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Dionísio Oliveira Soares

A apocalíptica no Zoroastrismo, Judaísmo e Cristianismo


Uma análise das relações entre o Avesta, Dn 12,1-3 e Mt 27,51b-53
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710454/CA

quanto à ideia da ressurreição

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Teologia Bíblica da PUC-Rio como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor em Teologia.

Orientador: Isidoro Mazzarolo

Volume II

Rio de Janeiro
Abril de 2011
Dionísio Oliveira Soares

A Apocalíptica no Zoroastrismo, Judaísmo e Cristianismo


Uma análise das relações entre o Avesta, Dn 12,1-3 e Mt 27,51b-53
quanto à ideia da ressurreição

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau


de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Teologia do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710454/CA

Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências


Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.

Prof. Isidoro Mazzarolo


Orientador
Departamento de Teologia – PUC-Rio

Profª. Maria de Lourdes Corrêa Lima


Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Geraldo Dondici Vieira


Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Edgard Leite Ferreira Neto


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Prof. Ricardo Lengruber Lobosco


Instituto Metodista Bennett

Profª. Denise Berruezo Portinari


Coordenadora Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro
de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 12 de abril de 2011


Todos os direitos reservados. É proibida a
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da universidade, do autor e do
orientador.

Dionísio Oliveira Soares


Graduou-se em Teologia pela FABAT (Faculdade
Batista do Rio de Janeiro, antigo STBSB–RJ),
turma de 1998. Licenciou-se em Letras Clássicas
pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de
Janeiro) em 2002. Obteve o título de Mestre em
Teologia pela PUC-Rio em março de 2006.
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Ficha Catalográfica

Soares, Dionísio Oliveira


A apocalíptica no zoroastrismo, judaísmo e
cristianismo: uma análise das relações entre o
Avesta, Dn 12,1-3 e Mt 27,51b-53 quanto à
ideia da ressurreição / Dionísio Oliveira
Soares ; orientador: Isidoro Mazzarolo. –
2011.
2 v. ; 30 cm

Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2011.
Inclui bibliografia

1. Teologia – Teses. 2. Ressurreição. 3.


Zoroastrismo. 4. Judaísmo e cristianismo
primitivo. 5. Literatura apocalíptica. 6.
Exegese. 7. Livro do Avesta. 8. Daniel e
Evangelho de Mateus. I. Mazzarolo, Isidoro. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

CDD: 200
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Para Cynthia, Isaque, Daniel e Ágatha,


baluartes na execução desta tarefa.
Agradecimentos

Ao Criador, Senhor da vida, pela oportunidade, capacidade e força.

À minha amada esposa, Cynthia, e aos meus filhos Isaque, Daniel e Ágatha, pela
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paciência, compreensão e incentivos.

Ao meu orientador, Professor Dr. Isidoro Mazzarolo, pela confiança, motivação e


acompanhamento na realização desta empreitada.

À CAPES e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais a realização desta


tarefa teria se tornado inviável.

Ao Dr. John J. Collins e à Drª. Adela Yarbro Collins, da Yale Divinity School,
pelo acolhimento, orientação segura, confiança e aulas ministradas.

À Drª. Victoria Hoffer, da Yale Divinity School, pelas aulas de Hebraico e a


orientação de grande valia.

Aos professores da Comissão Examinadora, bem como aos demais professores e


funcionários do Departamento de Teologia, pelo ensino e auxílio prestados.

Aos amigos Sílvio Simões, Jorge Leite, Ana Valdez e Kimberly Mines, com suas
respectivas famílias, cujo apoio durante a minha jornada no exterior foi
inestimável; que a eternidade os retribua.
Resumo

Soares, Dionísio Oliveira; Mazzarolo, Isidoro. A apocalíptica no


Zoroastrismo, Judaísmo e Cristianismo: uma análise das relações
entre o Avesta, Dn 12,1-3 e Mt 27,51b-53 quanto à ideia da
ressurreição. Rio de Janeiro, 2011. 387p. Tese de Doutorado –
Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.

É já notório o conhecimento de que o legado da cultura persa no período


pós-exílico do judaísmo não pode ser desprezado, especialmente no final deste
período, quando o gênero literário apocalíptico estava florescendo. A presente tese
analisa a ressurreição individual no que tange às possíveis relações entre a religião
persa e o judaísmo intertestamentário, bem como o cristianismo primitivo. Para
tanto, o trabalho começa verificando as origens e desdobramentos do fenômeno
apocalíptico. Em seguida, focaliza as conexões literárias que poderiam revelar as
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ligações entre persas e judeus: a tradição do Avesta antigo (especialmente o Yasna


30,7 e o Yasht 19.11.89) é cotejada com o texto de Daniel 12,1-3. Posteriormente,
a possível conexão entre Daniel 12,1-3 e Mateus 27,51b-53 é analisada. O
objetivo da tese é verificar em que medida o texto de Daniel refletiria um
desenvolvimento dentro do judaísmo a partir do contato com a apocalíptica
iraniana, bem como em que medida a origem da tradição presente na perícope
mateana refletiria a ressurreição individual a partir da tradição de Daniel. A
despeito das características próprias de cada texto, os pontos de contato são
bastante plausíveis a partir do marco social, gênero literário e objetivo dos textos,
especialmente entre Daniel e Mateus. A perícope mateana revelaria uma tradição
daniélica, na qual a ressurreição foi vista como uma recompensa aos judeus que
morreram em virtude da justiça divina. Como o redator em Daniel, o evangelista
revela uma comunidade em conflito, agora com o judaísmo formativo; ela deixa
transparecer uma crença em um reino messiânico que atende à expectativa de uma
era escatológica que se inicia justamente na morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Palavras-chave

Ressurreição; zoroastrismo; judaísmo e cristianismo primitivo; literatura


apocalíptica; exegese; livro do Avesta; Daniel e Evangelho de Mateus.
Abstract

Soares, Dionísio Oliveira; Mazzarolo, Isidoro (Advisor). The Apocalyptic


in Zoroastrianism, Judaism and Christianity: the relations between
The Avesta, Dn 12:1-3 and Mt 27:51b-53 regarding to the resurrection
idea. Rio de Janeiro, 2011. 387p. Ph.D. Dissertation – Departamento de
Teologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

It is well known that the legacy of the Persian culture in the Jewish post-
exilic period cannot be despised, mainly in the end of this period, just when the
apocalyptic literary genre was flourishing. This thesis analyzes the individual
resurrection regarding to the possible relationships between the Persian religion
and the intertestamental Judaism, as well as the Early Christianity. So, the work
begins by reviewing the origins and development of apocalyptic phenomenon.
Then, it focalizes on the literary links that could reveal the connections between
Persian and Jews: the tradition of the Old Avesta (notably the Yasna 30:7 and the
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Yasht 19:11.89) is collated with the text of Daniel 12:1-3. Afterward, the possible
connection between Daniel 12:1-3 and Matthew 27:51b-53 takes place. The aim of
this work is to ascertain the extent to which the text of Daniel would reflect a
development within the Judaism based on the apocalyptic Iranian features. After
this, verify the extent to which the origin of the tradition revealed by the Matthean
pericope would reflect the individual resurrection from the tradition of Daniel. In
spite of the own features of each text, the contact points are quite likely from the
social setting, literary gender and the aim of the texts, mainly between Daniel and
Matthew. The Matthew’s pericope would reveal a tradition drawn from danielic
tradition, where the resurrection was seen as a reward to the Jews who died
because of the divine righteousness. Like the editor of the text in Daniel, the
evangelist reveals a community in conflict, now with the formative Judaism. His
community presents a belief in a messianic kingdom that meets the expectation of
an eschatological era that begins with the death and resurrection of Jesus Christ.

Keywords

Resurrection; Zoroastrianism; Judaism and Early Christianity; apocalyptic


literature; exegesis; The Book of the Avesta; Daniel and Gospel of Matthew.
Sumário

1. Introdução 18

2. O fenômeno apocalíptico: a expressividade pelo gênero literário 41


2.1. Taxonomia e definições 41
2.2. O discurso apocalíptico 59
2.3. Função e marco social 65
2.4. A experiência visionária 83
2.5. O fenômeno da pseudonímia 85
2.6. Origens e influências 91
2.6.1. As relações com o profetismo e a sabedoria 91
2.6.2. Tradições clássicas e do antigo Oriente Próximo 111
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3. O Zoroastrismo: apocalíptica, ressurreição e contatos com o


Judaísmo primitivo 119
3.1. Zoroastro e sua religião 120
3.1.1. Os fundamentos da religião de Zoroastro 120
3.1.2. As Escrituras Sagradas do Zoroastrismo 123
3.1.3. As ideias fundamentais 130
3.2. A apocalíptica zoroastriana e as evidências de ressurreição 133
3.2.1. A tradição tardia 133
3.2.2. As tradições apocalípticas no Avesta original e as
repercussões no chamado Avesta Mais Novo 138
3.2.3. As evidências de autores gregos e latinos 144
3.3. Apocalíptica iraniana e judaica 156
3.3.1. A questão das conexões entre a literatura iraniana e a
judaica 156
3.3.2. As interações político-culturais no chamado Judaísmo do
Segundo Templo 174

4. Daniel e a ressurreição a partir do Oriente antigo 184


4.1. A fenomenologia do pós-morte no Oriente antigo, na Grécia
arcaica e helenística 184
4.2. A vida no pós-morte durante o Judaísmo antigo 204
4.3. A ressurreição nos textos do AT e nos apocalípticos judaicos 214
4.4. O livro de Daniel e a questão da ressurreição 224
4.4.1. Questões literárias e relativas ao contexto social 224
4.4.2. A narrativa da ressurreição em Dn 12,1-3: a tradução 238
4.4.3. A crítica textual 239
4.4.4. Principais aspectos linguísticos e históricos do texto 244

5. Apocalíptica e Novo Testamento: a ressurreição no Cristianismo


primitivo e o relato de Mt 27,51b-53 252
5.1. As concepções do pós-morte na época de Cristo 252
5.2. O Evangelho de Mateus e o relato de 27,51b-53 269
5.2.1. Questões literárias e relativas ao contexto social 269
5.2.2. O texto de Mt 27,51b-53: a tradução 275
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5.2.3. A crítica textual 275


5.2.4. Principais aspectos linguísticos do texto 276
5.2.5. A origem do material especial de Mateus e seu significado
no contexto do Evangelho 289

6. As relações temáticas entre a tradição do Avesta, Dn 12,1-3 e


Mt 27,51b-53 quanto à ressurreição individual 304
6.1. A tradição do Avesta e o texto de Dn 12,1-3 304
6.2. Dn 12,1-3 e o texto de Mt 27,51b-53 321

7. Conclusão 332

8. Referências bibliográficas 341


8.1. Bíblias 341
8.2. Versões antigas 341
8.3. Edições críticas e textos primários 341
8.4. Dicionários, léxicos e enciclopédias 342
8.5. Periódicos, teses e dissertações 344
8.6. Congressos e obras em geral 360
Lista de tabelas

Tabela 1 – As Escrituras Sagradas do Zoroastrismo 129

Tabela 2 – Estrutura frequente das visões nos apocalipses judaicos


históricos 226

Tabela 3 – Comparação de Dn 12,2 no TM e na LXX de Ziegler 241

Tabela 4 – Variante textual em Mt 27,52 segundo Nestle-Aland 276

Tabela 5 – Proposta de leitura variante em Mt 27,51b-53 280

Tabela 6 – Frases concisas na base original de Mt 27,51b-53 286


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Tabela 7 – Estilo de parataxe em Mt 7,25 287

Tabela 8 – O texto de Mt 23,32-36 cotejado com Lc 11,49-51 323

Tabela 9 – O texto de Mt 23,29-31 cotejado com Lc 11,47-48 327


Abreviaturas e siglas

AA.VV. ̶ Vários autores


AB ̶ Dictionnaire grec-français, de Anatole Bailly
ABD ̶ Anchor Bible Dictionary
ABR ̶ Australian Biblical Review
a.C. ̶ antes de Cristo
amp. ̶ ampliada
ANET ̶ Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament
ANRW ̶ Aufstieg und Niedergang der römischen Welt
aor. ̶ aoristo
APOT ̶ The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament
Ap Sy Br ̶ Apocalipse Siríaco de Baruque
apud ̶ em, junto a (citado por, segundo)
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AT ̶ Antigo Testamento
aufl. ̶ Auflage (edição)
ausg. ̶ Ausgabe (edição)
BASOR ̶ Bulletin of the American Schools of Oriental Research
BCE ̶ Before the Common Era
Bd. ̶ Bundahishn (Grande)
BEThL ̶ Bibliotheca Ephemeridum Theologicarum Lovaniensium
BHS ̶ Bíblia Hebraica Stuttgartensia
Bib ̶ Biblica (Roma)
BibInt ̶ Biblical Interpretation
BJ ̶ Bíblia de Jerusalém
BR ̶ Biblical Research
2Br ̶ 2 Baruque
BS ̶ Bibliotheca Sacra
BSOAS ̶ Bulletin of the School of Oriental and African Studies
BYt. ̶ Bahman Yasht
CAH ̶ The Cambridge Ancient History
CBQ ̶ The Catholic Biblical Quarterly
Cf. ̶ Conferir, conforme, comparar, confrontar
CHCL ̶ The Cambridge History of Classical Literature
CHI ̶ The Cambridge History of Iran
CHJ ̶ The Cambridge History of Judaism
col. ̶ coluna
Coord. ̶ Coordenador
CQ ̶ The Classical Quarterly
CgQ ̶ The Congregational Quarterly
CurBS ̶ Currents in Biblical Research
3d ̶ Third edition
d.C. ̶ depois de Cristo
DEB ̶ Dicionário Enciclopédico da Bíblia
DITAT ̶ Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento
DITNT ̶ Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento
Dk. ̶ Dinkard
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DLNTD ̶ Dictionary of the Later New Testament & Its Developments


DSD ̶ Dead Sea Discoveries
DTB ̶ Dicionário de Teologia Bíblica
DTMAT ̶ Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamento
DTT ̶ Dansk Teologisk Tidsskrift
durc. ̶ durchgesehene (revista)
ed. ̶ editor, editores, edição, edizione
edn. ̶ edition
1En ̶ 1 Enoque
eng., enl. ̶ enlarged (ampliada)
4Esd ̶ 4 Esdras
EST ̶ Escola Superior de Teologia
EstBib ̶ Estudos Bíblicos (Vozes)
Estbíb ̶ Estudios Bíblicos (Madri)
EstTh ̶ Estudos Teológicos
et al. ̶ et alii (e outros: coautores ou tradutores)
ETL ̶ Ephemerides Theologicae Lovanienses
Ev Pd ̶ Evangelho de Pedro
EvQ ̶ The Evangelical Quarterly
fasc. ̶ fascicle
fr. ̶ francês
frg. ̶ fragmento
HAL ̶ Hebräisches und Aramäisches Lexicon zum Alten Testament
HELOT ̶ Hebrew and English Lexicon of the Old Testament
HR ̶ History of Religions
HeyJ ̶ The Heythrop Journal
HTR ̶ Harvard Theological Review
HvTSt ̶ Hervormde Teologiese Studies
HUCA ̶ Hebrew Union College Annual
IBB ̶ Imprensa Bíblica Brasileira
IBS ̶ Irish Biblical Studies
Ibidem ̶ no mesmo lugar (da mesma obra citada anteriormente)
ICC ̶ The International Critical Commentary
IDB ̶ Interpreter’s Dictionary of the Bible
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IDBSup ̶ Interpreter’s Dictionary of the Bible Supplementary Volume


Idem ̶ o mesmo (autor)
IEJ ̶ Israel Exploration Journal
imp. ̶ impression
Int ̶ Interpretation
JA ̶ Journal Asiatique
JAAR ̶ Journal of the America Academy of Religion
JAOS ̶ Journal of the American Oriental Society
JBL ̶ Journal of Biblical Literature
JBQ ̶ Jewish Bible Quarterly
JCOI ̶ Journal of the K.R. Cama Oriental Institute
JCS ̶ Journal of Cuneiform Studies
JETS ̶ Journal of the Evangelical Theological Society
JianD ̶ Jian Dao: A Journal of Bible and Theology
JJS ̶ Journal of Jewish Studies
JNES ̶ Journal of Near Eastern Studies
JRC ̶ Listening: Journal of Religion and Culture
JSJ ̶ Journal for the Study of Judaism in the Persian, Hellenistic
and Roman Period
JSNT ̶ Journal for the Study of the New Testament
JSOT ̶ Journal for the Study of the Old Testament
JSP ̶ Journal for the Study of the Pseudepigrapha
JSS ̶ Journal of Semitic Studies
JTS ̶ The Journal of Theological Studies, New Series
KuD ̶ Kerygma und Dogma
L. Jub ̶ Livro dos Jubileus
Loc. cit. ̶ Loco citato (no mesmo local: página (s) de texto já citada (s)
pouco antes)
LS ̶ Louvain Studies
LSJ ̶ A Greek-English Lexicon
LTP ̶ Laval Théologique et Philosophique
LXX ̶ Septuaginta, editada por Alfred Rahlfs
4Mc ̶ 4 Macabeus
MG ̶ Materia Giudaica
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n. ̶ nota
NCB ̶ A New Concordance of the Bible
2nd ̶ second (edition, impression)
Neotest ̶ Neotestamentica
NIB ̶ The New Interpreter’s Dictionary of the Bible
NLH ̶ New Literary History
NovT ̶ Novum Testamentum
NT ̶ Novo Testamento
NTA ̶ New Testament Apocrypha
NTG ̶ Novum Testamentum Graece
NTS ̶ New Testament Studies
NVI ̶ Nova Versão Internacional
Op. cit. ̶ Opus citatum (obra citada na mesma página da tese ou na
página anterior)
Org. ̶ Organizador, organizadores
O. Sal ̶ Odes de Salomão
OTP ̶ The Old Testament Pseudepigrapha
p. ̶ página (s)
par. ̶ paralelos (textos)
pass. ̶ passivo
passim ̶ aqui e ali (citado em vários lugares da mesma obra)
pes. ̶ pessoa
PIBA ̶ Proceedings of the Irish Biblical Association
pl. ̶ plural
PR ̶ Pálavi Rivayat que Acompanha o Dadestan î Denig
PRSt ̶ Perspectives in Religious Studies
4Q491 ̶ Manuscrito da quarta gruta de Hirbet Qumran
QH ̶ Qumran Hodayot
QR ̶ Quarterly Review
RB ̶ Revue Biblique
RBI ̶ Rivista Biblica Italiana
3rd ̶ third (edition)
repr. ̶ reprinted, republicado (em)
rev. ̶ revista, revisada, revised
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RHPR ̶ Revue D’histoire et de Philosophie Religieuses


RHR ̶ Revue de L’histoire des Religions
RSB ̶ Ricerche Storico Bibliche
RSLRF ̶ Rivista di Storia e Letteratura Religiosa Firenze
s, ss ̶ seguinte (s): verso (s), página (s)
SBE ̶ The Sacred Books of the East
SBL ̶ Society of Biblical Literature
SBLSP ̶ Society of Biblical Literature Seminar Papers
s/d ̶ Sem data (de publicação)
sg. ̶ singular
sic ̶ assim mesmo (conforme original)
Sl Sal ̶ Salmos de Salomão
ST ̶ Studia Theologica
STJ ̶ Scottish Journal of Theology
STR ̶ Sewanee Theological Review
SVTQ ̶ St. Vladimir’s Theological Quarterly
t. ̶ tomo
T. Bj ̶ Testamento de Benjamin
TDNT ̶ Theological Dictionary of the New Testament
4th ̶ Fourth
ThEH ̶ Theologische Existenz Heute
ThWAT ̶ Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament
T. Jud ̶ Testamento de Judá
T. Lev ̶ Testamento de Levi
TM ̶ Texto Massorético
T. Mos ̶ Testamento de Moisés
transc. ̶ transcription
transl. ̶ translation, translated
translit. ̶ transliteration, transliterated
TynBul ̶ Tyndale Bulletin
v. ̶ verso (s), versículo (s), volume (s)
Vd. ̶ Vendidad
VT ̶ Vetus Testamentum
VTSup ̶ Vetus Testamentum, Supplements
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WZ ̶ Wizidagiha î Zadspram
Y. ̶ Yasna
Yt. ̶ Yasht
ZAW ̶ Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft
ZThK ̶ Zeitschrift für Theologie und Kirche
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Quando esta Âramaiti (a Devoção dos santos personificada) se aproximou, com


ela veio o Soberano Poder, a Boa Mente e a Justa Ordem. E (para as criações
espirituais do bem e do mal) Âramaiti deu um corpo, ela, a eterna e sempre
vigorosa. E para estes (Teu povo), para permitir que (este corpo) seja (eterno), ó
Mazda, como ele era quando Tu chegaste primeiro com a criação!
Yasna 30,7

  


E muitos daqueles que dormem no pó da terra acordarão, uns para vida eterna, e
outros para a censura, para repulsa eterna.
Daniel 12,2

KaiV taV mnhmei~a a*newv/cqhsan kaiV pollaV swvmata tw~~n kekoimhmevnwn a&givwn
h*gevrqhsan
E os sepulcros foram abertos, e muitos corpos dos santos que haviam dormido se
levantaram.
Mateus 27,52
1. Introdução

A verificação de contatos da cultura e religião persas com o Judaísmo do


Segundo Templo é já analisada há muito, especialmente na literatura apocalíptica
judaica intertestamentária. Os conceitos judaicos de vida após a morte, ressurrei-
ção e expectativas acerca do final dos tempos, por exemplo, sofreram considerá-
veis modificações. Essas modificações teriam criado uma nova perspectiva acerca
do reino messiânico, especialmente a partir do livro de Daniel, incluindo a ressur-
reição, primeiramente dos mártires judeus. Essas modificações levaram os cristãos
primitivos a duas perspectivas diferentes em relação à implantação desse reino,
uma mais “histórica” e outra de cunho mais “escatológico”. A primeira seria mais
condizente com a tradição judaica, um reino implantado em sequência a outros
reinos na história humana, e a segunda reflete um reino em outra dimensão tempo-
ral, abrangendo todo o cosmos.
Sabe-se que a expectativa provocada pelo desconhecimento do futuro a
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partir da morte está presente já nas mais antigas civilizações, moldando ideias que
foram se adaptando a novas formas de conceber a questão. Pelo estudo da História
Comparada das Religiões, sabe-se hoje que Israel, desde sua formação, não foi
uma espécie de povo santo, isolado das demais nações em termos políticos e só-
cio-culturais; ao contrário, ele interagiu com esses povos assimilando conceitos e,
muitas vezes, adaptando-os. O javismo, por si só, estabeleceu seus pressupostos,
inclusive éticos, com conotações positivas ou negativas, a partir do contato com a
cultura e o imaginário religioso de seus vizinhos e predecessores. Alguns autores
admitem que os antigos israelitas, ao registrarem seus textos, não estavam tão pre-
ocupados com o futuro no pós-morte; seu interesse se concentrava principalmente
na vida presente, focando seu relacionamento de fé com Iahweh, diferentemente
de seus vizinhos.1
Apesar disso, ao longo das Escrituras Hebraicas encontram-se textos que
remetem ao pós-morte, textos esses que merecem apreciação adiante, devendo ser
tratados individualmente. Para tanto, deve-se efetuar também uma análise das
concepções acerca do tema presentes na literatura dos predecessores e vizinhos de
Israel. A temática da vida no pós-morte envolve conceitos que não podem ser tra-

