranianas para histórias judaicas parecem proliferar durante o Perío-
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190
Cf. BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: Under the Achaemenians, p. 216-218.
191
Voltaremos à questão da dominação política persa sobre os judeus adiante, quando da análise
das interações culturais.
166
da.192
O segundo contexto possível que poderia explicar os elementos iranianos
presentes na literatura judaica do chamado Período do Segundo Templo é o cres-
cimento dos Partos (povo oriundo dos iranianos antigos que viviam no norte, o
qual inicia o Período Parta da história iraniana em 141 a.C.). Por volta do início do
III século a.C., eles se tornaram os mais notáveis oponentes dos Selêucidas (os
quais eles acabaram expulsando do Irã e da Mesopotâmia) e uma das causas do
desaparecimento final destes. Desde que as guerras dos Selêucidas com os Ptolo-
meus são muito bem documentadas, e que são mais imediatamente úteis aos histo-
riadores do judaísmo e do “oriente próximo romano”, a história dos Selêucidas foi
frequentemente escrita a partir de uma perspectiva inteiramente “ocidental”, como
se a perda do domínio selêucida para os partos no Irã e na Mesopotâmia tivesse
importância apenas secundária. Certamente, no entanto, o surgimento de uma no-
va e inesperada força poderosa de origem persa a partir do Oriente deve ter reper-
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192
Cf. especificamente DAVIS, Dick. Panthea’s Children: Hellenistic Novels and Medieval Per-
sian Romances, p. 1-7.
193
Cf., por exemplo, BOYCE, M.; GRENET, F. Zoroastrian Contributions to Eastern Mediterra-
nean Religion and Thought in Greco-Roman Times. In: A History of Zoroastrianism: Zoroastrian-
ism under Macedonian and Roman Rule, p. 361-490, e COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World
to Come, p. 77-118, 141-231. Entre os mais antigos a pleitear a influência persa está CARTER, G.
W. Zoroastrianism and Judaism, p. 23-103. Além das obras de Boyce e Cohn, entre os que pleitei-
am a influência persa, cf. especialmente SHAKED, Shaul. Iranian Influence on Judaism: First Cen-
tury B.C.E. to Second Century C.E. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: Introduc-
tion: The Persian Period, p. 308-325. v. 1; e HINNELLS, J. R. Zoroastrian Influence on the Ju-
daeo-Christian Tradition. JCOI 45 (1976), p. 1-23. Entre os que rejeitam, encontram-se BARR,
James. The Question of Religious Influence: The Case of Zoroastrianism, Judaism, and Christiani-
ty. JAAR 53.2 (1985), p. 201-235; e HANSON, P. D. The Phenomenon of Apocalyptic in Israel: Its
Background and Setting. In: The Dawn of Apocalyptic, p. 1-31 (Hanson não chega a negar a influ-
ência persa, mas não admite que a origem das noções apocalíptico-escatológicas seja persa). Re-
centemente, Charles D. Isbell publicou um artigo no qual, a partir de argumentos puramente lin-
guísticos e pouco convincentes, defende a proposta minimalista, ou seja, de que não houve qual-
quer influência persa sobre o judaísmo antigo (cf. ISBELL, C. D. Zoroastrianism and Biblical Re-
ligion. JBQ 34.3 (2006), p. 143-154).
167
196
Quanto a isso, cf. adiante.
197
O termo “mago” (do avestan môghu) designava o membro de uma tribo sacerdotal originária da
Média, no Irã ocidental (cf. HERÓDOTO. História, I.101; ESTRABÃO 15.3.1). Essa tribo teria se
convertido ao zoroastrismo por volta do VII século a.C. A palavra aparece apenas uma vez nos
Gathas (Y. 44,25) no composto môghutbish (“o que odeia ou injuria os magos”), embora apareça o
cognato maga, com várias conotações (“presente”, “dedicação”, “tesouro”, “irmandade”, “sacra-
mento”, “tarefa”), seis vezes nos Yt. do Khorda Avesta (o “Pequeno Avesta”): 2,11; 11,14;
16,11.16; 17,7 (duas vezes), e o adjetivo magavan (“ser magnânimo”, “liberal”, “generoso”) duas
vezes, em 6,7 e 16,15 (Cf. BOYCE, M. Textual Sources for the Study of Zoroastrianism, p. 41). O
termo é ligado ao sânscrito maghá (“dádiva”, “magnanimidade”, “generosidade”).
198
HULTGÅRD, Anders. Prêtres juifs et mages zoroastriens: influences religieuses à l’époque
hellénistique. RHPR 68 (1988), p. 415-428.
169
houve empréstimo direto e geral da escatologia apocalíptica iraniana como tal pelo
judaísmo e cristianismo. Em vez disso, a influência deve ter se dado de forma in-
direta, porém não menos importante. O encontro com a religião iraniana produziu
o estímulo necessário para o desenvolvimento pleno de ideias que estavam lenta-
mente em curso dentro do judaísmo. A personificação do mal em forma de figuras
como Satã, Belial ou Diabo, o importante aumento da oposição dualista entre Bem
e Mal, bem como seu confronto escatológico são ideias que provavelmente não
emergiram sem influência externa. A doutrina dos dois espíritos conforme preco-
nizada pela comunidade de Qumran fornece um exemplo notável do impacto da
religiosidade persa (cf. assinalado supra quanto ao zurvanismo), a qual teve efeitos
amplos e duradouros nas tradições judaica e cristã.199
Garcia Martinez, dentre outros, conclui que a comunidade de Qumran, a
qual deu origem aos manuscritos, foi provavelmente muito influenciada pelas i-
deias persas. As figuras de anjos e demônios revelariam sinais dessa influência.
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199
Cf. PHILONENKO, Marc. La doctrine qoumrânienne des deux Esprits: Ses origines iraniennes
et ses prolongements dans le judaïsme essénien et le christianisme antique. In : WIDENGREN,
Geo; HULTGÅRD, Anders; PHILONENKO, Marc (Ed.). Apocalyptique iranienne et dualisme
qoumrânien, p. 163-212.
200
GARCÍA MARTINEZ, Florentino. Iranian Influences in Qumran? In: McNAMARA, Martin
(Ed.). Apocalyptic and Eschatological Heritage: The Middle East and Celtic Realms, p. 37-49;
aqui p. 39-41.
201
Ibidem, p. 43-49.
170
peito e braços de prata, barriga e coxas de bronze, pernas de ferro e pés de ferro
misturado com argila é interpretado por Daniel como a representação de cinco pe-
ríodos da história mundial: as várias partes representam cinco reinados mundiais
sucessivos, progressivamente inferiores, sendo o primeiro o do Rei Nabucodono-
sor. Após o quinto reinado, o Deus de Israel estabelecerá um novo reinado, o qual
suplantará todos os outros e será eterno.
Há também semelhança com a já citada visão encontrada no Bahman Ya-
sht, em que Zoroastro vê uma árvore com ramos de ouro, prata, aço e ferro mistu-
rado com argila, e estes elementos também são explicados como sendo representa-
tivo de quatro períodos da humanidade. Esse yasht se parece com os apocalipses
judaicos tanto na forma quanto no conteúdo; a influência persa é possível, mas a
dificuldade de datação do material persa deixa a discussão em aberto.
Em ambos os relatos (judaico e persa), o rumo das fases futuras é revelado
numa visão de um sonho simbólico, o qual é então interpretado ao homem que a
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teve; em ambos os casos as idades ou reinos são representados por uma sequência
de metais, indo do ouro ao ferro, ligadas como membros de um organismo, uma
árvore num caso e uma grande estátua no outro.
O texto da narrativa de Daniel é considerado tardio (II século a.C), data da
formação do livro. Entretanto, a narrativa pode ter existido muito antes dessa épo-
ca, até mesmo em forma escrita; o autor das legendas de Daniel escreve sobre os
Impérios Babilônico e Persa, e provavelmente deve ter obtido essa história de uma
fonte babilônica, persa, ou grega (Hesíodo), e é certo que a origem dela não é ju-
daica. Influência persa também pode ser percebida em outras obras judaicas do
período intertestamentário, como 2 Macabeus e 2 Enoque.
Dois pontos de discordância ainda resistem no debate sobre o tema das in-
fluências persas e iranianas no judaísmo, especialmente as influências sobre as
origens do apocalipsismo judaico antigo: se as mais antigas partes da literatura
medieval zoroastriana, preservada basicamente em pálavi, contêm tradições anti-
gas o bastante para serem consideradas fontes potenciais de influência, e se tais
influências podem ser demonstradas ou até mesmo possíveis cronologicamente.
Podemos afirmar que ambos os pontos, se colocados em forma de perguntas, po-
dem ser respondidos positivamente. Conforme atestamos acima, os argumentos
para responder afirmativamente estão na evidência da continuidade de ideias esca-
tológicas do Avesta original na tradição tardia (pálavi) e nas evidências das cita-
171
202
Cf. HULTGÅRD, Anders. Forms and Origins of Iranian Apocalypticism. In: HELLHOLM, D.
(Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 387-411; WIDENGREN,
Geo. Leitende Ideen und Quellen der iranischen Apokalyptik. In: Ibidem, p. 77-162. De fato, o
zoroastrismo não se configura como uma religião ou modo de pensar que produz obras apocalípti-
cas nos moldes do judaísmo, ou seja, obras que possam ser consideradas, como um todo, “apoca-
lípticas”. Entretanto, isso não significa que traços e elementos apocalípticos não sejam encontrados
em obras da tradição zoroastriana; ao contrário, perpassam em grande escala toda essa literatura.
203
Cf. WIDENGREN, Geo. Les quatre âges du monde. In: WIDENGREN, Geo.; HULTGÅRD,
A.; PHILONENKO, M. (Ed.). Apocalyptique iranienne et dualisme qoumrânien, p. 23-62;
HULTGÅRD, A. Mythe et histoire dans l’Iran ancien: Etude de quelques thèmes dans le Bahman
Yašt. In: Ibidem, p. 63-162. Cf. também HULTGÅRD, A. Bahman Yasht: A Persian Apocalypse.
In: COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 114-134, e
ainda HULTGÅRD, A. Persian Apocalypticism. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of
Apocalypticism, p. 39-83. v. 1.
204
GIGNOUX, Philippe. L’Apocalyptique iranienne est-elle vraiment ancienne? Notes critiques.
RHR 216.2 (1999), p. 213-227.
205
Cf. COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 77-118, 141-193, e Idem. How Time
Acquired a Consummation. In: BULL, M. (Ed.). Apocalypse Theory and the Ends of the World, p.
21-37.
172
206
Cf. HULTGÅRD, Anders. Forms and Origins of Iranian Apocalypticism. In: HELLHOLM, D.
(Ed.). Op. cit. p. 388; Idem. Persian Apocalypticism. In: Op. cit. p. 45-46.
173
dições do avestan nas quais os textos do Zend em pálavi foram baseados, eles e-
ram genuínos e tiveram uma origem pré-sassânida.207 Caso contrário, seria difícil
supor que os sacerdotes sassânidas compusessem os textos primeiramente em a-
vestan para depois comentá-los em pálavi. 208 No entanto, o argumento linguístico
é complexo e nem sempre aplicável; assim sendo, se faz necessário o uso dos ou-
tros argumentos que endossam o linguístico, a fim de que se demonstre a continu-
207
Cf. SHAKED, Shaul. Eschatology and Vision. In: Dualism in Transformation: Varieties of Re-
ligion in Sasanian Iran, p. 27-52; aqui p. 29-30. Este é o segundo capítulo dessa obra, onde Shaked
aborda o tema da escatologia zoroastriana no que tange ao quando a fé e a visão apocalíptica se
desenvolveram (p. 27-37). Embora não compartilhando totalmente o mesmo pressuposto de outros
estudiosos como Mary Boyce e Anders Hultgård, os quais defendem que essas noções surgiram
nas camadas iniciais do pensamento de Zoroastro, Shaked conclui que um núcleo em avestan foi
reformulado para atender às predileções medievais. Desse modo, ele implicitamente rejeita a su-
gestão de Philippe Gignoux e outros de que a maior parte desse material data do século VII d.C.
em diante, quando os zoroastrianos tiveram que racionalizar a conquista árabe-muçulmana do Irã e
o início do declínio do zoroastrismo. Segundo ele, a escatologia zoroastriana tinha, claramente,
suas raízes na prédica do próprio Zoroastro. A crença na vida após a morte era uma firme convic-
ção na Era Sassânida, como demonstram as inscrições do sacerdote Kirdir (p. 35-36 e Apêndice
A), bem como a visão atribuída a Arday Wiraz (p. 34, 36) e a confissão de fé (p. 32-33). Quanto ao
gênero apocalíptico, entretanto, escatologia não pressupõe necessariamente o apocalipse. O desen-
volvimento do gênero no Irã ganhou um impulso inicial com a invasão de Alexandre (século IV
a.C.), mas pode ter se desenvolvido à forma plena somente após a invasão árabe, quando a turbu-
lência sócio-política passou a ser vista como precursora para a salvação universal. Shaked ainda
observa que “a literatura pálavi do Período Sassânida tardio e início do Período Muçulmano é pra-
ticamente obcecada pelas as descrições das visões do futuro” (p. 46). Essas eram, então, necessá-
rias para satisfazer os anseios dos zoroastrianos.
208
Cf. HULTGÅRD, Anders. Mythe et histoire dans l’Iran ancient: étude de quelques thèmes dans
le Bahman Yašt. In : WIDENGREN, Geo; HULTGÅRD, Anders; PHILONENKO, Marc (Ed.).
Apocalyptique iranienne et dualism qoumrânien, p. 63-162; aqui p. 80; WIDENGREN, Geo.
Leitende Ideen und Quellen der iranischen Apokalyptik. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalyptic-
ism in the Mediterranean World and the Near East, p. 77-162; aqui p. 153-154.
174
O exílio babilônico foi um evento que provocou, sem dúvida, muitas trans-
formações na maneira de pensar dos judeus durante o chamado Período do Segun-
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do Templo (final do exílio, em cerca de 540 a.C., até o advento Jesus Cristo). As-
sim, após uma crise político-religiosa iniciada na Babilônia, os judeus tiveram que
rever os pontos essenciais de sua religião e cosmovisão. Entre os que mais intera-
giram com os judeus nestas mudanças estão, sem dúvida, os persas.
Alguns estudiosos afirmam que os efeitos da influência da cultura persa no
judaísmo não se fizeram sentir durante o domínio persa na Palestina, e sim somen-
te mais tarde, no Período Helenístico.210 Entretanto, as influências persas podem
ser percebidas já no Dêutero-Isaías.211 Tanto a doutrina de Zoroastro quanto o Isa-
ías do V século a.C. revelam uma aversão comum à reverência de imagens sagra-
das.
De fato, quando os persas liderados por Ciro II (559-530 a.C.) dominaram
a Babilônia em 538 a.C., a Arábia, a Síria, Judá e, posteriormente, o Egito e a
Grécia sofreram um processo de revolução cultural e religiosa. 212 Os reis aquemê-
nidas Dario I (522-486 a.C.), Xerxes I (486-465 a.C.) e Artaxerxes II (404-359
209
No caso do presente trabalho, consideramos estes (especialmente o último) os principais argu-
mentos para a antiguidade das tradições iranianas, inclusive a tradição concernente à ressurreição
dos mortos.
210
Cf., por exemplo, SHAKED, Shaul. Iranian Influence on Judaism: First Century B.C.E. to
Second Century C.E. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Per-
sian Period, p. 308-325; aqui p. 309.
211
Cf. ZAEHNER, R. C. The Dawn and Twilight of Zoroastrianism, p. 57-58; SMITH, Morton. II
Isaiah and the Persians. JAOS 83.4 (1963), p. 415-421.
212
Cf. o relato histórico das conquistas com ampla e variada bibliografia em DONNER, Herbert.
História de Israel e dos povos vizinhos, p. 443-458. v. 2.
175
213
ZAEHNER, R. C. Op. cit. p. 156-161. Wiesehöfer recentemente chegou à conclusão de que a
questão deve permanecer em aberto: apesar de reconhecer o forte contato dos reis aquemênidas
com a religião de Zoroastro, ele acredita que outras divindades e crenças eram adotadas concomi-
tantemente (cf. WIESEHÖFER, Josef. Ancient Persia, p. 99-101).
214
Cf. NIGOSIAN, S. A. The Religions in Achaemenid Persia. Studies in Religion 4 (1975), p.
378-386; SCHWARTZ, M. The Religion of Achaemenian Iran. In: GERSHEVITCH, I. (Ed.).
CHI: The Median and Achaemenian Periods, p. 664-697. v. 2; BOYCE, M. Persian Religion in the
Achemenid Age. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.). Op. cit. p. 279-307.
215
YARSHATER, E. Iranian National History. In: CHI: The Seleucid, Parthian and Sasanian Pe-
riods, p. 359-477. v. 3.1; aqui p. 439. Dentre outros estudiosos que rejeitam ou duvidam de que os
reis aquemênidas adotaram a religião de Zoroastro encontram-se E. Benveniste, M. Dandamayev,
J. Duchesne-Guillemin, G. Gnoli, A. V. W. Jackson, M. Mole e Geo Widengren. À exceção deste
último e de E. Yarshater, os demais são muito antigos.
216
BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: Under the Achaemenians, p. xi. Dentre outros
estudiosos que afirmam serem os reis aquemênidas zoroastrianos, além de Mary Boyce, encon-
tram-se Albert T. Olmstead, Igor Diakonov, Ilya Gershevitch, John Hinnells, James Moulton e
Norman Cohn. Desta feita, à exceção de Olmstead, todos são estudiosos recentes.
217
Nigosian afirma que “é, obviamente, do conhecimento comum que o povo judeu entrou em es-
treito contato com o zoroastrismo durante seu exílio na Babilônia no sexto século a.C. Esse período
de contato judaico-persa (em particular do sexto ao quarto século a.C.) foi, em muitos aspectos,
decisivo para o desenvolvimento posterior do Judaísmo. Ao passo que existe uma abundância de
literatura judaica datando do sexto século a.C. em diante (por exemplo, os tardios do Antigo Tes-
tamento, a literatura apócrifa e a seita do Mar Morto), a literatura iraniana do mesmo período é,
infelizmente, de pouca monta. Assim, alguns estudiosos argumentaram que o contato judaico-persa
do sexto ao quarto século a.C. não deve ser postulado como fator contribuinte para o desenvolvi-
mento paralelo das ideias no Judaísmo. Antes, a explicação pode ser mostrada pelo desenvolvi-
mento de certas tendências inerentes aos escritos bíblicos anteriores” (cf. NIGOSIAN, S. A. The
Zoroastrian Faith: Tradition and Modern Research, p. 96).
176
II recebe o título de “Ungido de Iahweh”, título esse reservado aos reis de Israel e
que se tornou o título do Messias-rei e salvador esperado. O paradoxo é que o títu-
lo é concedido a um soberano estrangeiro, que não conhece Iahweh (“Embora não
me conheças, eu te cinjo”, Is 45,5b). O mesmo oráculo aparece no “Cilindro de
Ciro”, texto redigido por sacerdotes da Babilônia, no qual Bel, Nabu e Marduque,
que não são deuses persas, favorecem Ciro; esse último deus, Marduque, profere o
nome de Ciro e o chama para dominar toda a Terra.220
Parece óbvio que o rei persa também viu com bons olhos a crença dos ju-
deus no VI século a.C., pois estes o receberam em sua cultura sem questionar sua
procedência. Parece também que o autor bíblico se adapta à nova geopolítica que
estava se estabelecendo, assimilando o pensamento persa de forma consciente.
O fato é que, durante o exílio, os judeus tiveram que rever sua concepção
218
Idem. Persian Religion in the Achemenid Age. In: Op. cit. p. 299. Essa autora apresenta tam-
bém a semelhança e possível influência da antiga narrativa da criação zoroastriana presente nos Y.
44,7 e 51,7 na narrativa sacerdotal da criação (mais recente que a javista) presente em Gn 1,1-2,4a,
a qual difere em muito da narrativa javista de Gn 2,4b-3,24. Tanto no Avesta quanto no Gênesis é
o espírito da divindade que é associado à criatividade e está presente no ato da Criação (Ibidem, p.
300). No entanto, apesar das semelhanças apontadas pela autora, há muitas diferenças fundamen-
tais, as quais fogem ao escopo deste trabalho.
219
Conforme já assinalado supra, os reis persas adotaram uma política de tolerância para com os
povos dominados, evitando a subjugação violenta que os assírios e babilônios haviam adotado.
Pode ser que os reis persas tenham justamente aprendido pelo exemplo desses impérios anteriores
e adotado postura contrária.
220
Cf. o texto do Cilindro de Ciro em DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos,
p. 444-445. v. 2.
177
de adoração a Iahweh, uma vez que não tinham mais o Templo e os sacrifícios de
animais, fundamentos que, até então, tinham estado no centro de sua adoração di-
vina. O motivo teológico da Sião inexpugnável, da proteção de Iahweh (a divinda-
de como o protetor tribal, podendo evitar que os judeus fossem conquistados ou
exilados) teve de ser revisto. A situação propiciou, então, a possibilidade e a con-
veniência da assimilação de influências persas.
Conforme assinalado acima, a crença em uma vida no pós-morte, por e-
xemplo, é de grande proeminência nos ensinos dos Gathas, a parte mais antiga do
Avesta. As ideias persas de vida no pós-morte com céu e inferno, de um julgamen-
to a ser realizado em um dia final, com o aniquilamento dos maus e uma felicidade
eterna para os justos, salvos em companhia de Ahura Mazda, 221 são em muito di-
ferentes das concepções escatológicas dos outros povos antigos, incluindo os isra-
elitas do Período do Primeiro Templo. Assim, os judeus teriam assimilado essas e
outras ideias tidas como “apocalípticas”,222 as quais foram agregadas de forma de-
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221
Cf. BOYCE, M. Persian Religion in the Achemenid Age. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN,
L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Persian Period, p. 279-307; aqui p. 300.
222
Cf. as noções escatológicas persas que teriam influenciado a apocalíptica judaica em SOARES,
Dionísio O. As influências persas no chamado judaísmo pós-exílico. Theós 5.2 (2009), p. 1-24;
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 19, e em SHAKED, Shaul.
Iranian Influence on Judaism: First Century B.C.E. to Second Century C.E. In: DAVIES, W. D.;
FINKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Persian Period, p. 308-325; aqui p. 314. Entre
essas noções está a ideia da ressurreição individual, possivelmente também corporal, seguida de
julgamento.
223
Sobre as fontes desse importante período para o nosso estudo, cf. WALBANK, F. W. Sources
for the Period. In: WALBANK, F. W. et al. (Ed.). CAH: The Hellenistic World, p. 1-22. v. 7.1.
224
RUSSELL, D. S. Apocalyptic: Ancient and Modern, p. 7.
178
ou seja, a partir do IV século a.C. até a Era Cristã. Barreiras de todos os tipos fo-
ram sendo superadas (política, nacional e cultural), fazendo com que povos de
ambientes totalmente diferentes fossem inseridos numa cultura que confrontou
poderosamente suas crenças e instituições tradicionalmente estabelecidas.225
As grandes unidades políticas caracterizaram esse período, diferentemente,
por exemplo, da época clássica: o poder não estava mais centrado na pólis, mas
sim nos grandes impérios, com estrutura de poder em escala mundial. 226 Segundo
Momigliano, a época helenística assistiu pela primeira vez à confrontação da cul-
tura grega com as culturas de quatro outras civilizações: romanos, celtas, judeus e
iranianos (persas).227 A religião iraniana sofreu um forte amálgama nessa época:
“Em consequência da conquista de Alexandre, as manifestações religiosas irania-
nas foram quase que completamente submersas sob a onda do Helenismo”.228 No
caso dos judeus, os principais contatos se dão com a cultura persa-helênica.
Esses contatos não foram sempre pacíficos. As conquistas de Alexandre
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225
Collins afirma que “o período que se seguiu à ascensão da Pérsia foi um dos mais agitados em
toda a história do Oriente Próximo. Em especial as conquistas de Alexandre tiveram um profundo
impacto sobre as civilizações orientais. O impacto incluiu uma circulação de ideias sem preceden-
tes entre os vários povos, mas sobretudo as condições de vida nas áreas conquistadas foram trans-
formadas e, como resultado, houve uma transformação de atitudes que foram muito além da influ-
ência literária em motivos e padrões. Dificilmente poderíamos esperar que o judaísmo, quer em sua
terra natal ou na diáspora, não fosse afetado por essa agitação” (cf. COLLINS, J. J. Jewish Apoca-
lyptic against Its Hellenistic Near Eastern Environment. BASOR 220 (1975), p. 27-36; aqui p. 27;
republicado em Seers, Sybils and Sages in Hellenistic-Roman Judaism, p. 59-74).
226
VOEGELIN, Eric. History of Political Ideas: Hellenism, Rome and Early Christianity, p. 120.
227
MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da helenização: a interação cultural das civilizações gre-
ga, romana, céltica e persa, p. 10.
228
DUCHESNE-GUILLEMIN, J. Zoroastrian Religion: Iranian Religion under the Seleucids and
Arsacids. In: YARSHATER, Ehsan (Ed.). CHI: The Seleucid, Parthian and Sasanian Periods, p.
866-908. v. 3.2; aqui p. 866.
229
RUSSELL, D. S. El Período Intertestamentario, p. 9.
179
230
ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica: um estudo da literatura apocalípti-
ca judaica e cristã de Daniel ao Apocalipse, p. 49.
231
PETIT, Paul. A civilização helenística, p. 50.
232
Cf. HERÓDOTO. História, II.50.
233
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento, p. 168. v. 1.
234
M. Dandamayev afirma: “Como os milhares de textos cuneiformes religiosos, astronômicos,
matemáticos e literários revelam, a antiga cultura babilônica continuou a florescer e desenvolver-se
ao longo da época pérsia” (cf. DANDAMAYEV, M. Babylonian in the Persian Age. In: DAVIES,
W. D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Persian Period, p. 326-342. v. 1; aqui p.
337).
235
RUSSELL, D. S. Op. cit. p. 18.
180
236
KOESTER, Helmut. Op. cit. p. 232. Esse movimento desempenharia papel decisivo também na
formação do cristianismo primitivo.
237
NOTH, Martin. Das Geschichtsverständnis der alttestamentlichen Apokaliptik. In: Gesammelte
Studien zum Alten Testament, p. 248-274; aqui p. 274.
238
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 7.
181
239
Cf. PRITCHARD, J. B. (Ed.). ANET, p. 72-99.
240
Ibidem, p. 106-109.
241
Ibidem, p. 52-57.
242
Cf. o relato da ida de Ulisses às portas do Hades, na forma narrativa, em HOMERO. A Odissei-
a. Tradução Fernando C. de A. Gomes, p. 121-134, e o relato narrativo da ida de Enéias em VIR-
GÍLIO. Eneida. Tradução David J. Júnior, p. 94-111. Retornaremos a esse tema (incluindo todos
esses casos) neste trabalho.
243
Relata texto do L. Jub 23,25: “As cabeças das crianças serão brancas com cabelos grisalhos, a
criança de três semanas parecerá um ancião de cem anos, e sua estatura será aniquilada por tribula-
ção e opressão” (cf. CHARLES, R. H. (Ed.). APOT, p. 49. v. 2).
244
Tradução própria de eu\t= a#n geinovmenoi poliokrovtaφoi televqwsin (cf. o texto na edição
crítica de WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p. 103).
245
Cf. esse relato em COLLINS, J. J. Sibylline Oracles. In: CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). OTP,
p. 317-472. v. 1.
246
RUSSELL, D. S. El Período Intertestamentario, p. 17.
247
GREENFIELD, J. C. Aramaic in the Achaemenian Empire. In: GERSHEVITCH, Ilya (Ed.).
CHI: The Median and Achaemenian Periods, p. 698-713. v. 2; aqui p. 707.
182
248
Para uma descrição minuciosa da história da língua aramaica e seus dialetos, cf. JEFFERY,
Arthur. Aramaic. In: BUTTRICK, G. A. (Ed.). IBD, p. 185-190. v. 1.
249
DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos, p. 447. v. 2.
250
PETIT, Paul. A civilização helenística, p. 16; cf. também BARR, J. Hebrew, Aramaic and
Greek in the Hellenistic Age. In: DAVIES, W. D.; FINSKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: The Hellenis-
tic Age, p. 79-114.
251
Sobre essa questão, cf. CLARK, Timothy. Translational Practice and Purpose: The Septuagint
in the Hellenistic Period. In: Jewish Education in the Hellenistic Period and the Old Testament.
SVTQ 54.3-4 (2010), p. 281-301; aqui p. 295-301.
252
Cf. GLASSON, T. Francis. Resurrection and Re-incarnation. In: Greek Influence in Jewish
Eschatology: With Special Reference to the Apocalypses and Pseudepigraphs, p. 26-32.
183
Sua visão sobre o pós-morte pode ser considerada, até certo ponto, bastante
otimista. Prova disso é que todos os esforços funerários buscavam melhores cir-
cunstâncias para o prolongamento da vida no além. 2 Este é um dos aspectos mais
documentados da religião egípcia. 3 Apesar de as crenças em outra vida no pós-
morte variarem muito ao longo da história egípcia,4 é possível traçar a linha geral
do pensamento egípcio acerca do tema. Chegavam a imaginar que, no além, a pes-
soa poderia atingir um estado de transcendência e gozar de felicidades até maiores
do que as obtidas em vida. De qualquer forma, a eudaimonía era buscada não so-
mente para a vida terrena, mas também para a futura (os egípcios não faziam a di-
visão dualista comum nas culturas ocidentais entre mundo natural e mundo sobre-
natural).
Eles possuíam uma antropologia complexa no que diz respeito ao corpo;
no que se refere ao cadáver, postulavam três conceitos distintos: Ka, Ba e Akh.
1
Seguimos aqui a cronologia proposta por CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito antigo, p. 13.
2
Cf. especialmente o Livro dos Mortos, capítulo 110 (cf. a tradução em MILDE, H. Ancient Egyp-
tian Beliefs Concerning Death. In: BREMER, J.M.; VAN DEN HOUT, Th.P.J.; PETERS, R.
(Ed.). Hidden Futures: Death and Immortality in Ancient Egypt, Anatolia, the Classical, Biblical
and Arabic-Islamic World, p. 15).
3
Além do Livro dos Mortos, o tema é tratado nos Textos das Pirâmides, nos Textos dos Sarcófa-
gos, nos Guias do Além nas suas várias versões (cf. COELHO, Ilda Sobral. O imaginário do além.
In: RAMOS, J.A.; ARAÚJO, L.M.; SANTOS, A.R. (Org.). Percursos do Oriente Antigo: estudos
de homenagem ao Professor Doutor José Nunes Carreira na sua jubilação acadêmica, p. 121-137;
aqui p. 126).
4
Cf. SPENCER, A. J. The Egyptian Afterlife. In: Death in Ancient Egypt, p. 139-164.
185
Dessas três entidades, Ka era uma espécie de duplicata da pessoa viva, mantendo
estreito relacionamento com o cadáver, sendo às vezes comparável ao conceito
ocidental de “espírito”. Assim, a conservação do cadáver era de suma importância,
pois com a sua decomposição a entidade Ka também se decomporia com ele; ao
contrário, enquanto o corpo se conservasse a entidade também se conservaria. Daí
a importância dos ritos e da inumação: “O espírito se conservará enquanto existir
seu suporte físico. Essa preocupação com a subsistência faz com que a inumação
segundo os ritos seja preferível à existência terrestre, mesmo confortável”.5
Como uma garantia a mais, um desenho ou estátua representando o morto
era colocado na sepultura para substituição do corpo no caso de sua destruição
(como se o Ka identificasse a pessoa que estivera naquela sepultura). Dessa forma,
o corpo poderia até ser perdido, pois haveria como “substituí-lo” por algum obje-
to. Observa-se então que a preservação do nome da pessoa, ou seja, de sua identi-
ficação era mais importante que a preservação do corpo; trata-se de uma imortali-
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dade pela memória. Além disso, para se manter o Ka vivo, eram oferecidos ali-
mentos, roupas e outros utensílios que possibilitassem a sua existência. O Ka po-
deria residir no túmulo ou no além.
Além dessa entidade, o Ba poderia visitar o túmulo. Essa era a entidade
que enfrentava a perigosa viagem do morto pelo Mundo Inferior até o julgamento
no além. A princípio, somente o Faraó era considerado como possuidor de Ba,
mas a partir do Primeiro Período Intermediário (2134 a.C.) outras pessoas também
passaram a ser consideradas possuidoras dessa entidade. Se considerado inocente
após o julgamento, o Ba se tornava então, de fato, uma entidade transcendente, um
Akh,6 o qual residia na casa do deus Osíris, a Duat. Esse julgamento se baseava em
três condições: o comportamento do indivíduo durante sua vida terrestre, a aquisi-
ção em vida de bens suficientes para serem usados na Duat (daí os bens serem en-
terrados com o indivíduo), e a execução dos ritos funerais de forma correta pelo
sacerdote (a purificação, mumificação e inumação, ou seja, o enterro). Cumprindo
esses requisitos, poderia ser garantido ao morto ter contribuído para a manutenção
de ma’at (princípio de ordem sobre o qual se sustentava todo o sistema egípcio,
semelhante ao asha zoroastriano; sua principal manifestação era a justiça, sendo o
5
Cf. ELIADE, M.; COULIANO, I. P. Dicionário das religiões, p. 143. Outra ideia, variante, é que
com a perda do corpo o morto ficaria andando errante, sem rumo ou local de estabelecimento.
6
Essa palavra tinha a conotação de “luz, eternidade e esplendor, ilustrando novamente como mui-
tos aspectos da religião egípcia foram afetados pelo imaginário solar” (SEGAL, Alan F. Life After
Death: A History of the Afterlife in Western Religion, p. 45).
186
7
Essa palavra tinha um campo semântico amplo, mas bem definido e relacionado. Sua ideia essen-
cial é “verdade”, “ordem”, “justiça”, “direito”: “Nos hieróglifos seu sinal determinante era um ob-
jeto semelhante a uma talhadeira; a identificação do sinal é incerta, mas parece expressar a ideia de
retidão” (BRANDON, C.S.F. The Judgment of the Dead: An Historical and Comparative Study of
the Idea of a Post-Mortem Judgement in the Major Religions, p. 11). Cf. as atribuições de ma’at
em COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come: The Ancient Roots of Apocalyptic Faith, p.
9-16.
8
FINNESTAD, R. B. The Pharaoh and the “Democratization” of the Post-mortem Life. In: EN-
GLUND, Gertie (Ed.). The Religion of the Ancient Egyptians: Cognitive Structures and Popular
Expressions. Proceedings of Symposia in Uppsala and Bergen, 1987 and 1988, p. 89-93.
187
ser acusado de más ações realizadas quando em vida. Osíris passa a representar o
drama da própria existência humana, destinada a morrer, mas podendo triunfar
sobre a morte em alguma outra espécie de vida.
Por outro lado, os sacerdotes de Osíris, responsáveis pelas técnicas de em-
balsamento, acabavam tendo, na esfera sagrada, prerrogativas maiores que o Fara-
ó. Com o aumento da clientela de pessoas que poderiam se tornar imortais, ou se-
ja, que tinham recursos suficientes para pagar aos sacerdotes pelos rituais de imor-
talização (aquisição do estado de Akh), faz-se uso da ideia do julgamento no Mun-
do Inferior; sua função parece clara: evitar a banalização pela aquisição do estado
de imortalidade entre as pessoas não relacionadas à realeza, pois apenas o Faraó
era, de fato, filho da divindade. Assim, não bastava mais apenas ter os recursos
para a aquisição da imortalidade, mas também passar pela aprovação de um tribu-
nal presidido por Osíris, considerado o deus responsável pela vida no Mundo Infe-
rior.
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9
CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito antigo, p. 91.
10
O morto poderia empreender uma viagem até o tribunal de Osíris, acompanhado pelo deus Anú-
bis, representado pelo chacal. Os deuses egípcios podiam ser representados zoomorficamente: ha-
via um “elo” entre a característica do animal e o deus representado por ele (no caso de Anúbis, ele
“acompanha” o morto na viagem, assim como os canídeos são reconhecidos universalmente como
“companheiros” dos homens). A representação de Anúbis no caixão (imagens do chacal) revelaria
a presença do deus no momento do julgamento do morto diante de Osíris, levando-o a refletir sobre
suas ações em vida (havia uma balança com uma pena (reconhecida como Ma’at) em um dos lados
e o coração do morto no outro).
11
Ibidem.
12
SEGAL, Alan F. Loc. cit.
188
bons e outro para os maus), após ser submetido a um julgamento final coletivo.
Já os sumérios e semitas (acádios, assírios e babilônios), a exemplo dos
antigos egípcios, também possuíam suas concepções acerca da vida além túmulo,
expressas pelo gênero literário que chamaríamos modernamente de mito.13
O ser humano fora moldado a partir do barro por Marduk e recebeu um
fôlego de vida, um napištu (espécie de “sopro da vida”); entretanto, o homem po-
deria conter também outro componente, o zaqiqu, associado ao sonho, pois pode-
ria voar quando o corpo estava adormecido. No mito acadiano de Atrahasis14 (a
forma mais antiga, paleobabilônica, é Atramhasis, “o excelente em sabedoria”),15
nome de seu protagonista, chamado também de Utnapishtim, herói do dilúvio, a-
parece um terceiro elemento na composição do ser humano, o eṭmmu, espécie de
“espírito” na Mesopotâmia.16 Não se sabe ao certo o que acontecia aos dois pri-
meiros elementos, mas é certo que o eṭmmu, por ocasião da morte, passava ao
Mundo Inferior, ao passo que o corpo permanecia na Terra.
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13
Segundo W. Piazza, existem oito definições “mais representativas” para mito, cada qual enfati-
zando um ponto de vista abordado por determinada ciência (cf. PIAZZA, W. Introdução à fenome-
nologia religiosa, p. 205-233). Para ele a definição de Mircea Eliade oferece a melhor descrição
para o que seja um mito: “O mito é uma ‘história exemplar’ que tem por fim estabelecer normas
para o procedimento humano” (ELIADE, M. Apud PIAZZA, W. Op. cit. p. 206.). O mito então
seria uma história exemplar que emprega símbolos; seu objetivo não seria ensinar como são as
coisas, pois estas já são do senso comum, e nem criar uma ideologia, mas apenas orientar a condu-
ta humana. Essa orientação teria por finalidade “o homem no seu procedimento com respeito aos
deuses, aos outros homens, às coisas que o cercam. Por isso, embora o mito se apresente como uma
‘história’ colocada nos primórdios da criação, ele não tem em vista o passado, mas o presente,
dando a este um sentido primordial para encarecer o seu significado para a vida humana” (PIAZ-
ZA, W. Op. cit. p. 208). Assim sendo, “o mito não passa de um gênero literário, no qual o símbolo
é empregado com sentido transcendente” (Ibidem, p. 216). É com essa perspectiva que o termo é
entendido neste trabalho.
14
Uma tradução antiga e em grande parte ultrapassada, mas clássica, é a de LAMBERT, W. G.;
MILLARD, A. R. Atra-Hasis: The Babylonian Story of the Flood (1969). Uma tradução mais re-
cente, revisada, é a de DALLEY, Stephanie. Myths from Mesopotamia: Creation, the Flood, Gil-
gamesh, and Others (2000).
15
Cf. CARREIRA, José Nunes. Literaturas da Mesopotâmia, p. 99.
16
De acordo com Segal, “eṭmmu é a palavra padrão para espectro na Mesopotâmia. Neste caso, no
entanto, o texto não indica que temos um espírito divino ou uma alma imortal. Em vez disso, ele
parece quase implicar o contrário; o homem que passa a possuir eṭmmu deve morrer. Quando o
homem morre, o eṭmmu ocupa residência subterrânea, enquanto o esemtu ou o pagru (duas pala-
vras significando “cadáver”) repousa na terra” (SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 73).
17
Cf. o relato em IZRE’EL, Shlomo. Adapa and the South Wind: Language Has the Power of Life
and Death, p. 9-46.
189
ao mundo das alturas à procura de uma planta que curaria sua esterilidade (a pro-
genitura era, na Mesopotâmia, uma forma de conquistar a imortalidade).18 Essa
planta pertencia à deusa Inanna (Ishtar em Acádio).19 O personagem passa por
muitas vicissitudes até alcançar o seu objetivo. Quanto a esta deusa, o relato de
sua descida ao mundo dos mortos revela que nem mesmo alguns deuses poderiam
escapar da morte, embora pudessem ser trazidos de volta à vida.20
Um dos relatos mais famosos, o Épico de Gilgamesh, é considerado a obra-
prima da literatura suméria. Seu material mais antigo é datado em cerca de 3000
a.C.,21 e sua forma completa é, provavelmente, da primeira metade do período ba-
bilônico, com o acréscimo da narrativa do dilúvio de Atrahasis. 22 O poema narra
as aventuras do Rei Gilgamesh, soberano da cidade de Uruk. Ao perder seu me-
lhor amigo (chamado Enkidu), o qual adoece e morre em doze dias, Gilgamesh
fica profundamente abatido e começa a refletir sobre a futilidade da fama de herói
diante dos homens, já que nada se pode fazer ante à enfermidade e à morte. Assim,
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18
Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit., p. 76. Cf. a história de Etana em PRITCHARD, J. B. (Ed.). ANET,
p. 52-57.
19
Considera-se que a deusa que os sumérios conheciam por Inana era a mesma Ishtar acádia (cf.
COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 41). Sabe-se que ambas compartilhavam a
dupla natureza de serem deusas guerreiras e do amor, ou seja, da fecundidade, no panteão mesopo-
tâmico: “O caráter guerreiro de Ishtar é particularmente predominante na Assíria a partir do déci-
mo-primeiro século a.C. quando ela é associada com o próprio deus nacional, Ashur (...) Seu cará-
ter guerreiro e de fertilidade é claramente indicado pela sua associação ao deus da fertilidade, Min,
e ao deus feroz Reseph, o qual matou milhares de homens através de guerra e epidemia” (GRAY,
John. Near Eastern Mythology: Mesopotamia, Syria, Palestine, p. 23).
20
Cf. o relato em PRITCHARD, J. B. (Ed.). Op. cit. p. 114-118.
21
Cf. FOSTER, B. R. The Epic of Gilgamesh: A New Translation, Analogues, Criticism, p. xiii.
22
Cf. ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan P. Dicionário das religiões, p. 234. Cf. as diversas
versões do poema em ABUSCH, Tzvi. The Development and Meaning of the Epic of Gilgamesh:
An Interpretative Essay. JAOS 121.4 (2001), p. 614-622.
190
23
Na Tabuleta X, a Epopeia de Gilgamesh registra: “Gilgamesh, para quê você anda errante? A
vida eterna que você está procurando não a encontrará. Quando os deuses criaram os homens, esta-
beleceram a morte para a humanidade e retiveram para si mesmos a vida eterna. Quanto a você,
Gilgamesh, deixe que o seu estômago seja saciado, seja sempre feliz, dia e noite. Faça de cada dia
um deleite, toque música e dance dia e noite. Suas roupas devem ser imaculadas, sua cabeça deve
ser lavada, você deve banhar-se em água, contemple orgulhosamente a criança que está segurando
a sua mão, deixe sua companheira regozijar-se em seus lombos. Essa é, então, a ocupação da hu-
manidade” (cf. FOSTER, B. R. Op. cit. p. 75; PRITCHARD, J. B. (Ed.). Op. cit. p. 90). É impossí-
vel não remeter à filosofia de vida expressa no livro de Ecl 9,7-10, da literatura sapiencial israelita:
“Vai, come teu pão com alegria e bebe o teu vinho com satisfação, porque Deus já aceitou tuas
obras. Que tuas vestes sejam brancas em todo tempo e nunca falte perfume na tua cabeça. Desfruta
a vida com a mulher amada em todos os dias da vida de vaidade que Deus te concede debaixo do
sol, todos os teus dias de vaidade, porque esta é a tua porção na vida e no trabalho com que te afa-
digas debaixo do sol. Tudo o que vem à mão para fazer, faze-o conforme a tua capacidade, pois, no
Sheol para onde vais, não existe obra, nem reflexão, nem conhecimento e nem sabedoria”.
24
SEGAL, A. F. Life After Death, p. 85.
25
Cf. BOTTÉRO, Jean. Le “Pays-sans-retour”. In: KAPPLER, Claude et al. Apocalypses et voya-
ges dans l’au-delà, p. 55-82.
26
SEGAL, A. F. Op. cit. p. 98.
27
Antes de morrer, Enkidu tem um sonho, o qual narra a Gilgamesh, sobre o lugar para onde será
levado no pós-morte. O sonho revela-lhe que, logo após a morte, determinada criatura serve de
guia para ele: “Segurando-me firmemente, ele me levou até a casa da escuridão, a morada do in-
ferno, para a casa de onde ninguém que entra sai, na estrada que não tem caminho de volta, para a
casa cujos habitantes são privados de luz, onde o pó é o seu alimento e a argila o seu sustento” (cf.
FOSTER, B. R. Op. cit. p. 58; também PRITCHARD, J. B. (Ed.). Op. cit. p. 87).
28
Cf. COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 56.
191
o ressuscita; em outras, Baal ressuscita sozinho, reencontra Mot, vence sua luta e
retorna ao seu reino. A ressurreição de Baal está, de alguma forma, associada às
estações férteis para a agricultura, pois durante o tempo em que permanece sem
vida, há um período de sete anos de seca e carestia; após Baal ser trazido de volta
à vida, senta no trono de Mot e assegura a reanimação vegetal durante outros sete
anos. Assim, a luta entre Baal e Mot simboliza o combate entre a vida e a morte; o
que é colocado em risco é a própria sobrevivência do mundo dos vivos. A morte e
ressurreição de Baal remete à morte e ressurreição da natureza; as forças desta se-
riam reativadas por meio de rituais praticados pelos adoradores.32
Essa ressurreição do deus não implica que os humanos possam fazer a
mesma coisa; ao contrário, quando morriam, os cananeus pensavam que seu ele-
29
Interessante observar que El é um nome pelo qual YHWH também é designado no AT, como
Elôhîm, El Elyôn (“o Deus altíssimo”), El Shaddai (“o Deus forte”) e El Shalom (“o Deus da paz”),
dentre outros. Cogita-se que antes de receber adoração por parte de Israel Iahweh era o deus cana-
neu da metalurgia, equivalente de Ptah no Egito (sobre isso cf. AMZALLAG, Nissim. Yahweh,
the Canaanite God of Metallurgy? JSOT 33.4 (2009), p. 387-404).
30
Cf. COHN, N. Op. cit. p. 126.
31
Para um panorama da religião cananeia e bibliografia, cf. ELIADE, M.; COULIANO, I. P. Di-
cionário das religiões, p. 87-90.
32
Segundo Ramos, “o Baal ugarítico é uma divindade que é sempre afirmada como hierarquica-
mente secundária e dependente: o Senhor e rei de tudo é dependente desse tudo e anda comprome-
tido com os exercícios de hierarquização com que, em esforço de compreensão, se tenta esquema-
tizar e formular a realidade” (RAMOS, José A. Martins. Baal, o que é um Deus? Cadmo 10 (2000),
p. 197-223; aqui p. 207).
192
xemplo do que acontecia a Baal. Dessa forma, o máximo que poderia acontecer a
Aqhat nesses rituais era seu espírito ser invocado no Mundo dos Mortos e aparecer
no banquete, mas não o próprio Aqhat ressuscitado. De acordo com Johnston, o
33
Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 113.
34
A narrativa conta a história de Aqhat, o qual seria filho de Dan’el e sua esposa Danaty. Estes
haviam implorado a El e a Baal por um filho. Quando Dan’el e sua esposa foram visitados pelos
Kotharat (divindades responsáveis pela concepção e nascimento), ofereceram-lhes banquetes que
duraram seis dias; em troca, essas divindades garantiram descendência a Dan’el e sua esposa, o que
veio a se concretizar no nascimento de Aqhat. Quando este era já crescido, Dan’el recebeu do deus
Kothar wa-Khasis um arco e flechas como gratidão pelo banquete que lhe ofereceu. Dan’el transfe-
riu, então, o presente para seu filho, juntamente com uma benção. Mas Anat, a deusa da guerra,
queria a arma que Aqhat recebera do pai e tentou negociá-la, primeiramente oferecendo riquezas e,
posteriormente, a imortalidade. Aqhat recusou e, por isso, a deusa recebeu permissão de El para
puni-lo; entretanto, a punição foi exagerada, pois Yatpan (o mensageiro divino que deveria apenas
ferir Aqhat), acabou se excedendo e causando a morte de Aqhat (cf. o relato em PRITCHARD, J.
B. (Ed.). ANET, p. 149-155, e o comentário em SEGAL, A. F. Life After Death, p. 111-113).
35
O diálogo entre a deusa Anat e Aqhat foi o seguinte: “Então disse a Virgem Anat: ‘Peça por vi-
da, ó Herói Aqhat. Peça por vida e eu a darei a ti, peça pela imortalidade, e eu a concederei a ti. Eu
te farei somar os anos com Baal, com os filhos de El tu deverás somar os meses. E Baal, quando
ele dá a vida, dá um banquete, dá uma festa para a vida doada e se oferece a ele drinque, cantando
e salmodiando por causa dele, fazendo uma serenata suave para ele: assim eu dou vida ao Herói
Aqhat’. Mas Aqhat, o Herói, respondeu-lhe: ‘Não minta para mim, ó Virgem; pois para um Herói a
sua mentira é repugnante. Vida mais extensa — como pode um mortal consegui-la? Como pode
um mortal alcançar uma vida permanente? Verniz será derramado [sobre] minha cabeça, gesso
sobre minha cuca; e eu vou morrer como todos morrem, eu também certamente deverei morrer’”
(cf. PRITCHARD, J. B. Op. cit. p. 151). Observa-se que a “vida” ou “imortalidade que a deusa
oferece a Aqhat é, de fato, a lembrança nos festivais e banquetes oferecidos pelos vivos, com cân-
ticos e salmos, sendo Aqhat o cabeça do banquete (a exemplo de Baal), podendo ter, assim, sua
memória lembrada no seio da família e da sociedade. Trata-se, portando, de uma imortalidade ape-
nas no âmbito da lembrança, a imortalidade pela memória presente também entre os egípcios, con-
forme assinalado acima.
36
SEGAL, Alan F. Loc. cit.
193
37
JOHNSTON, Philip S. Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament, p. 140. Ainda
segundo este autor, as evidências linguísticas no relato apresentadas por alguns autores para defen-
der a ressurreição literal do deus não se sustentam (Ibidem).
38
Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 115-118.
39
COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 121.
40
Assim relata o historiógrafo grego no Livro II, 53: “Durante muito tempo ignorou-se a origem de
cada deus, sua forma e natureza, e se todos eles sempre existiram. Homero e Hesíodo, que viveram
quatrocentos anos antes de mim, foram os primeiros a descrever em versos a teogonia, a aludir aos
sobrenomes dos deuses, ao seu culto e funções e a traçar-lhes o retrato. Os outros poetas, que se diz
tê-los precedido, não existiram, em minha opinião, senão depois deles. Sobre o que acabo de rela-
tar, uma parte colhi com as sacerdotisas de Dodona; mas no que concerne a Hesíodo e Homero, os
dois grandes poetas a que acima faço referência, nada mais faço do que emitir minha própria opini-
ão”.
41
Entre os eruditos modernos, o consenso é que Hesíodo teria vivido no VIII ou VII século a.C.
Sobre Hesíodo no VIII século, cf. WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p. 30; sobre a possibili-
dade de Hesíodo no VII século, cf. MAZON, Paul. Hésiode: théogonie, les travaux et les jours, le
bouclier, p. XIV.
194
42
HOMERO. Ilíada XXIV, 550-551. (cf. a tradução em versos de Carlos A. Nunes, p. 374).
43
O tema da viagem marítima para abordar as margens do além é tradicional na literatura grega.
Essa tradição procede da Odisseia homérica. Entretanto, o tema não é restrito à tradição literária
grega: “Esse tipo de imagens é, igualmente, habitual em outras literaturas, como a dos Egípcios e a
dos Sumérios, por exemplo, sem falar nas civilizações pré-helênicas do Egeu, nas quais o culto da
barca das almas parece ter sido uma constante nas representações artísticas mais antigas. Não seri-
a, pois, mera coincidência, estabelecer um paralelo entre o Livro dos Mortos dos Egípcios – em
que, a par das múltiplas e apavorantes peripécias por que têm de passar as almas no além, também
é descrito um país de eterna felicidade – e a Ilha dos Bem-Aventurados Hiperbóreos, povo mítico,
eternamente jovem e feliz, a que o poeta [Píndaro] se refere, em mais de uma oportunidade” (cf.
HORTA, Guida N. B. Parreiras. A luz da Hélade: ensaios literários, p. 106; grifo da autora).
44
SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 213.
195
da mitologia pré-homérica; já nos Erga (poema com mais de 800 versos hexâme-
tros) o enfoque é bem diferente: Hesíodo trata de temas mais terrenos, especial-
mente da questão da justiça.48 Dentro dessa temática, o poeta narra o mito das cin-
co raças (v. 106 a 201 do poema). Trata-se da história das diversas raças de ho-
mens que apareceram e desapareceram sucessivamente, numa ordem aparente de
decadência progressiva e regular. Elas são nomeadas por metais e assemelhadas a
eles, do mais precioso ao de menor valor, do superior ao inferior: primeiro o ouro,
depois a prata, o bronze e, por último, o ferro. Esta última é a da época em que
vive o poeta e seus contemporâneos, considerada a pior da história humana (daí
simbolizada pelo metal de menor valor), o que revela seu pessimismo em relação à
sua própria época. Quebrando essa sequência metálica, entre a Raça de Bronze e a
de Ferro, Hesíodo insere a Raça dos Heróis.
Os homens da Raça de Ouro (a mais próxima dos deuses imortais), da Ra-
ça de Prata, da Raça de Bronze e da Raça de Heróis continuam a existir no pós-
morte: os da Raça de Ouro se tornam “gênios”, “guardiões dos homens mortais”;49
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48
Cf. BARRON, J. P.; EASTERLING, P. E. Hesiod. In: EASTERLING, P. E.; KNOX, B.M.W.
(Ed.). CHCL: Greek Literature, p. 92-105. v. 1; aqui especialmente p. 94-96.
49
Nos Erga, v. 121-126, o texto registra: “Mas quando então a esta raça a terra envolveu inteira-
mente, eles são, por determinação do Deus poderoso, gênios corajosos, epictônios, guardiões dos
homens mortais, os quais certamente estão vigiando julgamentos e obras funestas, revestidos de ar,
vão e vêm sem cessar, por todo o lado, sobre a terra, doadores de riquezas; e este foi seu privilégio
real” (tradução nossa a partir do texto estabelecido por WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p.
100-101).
50
Cf. os v. 140-142: “Mas depois que também a esta raça a terra envolveu inteiramente, eles são
chamados hipoctônios, bem-aventurados mortais, segundos, mas, em todo caso, a honra também os
acompanha” (Ibidem, p. 101).
51
Cf. os v. 152-155: “E eles, por suas próprias mãos tendo sucumbido, foram para a úmida morada
do gelado Hades, anônimos; a morte, certamente, sendo eles terríveis, envolveu-os negra; deixaram
a luz brilhante do sol” (Ibidem, p. 102). Interessante notar que sua condição de “anônimos” é pecu-
liar ao lugar a eles destinado no pós-morte, o Hades (mundo dos espectros, das sombras, ou seres
desprovidos de essência).
52
Cf. os v. 161-173: “E a estes tanto a guerra má quanto o grito de guerra espantoso, a uns sob
Tebas de Sete Portas, na terra Cadmeia, aniquilaram combatendo por causa dos rebanhos de Édipo,
e a outros, carregados para além do grande abismo do mar, para Troia levaram por causa de Helena
de belo cabelo, ali onde certamente aos quais termo de morte envolveu, e à parte dos humanos
dando-lhes sustento e morada, Zeus Cronida pai estabeleceu nos confins da terra, e (são) estes que
197
linha decadente das raças) se deve ao conhecimento que Hesíodo tinha acerca dos
heróis gregos, os quais ele coloca como tendo vivido imediatamente antes de sua
época. A última raça, a de Ferro (a mais decadente em termos de distância dos
deuses, devido à violência, desrespeito e maldade), é a única a que o poeta não
narra o pós-morte, certamente porque retrata a sua geração, os seus ouvintes, vivos
ainda. 53
Segundo o poema, os homens tiveram a mesma origem dos deuses, sendo
que somente a estes foi reservada a imortalidade (à semelhança de mesopotâmicos
e cananeus já mencionados). O vocábulo homóthen (da mesma fonte, origem,54 ou
do mesmo ponto de partida)55 indica que os ánthrôpoi (homens, como raça huma-
na) têm, segundo West, o mesmo modo de vida dos theói (deuses);56 no entanto,
da mesma “origem” não significa que deuses e homens pertenciam à mesma famí-
lia: “Os deuses criaram os homens, não no sentido de tê-los engendrado, mas no
de tê-los produzido ou fabricado (poieîn)”.57
Quando criados, os homens tinham thymós58 despreocupada (Erga, 112); o
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mesmo termo designa depois a situação no pós-morte da raça de heróis na Ilha dos
Bem-aventurados (o oposto do Hades), junto ao Oceano profundo (v. 171).59 A
exemplo da Mesopotâmia, nem mesmo os heróis escapam ao destino da morte im-
posto por Zeus, apesar de sua condição post mortem ser diferente, como mostra o
relato desse verso.
Os homens da Raça de Ouro são classificados no pós-morte como gênios
epictônios (Erga, v. 122-123), os da Raça de Prata como gênios hipoctônios (v.
141), e os da Raça de Bronze como anônimos (v. 154). O termo daímôn (no plural
gênios, agentes divinos, v. 122) é usado na poesia grega como sinônimo para
habitam tendo coração tranquilo, na Ilha dos Bem-aventurados, junto ao Oceano profundo: heróis
afortunados, aos quais doce fruto três vezes ao ano florescendo produz a terra fecunda” (Ibidem, p.
102-103). Essa “Ilha dos Bem-aventurados” equivale ao “Campos Elíseos” de Homero (cf. a Odis-
seia IV, 561ss). Apesar de o Olimpo ser a residência dos deuses, essa “ilha” é bastante frequentada
por eles (cf. WEST, M. L. Op. cit. p. 193).
53
Poderia se pensar que essa raça, contemporânea a Hesíodo, não teria vivência no pós-morte de-
vido à sua maldade; entretanto, o poema não revela isso.
54
Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 1224.
55
Cf. BAILLY, Anatole. AB, p. 1375.
56
WEST, M. L. Op. cit. p. 178. O verso 112 confirma, para a Raça de Ouro: “como deuses viviam,
tendo vida despreocupada”.
57
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos, p. 115.
58
Esse vocábulo, muito comum em Homero, pode ter vários sentidos, como “alma” (no sentido de
“princípio da vida”), “vida”, “coração” (como sede dos sentimentos e do pensamento), e “mente”
(cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 810 e BAILLY, A. Op. cit. p. 948).
59
Oceano, personificado, é o deus do Mar, filho de Urano e Gaia, personagem que aparece em
outra obra de Hesíodo, mais antiga, a Teogonia (v. 126-133). A situação humana na Raça de Ouro
evoca o mito do primitivo estado paradisíaco da humanidade.
198
belecendo o paralelo entre as diferentes situações post mortem das duas primeiras
raças.65 O destino dos homens da Raça de Prata lembra o mesmo destino dos Ti-
tãs, depois de derrotados por Zeus, na Teogonia (v. 717-721).66
Assim, ao descrever os homens da Raça de Prata como hipoctônios e bem-
aventurados, Hesíodo está certamente identificando esses homens com alguns
mortos respeitados como poderosos ou perigosos (mortos especiais, como os reve-
renciados no marziḥ cananeu); eles, entretanto, não saem do mundo subterrâneo,
não têm identidade, não são lendários (por isso Hesíodo não os identificou com a
quarta raça, a dos Heróis). Existiam numerosos túmulos antigos tratados com ve-
neração supersticiosa pelo povo sem que se saiba a quem pertenciam. Para Ver-
nant, entretanto, a natureza e o tipo de autoridade dada a esses homens da segunda
raça não é fácil de ser definida: “A única certeza que se tem em relação a essa ca-
tegoria de defuntos ‘venerados’ pelos homens é que ‘eles são chamados mákares,
Bem-aventurados’”.67 É somente isso que o texto admite, com certeza, acerca do
destino deles: sua contraposição ao destino dos homens da Raça de Ouro.
60
WEST, M. L. Op. cit. p. 182.
61
Cf. BAILLY, A. Op. cit. p. 425.
62
Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 366 e 673.
63
Cf. BAILLY, A. Op. cit. p. 788.
64
Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 1902.
65
VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit. p. 33-34.
66
Cf. TORRANO, Jaa. Teogonia: a origem dos deuses, p. 145.
67
VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit. p. 122.
199
Para os gregos de uma forma geral, o homem possuía, além do corpo, uma
psychê. Esse termo “em Homero e Hesíodo é a vida ou o que dela subsiste”;71 o
sentido de “alma” surge em Xenófanes, referente a Pitágoras, e em Anacreonte,
sendo este sentido usado posteriormente por Platão no Fedro.72 No entanto, em
algumas ocasiões psychê é usado como sinônimo do termo thymós homérico (cita-
do acima), e era justamente a psychê que ia para o Hades;73 portanto, era o que
sobrevivia após a morte, passando a designar a parte não-material do homem. A
concepção dessa parte não-material, oposta ao corpo, surge em Heráclito. Obser-
va-se assim a modificação semântica do termo como reflexo da evolução do pen-
samento grego, desde Homero até o século V a.C.74
Por fim, interessante observar que nos Erga se percebe também o dualismo
entre Bem e Mal já expresso por Zoroastro nos Gathas, conforme assinalado aci-
ma. No primeiro relato dos Erga (v. 11-41), Hesíodo narra a existência da dúplice
68
Cf. BAILLY, A. Op. cit. p. 1338.