1
Cf., por exemplo, JOHNSTON, P. S. Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament,
p. 69: “A vida em si mesma era o ponto de partida e o foco da fé de Israel, ao passo que a morte e
suas consequências traziam pouca preocupação”.
19

tados de forma isolada, mas sim como parte integrante das sociedades e culturas
em que surgiram e se desenvolveram. O tema normalmente vem à tona no bojo do
fenômeno apocalíptico.
Quanto a esse fenômeno e sua expressividade, iniciou-se uma nova era na
pesquisa acadêmica desde a declaração de Ernst Käsemann de que a “apocalíptica
é a mãe de toda a teologia cristã”2 e o artigo de Wofhart Pannenberg sobre revela-
ção e compreensão histórica do judaísmo e cristianismo.3 Questões sobre defini-
ções, taxonomia e fenômenos que envolvem a apocalíptica se seguiram, com
Klaus Koch4, Hanson e Vielhauer5 e John J. Collins.6
Assim, todos esses trabalhos tiveram como auge o clássico Apocalypticism
in the Mediterranean World and the Near East,7 com trinta e três artigos divididos
em três seções: “The Phenomenon of Apocalypticism”; “The Literary Genre of
Apocalypses”, e “The Sociology of Apocalypticism and the ‘Sitz im Leben’ of
Apocalypses”. Os trabalhos nesta obra descreveram e analisaram quase todas as
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questões relativas ao estudo da literatura apocalíptica na antiguidade, introduzin-


do, assim, o mundo acadêmico definitivamente no tema em toda sua complexida-
de. Estudiosos de gerações anteriores tendiam a ignorar ou negligenciar a literatu-
ra apocalíptica, considerando-a tardia. Em verdade, durante muito tempo os escri-
tos apocalípticos foram tratados como esotéricos e de difícil compreensão. Somen-
te no século passado começaram a ter sua importância investigada. Essa importân-
cia cresceu na medida em que foi sendo constatada a grande participação desses
escritos na formação do pensamento cristão, com sua influência nas crenças e ex-
pectativas do judaísmo tardio e, por conseguinte, do cristianismo primitivo, sendo
os livros intertestamentários o principal exemplo disso.
Interessante notar também que o interesse pela literatura apocalíptica nor-
malmente cresce em tempos de crise, como aconteceu após a Primeira Guerra

2
KÄSEMANN, Ernst. Die Anfänge christlicher Theologie. In: ZThK 57 (1960), p. 162-185; aqui
p. 180.
3
PANNENBERG, W. Dogmatische Thesen zur Lehre von der Offenbarung. In: Offenbarung als
Geschichte, p. 91-114.
4
KOCH, Klaus. The Rediscovery of Apocalyptic, 1972 (original alemão em 1970).
5
HANSON, Paul D. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological Roots of Early
Jewish Apocalyptic Eschatology, 1975 (2. ed. em 1979); VIELHAUER, Philipp. História da litera-
tura cristã primitiva: introdução ao Novo Testamento, aos Apócrifos e aos Pais Apostólicos, p.
513-555 (original alemão em 1975).
6
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination: An Introduction to Jewish Apocalyptic Literature,
1984 (2. ed. em 1998).
7
HELLHOLM, David (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East: Pro-
ceedings of the International Colloquium on Apocalypticism, Uppsala, August 12-17, 1979 (Se-
gunda edição ampliada com bibliografia complementar em 1989).
20

Mundial, assim como no primeiro século da Era Cristã (sob o domínio do Império
Romano) e também na época macabaica da história de Israel (II século a.C.).
Assim, vários fatores contribuíram para o renascer do interesse pela apoca-
líptica, como a disponibilidade de novos textos (por exemplo, os manuscritos en-
contrados em Qumran),8 o reconhecimento pelos teólogos em geral da importância
da apocalíptica no estudo teológico9 (ao contrário do pequeno valor dado ao tema
no século XIX), ajudando na compreensão não só da profecia do AT, mas também
dos Evangelhos e epístolas neotestamentárias, e a afinidade com o mundo moder-
no, em que incertezas, temores e tentativas de predizer o futuro, tudo calcado em
crises sociopolíticas e religiosas, lembram circunstâncias de escritos apocalípticos.
Atualmente se reconhece que a apocalíptica representa um desdobramento signifi-
cativo no judaísmo intertestamentário, sendo fator importante para a compreensão
do contexto histórico e teológico do NT, sobretudo em relação às crenças de teor
escatológico e messiânico.
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Uma das tendências nos estudos modernos é mudar o foco sobre a literatu-
ra apocalíptica: do papel de resistência cultural desempenhado pelos textos (enfo-
que dado do início da segunda metade do século XX até a década de 1980) para as
experiências visionárias descritas nos textos (da década de 1990 em diante). Não
se pode esquecer, porém, de que em muitos casos a experiência do visionário está
em conexão com a resistência cultural pretendida pelo autor do texto, como repre-
sentante de um grupo. Assim, a ênfase em enxergar a apocalíptica como literatura
de resistência tem, recentemente, ganhado proeminência de novo.
Russell foi um dos pioneiros em afirmar que o gênero apocalíptico “era,
essencialmente, um fenômeno literário que emergiu no judaísmo durante o domí-
nio do rei selêucida Antíoco Epífanes (175-163 a.C.)”.10 Sobre a designação do
gênero, ele assinala que:
A palavra “apocalíptico” é derivada do substantivo grego apokalypsis, que signi-
fica “revelação”. Entretanto, seu uso, com referência a esse gênero de literatura, é
devido com toda probabilidade não ao caráter revelatório dos livros em questão,

8
Nas análises que já foram feitas no material encontrado em Qumran, fica clara uma estreita afini-
dade entre essa comunidade e outros grupos apocalípticos que deram origem a esse material. No
caso de Daniel, por exemplo, foram encontrados pelo menos “sete manuscritos qumrânicos do li-
vro de Daniel, o que certamente acusa sua apreciação entre os membros da comunidade” (RUS-
SELL, D. S. Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica, p. 23). O mesmo ocor-
reu com outros livros do período intertestamentário, como o Livro dos Jubileus (fragmentos de
pelo menos dez manuscritos) e 1 Enoque (material de dez manuscritos aramaicos diferentes).
9
Além de E. Käsemann e W. Pannemberg, citados acima, pode-se acrescentar, dentre outros, Jür-
gen Moltmann.
10
RUSSELL, D. S. Apocalyptic: Ancient and Modern, p. 3.
21

mas preferivelmente ao fato de que eles têm muito em comum com o Apocalipse
do Novo Testamento, com seu linguajar esotérico, sua imaginação bizarra e seus
pronunciamentos relativos à consumação de todas as coisas em cumprimento das
promessas de Deus.11

A antiga rejeição aos estudos apocalípticos resultou, em parte, de um dese-


jo de associar judaísmo e cristianismo a um estágio anterior, não “contaminado”
com temas e teologias que envolvessem a apocalíptica.12 Quando objeto de aten-
ção, os apocalipses eram normalmente considerados não mais do que repositórios
de tradições midráxicas, sendo raramente estudados como literatura religiosa.13
Eles eram considerados “deficientes” por seu escopo imaginativo, demasiadamen-
te obcecados pelo fim do mundo e com um forte dualismo moral que demonizava
seus inimigos e promovia autojustificação entre seus adeptos.14 Além disso, quase
todos os apocalipses antigos não foram inseridos nos cânones judeu ou cristão na
Antiguidade, e muitos deles, marginalizados na tradição manuscrita, estiveram
perdidos até os séculos XVIII e XIX. Após a redescoberta de muitos textos, essa
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divisão das obras em canônicas e não-canônicas, pautada em justificação teológi-


ca, relegou a maioria dos apocalipses à categoria de “pseudepígrafos” e caracteri-
zou o seu estudo: houve uma “época de ouro” na segunda metade do século XIX e
início do XX, seguida por cinco ou seis décadas de aparente negligência, para, en-
tão, a partir da década de 1970, chegar-se a uma completa redescoberta de interes-
se.15
Assim sendo, não é de se admirar que em 1971 ainda se escrevesse: “Para

11
Ibidem. Em nível corrente, palavras como “apocalipse” e “apocalíptica” são, modernamente,
encontradas em temas de novelas, filmes e até em jogos de computador, sempre envoltas em tra-
mas de indescritível terror e derramamento de sangue; nesse aspecto, resumem a ideia de “catástro-
fe absoluta” e “colapso total” da sociedade, indicando completa destruição do gênero humano e
devastação por guerra nuclear do planeta Terra. Afora isso, a apocalíptica tem uma mensagem que,
reinterpretada na forma dos modelos contemporâneos e culturais, pode ser de extrema relevância
para o mundo atual (Cf. RUSSELL, D. S. Desvelamento divino, p. 16).
12
CROSS, F. Moore. New Directions in the Study of Apocalyptic. In: FUNK, Robert W. (Ed.)
Apocalypticism, p. 157-165; aqui p. 159-160; GRABBE, Lester L. Poets, Scribes, or Preaches? The
Reality of Prophecy in the Second Temple Period. In: GRABBE, L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing
the End from the Beginning: The Prophetic, the Apocalyptic and Their Relationships, p. 192-215;
aqui p. 193-197.
13
STONE, M. E. On Reading an Apocalypse. In: COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H.
(Ed.). Mysteries and Revelations: Apocalyptic Studies since the Uppsala Colloquium, p. 65-78;
aqui p. 78.
14
COLLINS, J. J. Apocalyptic Literature. In: PERDUE, Leo G. (Ed.). The Blackwell Companion
to the Hebrew Bible, p. 432-447; aqui p. 432-437.
15
CHARLESWORTH, J. H. A History of Pseudepigrapha Research: The Re-Emerging Impor-
tance of the Pseudepigrapha. ANRW II.19.1 (1978), p. 54-88; Idem. The Old Testament Pseudepi-
grapha and the New Testament: Prolegomena for the Study of Christian Origins, p. 6-26; Di
TOMMASO, L. A Report on Pseudepigrapha Research since Charlesworth’s Old Testament Pseu-
depigrapha. JSP 12.2 (2001), p. 179-207.
22

os dados atuais da literatura apocalíptica, nós ainda recorremos a obras em sua


maioria escritas por volta de cinquenta anos atrás”.16
O grande e definitivo estímulo à pesquisa acadêmica foi o volume de Se-
meia 14, Apocalypse: The Morphology of a Genre, editado por J. J. Collins.17 Seus
vários artigos incentivaram a pesquisa do tema. Entretanto, o trabalho de Uppsala
já citado supra efetuou uma grande mudança de perspectiva, embora, como toda
mudança, os seus efeitos não tenham sido apreendidos de forma uniforme. Os tra-
balhos reunidos no volume de Uppsala abordaram o tema a partir de ângulos di-
versos, confirmando que o valor de uma abordagem reside mais em seus frutos do
que em suas raízes. Após o congresso de Uppsala, três coleções merecem desta-
que: uma menos abrangente, com oito trabalhos e concentrada principalmente nos
textos judaicos antigos, cujo título é Mysteries and Revelations: Apocalyptic Stu-
dies since the Uppsala Conference;18 outra intitulada The Encyclopedia of Apo-
calypticism, publicada no final do século XX, sendo atualmente a introdução pa-
drão nesse campo de estudo;19 a terceira coleção chama-se Wisdom and Apocalyp-
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ticism in the Dead Sea Scrolls and in the Biblical Tradition,20 mais especializada
do que as anteriores, e muitos de seus 23 artigos constituem um novo marco para o
estudo do tema.
O número de estudos ainda tem aumentado desde a última década do sécu-
lo passado, o que torna sua seleção inevitável. Como mais relevantes, além das
coleções indicadas acima, podem ser citados os seguintes: os artigos de Murphy e
de Decock21 possuem ampla abrangência; G. M. Nápole escreveu um longo artigo,

16
BEARDSLEE, W. A. New Testament Apocalyptic in Recent Interpretation. Int 25.4 (1971), p.
419-435; aqui p. 421.
17
COLLINS, J. J. (Ed.). Apocalypse: The Morphology of a Genre. Semeia 14 (1979), 221 p.
18
COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Op. cit. Vários de seus ensaios foram direcio-
nados a tópicos ignorados ou tratados apenas parcialmente no volume de Uppsala. Nesta obra, G.
Boccaccini abrange a contribuição dos autores italianos (Jewish Apocalyptic Tradition; The Con-
tribution of Italian Scholarship, p. 33-50).
19
McGINN, B; COLLINS, J. J.; STEIN, S. J. (Ed.). The Encyclopedia of Apocalypticism (3 v).
Embora alguns de seus artigos sejam tratados de forma maciça e mais abrangente no volume de
Uppsala, outros são direcionados a tópicos não explorados por aquela obra ou por Mysteries and
Revelations, além de atualizar e prover novos insights para o tema. O primeiro de seus três volu-
mes é intitulado The Origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity e inclui treze artigos
relevantes para a origem da apocalíptica no judaísmo e cristianismo. Na introdução geral, os edito-
res afirmam que mais incentivos financeiros foram destinados ao estudo do tema nas últimas três
décadas do que nos três séculos anteriores (p. ix, v. 1).
20
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino (Ed.). Wisdom and Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls
and in the Biblical Tradition, 2003.
21
MURPHY, F. J. Apocalypses and Apocalypticism: The State of the Question. CurBS 2.1 (1994),
p. 147-179; DECOCK, Paul B. Some Issues in Apocalyptic in the Exegetical Literature of the Last
Ten Years. Neotest 33.1 (1999), p. 1-33. Neste artigo Decock discute especialmente a questão da
definição do gênero apocalíptico.
23

ainda útil, apesar de limitar-se a estudos anteriores a 1980;22 igualmente, J. N.


Oswalt concentra-se principalmente entre o final dos anos 1960 e início dos anos
1980, sendo, ainda assim, útil para a investigação sobre as origens e características
dos antigos apocalípticos judaicos;23 entretanto, Heinrich Hoffmann oferece o re-
sumo mais abrangente acerca das questões de definição e classificação do fenô-
meno apocalíptico.24
A. M. Woodruff abrange a contribuição dos autores brasileiros;25 Alf C-
hristophersen discute a influência do teólogo alemão Friedrich Lücke, um verda-
deiro pioneiro no estudo do tema, durante o século XIX;26 o mesmo faz A. Köhn
acerca da obra de Ernst Lohmeyer.27 Já o extenso artigo de R. E. Sturm resenha a
maioria dos trabalhos desde Lücke até meados dos anos 1980, com ênfase no apo-
calipsismo no NT como uma concepção teológica, especialmente o pensamento
paulino; logo no início do artigo, ele afirma: “Uma questão particular que teremos
em mente é se podemos ou não identificar o pensamento do apóstolo Paulo como
‘apocalíptico’”.28 R. Barry Matlock traça a história do conhecimento acadêmico
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acerca do apocalipsismo paulino, concentrando-se em Schweitzer, Dodd, Bult-


mann, Cullmann, Käseman e Beker.29
Os quatro primeiros capítulos do livro de Scott M. Lewis sobre apocalípti-
ca e NT são muito relevantes,30 bem como o já antigo artigo (1982) de Michael
Knibb;31 o livro de David Sim constitui importante estudo sobre a escatologia a-
pocalíptica presente no Evangelho de Mateus;32 por fim, embora não seja uma re-
senha acerca das pesquisas anteriores, Ferdinand Hahn examina a literatura apoca-

22
NÁPOLE, G. M. Desarrollo y evolución de los estudios sobre “la apocalíptica”. EstBíb 59
(2001), p. 325-363.
23
OSWALT, J. N. Recent Studies in Old Testament Apocalyptic. In: BAKER, D. W.; ARNOLD,
B. T. (Ed.). The Face of Old Testament Studies: A Survey of Comparative Approaches, p. 369-390.
24
HOFFMANN, H. Das Gesetz in der frühjudischen Apokalyptik, p. 21-70.
25
WOODRUFF, A. M. Thirty Years of Near Neglect: Apocalyptic in Brazil. JSNT 25.2 (2002), p.
127-139.
26
CHRISTOPHERSEN, Alf. Die Begründung der Apokalyptikforschung durch Friedrich Lücke.
Zum Verhältnis von Eschatologie und Apokalyptik. KuD 47.3 (2001), p. 158-179.
27
KÖHN, A. Ernst Lohmeyer und die Apokalyptik. In: BÖTTRICH, C. (Ed.). Eschatologie und
Ethik im frühen Christentum: Festschrift für Günter Haufe zum 75 Geburtstag, p. 149-167.
28
STURM, R. E. Defining the Word “Apocalyptic”: A Problem in Biblical Criticism. In: MAR-
CUS, J.; SOARDS, M. L. (Ed). Apocalyptic and the New Testament: Essays in Honor of J. Louis
Martyn, p. 17-48; aqui p. 18.
29
MATLOCK, R. Barry. Unveiling the Apocalyptic Paul: Paul’s Interpreters and the Rhetoric of
Criticism, 1996.
30
LEWIS, Scott M. What Are They Saying about New Testament Apocalyptic?, p. 1-70.
31
KNIBB, Michael. Prophecy and the Emergence of the Jewish Apocalypses. In: COGGINS, R.;
PHILLIPS, A; KNIBB, M. (Ed.). Israel’s Prophetic Tradition: Essays in Honour of Peter R. Ack-
royd, p. 155-180.
32
SIM, David C. Apocalyptic Eschatology in the Gospel of Matthew (1996).
24

líptica da época do Segundo Templo e a apocalíptica do cristianismo primitivo.33


Quanto ao estudo das possíveis interações entre a cultura iraniana e a ju-
daica, a intensidade e extensão da conexão entre elas e, indiretamente, também
com o cristianismo, é uma questão há muito tempo bastante polêmica. Os adeptos
da chamada Escola da História das Religiões (Religionsgeschichtliche Schule), nas
três primeiras décadas do século XX (por exemplo, Wilhelm Bousset, Richard
Reitzenstein e Eduard Meyer), sugeriram uma profunda influência das tradições
iranianas, especialmente sobre o apocalipsismo, o messianismo e a escatologia
cristã. A descoberta dos textos de Qumran deu um novo impulso para a discussão
do impacto das ideias iranianas sobre a religião judaica primitiva, especialmente
no que concerne às noções dualistas professadas pela comunidade de Qumran.
De fato, a partir de então foi trazida uma nova perspectiva sobre o apoca-
lipsismo judaico. Os Manuscritos de Qumran fornecem a possibilidade de amplas
reflexões sobre a origem do mal, a periodização da história, a batalha final e, mais
caracteristicamente, a participação humana no mundo celestial.34 Continua sendo
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um enigma o motivo pelo qual os autores dos Manuscritos não usarem muito o
gênero apocalíptico, o qual era bem conhecido no período; apesar disso, os Ma-
nuscritos dão expressão a uma cosmovisão apocalíptica expressa em diferentes
gêneros.
Entretanto, durante muito tempo a tese da influência persa no judaísmo
pós-exílico foi rejeitada (e em parte ainda o é atualmente) tanto por especialistas
em judaísmo antigo quanto por especialistas na literatura iraniana, apesar de haver
fortes indícios advindos desses dois campos de estudo.35 Mais recentemente, espe-
cialistas na literatura iraniana se retiraram da discussão, e os especialistas no cha-
mado Judaísmo36 do Segundo Templo contentaram-se em assumir em notas intro-

33
HAHN, Ferdinand. Frühjüdische und urchristliche Apokalyptik: eine einführung, p. 13-139.
34
Cf. as evidências apresentadas em GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Apocalypticism in the
Dead Sea Scrolls. In: McGINN, B.J.; COLLINS, J.J.; STEIN, S.J. (Ed.). The Continuum History of
Apocalypticism, p. 89-111.
35
Cf. um tratamento geral do tema pela crítica antiga em DUCHESNE-GUILLEMIN, Jacques.
The Western Response to Zoroaster, p. 20-37. Mais recentemente, cf. YARSHATER, Ehsan. In-
troduction; Iranian Influences. In: CHI: The Seleucid, Parthian and Sasanian Periods, p. lxv-lxxv.
v. 3.1. Uma visão panorâmica da discussão encontra-se em WINSTON, D. The Iranian Component
in the Bible, Apocrypha, and Qumran: a Review of the Evidence, HR 5.2 (1966), p. 183-216, assim
como em: SHAKED, S. Iranian Influence on Judaism: First Century B.C.E. to Second Century
C.E. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Persian Period, p.
308-325. v. 1; BOYCE, M.; GRENET, F. A History of Zoroastrianism: Zoroastrianism under Ma-
cedonian and Roman Rule, p. 415-436.
36
Usamos o termo “judaísmo” na designação deste período histórico mas entendemos que, histori-
camente, não havia ainda um “judaísmo” no sentido que o termo adquiriu posteriormente. Assim, o
25

dutórias de suas obras que existiram “influências persas”, ignorando essas influên-
cias no corpo principal de suas pesquisas.
O número de especialistas em ambos os campos de conhecimento (Judaís-
mo do Segundo Templo com sua literatura, e Zoroastrismo ou história iraniana de
um modo mais geral) é, no entanto, extremamente reduzido. Tal fato fez com que
em muitas ocasiões as noções desatualizadas de um campo recebessem nova in-
terpretação no outro. Tais campos de estudo são diferentes em muitos aspectos.
Além de ser em número reduzido, a maioria dos especialistas na literatura
iraniana são linguistas ou especialistas em determinados aspectos da língua e cul-
tura pré-islâmica, e não especialistas na religião persa; seu interesse não é esse.
Pesa também o fato de eles trabalharem em um campo caracterizado por uma
grande escassez de fontes datáveis. Os acadêmicos da área bíblica, por outro lado,
não somente são em número muito mais numeroso como também trabalham em
uma área melhor documentada, mais propícia a questões de datação e localização
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de textos e seus desenvolvimentos. Para os estudos iranianos do período pré-


islâmico (anterior a 651 d.C.),37 por exemplo, não há dicionários atualizados, há
poucas edições críticas confiáveis, e cada vez menos traduções de textos que po-
dem ser utilizados com segurança por não-especialistas.38 Também as opiniões de
especialistas sobre a maneira de escrever a história das religiões iranianas, por ou-
tro lado, são notoriamente diferentes em cada caso individual.
Quanto ao livro de Daniel, desde o seu aparecimento nas Escrituras He-
braicas as suas narrativas e visões apocalípticas alcançaram grande popularidade,
e muita controvérsia. Os intérpretes do livro já encontraram um pastiche de gêne-
ros e pontos de vista sociológicos e ideológicos, afora as questões de autoria, data-
ção e marco social. Além disso tudo, existe a questão linguística (é uma obra bi-
língue), que também não ajuda a discernir uma estratégia hermenêutica tão coe-
rente. Na pesquisa recente, três grandes publicações traçaram o rumo a ser segui-
do, todas em 1993: o livro de Thompson, o qual provê um ponto de partida seguro
para o estudo da história da interpretação do livro de Daniel, com múltiplos índi-
ces de autores, temas e referências em quase duas mil entradas;39 o volume do 40º

uso do termo neste trabalho não implica anacronismo.


37
Para os períodos da História Persa e secular, seguimos a divisão comum proposta por Mary Boy-
ce e outros (cf. BOYCE, M. Textual Sources for the Study of Zoroastrianism, p. 7-8).
38
Daí nossa abordagem da literatura sagrada persa ser mais histórico-fenomenológica do que lin-
guística, diferentemente do caso de Daniel e Mateus (cf. adiante).
39
Cf. THOMPSON, Henry O. The Book of Daniel: An Annotated Bibliography (1993).
26

Colloquium Biblicum Lovaniense (BEThL), editado por Van der Woude, com 30
papers das conferências organizados sob quatro títulos principais: bilinguismo e
versões gregas; questões de crítica literária, crítica da forma e da tradição; aborda-
gens literárias e sociológicas; questões gerais de história e história religiosa, além
de outros estudos;40 e o livro de Collins, da Série Hermeneia, o qual fornece um
levantamento abrangente das questões histórico-críticas no que concerne ao texto,
linguajar, composição, gênero, marco social e história da interpretação.41
Mais recentemente, Collins e Flint apresentaram em dois volumes trinta e
dois amplos ensaios divididos em oito seções: temas gerais; Daniel em seu ambi-
ente do Oriente Próximo; questões de interpretação de passagens específicas; am-
biente social; contexto literário (incluindo Qumran); recepção no judaísmo e cris-
42
tianismo; história textual; e a teologia de Daniel. Os ensaios introdutórios de
Collins e Knibb sumariam os temas abordados nos dois volumes.43
Outro trabalho recente digno de nota, dentre tantos outros, é o de W. E.
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Mills, o qual fornece uma bibliografia da pesquisa no século XX, importante para
a compreensão do texto e do background de Daniel.44 Mais de mil entradas estão
organizadas em categorias de citações bíblicas, citações temáticas e comentários.
Dentre os trabalhos antigos, não se pode deixar de mencionar, entre os
mais importantes, a obra de S. R. Driver, um dos pioneiros no tratamento acadê-
mico do livro de Daniel, com ampla introdução abarcando as questões históricas e
literárias e o comentário de todo o texto do livro,45 o comentário de R. H. Charles,
outro pioneiro,46 o livro de J. A. Montgomery, com ampla discussão acerca de
questões linguísticas e de crítica textual de todo o livro,47 e os importantes comen-
tários de Otto Plöger, N. W. Porteous, Mathias Delcor, André Lacocque, Hartman-
Di Lella, além de um comentário de Collins, mais antigo e muito menos abrangen-
te que o da Hermeneia. 48 Somam-se a isso diversos artigos especializados. A pes-

40
VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The Book of Daniel in the Light of New Findings (1993).
41
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel (1993).
42
COLLINS, J.J.; FLINT, P.W. (Ed.). The Book of Daniel: Composition and Reception (2001).2 v.
43
COLLINS, J. J. Currents Issues in the Study of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.).
Op. cit. p. 1-15; KNIBB, M. A. The Book of Daniel in Its Context. In: Ibidem, p. 16-35.
44
MILLS, W. E. Old Testament Series: Daniel (Bibliographies for Biblical Research, 20), 2002.
45
DRIVER, S. R. The Book of Daniel: With Introduction and Notes (1901).
46
CHARLES, R. H. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel (1929).
47
MONTGOMERY, J. A. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel (ICC),
1927.
48
PLÖGER, Otto. Das Buch Daniel, 1965; PORTEOUS, N.W. Daniel: A Commentary (1965);
DELCOR, M. Le livre de Daniel (1971); LACOCQUE, A. Le livre de Daniel (1976); HARTMAN,
27

quisa atual privilegia temas como a utilização do livro em tradições atuais, os gê-
neros literários no livro, os diferentes Sitzen im Leben, a história da interpretação e
questões ético-teológicas levantadas no livro.
Segundo Towner, “nenhuma discussão da autoria do livro pode estar isola-
da, sem atenção para a data e a ocasião histórica da escritura do livro. Entretanto,
em vez de pegar todos esses temas simultaneamente, a questão deve ser levantada
passo a passo”.49 Qualquer aspecto do livro de Daniel deve ser visto no todo que
envolve o livro. No presente trabalho, a importância de Daniel está no tema da
ressurreição individual seguida de um julgamento, o qual aparece pela primeira
vez no AT de forma clara em Dn 12,1-3. Para tanto, tornam-se importantes as
questões de datação, gênero e marco social.
Quanto ao fenômeno apocalíptico no NT, a cosmovisão apresentada por
esse fenômeno representou um papel extremamente importante no judaísmo hele-
nístico e cristianismo primitivo. Em outras épocas, o debate sobre o apocalipsismo
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no NT era formulado com base na oposição entre o existencialismo de Rudolf


Bultmann (abordagem desmistificadora), o qual tentava retirar a ênfase ou até
mesmo remover muitas das características apocalípticas da escatologia do NT, e a
abordagem mais antropológica de Ernst Käsemann, que procurou enfatizar nova-
mente essas características.50 Embora os parâmetros do debate tenham sido alar-
gados e os seus termos e vocabulário tenham sido modificados desde então, a
questão da extensão e do ponto exato em que a influência apocalíptica se deu na
compreensão escatológica de Jesus e dos cristãos primitivos continua em voga.
Na Encyclopedia of Apocalypticism já referida supra há vários artigos so-
bre a questão. Allison contempla a escatologia de Jesus, analisando as interpreta-
ções de Weiss, Schweitzer e seus descendentes intelectuais, para os quais Jesus era
um pregador apocalíptico; em seguida, ele revê as posições de Crossan e outros

L. F.; DI LELLA, A. A. The Book of Daniel (The Anchor Bible 23), 1978; COLLINS, J. J. The
Apocalyptic Vision of the Book of Daniel (1977).
49
TOWNER, S. W. Daniel, Book of. In: SAKENFELD, Katharine D. (Ed.). NIB, p. 15-23; aqui p.
17. v. 2.
50
BOERS, H. W. Apocalyptic Eschatology in I Corinthians 15: An Essay in Contemporary Inter-
pretation. Int 21.1 (1967), p. 50-65; FUNK, R. W. Apocalyptic As an Historical and Theological
Problem in Current New Testament Scholarship. In: Apocalypticism, p. 175-191. Käseman chega a
chamar a apocalíptica de mãe da teologia cristã primitiva (cf. adiante). Cf. ainda BULTMANN,
Rudolf. Ist die Apokalyptik die Mutter der christlichen Theologie? Eine Auseinandersetzung mit
Ernst Käsemann. In: Apophoreta. Festschrift für Ernst Haenchen zu seinem 70. Geburtstag am 10.
Dezember 1964, p. 64-69; MARSHALL, I. H. Is Apocalyptic the Mother of Christian Theology?
In: HAWTHORNE, G. F.; BETZ, O. (Ed.). Tradition and Interpretation in the New Testament:
Essays in Honor of E. Earle Ellis for His 60th Birthday, p. 33-42.
28

que, ao contrário dos primeiros, enxergam a mensagem original de Jesus como


sendo em grande parte desprovida de elementos escatológicos e acreditam que e-
les foram acrescentados pela Igreja primitiva.51 Ele analisa temas e tradições rela-
cionados à escatologia, bem como aspectos relacionados com as expectativas de
Jesus, incluindo julgamento escatológico, ressurreição dos mortos, restauração de
Israel, tribulação escatológica e os ditos do Filho do Homem. Ele considera a es-
catologia de Jesus como sendo em sua maior parte convencional, porém não sem
novos elementos, o mais importante dos quais a conexão feita por Jesus entre sua
situação existencial e as expectativas criadas em torno e recebidas por ele. Allison
se dedicou em uma obra inteira à pessoa de Jesus e sua auto-compreensão dentro
do ambiente contemporâneo de expectativas apocalípticas,52 como já havia feito
antes dele Corsani.53 Allison foi seguido por Ehrman.54
Mais recente é a obra de Kloppenborg e Marshall, a qual inclui um ensaio
de Allison sobre as razões teológicas pelas quais os estudiosos têm incentivado ou
rejeitado a ideia de “um Jesus com fervor escatológico”.55 Na mesma obra, Miller,
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que afirma que Jesus era “um sábio não-apocalíptico”, pesquisa em campo seme-
lhante, mas do ponto de vista temático.56 Kloppenborg indaga pela razão do inte-
resse ou importância do apocalipsismo de Jesus, e em sua resposta encontra-se
uma análise à suposição implícita de que frequentemente o suporte para um Jesus
apocalíptico flui naturalmente a partir das fontes, ao passo que os argumentos con-
trários procedem necessariamente a partir de interesses ideológicos.57
No que tange à ocorrência do fenômeno nos Sinóticos, Rowland discorre
sobre os pontos de contato entre Mateus, a mística judaica e a tradição apocalípti-

51
ALLISON, D. C., Jr. The Eschatology of Jesus. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of
Apocalypticism, p. 267-302. v. 1.
52
Idem. Jesus of Nazareth: Millenarian Prophet (1998).
53
CORSANI, Bruno. L’Apocalisse e l’apocalittica nel Nuovo Testamento (1997).
54
EHRMAN, Bart D., Jr. Jesus: Apocalyptic Prophet of the New Millennium (1999). Outras obras
importantes e interessantes sobre o tema são: MILLER, R. J. (Ed.). The Apocalyptic Jesus: A De-
bate (2001), com artigos de Allison (fazendo a defesa de Jesus como profeta apocalíptico) e de
Borg, Crossan e Patterson (defendendo opinião contrária); mais recente, LAPORTE, Jean. Les
Apocalypses et la formation des idées chrétiennes (2005).
55
ALLISON, D. C., Jr. The Problem of Apocalyptic: From Polemic to Apologetics. In: KLOP-
PENBORG, J. S.; MARSHALL, J. W. (Ed.). Apocalypticism, Anti-Semitism and the Historical
Jesus: Subtexts in Criticism, p. 98-110; aqui p. 98.
56
MILLER, R. J. Theological Stakes in the Apocalyptic Jesus Debate. In: Ibidem, p. 111-121; aqui
p. 111.
57
KLOPPENBORG, J. S. As One Unknown, without a Name? Co-opting the Apocalyptic Jesus.
In: Ibidem, p. 1-23. Este é um artigo reflexivo que deveria ser de leitura obrigatória para os estudi-
osos de ambos os lados da questão.
29

ca.58 Humphries-Brooks discorre sobre a parênese em Mt 6,19-34.59 Cope e Sim


abrangem em seus estudos a influência da apocalíptica sobre a escatologia de Ma-
teus.60 Horsley discute a relação entre os Sinóticos, apocalipsismo e os movimen-
tos de Jesus, com uma ênfase no gênero apocalíptico como literatura de resistência
em face às pressões imperialistas ou tirânicas.61 O discurso escatológico em Mc 13
é o tema dos artigos de Beasley-Murray, Dyer e Bird.62 Yarbro Collins analisa o
segredo messiânico de Marcos, do qual Jesus revela os mistérios em uma “forma
parcial e velada”, como acontece com os apocalipses judaicos.63 Ela sustenta que,
da mesma forma que os adeptos das religiões de mistério helenísticas, Jesus foi
entendido como tendo sido capaz de atravessar a fronteira que separa o humano do
divino. Em outro artigo, ela considera o apocalipsismo de Mc 13 e 2Ts como sen-
do uma resposta exegética cristã primitiva para a guerra judaica contra Roma.64
Em relação aos escritos paulinos, M. C. de Boer analisa em dois artigos a
temática de Paulo e o apocalipsismo, com ênfase especial sobre as ideias de Bult-
mann e Käsemann.65 Por meio de uma série de indagações a pressupostos estabe-
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lecidos, ele argumenta que a escatologia apocalíptica paulina não pode ser reduzi-
da à concepção do apóstolo acerca da parousía e do fim, “mas abrange também a
sua compreensão do advento de Cristo, da morte e ressurreição”.66 Já Roetzel de-
lineia como o pensamento de Paulo solucionou tanto as tensões inerentes ao apo-

58
ROWLAND, C. Apocalyptic, the Poor, and the Gospel of Matthew. JTS 45.2 (1994), p. 504-
518.
59
HUMPHRIES-BROOKS, S. Apocalyptic Paranesis in Matthew 6.19-34. In: MARCUS, J.;
SOARDS, M. L. (Ed.). Apocalyptic and the New Testament: Essays in Honor of J. Louis Martyn,
p. 95-112.
60
COPE, O. L. “To the Close of the Age”: The Role of Apocalyptic Thought in the Gospel of Mat-
thew. In: MARCUS, J.; SOARDS, M. L. (Ed.). Op. cit. p. 113-124; SIM, David C. Apocalyptic
Eschatology in the Gospel of Matthew, especialmente p. 73-249.
61
HORSLEY, R. A. The Kingdom of God and the Renewal of Israel: Synoptic Gospels, Jesus
Movements, and Apocalypticism. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of Apocalypticism,
p. 303-344. v. 1.
62
BEASLEY-MURRAY, G. The Vision of the Mount: The Eschatological Discourse of Mark 13.
Ex Auditu 6 (1990), p. 39-52; DYER, K. D. “But Concerning That Day…” (Mark 13:32). “Pro-
phetic” and “Apocalyptic” Eschatology in Mark 13. SBLSP 38 (1999), p. 104-122; BIRD, M. Mis-
sion as an Apocalyptic Event: Reflections on Luke 10:18 and Mark 13:10. EvQ 76.2 (2004), p.
117-134.
63
YARBRO COLLINS, A. Messianic Secret and the Gospel of Mark: Secrecy in Jewish Apoca-
lypticism, the Hellenistic Mystery Religions, and Magic. In: WOLFSON, Elliot R. (Ed.). Rending
the Veil: Concealment and Secrecy in the History of Religions, p. 11-30.
64
Idem. Christian Messianism and the First Jewish War with Rome. In: HEMPEL, C.; LIEU, J. M.
(Ed.). Biblical Traditions in Transmission: Essays in Honour of Michael A. Knibb, p. 333-343.
65
De BOER, M. C. Paul and Jewish Apocalyptic Eschatology. In: MARCUS, J.; SOARDS, M. L.
(Ed.). Op. cit. p. 169-190; Idem. Paul and Apocalyptic Eschatology. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The
Encyclopedia of Apocalypticism, p. 345-383. v. 1.
66
Idem. Paul and Apocalyptic Eschatology. In: Ibidem, p. 379.
30

calipsismo quanto aquelas que resultaram de sua missão e teologia.67


Opondo-se à perspectiva de Bultmann, o qual desmistificou a natureza es-
pacial dos conceitos cosmológicos de Paulo pela tradução deles em categorias
temporais do próprio Paulo, Tronier destaca como ponto de principal interesse na
cosmovisão de Paulo justamente essa perspectiva espacial cosmológica.68 Em ou-
tro artigo, Tronier analisa a dimensão escatológica dos apocalipses (com atenção
especial feita às suas raízes epistemológicas) para concluir que “a posição dos co-
ríntios pode ser colocada ‘em algum lugar entre’ uma posição como a de Filo e
aquela dos apocalipses”.69
E. Rudolph discute escatologia e ideologia política no apocalipsismo de
Paulo e no livro de Apocalipse.70 R. Penna se concentra no papel do “apocalipsis-
mo de Enoque” em relação aos aspectos da concepção de Paulo acerca do pecado
como sendo uma condição ou o poder que o precede e está além das transgressões
humanas específicas.71 Segal descreve como a noção de Paulo acerca da atividade
do Cristo ressurreto deriva do apocalipsismo judaico.72 Em contraste, Forbes pos-
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tula que, em sua concepção de “mundo espiritual”, Paulo não se baseou no back-
ground do apocalipsismo do Segundo Templo, e nem se ocupou em desmitificar
as ideias apocalípticas.73 Segundo ele, os paralelos mais próximos ao poder de
persuasão do linguajar paulino podem ser encontrados na filosofia platônica. O
background paulino, então, seria a filosofia grega.
Hall investiga a natureza apocalíptica da retórica em Gálatas,74 e G. Willi-

67
ROETZEL, C. J. Paul as Organic Intellectual: The Shaper of Apocalyptic Myths. In: HILLS,
Julian V. et al (Ed.). Common Life in the Early Church: Essays Honoring Graydon F. Snyder, p.
221-243.
68
TRONIER, H. Åbenbaring, himmelrejse og opstandelse hos Paulus. DTT 63.1 (2000), p. 36-63
(cf. a resenha em inglês sobre esse artigo em PETERSEN, A. K. JSJ 31.1-4 (2000), p. 459).
69
Idem. The Corinthian Correspondence between Philosophical Idealism and Apocalypticism. In:
ENGBERG-PEDERSEN, Troels (Ed.). Paul beyond the Judaism/Hellenism Divide, p. 165-196,
294-298; aqui p. 196.
70
RUDOLPH, Enno. Apokalyptik und Eschatologie: Endzeit und Zeitende in der Johannes-
Apokalypse und bei Paulus. In: Theologie, diesseits des Dogmas: Studien zur systematischen
Theologie, Religionsphilosophie und Ethik, p. 16-28; Idem. Politische Apokalyptik –
apokalyptische Politik. In: HOLZHEY, H.; KOHLER, G. (Ed.). In Erwartung eines Endes:
Apokalyptik und Geschichte, p. 113-128.
71
PENNA, R. Enochic Apocalypticism in Paul: The Idea of Sin. Henoch 21 (1999), p. 285-303.
72
SEGAL, A. F. Paul’s Thinking about Resurrection in Its Jewish Context. NTS 44.3 (1998), p.
400-419. Cf. também o estudo mais antigo de HAYS, R. B. “The Righteous One” as Eschatologi-
cal Deliverer: A Case Study in Paul’s Apocalyptic Hermeneutics. In: MARCUS, J.; SOARDS, M.
L. (Ed.). Op. cit. p. 191-215.
73
FORBES, Chris. Paul’s Principalities and Powers: Demythologizing Apocalyptic? JSNT 82
(2001), p. 61-88.
74
HALL, Robert G. Arguing Like an Apocalypse: Galatians and an Ancient Topos outside the
Greco-Roman Rhetorical Tradition. NTS 42.3 (1996), p. 434-453.
31

ams oferece “uma interpretação apocalíptica e mágica” para a referência de Paulo


a uma luta com animais selvagens em 1Cor 15,32.75 Já Matlock, de forma ampla,
ajuda a contextualizar a discussão.76
O status canônico do livro do Apocalipse, cuja textura e teor permearam
profundamente o que os estudiosos pensaram acerca dos apocalipses em geral,
também teve uma forte influência sobre o estudo do apocalipsismo do Novo Tes-
tamento. Entre os estudos mais recentes, é digno de nota o artigo de Yarbro Col-
lins em The Encyclopedia of Apocalypticism, o qual trata da datação do Apocalip-
se, seu conteúdo e estrutura, seu marco social e propósito, a história de sua inter-
pretação, e a questão das mulheres e do simbolismo feminino.77
A obra de Vielhauer sobre o apocalipsismo no NT, embora antiga, conti-
nua sendo de grande valia.78 A recente obra de Lewis possui ampla abrangência,
ainda que de forma sumária.79 Schüssler Fiorenza sumaria antigas abordagens para
descobrir “por que elas não vieram a descrever a apocalíptica cristã primitiva co-
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mo uma constelação peculiar dentro do fenômeno apocalíptico sincrético inserido


no mundo greco-romano”.80 Holman conclui que “a expectativa apocalíptica cris-
tã” partilha com o apocalipsismo do Segundo Templo os seguintes aspectos: uma
“expectativa-iminente/ansiedade-delongada”; um reconhecimento de que o livre
arbítrio afeta a chegada do reino esperado; o advento de aflições escatológicas; e
uma reinterpretação de fontes mais antigas para atender às necessidades da comu-