69
Para um tratamento abrangente do tema, cf. NAGY, Gregory. Poetic Visions of Immortality for
the Hero. In: The Best of the Achaeans: Concepts of the Hero in Archaic Greek Poetry, p. 174-210.
70
SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 212.
71
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica, p. 248.
72
Ibidem, p. 249.
73
O Mundo dos Mortos, nos escritos homéricos, “é simplesmente o lugar para onde a alma (psy-
chê) vai quando seu corpo morre” (SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 211).
74
Cf. BREMMER, Jan N. The Soul of the Living. In: The Early Greek Concept of the Soul, p. 13-
69; aqui especialmente p. 66-69.
200
Luta ( !Eri),75 uma boa e outra má, as quais explicam a existência da ambiguida-
de de índole que Hesíodo observa nos seres humanos. No mito das cinco raças, o
estado presente da humanidade é descrito como sendo a mistura de bem e mal, o
mesmo tema da dúplice Éris (na Idade do Ouro, os homens não precisam do traba-
lho para se alimentar: não têm necessidade da boa Éris, a que incentiva o trabalho,
a honestidade, a justiça; já na última Raça, a do Ferro, eles estão entregues à má
Éris).
Nesta narrativa, a das raças, Hesíodo acentua o dualismo da dúplice Éris
em outro par de opostos: Díke e Hýbris (“Justiça” e “Excesso”),76 pois é a temáti-
ca da justiça que aparece como objetivo central desse relato. Na Raça de Ferro,
época em que vive o poeta, há os dois tipos de existência humana, totalmente o-
postos, um comportando Díke e Hýbris, e o outro apenas Hýbris. Em verdade, He-
síodo vive num mundo em que o bem e o mal estão mesclados e se equilibrando,77
o que lembra a “época atual de mistura” na escatologia zoroastriana.
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75
Segundo Anatole Bailly, a palavra e!ri significa “querela à mão armada”, “luta”, “combate”,
“discórdia”, “contestação”, “rivalidade” (cf. BAILLY, A. AB, p. 805). No texto hesiódico, ela apa-
rece personificada, !Eri (Erga, 11, 16, 17 passim), a qual pode ser traduzida por “Discórdia”:
trata-se da Filha da Noite (Nuvx) da Teogonia, 225. Entretanto, nos Erga aparece uma novidade: ao
lado dessa !Eri má, existe a boa !Eri, irmã mais velha, que deve ser louvada (Erga, 12), pois é
proveitosa ao homem.
76
A tradição consagrou o significado de u@bri em português como sendo “desmedida”, “violên-
cia”. De fato, ela pode significar “violência libertina, suscitada pelo orgulho da força ou pela pai-
xão”; “insolência”; “ultraje”; “homem arrogante, autoritário, violento”; “lascívia, concupiscência”,
neste último caso em oposição à swrosuvnh, que é a “temperança”, a “prudência” (cf. LIDDELL,
H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 1741 e 1841). Assim, em uma definição mais abrangente, u@bri designa
a ultrapassagem de um limite. Entretanto, tal limite varia de acordo com os valores em que se está
inserido: em Homero (Ilíada II, 158 e 203), o limite é a ai*dwv (“sentimento moral de reverência”;
“respeito”; “temor da ignomínia” (cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 36); na Atenas clás-
sica, o limite é a swrosuvnh, qualidade de quem segue a justa medida (daí as traduções como
“desmedida” ou “excesso”). Em Hesíodo, o limite á a própria Divkh, a qual aparece associada ao
ideal de justa medida. “Desmedida” ou “Violência” parecem refletir apenas parcialmente o sentido
original hesiódico; dessa forma, “Excesso” certamente se coloca como uma tradução mais adequa-
da.
77
Cf. Erga, 179: “Mas, apesar disso, entre eles [os homens da Raça de Ferro] bens (e) desgraças
estarão misturados” (texto grego em WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p. 103).
201
no além era entendida, de certa forma, como uma existência “corporal”, uma re-
composição plena da vida humana. Os ensinamentos do orfismo, bem como dos
neopitagóricos posteriormente, “serviram como catalisadores para formar e ex-
pandir a crença na imortalidade”.78
No caso de Platão, ele acreditava que a verdadeira realidade consiste no
chamado Mundo das Ideias (ou Formas, ou Universais). O mundo verdadeiro é
imutável e não está sujeito aos sentidos físicos, devendo ser buscado por meio da
razão e da intuição. O mundo físico consiste apenas numa imitação do Mundo das
Ideias; todas as coisas existentes no mundo físico não passam de aparências, ima-
gens das Ideias: são os particulares. Platão defendia, portanto, um dualismo entre
os Universais (Ideias) e os particulares: aqueles são eternos, imutáveis, infinitos;
estes são, por contrapartida, terrenos, materiais, finitos. Esse dualismo teria sido
criado pelo Demiurgo (artífice), entidade que, tomando como modelos os Univer-
sais, criou o mundo físico, sendo este apenas sombra do verdadeiro mundo; por-
tanto, imperfeito.79
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crítica de costumes feita por ele;83 pode-se dizer que ele tem como objetivo, mais
do que reformar, a intenção de denunciar.
No desequilíbrio das classes sociais, Luciano enfatiza que o prazer do rico
só é completo se existir o pobre para admirar e desejar a sua riqueza. É somente
no Hades que ambos desfrutarão das mesmas coisas, pois lá terão igualdade de
honra, não havendo ninguém melhor que o outro. A diferença estará no que cada
um viveu na Terra: os ricos e poderosos sofrerão pela ausência daquilo que desfru-
tavam quando em vida.
O Hades serve, então, de castigo para os ricos e orgulhosos, os quais não se
importavam com nada mais que prazeres, luxo e cobiça. Tinham um grande pavor
da morte pela incerteza de saber se continuariam a gozar os mesmos privilégios,
ao passo que os pobres e desafortunados nada tinham a perder com a morte. Por
isso, estes entravam no Hades sem nenhuma preocupação com o que viria a ser
aquele lugar. Luciano então coloca em dúvida os valores da sociedade de seu tem-
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po. Sua crítica leva a uma reflexão sobre a efemeridade das coisas do mundo, tan-
to físico quanto metafísico.
Dessa forma, a morte é utilizada por Luciano como o momento da inversão
das duas situações: os ricos alegres passam a mortos pesarosos, e os pobres opri-
midos passam a espectros leves, sem nenhum peso das coisas que possam prendê-
los à vida. Até mesmo o trabalho, que os ricos desconheciam em vida, eles rece-
bem como castigo, fato que revela a crítica de Luciano a essa postura. O Hades é
utilizado para criticar a ordem vigente.
Um grande herói que aparece entre os mortos no Hades de Luciano é Aqui-
les, o qual, apesar de ser filho de Peleu com a deusa Tétis, tem o mesmo destino
dos mortais. Não há dúvida de que Luciano espelhou-se na experiência de Ulisses
na Odisséia, em que este desce ao Hades e encontra vários amigos e inimigos co-
mo espectros. Na Ilíada, Aquiles prefere ter uma vida curta com uma morte nobre
a ter uma vida longa mas sem reconhecimento; no Hades de Luciano, o Aquiles
encontrado é justamente o contrário desse excesso de nobreza e valentia, desejan-
do ser desconhecido a ter que estar entre os mortos. É através da figura de Aquiles
acabrunhado que Luciano faz sua crítica a Homero e sua suposta nobreza, por e-
xaltar o homem a estatura de um deus quando ele é um simples mortal, cheio de
83
O gênero dessa obra de Luciano ficou conhecido justamente por esta expressão: crítica de cos-
tumes.
204
medo e incertezas.
Vê-se então que, entre os autores gregos em geral, não ocorre a idéia de
ressurreição individual. A primeira e rara evidência do tema, conforme citações de
Plutarco e Diógenes Laércio assinaladas supra, está em um historiador chamado
Teopompo de Chios, na Jônia, da mesma época de Platão; ele cita a ressurreição
corporal atribuindo-a aos ensinos de Zoroastro. De acordo com uma biografia já
da época bizantina, Teopompo nasceu em 378 e faleceu em 320 a.C. Foi aluno de
Isócrates de Atenas, estudou retórica e parece ter sido um exímio orador em sua
época. Sua obra é predominantemente de caráter histórico. O problema da citação
de Teopompo é que seus trabalhos não foram preservados na forma original. Atu-
almente se contam 370 fragmentos atribuídos às suas obras.84 Além de Plutarco e
Diógenes, ele é citado por muitos historiadores e autores, sendo o próprio Dióge-
nes e Aenas de Gaza (este bastante tardio) os mais conhecidos na atribuição explí-
cita a Teopompo da crença na ressurreição do indivíduo.
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por exemplo, apontam a expressão de uma esperança de que a morte não pode ser
a resposta final se Iahweh é, de fato, fiel às suas promessas da aliança com seu po-
vo (cf. Sl 16, 49 e 73). A princípio, essa vida no pós-morte se dava num Mundo
dos Mortos quase sempre denominado pela palavra hebraica Sheol.89
Nessa compreensão de vida após a morte, esta representava o fim das rela-
ções, tanto pessoais quanto das relações com a divindade. O morto estava fora do
âmbito da ação de Iahweh. 90 Textos como Sl 88,10-12 deixam claro o que signifi-
cava para os mortos terem suas relações com Iahweh cortadas por morarem no
Sheol.91 Normalmente, o Sheol era o lugar comum para toda e qualquer pessoa, do
qual não se podia fugir e para além do qual nada deveria ser esperado, e a ida para
o Sheol não permitia mais retorno (ideia semelhante à expressa por outros povos
já descritos acima).
De qualquer forma, nesse período do judaísmo antigo a noção da existência
após a morte é vaga e abstrata (por exemplo, no Sheol o homem continua a existir,
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89
Numa compreensão mais tardia (no Judaísmo do Segundo Templo), outra vertente da vida no
pós-morte será desenvolvida como forma de resolver a questão, justamente o tema deste trabalho: a
ideia da ressurreição (cf. ROWLEY, H. H. The Future Life in the Thought of the Old Testament.
CgQ 33 (1955), p. 116-132). Ressaltamos que para as palavras hebraicas já estabelecidas no verná-
culo português optamos por adotar a grafia corrente (uma “transliteração aportuguesada”). Quando
ao estudo semântico do termo Sheol, cf. adiante.
90
WOLFF, Hans Walter. Vida e morte. In: Op. cit. p. 170-171.
91
O Sl 88, 11-13 relata: “Realizas maravilhas pelos mortos? As sombras se levantam para te lou-
var? Falam do teu amor nas sepulturas, da tua fidelidade no lugar da perdição? Conhecem tuas
maravilhas na treva, e tua justiça na terra do esquecimento?”.
92
Cf. Lv 19,26.31; 20,6.27; Dt 18,9-14; 1Sm 28,7-10.
93
Blenkinsopp argumenta que esses cultos estavam presentes no antigo Israel e foram deliberada-
mente erradicados posteriormente (cf. BLENKINSOPP, Joseph. Deuteronomy and the Politics of
Post-Mortem Existence. VT 45.1 (1995), p. 1-16). Cf. também 2Rs 21,6; Is 8,19.
206
ajudar nem ser ajudados pelos vivos, não deveriam ser cultuados e as consultas
mediúnicas deveriam ser punidas com apedrejamento. A frequência dessa proibi-
ção parece revelar, na verdade, sua pouca eficácia. Embora haja essa proibição
legal frequente a esse culto, o Pentateuco não registra sinais dele, o que tem levan-
tado algumas hipóteses, como, por exemplo, a ideia de que a menção a esses cul-
tos teria sido retirada da Escritura. Questões também foram levantadas, como em
que momento esses cultos teriam sido banidos dentre os israelitas, se teria sido
antes de os livros serem editados, por qual motivo e, ainda, se em algum momento
teria havido em Israel a prática autorizada desses cultos e ritos nos moldes daque-
les encontrados nas redondezas. 94 Para Segal:
A Bíblia inteira pode ter sido editada cuidadosamente, de modo a afastar-se de
qualquer referência à vida e à morte, de acordo com o seu viés editorial. Entretan-
to, ela é uma literatura nacional acumulada a partir de uma variedade de locais e
sob o controle de um editor que, evidentemente, pensou que algumas tradições
eram demasiadamente sagradas para serem omitidas, mesmo se elas fossem es-
candalosas. Assim, vamos encontrar muitos indícios de uma crença em cultos aos
ancestrais, bem como em uma vida após a morte, sob a suspeita de um trabalho
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95
editorial neles.
94
Cf. DOUGLAS, Mary. No Cult of the Dead. Leviticus As Literature, p. 98-104.
95
SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 131. Para este autor, o erro de Saul, ou seja, a necromancia,
foi retroagido pelos escribas da corte com o intuito de explicar sua fracassada campanha militar
diante dos filisteus como sendo fruto da punição divina (Ibidem).
96
Sabe-se que o Rei Josias (640 – 609 a.C.) reformulou a religião em Israel, estabelecendo o Ja-
vismo puro e inaugurando a tradição do “Iahweh sozinho” (Cf. COHN, N. Cosmos, Chaos, and the
World to Come, p. 141-151).
97
Manassés era simpatizante também às divindades astrais assírias. O deuteronomista denuncia o
rei porque “reconstruiu os lugares altos que Ezequias, seu pai, havia destruído, ergueu altares a
Baal, fabricou um poste sagrado, como havia feito Acabe, rei de Israel, e prostrou-se diante de todo
o exército do céu e lhe prestou culto. Construiu altares no Templo de Iahweh, do qual Iahweh dis-
sera: ‘É em Jerusalém que colocarei meu Nome’. Edificou altares para todo o exército do céu nos
207
Essa deusa era a mesma deusa assírio-babilônica Ishtar (Inana), conhecida na Pa-
lestina e arredores como Astarte, chamada também de Rainha do Céu, que chegou
a ser considerada consorte, além de Baal, também de Iahweh.98 Sua adoração
constituía uma devoção muito popular (Jr 7,18; 19,3), como revelam suas 822 es-
tatuetas encontradas em Judá, mais de 400 somente em Jerusalém.99 Além disso, é
bastante plausível que tenham existido vários santuários de Iahweh por todo o Is-
rael.100
Por ocasião da migração dos israelitas para Canaã, parece que os cananeus
foram, pelo menos em parte, submetidos aos hebreus pelo sistema de corveia (não
foram totalmente expulsos, cf. Jz 1,28). Pode ser que, por esse tempo, Iahweh pas-
sou a ser identificado com o El cananeu, celebrado como criador da Terra e pai
dos deuses.
Também o livro do profeta Oseias (apesar de conter inserções posteriores,
estas partilhavam as tradições e convicções do profeta do VIII século a.C.) revela
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uma religião politeísta praticada pelo povo em geral e pela elite religiosa, o que
aborrecia profundamente a Iahweh. 101
O fato é que essas questões postuladas acima não são fáceis de ser total-
mente respondidas, em parte devido a certa escassez literária relativa ao tema à
época do Judaísmo do Primeiro Templo, especialmente no que se refere a textos
paralelos ao TM.
dois pátios do Templo de Iahweh” (2Rs 21,3-5). Tais símbolos de Baal e Asherá só foram retirados
do Templo pela reforma religiosa de Josias, o qual ordenou “que retirassem do santuário de Iahweh
todos os objetos de culto que tinham sido feitos para Baal, para Aserá e para todo o exército do
céu; queimou-os fora de Jerusalém...” (2Rs 23,4); Josias também “destituiu os falsos sacerdotes
que os reis de Judá haviam estabelecido e que ofereciam sacrifícios nos lugares altos, nas cidades
de Judá e nos arredores de Jerusalém, e os que ofereciam sacrifícios a Baal, ao sol, à lua, às conste-
lações e a todo o exército do céu” (2Rs 23,4), bem como “demoliu a morada dos prostitutos sagra-
dos, que estavam no Templo de Iahweh, onde as mulheres teciam véus para Aserá” (2Rs 23,7).
Ezequiel também denuncia cultos idolátricos no Templo, com oferecimento de incenso em honra
de Asherá e com lamentações de mulheres em honra do deus da vegetação, sumério e assírio, Ta-
muz (Ez 8,5-16).
98
Essa associação como consorte de Iahweh na religiosidade popular teria sido eliminada da Escri-
tura Hebraica pela reforma deuteronomista.
99
Cf. GARMUS, Ludovico. Tolerância e intolerância em Jeremias. In: Tolerância e intolerância
religiosa. EstBib 109 (2011), p. 9-18; aqui p. 17.
100
Cf. DONNER, H. História de Israel e dos povos vizinhos, p. 172. v. 1.
101
Relata o livro do profeta: “Nos cimos das montanhas oferecem sacrifícios, e sobre as colinas
queimam incenso, debaixo do carvalho, do choupo e do terebinto, pois a sua sombra é boa. Por isso
as vossas filhas se prostituem e as vossas noras cometem adultério” (4,13 — trata-se da prostitui-
ção idolátrica); “Quando Efraim multiplicou os altares, eles só lhe serviram para pecar” (8,11);
“Eles sacrificavam aos baais e queimavam incenso aos ídolos” (11,2b); “E agora continuam pe-
cando: eles constroem para si uma imagem de metal fundido” (13,2a); “Mas eu sou Iahweh teu
Deus, desde a terra do Egito. Não deves reconhecer outro Deus além de mim, não há salvador que
não seja eu” (13,4).
208
rência à divindade, e pode ser que alguns israelitas o interpretassem como sendo
designação de seus próprios ancestrais na Terra, fazendo-lhe súplicas e, através
destes, adorando seu Deus.103
Se, de fato, a religião popular possuía alguma expectativa de vida após a
morte de uma forma mais intensa que a registrada nos textos, parece haver pouca
razão para acreditar que fosse algo mais benéfico que as expectativas cananeias da
existência no pós-morte.104 Não há nenhuma evidência de que os judeus antigos
entendiam néfesh como “alma imortal” como entendeu a tradição judaica posteri-
or, bem como, por conseguinte, a tradição cristã; o néfesh descreve a identidade da
pessoa, mas não implica uma sobrevivência no pós-morte com algum tipo de re-
compensa. Em muitas ocasiões o termo é traduzido simplesmente como “vida”; no
Gênesis, a alma vivente é um “ser animado”, em oposição ao que não tem vida,
sendo aplicado não somente aos seres humanos, mas também aos animais. 105
Essa palavra apresenta, de fato, uma gama de significados ampla ao longo
das Escrituras Hebraicas, permitindo um leque de traduções: garganta, pescoço,
102
MARTIN-ACHARD, Robert. Da morte à ressurreição segundo o Antigo Testamento, p. 51.
Segundo este autor, “a esta tradição faz menção, sem dúvida, Isaías quando convida ironicamente
seus contemporâneos infiéis a invocar os seus deuses (isto é os seus mortos), uma vez que recusam
crer em Yahweh – Is 8,19” (Ibidem).
103
SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 131.
104
Ibidem, p. 143.
105
Em Gn 2,7a, Iahweh soprou [] nas narinas do homem o fôlego [ ] de vida, e o homem
passou a ser criatura [] vivente.
209
anelo, alma, vida, pessoa e a tradução por um pronome reflexivo (a expressão mi-
nha néfesh frequentemente equivale a eu próprio, mim mesmo).106 Por exemplo,
em 1Rs 17,22 a néfesh (respiração, vida) de um menino retorna e ele revive; em
Dt 12,23 néfesh está relacionada à proibição da ingestão de sangue (“Sê firme,
contudo, para não comeres o sangue, porque o sangue é a vida. Portanto, não co-
mas a vida com a carne”), relevando certa equivalência entre vida e sangue; outras
vezes sua relação se dá com garganta (Is 5,14; Hab 2,5), com apetite relacionado
à comida (Dt 23,25; Sl 78,18; Pr 12,10; Os 9,4) e relacionado ao apetite volitivo,
desejo, vontade (Ex 15,9; 1Sm 2,35; Sl 27,12; Pr 13,2). Algumas vezes néfesh se
apresenta como sujeito do verbo (desejar, ansiar), não se relacionando a ne-
nhum tipo de apetite ou desejo em si mesmos, mas à dona do apetite, a própria
“alma”: “E o que a sua alma desejar [], isso mesmo faz” (Jó 23,13b).
Outras vezes pode indicar o impulso sexual: “Jumenta selvagem, acostumada ao
deserto, no ardor de seu cio [] fareja o vento; quem freará a sua pai-
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106
Cf. o estudo pormenorizado, com exemplos de cada caso, em WOLF, H. W. Antropologia do
Antigo Testamento, p. 33-56.
107
Cf. WALTKE, Bruce K. néfesh. In: HARRIS, R. L. (Org.). DITAT, p. 981-983. Para este autor,
“o significado original e concreto da palavra foi provavelmente respirar” (p. 982). Claus Wester-
mann sugere que uma boa tradução da palavra seria a designação genérica de indivíduos, as pesso-
as, usando-se também os pronomes pessoais (cf. sua abordagem em JENNI, Ernst; WESTER-
MANN, Claus. DTMAT, p. 71-95. v. 2). De qualquer forma, como a própria natureza da existência
envolve impulsos, apetites, desejos e vontades, néfesh denotaria a vida do indivíduo nesse leque
mais amplo, e não a noção abstrata de vida separada do corpo existencial.
108
Há quem pense em certo dualismo no pensamento hebraico antigo; cf. PAYNE, J. Barton. rûaḥ.
In: HARRIS, R. L. (Org.). Op. cit. p. 1407-1409. Deve-se, entretanto, ter cautela ao se atribuir ca-
tegorias do pensamento moderno ao pensamento dos judeus antigos: por exemplo, ao se estabele-
cer a analogia entre néfesh e personalidade, deve-se ter em mente que tal paralelo serve apenas
para situar o uso da palavra antiga em seu contexto, sem cometer anacronismos.
210
tempestade (Gn 8,1; Ex 15,10; Hab 1,11).109 Entretanto, sua conotação varia den-
tro da Bíblia Hebraica, permitindo, a exemplo de néfesh, uma variada gama de
significações (vento, respiração, força vital, espírito (s), temperamento, força de
vontade).110 Aparece ligado à própria atividade humana (Jz 15,19; 1Sm 30,12); em
última instância, o rûaḥ de toda a humanidade se encontra nas mãos de Iahweh (Jó
12,10; Is 42,5); liga-se à própria consciência humana (Sl 32,2; Pr 16,32; Is 26,9;
Dn 5,20) e pode retornar a Iahweh quando da morte do corpo (Jó 34,14; Ecl 12,7).
Neste último caso, interessante notar que a néfesh também podia se ausen-
tar do corpo (Gn 35,18; 1Rs 17,22; Sl 86,13). Assim, pode-se pensar no fato de
que, ao deixar o corpo, tanto néfesh quanto rûaḥ poderiam existir separadamente
dele. Isso corrobora para o fato de a existência humana continuar no pós-morte, de
alguma forma, em um Mundo dos Mortos, com consciência e percepção.
Observa-se que o pensamento sobre o tema não se mostra unificado ao
longo da Bíblia Hebraica. Levando-se em conta o contexto histórico-cultural em
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que os judeus antigos estavam inseridos, no qual os povos vizinhos davam valor
igual ou até maior ao Mundo dos Mortos em relação aos vivos, conforme assina-
lado acima, é plausível pensar que houve, em determinado momento do judaísmo
pré-exílico, influência direta ou indireta desses povos mais antigos no pensamento
israelita acerca do tema, apesar de tal fato possuir difícil atestação.
No universo cósmico dos judeus antigos, havia três “reinos” distintos: um
superior, um intermediário, e um inferior.111 Essa compreensão era compartilhada
por outros povos antigos. O reino superior era o lugar do sol, da lua, dos astros, e
da divindade, a qual não está sujeita à morte; nenhum mortal poderia ir até esse
reino (há somente duas exceções na tradição vétero-testamentária: Enoque e Elias,
o que será tratado adiante). O reino intermediário, que a narrativa da criação no
Gênesis denomina “Terra”, era visto como um disco plano em cujas extremidades
estavam as águas do caos ameaçador, contidas pela palavra de Iahweh; era nesse
espaço que os seres humanos deveriam permanecer, juntamente com todas as ou-
tras criaturas vivas; ao contrário do reino superior, a morte estava presente na rea-
lidade deste reino. Já o terceiro reino era o inferior, abaixo da Terra, destinado aos
109
Cf. todas as ocorrências em BROWN, F. (Ed.). Op. cit. p. 924-926.
110
Cf. o estudo em WOLF, H. W. Op. cit. p. 67-77. A partir desses matizes básicos, outras conota-
ções lhe são atribuídas: o termo tem a conotação de vitalidade em 1Rs 10,5, coragem em Js 2,11;
5,1, valor em Lm 4,20, vacuidade em Jr 5,13; Jó 7,7; Is 41,29, emoções de agressividade em Is
25,4 e ira em Jz 8,3 (cf. PAYNE, J. Barton. Op. cit. p. 1407 — apesar de alguns sentidos dados por
este autor ao termo não corresponderem aos textos que ele cita).
111
Cf. NELIS, J. Infernos. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 729.
211
mortos (o Sheol).
Esse reino inferior é compreendido de maneira diversificada ao longo da
Bíblia hebraica. O Sheol é apresentado como um lugar escuro e desordenado (Jó
10,20-22), um lugar de silêncio (Sl 94,17; 115,17) e como uma cidade com por-
tões (Jó 38,17 e, expressamente, em Is 38,10).112 Em geral, era o lugar para onde
os mortos desciam e permaneciam em estado letárgico, inativo, incapazes de lou-
var ou invocar Iahweh (pois este está ausente), sendo partilhado coletivamente.
O AT geralmente não enxerga o poder de Iahweh estendido até o Sheol.
Entretanto, há exceções a essa visão geral;113 existem textos que afirmam enfati-
camente que o Sheol pode ser alcançado pela presença de Iahweh (Jó 26,6; Sl
139,7ss; Am 9,2).114 Estes textos contradizem a noção de que Iahweh não se faz
presente no Mundo dos Mortos. Além disso, em muitos textos Iahweh aparece
como Deus dos vivos e dos mortos, do mundo presente e do futuro. Essa noção da
presença de Iahweh no Mundo dos Mortos parece ser uma formulação contra a
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112
Cf. a tabela com as nuanças semânticas da palavra e as respectivas citações textuais em
JOHNSTON, P. S. Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament, p. 80: extremidade
do cosmos; mundo de baixo (dos mortos: englobando local de aprisionamento e simplesmente lo-
cal de existência no pós-morte); uso do termo personificado; local de onde se deseja libertação ou
que se quer evitar; e local do destino de todos, quer justos ou ímpios.
113
VON RAD, G. Life and Death in the O.T. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT, p. 847, nota 109. v. 2.
114
No caso de Jó 26,6 é possível que a palavra hebraica Abaddôn, usada muitas vezes como sinô-
nimo de Sheol e que algumas Bíblias em português traduzem por Perdição (cf. por exemplo a BJ),
seja reminiscência de uma antiga divindade do Mundo dos Mortos.
115
Cf., por exemplo, BROWN, Francis (Ed.). HELOT, p. 982, onde é citada a possibilidade do
sentido de “lugar para indagação” ao termo Sheol.
116
Cf. shâ’al. In: HARRIS, R. L. (Org.). DITAT, p. 1501-1505; aqui p. 1503. Além disso, esse
autor, em sua definição de Sheol, estabelece um dualismo anacrônico cristão entre corpo e alma e
212
relata vermes que se fartam com aqueles que estão no Sheol; entretanto, no con-
texto o autor está discutindo a questão intrigante de que ímpios e justos têm o
mesmo destino, independentemente dos seus atos em vida, pois ao morrer jazem
no mesmo pó e têm os vermes por coberta (21,7-34).117 Segundo Eichrodt:
A sobrevivência do defunto depende, em certa medida, da sorte de seu cadáver.
Isso é algo surpreendente quando associado com a crença num Sheol distante e
suas imagens sumárias; mas o fato imediatamente é compreendido, se o que ori-
ginalmente se considerou como mansão do morto foi o sepulcro. De fato, a ideia
do Sheol aparece combinada com outra que vê no sepulcro a morada do morto, e
também, segundo todas as aparências, esta é mais antiga. Não só se chama à tum-
ba ‘morada do morto’ (Is 22,16), mas grande valor é atribuído ao ato de ser enter-
118
rado ao lado dos membros de sua família (2Sm 17,23; 19,38; Gn 47,30; 50,25).
entre retribuição aos maus e recompensa aos bons ao entender que “os textos estudados apresentam
o quadro de um túmulo típico na Palestina: escuro, cheio de pó, com ossos misturados (...). As al-
mas de todos os homens não vão para um único lugar. Mas todas as pessoas vão para a sepultura”
(p. 1505). Parece que o autor acaba lendo os textos do AT sob a óptica do NT, fazendo uma leitura
anacrônica daqueles textos, ignorando, assim, o contato dos antigos judeus com a cultura e as cren-
ças dos povos vizinhos. Além da sepultura como tal, é evidente também a designação pelo termo
Sheol de uma espécie de “mundo dos mortos” ou “mundo inferior”, em algumas ocasiões apresen-
tando as pessoas em estado de consciência. A relação com sepulcro, última morada do ser humano,
se deu nas origens da formação do pensamento acerca do Sheol (cf. NELIS, J. Infernos. In: VAN
DEN BORN, A. (Ed.). Loc. cit.).
117
Em conformidade com a tradição judaica, a ideia de destino comum para todos os mortos pare-
ce ter sido de difícil compreensão também para a Igreja Cristã Primitiva, a qual acabou entendendo
o Sheol dividido em compartimentos, nos quais os santos das Escrituras Hebraicas ocupavam um
lugar superior, de onde o Cristo os teria resgatado na sua ressurreição (cf. 1Pd 3,18-20; Ef 4,9-10).
118
EICHRODT, Walther. O mundo inferior. In: Teologia do Antigo Testamento, p. 667-683; aqui
p. 669.
213
exílico o destino dos mortos era normalmente designado pela palavra Sheol, quer
fossem eles considerados bons ou maus. A morte colocaria todos sob o mesmo
status.122
Quanto ao Sheol como lugar, mesmo que haja algumas variantes, o ponto
comum parece ser a compreensão dele como um Mundo Inferior, a exemplo dos
povos vizinhos, guardando as respectivas especificidades. Segundo Martin-
Achard, “o mundo dos mortos, o Sheol dos hebreus, é totalmente comparável ao
Hades dos gregos, e ao Aralu dos assírios-babilônios”.123
Já no pós-exílico, dados os influxos político-culturais com outros povos, as
ideias da escatologia judaica sofrem modificações consideráveis, especialmente às
relativas ao pós-morte.
119
HALLOTE, Rachel S. The Biblical Origins of Hell and the Devil. In: Death, Burial, and After-
life in the Biblical World, p. 123-135; aqui p. 126. Esta autora sugere que a designação desse lugar
às vezes pode ser traduzida como Vale do Grito Estridente (Ibidem). Além disso, ela afirma que o
Sheol, na Bíblia Hebraica, era um lugar físico, situado justamente embaixo da terra de Israel (Ibi-
dem, p. 128).
120
Cf. SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 135.
121
Às vezes parece se entender que o Sheol trazia algum tipo de punição aos injustos, ao passo que
os justos apenas o visualizariam em tempos de aflição e desgraça (essa é a opinião de JOHNSTON,
Philip S. Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament, p. 81-82). Entretanto, se há
alguma ideia de punição no Judaísmo do Primeiro Templo, essa seria simplesmente o corte das
relações interpessoais e do contato com Iahweh, assinados supra.
122
Cf. TABOR, James. The Future. In: SMITH, Morton; HOFFMANN, R. Joseph (Ed.). What the
Bible Really Says, p. 33-51; aqui p. 35.
123
MARTIN-ACHARD, Robert. Da morte à ressurreição segundo o Antigo Testamento, p. 54.
214
um corpo modificado.
É certo que as Escrituras Hebraicas, desde o seu início, conheceram a pro-
blemática da fragilidade e fugacidade da existência; entretanto, essa questão não
foi resolvida pela supressão do “corpo”, e somente muito tardiamente se recorreu
à fórmula da “libertação da alma” pela divisão da natureza humana. Assim, a ideia
da ressurreição não se desenvolveu a partir de um impulso abstrato do saber ou de
intuição, mas sim pela contínua meditação e experiência existencial. Nisto, com
certeza, se deram os influxos com outras concepções, estrangeiras.
A partir da ideia de que Iahweh possuía poder também sobre o Sheol (con-
forme destacado acima), surgiu a crença de que ele não somente faz o homem
descer ao Mundo dos Mortos, mas pode também retirá-lo de lá. Assim, entende-se
que Iahweh tem poder para arrancar os seus da garra da morte. No entanto, os tex-
tos que apontam nessa direção merecem um exame mais acurado.
Em Dt 32,39 e 1Sm 2,6,125 essa ideia não supõe uma ressurreição corporal
como fundamento, mas sim a cura de uma doença grave (como em Is 38,9-20; Sl
71,20)126 ou a salvação em uma situação perigosa (Sl 9,14; 30,4; 88,7; 107,17-
124
NELIS, J. Ressurreição. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 1302-1308; aqui p. 1302.
125
Dt 32,39 registra: “E agora, vede bem: eu, sou eu, e fora de mim não há outro Deus! Sou eu que
mato e faço reviver, sou eu que firo e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra)”; 1Sm 2,6:
“É Iahweh quem faz morrer e viver, faz descer ao Sheol e dele subir”.
126
Em Is 38,9-20 há o registro de um cântico atribuído ao Rei Ezequias em que o eu-lírico honra a
Iahweh por tê-lo curado; já o Sl 71,20 registra: “Fizeste-me ver tantas angústias e males, tu volta-
215
reição, mas parece supô-la pela imortalidade da alma. De qualquer forma, deve-se
ressaltar que esse livro não faz parte da Escritura Hebraica (seu original é em gre-
go). Trata-se de uma obra tardia (I século a.C., livro mais recente do AT cristão),
revelando influência helenística (platônica).131
Os textos de 1Rs 17,17-24, 2Rs 4,18-37; 13,20-21 mostram que a ressur-
reição de um morto antes de seu sepultamento (ou decomposição), ou seja, antes
de descer definitivamente ao Sheol era possível. Essas narrativas refletem a con-
vicção do poder de Iahweh sobre a morte e o Mundo dos Mortos (citado acima),
poder esse revelado através de milagres efetivados por seus profetas Elias e Eli-
seu. Além disso, elas não são entendidas ainda como narrativas de ressurreição,
pois mostram somente a volta à vida terrena sem incluírem, em si mesmas, a ideia
rás para dar-me vida, voltarás para tirar-me dos abismos da terra”.
127
Sl 9,14 registra: “Piedade, Iahweh! Vê minha aflição! Levanta-me das portas da morte”; Sl
30,4: Iahweh, tiraste minha vida do Sheol, tu me reavivaste dentre os que descem à cova”; Sl 88,7:
“Puseste-me no fundo da cova, em meio a trevas nos abismos”; Sl 107,18-20: “Rejeitavam qual-
quer alimento e já batiam às portas da morte. E gritaram a Iahweh na sua aflição: ele os livrou de
suas angústias. Enviou sua palavra para curá-los, e da cova arrancar a sua vida”.
128
NELIS, J. Ressurreição. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). Op. cit. p. 1303.
129
SCHILLING, O. Ressurreição. In: BAUER, J. B. DTB, p. 971-982. v. 2; aqui p. 973.
130
“Porque tu tens poder sobre a vida e a morte, fazes descer às portas do Hades e de lá subir”.
131
Cf. COLLINS, J. J. The Root of Immortality: Death in the Context of Jewish Wisdom. HTR
71.3-4 (1978), p. 177-192; o mesmo se pode dizer da obra Sabedoria de Salomão: “Tanto Sirácida
quanto Sabedoria de Salomão tentam resolver o problema da morte por alguma concepção de vida
transcendente – uma vida que não pode ser medida em termos biológicos ou temporal e que, por-
tanto, está em um nível diferente da vida que é negada pela morte” (Ibidem, p. 192); republicado
em Seers, Sybils and Sages in Hellenistic-Roman Judaism, p. 351-367.
216
132
SCHILLING, O. Loc. cit.
133
Os 6,1-3 registra: “Vinde, retornemos a Iahweh. Porque ele despedaçou, ele nos curará; ele fe-
riu, ele nos ligará a ferida. Depois de dois dias nos fará reviver, no terceiro dia nos levantará, e nós
viveremos em sua presença. Conheçamos, corramos atrás do conhecer a Iahweh; certa, como a
aurora, é sua vinda, ele virá a nós como a chuva, como o aguaceiro que ensopa a terra”.
134
O uso dessa expressão aqui poderia levar a pensar em uma redação posterior, a exemplo da con-
clusão sapiencial em 14,10. Entretanto, a argumentação e o consenso geral não favorecem essa
suposição.
217
16,22).
Por fim, em relação à ressurreição, o “reviver” e o “levantar” em Os 6,2
revelam, na verdade, o quanto o povo estava distante de Iahweh. Antes de se tratar
de uma ressurreição, esses verbos, relacionados ao v. 1, possuem não uma pers-
pectiva de morte, mas sim de enfermidade; o povo não estava morto, mas ferido,
necessitando de cura.137 Não há qualquer referência à ressurreição individual: essa
canção cultual refere-se antes à restauração da nação, a qual estava ferida. 138
Os 13,14 discorre sobre a morte e o Sheol como personificações de pode-
res que ameaçam sobrepujar Israel.139 Este é um verso muito difícil de fazer senti-
do, devido a problemas textuais envolvidos na tentativa de alcançar tanto a coe-
rência interna para o verso em si quanto para permitir-lhe um significado compatí-
135
SCHILLING, O. Loc. cit.
136
Cf. WOLFF, H. W. Hosea: A Commentary on the Book of the Prophet Hosea, p. 119; MAYS,
James L. Hosea: A Commentary, p. 96.
137
WOLFF, H. W. Op. cit. p. 117.
138
Ibidem, p. 116-118; cf. também MAYS, James L. Op. cit. p. 93-96; ROWLEY, H. H. The Fu-
ture Life in the Old Testament. CgQ 33 (1955), p. 116-132; aqui p. 123. Para uma posição contrá-
ria acerca dessa passagem, cf. ANDERSEN, Francis I.; FREEDMAN, David N. Hosea: A New
Translation with Introduction and Commentary, p. 420-421; esses autores argumentam que é pres-
suposta aqui uma crença na ressurreição pessoal e física, e que esta teria sido adaptada para aplica-
ção metafórica na nação como um todo. Hasel também postula que se trata de uma ressurreição
física, não-metafórica, mas desconsidera o problema textual do verso 19 (cf. HASEL, Gerhard F.
Resurrection in the Theology of Old Testament Apocalyptic. ZAW 92.2 (1980), p. 267-284, aqui p.
275).
139
Os 13,14 relata: “Deveria eu livrá-los do poder do Sheol? Deveria eu resgatá-los da morte? On-
de estão, ó morte, as tuas calamidades? Onde está, ó Sheol, o teu flagelo? A compaixão se esconde
de meus olhos”.
218
vel com o contexto global. A despeito disso, considera-se o verso uma advertên-
cia; o poder da morte e do Sheol são proclamados como estando sob a direção de
Iahweh; não se trata de uma ressurreição dos mortos.140
Outro texto controverso em relação à ideia de ressurreição é o de Ez 37. A
visão relatada pelo profeta em 37,1-14 retrata a restauração nacional de Israel co-
mo uma ressurreição do sepulcro, numa alusão clara ao cativeiro babilônico (v.
11). À pergunta de Iahweh ao profeta sobre a possibilidade de os ossos secos vol-
tarem a viver é respondida com bastante prudência, resposta essa equivalente a um
“não sei” (“Senhor Iahweh, tu o sabes”, v. 3), o que mostra que a ressurreição não
fazia parte ainda de sua escatologia.
Fica claro, pelo contexto, que se trata de uma visão cuja mensagem remete
à volta à vida em termos de libertação do exílio para vida com Iahweh, tipificada
num ressurgir de toda a nação para a adoração ao Deus de Israel. Não se dá na vi-
são do profeta informação sobre ressurreição dos mortos: “a questão aqui é o povo
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de Deus e sua ressurreição da morte causada por seu pecado. (...) Deus promete
que ele ainda está a trabalhar nele e despertá-lo para a vida do mesmo modo que já
fizera uma vez no início, de acordo com Gênesis 2,7, formando o corpo como seu
Criador e soprando o fôlego da vida no corpo morto”.141 Não se trata, pois, de uma
ressurreição individual ou volta à vida corporal a partir do Mundo dos Mortos.
Além disso, logo em seguida (v. 24-25) Iahweh faz a promessa de que
“Davi, o meu servo, será o seu príncipe para sempre”, e que Deus concluirá com o
povo uma “aliança de paz, a qual será uma aliança eterna”. Segundo Collins, “em
Ezequiel 34 e 37, nas previsões de um futuro governante, o termo ‘príncipe’ de-
signa claramente uma posição de rei e refere-se a um membro da linhagem davídi-
ca, admitindo-se que Ezequiel a imaginou como uma monarquia corrigida pelo
castigo, podada de grande parte das ideologias reais tradicionais”. 142
G. A. Cooke compartilha a opinião de Collins; segundo ele, o trecho de
Ezequiel reafirma o ideal característico dos profetas de Israel: a espera de “uma
era de paz sob o reinado de um governante justo”.143 As sepulturas em 37,12-13
são uma metáfora para a condição do povo exilado, pois os ossos se encontram
num campo de batalha, e não em um cemitério. Para Cooke, esse texto não impli-
140
Cf. WOLFF, H. W. Op. cit. p. 228; MAYS, James L. Op. cit. p. 182-183.
141
ZIMMERLI, Walther. Man and His Hope in the Old Testament, p. 119.
142
COLLINS, J. J. The Scepter and the Star: The Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other An-
cient Literature, p. 27.
143
COOKE, G. A. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Ezekiel, p. 400.
219
ca uma ressurreição de fato;144 além disso, o linguajar do profeta pode ter influen-
ciado os textos de Jó 14,11-14 e 19,25. O mesmo afirma Zimmerli: indubitavel-
mente, o texto de Ez 37,1-14 não se refere a uma ressurreição individual, mas tra-
ta-se de duas imagens (a reanimação de ossos de mortos insepultos e a abertura de
sepulcros com a condução dos que lá se encontram a uma nova vida) que expres-
sam a restauração do Israel politicamente derrotado.145
O consenso geral é de que se trata, de fato, de uma simbologia para descre-
ver a situação do povo: “os ossos significam o povo na ‘morte’ do Exílio e a revi-
viscência deve ser compreendida como promessa de volta à pátria”.146
Em Is 26,19147 (dentro do trecho mais conhecido como Apocalipse de Isaí-
as, Is 24-27, tardio), o escritor registra uma ressurreição coletiva. Entretanto, com-
parando com 26,11-14,148 o v. 19 parece sugerir uma ressurreição individual, hipó-
tese que seria corroborada por 26,15,149 o qual pede o aumento do povo, ao que a
ressurreição dos indivíduos parece ser a solução.
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144
Ibidem.
145
ZIMMERLI, Walther. Ezekiel: A Commentary on the Book of the Prophet Ezekiel, p. 264. v. 2.
146
SCHILLING, O. Ressurreição. In: BAUER, J.B. DTB, p. 971-982. v. 2; aqui p. 973.
147
“Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres ressurgirão. Despertai e cantai, vós os que
habitais o pó, porque o teu orvalho será orvalho luminoso, e a terra dará à luz sombras”.
148
Is 26,11-14 registra: “Iahweh, tua mão está levantada, mas eles não a veem! Eles verão o teu
zelo pelo teu povo e se confundirão; sim, o fogo preparado para teus adversários os consumirá.
Iahweh, tu nos asseguras a paz; na verdade, todas as nossas obras tu as realizas para nós. Ó Iah-
weh, nosso Deus, ao teu lado tivemos outros senhores, mas, apegados a ti, só ao teu nome invoca-
mos. Os mortos não reviverão, as sombras não ressurgirão, porque tu as visitaste e as exterminaste,
tu destruíste toda a sua memória”.
149
“Expandiste a nossa nação, Iahweh, expandiste a nossa nação e te cobriste de glória. Alargaste
todas as fronteiras da terra”.
150
NELIS, J. Ressurreição. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 1302-1308; aqui p. 1305.
151
SCHILLING, O. Ressurreição. In: Op. cit. p. 974. v. 2.
220
152
Existe ainda a forte possibilidade de Is 26,19 ser uma interpolação tardia; cf. KAISER, Otto.
Isaiah 13-39: A Commentary, p. 218; PLÖGER, Otto. Theocracy and Eschatology, p. 66-68. H. H.
Rowley afirma que Is 26,19 se refere ao renascimento da nação, bem como Ez 37,1-14; o contexto
da seção como um todo (26,1-19) parece apoiar essa interpretação (cf. ROWLEY, H. H. The Futu-
re Life in the Old Testament. CgQ 33 (1955), p. 116-132; aqui p. 125).
153
Para um breve relato acerca do tema da morte no livro de Jó, cf. MATHEWSON, Dan. A Brief
History of the Interpretation of Death in Job. In: Death and Survival in the Book of Job, p. 14-20.
Mathewson adiante concluiu que no livro de Jó “conforme seus discursos avançam, Jó lentamente
abandona sua convicção de que se encontra vida no Sheol, conforme 10,18-22, ao mesmo tempo
em que ele deseja ainda que tivesse nascido morto; ele não vê esperança para a [existência da] vida
no túmulo” (Ibidem, p. 96).
154
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 356.
155
PORTEOUS, N. W. Daniel: A Commentary, p. 170. Rachel Hallote conclui que “as referências
à ressurreição na Bíblia Hebraica demonstram que a ressurreição não era uma parte importante no
sistema de crença israelita. Mesmo o que parece ser um exemplo claro não está de fato absoluta-
mente claro” (cf. HALLOTE, R. S. Resurrection and Lack of Death in the Bible. In: Death, Burial,
and Afterlife in the Biblical World, p. 136-149; aqui p. 139). A autora cita em seguida exemplos do
221
rece como um sábio, às vezes como um profeta; também aparece como aquele que
iria restaurar a Lei, não desfazê-la, mas transformá-la naquilo que ela deveria ser.
Paralelos com o Egito, Babilônia e Canaã podem ser observados. Quanto a salvar
o seu povo, a princípio o Messias tinha a ideia de “salvador” no sentido do papel
desempenhado por um Rei, ou seja, “salvar” era “libertar”, “tornar livre” dos ini-
migos. De qualquer forma, o papel de “Rei” é mais duradouro que o de “líder”; no
livro de Juízes, por exemplo, há uma série de líderes, de “experimentos” relacio-
nados à organização social do país. No judaísmo tardio, o adjetivo torna-se um
termo técnico e indica um título ou mesmo um nome próprio que designa uma fi-
gura escatológica geralmente associada às expectativas dos últimos dias e à che-
gada do Reino de Deus.168
Assim, no judaísmo pós-exílico, especialmente no Período Helenístico, o
163
Cf. TABOR, James. The Future. In: SMITH, M.; HOFFMANN, R. J. (Ed.). What the Bible
Really Says, p. 33-51; aqui p. 44.
164
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 394 (grifo nosso). Consoante
a esta ideia, cf. também, dentre outros, ALONSO-SCHÖKEL, L.; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II,
p. 1338; MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 471; NICKELSBURG, G.W.E. Resurrection, Immortali-
ty, and Eternal Life in Intertestamental Judaism and Early Christianity, p. 23; PORTEOUS, N. W.
Daniel: A Commentary, p. 170; SEGAL, A. F. Life After Death, p. 263; ROWLEY, H. H. The Fu-
ture Life in the Old Testament. CgQ 33 (1955), p. 116-132; aqui p. 125.
165
COLLINS, J. J. The Transformation of Messianism in Daniel. In: The Scepter and the Star: The
Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other Ancient Literature, p. 34-38.
166
Cf. SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus, p. 44-66.
167
Cf. DE JONG, Marinus. Messianic Ideas in Later Judaism. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT, p.
509-517. v. 9.
168
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 304.
223
ramaica antigas como sendo os exércitos celestiais.172 Além disso, o nome de Mi-
guel aparece em Dn 12,1 relacionado ao verbo hebraico (“pôr-se em pé”,
“erguer-se”, “levantar-se”) o qual ocorre muitas vezes em contextos jurídicos.173
Miguel seria então o “grande anjo defensor, uma espécie de advogado que defende
o povo do anjo acusador, que na literatura bíblica e extrabíblica é identificado com
Satã (literalmente, acusador)”.174
Assim, o narrador de Daniel, a exemplo dos apocalípticos da tradição de
Enoque, foca seu olhar para além deste mundo, para o triunfo final de Miguel e
dos santos do altíssimo e, finalmente, para a ressurreição e exaltação dos justos
(12,1-3).
Alguns estudiosos acreditam que a referência às estrelas trata-se apenas de
169
Cf. YARBRO COLLINS, A.; COLLINS, J. J. Messiah and Son of God in the Hellenistic Pe-
riod. In: King and Messiah As Son of God: Divine, Human, and Angelic Messianic Figures in Bib-
lical and Related Literature, p. 48-74.
170
BOUZON, Emanuel. As raízes judaicas da escatologia neotestamentária. In: MIRANDA, Mário
de F. (Org.). A pessoa e a mensagem de Jesus, p. 97-108; aqui p. 97.
171
Nickelsburg afirma que, no judaísmo tardio, Miguel é considerado “poderoso sacerdote celesti-
al” (cf. NICKELSBURG, G.W.E. Resurrection, Immortality and Eternal Life in Intertestamental
Judaism and Early Christianity, p. 26).
172
Para uma informação detalhada da questão, com extensa bibliografia, cf. COLLINS, J. J. Dani-
el: A Commentary on the Book of Daniel, p. 313-317.
173
Cf. BROWN, F. (Ed.). HELOT, p. 763-764.
174
SCHIAVO, Luigi. Anjos e messias: messianismos judaicos e origem da Cristologia, p. 47 (grifo
do autor). Sobre isso, cf. adiante.
224
uma comparação, sem alcance mais profundo.175 Entretanto, como assinala Col-
lins, existem reflexos ao longo das Escrituras Hebraicas que revelam uma tradição
de batalha entre seres angelicais nas esferas celestiais, comum nas literaturas da
Mesopotâmia e Canaã (como, por exemplo, Is 14).176 Essa luta, apesar de se dar
nas esferas celestes, tem por objetivo inimigos terrenos. Somente no judaísmo tar-
dio esse confronto se estabelece definitivamente nas esferas celestiais, como reve-
la o livro de Daniel.
Esse retorno da ênfase nos céus como lugar da ação entre bem e mal reve-
laria uma volta à estrutura cósmica relacionada às antigas mitologias ou, mais
provavelmente, ele reflete influência do dualismo persa, influência que pode muito
bem ter se dado também em um círculo muito afeiçoado aos escritos de Daniel, ou
seja, a comunidade de Qumran (filhos da luz numa guerra contra os filhos das tre-
vas).177
O livro de Daniel, portanto, traz à luz uma reinterpretação das antigas tra-
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O livro de Daniel resiste a uma classificação fácil, pois contém duas for-
mas literárias (narrativa e visão), duas línguas (hebraico e aramaico), e dois pontos
de vista sobre como se deve viver sob a dominação estrangeira (em colaboração
com governantes existentes ou com hostilidade em relação a tais governantes).178
O primeiro par de dicotomias (forma literária e língua) é facilmente obser-
175
Cf., por exemplo, BENTZEN, Aage. Daniel, p. 52.
176
COLLINS, J. J. Apocalyptic Eschatology As the Transcendence of Death. In: Seers, Sybils, and
Sages in Hellenistic-Roman Judaism, p. 75-97; aqui p. 87 e 94 (publicado anteriormente em CBQ
36.1 (1974), p. 21-43). Retornaremos a esse tema adiante.
177
Cf. WINSTON, David. The Iranian Component in the Bible, Apocrypha and Qumran: A Re-
view of the Evidence. HR 5.2 (1966), p. 183-216; COLLINS, J. J. The Expectation of the End in
the Dead Sea Scrolls. In: EVANS, C. A.; FLINT, P. W. (Ed.). Eschatology, Messianism, and the
Dead Sea Scrolls, p. 74-90.
178
Cf. GOODING, David W. The Literary Structure of the Book of Daniel and Its Implications.
TynBul 32 (1981), p. 43-79. Recentemente Portier-Young, usando uma abordagem sociolingüística
não muito convincente, postulou que a estrutura bilíngue foi proposital: trata-se de uma estratégia
retórica do redator para levar seus leitores de volta à aliança javista representada pela língua he-
braica, ao passo que o aramaico representava as exigências do império (cf. PORTIER-YOUNG, A.
E. Languages of Identity and Obligation: Daniel As Bilingual Book. VT 60.1 (2010), p. 98-115).
225
179
Cf. GANE, R. Genre Awareness and Interpretation of the Book of Daniel. In: MERLING, D.
(Ed.). To Understand the Scriptures: Essays in Honor of William H. Shea, p. 136-148. Esta é tam-
bém a opinião de Collins: “No contexto do livro de Daniel como um todo, as narrativas nos capítu-
los 1-6 servem como introdução para as revelações nos capítulos 7-12” (COLLINS, J. J. Daniel: A
Commentary on the Book of Daniel, p. 52).
180
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 33 (grifo do autor). A
definição a que o autor se refere é a já citada neste trabalho, cuja publicação se deu primeiramente
em Semeia 14 (1979), p. 9.
226
todo do livro (essa obra, segundo Collins, seria um exemplo de “caso-limite” para
o gênero apocalíptico).181
As visões normalmente envolvem:182
1. Uma indicação das circunstâncias envolvidas;
também deles com a visão mais negativa dos reis e impérios retratados pelas vi-
sões da segunda parte. O artigo de Smith-Christopher mais recente analisa como
orações e sonhos são politizados nas histórias para representar os anseios dos me-
nos favorecidos e oprimidos, bem como a verdadeira natureza de poder em posse
da divindade hebraica.187
Brenner identifica o motivo literário do governante estrangeiro obtuso e
como ele funciona como um dispositivo de humor e sátira para ridicularizar o
rei.188 Em sua análise, Chia explora como em Dn 1 a recusa em aceitar os novos
nomes babilônicos e a alimentação da mesa real exemplifica resistência às preten-
183
SETTEMBRINI, Marco. Sapienza e storia in Dn 7-12, especialmente p. 67-215.
184
GOLDINGAY, J. Story, Vision, Interpretation: Literary Approaches to Daniel. In: VAN DER
WOUDE, A. S. (Ed.). The Book of Daniel in the Light of New Findings, p. 295-313; VAN DE-
VENTER, H.J.M. Struktuur en boodskap(pe) in die boek Daniël. HvTSt 59.1 (2003), p. 191-223.
185
SMITH-CHRISTOPHER, D. L. Daniel. In: KECK, Leander E. (Ed.). NIB, p. 17-152. v. 7. So-
bre o tema da resistência religiosa em Daniel, cf. também SOARES, Dionísio O. O livro de Daniel:
literatura de resistência? In: GARMUS, Ludovico (Ed.). Tolerância e intolerância religiosa. Est-
Bib 109 (2011), p. 29-42.
186
HUMPHREYS, W. Lee. Life-Style for Diaspora: A Study of the Tales of Esther and Daniel.
JBL 92.2 (1973), p. 211-223.
187
SMITH-CHRISTOPHER, D. L. Prayers and Dreams: Power and Diaspora Identities in the So-
cial Setting of the Daniel Tales. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). The Book of Daniel:
Composition and Reception, p. 266-290. v. 1.
188
BRENNER, Athalya. Who’s Afraid of Feminist Criticism? Who’s Afraid of Biblical Humor?
The Case of the Obtuse Foreign Ruler in the Hebrew Bible. In: Prophets and Daniel, p. 228-244.
228
difere dos livros proféticos, e assim não foi inserido entre eles. O fato é que, como
um todo, o livro se encaixa no período em que a literatura apocalíptica judaica de-
finitivamente se estabeleceu como gênero, ou seja, o século II a.C.
Sua composição final é tida como efetivada no Período Macabeu, com o
terminus a quo em 167 a.C. e o terminus ad quem em 164 a.C.196 O capítulo 11
fornece indicação precisa: as guerras entre os Ptolomeus e Selêucidas são narradas
em detalhes, bem como o reinado de Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), o qual
tentou estabelecer o culto e civilização helênicos no território sob sua jurisdição,
além de dedicar o Templo de Jerusalém a Zeus (2Mc 6,2). Dessa forma, o livro
relata que recaiu sobre o segundo templo a “abominação da desolação” (Dn 11,31;
12,11).197 O narrador utiliza a profecia ex eventu, uma característica do gênero a-
pocalíptico em geral: os acontecimentos de seu tempo, a época helenística, são
colocados numa visão dada ao personagem Daniel “no terceiro ano de Ciro, rei da
Pérsia” (Dn 10,1). Segundo Collins, “não há uma razão aparente, entretanto, por
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que um profeta do sexto século deveria focalizar minuciosa atenção sobre os even-
tos do segundo século”.198
Outro dado que revela que o redator do livro está distante dos relatos que
coloca na época caldeia são as imprecisões históricas: “Que o livro não pode ter
sido escrito na época exílica é provado pelo conhecimento vago do autor sobre o
período babilônico e o começo do período persa, e suas efetivas imprecisões”.199
Seu conhecimento sobre o século II é bem mais preciso do que o conhecimento do
período babilônico e persa (séculos VI e V a.C.). Baltazar é filho de Nabônides,
196
A tentativa mais recente para estabelecer a possibilidade de datação no VI século a.C. para a
composição do livro foi feita por E. C. Lucas, o qual assegura que há argumentos plausíveis tanto
para a datação no VI quanto no II século a.C., e que essa questão não afetaria a crença na inspira-
ção divina ou autoridade do livro (LUCAS, E. C. Daniel, Apollos Old Testament Commentary 20,
2002). Antes dele, Miller já havia tentado estabelecer a data do VI século para a composição de
todo o livro (cf. MILLER, S. R. Daniel, New American Commentary 18, 1994). J. G. Baldwin
também defende a época babilônica para a composição de Daniel, bem como a unidade de autoria
e composição original, partindo da ambientação babilônica proposta nos seis primeiros capítulos
do livro (BALDWIN, J. G. Daniel: An Introduction and Commentary, 1978). Entretanto, os argu-
mentos para a datação no VI século não resistem a uma análise histórico-crítica do livro. Defenso-
res da datação no VI século normalmente defendem também a historicidade factual dos persona-
gens e eventos narrados no livro, sem muito sucesso.
197
DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos, p. 507. v. 2; cf. também SOARES,
Dionísio O. O livro de Daniel: aspectos sócio-históricos de sua composição. Atualidade Teológica
29 (2008), p. 237-247.
198
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 26. Rowley sumariou a ques-
tão ao afirmar “que o livro foi escrito nos dias dos macabeus, desde há muito se afirma e continua-
rá a sê-lo no presente. Há quem defenda a data do sexto século, mas as evidências contra essa opi-
nião são esmagadoras” (cf. ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica: um estudo
da literatura apocalíptica judaica e cristã de Daniel ao Apocalipse, p. 43).
199
PORTEUS, N. W. Daniel: A Commentary, p. 20.
230
não de Nabucodonosor, e nunca teve o título de Rei; “Dario, o medo”, não é co-
nhecido pela história e, em verdade, não há lugar para ele entre o último rei cal-
deu, Nabônides, e Ciro, o Persa, o qual já havia vencido os medos quando con-
quistou o Império Babilônico.200 As datas apresentadas no livro não se harmoni-
zam entre si e nem com a história, parecendo que foram citadas sem muita preo-
cupação com a cronologia factual. Além disso, Nabucodonosor não levou para o
exílio Joaquim e nem os utensílios do Templo de Jerusalém.201
Montgomery defende diferentes épocas de composição para as histórias
compiladas no livro. Os capítulos 7 a 12 “pertencem aos primeiros anos da revolta
dos macabeus, 168-165 a.C.; as quatro visões são consideradas como sendo com-
postas uma por uma”.202 O mesmo postulam Bauer e Redditt, os quais exploram o
desenvolvimento redacional de Daniel como sendo fruto de uma série de edições
de antes e durante o período de perseguição sob Antíoco IV.203 Gammie acredita
ter havido três estágios primários no desenvolvimento do livro, com a intenção
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200
ALONSO SCHÖKEL, Luis; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 1262.
201
Cf. DONNER, Herbert. Op. cit. p. 421-432. v. 2.
202
MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 96.
203
BAUER, Dieter. Das Buch Daniel (1996); REDDITT, Paul L. Daniel: Based on the New Revi-
sed Standard Version (1999).
204
GAMMIE, J.G. The Classification, Stages of Growth, and Changing Intentions in the Book of
Daniel. JBL 95.2 (1976), p. 191-204.
205
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 28.
206
Sobre a antiguidade da figura do personagem, cf., dentre outros, DAY, John. The Daniel of
Ugarit and Ezekiel and the Hero of the Book of Daniel. VT 30.2 (1980), p. 174-184. Para uma opi-
nião contrária à identificação dos três personagens, cf. DRESSLER, Harold H. P. The Identifica-
tion of the Ugaritic Dnil with the Daniel of Ezekiel. VT 29.2 (1979), p. 152-161.
207
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 2.