75
WILLIAMS, Guy. An Apocalyptic and Magical Interpretation of Paul’s “Beast Fight” in Ephe-
sus (1 Corinthians 15:32). JTS 57.1 (2006), p. 42-56.
76
MATLOCK, R. Barry. Unveiling the Apocalyptic Paul: Paul’s Interpreters and the Rhetoric of
Criticism, p. 23-340.
77
YARBRO COLLINS, A. The Book of Revelation. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia
of Apocalypticism, p. 384-414. v. 1. Ainda sobre a apocalíptica joanina, cf. COURT, J. M. The
Book of Revelation and the Johannine Apocalyptic Tradition (2000), KORNER, R. J. “And I
Saw”… An Apocalyptic Literary Convention for Structural Identification in the Apocalypse. NovT
42.2 (2000), p. 160-183; ARCARI, L. Apocalisse di Giovanni e apocalittica “danielico-storica” del
I sec. e.v.: prospettive per una “nuova” ipotesi. Vetera Christianorum 39.1 (2002), p. 115-132; e os
estudos mais antigos de AUNE, D. E. The Apocalypse of John and the Problem of Genre (p. 65-
96) e HELLHOLM, D. The Problem of Apocalyptic Genre and the Apocalypses of John (p. 13-64),
ambos em YARBRO COLLINS, A. (Ed.). Early Christian Apocalypticism: Genre and Social
Setting. Semeia 36 (1986). Cf. ainda, sobre a polêmica apocalíptica em Jo 8,38-47, VON
WAHLDE, Urban C. “You Are of Your Father the Devil” in its Context: Stereotyped Apocalyptic
Polemic in John 8:38-47. In: BIERINGER, R.; POLLEFEYT, D.; VANDECASTEELE-
VANNEUVILLE, F. (Ed.). Anti-Judaism and the Fourth Gospel: Papers of the Leuven Collo-
quium, 2000, p. 418-444.
78
VIELHAUER, P. Apocalyptic in Early Christianity. In: HENNECKE, E.; SCHNEEMELCHER,
W. (Ed.). New Testament Apocrypha, p. 608-642. v. 2 (1965, original alemão em 1964).
79
LEWIS, Scott M. What Are They Saying about New Testament Apocalyptic?, 2004.
80
SCHÜSSLER FIORENZA, E. The Phenomenon of Early Christian Apocalyptic: Some Reflec-
tions on Method. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the
Near East, p. 295-316; aqui p. 297.
32

nidade, incluindo superação de crises. 81


No entanto, de uma forma geral, a apocalíptica cristã primitiva difere de
sua variante judaica em sua expectativa mais “real e urgente”, bem como, num
segundo momento, dando um sentido relativamente positivo ao papel desempe-
nhado pela demora escatológica, afetando assim sua compreensão da escatologi-
a.82
O ensaio de Charlesworth investiga as implicações da visão de que “estu-
diosos do Novo Testamento tendem a concordar que a teologia do NT é funda-
mentada e definida pelo pensamento apocalíptico”.83 Myers conclui que o apoca-
lipsismo no NT não é restrito a poucos textos, e que nem uma demora na segunda
vinda de Cristo elimina as expectativas apocalípticas entre a segunda e a terceira
geração de cristãos.84 Rowland se preocupa em “considerar a importância funda-
mental da tradição apocalíptica, derivada como era do judaísmo antigo, para a teo-
logia cristã”.85 Em estudo mais recente, ele delineia a proeminência de elementos
proféticos e místicos nos livros do NT;86 suas ponderações, cuidadosamente deli-
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neadas, refletem a tendência de suas pesquisas em outras obras: a revelação de


mistérios celestiais era um foco fundamental dos cristãos primitivos.
A coleção de ensaios sobre a temática publicada por Yarbro Collins revela
uma variedade de temas relativos ao apocalipsismo cristão e ao livro do Apocalip-
se em particular.87 Já Aune fornece um considerável resumo acerca das informa-
ções básicas relativas aos antigos apocalipses judaicos e cristãos, bem como acer-

81
HOLMAN, C. L. Till Jesus Comes: Origins of Christian Apocalyptic Expectation, p. 153-158. A
reinterpretação de antigas fontes para atender às necessidades da comunidade é um importante
aspecto abordado pelo presente trabalho em relação à comunidade mateana e ao ciclo daniélico (cf.
infra).
82
O estudo panorâmico de Fusco é digno de nota (cf. FUSCO, V. Apocalittica ed escatologia nel
Nuovo Testamento: tendenze odierne della ricerca. In: CANNOBIO, Giacomo; FINI, Mario (Ed.).
L’eschatologia contemporanea. Problemi e prospettive: atti del IV corso di aggiornamento per i
docenti di teologia dogmatica, Roma, 2-5 gennaio 1994, p. 41-80).
83
CHARLESWORTH, J. H. Ancient Apocalyptic Thought and the New Testament. In:
KRAFTCHICK, S.J.; MYERS, C.D., Jr.; OLLENBURGER, B.C. (Ed.). Biblical Theology: Prob-
lems and Perspectives in Honor of J. Christiaan Beker, p. 222-232; aqui p. 222.
84
MYERS, C. D., Jr. The Persistence of Apocalyptic Thought in New Testament Theology. In:
Ibidem, p. 209-221; 323-327.
85
ROWLAND, C. “Upon Whom the Ends of the Ages Have Come”: Apocalyptic and the Interpre-
tation of the New Testament. In: BULL, Malcolm (Ed.). Apocalypse Theory and the Ends of the
World, p. 38-57; aqui p. 40.
86
Idem. Apocalypse, Prophecy and the New Testament. In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R. D.
(Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 149-166.
87
YARBRO COLLINS, A. Cosmology and Eschatology in Jewish and Christian Apocalypticism
(1996).
33

ca do apocalipsismo no NT.88 Em outro estudo mais antigo, ele investiga a trans-


formação do apocalipsismo no cristianismo primitivo, com atenção especial à in-
fluência da escatologia helenística.89 Para J. W. Marshall, o conflito interno que
tipifica muitos dos apocalipses judaicos do Período do Segundo Templo foi am-
pliado em proporções universalistas e empregado em contextos religiosos particu-
lares por escritores cristãos posteriores. Nesse sentido, os elementos das críticas de
alguns judeus em relação a outros judeus foram transformados em críticas estereo-
tipadas dos judeus para com os cristãos, e Jesus se tornou o “judeu contrário ao
judaísmo”.90
Por fim, o NT é um veículo fundamental para o estudo do discurso apoca-
líptico. Uma das mudanças em relação ao discurso profético e ao sapiencial é a
concepção de vida no pós-morte.91
Em se tratando do Evangelho de Mateus, o interesse pela apocalíptica con-
tida no livro, especialmente sua escatologia, cresceu progressivamente até o auge
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no final do século XX. Mark A. Powell inicia sua análise da monografia de David
Sim (já citada neste trabalho como importante para o estudo da escatologia de Ma-
teus) com o seguinte comentário: “Chame isso de febre de milênio, se quiser, mas
o assunto até aqui negligenciado da escatologia de Mateus está subitamente rece-
bendo muita atenção”.92 Pela mesma época, “escatologia” foi o tema da SBL para
o estudo do Evangelho de Mateus (encontro de 1996) e uma série de trabalhos re-
lacionados ao tema foram publicados pouco tempo antes e depois do encontro.93
No entanto, desde a virada do milênio, a ênfase parece ter se esvaído um pouco.
Por um lado, pode ser que a forma básica da interpretação de Mateus no que tange
aos eventos finais quase não tem sido contestada, e nessa forma básica há pouca
88
AUNE, David E. Understanding Jewish and Christian Apocalyptic. Word & World 25.3 (2005),
p. 233-245; um estudo indicado especialmente para não-especialistas.
89
Idem. Transformations of Apocalypticism in Early Christianity. In: GRABBE, Lester L.;
HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 54-64.
90
MARSHALL, J. W. Apocalypticism and Anti-Semitism: Inner-Group Resources for Inter-Group
Conflicts. In: KLOPPENBORG, J. S.; MARSHALL, J. W. (Ed.). Apocalypticism, Anti-Semitism
and the Historical Jesus: Subtexts in Criticism, p. 68-82; aqui p. 81.
91
Para o tema da ressurreição no NT, a recente obra em homenagem a J. Lambrecht é de extremo
valor: BIERINGER, R.; KOPERSKI, V.; LATAIRE, B. (Ed.). Resurrection in the New Testament:
Festschrift J. Lambrecht (2002).
92
POWELL, M. A. Review of David Sim, Apocalyptic Eschatology in the Gospel of Matthew. JBL
117.3 (1998), p. 534-536; aqui p. 534.
93
Cf., por exemplo, ORTON, D. E. The Understanding Scribe: Matthew and the Apocalyptic Ideal
(1989); CHARETTE, B. The Theme of Recompense in Matthew’s Gospel (1992); BALABANSKI,
V. Eschatology in the Making: Mark, Matthew, and the Didache (1997); GIBBS, J. A. Jerusalem
and Parousia: Jesus’ Eschatological Discourse in Matthew’s Gospel (2000); e, mais recentemente,
WILSON, A. I. When Will These Things Happen?: A Study of Jesus As Judge in Matthew 21-25
(2004).
34

coisa a mais a ser dita.


Donald Hagner, por exemplo, sumariza as principais características da es-
catologia de Mateus especialmente em duas hipóteses: a primeira é que existe uma
tensão presente-futuro, na qual a vinda de Jesus cumpre algumas expectativas es-
catológicas (uma escatologia “efetivada”), ocorrendo também uma ênfase ainda
maior no futuro julgamento dos ímpios e bênçãos dos justos (uma escatologia “fu-
tura”);94 a segunda é que há uma iminente-delongada tensão na apresentação de
Mateus: alguns ditos sugerem uma consumação dentro de uma geração, ao passo
que outros sugerem um período de ínterim significativo ou um atraso considerá-
vel.95 Essas observações parecem ser comuns na fundamentação dos estudos da
escatologia de Mateus, ainda que os comentaristas possam optar por enfatizar os
diferentes lados das tensões. Por exemplo, Georg Strecker argumenta que o con-
texto teológico-histórico indicado pelo Evangelho é aquele em que a iminência
não é enfatizada, e existem textos que sugerem que a Igreja deve ter um papel a
desempenhar em longo prazo;96 já David Sim responde que “nenhum desses textos
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carrega o peso que é depositado sobre eles” e, se vier a ocorrer algum delonga-
mento, este pode ser entendido como sendo uma pequena demora.97
Por outro lado, ao passo que as publicações mais recentes tendem a assu-
mir que Mateus tem uma visão consistente acerca dos eventos do fim, parece ha-
ver um consenso bem menor sobre o que essa visão possa ser e sobre como resol-
ver as tensões na apresentação do evangelista. De fato, essa conciliação permane-
ce sem conclusão satisfatória, e os estudiosos do Evangelho de Mateus continuam
a busca por mais soluções. Como James Dunn observa, o próprio evangelho, em
sua forma final, parece estar “notavelmente impassível pela presença da tensão
presente/futuro em sua tradição”, fazendo declarações contraditórias aparentemen-
te “sem qualquer sinal de tensão” na acomodação dessas oposições.98
Em uma recente publicação, Ben Cooper intenta resolver esse conflito “tra-
tando o Evangelho de Mateus como uma narrativa convincente, isto é, uma narra-
tiva concebida para evocar uma resposta que se constrói a partir de seus leito-
94
HAGNER, D. Matthew’s Eschatology. In: SCHMIDT, T.E.; SILVA, M. (Ed.). To Tell the Mys-
tery: Essays on New Testament Eschatology in Honour of Robert H. Gundry, p. 49-71; aqui espe-
cialmente p. 65-66.
95
Ibidem, p. 66-68.
96
STRECKER, Georg. Der Weg der Gerechtigkeit: Untersuchung zur Theologie des Matthäus, p.
41-49.
97
SIM, David C. Apocalyptic Eschatology in the Gospel of Matthew, p. 148-177; aqui p. 151.
98
DUNN, J.D.G. The Significance of Matthew’s Eschatology for Biblical Theology. SBLSP 35
(1996), p. 150-162; aqui p. 151.
35

res”.99 Uma determinada escatologia deve ser lida em sua localização dentro do
enredo da narrativa e levar em consideração sua função naquele determinado pon-
to em questão. No caso de Mateus, a partir de uma ampla escatologia judaica se
adapta o presente progressivamente em uma escatologia cristã, tendo como influ-
ência a história mateana de Jesus; em uma escatologia que é tanto esperada quanto
efetivada, os eventos escatológicos do fim que se esperam são temporariamente
“resolvidos” em duas fases: eles são experimentados primeiramente em Jesus,
tendo Deus como principal agente escatológico, de tal forma a garantir que, poste-
riormente, esses mesmos elementos sejam experimentados da mesma forma por
seus seguidores.
A escatologia que envolve épocas de dificuldade próximas ao final dos
tempos estava já presente em Hesíodo e no zoroastrismo tardio com tradição bem
antiga.100 O Judaísmo do Segundo Templo também evidencia essa noção. Além de
Dn 12, o Livro dos Jubileus descreve um período em que as pessoas gozariam de
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um curto período de vida com aumento de tribulação e opressão (L. Jub 23,11-25),
após o que haveria um tempo de longevidade, justiça e graça (cf. 23,26-31). Isso
não implica que as expectativas fossem as mesmas em todas as ocasiões em que a
noção aparece. No Testamento de Moisés, que alguns estudiosos datam na época
de Antíoco IV, o autor revela uma “visitação e ira como não tem acontecido desde
o princípio até aquele tempo” (cf. T. Mos 8,1, o que lembra Dn 12,1 bem como Mt
24,21); no caso desse apócrifo, esse tempo parece ocorrer no presente momento,
mas será imediatamente seguido pelo Reino de Deus se manifestando por toda a
sua criação e pelo fim de Satanás e da tristeza (T. Mos 10,1). No Testamento de
Levi, a execução de “juízo sobre os filhos dos homens” é o tempo no qual “toda a
criação [estará] em dificuldades” e ocorrerá em algum tempo indeterminado no
futuro (cf. T. Lev 4,1).
Observa-se, entretanto, que não havia uma uniformidade na doutrina esca-
tológica do judaísmo tardio,101 falta de uniformidade que se dá também nas ideias
do judaísmo em geral e do cristianismo primitivo. O como essas noções escatoló-
99
COOPER, Ben. Adaptive Eschatological Inference from the Gospel of Matthew. JSNT 33.1
(2010), p. 59-80; aqui p. 60 (grifo do autor).
100
Cf. infra.
101
ALLISON, D. C., Jr. The End of the Ages Has Come: An Early Interpretation of the Passion
and Resurrection of Jesus, p. 25. Contra o consenso geral, Carson postula tese contrária, chegando
a afirmar que “há mais uniformidade nessa literatura do que parece haver” (cf. CARSON, D. A.
Summaries and Conclusions. In: CARSON, D.A.; O’BRIEN, P.T.; SEIFRID, M.A. (Ed.). Justifi-
cation and Variegated Nomism: The Complexities of Second Temple Judaism, p. 505-548. v. 1;
aqui p. 544).
36

gicas judaicas influíram na escatologia de Mateus dependerá da análise de sua au-


toria, objetivo e, especialmente, seu marco social.
Isto posto, este trabalho tem como temática a origem da ressurreição na
apocalíptica judaica e o desdobramento no cristianismo primitivo, levando-se em
conta especialmente os textos de Dn 12,1-3 e Mt 27,51b-53. O objetivo é verificar
a possibilidade de o autor mateano ter se servido da tradição de Daniel, bem como
a possibilidade de contato deste último com as ideias persas, especificamente da
religião de Zoroastro, a qual teria se tornado religião oficial do Império Persa por
volta do VI século a.C., no reinado de Ciro II. Em outras palavras, a tese pretende
investigar em que medida o pensamento cristão acerca dos acontecimentos do fi-
nal dos tempos (como ressurreição e juízo final) seria devedor ao livro de Daniel
(II século a.C.), especialmente a tradição sinótica.
No caso específico de Mt 27,51b-53, a investigação se dará sobre a origem
da tradição expressa nesta perícope, bem como seu posicionamento e função den-
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tro da narrativa do evangelho como um todo. Quanto a Daniel, o objetivo é anali-


sar o possível contato com o tema da ressurreição através do zoroastrismo antigo,
expresso em textos do Avesta, especialmente nos Gathas, como o Y. 30,7 (os Ga-
thas são a parte mais antiga do Avesta, o conjunto de textos considerados sagra-
dos), tendo em vista que a ideia de ressurreição individual (corporal ou não) se-
guida por um julgamento não encontra respaldo bem estabelecido em outros textos
das Escrituras Hebraicas e nem nas crenças dos povos antigos que serão analisa-
dos.
Assim, como um todo, este trabalho apresenta certa complexidade, pois se
concentra sobre três corpora diversos, os quais não serão relacionados entre si
com tríade, mas dois a dois: a tradição do Avesta com Dn 12 e este com Mt 27.
Daí também os três textos fundamentais não serem posicionados lado a lado, mas
sim dois a dois. Além disso, dada a carência da certeza de dados linguísticos do
Avesta (cf. assinalado supra), a abordagem histórico-fenomenológica para o zoro-
astrismo se torna mais histórico-linguística em Daniel e Mateus.
De qualquer forma, o fio condutor de toda a temática da tese é a análise da
origem da ressurreição individual (corporal ou não e independentemente do tipo
de corpo) com julgamento final na apocalíptica judaica e o seu desdobramento no
cristianismo primitivo.
Para se chegar ao objetivo proposto, a pesquisa começará analisando o fe-
37

nômeno apocalíptico de uma maneira geral, sua origem, expressividade e tendên-


cias da pesquisa atual, pois é neste horizonte que a noção da ressurreição individu-
al brota e ganha espaço. Em seguida, analisará o pensamento sobre a vida no pós-
morte a partir das principais civilizações mais antigas ou contemporâneas à judai-
ca (Egito, Mesopotâmia, Canaã, Grécia arcaica e helênica), verificando a possíveis
interação de noções associadas ao tema com o judaísmo antigo. Assim, é apresen-
tada uma abordagem fenomenológica cujo objetivo foi simplesmente averiguar,
em literatura oriental mais antiga, as noções de vida no pós-morte. Tratamento es-
pecial é dado à análise do tema no zoroastrismo antigo, especialmente nas evidên-
cias a partir dos Gathas e de sua tradição, mais conhecida a partir da Idade Média.
É justamente entre os persas que a ideia de ressurreição sofre consideráveis modi-
ficações, além do surgimento de novos entendimentos, como o de um julgamento
universal no final dos tempos seguido de ressurreição também universal.
Posteriormente, o estudo verificará a ideia do pós-morte e ressurreição no
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judaísmo primitivo conforme expressa em textos do AT e, especialmente, no Juda-


ísmo do Segundo Templo, onde se observa mudanças importantes em relação ao
primeiro. Neste ponto, a pesquisa se concentra principalmente no livro de Daniel,
pois em Dn 12,1-3 se encontra a primeira referência clara à ressurreição individual
seguida de julgamento em toda a Bíblia Hebraica.
Numa segunda etapa, será abordada a questão da apocalíptica e ressurrei-
ção no NT, especialmente no Evangelho de Mateus, tomando como fundamento a
perícope de Mt 27,51b-53, a qual revela uma ressurreição dos salvos antes da res-
surreição final e não se encontra nos demais evangelhos canônicos, bem como sua
tradição não se acha em nenhum outro texto do NT.
O tema do trabalho visa, então, à comunidade acadêmico-teológica, na área
específica de Teologia Bíblica, bem como a estudiosos de História Comparada das
Religiões, de Crítica Literária e a outros tantos interessados no assunto.
O método utilizado para a análise dos textos bíblicos é o mais usado na e-
xegese, o histórico-crítico, a partir dos textos em suas formas atuais. Esse método
é “histórico, não só porque ele se aplica a textos antigos – no caso, aqueles da Bí-
blia – e estuda seu alcance histórico, mas também e sobretudo porque ele procura
elucidar os processos históricos de produção dos textos bíblicos, processos diacrô-
38

nicos algumas vezes complicados e de longa duração”.102 É crítico “porque ele


opera com a ajuda de critérios científicos tão objetivos quanto possíveis em cada
uma de suas etapas”.103 Essas têm como fase preliminar a crítica textual,104 e a
partir dela “passa-se a uma crítica literária que decompõe (pesquisa das fontes),
depois a um estudo crítico das formas, enfim a uma análise da redação, que é aten-
ta ao texto em sua composição”.105 Além disso, a crítica histórica pode completar
a crítica literária “para determinar seu alcance histórico, no sentido moderno da
expressão”.106 Essa última postura, aliada a uma crítica da tradição, faz parte da
metodologia aplicada para a análise dos textos do Avesta, entendendo-se neste
trabalho uma crítica sociológica também inserida nesta análise histórica.
Essas etapas estão interligadas de tal forma que uma acaba, necessariamen-
te, remetendo às outras, sem que cada uma delas seja menos importante. Além dis-
so, essas etapas não precisam, necessariamente, estar expostas nessa ordem rigo-
rosa na exposição final do trabalho. Sumariando, podemos descrever os métodos
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histórico-críticos como aqueles que buscam entender o texto a partir de seus pres-
supostos, intenção e compreensão originais, bem como também as interpretações
sucessivas em seu processo de estabelecimento.107
Os textos primários utilizados neste trabalho são as edições críticas. Para o
texto dos Gathas, os que são considerados como sendo os melhores pela crítica
atual: o texto crítico de Jean Kellens e Eric Pirart, Les textes vieil-avestiques (3 v.,
1988-1991), e o texto de Helmut Humbach, P. O. Skjaervo e J. Elfenbein (Die Ga-
thas des Zarathustra, 2 v., 1959) traduzido para o inglês, The Gâthâs of Zarathus-
tra and the Other Avestan Texts (2 v., 1991). Esses textos foram cotejados com
traduções de Mary Boyce (Textual Sources for the Study of Zoroastrianism, 1990)
e a antiga tradução de L. H. Mills editada por F. M. Müller (SBE v. 31). Para os
demais textos do Avesta Posterior e os da tradição medieval foram usadas as edi-
ções críticas mais conhecidas. Pela extensão das escrituras zoroástricas, não foi
possível analisar de forma abrangente todas as ocorrências referências ao tema;
assim sendo, o trabalho se limitou aos textos considerados de maior importância
102
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja, p. 41 (grifo do au-
tor).
103
Ibidem.
104
Vale ressaltar que a crítica textual não faz parte do método (não é uma etapa): trata-se da fase
preliminar que estabelece o texto para nele se aplicar o método.
105
Ibidem, p. 40.
106
Ibidem, p. 43.
107
SIMIAN-YOFRE, H. (Org.). Diacronia: os métodos histórico-críticos. In: Metodologia do Anti-
go Testamento, p. 73-108; aqui p. 74-75.
39

para o objetivo proposto.