231
mery assevera que “o nome foi tirado de uma história popular judaica existente”
antes da composição final do livro no II século a.C.208 Segundo Towner:
É impossível escrever uma biografia do Daniel do livro, como se ele fosse uma
figura real da história judaica. Este Daniel é um personagem compósito, ficcional,
e as histórias sobre ele e os relatos de suas visões provavelmente se originaram
em diversas épocas e lugares. O que nos é dado, ao contrário [de uma figura real],
é um ícone da devoção judaica do II século a.C., um modelo de perseverança da
209
verdadeira firmeza da Torá.
Collins ainda afirma que “o livro de Daniel pode ser datado com relativa
precisão entre a segunda campanha de Antíoco Epífanes contra o Egito em 167
a.C. e sua morte em 164”.210
A tese da composição em vista das perseguições impostas por Antíoco IV
também é defendida por Russell, o qual acredita que a obra reflete um protesto
contra a cultura estrangeira (helenística) e um encorajamento à permanência nos
princípios da fé judaica.211 Lacocque afirma que o livro é um documento com-
prometido não com algo abstrato ou especulativo, mas antes enfrenta as questões
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208
MONTGOMERY, J. A. Op. cit. p. 3.
209
TOWNER, S. W. Daniel. In: SAKENFELD, Katharine D. (Ed.). NIB, p. 13-15. v. 2; aqui p. 13.
210
COLLINS, J. J. (Ed.). Apocalypse: The Morphology of a Genre. Semeia 14 (1979), p. 30.
p. 30.
211
RUSSELL, D. S. Apocalyptic: Ancient and Modern, p. 10.
212
LACOCQUE, A. Daniel. In: PATTE, D. (Ed.). Global Bible Commentary, p. 253-261.
213
LEDERACH, Paul M. Daniel, especialmente p. 29-31.
214
ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica, p. 44. Rowley é, até hoje, o princi-
pal defensor da tese da unidade do livro em relação à autoria das narrativas da corte (capítulos 1-
6) e das visões (capítulos 7-12); cf. ROWLEY, H. H. The Unity of the Book of Daniel. HUCA 23
(1950-1951), p. 233-273. Segundo ele, “o ônus da prova recai sobre aqueles que dissecariam uma
obra. Neste caso, porém, nada que possa ser seriamente chamado de prova de composição foi pro-
duzido. Por outro lado, evidência para a unidade da obra que equivale, em sua totalidade, a uma
demonstração, está disponível” (Ibidem, p. 273). Na crítica atual, entretanto, há concordância no
que tange a uma possível unidade redacional por parte de um editor, mas não pela composição
homogênea da obra por parte de um único autor.
232
século a.C., sendo então combinadas e associadas às visões de Dn 7-12. Por outro
lado, pela época que o livro deixa transparecer com seu conteúdo e expressividade
literária, ele já não representa mais a corrente profética primitiva, mas o desenvol-
vimento do apocalipsismo, como se observa também em outras obras do período
judaico intertestamentário: “Tanto em Enoque quanto em Daniel o desenvolvi-
mento do tipo histórico de apocalipses está associado à crise do Período Macabeu
e envolve uma reapropriação extensa da tradição profética, especialmente em Da-
niel”.215
Isto posto, pode-se pressupor que o livro de Daniel em sua forma atual é o
resultado de um processo de composição que se iniciou antes do II século (talvez
no III a.C), adquirindo essa forma durante a época de Antíoco. Os capítulos 1 a 6
seriam fruto de um período mais primitivo (pelo menos os capítulos 2 a 6, se con-
siderarmos 1,1 a 2,4a, escrito em hebraico, como trecho tardio), pois contêm as
narrativas da corte, as quais seriam conhecidas pelo redator do livro de alguma
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forma (ou por composições escritas isoladas, ou por tradição oral); já os capítulos
7 a 12 (e talvez o trecho 1,1–2,4a) teriam sido acrescentados mais tarde, no domí-
nio de Antíoco IV, como aponta especialmente o capítulo 11. É justamente neste
capítulo que os maskîlîm (os “sábios”, termo aplicado a Daniel e seus companhei-
ros já no primeiro capítulo do livro) desempenham papel primordial contra a per-
seguição daquele soberano.
Os destinatários do livro, a comunidade representada pelo editor, está dire-
tamente relacionada ao seu marco social. O consenso tradicional de que os apoca-
lipses são “literatura de crise” é baseado primeiramente nos apocalipses do tipo
“histórico”, os quais apareceram a partir de grandes crises provocadas por perse-
guição sob o governo de Antíoco Epífanes e posteriormente na época da destrui-
ção de Jerusalém pelos romanos.
A diferença crucial em relação ao profetismo bíblico está justamente numa
expectativa de retribuição pessoal (recompensa ou punição) no pós-morte, embora
em muitos apocalipses isso ocorra no contexto de uma restauração do povo como
um todo. Como no profetismo, julgamento e salvação incluem a restauração do
povo judaico, mas nos apocalipses incluem também a transcendência dos limites
comuns da história para uma esfera de ação cósmica no julgamento e retribuição
215
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 71.
233
216
O Apocalipse das Semanas não menciona claramente a ressurreição, mas há uma referência
clara em 1En 93,1-10 e 91,11-17, conforme já assinalado neste trabalho.
217
Dentre as muitas obras acerca do período histórico que engloba essa época, além das já citadas,
cf. PETERS, F.E. The Harvest of Hellenism: A History of the Near East from Alexander the Great
to the Triumph of Christianity, p. 222-260; AUSTIN, M.M. The Hellenistic World from Alexander
to the Roman Conquest, p. 255-280; HENGEL, M. The Political and Social History of Palestine
from Alexander to Antiochus III (333-187 B.C.E.). In: DAVIES, W.D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.).
CHJ: The Hellenistic Age, p. 35-78. v. 2; sobre a relação entre o texto de Daniel e a sua historici-
dade, cf. COLLINS, J. J. Daniel and His Social World. Int 39.2 (1985), p. 131-143; para uma post-
ura convervadora, cf. HARDY, F. W. An Historicist Perspective on Daniel 11, p. 28-103.
218
CRISTOFANI, J. R. A expressão “Filho do Homem” em Daniel. In: NOGUEIRA, P.A.S. (Ed.).
Apocalíptica e as origens cristãs, p. 25-44; aqui p. 34.
219
COLLINS, J.J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 51. Cf. também, do mesmo
autor, The Apocalyptic Vision of the Book of Daniel, p. 55: “Há um largo consenso entre os estudi-
osos de que os relatos surgiram na Diáspora Oriental”.
234
220
ASURMENDI, J. M. Daniel e a apocalíptica. In: CARO, José M. Sánchez (Ed.). História, nar-
rativa e apocalíptica, p. 420-421.
221
Ibidem, p. 424-425.
222
REDDITT, P. L. Daniel 11 and the Sociohistorical Setting of the Book of Daniel. CBQ 60.3
(1998), p. 463-474.
223
Idem. The Community Behind the Book of Daniel: Challenges, Hopes, Values, and Its View of
God. PRSt 36.3 (2009), p. 321-339.
224
KNIBB, M. A. “You Are Indeed Wiser Than Daniel”: Reflections on the Character of the Book
of Daniel. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The Book of Daniel in the Light of New Findings,
p. 399-412.
225
ALBERTZ, R. The Social Setting of the Aramaic and Hebrew Book of Daniel. In: COLLINS, J.
J.; FLINT, P. W. (Ed.). The Book of Daniel: Composition and Reception, p. 171-204. v. 1.
226
SCHUBERT, Kurt. Os partidos religiosos hebraicos da época neotestamentária, p. 18.
235
227
PLÖGER, Otto. Theocracy and Eschatology, p. 22-25.
228
BEYERLE, S. The Book of Daniel and Its Social Setting. In: Ibidem, p. 205-228. v. 1.
229
GRABBE, L. L. A Dan(iel) for All Seasons: For Whom Was Daniel Important? In: COLLINS,
J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 229-246.
230
DAVIES, Philip R. Reading Daniel Sociologically. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). Op.
cit. p. 345-361.
231
Idem. The Scribal School of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 247-
265.
236
legiados. Assim, é possível que as histórias não tenham sido criadas pelos judeus
bem posicionados na diáspora, mas reflitam a imaginação daqueles situados bem
abaixo dos círculos sociais da corte.235 Os personagens das narrativas são retratos
exagerados que servem aos propósitos do gênero literário “relatos da corte”; os
judeus são extremamente piedosos, eloquentes e sábios, ao passo que o monarca é
um tanto estúpido, e seus assessores ardilosos e maléficos. Os contos oferecem
esperança aos judeus na diáspora, apresentando os tipos de personagens que per-
sonificam as esperanças nacionais dos judeus exilados (heróis virtuosos) e criando
situações fantásticas com personagens exagerados que apresentam a mensagem de
resistência satírica dos contos. Wills, Davies e Gruen reconhecem os impulsos po-
pulares, bem-humorados e criativos presentes no âmago dos escritos novelescos
judaicos.236
232
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 35-38.
233
HENZE, M. The Madness of King Nebuchadnezzar: The Ancient Near Eastern Origins and
Early History of Interpretation of Daniel 4, p. 19-23; KOCH, K. Stages in the Canonization of the
Book of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 421-446. v. 2; ULRICH, E.
The Text of Daniel in the Qumran Scrolls. In: Ibidem, p. 573-585, especialmente p. 581-582.
234
HENZE, Matthias. The Narrative Frame of Daniel: A Literary Assessment. JSJ 32.1-4 (2001),
p. 5-24; aqui p. 16-17.
235
CHARLESWORHT, J. H. The Social Setting and Origin of Jewish Apocalyptic Literature. In:
How Barisat Bellowed: Folklore, Humor, and Iconography in the Jewish Apocalypses and the
Apocalypse of John, p. 23-47.
236
Cf. WILLS, L. M. The Jewish Novel in the Ancient World, p. 5; DAVIES, P. R. Scribes and
Schools: The Canonization of the Hebrew Scriptures, p. 144; GRUEN, E. S. Diaspora: Jews
amidst Greeks and Romans, p. 137.
237
vas reflete uma manipulação criativa da realidade social da vida na corte factual
para fins de resistência ao rei e ao império, elaborando assim uma ligação temática
com os julgamentos presentes nas visões de Dn 7-12.240
Como pode ser visto, o livro de Daniel, em sua forma final, reflete o desejo
de resistência e a esperança de vitória de uma comunidade exposta num ambiente
de crise e perseguição política, religiosa e social. Resistência ao império, e não
avanço social e político, é o propósito fundamental dessas narrativas, e isso possi-
bilita o reconhecimento de um marco social mais popular para a gênese dos contos
da primeira parte do livro. A ligação entre as duas partes, pelo gênero e marco so-
cial, revela uma comunidade em crise, à espera de esperança e salvação por parte
de Iahweh. Segundo Montgomery, a análise do caráter literário do livro de Daniel
traz junto a análise de seu caráter religioso.241
A luta entre “bem” e “mal”, a presença de um personagem exemplar, inspi-
237
DAVIES, P. R. The Scribal School of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). The
Book of Daniel: Composition and Reception, p. 247-265. v. 1; aqui p. 248-250. Os textos a que
Davies se refere são WILSON, R. R. From Prophecy to Apocalyptic: Reflections on the Shape of
Israelite Religion. In: CULLEY, R. C.; OVER HOLT, T. W. (Ed.). Anthropological Perspectives
on Old Testament Prophecy. Semeia 21 (1981), p. 79-85; COOK, S. L. Prophecy & Apocalyptic-
ism: The Postexilic Social Setting, especialmente p. 19-84.
238
DAVIES, P. R. Reading Daniel Sociologically. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The Book
of Daniel in the Light of New Findings, p. 345-361; aqui p. 347.
239
Idem. The Scribal School of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 247.
240
VALETA, D. M. Court or Jester Tales? Resistance and Social Reality in Daniel 1-6. PRSt 32.3
(2005), p. 309-324.
241
MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 100-104.
238
rado por Iahweh, uma temática que incentiva a confiança e a obediência dos leito-
res em seu Deus, estão de fato presentes nos relatos da corte, sempre opondo os
personagens judeus aos personagens caldeus, e, assim, os deuses destes ao Deus
daqueles, com Iahweh sempre triunfando. Esses relatos possuem inúmeros ele-
mentos em uma exposição satírica unificada de literatura de resistência que é con-
sistente com o mundo social do livro e com a atitude de julgamento para com An-
tíoco IV Epífanes encontrada em Dn 7-12.
v. 1
E naquele tempo, em que se levan- 1a
tará Michael,
o grande chefe, o que se levanta 1b
sobre os filhos de seu povo,
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242
Cf. TOV, Emanuel. Textual Criticism of the Hebrew Bible, p. 151, e TREBOLLE BARRERA,
Julio. A Bíblia judaica e a Bíblia cristã, p. 385 e 391.
243
Cf. as nuanças de platuvς, -ei~a, -uv em LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 1413-1414;
BAILLY, A. AB, p. 1566.
244
Para as nuanças de cw~ma, -atoς cf. Ibidem, p. 2014; Ibidem, p. 2163.
245
PISANO, Stephen. Introduzione alla critica testuale dell’Antico e del Nuovo Testamento, p. 16.
240
que todas as outras traduções juntas”.246 Sua importância para a crítica textual
provém de dois aspectos presentes numa mesma versão: “seu valor crítico como
tradução de um original hebraico, às vezes divergente da tradição massorética, e
seu valor exegético como tradução, que reflete tradições de interpolação e ideias
teológicas do judaísmo helenístico”.247
De fato, a LXX possui inúmeros traços distintos em relação ao TM e a ou-
tros testemunhos textuais, com elevado grau de discordância. Pelas pesquisas rea-
lizadas até a atualidade, os originais hebraicos da LXX não eram os mesmos do
TM. Entre os manuscritos do Mar Morto foram descobertos textos hebraicos que
refletem e concordam com o texto da LXX. É provável, portanto, que a LXX te-
nha tido um texto hebraico diferente do que teve o TM.248 Em relação ao livro de
Daniel, o texto da LXX difere muito do TM.249
Já o texto de Teodocião é uma das últimas traduções gregas do judaísmo,
situada já no período cristão. Sua tradução é uma revisão da LXX: ele “não fez
uma nova tradução, mas antes uma revisão que aproxima o texto ao hebraico”.250
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Obteve grande difusão, a tal ponto que substituiu o texto original da LXX em
grande parte dos manuscritos existentes. Teodocião é situado, pela tradição, no II
século d.C.251
Assim, seu texto se tornou o texto corrente do livro de Daniel, substituindo
o texto da LXX, devido à sua superioridade:
Pode-se supor que o texto ‘teodociônico’ de Daniel constitui-se numa tradução da
forma hebraica e aramaica do livro, realizada por um judeu que levou em conta a
versão existente da LXX. Esta versão pode proceder da Síria ou Mesopotâmia
(Koch). Em todo caso não se pode considerar tal versão como uma recensão no
252
sentido estrito do termo.
246
TOV, Emanuel. Op. cit. p. 142.
247
TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 355 (grifo do autor).
248
TOV, Emanuel. Op. cit. p. 136-138; TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 359-362.
249
TOV, Emanuel. Op. cit. p. 142.
250
PISANO, Stephen. Op. cit. p. 19.
251
TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 371.
252
Ibidem. Daí então a importância do texto de Teodocião para o livro de Daniel.
241
tes e também o texto hebraico. Este era já praticamente o texto hebraico medieval,
o TM, com poucas variantes.253
dição da LXX de Joseph Ziegler traz as palavras kaiv ai*scuvnhn (“e vergonha”,
referente a do TM em 2c, “para repulsa”) entre colchetes, sendo conside-
radas então secundárias:
253
Cf. TOV, Emanuel. Op. cit. p. 153; TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 425.
254
O texto da LXX de Ziegler apresenta: “E muitos dos que dormem na amplitude da terra se le-
vantarão, uns para a vida eterna, outros para injúria, para a dispersão [e vergonha] eterna”.
242
queles que dormem na amplidão da terra”. A expressão grega toV plavtoς th~~ς gh~~ς
é atestada também em outros lugares: Eclo 1,3 (plavtoς gh~~ς), Hab 1,6 (taV plavth
th~ς~ gh~~ς) e em Is 8,8 (toV plavtoς th~~ς cwvraς sou).255 Em todos esses outros ca-
sos, trata-se de uma expressão que não se refere ao lugar dos mortos; ao contrário,
“a amplidão da terra” remete simplesmente a toda a Terra dos vivos. Nesse caso,
pode ser que tenha havido na interpretação grega lembrança de Is 26,19: oi& e*n th~~/
gh~~/ (“os que estão na terra”), TM: (“que habitam o pó”). Fica clara tam-
bém, assim, a noção grega da rejeição da ideia de ressurreição, conforme já atesta-
da supra.
como 87,6), mas em combinação com a frase “na amplidão da terra” pode-se pen-
sá-lo metaforicamente como uma referência ao povo na dispersão, justamente co-
mo oi& nekroiv (“os mortos”) na LXX de Is 26,19.
255
Cf. HATCH, E.; REDPATH, H. A. A Concordance to the Septuagint: And the Other Greek
Versions of the Old Testament (Including the Apocryphal Books), p. 1141. v. 2.
256
WÄCHTER, L. . In: BOTTERWECK, G. J.; RINGGREN, H. (Ed.). ThWAT, p. 277. v. 6.
257
Já no grego épico de Homero esse verbo aparece com o sentido de “deitar-se para dormir”. O
uso metafórico é mais tardio; em Dn 12,2 seu sentido é “deitar-se para o sono da morte” (cf. LID-
DELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 852).
258
Alfrink sugere que se deva ler diaφqoravn (diaφqorav, “destruição”, “ruína”) em vez de dias-
poravn (cf. ALFRINK, B. L’idée de résurrection d’après Dan. XII, 1-2. Bib 40 (1959), p. 355-371;
aqui p. 367. Já Jeansonne acredita que a leitura diasporavn representa uma adição tardia (cf. JE-
ANSONNE, S. P. The Old Greek Translation of Daniel 7-12, p. 101), possibilidade essa já assina-
lada supra.
259
CHARLES, R. H. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel, p. 329; cf.
também BROWN, Francis (Ed.). HELOT, p. 201.
243
dwvsw au*touVς ei*ς diaskorpismoVn... kaiV e!sontai ei*ς o*neidismoVn... (“e os da-
rei para serem espalhados largamente... e serão uma injúria...”).
pode ser que a interpretação grega tenha pensado que os destinados à “vida eter-
na” usufruirão essa eternidade em Jerusalém (cf. Is 65,22),261 ao passo que os con-
trários estariam destinados a viver fora de Jerusalém, na dispersão. Assim sendo,
“a noção do ‘levantar-se’ em Dan 12:2 remete ao fim de um período de vida na
escuridão e, por assim dizer, na sombra da morte. A ideia subjacente de nosso tex-
to é que um julgamento ocorrerá – um julgamento entre os ‘bons’ e os ‘maus’
[dentre os próprios israelitas]”.262
260
Cf. EVEN-SHOSHAN, Abraham (Ed.). NCB, p. 271. Aqui a LXX interpretou por
o@rasiς (“visualização”, “kaiV e!sontai ei*ς o@rasin pavsh/ sarkiv”, “e serão visíveis a toda car-
ne”). A BJ traduz o termo por “abominação”, a IBB por “horror”, e a NVI por “repugnância”.
261
“Já não construirão para que outro habite a sua casa, não plantarão para que outro coma o fruto,
pois a duração da vida do meu povo será como os dias de uma árvore, meus eleitos consumirão
eles mesmos o fruto do trabalho das suas mãos”.
262
VAN DER KOOIJ, Arie. Ideas about Afterlife in the Septuagint. In: LABAHN, M.; LANG, M.
(Ed.). Lebendige Hoffnung – ewiger Tod?!: Jenseitsvorstellungen im Hellenismus, Judentum und
Christentum, p. 87-102; aqui p. 101.
244
surreição dos israelitas se segue; e então uma época de felicidade se inicia para os
justos”.264 Segundo Montgomery, nos apocalipses mais antigos o final do período
de um tirano ímpio implica felicidade para os justos.265 Entretanto, uma novidade
se estabelece aqui: qual a recompensa dos mártires, os que morreram em defesa da
fé no único Deus de Israel? A ressurreição individual dava uma resposta à questão,
e foi “a partir da época da guerra dos Macabeus que essa crença começou a se tor-
nar um dos poucos principais dogmas do Judaísmo”.266
A expressão (“aquele tempo”) é recorrente na perícope em
questão (aparece em 1a, 1e, 1f). Neste caso, ela se refere ao tempo do rei invasor
de Israel e sua morte, a qual se encontra no “tempo do fim” (cf. Dn 11,40), um
tempo já predeterminado (Dn 11,27) se tornando também o tempo da intervenção
celestial decisiva. A frase é usada também com conotação escatológica em Jr
3,17,267 sendo também uma marca na profecia pós-exílica como .268
263
PORTEOUS, N. W. Daniel: A Commentary, p. 170.
264
DRIVER, S. R. The Book of Daniel: With Introduction and Notes, p. 200.
265
MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 471. Montgomery cita como exemplos Ez 38-39 e Jl 4.
266
Ibidem.
267
“Naquele tempo, chamarão a Jerusalém: ‘Trono de Iahweh’; para ela convergirão todos os po-
vos em nome de Iahweh, em Jerusalém, e não seguirão mais a dureza de seus corações malvados”.
268
BLENKINSOPP, J. The Eschatological Reinterpretation of Prophecy. In: A History of Prophecy
in Israel, p. 226-239; aqui especialmente p. 233-237.
245
dessas divindades das nações (cf. Sl 82) foi assimilada pelo monoteísmo judaico
sob o esquema de uma organização imperial nos céus. O anjo protetor de Israel é
uma ideia que pode remontar a Ex 23,20;273 em Daniel, esse anjo é chamado de
Miguel (“Quem é como Deus?”), um dos arcanjos principais (Dn 10,13.21). Con-
forme já assinalado neste trabalho, o verbo (em 1a) possui aqui um sentido
judicial: o anjo de Iahweh se levanta para julgar a causa de seu povo.274 Essa in-
terpretação fornece um paralelo desse texto com Dn 7, onde a cena do clímax tem
conotação judicial e o tema do livro dos viventes também aparece.
Esse tempo que precede a ressurreição e juízo é caracterizado como um
(“tempo de angústia”, em 1c) de tal proporção que nunca houve sobre a
Terra. A expressão parece ser emprestada de Jr 30,7, onde se diz que Israel é pou-
269
COLLINS, J. J. The Meaning of the End in the Book of Daniel. In: Seers, Sybils, and Sages in
Hellenistic-Roman Judaism, p. 157-165; aqui p. 163.
270
Grande parte dos estudiosos discorda desta tese (cf. por exemplo MONTGOMERY, J. A. ICC,
p. 474). De fato, o trecho se encaixa melhor como um epílogo ao todo do livro do que como uma
adição tardia que representasse a reconsagração já acontecida.
271
DRIVER, S. R. Loc. cit.
272
Armerding chega a afirmar que “é bem possível que o levantar de Miguel sinalizará, no céu, o
começo da época de aflição” (cf. ARMERDING, C. E. Asleep in the Dust. Bibliotheca Sacra 121,
n. 482 (1964), p. 153-158; aqui p. 154).
273
Ex 23,20: “Eis que vou enviar um anjo diante de ti para que te guarde pelo caminho e te condu-
za ao lugar que tenho preparado para ti”.
274
Cf. BROWN, F. (Ed.). HELOT, p. 763-764; KOEHLER, L.; BAUMGARTNER, W. HAL, p.
795-796. v. 1.
246
(“livro dos viventes”) no qual os nomes dos justos deveriam estar escri-
tos, bem como em Ex 32,32.278 A mesma imagem aparece também em 1En 47,3
(“Nesses dias, vi o Ancião sentado no seu trono glorioso e os livros dos vivos a-
bertos perante ele; todo o seu exército que mora nos céus em cima e seu conselho
estava de pé perante ele”). Esse livro dos viventes acaba possuindo valor jurídico
por ocasião do julgamento final.279
Esses descritos como “escritos no rolo” estão certamente entre os “muitos”
(, em 2a) que ressuscitam nesta ocasião. Em relação a esses “muitos”, o reda-
tor com certeza tem em mente particularmente os mártires e apóstatas que foram
proeminentes durante o reinado de Antíoco. Eles são também descritos como “os
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que dormem no pó da terra” (em 2a): essa expressão é peculiar, e ocorre somente
neste texto. Normalmente, o termo (“pó”) é usado para o túmulo, como em
“jazer no pó” em Jó 21,26; aparece também em Jó 17,16 em paralelismo a Sheol,
o mundo dos mortos.280 Collins assinala que a expressão (“pó da ter-
ra”) é provavelmente uma leitura duplicada, combinando dois sinônimos.281 De
qualquer forma, os mortos são retratados como estando em sono; em 1En 91,10 e
92,3 a figura do sono para a morte também é utilizada.282 A afirmação em seguida
de que eles “acordarão” lembra Jó 14,12, onde o mesmo verbo (“acordar”,
275
Jr 30,7 registra: “Ai! Porque este é o grande dia! Não há outro semelhante a ele! É tempo de
angústia para Jacó, mas ele será salvo!”.
276
1Mc 9,17 registra: “Foi esta uma grande tribulação para Israel, como nunca houve desde o dia
em que não mais aparecera um profeta no meio deles”. A ideia de um tempo presente de angústia
incomparável ao que já existiu aparece também no NT em Mc 13,19 e Mt 24,21.
277
Em nossa tradução, preferimos o termo “rolo” para por entendermos que “livro” seria
anacrônico.
278
Sl 69,29: “Sejam riscados do livro da vida, e com os justos não sejam inscritos!”; Ex 32,32:
“Agora, pois se perdoasses o seu pecado... Se não, risca-me, peço-te, do livro que escreveste”.
279
No livro do Apocalipse do NT, por ocasião do julgamento final, o “livro da vida” é claramente
distinguido de um “livro de julgamento”, mas ambos são abertos e consultados para execução do
juízo (cf. Ap 20,12-15).
280
Jó 21,26 relata: “E, contudo, jazem no mesmo pó, cobrem-se ambos de vermes”; em 17,16 re-
gistra: “Descerão comigo ao Sheol, baixaremos juntos ao pó?”.
281
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 392.
282
1En 91,10: “Os justos levantar-se-ão de seu sono, e a sabedoria levantar-se-á e lhes será dada”;
92,3: “O justo levantar-se-á de seu sono e caminhará na senda da justiça, e todos seus caminhos e
viagens serão a bondade eterna e a misericórdia”.
247
283
Cf. EVEN-SHOSHAN, Abraham (Ed.). NCB, p. 1017. Jó 14,12 relata: “Jaz, porém, o homem e
não pode levantar-se, os céus se gastariam antes de ele despertar ou ser acordado de seu sono”.
Esse texto revela a falta de esperança por parte do autor numa volta à vida corrente.
284
1En 37,4: “Até agora não havia sido concedido pelo Senhor dos Espíritos a sabedoria que recebi
segundo minha inteligência, de acordo com o desejo do Senhor dos Espíritos por quem recebi o
meu lote da vida eterna”; 40,9: “Respondeu-me: O primeiro é o santo Miguel, o misericordioso e
paciente; o segundo, que está encarregado de tosas as doenças e feridas dos filhos dos homens, é
Rafael; o terceiro, que está encarregado de todos os poderes, é o santo Gabriel; e o quarto, encarre-
gado da penitência que conduz à esperança para aqueles que herdarão a vida eterna, é Fanuel”;
58,3: “Os justos estarão na luz do sol e os eleitos na luz da vida eterna. Os dias de sua vida não
terão fim, os dias dos santos serão sem-número”; 62,14: “O Senhor dos Espíritos permanecerá so-
bre eles e com esse Filho de Homem morarão, comerão, se deitarão e levantarão para todo o sem-
pre”; Sl Sal 3,12: “Tal é o lote dos pecadores para sempre, mas os que temem o Senhor ressuscita-
rão para a vida eterna; e sua vida, na luz do Senhor, nunca mais terá fim”; 13,11: “Pois a vida do
justo é para sempre, mas os pecadores serão levados para a destruição, e ninguém se lembrará de-
les”; 2Mc 7,9: “Chegado já ao último alento, disse: “Tu, celerado, nos tiras desta vida presente.
Mas o Rei do mundo nos fará ressuscitar para uma vida eterna, a nós que morremos por suas leis!”;
7,36: “Nossos irmãos, agora, depois de terem suportado uma aflição momentânea por uma vida
imperecível, morreram pela aliança de Deus. Tu, porém, pelo julgamento de Deus, hás de receber
os justos castigos por tua soberba”; 4Mc 15,3: “Ela escolheu o da religião que protege (seus filhos)
para a vida eterna de acordo com a promessa de Deus”.
285
Cf. também, no NT, Mt 25,46; Jo 5,29.
286
Cf. ALFRINK, B. L’idée de résurrection d’après Dan. XII, 1-2. Bib 40 (1959), p. 355-371; aqui
p. 362-371; HARTMAN, L. F.; Di LELLA, A. A. The Book of Daniel, p. 308; LACOCQUE, A. Le
livre de Daniel, p. 243-244.
287
1En 22,13: “Outra caverna ainda foi reservada para as almas dos homens que não são justos
mas pecadores: participarão da sorte dos ímpios, mas, porque foram punidos aqui, não serão puni-
dos no dia do julgamento; tampouco ressuscitarão daqui”.
248
que as três passagens nos livros de Macabeus “são a única evidência segura de que
temos um grupo hassídico do Período dos Macabeus”,294 ou “a única referência
direta aos Hasidim no período macabaico”.295 Ele ainda assinala que “é duvidoso
que o autor de Daniel tenha considerado os militantes macabeus como uma ajuda,
seja ela qual for. Para ele, o objetivo do sábio era fazer os outros compreenderem
288
Dn 11,33-35 registra a função desses “sábios” e seu destino durante a perseguição de Antíoco:
“Os homens esclarecidos dentre o povo darão a compreensão a muitos; mas serão prostrados pela
espada e pelo fogo, pelo cativeiro e pela pilhagem – durante longos dias. Ao serem oprimidos, pe-
queno será o auxílio que de fato receberão; muitos, porém, pretenderão associar-se a eles por intri-
gas. Entre esses homens esclarecidos alguns serão prostrados a fim de que entre eles haja os que
sejam acrisolados, purificados e alvejados – até o tempo do Fim, porque o tempo marcado ainda
está por vir”. Conforme já assinalado neste trabalho, o termo é aplicado ao personagem Daniel e
seus três companheiros judeus já em Dn 1,4.
289
DRIVER, S. R. The Book of Daniel: With Introduction and Notes, p. 202.
290
“Sofrestes vergonha anteriormente pelos males e pelas aflições; mas agora ireis brilhar como os
luzeiros do céu e sereis vistos. As portas do céu serão abertas para vós”. Cf. também Mt 13,43a:
“Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai”.
291
Cf. PUECH, Émile. La croyance des esséniens en la vie future: immortalité, résurrection, vie
éternelle?: histoire d’une croyance dans le judaïsme ancien, p. 82. v. 1.
292
Cf., por exemplo, HENGEL, Martin. Judaism and Hellenism: Studies in Their Encounter in
Palestine during the Early Hellenistic Period, p. 175-180. v. 1; PLÖGER, Otto. Theocracy and
Eschatology, p. 22-25. Para uma defesa mais recente dessa posição, cf. LACOCQUE, A. The So-
cio-Spiritual Formative Milieu of the Daniel Apocalypse. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The
Book of Daniel in the Light of New Findings, p. 315-343.
293
HENGEL, Martin. Op. cit. p. 318-323. v. 1.
294
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 67-69; aqui p. 68. Sobre essa
posição, cf. também DAVIES, Philip. Hasidim in the Maccabean Period. JJS 28.2 (1977), p. 127-
140, especialmente p. 131-132.
295
COLLINS, J. J. Daniel and His Social World. Int 39.2 (1985), p. 131-143; aqui p. 133.
249
e purificarem a si mesmos. A batalha poderia ser deixada para Miguel e seus an-
jos”.296
A origem dos hasîdîm está na questão da aceitação das influências do hele-
nismo por parte de alguns líderes judeus na época dos macabeus; dois partidos po-
lítico-religiosos se estabeleceram em franca oposição: um pode ser designado co-
mo o dos filo-helenos e outro o dos assideus,297 contrários à aproximação com o
helenismo. A estes últimos se aliaram o sacerdote Matatias e seus cinco filhos,
sendo o principal líder dentre estes Judas, conhecido como Macabeu (daí a deno-
minação da insurreição armada de “Guerra” ou “Revolta dos Macabeus”).298
Os assideus ou hasîdîm são citados em 1Mc 2,42; 7,12-13 e 2Mc 14,6, as-
sim como provavelmente em 1En 90,9-11. Em 1Mc 7,12 eles são citados ao lado
dos “escribas”, podendo ter identificação com estes; assim, acreditou-se que o re-
dator de Daniel, com sua ênfase na sabedoria e nos ritos sacerdotais, poderia ter
pertencido a este grupo. Verifica-se que os hasîdîm “mantiveram o sentido de so-
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(3b). As duas noções não são incompatíveis. Segundo Lacocque, os maskîlîm fa-
zem os rabbîm justos pela sua morte, ou seja, seu martírio seria propiciatório.306
Sob o ponto de vista da tradição do Servo Sofredor, entretanto, isso não seria pos-
sível. O mais plausível é considerar que eles fazem o povo justo pela sua instru-
ção, o que está mais claro no texto.
Quanto a “brilhar como o brilho [as estrelas] do firmamento” em 3a, o tex-
to parecer deixar claro a situação dos maskîlîm após a ressurreição: são associados
aos anjos.307 Essa associação aparece em Dn 8,10, onde são atacados por Antíoco,
revelando a ousadia deste em termos de malignidade.308 O tema dos santos glorifi-
cados que brilham como as estrelas no pós-morte aparece também em 1En 39,7ab;
301
RUSSELL, D. S. Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica, p. 57.
302
1Mc 7,13: “Os assideus eram os primeiros dentre os israelitas a solicitar-lhes a paz”.
303
1Mc 6,58-60: “‘Estendamos, pois, a mão direita a esta gente, fazendo as pazes com eles e com
toda a sua nação. Vamos reconhecer-lhes o direito de viverem segundo as suas leis, como antes, já
que é por causa dessas leis, que nós quisemos abolir, que eles se exasperaram e fizeram tudo isto’.
Sua proposta agradou ao rei e aos comandantes. E ele enviou aos judeus propostas de paz, que fo-
ram aceitas”.
304
MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 472; COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of
Daniel, p. 393. O texto de Is 53,11b registra: “Pelo seu conhecimento, o justo, meu Servo, justifi-
cará a muitos e levará sobre si as suas transgressões”; 52,13: “Eis que meu Servo prosperará, ele se
elevará, será exaltado, será posto nas alturas”.
305
Dn 11,33: “Os homens esclarecidos dentre o povo darão a compreensão a muitos; mas serão
prostrados pela espada e pelo fogo, pelo cativeiro e pela pilhagem – durante longos dias”.
306
LACOCQUE, A. Le livre de Daniel, p. 230.
307
COLLINS, J. J. Apocalyptic Eschatology As the Transcendence of Death. CBQ 36.1 (1974), p.
21-43; aqui p. 33-35; LACOCQUE, A. Op. cit. p. 244-245.
308
Dn 8,10: “Ele ergueu-se até contra o exército dos céus, derrubando por terra parte do exército e
das estrelas e calcando-as aos pés”. As estrelas seriam os justos sábios, servos de Iahweh.
251
309
1En 39,7ab registra: “Vi sua morada debaixo das asas do Senhor dos Espíritos, todos os justos e
eleitos brilhavam perante ele como a luz do fogo”. O paralelo de 1En 104,2-4 é bastante evidente:
“Sofrestes vergonha anteriormente pelos males e pelas aflições; mas agora ireis brilhar como os
luzeiros do céu e sereis vistos. As portas do céu serão aberta para vós. Perseverai no vosso grito
por julgamento e este aparecerá. Pois a justiça será realizada pelos responsáveis (os anjos) em toda
a vossa angústia, contra todos aqueles que ajudavam os que vos espoliavam. Tende fé e não aban-
doneis vossa esperança, porque tereis uma grande alegria como os anjos do céu”. T. Mos (ou As-
sunção de Moisés) 10,9 registra: “Deus exaltar-te-á e te fixará no céu das estrelas, no local de suas
moradas”; 4Esd 7,97: “A sexta, quando lhes será mostrado como seu rosto resplandecerá como o
sol e como, doravante incorruptíveis, serão semelhantes à luz das estrelas”. No caso de Sabedoria,
o texto de 3,1-12 trata da comparação da sorte dos justos e dos ímpios; no v. 7a o texto afirma so-
bre os justos que “No tempo de sua visita resplandecerão”; se entendida essa condição da mesma
forma que em Daniel, não se aplica aqui, também, a noção de uma ressurreição corporal. O texto
de Mt 13,43a registra: “Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai”.
310
HARTMAN, L. F.; Di LELLA, Alexander A. The Book of Daniel, p. 310.
311
1En 39,5a: Lá meus olhos viram sua morada com os anjos e seu lugar de repouso com os san-
tos”; em Ap Sy Br 51,1-5, o v. 5b registra sobre os justos: “Pois os primeiros [os justos] serão
transformados e se parecerão como anjos”; Sb 5,5: “Como agora o contam entre os filhos de Deus
e partilha a sorte dos santos?” (aqui “filhos de Deus” e “santos” podem ser referências aos anjos); e
Mt 22,30: “Com efeito, na ressurreição, nem eles se casam e nem elas se dão em casamento, mas
são todos como os anjos no céu”.
312
HENGEL, Martin. Judaism and Hellenism, p. 197. v. 1.
5. Apocalíptica e Novo Testamento: a ressurreição no Cris-
tianismo primitivo e o relato de Mt 27,51b-53
daísmo de uma forma geral. Havia tendências variadas e mesmo conflitantes. Co-
mo já assinalado supra, ainda no período chamado de judaísmo pós-exílico tardio
essas concepções haviam sido modificadas. O contato com as concepções gregas e
persas já havia se dado. Com os gregos encontra-se o conceito de imortalidade de
alma (escolas filosóficas e religiosas gregas discutiam e aperfeiçoavam aspectos
referentes a essa temática);2 com os persas, a noção de ressurreição individual, juí-
zo final e outras noções de cunho escatológico. Com os primeiros, o contato se dá
pela expansão do helenismo. Em relação aos persas, conforme já verificado, uma
hipótese provável é que o contato tenha se dado por ocasião do exílio, com a pos-
terior influência de Ciro II e seus sucessores; outra hipótese seria o contato com a
cultura persa no pós-exílio já como substrato cultural no Império Macedônio. O
fato é que antes da época persa (VI século a.C.) não se encontra evidência no Pri-
meiro Testamento de uma nova elaboração nesses conceitos a partir de influências
estrangeiras. Este intercurso com as culturas predominantes resultou em novas ex-
1
Cf. HICK, John. New Testament Views of the After-Life. In: Death and Eternal Life, p. 171-193;
aqui p. 184.
2
Cf. as expressões em conformidade com a ideia grega de imortalidade da alma em 4Esd 7,75-101
(do I século d.C.), 4Mc 9,21-22 (também do I século d.C.) e Sb 3,1-4 (mais antigo, I século a.C.).
No texto de Sb 3,4 a última palavra do verso é athanasía (imortalidade), inusitada no Primeiro
Testamento: “Aos olhos humanos pareciam cumprir uma pena [os mortos], mas sua esperança es-
tava cheia de imortalidade”. Em 8,13 ela é usada com o sentido de imortalidade pela lembrança,
tema caro às civilizações antigas, conforme assinalado neste trabalho. Em 1,4 trata-se da imortali-
dade da alma como recompensa pela justiça de Deus, semelhante ao caso da ressurreição individu-
al em Dn 12,1-3.
253
uma consequência lógica da dificuldade de interpretação do fato por parte dos dis-
cípulos: “Se os discípulos não estavam em condições de compreender a morte do
Messias, eles dificilmente poderiam ter entendido o sentido das afirmações sobre
sua ressurreição”.5 As Escrituras e a tradição judaica necessitam ser revistas. As
narrativas revelam a dificuldade de compreensão: no caminho de Emaús, os discí-
pulos andam com Jesus mas não o reconhecem durante um bom tempo (Lc 24,13-
35); no comissionamento que se dá em seguida (como no paralelo em Jo 20,19-
29), Jesus aparece entre os discípulos mesmo eles estando reunidos em portas fe-
chadas (Lc 24,36-49); no relato do túmulo vazio em Jo 20,11-18, Maria confunde
Jesus com o jardineiro. Segundo Nickelsburg:
A persistência no tema da súbita aparição e desaparecimento [do Jesus depois de
morto] e da falta de reconhecimento ou identificação equivocada [por parte de
seus discípulos] funciona como um fio através das histórias e sugere que, a des-
peito de sua justaposição ao relato do túmulo vazio e apesar da ênfase na corpora-
lidade em alguns casos, essas histórias são cristalizações de tradições em que a
6
forma do Cristo ressuscitado era muito mais ambígua.
3
Cf. SEGAL, Alan F. Life After Death: A History of the Afterlife in Western Religion, p. 351-353.
4
OEPKE, Albrecht. Resurrection in the NT. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT, p. 371. v. 1. O judaísmo
a que o autor se refere é o do período pós-exílico tardio.
5
HAGNER, D. Gospel, Kingdom and Resurrection in the Synoptic Gospels. In: LONGENECK-
ER, Richard N. (Ed.). Life in the Face of Death: The Resurrection Message of the New Testament,
p. 99-121; aqui p. 101.
6
NICKELSBURG, G.W.E. Ancient Judaism and Christian Origins: Diversity, Continuity, and
Transformation, p. 142. James M. Robinson tenta delinear três conjuntos de trajetórias paralelas,
relacionados entre si, os quais se estenderiam a partir de uma origem comum no cristianismo pri-
mitivo até sua conclusão no gnosticismo do II século e no cristianismo ortodoxo (ambos mais tarde
254
divergentes nas interpretações das crenças dos primeiros cristãos): a primeira trajetória representa-
ria o desenvolvimento que se inicia com as tradições concernentes às experiências dos primeiros
discípulos acerca das aparições de Jesus após a ressurreição e terminam com, por um lado, a inter-
pretação ortodoxa dessas aparições como sendo manifestações corporais do Cristo ressuscitado e,
por outro lado, a interpretação gnóstica de resplendor incorpóreo; a segunda trajetória se daria a
partir da expectativa apocalíptica primitiva de uma ressurreição dos cristãos no final dos tempos
em um corpo luminoso e celeste comparável ao de Cristo, projetando o surgimento da doutrina
ortodoxa da ressurreição final dos cristãos no corpo carnal de cada indivíduo, por um lado, e da
doutrina gnóstica acerca da ressurreição mística e espiritual já alcançada no batismo, por outro;
finalmente, a terceira trajetória diz respeito à evolução dos ditos atribuídos a Jesus, por um lado,
culminando na incorporação ortodoxa desses ditos dentro da biografia pré-pascal de Jesus nos E-
vangelhos canônicos e, por outro, na mistificação desses ditos por meio de diálogos hermeneuti-
camente carregados do Cristo ressuscitado com os discípulos gnósticos. Robinson assevera que
nem a interpretação ortodoxa e nem a posição gnóstica representam a posição original cristã, em-
bora ambas sejam tentativas coerentes e esforços sérios de interpretação (cf. ROBINSON, James
M. Jesus from Easter to Valentinus (Or to the Apostles’ Creed). JBL 101.1 (1982), p. 5-37). Cf. a
crítica pouco consistente da posição de Robinson por CRAIG, W. Lane. From Easter to Valentinus
and the Apostles’ Creed Once More: A Critical Examination of James Robinson’s Proposed Resur-
rection Appearance Trajectories. JSNT 52 (1993), p. 19-39.
7
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition, p. 314.
8
Ibidem, p. 311.
255
tasmas e espíritos já era quase universal na cultura popular, de forma que descre-
ver Jesus simplesmente como um espírito era o mesmo que equipará-lo a um fan-
tasma. Por outro lado, pesa também o fato de que, com a predominância da dou-
trina grega acerca da imortalidade da alma, corria-se o risco de se assumir que
somente a alma imortal de Jesus teria sobrevivido à sua morte, o que significaria
dizer que sua morte fora igual a dos demais mortais.
Nos relatos de Mateus 27 e 28 aparece uma clara polêmica envolvendo a
tradição do túmulo vazio: os judeus solicitam a Pilatos que coloque guardas no
túmulo para que o corpo de Jesus não fosse roubado pelos discípulos (Mt 27,62-
66);9 posteriormente, esses judeus aparecem subornando os guardas romanos para
que estes afirmassem que o corpo do Cristo tinha sido roubado pelos próprios dis-
cípulos (Mt 28,11-15), fato que inviabilizaria a tradição do túmulo vazio como
prova cabal da ressurreição.10 Esses episódios deixam clara a existência de uma
polêmica judaico-cristã presente no Evangelho de Mateus; eles não aparecem nos
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outros Sinóticos e nem no Evangelho joanino. Devido a essa clara aversão aos hie-
rarcas de Jerusalém, o evangelista concentra o seu relato tanto quanto possível na
Galileia.11
Pela narrativa mateana, a forma de dissipar a dúvida entre os judeus que
não criam na ressurreição (dissipando também o surgimento da mesma dúvida en-
tre os cristãos) seria atribuir àquele grupo de fraudadores a culpa pela existência
dessa dúvida, ou seja, trata-se de desqualificar a possibilidade da dúvida e ratificar
a tradição do túmulo vazio (Mt 28,15). A explicitação do evangelista acerca da
presença dos guardas junto ao túmulo exclui totalmente a hipótese de furto, atribu-
indo esta ideia a uma invenção maliciosa das autoridades judaicas (Mt 28,13).12
9
Mt 27,62-66 registra: “No dia seguinte, isto é, o dia depois da preparação, reuniram-se os princi-
pais sacerdotes e os fariseus perante Pilatos, e disseram: Senhor, lembramo-nos de que aquele em-
busteiro, quando ainda vivo, afirmou: Depois de três dias ressurgirei. Manda, pois, que o sepulcro
seja guardado com segurança até o terceiro dia; para não suceder que, vindo os discípulos, o furtem
e digam ao povo: Ressurgiu dos mortos; e assim o último embuste será pior do que o primeiro.
Disse-lhes Pilatos: Tendes uma guarda; ide, tornai-o seguro, como entendeis. Foram, pois, e torna-
ram seguro o sepulcro, selando a pedra, e deixando ali a guarda”.
10
Mt 28, 11-15: “Ora, enquanto elas iam, eis que alguns da guarda foram à cidade, e contaram aos
principais sacerdotes tudo quanto havia acontecido. E congregados eles com os anciãos e tendo
consultado entre si, deram muito dinheiro aos soldados, e ordenaram-lhes que dissessem: Vieram
de noite os seus discípulos e, estando nós dormindo, furtaram-no. E, se isto chegar aos ouvidos do
governador, nós o persuadiremos, e vos livraremos de cuidado. Então eles, tendo recebido o di-
nheiro, fizeram como foram instruídos. E essa história tem-se divulgado entre os judeus até o dia
de hoje”.
11
GROSSOUW, W. Ressurreição de Jesus Cristo. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 1308-
1314; aqui p. 1312.
12
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento, p. 430.
256
Esses textos do Evangelho de Mateus “pertencem a uma fase da tradição que re-
flete uma atitude apologética dos cristãos frente às asserções dos judeus de que os
discípulos de Jesus haviam roubado seu corpo”.13
Ainda dentro dos Evangelhos, Lucas deixa claro a ressurreição corpórea de
Jesus: este não somente pede para que os discípulos toquem em seu corpo físico,
mas também pede comida e a come diante deles (Lc 24,36-43); os leitores de Lu-
cas eram, em grande parte, helênicos (negavam a ressurreição do corpo, cf. já veri-
ficado supra). Reiterando essa posição, o Evangelho de João faz questão de não
deixar dúvidas quanto à ressurreição corpórea e física de Jesus;14 a escola joanina
polemiza frequentemente com o pré-gnosticismo (ou proto-gnosticismo, depen-
dendo de como se compreenda esse fenômeno) ou docetismo. João apresenta tam-
bém uma novidade em relação à ressurreição dos fiéis na tradição sinótica: não é
Deus, mas sim o próprio Jesus, como demonstração de seu poder, que os ressusci-
tará no último dia (Jo 6,40.44).15
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13
GROSSOUW, W. Op. cit. p. 1310.
14
Jo 20,27: “Depois disse a Tomé: Chega aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos; chega a tua mão, e
mete-a no meu lado; e não mais sejas incrédulo, mas crente”.
15
Cf. SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 457. Segundo este autor, neste trecho o evangelista faz
a conexão entre a ressurreição e a eucaristia.
16
JOSEFO, Flávio. Jewish Antiquities, 18.4 (Loeb Classical Library).
17
Idem. The Jewish War, 3.374 (Loeb Classical Library).
257
reencarnação; entretanto, tal ideia não encontra recepção nos textos da Escritura
Hebraica, sendo muito improvável que Josefo pensasse nestes termos. Sua ideia
parece se alinhar mais na perspectiva apocalíptica já presente em Dn 12,1-3 com
as promessas de recompensa ou punição eterna num corpo ressuscitado, seja este
corpo físico ou não.
Alguns textos dos Evangelhos e paulinos sugerem ainda a ascensão ime-
diata do fiel após a morte,18 o que pode indicar que alguns escritores do NT esta-
vam refletindo acerca da questão do lugar onde os mortos passariam o período in-
terregno de morte e ressurreição final. Nos escritos paulinos aparece a metáfora do
sono (1Cor 15,6.18.20.51; 1Ts 4,13-18; 5,9-10), certamente retomada de Dn
12,2.19 Por vezes existe a ideia de que os mortos estão conscientes no Sheol (Ha-
des), podendo até mesmo conversar, como acontece na parábola do rico e Lázaro
em Lc 16,19-31, havendo espaços separados para justos e injustos.20 Este último
texto deixa transparecer também a ideia de que felicidade e miséria no pós-morte
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são fruto da postura em vida, ideia que já estava presente em Zoroastro e Hesíodo,
conforme verificado supra. No Apocalipse, as almas dos mártires se encontram
sob o altar do céu, lamentam seu destino injusto quando vivos sobre a Terra (Ap
6,9-11) e clamam por justiça divina, tema típico da tradição apocalíptica judaica.
Nos escritos paulinos se dá outra tendência importante com relação à res-
surreição, além das presentes nos Evangelhos; ela é expressa de forma pormenori-
zada em 1Cor 15, talvez mais antiga que a sinótica (o apóstolo afirma aos corín-
tios que “vos entreguei o que também recebi”, em 15,3a). Paulo apresenta uma
expectativa futura que, diferentemente dos evangelistas, independe da tradição do
túmulo vazio.21 Para ele, a crença num futuro pessoal para além da morte física
dita as regras para a fé cristã.22 Sua preocupação tangencia não o reino messiânico
18
Cf., por exemplo, 2Cor 5,6-10; Fp 1,12-26; 1Ts 4,14 e Lc 23,43. Neste último texto, Jesus afir-
ma ao ladrão arrependido: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso”.
19
Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 403.
20
Cf. LEHTIPUU, Outi. The Rich Man and Lazarus and Luke’s Eschatology. In: The Afterlife
Imagery in Luke’s Story of the Rich Man and Lazarus, p. 243-264.
21
Albrecht Oepke assinala que “embora Paulo aceite o túmulo vazio (1Cor 15,47-50), ele não pen-
sa no corpo do Senhor ressuscitado em termos materiais, mas sim como o sôma pneumatikón Da-
quele que é exaltado à condição de personalidade universal, em todas as coisas, e especialmente na
Igreja (Cl 1,18ss). Por outro lado, interesses apologéticos direcionaram a tradição evangélica pós-
canônica para um sentido mais material (Lc 24,39ss; At 10,41; Jo 20,25ss). Contudo, as caracterís-
ticas espirituais não estão ausentes (Jo 20,17.19.26), e talvez uma distinção deva ser feita entre o
Senhor imediatamente ressuscitado e o Senhor exaltado” (cf. OEPKE, A. e*geivrw. In: KITTEL, G.
(Ed.). TDNT, p. 333-337. v. 2; aqui p. 335.
22
“Mas se não há ressurreição de mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi
ressuscitado, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1Cor 15,13-14).
258
material, humano, mas sim o escatológico. Neste capítulo, apesar de utilizar cate-
gorias helênicas em suas descrições, o apóstolo expõe seu pensamento acerca da
ressurreição distanciando-se da ideia platônica de que o corpo estava destinado à
destruição.23 Ele afirma que o corpo sobreviverá à morte, ressuscitado em glória e
perfeição por Deus, assim como foi o corpo de Jesus. Portanto, o apóstolo ensina
não a destruição do corpo, mas sim a sua transformação, destinada não somente
aos que já morreram, mas também aos que estiverem vivos na parousía (1Cor
15,51-53; 1Ts 4,13-18).24 É possível que os que negavam a ressurreição em Corin-
to, certamente por influência helênica (mencionados pelo apóstolo em 1Cor
15,12), tinham sido rechaçados pela antropologia presente na expectativa judaica,
a qual não conhecia o dualismo corpo-alma (se o ser humano ressuscita, só pode
ser com seu corpo).25
Na antropologia paulina de 1Cor 15,35-53, tanto a vida no seu sentido mais
básico (psíquica) quanto a vida espiritual (pneumática) eram corpóreas; entretan-
to, aparece certa tensão em sua concepção de homem.26 Nos v. 44, o corpo físico
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(sw~m~ a yucikón) é o corpo natural (carne e alma), ao passo que o corpo espiritual
(sw~~ma pneumatikón) é o corpo natural transformado pelo espírito. Segundo o a-
póstolo, este corpo transformado é o corpo ressuscitado (e*geivretai). A mesma
significação está presente nos v. 51-54.27 Dessa forma, com essas expressões anta-
gônicas, o apóstolo ensina uma espécie de antes e depois da parousía.
Nessa antítese paulina, as concepções helenísticas vêm de encontro à an-
tropologia judaica; a concepção de Paulo lembra a antítese platônica mundo inte-
ligível (nou~ς~ ) e mundo sensível; entretanto, “à semelhança dos judeus alexandri-
23
Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 422-423.
24
O texto de 1Cor 15,51-53 registra: “Eis aqui vos digo um mistério: Nem todos dormiremos mas
todos seremos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trom-
beta; porque a trombeta soará, e os mortos serão ressuscitados incorruptíveis, e nós seremos trans-
formados. Porque é necessário que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade e que isto
que é mortal se revista da imortalidade” (a*qanasivan, grifo nosso). A última palavra do verso é, a
exemplo de Sb 3,4, imortalidade.
25
Cf. SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento, p. 290-291.
26
1Cor 15,44-46 registra: “Semeia-se corpo físico (sw~m~ a yucikón), é ressuscitado (e*geivretai)
corpo espiritual (sw~m~ a pneumatikón). Se há corpo físico, há também corpo espiritual. Assim
também está escrito: O primeiro homem, Adão, tornou-se alma vivente (yuchVn zw~s ~ an); o último
Adão, espírito vivificante (pneu~m~ a zw/opoiou~n
~ ). Mas não é primeiro o espiritual, senão o físico;
depois o espiritual” (grifo nosso). Observa-se que o apóstolo contrapõe os adjetivos yucikóς e
pneumatikóς e os substantivos yuch~~ e pneu~m~ a. Para Nelis, o termo pneu~m~ a em Paulo “não é si-
nônimo de imaterial, mas significa força, luz, santidade, alguma coisa proveniente do mundo do
divino”, não havendo para ele, assim, nenhuma contradição na expressão “corpo espiritual” (cf.
NELIS, J. Ressurreição. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 1302-1308; aqui p. 1307).
27
Cf. SOARES, Dionísio O. A ressurreição corporal na tradição paulina: o sôma psychikón e o
sôma pneumatikón. Atualidade Teológica 33 (2009), p. 407-417.
259
nos (Sabedoria, Fílon), Paulo substituirá ordinariamente o nou~ς~ pelo pnevw. O sen-
tido da antítese platônica está, pois, profundamente modificado, tornando-se uma
oposição de ordem filosófica, ordem religiosa”.28 Para Segal, nesse caso, Paulo
utiliza o discurso de transformação espiritual para evangelizar os gentios,29 ou
seja, o apóstolo estaria usando categorias helênicas para argumentação contra o
conceito grego de imortalidade e, a partir dessas mesmas categorias, sistematizan-
do o seu próprio conceito (evangélico-cristão). De qualquer forma, para Paulo
“não há existência sem corporeidade, de modo que a reflexão sobre a existência
pós-mortal precisa ser também uma pergunta pela corporeidade dessa existên-
cia”.30
Texto mais antigo que o de 1Cor 15 é 1Ts 4,13-18, no qual o apóstolo trata
da questão “dos que dormem” (v. 13) tendo em vista o consolo da comunidade de
Tessalônica. Baseando sua argumentação na ressurreição de Cristo como fonte e
princípio para a ressurreição também dos cristãos em geral, o apóstolo afirma que,
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claro é uma espécie de hierarquia sobre quem sobe primeiro, ou seja, os mortos
serão arrebatados antes de “nós, os vivos”. Já no texto de 1Cor 15 o apóstolo trata
da questão da forma do corpo ressuscitado, afirmando que, quando a trombeta so-
ar, “os mortos serão ressuscitados incorruptíveis, e nós seremos transformados”
(1Cor 15,52b).32 Seus leitores agora são mais helenizados. A influência platônica
acerca do corpo físico e da ressurreição se faz sentir nos cristãos de Corinto. O
apóstolo usa então categorias helênicas para expressar a antropologia judaica.
Ao passo que nos Evangelhos pode-se perceber um esforço das comunida-
des cristãs primitivas em entender a transformação do reinado histórico do messi-
as, comum entre os judeus, em um reinado futuro, a preocupação do apóstolo Pau-
lo parece não tangenciar mais o reino messiânico material, humano, mas sim o
escatológico. A noção de ressurreição, vitória sobre a morte, é um dos sinais ca-
racterísticos da implantação do Reino de Deus, com sua era escatológica, e está
diretamente relacionada a ele.33 Assim, na busca pela compreensão da noção de
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32
Noutro texto mais tardio ainda, também de autoria paulina não disputada, a escatologia do após-
tolo já sofreu novo “desenvolvimento”: o apóstolo já admite inclusive a possibilidade de passar
pela morte antes da parousía, afirmando que o morrer, se for o caso, “é lucro” (cf. Fl. 1,20-21). A
expectativa da volta iminente do Cristo já havia se dissipado.
33
Geza Vermes afirma que “nos Evangelhos, cura e ressurreição estão ligadas à ideia do reino de
Deus” (cf. VERMES, Geza. The Complete Dead Sea Scrolls in English, p. 412).
34
Alguns estudiosos hoje acreditam, por motivos diversos, que a narrativa da ressurreição constitui
uma metáfora, e não um evento histórico factual (cf. como representante dessa corrente CROS-
SAN, J. D. Resurrection of Jesus in Its Jewish Context. In: STEWART, Robert B. (Ed.). The Re-
surrection of Jesus: John Dominic Crossan and N. T. Wright in Dialogue, p. 46-47). Já Wright está
entre os que postulam uma ressurreição factual (cf. WRIGHT, N. T. Easter and History. In: The
Resurrection of the Son of God, p. 685-718 – Christian Origins and the Question of God, v. 3), e
Sanders entre os que reconhecem o fato, mas sem poder prová-lo: “Que os seguidores de Jesus (e
depois Paulo) tiveram experiências de ressurreição é, em meu julgamento, um fato. Qual realidade
deu levante às experiências eu não sei” (cf. SANDERS, E. P. The Historical Figure of Jesus, p.
280).
261
seguidores a viver no mundo como ele de fato é, tudo isso a despeito de a ressur-
reição ser abstrata e não-demonstrável.37 Neste sentido simbólico, a ressurreição
corporal pode ser uma ideia utilizada para identificar determinados grupos.38
Além disso, a expectativa cristã reflete um desejo por vida eterna que é an-
tigo, o qual perpassa todo o NT, sempre em relação aos justos. A influência grega
pode ser percebida, especialmente no que tange a uma adaptação da perspectiva
helenística sobre o destino do homem no pós-morte: mesmo se em alguns círculos
do cristianismo primitivo se ignorasse a ideia de uma alma que sobrevive à morte,
pensava-se numa imortalizarão futura, alcançada através da ressurreição em um
corpo transformado e uma posterior ascensão aos céus, como no caso da tradição
paulina.39
35
CERFAUX, Lucien. O cristão na teologia de Paulo, p. 55.
36
Cf. WRIGHT, N. T. Christian Origins and the Resurrection of Jesus: The Resurrection of Jesus
As a Historical Problem. STR 41.2 (1998), p. 23-38.
37
SETZER, Claudia. Resurrection of the Body in Early Judaism and Early Christianity: Doctrine,
Community, and Self-Definition, p. 44-52. Neste trecho, a autora aborda a questão sob o subtítulo
“A ressurreição como símbolo e estratégia nos grupos judaicos primitivos”. Cf. também o trata-
mento do tema pela autora em Resurrection of the Dead As Symbol and Strategy. In: JAAR 69.1
(2001), p. 65-102, especialmente p. 65-66.