Para o livro de Daniel foi utilizado o texto e aparato crítico da Bíblia He-
braica Stuttgartensia, 5ª edição (1997); já para o texto de Mateus foi utilizado o
Novum Testamentum Graece, 27ª edição (1993), bem como a obra de Kurt e Bar-
bara Aland.108 Para os textos bíblicos em português foram usadas a Bíblia de Jeru-
salém, nova ed. rev. amp. (2002, da qual se usou também as abreviações dos no-
mes dos livros e a forma de citação adotada por ela), a Nova Versão Internacional
(Sociedade Bíblica Internacional, 2000), e a Versão Revisada da Imprensa Bíblica
Brasileira (1994). Em alguns textos importantes para o trabalho além das períco-
pes de Daniel e Mateus, optou-se por tradução própria devido a questões exegéti-
cas.
Para o texto da LXX foi usada especialmente a edição de A. Rahlfs (Stutt-
gart) e, para uma importante variante no texto grego de Dn 12, a antiga obra de J.
Ziegler (Göttingen).
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Em relação à tradução dos textos bíblicos objetos da pesquisa, prezou-se


por respeitar a sintaxe hebraica e grega, a escolha das palavras e outras peculiari-
dades desses idiomas, mas procurando fazer o mesmo em relação à língua portu-
guesa, respeitando também sua sintaxe e o caráter literário da transposição de um
texto para outro. A segmentação foi feita baseada no seguinte critério: para cada
verbo (explícito ou implícito) uma linha; essa adoção do critério praticamente úni-
co (o do verbo) foi feita simplesmente com o intuito de não alongar muito a expo-
sição da tradução.
No caso dos chamados apócrifos e pseudepígrafos, as traduções presentes
no trabalho foram feitas a partir da obra de R. H. Charles (Oxford, APOT) e da
obra de J. H. Charlesworth (Princeton, OTP, editada por Doubleday, NY), mais
recente, sempre cotejando aquela com esta e, por vezes, com a versão espanhola
editada por A. D. Macho (Apócrifos del Antiguo Testamento, Madrid, 2. ed.). Para
os textos do Oriente Antigo, as traduções se deram especialmente a partir da obra
de J. B. Pritchard (ANET, Princeton), sendo que, para o poema de Gilgamesh, foi
usada também a edição de Benjamin Foster (Yale). No caso de Hesíodo, as tradu-
ções se deram a partir da edição de M. L. West (Oxford), cotejada com a edição de
P. Mazon (Paris). Citações de outros textos antigos são indicadas em notas de re-

108
ALAND, K.; ALAND, B. The Text of the New Testament: An Introduction to the Critical Edi-
tions and to the Theory and Practice of Modern Textual Criticism (2. edn. rev. eng., 1989).
40

ferência.
Nos casos em que foram feitas transliterações (especialmente de nomes
próprios e conceitos-chave nas narrativas), foram usadas, para os caracteres gre-
gos, as Normas de transliteração de palavras do grego antigo para o alfabeto la-
tino, adotadas pela Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos,109 e para os caracte-
res hebraicos a proposta do Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamen-
to.110 Para o texto do Avesta, tendo em vista não existir uma padronização acadê-
mica uniforme, optou-se pelas transcrições mais utilizadas pelos estudiosos.
Enfim, por fugir ao escopo e à extensão propostos neste trabalho, deixou-
se de realizar uma análise da aplicação teológica da mensagem de Dn 12,1-3 e de
Mt 27,51b-53 ao mundo contemporâneo, o que seria um importante complemento
ao tema tratado. Em princípio, a realização de tal análise chegou a ser pretendida
em um último capítulo, dada a relevância da mensagem de cada um deles. Entre-
tanto, longe de esgotar o assunto (o que, pelas suas próprias implicações vastas,
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seria impossível), esperamos que este trabalho incentive novos estudos do tema
junto à crítica histórico-literária e à exegese bíblica.

109
Cf. texto e comentários em MURACHCO, H. G. Língua grega, p. 40-42. v. 1.
110
JENNI, E.; WESTERMANN, C. (Ed.). Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento,
p. 20-22. v. 1.
2. O fenômeno apocalíptico: a expressividade pelo gênero
literário

2.1. Taxonomia e definições

A primeira dificuldade no estudo do fenômeno apocalíptico reside já na ta-


xonomia do tema. Não há unanimidade entre os trabalhos publicados até o presen-
te momento, reflexo da não concordância em como o próprio material naturalmen-
te se divide. Em verdade, a complexidade do tema desmente as arrumações cate-
góricas postuladas. Essa complexidade possui evidência antiga e é enfatizada por
estudos recentes, os quais sugerem a existência de conexões fundamentais entre
aquilo que já foi em outros tempos considerado apenas como possuindo parcas
ligações.
A principal causa de confusão durante a fase inicial do debate moderno a-
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cerca de apocalíptica e apocalipsismo diz respeito à relação entre a classificação


do próprio fenômeno em si mesmo e questões relativas à sua origem, elementos
constitutivos, literatura e marco social. Quando o relacionamento parecia ser in-
discutível, revelou-se, em verdade, difícil de definir. Isso ficou muito claro através
das objeções feitas contra as antigas tentativas de formular a questão de maneira
adequada em termos sistemáticos. Por exemplo, muitos textos designados como
“apocalipses” careciam da maior parte dos elementos considerados primordiais
para classificá-los como tal, ao passo que muitos dos mesmos elementos apareci-
am de forma evidente em muitas obras até então não consideradas como “apoca-
lípticas”.1 Tais objeções resultaram em parte de um crescente reconhecimento de
que os conceitos e origens sociais do apocalipsismo se estendiam além do que po-
deria ser descrito como sendo tradição profética israelita. Como alternativa, alguns
sentiram que as categorias, por serem tão amplas, haviam se tornado sem sentido.2
Outra preocupação foi a de que as definições propostas privilegiavam cate-
1
STONE, Michael. E. Lists of Revealed Things in the Apocalyptic Literature. In: CROSS, F.M.;
LEMKE, W.E.; MILLER, P.D., Jr. (Ed.). Magnalia Dei, the Mighty Acts of God: Essays on the
Bible and Archaeology in Memory of G. Ernest Wright, p. 414-452 (republicado em STONE, M.E.
Selected Studies in Pseudepigrapha and Apocrypha with Special Reference to the Armenian Tradi-
tion, p. 379-417, com uma nota suplementar nas p. 417-418); SANDERS, E. P. The Genre of Pal-
estinian Jewish Apocalypses. In: HELLHOLM, David. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean
World and the Near East: Proceedings of the International Colloquium on Apocalypticism, Uppsa-
la, August 12-17, 1979, p. 447-459.
2
Cf. CARMIGNAC, J. Description du phénomène de l’Apocalyptique dans l’Ancien Testament.
In: HELLHOLM, D. (Ed.). Op. cit. p. 163-170.
42

gorias escatológicas e negligenciavam a mística essencial, historiográfica, ou ele-


mentos existenciais.3 Objeções adicionais afirmaram que as categorias ou classes
foram impostas sobre as evidências, ou que as classificações tinham se tornado tão
complexas que cada texto efetivamente acabou por ter seu gênero literário próprio.
As objeções foram em grande parte resolvidas através do reconhecimento
crítico de que o termo “apocalipse” define o gênero,4 “apocalipsismo” seria uma
ideologia ou movimento social, e “escatologia apocalíptica” seria uma cosmovi-
são, ou uma perspectiva (a profecia escatológica). Cada uma dessas entidades e-
ram distintas e seu valor heurístico, embora significativo, não era absoluto. Essa
distinção tríplice foi proposta especialmente por Paul D. Hanson.5 Ele afirma que:
Nas recentes tentativas em acrescentar precisão à terminologia utilizada na dis-
cussão do fenômeno vagamente chamado de apocalíptico, “apocalipse” veio a de-
signar um gênero literário, em contrate com os conceitos relacionados “escatolo-
6
gia apocalíptica” e “apocalipsismo”.

Ele ainda chama a atenção para a cautela no uso dessa tríade como instru-
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mento metodológico para investigação do fenômeno apocalíptico antigo, tendo em


vista que, no contexto original dos escritos, tais categorias não eram rigidamente
distinguidas pelos autores apocalípticos:
Ao usar tais ferramentas, é conveniente lembrar que os antigos escritores apoca-
lípticos não distinguiam rigidamente entre gênero, perspectiva e ideologia, e disso
conclui-se que essas categorias devem ser sempre utilizadas com uma grande sen-
sibilidade para com a integridade e complexidade das composições em si mes-
7
mas.

Hanson usa o termo apocalipse para designar o gênero literário que pode
ser encontrado ao lado de outros gêneros, como o testamento, o oráculo de julga-
mento e de salvação e a parábola. O Apocalipse de João, nos seus dois primeiros
3
Cf. WEBB, Robert L. ‘Apocalyptic’: Observations on a Slippery Term. JNES 49.2 (1990), p.
115-126; aqui p. 119.
4
A literatura apocalíptica abrange, primeiramente, os escritos judaicos e cristãos compreendidos
ente 250 a.C. e 100 d.C., época em que esse tipo de literatura floresceu abundantemente, embora
traços dela possam ser encontrados em escritos anteriores e posteriores. Entretanto, a palavra “apo-
calíptica”, além de seu uso frequente como simples sinônimo para “cataclismo” na literatura mo-
derna, possui uma gama variada de nuanças e interpretações, ocasionando uma dificuldade óbvia
no estudo desse gênero (cf. RUSSELL, D. S. Apocalyptic: Ancient and Modern, p. 21). Assim, a
designação costuma abarcar, também, outros gêneros que fazem parte do mesmo ambiente (Idem.
Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica, p. 26).
5
HANSON, P. D. Apocalypse, Genre; Apocalypticism. In: CRIM, Keith (Ed.). IDBSup, p. 27-34.
Cf. também STONE, Michael. E. Lists of Revealed Things in the Apocalyptic Literature. In:
CROSS, F.M.; LEMKE, W.E.; MILLER, P.D., Jr. (Ed.). Op. cit. p. 439-443, e o panorama em
WEBB, Robert L. Op. cit.
6
HANSON, P. D. Apocalypses and Apocalypticism. Introductory Overview. In: FREEDMAN,
David N. (Ed.). ABD, p. 279-292. v. 1; aqui p. 279.
7
Ibidem.
43

versos, daria, como paradigma, os quatro pontos da estrutura típica desse gênero:
uma revelação que é dada por Deus; a transmissão se dá por um mediador; o re-
ceptor é um visionário; os temas tratados dizem respeito a eventos futuros.8 Seu
marco social também é tomado do livro do Apocalipse, em 1,19: esclarecer aos
eleitos aquilo que ainda há de acontecer, servindo então de coragem e conforto
numa época de opressão, com o intuito de manter a fidelidade deles. 9 Um exemplo
desse gênero se daria nos capítulos 7 a 12 do livro de Daniel. Hanson assevera que
os escritores utilizaram o gênero apocalíptico com considerável liberdade, adap-
tando-o aos seus propósitos, resultando numa diversidade de expressões. Assim,
um apocalipse não é necessariamente o gênero exclusivo numa obra assim classi-
ficada (é dominante na maioria dos casos), mas encontrado com muitos outros gê-
neros.
Por escatologia apocalíptica ele entende não um gênero, nem um movi-
mento sociorreligioso ou um sistema de pensamento, mas uma “perspectiva religi-
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osa”, uma cosmovisão, ou seja, “um modo de ver os planos divinos em relação
com realidades mundanas”, 10 não sendo exclusividade de uma religião ou grupo
político específicos, mas podendo ser adotada por diferentes grupos ou indivíduos
em diferentes épocas e diferentes níveis. Essa perspectiva concebe a ação salvífica
de Deus como uma realização para fora da ordem presente, caminhando para uma
ordem transformada e futura; essa nova ordem, diferentemente da escatologia dos
profetas do AT (os quais concebiam uma reabilitação da ordem presente), implica
necessariamente o fim da presente ordem pela sua destruição. O futuro é tomado
como contexto de julgamento e salvação eterna; nessa perspectiva acerca do futu-
ro, a escatologia apocalíptica “pode ser vista como uma continuação da escatolo-
gia profética”. 11

8
Na pesquisa, a expressão apocalíptica foi usada pela primeira vez para designar o gênero por
Friedrich Lücke (1791-1855); entretanto, de fato, a Igreja Cristã utilizou, a partir do II século, a
expressão “apocalíptica” para indicar todo escrito semelhante ao Apocalipse canônico, pegando
deste o nome para designar o estilo de escrever, ou seja, o gênero. Assim, além da função adjetiva,
a expressão é usada também como substantivo coletivo, podendo ainda designar tanto a “literatura
apocalíptica” quanto o conjunto de ideias que a produzir, ocasionando confusão no debate apoca-
líptico no correr dos anos. J. J. Collins apresenta três razões para esse uso indistinto do termo: o
uso do nome “apocalipse” para designar um amálgama de elementos literários, sociais e fenomeno-
lógicos; a falta de clareza no reconhecimento e na classificação desse gênero na Antiguidade (rotu-
lado como gênero somente a partir do Apocalipse neotestamentário), e o fato de os próprios apoca-
lipses judaicos abrangerem várias formas literárias distintas, como visões, preces, legendas, testa-
mentos e outros (COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 2-3).
9
HANSON, P. D. Apocalypse, Genre; Apocalypticism. In: CRIM, Keith (Ed.). Op. cit. p. 27.
10
Ibidem, p. 29.
11
Ibidem, p. 30. Isso não significa, entretanto, que essas duas escatologias, em essência, sejam a
44

Assim, a realidade é dividida em duas eras: a presente era má e a futura era


de justiça, retidão e paz (4Esd 7,50, do primeiro século d.C., afirma: “O Altíssimo
não fez uma era, mas duas”). Vale ressaltar que, além de se referirem a épocas
temporais, essas eras também implicavam duas realidades cósmicas diferentes.
Acrescenta-se a isso o fato de que essa escatologia não se preocupa apenas
com a era vindoura, mas também com a interpretação do passado e da era presen-
te, sendo esta considerada a era do mal. Além disso, ela não é limitada aos apoca-
lipses, mas aparece também em outros gêneros literários.
Já o apocalipsismo está relacionado a “um movimento religioso-social”
que adota a perspectiva da escatologia apocalíptica: é “um sistema de pensamento
produzido por movimentos visionários, construídos sobre uma perspectiva escato-
lógica específica”.12 Assim, a realidade é vista através do universo simbólico no
qual o grupo apocalíptico codifica sua identidade e sua interpretação dessa reali-
dade. Esse universo é desenvolvido como uma forma de protesto contra a socieda-
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de dominante, expressando o senso de “impotência” do grupo frente a essa domi-


nação. Ele serve como resposta a essa situação; esse novo universo simbólico de-
verá substituir a velha ordem.
Entretanto, esse “movimento” se expressa de diversas maneiras como re-
sultado de condições históricas que se modificam, não sendo possível, assim, dar
uma definição formal cognitiva do apocalipsismo; abrange diferentes temas, tradi-
ções e gêneros, sendo que “o resultado é com frequência uma coleção de conceitos
e motivos de alta natureza eclética e caracterizada pelo esotérico, bizarro e arca-
no”.13
Hanson acrescenta ainda que esses movimentos apocalípticos podem ser de
dois tipos: um grupo marginalizado ou oprimido dentro de uma sociedade, ou uma
nação inteira sob o jugo de um poder estrangeiro (como revelam os capítulos 7-12
de Daniel). 14 A base do apocalipsismo é a alienação (exclusão e opressão), e a res-
posta a esta situação é a adoção da perspectiva da escatologia apocalíptica. Os a-
pocalipsistas judeus antigos criaram um novo “universo” (universo esse “simbóli-
co”) em resposta à experiência de alienação e opressão que viviam, subjugados às
autoridades políticas e religiosas de sua época.

mesma coisa (cf. HANSON, P. D. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological
Roots of Early Jewish Apocalyptic Eschatology, p. 11).
12
Idem. Apocalypse, Genre; Apocalypticism. In: CRIM, Keith (Ed.). IDBSup, p. 28.
13
Ibidem, p. 30 (cf. também The Dawn of Apocalyptic, p. 433).
14
Idem. The Dawn of Apocalyptic, p. 434-435.
45

Essa divisão tripartida do fenômeno possibilitou o reconhecimento dessas


categorias distintas, o que situou os elementos constituintes do debate acerca da
classificação (como também a relação deles com todos os aspectos da evidência
literária) em um nível apropriado para as evidências em si mesmas, acabando por
ser esse nível identificado como o ponto de partida da discussão acerca das facetas
do fenômeno. Por sua vez, isso permitiu na pesquisa moderna definições sintéticas
para aplicação de forma significativa às fontes antigas, ao mesmo tempo em que
reflitam a profunda complexidade e diversidade dessas fontes. O resultado foram
categorias academicamente rigorosas, estáveis e úteis, informadas pela literatura,
podendo ser analisadas sincronicamente como textos religiosos cujo conteúdo,
mensagens e funções podem variar amplamente, e analisadas diacronicamente
como representativas do gênero, da ideologia e (por vezes) do Sitz im Leben, os
quais foram sujeitos a processos históricos.
Assim, como resultado, a maior parte dos debates sobre a questão ao longo
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das três últimas décadas se pautou sobre a terminologia e as definições propostas


por Hanson, bastante desenvolvidas pela Society of Biblical Literature (SBL) A-
pocalypse Group em Semeia 14, citado acima, e posteriormente clarificado, refi-
nado e, em certa medida, expandido em publicações subsequentes de Collins, in-
cluindo sua introdução ao tema, a obra The Apocalyptic Imagination (citada su-
pra). Entretanto, nem todos os problemas acerca da classificação do tema foram
resolvidos; ao contrário, os estudos de Hanson, Collins e outros têm, efetivamente,
apenas respondido ao apelo de Koch (cf. infra) para o dilema da definição do tema
e fornecido uma base sólida o suficiente para permitir que a discussão acadêmica
avance para questões mais profundas.
Não se pode olvidar que Hanson também restringiu o rótulo “apocalíptico”
a certas aplicações adjetivas, deixando margem para considerável confusão, parti-
cularmente quando o termo foi empregado como um substantivo descritivo.15
Mais recentemente, Collins concluiu que “A questão, então, de fazer ‘apocalipse’
em vez de ‘apocalíptica’ como a categoria principal, foi que poderíamos agora nos
referir a um grupo específico de textos, ao invés de um corpo literário indetermi-

15
Notem-se já anteriormente os comentários sobre este aspecto em GLASSON, T. F. What Is A-
pocalyptic? NTS 27.1 (1980), p. 98-105.
46

nado com vagas semelhanças familiares”.16


Vale relembrar a proposta de Klaus Koch, anterior à divisão tripartida na
classificação do fenômeno e considerada um apelo ao mundo acadêmico pela ma-
nifestação sobre o tema. Ele define o termo genérico “apocalíptico” como “espe-
culação que – frequentemente em forma alegórica (...) – pretende interpretar o
curso da história e revelar o fim do mundo”.17 Ele trouxe certa clareza à confusão
terminológica que reinava então; o “apocalipse” trata-se de um “macrogênero”, do
qual se faz necessário distinguir os diversos tipos literários que o compõem. Dis-
tingue “apocalipse” (tipo ou gênero literário) e “apocalíptica” (“movimento inte-
lectual”). Ele tomou como referência os escritos apocalípticos compostos em he-
braico ou aramaico (ou que mostrassem claramente essa influência), os quais iden-
tificou como sendo Daniel, 1 Enoque, 2 Baruque, 4 Esdras, o Apocalipse de Abra-
ão e o Apocalipse de João.18
Assim, submetidos esses escritos à crítica das formas, eles parecem mos-
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trar que havia um estilo apocalíptico em torno da virada da era, ou seja, o apoca-
lipse constituía tipo literário reconhecível, apesar do caráter complexo e de absor-
ver em si mesmo outros gêneros. A “apocalíptica” seria um termo coletivo indi-
cando “um movimento de mente” histórico, cujos motivos19 também seriam identi-
ficáveis, embora não tão fáceis como as marcas crítico-formais do apocalipse co-
mo gênero literário.
Segundo Koch, os motivos desses escritos seriam as condições existenciais
em termos da iminente convulsão em uma grande catástrofe cósmica como ápice
do curso predeterminado da história, em que desempenham papel importante os
“anjos das nações”. Após a catástrofe, os justos viveriam uma salvação paradisía-
ca que nasce no trono de Deus e se torna visível como “o Reino de Deus” sobre a
Terra ou como “a era vindoura” em contraposição a “era presente”; muitas vezes,
a redenção final está associada a “um mediador exercendo funções reais” e é des-
crita como “ressurreição gloriosa” que caracterizará a era vindoura no céu.
Koch identifica oito grupos de temas presentes nos escritos apocalípticos:
uma insistente expectativa de iminente destruição de todas as condições terrestres;

16
COLLINS, J. J. Prophecy, Apocalypse and Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester
Grabbe. In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning: The
Prophetic, the Apocalyptic and Their Relationships, p. 44-52; aqui p. 46.
17
KOCH, Klaus. The Rediscovery of Apocalyptic, p. 33.
18
Ibidem, p. 18-35.
19
O termo aqui, obviamente, usado no sentido da motivgeschichte (“história dos motivos”).
47

o fim através de uma imensa catástrofe cósmica; a relação entre o tempo do fim e
a história antecedente da humanidade e do cosmos; anjos e demônios; catástrofe
seguida por salvação; a entronização de Deus com a vinda de seu reino; o apare-
cimento de um mediador com funções reais; e a glória da era que virá. Ele acredita
que “os oito grupos temáticos que escolhi podem ser indicados para ser distribuí-
dos mais ou menos uniformemente por todos os diferentes apocalipses”.20
Em verdade, ele se baseia no critério de listas formais para determinar a
natureza da apocalíptica, propondo uma solução para o problema da definição ao
listar seis características formais e oito elementos idealizados, um procedimento
cuidadosamente refinado por ele e também por J. G. Gammie,21 severamente criti-
cado por Hanson e W. R. Millar.22 Estes últimos autores propõem substituir o mé-
todo de “lista formal” por um método “contextual-tipológico” construído sobre as
técnicas da crítica da forma e as tipologias de métrica poética (estrutura), tipo de
oráculo profético e continuidade escatológica.
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No caso da escatologia, não estava claro se era uma característica intrínse-


ca à apocalíptica ou um tema à parte, incorporado por ela em alguns casos. Alguns
defendiam já um significado bem restrito para o termo, ao passo que outros defen-
diam uma ampliação na semântica dele.23 S. Mowinckel, por exemplo, defendia
que o adjetivo “escatológico” deve envolver, necessariamente, a ideia de “fim do
mundo”. Segundo ele:
Escatologia é uma doutrina ou um complexo de ideias sobre “as últimas coisas”, o
qual é mais ou menos organicamente coerente e desenvolvido. Cada escatologia
inclui, de uma forma ou de outra, uma concepção dualista do curso da história, e
implica que o presente estado de coisas com a ordem mundial atual repentinamen-
te chegará ao fim e será substituído por outro de tipo essencialmente diferente.
(...) Escatologia também inclui o pensamento de que esse drama tem um caráter
universal, cósmico. O universo em si mesmo, céu e terra, é lançado no crisol. 24

Essa definição foi considerada, posteriormente, insatisfatória. Collins asse-


vera que “expressões do tipo ‘a atual ordem das coisas’ são extremamente vagas.
Toda a esperança futura pode ser descrita por ‘uma nova ordem das coisas’. Isso
em si mesmo não nos dá base para distinguir um tipo de esperança futura de ou-

20
Ibidem, p. 33.
21
GAMMIE, John G. The Classification, Stages of Growth, and Changing Intentions in the Book
of Daniel. JBL 95.2 (1976), p. 191-204.
22
Cf. HANSON, P. D. Jewish Apocalyptic Against Its Near Eastern Environment. RB 78.1 (1971),
p. 31-58; MILLAR, William R. Isaiah 24-27 and the Origins of Apocalyptic, p. 1-9.
23
Cf. VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento, p. 546-552. v. 2.
24
Cf. MOWINCKEL, Sigmund. He That Cometh: The Messiah Concept in the Old Testament and
Later Judaism, p. 125-126.
48

tro”.25 A única coisa que Collins considera essencial nessa definição é a ideia de
um “fim definitivo”.26
Não deixa de ser útil também reiterar as definições de Collins,27 uma vez
que ele estabeleceu a definição que se tornou referência para o estudo posterior da
apocalíptica, e seus postulados continuam a ser os mais conhecidos e mais fre-
quentemente citados. Para ele, um apocalipse “não é constituído por um ou mais
temas distintivos, mas por uma combinação de elementos, os quais são encontra-
dos em outros lugares”.28 Collins define apocalipse como:
Um gênero literário de revelação com uma moldura narrativa, na qual uma reve-
lação é mediada por um ser sobrenatural a um receptor humano, revelando uma
realidade transcendente que é simultaneamente temporal, na medida em que prevê
a salvação escatológica, quanto espacial, na medida em que envolve outro mundo,
29
este sobrenatural.