38
“Outras ideias que frequentemente acompanham a ressurreição é a justiça final, recompensa aos
justos e punição aos ímpios, confiança na eleição daqueles que sustentam essa crença, e a legitimi-
dade daqueles que pregam e ensinam a ressurreição. Carregando várias ideias em seu rastro, a [no-
ção de] ressurreição possui uma utilidade peculiar para grupos que estão tentando duramente se
definir” (cf. Idem. Resurrection of the Body in Early Judaism and Early Christianity: Doctrine,
Community, and Self-Definition, p. 1).
39
Cf. SEGAL, Alan F. Heavenly Ascent in Hellenistic Judaism, Early Christianity and Their Envi-
262
ra que “não passará esta geração, até que todas essas coisas aconteçam” (Mc
13,30). Tais declarações certamente exerceram forte impacto em seus ouvintes,
expectadores das comunidades cristãs que viviam sob o domínio e perseguição
impostos pelo Império Romano.43
O cenário aparece também na tradição paulina, em 2Ts 2, onde Paulo (ou,
mais provavelmente, um de seus seguidores) afirma que o Dia do Senhor não virá
antes do governo do perverso, o qual profanará o Templo. Aparece ainda na tradi-
ção joanina: em Ap 11,1-14 o autor narra o segundo “infortúnio” de três previstos;
trata-se de três anos e meio (42 meses, v. 2) em que o Templo é profanado pelos
gentios (possivelmente, certas passagens do Apocalipse tenham sido escritas sob o
domínio de Nero, quando a perseguição aos cristãos recrudesceu). Tais referências
são exemplos de como o texto de Dn 11,31ss foi apropriado pelos grupos cristãos.
Muitos esquemas gerais da escatologia contida na Escritura Hebraica e nos
apocalípticos do período intertestamentário (inclusive a questão da ressurreição
individual dos mortos) foram atualizados pelos cristãos primitivos a partir dos a-
contecimentos históricos de sua época, englobando assim vultos políticos e movi-
mentações militares na região da Palestina, em muitos casos observando esses da-
dos à luz de Dn 11,31–12,3. Yarbro Collins afirma que “a influência de Daniel 12
43
TABOR, James. The Future. In: SMITH, M.; HOFFMANN, J. (Ed.). What the Bible Really
Says, p. 33-51; aqui p. 48-49.
264
mo um dia” (3,8).
O fato de o reino escatológico sobreviver a todos esses desapontamentos
sugere que o cerne de sua crença não era composto unicamente por expectativas
apocalípticas; entretanto, não se pode negar que tais expectativas estiveram no
centro do movimento cristão primitivo. De fato, esse reino é tema fundamental da
pregação do Messias cristão presente nos Evangelhos. Em seu discurso inicial ele
já preconiza: “O tempo está cumprido, e é chegado o reino de Deus. Arrependei-
vos, e crede no evangelho” (Mc 1,15).
A presença de Jesus representava para a comunidade primitiva o começo
do reino escatológico e definitivo de Deus. Ainda dentro do NT, à parte dos Evan-
gelhos, Cristo, o Messias cristão, é reconhecido como o Filho da divindade que
encarnou para ser a ponte, o mediador para o novo reino, o paraíso, o lugar sem
morte ou angústias e sofrimentos. No entanto, vários autores consideram que essa
noção não estava presente nas primeiras comunidades que deram origem ao cristi-
anismo. Bultmann, por exemplo, acredita que a noção da origem divina de Jesus
não era conhecida de seus discípulos; surgiu somente posteriormente, no âmbito
da igreja helenística: “Ela foi inicialmente introduzida na transformação para o
44
YARBRO COLLINS, Adela. The Influence of Daniel on the New Testament. In: COLLINS, J.
J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 90-112; aqui p. 112.
45
HORSLEY, Richard A. The Kingdom of God and the Renewal of Israel: Synoptic Gospels, Je-
sus Movements, and Apocalypticism. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of Apocalyptic-
ism, p. 303-344. v. 1; aqui p. 341.
265
helenismo, no qual a ideia de um rei ou herói gerado por uma divindade em uma
virgem era muito disseminada”;46 Cullmann também afirma que o conceito do
Cristo cristão se desenvolveu quando a noção mais particularmente judaica de
Messias começou a se desvanecer entre as comunidades helenísticas; a mudança
acompanhou a transformação do termo Cristo, passando de título a nome próprio:
“Essa evolução parece ter se produzido, em particular, sobre o solo das comunida-
des helenísticas, onde não existia um interesse messiânico, no sentido original do
termo”.47
Em outra obra, Bultmann afirma que “a ideia de um Messias, ou filho do
Homem, sofredor, morrendo e ressuscitando era desconhecida no judaísmo”.48 De
parecer semelhante, Geza Vermes afirma que “nem o sofrimento do Messias, ou
sua morte e ressurreição, parecem ter feito parte da crença do judaísmo do século
I”.49
Claro está que a comunidade cristã primitiva releu o evento Cristo à luz de
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46
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition, p. 291 (cf. também a nota 4).
47
CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento, p. 176 (grifo do autor).
48
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, p. 61.
49
VERMES, Geza. Jesus the Jew: A Historian’s Reading of the Gospels, p. 38.
50
GNILKA, Joachim. Jesus de Nazaré: mensagem e história, p. 294.
51
SCHNELLE, Udo. A terceira transformação: redação de evangelhos como resolução inovadora
de uma crise. In: Teologia do Novo Testamento, p. 467-483; aqui p. 480 (grifo do autor).
52
Ibidem.
53
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento, p. 438.
266
54
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, p. 75 (grifo do autor).
55
Cf. FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da história: ensaio de uma cristo-
logia como história, p. 72-86.
56
SCHIAVO, Luigi. A Fonte dos Ditos de Jesus e as raízes da cristologia. In: CHEVITARESE, A.
(Org.). Jesus de Nazaré: uma outra história, p. 193-216; aqui p. 196.
57
Ibidem, p. 206.
58
RUSSELL, D. S. Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica, p. 131.
267
reino final, inaugurando o paraíso prometido aos justos, o qual também lembra o
paraíso persa.
Essa concepção pode ter existido na comunidade pré-pascal, o que faria
com que a tese de Bultmann não seja absoluta em todos os aspectos. Pelo menos
os judeus da comunidade de Qumran não tiveram suas concepções formuladas no
período pós-pascal. Entre os hinos messiânicos dessa comunidade, há pelo menos
um que afirma a existência de um herói que arvora para si uma condição divina,
sendo superior aos anjos e assentado num trono no céu:
Minha glória {é incomparável} e fora de mim ninguém é exaltado. E não vem a
mim, porque eu moro em [...], nos céus, e não há [...] Eu sou contado entre os
deuses e minha morada está na congregação santa; [...meu de]sejo não é segundo
a carne [e] tudo o que me é preciso está na glória [...o lu]gar santo. Quem foi con-
siderado desprezível por minha causa? E quem é comparável a mim em minha
glória? (...) E quem me enfrentará e manterá a comparação com meu juízo? [...]
59
Pois eu sou contado entre os deuses, e minha glória está com os filhos do rei.
59
Documento 4Q491, frg. 11, col. I. Cf. a tradução de todo o hino em GARCÍA MARTÍNEZ, Flo-
rentino. Textos de Qumran, p. 160-164; aqui p. 162.
60
KNOHL, Israel. O Messias antes de Jesus: o servo sofredor dos Manuscritos do Mar Morto, p.
38.
61
COLLINS, J. J. The Scepter and the Star: The Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other An-
cient Literature, p. 148.
268
62
Idem. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls, p. 147.
63
Ibidem.
269
64
BROWN, Michael J. Matthew, Gospel of. In: SAKENFELD, Katharine D. (Ed.). NIB, p. 839-
852. v. 3; aqui p. 844.
65
Ibidem.
66
Cf. VIVIANO, B. T. Where Was the Gospel According to St. Matthew Written? CBQ 41.4
(1979), p. 533-546. Uma antiga mas ainda proveitosa revisão da pesquisa sobre o Evangelho de
Mateus (até 1980) é dada por STANTON, Graham. The Origin and Purpose of Matthew’s Gospel:
Matthean Scholarship from 1945 to 1980. ANRW II.25.3 (1984), p. 1889-1951. Para uma aborda-
gem mais recente da pesquisa, cf. AUNE, David E. (Ed.). The Gospel of Matthew in Current
Study: Studies in Memory of William G. Thompson (2001).
270
evangelho mateano pelo viés sociológico, afirmando que os diversos temas pre-
sentes em Mateus eram da mesma forma importantes para os demais grupos judai-
cos de então.71 Esses autores também defendem que à época em que o evangelho
67
Cf. por exemplo DAVIES, W. D. The Setting of the Sermon on the Mount, p. 256-315; Davies
enxerga no Sermão da Montanha respostas às disposições do Concílio de Jamnia. Já Goulder afir-
ma que a comunidade de Mateus “pertence ao judaísmo e espera ser perseguida por sua heterodo-
xia” (cf. GOULDER, M. D. Midrash and Lection in Matthew, p. 152); Goulder defende uma cida-
de Fenícia, talvez Tiro (a qual estaria em estreita relação com o judaísmo de Jamnia), para local de
composição do evangelho (Ibidem, p. 149-150), como já fizera anteriormente KILPATRICK, G.
D. The Origins of the Gospel According to St. Matthew, p. 131-134. Entretanto, Schuyler Brown
assevera que “a ausência no evangelho de qualquer referência explícita à excomunhão, inclusive,
quando tal referência se encontra nos paralelos de Lucas (6,22; cf. Mt 5,11), indica uma data ante-
rior a Jamnia. É difícil admitir que Mateus tivesse podido recomendar o ensinamento dos fariseus
(23,2ss) no seu evangelho se sua comunidade se tivesse separado definitivamente do judaísmo” (cf.
BROWN, Schuyler. The Matthean Community and the Gentile Mission. NovT 22.3 (1980), p. 193-
221; aqui p. 216).
68
Cf. por exemplo Van Tilborg, que inclusive situa o Evangelho de Mateus em Alexandria, consi-
derando-o de origem gentílica e para o qual o judaísmo não é ainda problema (VAN TILBORG,
Sjef. The Jewish Leaders in Matthew, p. 169-172); R. Walker considera que, aos olhos de Mateus,
Israel é algo do passado, que desperta interesse teológico, mas não histórico (cf. WALKER, Rolf.
Die Heilsgeschichte im ersten Evangelium, 1967); para Clark há em Mateus um desprezo a Israel
tão claro que só poderia proceder de um pagão, pois nenhum judeu-cristão adotaria tal ponto de
vista (cf. CLARK, Kenneth W. The Gentile Bias in Matthew. JBL 66.2 (1947), p. 165-172).
69
Entre os estudiosos mais antigos que apontaram nesta direção, cf. STENDAHL, K. The School
of St. Matthew, and Its Use of the Old Testament, p. XIIIss; MOULE, C. F. St. Matthew’s Gospel:
Some Neglected Features. In: CROSS, F. L. (Ed.). Studia Evangelica II: Texte und
Untersuchungen zur Geschichte der Altchristlichen Literatur 87 (1964), p. 91-94.
70
Mt 21,23: “Vindo ele ao Templo, estava a ensinar, quando os chefes dos sacerdotes e os anciãos
do povo se aproximaram e perguntaram-lhe: ‘Com que autoridade fazes estas coisas? E quem te
concedeu essa autoridade?”. Os demais textos já foram ou serão discutidos neste trabalho.
71
OVERMAN, J. Andrew. Matthew’s Gospel and Formative Judaism: The Social World of the
Matthean Community (1990); SALDARINI, Anthony J. Matthew’s Christian-Jewish Community,
(1994).
271
foi escrito havia dois grupos em tensão: o judaísmo formativo e o grupo judaico de
Mateus, do qual pode se afirmar que representa o “judaísmo de Mateus”.
A teoria do judaísmo formativo foi primeiramente postulada por G. F. Mo-
ore e retomada por J. Neusner.72 A partir desses trabalhos, Overman e Saldarini
reconstituíram o ambiente do judaísmo no pós-guerra (pós 70 d.C.) e as relações
com o Evangelho de Mateus.73
O processo de uniformização do judaísmo foi um importante fator para a
integração entre os grupos que adotaram essa vertente rabínica, ao mesmo tempo
em que provocou a exclusão dos grupos que não o assumiram. Essa exclusão não
se deu com uniformidade, e nem através de um ato único e formal. Entretanto, a
crise social e religiosa exigiu um endurecimento cada vez maior nos critérios de
coesão e ortodoxia judaicas. Os judeus-cristãos certamente não partilharam do
consenso adotado pelo judaísmo nesse período, pós ano 70 d.C., o que explicaria
em grande parte a separação entre os dois grupos. Assim, os textos escritos a partir
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72
MOORE, George F. Judaism in the First Centuries of the Christian Era: The Age of The Tan-
naim, v. 1 (1927); NEUSNER, J. From Politics to Piety: The Emergence of Pharisaic Judaism
(1972). Deve-se entender o termo, entretanto, como designação de uma tendência de predomínio
do grupo sacerdotal que representava a religião oficial, dentre os demais existentes à época, em
desenvolvimento ao que, mais tarde, pode ser denominado de “judaísmo rabínico” (II século).
73
OVERMAN, J. A. Op. cit.; SALDARINI, A. J. Op. cit. Recentemente, Howard Clarke procurou
mostrar como o texto de Mateus tem sido bem e mal interpretado ao longo dos séculos. Ele mostra
também a enorme influência do evangelho mateano sobre a cultura ocidental, ou melhor, sobre a
interpretação do cristianismo no ocidente. (Cf. CLARKE, Howard W. The Gospel of Matthew and
Its Readers: A Historical Introduction to the First Gospel, 2003).
272
judaísmo formativo ganhava espaço religioso, o que teria exercido impacto pre-
ponderante na forma e conteúdo do texto de Mateus. Dessa forma, muitas instru-
ções e práticas desenvolvidas na comunidade mateana se davam em função de
uma resposta ao que o judaísmo formativo exercia sobre os leitores implícitos do
evangelho. Assim, em última análise, a narrativa de Mateus revela não haver dis-
tinção entre judaísmo e movimento religioso de Jesus.74
As bem-aventuranças, por exemplo, seriam uma referência ao próprio gru-
po mateano, um incentivo às práticas adotadas por esse grupo, o qual vivia mo-
mentos de tensão. Muito provavelmente eles já haviam perdido o acesso à sinago-
ga local, sofriam preconceitos pela adoção de Jesus como Messias, bem como di-
ficuldades em sua vida social, com opressão econômica como consequência da
dominação romana e da guerra que havia provocado o enfraquecimento agrícola
da região; isso pode ser pressuposto em textos como Mt 6,25-34. De qualquer
forma, o grupo de Mateus se apresentava como uma alternativa ao judaísmo tradi-
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cional.
Entretanto, não se pode negar a grande probabilidade da presença de genti-
os no grupo (poderia então ser caracterizado como um grupo judaico-cristão). A
separação definitiva entre judaísmo e cristianismo somente se daria no II século.
Hagner, por exemplo, afirma que a hipótese de o grupo de Mateus ser uma comu-
nidade exclusivamente judaica não se sustenta. Há diferenças na tradição mateana
que não podem ser consideradas somente intrajudaicas. Antes, tais diferenças de-
vem ser justamente compreendidas como uma nova orientação radical na interpre-
tação da Torá, revelando o grupo de Mateus como “uma forma judaica do cristia-
nismo”.75 Senior assinala que as pesquisas sobre o contexto judaico em Mateus
normalmente desprezam a relação entre o grupo mateano e o mundo gentílico. Ele
assevera que o evangelho concede mais espaço à descrição das trocas entre o
mundo judaico e o gentílico do que o que normalmente se admite.76 Carter asseve-
74
O texto de Mt 5,17 (“Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los,
mas dar-lhes pleno cumprimento”) revelaria que a comunidade de Mateus não era cristã, mas ju-
daica. David Sim chega a afirmar que a comunidade mateana não estava preocupada com missão
entre os gentios, mas sim em manter sua identidade judaica, pois sofria perseguição em Antioquia
(cf. SIM, David C. The Matthean Community and the Gentile World. In: The Gospel of Matthew
and Christian Judaism: The History and Social Setting of the Matthean Community, p. 215-256;
Idem. The Gospel of Matthew and the Gentiles. JSNT 57 (17.3, 1995), p. 19-48).
75
HAGNER, Donald A. Matthew: Apostate, Reformer, Revolutionary? NTS 49.2 (2003), p. 193-
209; aqui p. 193.
76
SENIOR, D. Between Two Worlds: Gentile and Jewish Christians in Matthew’s Gospel. CBQ
61.1 (1999), p. 1-23.
273
77
CARTER, Warren. Matthew and Empire: Initial Explorations, p. 20-53.
78
Ibidem, p. 57. Cf. também a caracterização de Jesus como “o agente da presença salvadora de
Deus” em CARTER, Warren. Matthew: Storyteller, Interpreter, Evangelist, p. 167-185.
79
Daí o título de sua obra: Matthew: Storyteller, Interpreter, Evangelist, 2004.
80
Ibidem, p. 66-91.
274
teana acerca da história da salvação o Reino de Deus foi retirado de Israel.84 Essa
proposição foi rebatida, por exemplo, por Meier.85
Isto posto, podemos afirmar que, de um modo geral, era de se esperar a di-
ficuldade em se definir a etnia do autor mateano, bem como se o conteúdo de sua
obra se caracteriza por ser “judaico” ou “gentílico”: ela reflete a complexidade
cultural do I século d.C., o qual, conforme já apresentado neste trabalho, era um
mundo dominado pela cultura helênica mas com diversas tensões religiosas e cul-
turais convivendo lado a lado. Para os judeus, a tensão maior se dava entre juda-
ísmo e helenismo; em lugar algum, mesmo nas comunidades judaicas da diáspora,
havia a possibilidade de se passar incólume a tais tensões e influências.
A comunidade mateana, de qualquer forma (mais judaica ou gentílica), era
um grupo que buscava se distanciar das formas de vida inerentes ao império, mas
ao mesmo tempo participava das relações sociais por meio de atividade missioná-
81
Idem. Matthew and the Gentiles: Individual Conversion and/or Systemic Transformation? JSNT
26.3 (2004), p. 259-282.
82
BYRNE, Brendan. The Messiah in Whose Name “The Gentiles Will Hope” (Matt 12:21): Gen-
tile Inclusion As an Essential Element of Matthew’s Christology. ABR 50 (2002), p. 55-73; HARE,
Douglas R.A. How Jewish is the Gospel of Matthew? CBQ 62.2 (2000), p. 264-277. Cf. também a
réplica de David Sim em SIM, D. C. Matthew and the Gentiles: A Response to Brendan Byrne.
ABR 50 (2002), p. 74-79.
83
BALABANSKI, Vicky. Mission in Matthew against the Horizon of Matthew 24. NTS 54.2
(2008), p. 161-175; aqui p. 175.
84
HARE, Douglas R. A.; HARRINGTON, D. J. Make Disciples of All the Gentiles (Mt 28:19).
CBQ 37.3 (1975), p. 359-369.
85
MEIER, John P. Nations or Gentiles in Matthew 28:19? CBQ 39.1 (1977), p. 94-102.
275
ria com o intuito de implantação do Reino de Deus, vivendo assim uma ambiva-
lência social.86 Sua situação lembra, guardadas as devidas proporções, a ambiva-
lência social enfrentada pela comunidade de Daniel no período intertestamentário:
tinha que viver sob domínio estrangeiro e ao mesmo tempo se manter fiel às suas
tradições sociais e religiosas. Negar que tanto o judaísmo quanto o mundo gentíli-
co estejam presentes no Evangelho de Mateus é reducionismo.
Como um todo, o texto mateano afirma que Jesus de Nazaré é o Messias
judaico, filho de Davi, o Filho do Homem da tradição apocalíptica, o Emanuel da
tradição profética, o que cumpre as profecias das Escrituras Hebraicas. Muitos ju-
deus, especialmente seus líderes, erraram quando deixaram de reconhecer Jesus
como o Messias durante seu ministério terreno. O Reino escatológico prometido já
despontou com a vida, morte e, especialmente, com a ressurreição do Cristo.
v. 51b
E a terra foi sacudida 51b kaiV h& gh~~ e*seivsqh
e as rochas foram fendidas, 51b’ kaiV ai& pevtrai e*scivsqhsan,
v. 52
e os sepulcros foram abertos, 52a kaiV taV mnhmei~a a*newv/cqhsan
e muitos corpos dos santos que 52b kaiV pollaV swvmata tw~~n kekoimh-
haviam dormido mevnwn a&givwn
se levantaram, 52c h*gevrqhsan,
v. 53
e, tendo saído dos sepulcros a- 53a kaiV e*xelqovnteς e*k tw~~n mnhmeivwn
pós a ressurreição dele, metaV thVn e!gersin au*tou~~
entraram na cidade santa 53b ei*sh~~lqon ei*ς thVn a&givan povlin
e apareceram a muitos. 53c kaiV e*neφanivsqhsan polloi~~ς.
e*geivrw (“levantar”, “despertar”) é substituída por h*gevrqh (3ª pes. sg.) nos códi-
ces Alexandrino (A, século V), Efraimita (C, século V), Washingtoniano (W, sé-
culo IV ou V) e no Texto Majoritário (Ï, o texto que é apoiado pelos manuscritos
que pertencem ao tipo bizantino, do século VI em diante). Por outro lado, a forma
h*gevrqhsan escolhida pelos editores está presente nos códices Sinaítico (, século
IV), Vaticano (B, século IV), Beza (D, séculos V e VI), Régio (L, século VIII),
Korideto (Q, século IX), nas famílias dos minúsculos 1 (f1, minúsculos copiados
entre os séculos XII-XIV) e 13 ( f13, copiados entre os séculos XI e XIII), no mi-
núsculo 33 (século IX), no 579 (século XIII), em outros manuscritos que divergem
do texto majoritário (al) e em Orígenes (Or, III século). Assim:
pelo qual o evangelista decidiu inseri-lo precisamente neste ponto de seu evange-
lho. A natureza enigmática da passagem estimula o potencial especulativo de in-
terpretações que, em muitos casos, atribuem maior importância ao texto do que ele
realmente comporta. Quanto menos o evangelista se expressou, maior o espaço
para os diferentes modos de associações interpretativas.90
89
Com a adição do advérbio e*kei~~ (“ali”) em 27,55, Mateus reforça a conexão das mulheres (v. 55-
56) com a aclamação do centurião no v. 54.
90
Entre os estudos mais antigos especificamente sobre essa perícope de Mateus estão HUTTON,
D. The Resurrection of the Holy Ones (Mt 27, 51-53): A Study of the Theology of the Matthean
Passion Narrative (1970); SENIOR, D. Escatologia e soteriologia nella passione secondo Matteo:
Il significado di Mt 27,51-53. In: AA.VV. La sapienza della croce oggi: atti del Congresso
internazionale, Roma, 13-18 ottobre 1975, p. 95-105. Volume I: La sapienza della croce nella
rivelazione e nell’ecumenismo; SENIOR, D. The Death of Jesus and the Resurrection of the Holy
Ones (Mt 27:51-53). CBQ 38.3 (1976), p. 312-329; RIEBL, M. Auferstehung Jesu in der Stunde
seines Todes? Zur Botschaft von Mt 27,51b-53 (1978); AGUIRRE MONASTERIO, R. Exégesis de
Mateo, 27,51b-53: para una teología de la muerte de Jesús en el evangelio de Mateo (1980);
WENHAM, J. W. When Were the Saints Raised? A Note on the Punctuation of Matthew xxvii. 51-
3. JTS 32.1 (1981), p. 150-152; HILL, D. Matthew 27:51-53 in the Theology of the Evangelist. IBS
7.2 (1985), p. 76-87; SENIOR, D. Matthew's Special Material in the Passion Story: Implications
for the Evangelist’s Redactional Technique and Theological Perspective. ETL 63.4 (1987), p. 272-
294; WITHERUP, D.R. The Death of Jesus and the Raising of the Saints: Matthew 27:51-54 in
Context. SBLSP 26 (1987), p. 574-585. Entre os estudos mais recentes, estão WÜTHRICH, Serge.
Naître de mourir: la mort de Jésus dans l’Évangile de Matthieu (Mt 27.51-56). NTS 56.3 (2010), p.
313-325; HERZER, Jens. Auferstehung und Weltende als Rätsel? Zur Funktion und Bedeutung
von Mt 27,51b-53 im Kontext der matthäischen Jesus-Erzählung. In: BOETTRICH, C. (Ed.).
Evangelium ecclesiasticum: Matthaeus und die Gestalt der Kirche, Festschrift für Christoph
Kaehler zum 65. Geburtstag, p. 51-68 (2009); WATERS, Sr., K. L. Matthew 27:52-53 As Apoca-
lyptic Apostrophe: Temporal-Spatial Collapse in the Gospel of Matthew. JBL 122.3 (2003), p. 489-
515; TROXEL, Ronald L. Matt 27.51-4 Reconsidered: Its Role in the Passion Narrative, Meaning
and Origin. NTS 48.1 (2002), p. 30-47; SENIOR, D. Revisiting Matthew’s Special Material in the
Passion Narrative: A Dialogue with Raymond Brown. ETL 70.4 (1994), p. 417-424.
278
91
NOLLAND, John. The Gospel of Matthew: A Commentary on the Greek Text, p. 1211.
92
Cf., por exemplo, Mt 2,9; 3,16; 4,11; 7,4; 8,2; 12,10; 15,22; 17,3; 19,16; 26,51; 28,2 dentre ou-
tras ocorrências.
93
Segundo Bonnard, em Mateus o centurião “é tomado de pânico e medo por ter ofendido o deus
dos judeus”, além de presenciar os eventos cósmicos (cf. BONNARD, Pierre. L’Évangile selon
Saint Matthieu, p. 407).
279
presente para o imperfeito, pois Jesus acaba de morrer). Assim, o impulso confes-
sional de Mc 15,39 é ampliado através da reformulação das palavras do centurião
expressa na confissão fundamental dos discípulos em Mt 14,33, acrescentando o
elemento de medo para com a manifestação de poder divino (o que, aliás, é co-
mum no texto de Mateus (cf. Mt 17,6; 28,8).94
Kingsbury observa que o uso do passado h\n na confissão dos soldados a-
ponta para o fato de que a morte de Jesus na cruz marca o término de sua atividade
terrena.95 Essa tese estaria em acordo com a perspectiva de avaliação do ministério
de Cristo na narrativa mateana, pois é na cruz que o Cristo salva seu povo pagando
pelos seus pecados (Mt 26,28: “Pois este é o meu sangue, o sangue do pacto, o
qual é derramado por muitos para remissão dos pecados”).96
Em relação ao significado geral dos sinais, quase todos os estudiosos con-
cordam que a abertura dos túmulos e a ressurreição dos santos são adições cruciais
feitas por Mateus. Os outros sinais ou são preparatórios (o terremoto e a divisão
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94
SENIOR, D. The Passion Narrative According to Matthew: A Redactional Study, p. 326-327.
95
Cf. KINGSBURY, J. D. Jesus As Story, p. 89-90.
96
David Sim discorda: para ele, o uso do passado em 27,54 implica que os militares consideram a
morte de Cristo como o fim de toda a sua história, e não de seu ministério terreno. O desconheci-
mento do Cristo por parte deles levaria a supor suas palavras como negação, e não como afirmação
da continuidade da obra do Cristo (SIM, D. C. The ‘Confession’ of the Soldiers in Mt 27:54. HeyJ
34.4 (1993), p. 401-424; aqui p. 417). Neste artigo, Sim rejeita a posição tradicional de que os sol-
dados ficaram atemorizados em vista dos sinais apocalípticos ocorridos após a morte de Cristo,
bem como a ideia de que eles representam a conversão dos gentios; para ele, “os soldados na cruz,
os quais são explicitamente identificados por Mateus como os espancadores e algozes de Jesus, são
personagens maus durante toda a narrativa da paixão. Seu reconhecimento aterrorizado de Jesus
como Filho de Deus evidencia o sentimento de culpa e de concessão de derrota em face do divino,
e prenuncia a atitude dos ímpios no dia do julgamento” (Ibidem, p. 422).
97
Brown observa que “àquela quadra Mateus de próprio punho adicionou o v. 53 (um verso visi-
velmente mais próximo do estilo próprio de Mateus) para estender o simbolismo escatológico à
Páscoa e conectá-lo à própria ressurreição de Jesus” (cf. BROWN, R. E. Extraordinary Physical
280
Reactions to Jesus’ Death in Matthew. In: GALVIN, J. P. (Ed.). Faith and the Future: Studies in
Christian Eschatology, p. 54-67; aqui p. 66).
98
Cf. SCHENK, Wolfgang. Der Passionsbericht nach Markus: Untersuchungen zur Überliefe-
rungsgeschichte der Passionstraditionen, p. 75; cf. também SENIOR, D. The Passion Narrative
According to Matthew, p. 316-317.
99
RIEBL, M. Auferstehung Jesu in der Stunde seines Todes? Zur Botschaft von Mt 27,51b-53, p.
55; AGUIRRE MONASTERIO, R. MONASTERIO, R. Exégesis de Mateo, 27,51b-53, p. 60-61.
100
Cf. SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Matthäus, p. 337; LUZ, Ulrich. Matthew 21-
28: A Commentary, p. 561.
101
Cf. WENHAM, J. W. When Were the Saints Raises? A Note on the Punctuation of Matthew
xxvii. 51-3. JST 32.1 (1981), p. 150-152.
281
Por outro lado, em seu estudo de Mateus, Schenk opta pela leitura de
au*tou~~ em sentido adverbial em vez de pronome possessivo, como ocorre em Mt
26,36 (kaqivsate au*tou~~, “sentai-vos aqui”). Essa leitura, ele assevera, alivia um
pouco a obscuridade do atraso entre a ressurreição dos santos e a sua aparição em
Jerusalém.104
Entretanto, a tensão introduzida por essa frase advém de considerações teo-
lógicas da narrativa de Mateus, ou seja, o evangelista deseja conectar a ressurrei-
ção dos santos com a morte de Jesus e, ao mesmo tempo, assegurar a primazia da
ressurreição de Jesus. Dado o aspecto essencialmente teológico e simbólico por
parte de Mateus em toda a perícope, a questão da diferença cronológica entre a
ressurreição dos santos e sua aparição em Jerusalém não é uma preocupação do
evangelista e não precisar ser “resolvida” através de fundamentos linguísticos.
Certamente, a redação no v. 53a tem por objetivo harmonizar a estranha
102
Este termo está empregado simplesmente para expressar coordenação (em oposição à subordi-
nação ou hipotaxe), sem levar em conta a omissão de conjunções coordenativas como prescreve o
conceito básico e tradicional de parataxe. Assim, o sentido do termo neste trabalho é o da simples
“justaposição por oposição à subordinação e à coordenação” (cf. DUBOIS, Jean et al. Dicionário
de linguística, p. 456).
103
WENHAM, J. W. Op. cit. p. 151.
104
Cf. SCHENK, W. Die Sprache des Matthäus: die Text-Konstituenten in ihren makro-und
mikrostrukturellen Relationen, p. 232.
282
que se destacam. Primeiro, há cinco verbos nos aoristo passivo: e*seivsqh (“foi sa-
cudida”, 51b), e*scivsqhsan (“foram fendidas”, 51b’), a*new/vcqhsan (“foram aber-
tos”, 52a), h*gevrqhsan (“se levantaram”, 52c) e e*neφanivsqhsan (“fizeram-se
visíveis”, “apareceram”, 53c). Além disso, imediatamente antes, ainda no v. 51,
aparece e*scivsqh (“foi rasgado”) e logo após, no v. 54 e*φobhvqhsan (“se ame-
drontaram”), perfazendo sete formas verbais. Todas expressam respostas divinas
ao acontecimento da morte de Jesus, sendo denominadas pelos estudiosos de pas-
sivo divino: por trás de cada passivo está o agente divino efetuando a ação dos
verbos. A sequência verbal também apresenta uma sequência de “efeitos” com o
intuito de apresentar a morte de Jesus como o clímax do evangelho.
Outra característica gramatical digna de nota é o uso dos antônimos
e*xelqovnteς (“tendo saído”, 53a) e ei*sh~~lqon (“entraram”, 53b) para descrever as
ações dos santos. Essa antonímia realça ainda mais a diferença radical entre os
túmulos e a cidade santa. Pela morte de Jesus, os santos foram literalmente capa-
zes de deixar a morte e entrar na vida da cidade santa.
No início da perícope, o evangelista descreve que “e a terra foi sacudida”
(kaiV h& gh~~ e*seivsqh, 51b). Como em Mt 28,2, o terremoto (seismovς) introduz um
105
Esse aparente intervalo de dois dias entre a ressurreição dos santos e sua entrada em Jerusalém
gerou também muitas especulações acerca de “onde” e “o que” esses ressuscitados teriam feito
neste espaço de tempo (cf. infra).
283
ramente abaixo do solo, cuja abertura era coberta com uma pedra grande em forma
de disco. O tremor de terra serviu para dividir essas rochas e abrir as tumbas. Con-
forme notado acima, é significativo que o mesmo artifício é usado pelo evangelis-
ta posteriormente: outro terremoto acompanha outra abertura de túmulo em Mt
28,2.
O termo a@gioi (“santos”, 52b) não é usado em nenhuma outra parte do E-
vangelho de Mateus com referência a pessoas. Mateus usa preferencialmente o
termo divkaioς (“justo”);108 neste caso, certamente o evangelista considera os ter-
mos sinônimos,109 e o uso de a@gioi neste caso pode revelar vocabulário não-
mateano para a perícope. Esses santos já “haviam dormido” (52b), certamente
uma metáfora para a morte.110 Seu despertar no momento em que Jesus cumpre
sua missão da chegada do Reino Escatológico lembra Dn 7,18.111
O termo swvmata (“corpos”, 52b) revela que o evangelista está se referindo
a uma ressurreição literal do corpo, certamente uma referência física neste contex-
106
Mt 28,2 registra: “E eis que houvera um grande terremoto; pois um anjo do Senhor descera do
céu e, chegando-se, removera a pedra e estava sentado sobre ela”.
107
Cf. adiante.
108
Cf. por exemplo Mt 5,45; 9,13; 10,41; 13,17.43.49; 23,29, dentre outros.
109
Cf. LUZ, Ulrich. Matthew 21-28: A Commentary, p. 567.
110
Cf. o uso de koimavw (“dormir”, “adormecer”) na LXX, com referência à morte, especialmente
no contexto da expectativa de ressurreição, em OEPKE, A. koimavw. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT,
p. 438. v. 3.
111
Dn 7,18 registra: “Os que receberão o reino são os santos do Altíssimo, e eles conservarão o
reino para sempre, de eternidade em eternidade” (grifo nosso).
284
to.112 Já o uso de pollav (“muitos”, 52b) revela que, a exemplo de Dn 12,2, não se
trata de uma ressurreição geral, e nem de todos os “santos que haviam dormido”,
mas sim daqueles que importavam para a teologia e o propósito da narrativa de
Mateus: os justos e profetas injustiçados e martirizados citados ao longo do evan-
gelho mateano.113
Em 52c, h*gevrqhsan (“se levantaram”) traz a questão do tipo de ressurrei-
ção que esses santos teriam experimentado: seria definitiva ou teriam de passar
pela morte novamente? Waters faz distinção entre ressurreição e reanimação na
Escritura:
Nas reanimações sempre há pelo menos três partes envolvidas: Deus, a pessoa
morta, e o humano através do qual Deus ressuscita os mortos... a reanimação é
sempre o despertar de um único indivíduo. Além disso, na reanimação a pessoa
reanimada acaba morrendo novamente. Na ressurreição não há três partes... ape-
nas Deus e a pessoa morta... e a pessoa morta não morre novamente... Embora te-
114
nham havido várias reanimações, só pode haver apenas uma ressurreição.
algum das Escrituras dentro de uma normatização que crie “regras para diferenci-
ação entre ressurreições e reanimações”. Em Mt 27,52 o contexto deixa claro que
a ressurreição dos santos prefigura a ressurreição escatológica; a perícope deixa
claro também que a ressurreição do próprio Jesus é a referência para a dos santos
que dormem, não sendo plausível imaginar que o evangelista fizesse distinções
dessa natureza entre elas. Deve-se ressaltar ainda que no judaísmo do I século d.C.
não havia a crença em qualquer ressurreição corporal que não fosse a ressurreição
universal no final dos tempos.
Em 53a, dentro da sentença considerada uma adição (metaV thVn e!gersin
au*tou~~), o termo e!gersiς (no sentido de “levantar-se da morte”, “ressurreição”) é
um hapax legomenon dentro não só do Evangelho de Mateus, mas também de to-
do o NT. Esse termo estranho ao evangelista reforçaria a tese de uma adição. Ele
normalmente usa a*navstasiς para “ressurreição” (cf. Mt 22,23ss), mas usa o pas-
sivo do cognato e*geivrw para a ressurreição de Jesus (cf. 16,21; 17,23; 20,19;
26,32; 27,63; 28,6), o que mostra que o significado na raiz não lhe era estranho.
Outro termo não usual para o evangelista é verbo e*mφanivzw (“aparecer”) em
112
Cf. o uso e as nuanças deste termo em SCHWEIZER, E.; BAUMGÄRTEL, A. sw~~ma. In: KIT-
TEL, G. (Ed.). Op. cit., p. 1024-1091. v. 7.
113
Cf. argumentação adiante.
114
WATERS, Kenneth L., Sr. Matthew 27:52-53 As Apocalyptic Apostrophe: Temporal-Spatial
Collapse in the Gospel of Matthew. JBL 122.3 (2003), p. 489-515; aqui p. 493.
285
53c;115 normalmente ele usa φaivnw (cf. Mt 1,20; 2,7.13.19; 13,26) ou o médio-
passivo de o&ravw (cf. 17,3; 24,30) para expressar essa noção.116 A exemplo do uso
de a@gioi citado supra, essa diferença estilística certamente se deve ao material
especial que o evangelista utiliza como fonte para a perícope.117
Em 53b se afirma que os santos ressuscitados entraram na a&givan povlin
(“cidade santa”). Embora em algumas ocasiões a literatura apocalíptica do NT usa
essa designação em referência a um lugar escatológico, paradisíaco, contraponto
da Jerusalém terrena (como no Apocalipse), nas diversas ocorrências na LXX e na
literatura intertestamentária o termo designa a Jerusalém terrestre.118 Muito prova-
velmente é essa literatura que o evangelista e seus leitores têm em mente. Além
disso, dado o contexto de Mateus, a designação deve ser entendida primeiramente
em referência à Jerusalém da época do evangelista.
Tomada como um todo, a forma abreviada da perícope atesta a sua impor-
tância dentro do contexto mateano da morte de Jesus. A “ressurreição dos santos”
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115
Segundo Liddell & Scott, a raiz e*mφan- (“aparecer”) é uma reminiscência das aparições de deu-
ses em forma corpórea e de heróis (Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 549).
116
NOLLAND, John. The Gospel of Matthew: A Commentary on the Greek Text, p. 1215.
117
Cf. adiante.
118
Cf. por exemplo Is 66,20; 1Mc 2,7; 2Mc 1,12; 3,1; 9,14 e 15,14.
119
SENIOR, D. Escatologia e soteriologia nella passione secondo Matteo: Il significado di Mt
27,51-53. In: AA.VV. La sapienza della croce oggi: atti del Congresso internazionale, Roma, 13-
18 ottobre 1975, p. 95-105; aqui p. 104. v. 1.
120
Idem. The Death of Jesus and the Resurrection of the Holy Ones (Mt 27:51-53). CBQ 38.3
(1976), p. 312-329; aqui p. 314; WENHAM, D. The Resurrection Narratives in Matthew’s Gospel.
TynBul 24 (1973), p. 21-54; aqui p. 42-46.
286
121
SCHENK, Wolfgang. Der Passionsbericht nach Markus: Untersuchungen zur Überliefe-
rungsgeschichte der Passionstraditionen, p. 71-78.
122
Cf. HERZER, Jens. Auferstehung und Weltende als Rätsel? Zur Funktion und Bedeutung von
Mt 27,51b-53 im Kontext der matthäischen Jesus-Erzählung. In: BOETTRICH, C. (Ed.).
Evangelium ecclesiasticum: Matthaeus und die Gestalt der Kirche, Festschrift für Christoph
Kaehler zum 65. Geburtstag, p. 51-68; aqui p. 55.
123
LOYMEYER, Ernst. Das Evangelium des Matthäus, p. 395, n. 2. Recentemente, Davies e Alis-
son enxergaram paralelismo semelhante (cf. DAVIES, W. D.; ALLISON, D. C., Jr. ICC, p. 628. v.
3).
287
se, onde a expressão metaV thVn e!gersin au*tou~~ (“após a ressurreição dele”, 53a),
adicionada para manter a prioridade da própria ressurreição de Cristo, elimina o
kaiv conjuntivo original na sexta frase (53b) e muda a forma finita e*xhvlqon na
quinta frase (53a) para o particípio e*xelqovnteς.
O acréscimo de a&giavn antes de povllin na sexta frase (53b) seria fruto da
ação redacional do evangelista (cf. Mt 4,5), a exemplo de pollav diante de swvmata
(cf. Mt 9,10; 10,31; 13,17; 24,11) e de tw~~n kekoimhmevnwn a&givwn após esse ter-
mo (cf. Mt 28,13) na quarta frase (52b).
Dessa forma, uma série de acontecimentos são narrados sob o estilo de pa-
rataxe em Mt 27,51b-53.
Hutton também nota a forma de parataxe rítmica de toda uma série de tex-
tos apocalípticos na LXX, como Jl 2,10; 3,4 e Am 8,9-10.124 O mesmo padrão
também pode ser encontrado em passagens do Apocalipse (cf. Ap 6,12-14; 11,17-
19; 16,18-21).
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Pode-se também levar em conta o estilo próprio de Mateus. Embora ele ge-
ralmente evite parataxe, existem alguns exemplos em que ele a utiliza, precisa-
mente nos casos em que uma série de eventos ou ações está sendo descrita, exa-
tamente como nos exemplos da LXX citados supra. É essa qualidade peculiar (u-
ma série de eventos rápidos narrada de maneira ofegante) que corrobora para a
forma estereotipada de Mt 27,51b-53. Por exemplo, em Mt 7,25 um padrão idênti-
co surge na versão do redator acerca da casa construída sobre a areia:
1. kaiV katevbh h& brochv (E desceu a chuva)
2. kaiV h\lqon oi& potamoiv (E vieram os rios)
124
HUTTON, D. The Resurrection of the Holy Ones (Mt 27, 51-53): A Study of the Theology of the
Matthean Passion Narrative, p. 102-103.
288
peu contra aquela casa”). Outros exemplos são encontrados ao longo de Mateus.125
Esses exemplos demonstram que Mateus às vezes escolhe descrever uma
série de eventos que acontecem numa sequência rápida amarrando verbos e frases
em conjuntos em forma de parataxe. Assim, a forma de parataxe presente em
27,51b-53 não é uma anomalia ao padrão redacional próprio de Mateus, ou seja, é
plausível que a redação seja do próprio evangelista, mesmo que a tenha efetuado a
partir de tradição anterior. Dessa forma, a necessidade de se detectar uma fonte
literária para 27,51b-53 torna-se menos obrigatória. O evangelista foi capaz de
exprimir em imagens apocalípticas típicas e em forma de parataxe a série empol-
gante de sinais que, segundo ele, são desencadeados por ocasião da morte de Je-
sus. O que se sobressai nessas imagens apocalípticas é justamente o sinal da res-
surreição dos santos que dormem.
Assim, quanto à estilística, podemos afirmar que o padrão redacional para
o material de 27,51b-53 é definido pela narração do primeiro evento da série: o
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125
Cf. Mt 2,11-12; 4,23-25; 9,35; 11,4-5; 15,31; 17,27; 21,33 (cf. Mc 12,1); 24,9b-12; 25,35-
39.42-44; e 27,29-31.
289
tisfatória para a razão por que qual Mateus teria inserido esta pequena narração
exatamente neste ponto de sua narrativa.
Segundo Senior, as hipóteses sobre a origem de Mt 27,51b-53 podem ser
resumidas nas seguintes alternativas: a) uma antiga tradição de “descida ao infer-
no” que teria emergido também em 1Pd 3,19 e nos credos primitivos; b) um frag-
mento de uma primitiva narrativa pascal anterior à tradição sinótica; c) uma tradi-
ção concernente à ressurreição de Jesus que, independentemente de Mateus, tam-
bém teria emergido no Evangelho de Pedro; d) uma tradição que Mateus extraiu,
quer direta ou indiretamente, do Evangelho de Pedro; e) um hino apocalíptico ju-
daico ou judaico-cristão, ou texto litúrgico; f) uma composição do próprio evange-
lista criada a partir do AT e de material apocalíptico judaico do período intertes-
tamentário.126 Como se vê, a maior parte dos estudos procurou a origem da adição
de Mateus em uma tradição. Nenhum deles, entretanto, levantou a hipótese da tra-
dição advir do ciclo de Daniel.
Além das hipóteses da crítica da fonte, existem paralelos tradicionais que
desempenham importante papel na interpretação da perícope, conforme citado su-
pra, presentes tanto no judaísmo primitivo quanto no mundo greco-romano (por
exemplo, Virgílio no poema Geórgica I, 466-497, o qual menciona um terremoto,
126
SENIOR, Donald. Matthew's Special Material in the Passion Story: Implications for the Evan-
gelist’s Redactional Technique and Theological Perspective. ETL 63.4 (1987), p. 272-294; aqui p.
278.
290
127
Há também uma aparição dos mortos na conquista de Alexandria pelos romanos relatada por
Dio Cássio LI: 17,5, bem como uma história semelhante em Ovídio (Metamorfoses VII, 2,205).
128
Cf. Jz 5,4; 2Sm 22,8; Sl 68,9; Is 5,25; 24,18; Jr 4,23; 8,16; Ez 38,19; T. Lev 3,9; 1En 1,3-8.
129
Cf. Zc 14,4-5; 1En 1,6; 51,4.
130
HUTTON, D. The Resurrection of the Holy Ones (Mt 27 51-53): A Study of the Theology of the
Matthean Passion Narrative , especialmente p. 161-173. Tese de Doutorado não publicada defen-
dida na Universidade de Harvard em 1970 e consultada pelo autor desta tese in loco (Harvard Di-
vinity School, em 06 de agosto de 2009).
131
O Ev Pd 10,34-42 assinala: “(34) No início da manhã, quando o sábado amanheceu, veio uma
multidão de Jerusalém e da região ao redor para ver o sepulcro que havia sido lacrado. (35) Ora, na
noite em que o dia do Senhor alvoreceu, quando os soldados, dois a dois em cada turno, estavam
de guarda, ressoou uma alta voz no céu, (36) e viram os céus abertos e dois homens de lá descem
em um grande brilho e iluminam a noite no sepulcro. (37) Aquela pedra que havia sido colocada
junto à entrada do sepulcro começou por si mesma a rolar e mover-se para o lado, e o sepulcro foi
aberto, e ambos os jovens entraram nele. (38) Quando os soldados viram isso, despertaram o centu-
rião e os anciãos – pois eles também estavam lá para ajudar na vigilância. (39) E enquanto eles
estavam relatando o que tinham visto, viram novamente três homens saírem do sepulcro, e dois
deles sustentando o outro, e uma cruz os seguindo, (40) e as cabeças dos dois alcançando o céu,
mas a daquele que era conduzido por eles pela mão atravessava os céus. (41) E eles ouviram uma
voz dos céus gritando: ‘Tu pregaste aos que dormem?’, (42) e da cruz foi ouvida a resposta:
‘Sim’”; cf. a tradução em WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God, p. 593-594 (Chris-
tian Origins and the Question of God, v. 3). O tema dessa “pregação aos que dormem” poderia ser
a ressurreição; porém, não há evidência da ressurreição deles no Evangelho de Pedro.
291
Crossan vai além de Hutton: ele acredita que o Evangelho de Pedro não
somente representa uma tradição independente e anterior aos Sinóticos, mas estes
próprios (especificamente Mt 27,51b-53) extraíram material a partir daquele: a
narrativa do estremecimento da terra quando o corpo de Jesus é colocado sobre ele
(no Ev Pd 7,21) representaria uma versão mais integrada e antiga da tradição à
qual Mateus adaptou com dificuldades à sua narrativa.132
Embora aparentemente atraente, a hipótese de Mateus ter se servido da
mesma tradição presente no Evangelho de Pedro é pouco convincente. As diferen-
tes funções do material em cada relato depõem contra os paralelos estabelecidos
por Hutton. A função dos anjos no Evangelho de Pedro é, em última análise, abrir
o túmulo para a ressurreição de Jesus (Ev Pd 10,37), ao passo que em Mateus a
função do anjo é parte do esforço do evangelista para desacreditar uma explicação
contrária à da ressurreição (Mt 27,62-66). O anjo em Mateus remove a pedra de
entrada do túmulo mas Jesus já não estava lá: seu objetivo é mostrar o túmulo va-
zio às mulheres (cf. 28,2.6). Em 28,5 ele aparece como um porta-voz celestial cuja
presença e mensagem ratificam o anúncio cristão da ressurreição, desarmando a
polêmica judaica que aparentemente ainda confrontava a comunidade mateana.133
132
CROSSAN, J. D. Four Other Gospels: Shadows on the Contours of Canon, p. 141-142.
133
Cf. NEIRYNCK, F. Les femmes au tombeau: Étude de la rédaction Matthéenne. NTS 15.2
(1969), p. 168-190; aqui p. 174-175. De fato, em Mt 28,6 o anjo afirma que “ele ressuscitou, como
292
terial da tradição presente no apócrifo. A citação dos “santos que haviam dormi-
do” no texto de Mateus tem um paralelo muito tênue com a tradição representada
no apócrifo de Pedro. No Ev Pd 10,41 a voz celestial proclama o Senhor ressusci-
tado como alguém que “deve ter pregado aos que dormem”; mas não há qualquer
referência à ressurreição desses ouvintes. Em Mt 27,52-53 a ressurreição dos san-
tos é o principal sinal que acompanha a morte de Jesus.
Assim, a utilização deste sinal pelo evangelista em sua narrativa da paixão
pode ser examinada de forma mais plausível a partir de uma tradição que leve em
conta a função desse material dentro da narrativa de Mateus.
Em seu comentário sobre a narrativa da paixão em Marcos (mais antigo
que o comentário de Mateus), Schenk considerou a perícope de Mateus como sen-
do um hino da apocalíptica judaica, o qual descreve a ressurreição dos mortos na
era final. Ele condensou sua análise em duas frentes: a forma de hino pode ser de-
tectada no estilo de parataxe de Mt 27,51b-53 e a origem do hino estaria enraizada
numa especulação judaica sobre o tema da ressurreição de Ez 37,1-14. Assim, ele
assinalou que uma fonte muito mais potencial para o material de Mateus em
havia dito”, uma ênfase peculiar a Mateus e em evidente contraste com o falso testemunho de Mt
27,63 (“aquele impostor, quando ainda vivo, afirmou...”).
134
Cf. SENIOR, D. The Passion Narrative According to Matthew: A Redactional Study, p. 247-
248.
293
135
SCHENK, Wolfgang. Der Passionsbericht nach Markus: Untersuchungen zur Überliefe-
rungsgeschichte der Passionstraditionen, p. 74-83 (1974).
136
Para o tratamento específico desse tema, cf. WISCHNITZER-BERNSTEIN, Rachel. The Con-
ception of the Resurrection in the Ezekiel Panel of the Dura Synagogue. JBL 60.1 (1941), p. 43-55;
GRASSI, J. Ezekiel XXXVII, 1-14 and the New Testament. NTS 11.2 (1965), p. 162-164. No a-
fresco, uma figura messiânica é o agente através do qual a mão de Deus parece revigorar os ossos
secos. O cenário para a cena é o Monte das Oliveiras. Há também evidências de um terremoto (pa-
ra a reprodução do painel e uma discussão detalhada acerca de sua interpretação no judaísmo, cf.
AGUIRRE MONASTERIO, R. Exégesis de Mateo, 27,51b-53: para una teología de la muerte de
Jesús en el evangelio de Mateo, p. 72-97).
137
SCHENK, Wolfgang. Die Sprache des Matthäus: die Text-Konstituenten in ihren makro-und
mikrostrukturellen Relationen, p. 210 (1987).
138
WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God, p. 633 (Christian Origins and the Ques-
tion of God, v. 3). Cf. discussão adiante.
294
139
RIEBL, M. Auferstehung Jesu in der Stunde seines Todes? Zur Botschaft von Mt 27,51b-53, p.
60; AGUIRRE MONASTERIO, R. Op. cit. p. 98-108.
140
Ibidem, p. 50-52.
141
RIEBL, M. Op. cit. p. 56-57.
142
Ibidem, p. 57, n. 4.
143
AGUIRRE MONASTERIO, R. Op. cit. p. 75-76.
295
Monte das Oliveiras durante a chegada de Deus para o julgamento das nações i-
nimigas de Jerusalém.147 A analogia se daria também pela tradução da LXX (a úl-
tima parte do v. em Zc 14,5 registra: kaiV h@xei kuvrioς o& qeovς mou kaiV pavnteς
oi& a@gioi met’ au*tou~~, “Então virá o Senhor meu Deus, e todos os santos com e-
le”). Em contraste, Ez 37 menciona o retorno do povo somente “para a terra de
Israel” (37,12) e, assim, não explicaria de maneira satisfatória todos os motivos
presentes na perícope de Mateus 27.
Davies e Allison, por exemplo, acreditam que haja mais influência na perí-
cope de Mateus a partir de Zc 14,4-5 pela tradução da LXX do que a partir de Da-
niel ou Ezequiel. Eles argumentam que o linguajar da perícope é mateano e que
“os motivos têm os seus antecedentes no AT e não exigem uma história pré-
mateana na igreja; e a interpretação do fim de Jesus em categorias escatológicas é
congruente com a teologia do redator. Entretanto, junto com a maioria [dos co-
144
Cf. CARMONA, A. Rodríguez. La resurrección en el Targum Palestinense: aportación al vo-
cabulario y fórmulas de la resurrección en el Nuevo Testamento, p. 73.
145
Ibidem, p. 74-75.
146
Zc 14,4-5 registra: “Naquele dia, estarão os seus pés sobre o monte das Oliveiras, que está dian-
te de Jerusalém, na parte oriental. O monte das Oliveiras se rachará pela metade, e surgirá do ori-
ente para o ocidente um enorme vale. Metade do monte se desviará para o norte, e a outra para o
sul. Fugireis do vale de minhas montanhas, pois o vale das montanhas atingirá Jasol; fugireis como
fugistes por causa do terremoto nos dias de Ozias, rei de Judá. E Iahweh, meu Deus, virá, todos os
santos com ele”.
147
Segundo Ulrich Luz, havia muitos túmulos de profetas na área do Monte das Oliveiras (cf.
LUZ, Ulrich. Matthew 21-28: A Commentary, p. 562, n. 16).
296
148
DAVIES, W. D.; ALLISON, D. C., Jr. ICC, p. 629. v. 3.
149
Ibidem, p. 634.
150
SCHLATTER, Adolf. Der Evangelist Matthäus: seine Sprach, seine Ziel, seine Selbstständig-
keit. Ein Kommentar zum ersten Evangelium, p. 785. v. 2 (cf. também, do mesmo autor, Das
Evangelium nach Matthäus, p. 276-277). Segundo Schlatter, “os dias da ressurreição foram prova-
velmente vivenciados pelo círculo dos discípulos não só posteriormente, mas já desde o início,
como o sinal do dia do Senhor, como o começo da ressurreição individual” (Idem. Der Evangelist
Matthäus, p. 785. v. 2).
151
BROWN, R. The Death of the Messiah: From Gethsemane to the Grave, p. 1126. v. 2. Em con-
cordância com ele, David Sim afirma que o episódio representa uma “cena do julgamento prolépti-
co” (Cf. SIM, D. The Gospel of Matthew and Christian Judaism: The History and Social Setting of
the Matthean Community, p. 226).
152
Ibidem, p. 1137-1140. v. 2.
153
Essa tese de que todo o v. 53 seria originalmente de redação mateana parece pouco provável. É
indiscutível que a expressão “após a ressurreição dele” (53a) é contraditória aos versos que a pre-
cedem, como demonstrado supra. Entretanto, a proposição da ressurreição dos santos que haviam
dormido também presente no v. 53a (“e, tendo saído dos sepulcros”) já está presente em 52bc (“e
muitos corpos dos santos que haviam dormido se levantaram”). Portanto, muito provavelmente
essa proposição já fazia parte da antiga tradição acerca da ressurreição dos “santos” que serviu de
fonte para o evangelista, tornando a hipótese da adição do v. 53 como um todo pouco plausível. A
dúvida que se impõe é se a fonte do redator mateano foi um texto estabelecido ou uma tradição
oral. No entanto, temos elementos para propor que a tradição foi a do ciclo de Daniel, conforme
verificamos neste trabalho, certamente já fixada por escrito.
297
justificação e confissão. A redação da cena por parte de Mateus pode ser entendi-
da como uma exploração desta estrutura... A expansão de 27,51b-53 por meio da
tradição de Ezequiel e o coro da fé por parte dos soldados ecoam a conclusão tri-
unfal do Sl 22 e até mesmo refletem a primitiva apocalíptica que parece emergir
158
na parte final do Salmo (22,28-32).
160
SCHMID, Josef. Das Evangelium nach Matthäus, p. 370-371.
161
Ibidem, p. 367.
162
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento, p. 438-439.
163
Ibidem, p. 310.
164
LUZ, Ulrich. Matthew 21-28: A Commentary, p. 561.
165
Ibidem, p. 562.
299
Waters discorre sobre Mt 27,52-53 como sendo o mesmo tipo de profecia apoca-
líptica que é encontrada em textos do Apocalipse (como o capítulo 21 e seu con-
texto); para ele, “o Apocalipse pode fornecer uma chave hermenêutica para seções
obscuras do Mateus apocalíptico, particularmente Mt 27,52-53”.169 Em relação à
origem da narrativa, C. S. Keener, embora não entendendo a perícope como apo-
calíptica, sugere que, pelo fato de Mateus não retirar esses sinais de Marcos, “o
estilo desses versos sugerem que ele [o redator] segue uma outra fonte pré-
Mateana, a qual era ‘circulante nos meios populares’”.170
Serge Wüthrich assinala que a perícope marca uma ruptura geográfica e
temporal em relação ao que vinha sendo narrado pelo evangelista. Usando a análi-
se semiótica, ele assinala que ocorre um afastamento temporal proléptico em dire-
166
De LEEUW, V. Infernos. Descida aos. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 730-731; aqui
p. 731.
167
KUERZINGER, J. Infernos (descida aos). In: BAUER, J. B. (Ed.). DTB, p. 517-522. v. 1; aqui
p. 519. Para uma investigação sobre o desenvolvimento dessa tradição, cf. ROBINSON, J. N. Des-
cent into Hades. In: BUTTRICK, G. A. (Ed.). IDB, p. 826-828. v. 1.
168
HERZER, J. Auferstehung und Weltende als Rätsel? Zur Funktion und Bedeutung von Mt
27,51b-53 im Kontext der matthäischen Jesus-Erzählung. In: BOETTRICH, C. (Ed.). Evangelium
ecclesiasticum: Matthaeus und die Gestalt der Kirche, Festschrift für Christoph Kaehler zum 65.
Geburtstag, p. 51-68.
169
WATERS, K. L., Sr. Matthew 27:52-53 As Apocalyptic Apostrophe: Temporal-Spatial Col-
lapse in the Gospel of Matthew. JBL 122.3 (2003), p. 489-515; aqui p. 501.
170
KEENER, Craig S. A Commentary on the Gospel of Matthew, p. 685.
300
que dormem no pó da terra acordarão” (Dn 12,2a), e isso a partir do texto de Da-
niel na LXX. Para a perícope como um todo, ele afirma que o “ponto de partida
natural” é Ez 37,12-13, e que Is 26,19 faria eco pela sentença “os teus mortos tor-
narão a viver, os teus cadáveres ressurgirão” (Is 26,19a), ambos também a partir
da LXX. Já Hagner afirma que “o ressuscitar dos santos dos túmulos nesta passa-
gem é um fragmento de teologia estabelecido como história”;176 para o back-
ground da perícope mateana, ele assinala influência tanto do texto de Isaías quanto
de Dn 12,2, mas principalmente de Ezequiel: “Podemos, portanto, considerar a
passagem como um fragmento de apocalíptica realizada e historicizada na depen-
dência de motivos do AT encontrados em passagens como Is 26,19, Dn 12,2 e,
especialmente, Ez 37,12-14”.177
Troxel afirma que o próprio evangelista compôs a perícope com base em
1En 93,6, e seu objetivo não foi sinalizar o início de uma nova era, mas sim levar
171
WÜTHRICH, Serge. Naître de mourir: la mort de Jésus dans l’Évangile de Matthieu (Mt 27.51-
56). NTS 56.3 (2010), p. 313-325; aqui p. 319-320.
172
Ibidem, p. 320-322.
173
NOLLAND, John. The Gospel of Matthew: A Commentary on the Greek Text, p. 1214.
174
Ibidem, p. 1214-1215.
175
WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God, p. 633 (Christian Origins and the Ques-
tion of God, v. 3).
176
HAGNER, Donald A. Matthew 14-28, p. 851. v. 2 (Word Biblical Commentary, 33).
177
Ibidem.
301
185
Aqui, mais uma vez, o termo é usado no sentido da motivgeschichte (“história dos motivos”).
303
sinótica.
186
MEIER, J. P. Salvation-History in Matthew: In Search of a Starting Point. CBQ 37.2 (1975), p.
203-215 (para uma perspectiva diferente da visão de Mateus acerca da história da salvação, cf.
KINGSBURY, J. D. The Structure of Matthew’s Gospel and His Concept of Salvation-History.
CBQ 35.4 (1973), p. 451-474.