Como especificação do gênero literário apocalíptico, conforme apresente


mais marcadamente o aspecto temporal ou geográfico (o mundo sobrenatural, con-
forme definição acima), Collins sugere que existem dois tipos básicos: aqueles
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marcados por visões reveladoras relativas à informação ex eventu da história natu-


ral (os apocalipses “históricos”), e aqueles realçando viagens a outros mundos (os
apocalipses de viagens a outro mundo, ou transcendentais), os quais são mais in-
clinados à especulação cosmológica. Como exemplos de apocalipses “históricos”,
ele cita Daniel, o Livro dos Jubileus, 4 Esdras, 2 Baruque e, no 1 Enoque, o Livro
dos Sonhos (83-90) e o Apocalipses das Semanas (91,11-17; 93,1-10); já os apo-
calipses transcendentais seriam o 2 Enoque, 3 Baruque, Testamento de Abraão,
Apocalipse de Abraão, Apocalipse de Sofonias, Testamento de Levi 2-5 e, no 1

25
COLLINS, J. J. Apocalyptic Eschatology As the Transcendence of Death. CBQ 36.1 (1974), p.
21-43; aqui p. 25 (repr. Seers, Sybils and Sages in Hellenistic-Roman Judaism, p. 75-97).
26
Ibidem.
27
Cf. o primeiro tratamento do tema pelo autor em COLLINS, J. J. Introduction: Towards the
Morphology of a Genre. In: Apocalypse: The Morphology of a Genre. Semeia 14 (1979), p. 1-20;
Idem. The Jewish Apocalypses. In: Ibidem, p. 21-59.
28
Idem. The Apocalyptic Imagination: An Introduction to Jewish Apocalyptic Literature, p. 8.
29
Idem (Ed.). Apocalypse: The Morphology of a Genre, p. 9; cf. também Daniel, with an Introduc-
tion to Apocalyptic Literature, p. 4, e The Apocalyptic Imagination, p. 5, onde ele retoma a mesma
definição. Essa não foi a primeira tentativa de definição acadêmica de “gênero apocalíptico’, pelo
menos de “apocalíptica” ainda entendido como termo sinônimo: Robert Noth havia alguns anos
antes definido apocalíptica como sendo “qualquer escrito dito como ou parecendo ser divinamente
inspirado a explanar o verdadeiro sentido e a relevância de revelações anteriores para o futuro ou
os últimos dias, aplicando-os enigmaticamente a eventos presentes em uma estrutura histórica e
astro-cósmica unificante de erudição teórica, com imagens estranhas ou extra-espaciais, e relacio-
nado a um mundo intensamente ativo de seres cuja natureza se encontra entre o divino e o huma-
no” (NORTH, Robert. Prophecy to Apokalyptik via Zechariah. In: ANDERSON, G. W. et al.
(Ed.). Congress Volume: Uppsala 1971 (VTSup 22), p. 47-71; aqui p. 61). Sua definição não en-
controu muita aceitação à época.
49

Enoque, o Livro dos Vigilantes (1-36), as Parábolas (37-71) e o Livro de Astro-


nomia (72-82).30
No primeiro tipo, é feita uma inspeção da história enquanto conducente a
uma crise escatológica sem referência à viagem transcendental; no segundo, estão
aqueles que descrevem viagens para outro mundo e podem se referir à inspeção
histórica, a fenômenos cósmicos ou à sorte do indivíduo após a morte.
Os apocalipses históricos podem ter como meio de revelação a visão de um
sonho simbólico (como em Dn 2 e 7), a epifania, um discurso angelical, um diá-
logo de revelação, midraxe, pesher, e o relato de revelação. O conteúdo da reve-
lação pode ser a profecia ex eventu (que pode ser de dois tipos: periodização da
história, como em Dn 2 e 7, e a profecia relativa a reinado) ou as predições esca-
tológicas.
Já os apocalipses transcendentais, cujas “formas componentes frequente-
mente sobrepõem-se com aquelas dos apocalipses ‘históricos’”,31 podem ter como
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meio de revelação a transportação do visionário e a narrativa de revelação, e co-


mo conteúdo listas de coisas reveladas, as visões das moradias dos mortos, cená-
rios de juízo, visões de trono, e listas de vícios e virtudes.
Quanto ao Apocalipsismo, Collins define como “a ideologia de um movi-
mento que compartilha a estrutura conceptual dos apocalipses”, e apoia “a visão
de mundo na qual a revelação sobrenatural, o mundo celestial e o julgamento esca-
tológico ocupam partes essenciais”.32 Os estudiosos normalmente empregam “ide-
ologia” e “visão” de forma intercambiável.33 Na apocalíptica como visão de mun-
do, afirma Collins: “Os elementos essenciais dessa visão de mundo são: (1) a pro-
eminência de seres sobrenaturais, anjos e demônios, e sua influência sobre os a-
contecimentos humanos e (2) a expectativa de uma decisão final, não somente de
nações, mas do ser humano individualmente”;34 ele afirma também que “eu tenho
argumentado de vez em quando para o uso do substantivo ‘apocalipsismo’ para se

30
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 6-19.
31
Ibidem, p. 14.
32
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: The Encyc-
lopedia of Apocalypticism, p. 129-161. v. 1; aqui p. 147. Cf. também Prophecy, Apocalypse and
Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester Grabbe. In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R.
D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 44-52; aqui p. 46.
33
O mesmo se dará neste trabalho, embora essa terminologia requeira um estudo adicional (especi-
almente no que diz respeito à historiografia e à teologia da história), o qual foge ao escopo desta
pesquisa.
34
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: Op. cit. p.
147.
50

referir à visão de mundo dos apocalipses: uma visão de mundo que enfatiza a ati-
vidade de agentes sobrenaturais e que olha para o julgamento escatológico além da
história, que inclui o julgamento individual dos mortos”.35 Embora o apocalipsis-
mo seja a ideologia (visão de mundo) dos apocalipses, transcende o gênero. Ele
circunscreve mais do que preocupações escatológicas, mas suas coordenadas são
definidas principalmente pela expectativa escatológica e pelo mundo sobrenatu-
ral.36
Quanto à questão da escatologia apocalíptica, Collins assevera que as esca-
tologias apocalípticas são tão distintas quanto as composições literárias das quais
fazem parte, mas em seu núcleo há uma transcendência que “olha para uma retri-
buição além dos limites da morte”.37 De acordo com ele, a antecipação do julga-
mento individual no pós-morte distingue a escatologia apocalíptica de outras ex-
pectativas para com tempo futuro.38 Essas definições assumem que a escatologia
apocalíptica é um tipo de escatologia, enquanto questões escatológicas são fre-
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quentemente questões primárias na apocalíptica, mas não o tema exclusivo dela.


Gêneros literários são normalmente difíceis de serem definidos;39 apesar
disso, Collins afirma que eles não são totalmente resistentes a uma definição,40 e
nem uma inconsistência em sua aplicação compromete a sua utilização intrínseca.
Ao mesmo tempo, ideologias e gêneros desafiam definições perfeitas; a simples
procura pelo isolamento do elemento essencial de qualquer um deles ignora a na-
tureza dinâmica historicamente complexa da evidência. Poderia ainda ser adicio-
nado que não é razoável esperar por uma definição uniforme do gênero de qual-
quer grande grupo de textos compostos durante um período significativo de tem-
po. Assim, embora o apocalipsismo não possa ser reduzido a um gênero literário
uniforme ou apreendido somente como uma convenção literária, qualquer análise
35
Idem. Prophecy, Apocalypse and Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester Grabbe.
In: Op. cit. p. 46.
36
Idem. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism, juntamente com Ap-
pendix: A New Proposal on Apocalyptic Origins. In: COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H.
(Ed.). Mysteries and Revelations: Apocalyptic Studies since the Uppsala Colloquium, p. 11-32;
aqui p. 16. Ligeiramente revisto e republicado, sem o apêndice, em Seers, Sibyls, and Sages in Hel-
lenistic-Roman Judaism, p. 25-38.
37
Idem. The Apocalyptic Imagination, p. 11. Cf. também o tratamento do tema pelo mesmo autor
em Apocalyptic Eschatology as the Transcendence of Death. CBQ 36.1 (1974), p. 21-43; e The
Symbolism of Transcendence in Jewish Apocalyptic. BR 19 (1974), p. 5-22.
38
Idem. Prophecy, Apocalypse and Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester Grabbe.
In: Op. cit. p. 44-52.
39
Cf., por exemplo, a opinião de Alastair Fowler, para quem essa definição torna-se extremamente
subjetiva (FOWLER, A. The Life and Death of Literary Forms. NLH 2.2 (1971), p. 199-216).
40
COLLINS, J. J. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism, juntamente
com Appendix: A New Proposal on Apocalyptic Origins. In: Op. cit. p. 18.
51

envolvendo esses fenômenos deve ser iniciada com os próprios textos antigos.41
Conforme Koch corretamente compreendido,42 esses textos são produtos
de um movimento histórico e devem ser compreendidos dessa forma. Essa prerro-
gativa é ignorada em diversos estudos que buscam analisar o contexto social dos
antigos apocalipses com pouca referência aos textos em si mesmos ou ao seu
background histórico.
A despeito de diversas dificuldades, incluindo uma tendência a ser molda-
do ao seu conteúdo, o rótulo “literatura apocalíptica” permanece uma definição
útil em termos gerais, embora deva ser restringido a casos em que definições pre-
cisas sejam desnecessárias ou inapropriadas. Ele engloba, potencialmente, textos
que funcionam como apocalipses, mas que não são exemplos formais do gênero e,
em termos característicos, uma nebulosa associação de composições cujas defini-
ções permanecem em questão, mas que, tendo em vista determinados fins, podem
ser incluídas numa categoria mais vasta. Conforme a afirmação de Collins, os que
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usam a designação para um determinado texto são responsáveis por identificar de


que forma os constituintes desses textos lembram o corpus central da apocalípti-
ca.43 A designação “apocalíptica”44 descreve uma categoria de textos que admite
apocalipses intimamente relacionados a composições como oráculos apocalípticos
ou testamentos, os quais funcionavam como apocalipses enquanto havia a falta de
um aspecto formal de definição do gênero, por exemplo, como a mediação da re-
velação da figura sobrenatural. Markus Bockmuehl assevera que “o testamento
pode ser mais comum como gênero na apocalíptica do que o próprio apocalipse

41
COLLINS, J. J. Response: The Apocalyptic Worldview of Daniel. In: BOCCACCINI, G. (Ed.).
Enoch and Qumran Origins: New Light on a Forgotten Connection, p. 59-66; aqui p. 59; Idem.
Prophecy, Apocalypse and Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester Grabbe. In:
GRABBE, L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 44-52; aqui p. 47;
Idem. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism, juntamente com Appen-
dix: A New Proposal on Apocalyptic Origins. In: Op. cit. p. 13. Cf. também ADLER, W. Introduc-
tion. In: VANDERKAM, J. C.; ADLER, W. (Ed.). The Jewish Apocalyptic Heritage in Early
Christianity, p. 1-31.
42
KOCH, Klaus. The Rediscovery of Apocalyptic, p. 23.
43
COLLINS, J. J. Prophecy, Apocalypse and Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester
Grabbe. In: Op. cit. p. 44-52.
44
No presente trabalho, empregamos a designação apocalíptica com certa parcimônia, procurando
seguir a orientação de justificar seu uso. Em linha geral, essa literatura inclui conflito, escatologia e
universalismo. A história humana e a cósmica pertencem conjuntamente a um desdobramento do
grande e dramático conflito entre bem e mal. A era de conflito será difícil e amarga, mas se encer-
rará brevemente. O triunfo do bem, liderado por sua divindade, está assegurado, e junto com ele o
triunfo de seu povo. Essa vitória se alcançará não por desenvolvimento natural, mas ou por revolu-
ção ou, preferivelmente, por uma intervenção catastrófica e sobrenatural. A própria divindade do-
minará sobre a história em um ato poderoso de julgamento e estabelecerá seu reino. Essa noção de
final da história é um tema recorrente nessa literatura, e é esse fim que dá sentido ao presente e ao
passado; e, também nele, todas as coisas, na Terra e no Céu, receberão sua recompensa merecida.
52

em si mesmo”.45
Para Gerhard Von Rad, a apocalíptica não representaria um “gênero” espe-
cífico do ponto de vista literário. Pela história das formas ela é, na verdade, um
mixtum compositum que levaria a uma pré-história muito complexa do ponto de
vista da história das tradições.46
J. G. Gammie também assevera que a literatura apocalíptica não constitui
um bloco monolítico. Ele classifica as variadas formas literárias da apocalíptica
como “subgêneros”:
Os subgêneros recorrentes da literatura apocalíptica são: comunicação de visão,
vaticínio ex eventu, parêneses, gêneros litúrgicos (bênçãos, lamento, hinos e ora-
ções), sabedoria natural, estórias, fábulas, alegorias, diálogos, enigmas, mashal ou
47
parábola, interpretação de profecia ou pesharim e previsões escatológicas.

De qualquer forma, as definições de Collins têm sido aperfeiçoadas, refor-


muladas, ratificadas e criticadas. Diversos trabalhos que contribuíram para a dis-
cussão aparecem no volume de Uppsala citado acima, embora os participantes da
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conferência não tenham conseguido chegar a um consenso sobre uma definição


comum. Desses, a contribuição de Sanders é possivelmente a mais crítica.48 Rea-
gindo a uma aparente incapacidade por parte dos muitos exemplos do gênero usa-
dos para refletir a maioria de seus elementos característicos, ele avança para uma
definição essencial do apocalipse centrando-se na revelação e promessa de reden-
ção ou justificação de um determinado grupo.49 Essa definição é suficientemente
ampla para incluir muitos dos escritos proféticos e é o motivo provável pelo qual
os estudiosos falharam em adotá-la. Além disso, Sanders já supõe há muito o no-
mismo de aliança, o qual ele distingue tanto como padrão de religião comum ao
judaísmo antigo quanto como um elemento central de apocalipses como 1 Eno-
que.50 Collins cita numerosos textos para opor-se à tese de Sanders e observa que

45
BOCKMUEHL, M.N.A. Revelation and Mystery in Ancient Judaism and Pauline Christianity,
p. 24, nota 2 (grifo no original).
46
VON RAD, G. Daniel e a apocalíptica. In: Teologia do Antigo Testamento, p. 723-744; aqui p.
738, n. 453.
47
GAMMIE, J. G. The Classification, Stages of Growth, and Changing Intentions in the Book of
Daniel. JBL 95.2 (1976), p. 191-204; aqui p. 193.
48
SANDERS, E. P. The Genre of Palestinian Jewish Apocalypses. In: HELLHOLM, D. (Ed.).
Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 447-459.
49
Ibidem, p. 456.
50
Sanders define “monismo de aliança” como sendo “a visão de que a posição ocupada pelo indi-
víduo no plano de Deus é estabelecida com base na aliança e que esta exige do homem, como res-
posta apropriada, a obediência aos seus mandamentos, ao mesmo tempo provendo meios de expia-
ção pelas transgressões (...) A obediência mantém a posição do indivíduo na aliança, mas não con-
quista a graça de Deus como tal (...) Justiça, no judaísmo, é um termo que implica a manutenção da
53

a reivindicação por revelação especial feita pelos apocalipses é em grande parte


incompatível com o conceito de Torá, publicamente bastante difundido à época51.
Essa reivindicação é também a base para a criação e adesão de uma identidade dis-
tinta, o que explica, sociologicamente, que o apocalipsismo tende a se inclinar ao
sectarismo.
Christopher Rowland propõe um diferente tipo de argumento. Ao invés de
extirpar elementos específicos da definição do gênero, ele defende a eliminação de
toda a categoria de conteúdo. O que permanece é um gênero definido unicamente
pela sua forma literária, que ele distingue como a revelação dos mistérios celes-
tes.52 Significativamente, sua definição não relaciona apocalipses à escatologia,53
embora ela proponha uma conexão com misticismo.
Por um lado, muitos estudiosos não aceitam a tese de Rowland. Uma obje-
ção óbvia é que a revelação dos mistérios celestes caracteriza um espectro abran-
gente de literatura de prognóstico, incluindo a adivinhação, a profecia e oráculos,
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e assim ainda deixa o problema da diferenciação entre o gênero apocalíptico e es-


sas outras formas literárias.54 Além disso, uma apreciação do conteúdo faz distin-
ção entre apocalipses e uma categoria mais ampla de revelação de mistérios celes-
tes, e desde que os apocalipses são notavelmente mais preocupados com escatolo-
gia, seria “unilateral” omitir essa preocupação já a partir da definição.55 Em uma
investigação sobre sabedoria esotérica e escatologia, Owen conclui que a literatura
apocalíptica do Período do Segundo Templo é abundantemente preocupada com

condição social entre o grupo dos eleitos” (cf. SANDERS, E. P. Paul and Palestinian Judaism: A
Comparison of Patterns of Religion, p. 75, 420, 544). Em outras palavras, a obediência à Lei nunca
foi considerada um meio de entrar na aliança, mas sim um meio para manter o relacionamento de
aliança com Deus. Sobre isso, Jacob Neusner, embora crítico da metodologia de Sanders, em rese-
nha sobre a obra afirma que “até onde Sanders se propõe a demonstrar a importância do nomismo
da aliança, da eleição, da expiação e de coisas semelhantes para todos os tipos de judaísmo antigo,
seu trabalho pode ser considerado um grande sucesso” (cf. NEUSNER, J. Comparing Judaisms.
HR 18.2 (1978), p. 171-191; aqui p. 180).
51
COLLINS, J. J. Ethos and Identity in Jewish Apocalyptic Literature. In: KONRADT, M.;
STEINERT, U. (Ed.). Ethos und Identität: Einheit und Vielfalt des Judentums in hellenistisch-
römischer Zeit, p. 51-65.
52
Cf. ROWLAND, C. The Open Heaven: A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christiani-
ty, p. 12.
53
Cf. STEGEMANN, H. Die Bedeutung der Qumranfunde für die Erforschung der Apokalyptik.
In: HELLHOLM, D. (Ed.). Op. cit. p. 495-530.
54
Cf. o tratamento da questão, por exemplo, em MALINA, Bruce J. On the Genre and Message of
Revelation: Star Visions and Sky Journeys (1995); GRABBE, L. L. Prophetic and Apocalyptic:
Time for New Definitions – and New Thinking. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing
the End from the Beginning, p. 107-133.
55
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination, p. 10; Idem. Genre, Ideology, and Social Move-
ments in Jewish Apocalypticism. In: COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries
and Revelations, p. 11-32; aqui p. 15; WEBB, R. L. ‘Apocalyptic’: Observations on a Slippery
Term. JNES 49.2 (1990), p. 115-126.
54

escatologia, à qual um interesse em segredos celestiais é subordinado.56


Por outro lado, o trabalho de Rowland revelou-se um catalisador para vá-
rios exames criteriosos na definição e classificação do tema, particularmente a re-
lação formal entre apocalipses e outras formas de revelação de conhecimento. Da-
vies, por exemplo, modifica a definição de Rowland com alguns elementos de
Collins: trata-se de “uma comunicação literária de conhecimento esotérico, supos-
tamente mediado por uma figura celeste para (normalmente) uma figura renomada
do passado”.57 Essa definição inclui elementos formais que podem separar o apo-
calipse, por exemplo, da profecia, simultaneamente evitando qualquer menção aos
conteúdos da comunicação de conhecimento esotérico. Bauckham acrescenta certo
conteúdo ao conceito central de revelação: “Os apocalipses são uma literatura de
revelação na qual os videntes recebem, por agente celestial, revelação dos misté-
rios da criação e do cosmos, história e escatologia”.58
Como Rowland, Grabbe concentra sua atenção sobre a noção da revelação
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dos segredos divinos, mas vê isso como um elemento comum nas literaturas profé-
tica, apocalíptica e mântica.59 Sturm se concentra sobre o conceito teológico em
detrimento do gênero apocalíptico, uma abordagem que ilumina o conceito central
de revelação.60 Bilde assevera que “o núcleo da mensagem apocalíptica e dos li-
vros apocalípticos pode ser descrito como o desmascaramento dos planos secretos
de Deus”.61
Alguns criticaram a definição de gênero apocalíptico da SBL como sendo
não-histórica.62 Collins responde sublinhando o caráter fundamentalmente históri-

56
OWEN, Paul. The Relationship of Eschatology to Esoteric Wisdom in the Jewish Pseudepigra-
phal Apocalypses. In: EVANS, Craig A. (Ed.). Of Scribes and Sages: Early Jewish Interpretation
and Transmission of Scripture, p. 122-133. v. 2.
57
DAVIES, P. R. The Social World of Apocalyptic Writings. In: CLEMENTS, R. E. (Ed.). The
World of Ancient Israel: Sociological, Anthropological and Political Perspectives, p. 251-271;
aqui p. 254.
58
BAUCKHAM, R. Apocalypses. In: CARSON, D.A.; O’BRIEN, P.T.; SEIFRID, M.A. (Ed.).
Justification and Variegated Nomism: The Complexities of Second Temple Judaism, p. 135-187. v.
1; aqui p. 135.
59
GRABBE, L. L. Prophetic and Apocalyptic: Time for New Definitions – and New Thinking. In:
Op. cit. p. 107-133; aqui, especialmente p. 123.
60
STURM, R. E. Defining the Word ‘Apocalyptic’: A Problem in Biblical Criticism. In: MAR-
CUS, J.; SOARDS, M. L. (Ed.). Apocalyptic and the New Testament: Essays in Honor of J. Louis
Martyn, p. 17-48.
61
BILDE, P. Gnosticism, Jewish Apocalypticism, and Early Christianity. In: JEPPESEN, K.;
NIELSEN, K.; ROSENDAL, B. (Ed.). In the Last Days: On Jewish and Christian Apocalyptic and
Its Period, p. 9-32; aqui p. 20.
62
Cf., por exemplo, RUDOLPH, K. Apokalyptik in der Diskussion. In: HELLHOLM, D. (Ed.).
Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 771-789; TIGCHELAAR, E. J.
C. More on Apocalyptic and Apocalypses. JSJ 18.2 (1987), p. 137-144; e a resenha da obra de
Uppsala em GARCÍA MARTÍNEZ, F. Encore l’apocalyptique. JSJ 17.2 (1986), p. 224-232.
55

co da definição e elementos inerentes ao estudo do tema, bem como a complemen-


tação dos aspectos sincrônicos e diacrônicos do estudo de qualquer gênero literá-
rio.63 Na mesma obra, Hellholm postula uma definição mais estruturada de um
gênero literário; ele discute abordagens paradigmáticas e sintagmáticas para as
análises de textos como entidades de gênero, as definições de textos isolados ou
em grupos de gênero, e a relação entre revelação e apocalipse. Ele assevera que
definições hierárquicas são a chave para a compreensão de gêneros literários. Es-
pecificamente, o gênero apocalíptico é uma espécie de escrito de revelação, o qual
inclui escritos proféticos e oráculos e que consiste em três subgêneros: apocalipses
com jornadas transcendentais, sem jornadas, e com ambos (com e sem).64
Os treze “elementos-paradigma” e as seis tipologias promulgadas pelo
grupo da SBL em Semeia 1465 foram ocasionalmente mais tarde usados com rigor
exagerado por aqueles que talvez não tenham compreendido a função de paradig-
ma ou tipologia ou não souberam avaliar a precisa relação de cada um dos dois
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com a evidência literária. Em verdade, os membros da SBL tendiam a não empre-


gar ou até mesmo a não citar de forma completa o paradigma ou tipologia em suas
publicações posteriores. O próprio Collins observa que, enquanto as distinções
mais sutis da classificação original permanecem precisas, “Eu as encontrei menos
importantes em meu trabalho posterior”.66
Apesar de amplamente divulgadas e usadas, as distinções entre apocalipse,
apocalipsismo e escatologia apocalíptica não acharam consenso em nível mundial.
Frequentemente este é o resultado de um uso acrítico da terminologia. Collins as-
severa que a escola britânica permanece mais inclinada a resistir à divisão triparti-
da.67 Nesse caso específico, parece que a influência de Rowland é mais forte, em-
bora se possa suspeitar que tenha sido mais o resultado da difusão geral de suas
ideias do que exatamente uma influência direta. Bauckham, por exemplo, assevera

63
COLLINS, J. J. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism. In: COL-
LINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 11-32.
64
HELLHOLM, D. Methodological Reflections on the Problem of Definition of Generic Texts. In:
COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Op. cit. p. 135-163.
65
Cf. especialmente COLLINS, J. J. The Jewish Apocalypses. In: Apocalypse: The Morphology of
a Genre. Semeia 14 (1979), p. 21-59.
66
COLLINS, J. J. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism. In: Op. cit.
p. 14.
67
Idem. Prophecy, Apocalypse and Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester Grabbe.
In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 44-52; aqui
p. 44-45.
56

que “a apocalíptica não é uma ideologia, mas sim um gênero”.68 Grabbe continua
a utilizar o substantivo “apocalíptico” para descrever um corpo de literatura,69 em-
bora ele também empregue “literatura apocalíptica”, a qual pode ser ou não um
substituto para “escritos apocalípticos e afins”.70 Davila também emprega o termo
“apocalíptico” para se referir a uma coleção de textos literários.71 Neste aspecto,
Collins refuta tanto Grabbe quanto Davila.72
Bloomquist mantém o rótulo de “apocalíptico” à luz de sua crítica acerca
da inadequação das atuais definições.73 García Martínez também prefere o termo,
“pela falta de um nome melhor”.74 Ele define “apocalíptico” como uma corrente
conceitual originada na tradição profética ou sapiencial, mas moldada durante um
longo período de tempo dentro do contexto cultural e religioso da época do Juda-
ísmo do Segundo Templo, no qual essa corrente reagiu de forma interativa com
outras correntes de pensamento, e em diferentes obras hoje designadas “apocalip-
ses”.75 Boccaccini, ao descrever a contribuição da escola italiana para o estudo dos
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apocalipses antigos e do apocalipsismo, deixa entrever que, em certa medida, o


ponto de partida da discussão foi a ideologia em vez do gênero.76 Dimant define
um apocalipse como “um discurso em primeira pessoa relacionado à revelação
divina concedido a um sábio visionário e interpretado por meio de sabedoria divi-
na”.77 Para Tigchelaar, “apocalíptico” é propriamente um modo de pensar, em vez
de uma expressão literária. Isso pode ser aplicado a um tipo de escatologia, mas
somente com a percepção de que a escatologia apocalíptica não é monolítica no

68
BAUCKHAM, R. Apocalypses. In: CARSON, D.A.; O’BRIEN, P.T.; SEIFRID, M.A. (Ed.).
Justification and Variegated Nomism, p. 135-187. v. 1; aqui p. 135.
69
GRABBE, L. L. Poets, Scribes or Preaches? The Reality of Prophecy in the Second Temple Pe-
riod. In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 192-215; Idem. Prophetic and Apo-
calyptic: Time for New Definitions - and New Thinking. In: Ibidem, p. 107-133.
70
Idem. Poets, Scribes or Preaches? The Reality of Prophecy in the Second Temple Period. In:
Ibidem, p. 197.
71
DAVILA, J. R. The Animal Apocalypse and Daniel. In: BOCCACCINI, G. (Ed.). Enoch and
Christian Origins: New Light on a Forgotten Connection, p. 35-38; aqui p. 36.
72
COLLINS, J. J. Response: The Apocalyptic Worldview of Daniel. In: BOCCACCINI, G. (Ed.).
Op. cit. p. 59-66; aqui p. 59-60.
73
BLOOMQUIST, L. Gregory. Methodological Criteria for Apocalyptic Rhetoric: A Suggestion
for the Expanded Use of Sociorhetorical Analysis. In: CAREY, G.; BLOOMQUIST, L. G. (Ed.).
Vision and Persuasion: Rhetorical Dimensions of Apocalyptic Discourse, p. 181-203.
74
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Qumran and Apocalyptic: Studies on the Aramaic Texts
from Qumran, p. x.
75
Ibidem, p. x, nota 9.
76
BOCCACCINI, G. Jewish Apocalyptic Tradition: The Contribution of Italian Scholarship. In:
COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 33-50.
77
DIMANT, D. Apocalyptic Texts at Qumran. In: ULRICH, E.; VANDERKAM, J. (Ed.). The
Community of the Renewed Covenant: The Notre Dame Symposium on the Dead Sea Scrolls, p.
175-191; aqui p. 179.
57

tipo e nem limitada aos apocalipses em suas manifestações. Sobre gênero e ideo-
logia, ele afirma:
A própria distinção entre um gênero “apocalíptico” e um modo apocalíptico é a-
penas um modelo para explicar as enormes diferenças entre os textos que são to-
dos chamados apocalípticos por uma razão ou outra. Uma aplicação rígida desse
modelo possui dois inconvenientes. O modelo não serve para explicar esses textos
em si mesmos, mas apenas sua relação com um problema surgido a partir de ou-
tros textos. Portanto, essa abordagem provavelmente não produzirá uma nova
perspectiva acerca do problema da apocalíptica. Finalmente, a distinção proposta
entre um gênero apocalíptico e um modo apocalíptico pode não corresponder a
todos os aspectos de forma e conteúdo nos textos chamados proto-apocalípticos.
Primeiramente, pode-se perguntar em que extensão um gênero corresponde à
forma e um modo está relacionado ao conteúdo. Em segundo lugar, a distinção
tradicional entre forma e conteúdo pode ser útil em alguns aspectos, mas, uma vez
que essas são categorias de diferentes tipos, não será possível diferenciá-las cla-
78
ramente em qualquer texto individualmente.

M. Saebo afirma que a “apocalíptica” é simultaneamente um fenômeno te-


ológico e literário, com alguma relação tanto com a “profecia” quanto com a “sa-
bedoria”.79 De igual modo, Bockmuehl emprega “apocalíptica” para descrever
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tanto o gênero literário quanto a “perspectiva teológica”.80 S. L. Cook argumenta


que “apocalipsismo” é ao mesmo tempo gênero, cosmovisão e fenômeno históri-
co-social.81 Todos esses citados representam apenas uma pequena amostra das
múltiplas variações sobre o tema: a definição de apocalíptico ou apocalíptica.
David Sim sustenta que apocalipses e apocalipsismo não estão necessaria-
mente vinculados: algumas expressões clássicas da escatologia apocalíptica não
aparecem em apocalipses, enquanto vários apocalipses contêm quase nenhum ma-
terial escatológico. Ele questiona a distinção de Collins entre apocalipses históri-
cos e apocalipses transcendentais, e considera que uma análise atenta de cada um
dos tipos leva à conclusão de que o problema básico é que existem de fato dois
tipos de apocalipsismo: o primeiro, escatológico, prevê o fim da história, ao passo
que o segundo, místico, aguarda com expectativa a recompensa individual no pós-
morte. Sim observa que houve um fluxo distinto no Judaísmo do Segundo Templo

78
TIGCHELAAR, E.J.C. Prophets of Old and the Day of the End: Zechariah, the Book of Watch-
ers, and Apocalyptic, p. 243.
79
SAEBO, M. Old Testament Apocalyptic in Its Relation to Prophecy and Wisdom: The View of
Gerhard von Rad Reconsidered. In: JEPPESEN, K.; NIELSEN, K.; ROSENDAL, B. (Ed.). In the
Last Days: On Jewish and Christian Apocalyptic and Its Period, p. 78-91; aqui p. 85-87.
80
BOCKMUEHL, M. N. A. Revelation and Mystery in Ancient Judaism and Pauline Christianity,
p. 24.
81
COOK, S. L. Mythological Discourse in Ezekiel and Daniel and the Rise of Apocalypticism in
Israel. In: GRABBE, Lester L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 85-
106; aqui p. 85.
58

por trás de cada tipo.82


No entanto, pode-se observar que a forma presente de Dn 10-12 e qualquer
forma literária anterior a 70 d.C. de 1 Enoque que contenha o Livro dos Vigilantes
e o Apocalipse dos Animais enfraquecem esse argumento.
Outras concepções de apocalipsismo ampliam ou complementam as con-
cepções propostas por Hanson ou Collins. Detectando a ênfase contínua em ele-
mentos históricos como característicos da escatologia apocalíptica, Himmelfarb
levanta a questão “se a transcendência é a chave para os apocalipses, precisamos
ainda perguntar: Que tipo de transcendência?”.83 Acerca do tema do 1 Enoque,
mas referindo-se ao apocalipsismo em geral, Nickelsburg observa que a revelação
é uma “parte inseparável” da visão de mundo.84 Para os três componentes básicos
da definição, Torleif Elgvin adiciona o elemento social da eclesiologia: a relação
entre revelação e a comunidade escatológica escolhida particularmente para essa
revelação.85 David Aune acrescenta à definição de Hanson de apocalipsismo o
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componente do linguajar da escatologia apocalíptica, ou seja, o fato de que “temas


e motivos encontrados em uma variedade de configurações literárias deixaram de
ser usados no contexto estrutural de uma cosmovisão apocalíptica coerente”.86 Pa-
ra as dimensões espaciais e temporais da definição de gênero estabelecida por Col-
lins, Kreitzer também acrescenta uma terceira dimensão, a dimensão antropológi-
ca.87
J. W. Marshall define a visão de mundo apocalíptica como “a amplitude do
contexto, o alcance além dos modos empíricos de conhecimento, o uso intertextual
particular, a expectativa de uma intervenção de além da fronteira, e a forte preo-
cupação moral”.88 Gruenwald postula três ramos de apocalipsismo, um com rela-

82
SIM, David C. Apocalyptic Eschatology in the Gospel of Matthew, p. 21-92.
83
HIMMELFARB, M. The Experience of the Visionary and Genre in the Ascension of Isaiah 6-11
and the Apocalypse of Paul. In: YARBRO COLLINS, Adela (Ed.). Early Christian Apocalyptic-
ism: Genre and Social Setting. Semeia 36 (1986), p. 97-111; aqui p. 109.
84
NICKELSBURG, G.W.E. The Apocalyptic Construction of Reality in 1 Enoch. In: COLLINS,
J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 51-64.
85
ELGVIN, Torleif. Wisdom with and without Apocalyptic. In: FALK, D. K.; GARCÍA
MARTÍNEZ, F.; SCHULLER, E. M. (Ed.). Sapiential, Liturgical, and Poetical Texts from Qu-
mran: Proceedings of the Third Meeting of the International Organization for Qumran Studies,
Oslo, 1998, p. 15-38; aqui p. 16.
86
AUNE, David E. Transformations of Apocalypticism in Early Christianity. In: GRABB, Lester
L.; HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 54-64; aqui p. 56,
87
KREITZER, L. J. Apocalyptic, Apocalypticism. In: MARTIN, R. P.; DAVIDS, P. H. (Ed.).
DLNTD, p. 61-66.
88
MARSHALL, J. W. Apocalypticism and Anti-Semitism: Inner-Group Resources for Inter-Group
Conflicts. In: KLOPPENBORG, J. S.; MARSHALL, J. W. (Ed.). Apocalypticism, Anti-Semitism
and the Historical Jesus: Subtexts in Criticism, p. 68-82; aqui p. 70.
59

ção às histórias do Gênesis, outro conectando os profetas desde Moisés até Sofo-
nias, e um terceiro ligado a figuras contemporâneas à destruição do Primeiro ou do
Segundo Templo.89 Mais tarde, em outro ensaio, ele reduz esse número a dois ra-
mos: o da época pré-diluviana e o de circunstâncias de pós-destruição.90
Por fim, o tema da escatologia apocalíptica possui fortes pontos de contato
com várias outras questões importantes. A expectativa de julgamento individual
no pós-morte como uma característica definidora de escatologia apocalíptica é
suscetível de ser qualificada por um determinado ponto de vista sobre a interpreta-
ção de trechos críticos, como Is 26,14.19 e Ez 37,1-14, e, possivelmente, também
sobre o valor da categoria “proto-apocalíptica”. Muitas questões acerca da escato-
logia apocalíptica ainda precisam ser mais bem respondidas; algumas são funda-
mentais, como a relação entre escatologia e gênero, e têm sido respondidas satisfa-
toriamente;91 já outras apontam para caminhos os quais os estudos acadêmicos no
século XXI estão trilhando: (1) se a designação de “apocalíptico” deve ser reser-
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vada para os textos que claramente presumem ou pressupõem revelação; (2) se ela
deveria ser aplicada a textos cuja revelação base é de fato um apocalipse; (3) se a
escatologia dualística, mítica provém de textos de revelação; (4) se a autoridade é
concedida aos autores de semelhantes textos por meio de tal revelação.

2.2. O discurso apocalíptico

Linguajar apocalíptico e discurso estão intimamente relacionados e consti-


tuem uma ampliação da visão de mundo que pressupõe e confirma a ideologia da
apocalíptica e que, em última análise, desempenha um papel na produção dos apo-
calipses.92
O linguajar dos apocalipses é poético, expressivo, repetitivo, cheio de alu-
sões mitológicas e a livros sagrados, sendo assim, a partir de uma perspectiva mo-

89
GRUENWALD, I. The Cultural Setting of Enoch-Apocalypticism: New Reflections. Henoch 24
(2002), p. 213-223.
90
Idem. Apocalypticism and the Religion and Ritual of the “Pre-Sinaitic” Narratives. In: BOC-
CACCINI, G. (Ed.). Enoch and Qumran Origins, p. 148-151.
91
Importantes questões sobre a revelação e função da escatologia apocalíptica em Qumran são
levantadas por NICKELSBURG, G. W. E. The Nature and Function of Revelation in 1 Enoch,
Jubilees, and Some Qumranic Documents. In: CHAZON, E. G.; STONE, M. E. (Ed.). Pseudepi-
graphic Perspectives: The Apocrypha and Pseudepigrapha in Light of the Dead Sea Scrolls. Pro-
ceedings of the International Symposium of the Orion Center for the Study of the Dead Sea Scrolls
and Associated Literature, 12-14 January 1997, p. 91-119; aqui especialmente p. 112-113.
92
Para um tratamento inicial do tema, cf. WILDER, Amos N. The Rhetoric of Ancient and Mod-
ern Apocalyptic. Int 25.4 (1971), p. 436-453.
60

derna, inconsistentes ou mesmo incoerentes. De acordo com Aune e Stewart, a


especulação escatológica na literatura apocalíptica do Período do Segundo Templo
“parece resistente à consistência e coerência”, pois contém o que aos olhos mo-
dernos pode parecer um amálgama de cenários desordenados, contraditórios ou
inconsistentes.93 Além disso, o vocabulário dos textos apocalípticos é caracteristi-
camente enigmático e projeta certo grau de mistério e indeterminação que permite
várias compreensões e interpretações, e em muitos casos concomitantes.
De fato, as características dos escritos apocalípticos assinaladas pelos auto-
res em geral incluem o transcendentalismo, a mitologia, a descrição cosmológica,
a unidade da história e descrição pessimista dela, o dualismo com a doutrina das
Duas Eras, a divisão do tempo em períodos, a numerologia, o pseudoêxtase, rei-
vindicações artificiais de inspiração, pseudonímia e esoterismo.94 Russel especifi-
ca essas características gerais como sendo: a concepção da história cósmica relati-
va à Terra e céu, a ideia da originalidade das revelações desses escritos concernen-
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tes à criação e queda dos homens e dos anjos, a fonte do mal no universo e a parte
desempenhada nele por influências angelicais, e o conflito entre bem e mal (que se
dá na forma de luz e trevas, ou Deus e Satanás); além disso, ele acrescenta o sur-
gimento de uma figura transcendental chamada “Filho do Homem” e o desenvol-
vimento da crença em vida após a morte em seus vários compartimentos (como
Inferno, Geena, Paraíso e Céu), com a progressiva ênfase no aspecto individual da
ressurreição e do juízo. Tais aspectos dariam, segundo ele, a impressão de perten-
cerem a um modo particular de pensamento e de crença.95
Quanto às características estritamente literárias (sem levar em conta o con-
teúdo da mensagem), Russell distingue quatro, as quais, além de identificar o mé-
todo adotado pelos apocalípticos, acentuam a diferença de seus escritos para com
os escritos proféticos: o caráter esotérico, a formulação por escrito, o linguajar
simbólico e a pseudonímia da autoria.96 Segundo ele, o caráter esotérico reside no
fato de que os livros apocalípticos alegam ser revelações de segredos divinos fei-
tas a certos indivíduos ilustres, os quais as registraram para instrução e encoraja-
mento aos justos e eleitos entre o povo de Deus. Esses segredos normalmente são

93
AUNE, D.; STEWART, E. From the Idealized Past to the Imaginary Future: Eschatological Res-
toration in Jewish Apocalyptic Literature. In: SCOTT, James M. (Ed.). Restoration: Old Testa-
ment, Jewish, and Christian Perspectives, p. 147-177; aqui p. 175.
94
Cf. RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 105.
95
Ibidem.
96
Ibidem, p. 107-139.
61

conhecidos através de um sonho ou visão em que um visionário é tomado e levado


ao Céu ou ao Hades. A visão pode consistir de uma recapitulação da história do
mundo até a época na qual o visionário e escritor está supostamente vivendo. Por
vezes, um guia angelical explica ao visionário o significado dos acontecimentos
no Céu e na Terra, incluindo o destino e julgamento do mundo, a vinda do Reino
de Deus, o castigo dos maus e recompensa dos justos. Podemos verificar que, nes-
te caso, trata-se dos apocalipses de “viagens” transcendentais propostos por Col-
lins.
Em três desses livros (1 Enoque, Jubileus e Testamento dos XII Patriarcas)
é feita referência a “tabuletas celestiais” nas quais estão registrados os segredos
das Eras, sendo que somente alguns altamente privilegiados têm permissão para
ler e copiar em seus livros secretos. Esses livros eram então finalmente revelados
aos tementes a Deus, o que constituía um sinal de que o mundo estava se dirigindo
para o seu fim, o qual estava próximo, trazendo com ele o cumprimento dos eter-
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nos propósitos divinos.


A segunda característica literária desses escritos, segundo Russell, é o fato
de os apocalipses transmitirem sua mensagem por escrito, diferentemente da tradi-
ção profética. Os profetas, em sua maior parte, declaram sua mensagem de forma
oral, sendo redigida posteriormente por eles, seus discípulos ou, bem mais tarde,
por editores. No período pós-exílico, a profecia passou a ser formulada na forma
escrita, com o surgimento de muitos oráculos anônimos; entretanto, eram atribuí-
dos às falas dos grandes profetas do passado, buscando a autoridade no “assim diz
o Senhor” daqueles profetas. Os apocalípticos, ao contrário, asseguram que sua
mensagem foi escrita em um passado distante, pois deveria ser preservada por vá-
rias gerações até o fim, o qual estava próximo.
A terceira característica é justamente o linguajar simbólico. Para expressar
cenas de altíssima dramaticidade, não seria eficiente utilizar o linguajar sóbrio da
prosa comum; para tanto, os apocalipses utilizam um linguajar imaginativo, extra-
vagante e exótico, com muitas figuras fantásticas e bizarras. Por vezes, as figuras
são reinterpretadas, fazendo com que não haja garantia de mesmo significado de
um livro para outro. Com certeza, empréstimos foram feitos à mitologia babilôni-
ca, usando seus equivalentes judaicos, como a figura de Tiamat, reconhecida como
Dragão, Leviatã, Raab ou Serpente, monstro primevo do Caos.
Assim, muitos símbolos nesses escritos têm origem mitológica; entretanto,
62

às vezes são figuras que não têm origem mitológica, como o caso da visão dos
quatro animais em Dn 7 (leão com asas de águia, urso com três costelas na boca,
leopardo com quatro asas e quatro cabeças, e um grande animal com dez chifres e
grandes dentes de ferro). Com certeza, esses símbolos eram parte de material tra-
dicional cujo uso ajudava a manter o senso esotérico de segredo e mistério. Tal
simbologia aparece também em relação aos números, como o três, o quatro, o sete,
dez, doze e setenta, ou múltiplos deles, com uso recorrente nos escritos apocalípti-
cos.
De fato, os elementos míticos desempenham um importante papel no lin-
guajar apocalíptico, refletindo inclusive antigos mitos no conteúdo de certos apo-
calipses, particularmente os mais antigos.97
A quarta característica literária é a autoria pseudonímica (no caso de Dani-
el, o apocalipse mais maduro do AT, os seis primeiros capítulos são de autoria a-
nônima e os demais pseudônimos). As visões são creditadas a grandes nomes do
passado; suas revelações se dão na forma de profecia ex eventu. 98
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Essas características apontadas por Russell e outros autores são importan-


tes especialmente por três razões: primeiramente, o alto grau de repetição e incon-
sistência torna os métodos acadêmicos, críticos, menos eficazes como ferramentas
para a análise da história e da redação do texto. Repetições textuais ou inconsis-
tências, por exemplo, não são evidência prioritária de múltiplos estratos literários.
No entanto, a estrita aplicação desse argumento, ou seja, da ineficácia dos méto-
dos acadêmicos, pode ser potencialmente incompatível com a função de apocalip-
ses do tipo histórico. Em segundo lugar, as qualidades enigmáticas e alusivas dos
dados revelados permitem a repetição de eventos esperados ou motivos, frequen-
temente a partir de pontos de vista divergentes. Este dispositivo, cuja designação
formal é “recapitulação”, desempenha um papel importante em vários apocalipses
que apresentam elementos histórico-políticos, incluindo-se aqui o livro do Apoca-
lipse.99 Terceiro, essas qualidades permitem interpretações múltiplas ou até mes-
mo sequenciais. Por exemplo, Dn 9 reinterpreta as setenta semanas de Jr 25,11-12;
29,10; a Visão da Águia de 4Esd 11-12 reinterpreta a quarta besta de Dn 7.
No caso do Livro do Apocalipse, seu linguajar, símbolos e técnicas narra-

97
Cf. especialmente HANSON, P. D. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological
Roots of Early Jewish Apocalyptic Eschatology, p. 292-388.
98
Sobre a pseudonímia dos escritos apocalípticos, trataremos adiante.
99
Cf. YARBRO COLLINS, Adela. The Book of Revelation. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyc-
lopedia of Apocalypticism, p. 384-414. v. 1.
63

tivas evocam e reforçam a resposta de medo e ressentimento da ordem romana


entre os destinatários do livro.100 Ao mesmo tempo, o véu que encobre a realidade
oculta do Jesus exaltado, o controlador da história e do destino, é removido, e a
verdadeira ordem das coisas é revelada. Isso permite a intenção catártica do livro:
por meio dela a destruição dos inimigos dos fiéis e a garantia da restauração esca-
tológica dos oprimidos permite à audiência livrar-se dos sentimentos emocional-
mente traumáticos com esta resolução sobrenatural para seu dilema atual.101
Carey define o discurso apocalíptico como uma categoria superior à “lin-
guagem apocalíptica” de Collins, como “a constelação de temas apocalípticos tal
como eles funcionam na maior parte da literatura judaica e cristã primitiva e nos
contextos sociais”.102 Afirma ainda:
Portando, o discurso apocalíptico deve ser tratado como um conjunto flexível de
recursos que os antigos judeus e cristãos puderam empregar para uma variedade
de tarefas persuasivas. Sempre que os antigos judeus e cristãos recorreram a te-
mas como visões e revelações, viagens celestiais, catástrofes finais, e assim por
103
diante, eles estavam usando discurso apocalíptico.
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Assim, o discurso apocalíptico não se limitaria a gênero, ideologia ou esca-


tologia, mas atua com esse “conjunto flexível de recursos”.
Bloomquist analisa os critérios metodológicos para o estudo da retórica
apocalíptica.104 Em sua opinião, as tentativas para se definir “apocalíptica” (termo
que ele usa deliberadamente) são arbitrárias e têm sido minadas pelo fato de que

100
YARBRO COLLINS, Adela. Persecution and Vengeance in the Book of Revelation. In:
HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 729-
749; Idem. Crisis and Catharsis: The Power of the Apocalypse (1984). Yarbro Collins retorna ao
assunto da retórica apocalíptica em um ensaio sobre temas apocalípticos na literatura bíblica (cf.
Idem. Apocalyptic Themes in Biblical Literature. Int 53.2 (1999), p. 117-130). Ela comenta que
existem dois tipos de temas apocalípticos na literatura bíblica. O primeiro é intrínseco ao gênero
apocalíptico, inclui elementos formais como viagens transcendentais e reivindica visões revelado-
ras, adicionadas às ideias fundamentais relativas ao cumprimento da história encontrado em muitos
exemplos. O segundo contém temas como o do Anticristo e o do mito do combate, menos relacio-
nados ao gênero, mas ainda assim significantes. Ela afirma ainda que o poder da linguagem apoca-
líptica é parcialmente baseado em seu uso de temas e imagens desenfreadamente vívidos, pitores-
cos e míticos para dirigir-se a tensões específicas e preocupações universais de parte de sua audi-
ência.
101
Sobre o linguajar apocalíptico dos primitivos cristãos, cf. também SCHÜSSLER FIORENZA,
E. The Phenomenon of Early Christian Apocalyptic: Some Reflections on Method. In: HELL-
HOLM, D. (Ed.). Op. cit. p. 295-316.
102
CAREY, G. Introduction. Apocalyptic Discourse, Apocalyptic Rhetoric. In: CAREY, Greg;
BLOOMQUIST, L. G. (Ed.). Vision and Persuasion: Rhetorical Dimensions of Apocalyptic Dis-
course, p. 1-17; aqui p. 10.
103
Ibidem. Em outro artigo, Carey enfatiza os meios retóricos pelos quais o discurso apocalíptico
estabelece autoridade para o autor e à mensagem do texto (cf. CAREY, G. Apocalyptic Ethos.
SBLSP 37 (1998), p. 731-761).
104
BLOOMQUIST, L. G. Methodological Criteria for Apocalyptic Rhetoric: A Suggestion for the
Expanded Use of Sociorhetorical Analysis. In: CAREY, G.; BLOOMQUIST, L. G. (Ed.). Op. cit.
p. 181-203.
64

os antigos autores não distinguiam entre gênero, ideologia e perspectiva. Em vez


disso:
Nós deveríamos estar criando um amplo banco de dados “intertextual” de repeti-
ção de léxicos, sons, métrica e ritmo dentre as várias literaturas do Segundo Tem-
plo (incluindo as cristãs) e as literaturas greco-romanas... [acrescido de] um banco
de dados de argumentação retórica que iria (...) identificar contextualmente (isto
é, dentro da argumentação retórica) a tessitura interior ou retóricas como a retóri-
105
ca apocalíptica.

Sandy acredita que “apocalíptico” se trata de um dos três subtipos do gêne-


ro profecia, 106 ao lado de oráculos de salvação e de anúncios de juízo. É distinto
destes últimos nos seguintes aspectos: seu uso de imagens vívidas e enigmáticas,
em vez de discurso direto; seu foco sobre o remanescente fiel; suas alegações de
que o mundo é muito mal para a eficácia do arrependimento, fazendo com que o
próprio Deus esteja descontente e decida intervir e julgar o mundo através de mei-
os sobrenaturais; e em sua ênfase em soluções totalizantes. Segundo ele, apocalíp-
tica é uma literatura de crise e a função de seu linguajar é transmitir várias mensa-
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gens: uma chamada à adoração e à pureza, a esperança para os perseguidos, o con-


forto de que Deus permanece no controle assegurando a vitória final, e um discer-
nimento de questões cósmicas.
Os elementos míticos desempenham um importante papel no linguajar a-
pocalíptico, refletindo inclusive mitos no conteúdo de certos apocalipses, particu-
larmente os mais antigos.107
Enfim, como se pode observar, as características literárias da apocalíptica
são variadas, sendo algumas notórias e tantas outras menos importantes. Podería-
mos sintetizá-las da seguinte forma: o escritor apocalíptico escolhe um grande
personagem do passado e faz dele o herói do livro, utilizando, para tanto, a pseu-
donímia; muitas vezes, esse herói faz uma viagem com um guia celestial, o qual
lhe mostra vistas interessantes e as comenta; frequentemente a comunicação é fei-
ta por meio de visões, as quais possuem caráter esotérico (o visionário deve man-
ter segredo até os últimos dias, os quais normalmente são a época do escritor do
livro); e o linguajar com simbolismo enigmático.108

105
Ibidem, p. 190.
106
Cf. SANDY, D. Brent. Plowshares & Pruning Hooks: Rethinking the Language of Biblical
Prophecy and Apocalyptic, p. 58-128, onde é feito um estudo minucioso acerca do linguajar profé-
tico e apocalíptico, mas restringido aos textos bíblicos.
107
Cf. especialmente HANSON, P. D. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological
Roots of Early Jewish Apocalyptic Eschatology (1979).
108
MORRIS, Leon. Apocalyptic, p. 34-67.
65

Além disso, quase sempre as visões são pessimistas em relação à possibili-


dade de que a intervenção humana modifique a situação presente (o que pode ad-
vir da possibilidade de que os apocalípticos enfrentavam tempos de crise política,
religiosa ou cultural). A impossibilidade de mudança por parte do ser humano leva
à perspectiva escatológica no fim da visão, com a intervenção divina proporcio-
nando um final cataclísmico ao presente estado de coisas, estabelecendo uma situ-
ação melhor com o triunfo do Reino de Deus.
Para tanto, a perspectiva histórica dos apocalípticos é baseada no determi-
nismo: acreditam que a história está pré-ordenada por Deus para servir aos seus
propósitos (a história é, então, esquematizada em períodos); é frequente também o
escritor tomar história passada e reescrevê-la em forma de profecia ex eventu. No
embate com o presente estado de coisas, a apocalíptica utiliza o dualismo (contras-
tando o presente mau e injusto com o futuro glorioso e justo); assim, seu ensina-
mento ético tem como foco o consolo e o sustento do “remanescente justo” da tra-
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dição profética.

2.3. Função e marco social

Indiscutivelmente o mais importante desafio para a definição do gênero


apocalíptico formulada em Semeia 14 é que ela negligenciava um componente
funcional. Essa objeção foi logo formulada pela percepção de que as funções soci-
ais e as literárias podem ser diferentes. Além disso, uma vez que o apocalipse foi
um gênero literário, os propósitos de atuação e de objetivo foram afetados pela
ampla discussão dentro do campo de estudos bíblicos concernente às abordagens
de um texto.
As primeiras reflexões sobre a questão foram feitas por Meeks,109 Aune110
e Hellholm,111 que concluíram que, juntamente com forma e conteúdo, a função
(perspectivas e objetivos do autor) deve ser um constituinte do gênero literário.
Com a publicação de Semeia 36112 e em parte como resultado das deliberações
acima mencionadas, o grupo de estudos de apocalíptica da SBL modificou a sua
109
MEEKS, W. A. Social Functions of Apocalyptic Language in Pauline Christianity. In: HELL-
HOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 687-705.
110
AUNE, D. The Apocalypse of John and the Problem of Genre. In: YARBRO COLLINS, A.
(Ed.). Early Christian Apocalypticism: Genre and Social Setting. Semeia 36 (1986), p. 65-96.
111
HELLHOLM, D. The Problem of Apocalyptic Genre and the Apocalypse of John. In: Ibidem,
p. 13-64.
112
YARBRO COLLINS, A. (Ed.). Loc. cit.
66

definição do gênero com a adição de que um apocalipse “era destinado a interpre-


tar as circunstâncias terrenas presentes, à luz do mundo sobrenatural e do futuro, e
influenciar tanto o entendimento quanto o comportamento do público por meio de
autoridade divina.113 Collins aceitou prontamente a modificação da definição, mas
adverte aos estudiosos que o gênero pode acomodar uma variedade de contextos
sociais, os quais são estabelecidos pelo estudo histórico e não por dedução a partir
do gênero literário.114
A função dos antigos apocalipses depende da definição que se dê ao gêne-
ro, pois a definição pode determinar a extensão do corpus, bem como o ponto de
vista sobre sua origem e marco social. Freedman resume a perspectiva tradicional:
apocalipses são textos pautados em crise e consolação, focando a história e as po-
líticas. Formados ou refinados no crisol da época dos Macabeus, foram formula-
dos para expressar, em linguajar mítico e exótico, a expectativa fervorosa, por par-
te de uma comunidade oprimida e marginalizada, por uma iminente crise-
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resolução que foi articulada como sendo uma destruição escatológica dos poderes
dos governantes e uma justificação da comunidade.115 Esse ponto de vista se apoi-
ou, em parte, pelo pressuposto de que o livro de Daniel foi o primeiro exemplo do
gênero, seguido de perto por outros apocalipses históricos, como o Apocalipse das
Semanas. A mais recente datação do antigo material de Enoque feita por Michael
Stone,116 baseada em fragmentos do Enoque de Qumran, obrigou a uma reavalia-
ção do já bastante difundido conhecimento tradicional sobre apocalipses, incluin-
do sua origem e finalidade. A função de revolução social histórica já não poderia
servir como a única explicação para a composição dos apocalipses.
Aune chama a literatura apocalíptica de “protesto”, a qual embora relacio-
nada com a literatura de crise, nem sempre se trata da mesma coisa.117 Já Lebram
analisa a finalidade exortatória dos apocalipses.118 De acordo com Hellholm, os

113
Ibidem, p. 7.
114
COLLINS, J. J. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism. In: COL-
LINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 11-32.
115
FREEDMAN, D. N. The Flowering of Apocalyptic. In: FUNK, Robert W. (Ed.). Apocalyptic-
ism, 166-173.
116
STONE, Michael E. The Book of Enoch and Judaism in the Third Century BCE. CBQ 40
(1978), p. 479-492 (publicado novamente em Selected Studies in Pseudepigrapha and Apocrypha,
with Special Reference to the Armenian Tradition, p. 184-197).
117
AUNE, D. Understanding Jewish and Christian Apocalyptic. Word & World 25.3 (2005), p.
233-245. Cf. também o estudo clássico de EDDY, S. K. The King Is Dead: Studies in the Near
Eastern Resistance to Hellenism, 334-31 B.C. (1961).
118
LEBRAM, J. C. H. The Piety of Jewish Apocalypticists. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Op. cit., p.
171-210. Seguindo essa mesma “linha exortatória”, Maier e Prostmeier concentram-se nos exem-
67

apocalipses são destinados “a um grupo em crise com a finalidade de exortação


e/ou consolo, pela autoridade divina”.119 Collins assevera que, embora a maioria
dos estudiosos provavelmente concordasse com essa visão, ela deve ser restringida
em muitas maneiras.120 Por exemplo, a exortação não é consolação, e nada na
forma geral de um apocalipse aponta a espécie precisa de exortação que ele deva
transmitir.
Ibañez Ramos trata da crise política e institucional do judaísmo pós-
exílico, a qual focou sua atenção em um esperado reino de Deus.121 Já Daschke,
baseado em seu estudo sobre Ezequiel e 4 Esdras, identifica como apocalipses tex-
tos de perda cultural, nos quais “a presença de Deus em um universo divinamente
determinado”, tão carente na época do autor, se torna expectativa escatológica.122
Yarbro Collins assevera que “cada apocalipse contém um programa para a vida”
com duas dimensões: como existir em um mundo material e como transcendê-
lo.123
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A visão de que apocalipses e apocalipsismo surgem a partir de um matriz


de crise histórica é mais profunda do que inicialmente possa parecer.124 Por um
lado, ela envolve postulados, frequentemente deixados implícitos, em relação à
função sócio-histórica da literatura apocalíptica. É também evidente o fato de que
os apocalipses exibem diversos focos escatológicos, e que estes focos foram base-
ados nas circunstâncias de sua composição. Um determinado texto pode definir a

plos cristãos antigos (cf. MAIER, Harry O. Staging the Gaze: Early Christian Apocalypses and
Narrative Self-Representation. HTR 90.2 (1997), p. 131-154; PROSTMEIER, F. R. Hoffnung und
Weltverantwortung: Zum Motiv “Zeiten(w)ende” in der frühchristlichen Apokalyptik. In:
EBERTZ, M. N.; ZWICK, R. (Ed.). Jüngste Tage: Die Gegenwart der Apokalyptik, p. 82-103).
119
HELLHOLM, D. The Problem of Apocalyptic Genre and the Apocalypses of John. In: YAR-
BRO COLLINS, A. (Ed.). Early Christian Apocalypticism: Genre and Social Setting. Semeia 36
(1986), p. 13-64; aqui p. 27.
120
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: The Encyc-
lopedia of Apocalypticism, p. 129-161. v. 1; aqui p. 158-159; Idem. The Sense of an Ending in Pre-
Christian Judaism. In: KLEINHENZ, C.; LeMOINE, F. J. (Ed.). Fearful Hope: Approaching the
New Millennium, p. 25-43; aqui p. 40.
121
IBÁÑEZ RAMOS, M. A. El renacer de la esperanza en el judaísmo en crisis. El reino de Dios
en la literatura apocalíptica. In: CASCIARO, J. María et al (Ed.). Esperanza del hombre y revela-
ción bíblica: XIV Simposio Internacional de Teología de la Universidad de Navarra, p. 453-460.
122
DASCHKE, D. Mourning the End of Time: Apocalypses and Texts of Cultural Loss. In:
GREENSPOON, L. J.; SIMKINS, R. A. (Ed.). Millennialism from the Hebrew Bible to the
Present. Proceedings of the Twelfth Annual Symposium of the Philip M. and Ethel Klutznick Chair
in Jewish Civilization, October 10-11 1999, p. 159-180; aqui p. 162 (Studies in Jewish Civiliza-
tion, 12).
123
YARBRO COLLINS, A. Meaning and Significance in Apocalyptic Texts. In: Cosmology and
Eschatology in Jewish and Christian Apocalypticism, p. 1-20; aqui p. 8.
124
Essa ideia de que a apocalíptica teve origem em grupos oprimidos tem sido questionada tam-
bém no Brasil (cf. GARMUS, Ludovico. Traços apocalípticos em Ezequiel 38-39. In: Apocalípti-
ca. EstBib 65 (2000), p. 35-47. Para ele, o texto de Ezequiel tem características apocalípticas e
provém de um grupo sacerdotal).
68

crise e sua resolução mais a partir de sua perspectiva coletiva, já outro a partir do
ponto de vista do destino final do indivíduo, ao passo que um terceiro, como o li-
vro de Daniel, pode incluir ambas as perspectivas. Agourides compreende a ênfase
coletiva como sendo um produto dos interesses nacionais da tradição sapiencial
judaica.125 Contudo, ele rejeita o ponto de vista de que os apocalipses do Período
do Segundo Templo contenham duas escatologias distintas, nacional e dualística,
as quais pudessem refletir esses focos.
Collins reconhece corretamente que a utilidade do significante “grupo em
crise” é limitada: partes ou o todo do povo judeu esteve em crise ao longo da anti-
guidade, e os tipos de crise diferiam entre si.126 A mesma lógica pode ser aplicada
para a explicação das privações relativas. Tigchelaar identifica várias falhas meto-
dológicas graves em relação à hipótese de crise.127
Apesar disso, pode-se admitir que a consolação e a exortação sejam fun-
ções primárias dos apocalipses, e assim foram para uma grande parte deles devido
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a uma sensação de que o mundo estava “fora de controle” e nas garras de poderes
hostis. Em um ensaio sobre os calendários apocalípticos, Lars Hartman observa
que, entre todos os apocalipses judaicos antigos, somente o livro de Daniel contém
informações quanto à data precisa do fim.128 Ele assevera que estes calendários
desempenham diversos propósitos: informativo, religioso, exortativo, um teste de
fé, uma explicação da presença do mal no mundo, cada um dos quais sustentando
uma função do texto. Criticamente, tais textos informavam às suas audiências que
o fim estava iminente. Tal mensagem liga-se facilmente à visão de que os apoca-
lipses históricos funcionaram para consolar e/ou exortar, o que, por sua vez, im-
plica certas características sociais acerca de suas audiências. Newsom observa que
a partir de uma perspectiva histórica, o calendário de Daniel provou ser um ins-
trumento contundente, ainda que os fiéis pudessem considerar e, de fato, conside-
ravam, as discrepâncias entre revelação e realidade uma questão interpretativa.129

125
AGOURIDES, S. The Jewish Apocalyptic Writings: A National or Dualistic Eschatology? In:
OVADIAH, Asher (Ed.). Mediterranean Cultural Interaction, p. 71-80.
126
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: Op. cit., p.
129-161.
127
TIGCHELAAR, E. J. C. Prophets of Old and the Day of the End: Zechariah, the Book of
Watchers and Apocalyptic, p. 264-265.
128
HARTMAN, Lars. The Functions of Some So-Called “Apocalyptic Timetables”. NTS 22.1
(1975), p. 1-14.
129
NEWSOM, Carol A. The Past as Revelation: History in Apocalyptic Literature. QR 4.3 (1984),
p. 40-53. Isso pode ser constatado claramente, também, num trabalho de Adler acerca das formas
nas quais um calendário apocalíptico como o das setenta semanas de Dn 9 desempenha um impor-
tante papel entre os elementos do apocalipsismo no judaísmo tardio e em autores cristãos (cf. AD-
69

Langue amplia o âmbito da discussão sobre a apocalíptica e as suas origens


na crise para além dos limites tradicionais.130 Ele examina um amplo grupo de a-
pocalípticos e oráculos, incluindo os pesharim de Qumran, textos bíblicos (como,
por exemplo, Jeremias e Daniel), alguns textos do Egito Ptolemaico, e oráculos
gregos clássicos. Sua tese é que esses textos compartilham um método exegético
distintivo na contextualização dos dados, o qual pressupõe o entendimento de que,
em certa medida, a interpretação em si mesma foi considerada revelação.
Neste caso, talvez haja uma pequena influência da tese de W. Pannenberg
de que na historiografia apocalíptica (um termo que ele não usa, mas cujo signifi-
cado é, ainda assim, bastante claro) o plano de Deus é revelado na reflexão de a-
contecimentos históricos, e tanto mais quando se considera a função da periodiza-
ção da história nas recapitulações ex eventu.131 Em qualquer caso, um corolário do
argumento de Lange é que o método distintivo e seu assistente hermenêutico não
eram características peculiares ao contexto do judaísmo do segundo século a.C., e
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nem foram desenvolvidos unicamente neste período. Embora muitos dos textos
que ele examina sejam produtos de crises históricas e/ou culturais, Lange sustenta
que a evidência revela que essa configuração não era inevitável.
Sachi propõe que os apocalipses se desenvolveram principalmente a partir
de uma intensa preocupação com a origem do mal.132 De certa forma, essa ideia
foi antecipada por estudiosos como Crenshaw,133 os quais sustentaram que tanto a
literatura apocalíptica quanto a sapiencial foram respostas funcionais a uma relu-
tância profética em abordar o problema do mal, e afirmaram ainda que os primei-
ros materiais de Enoque foram também os primeiros apocalipses. Como Sacchi

LER, W. The Apocalyptic Survey of History Adapted by Christians: Daniel’s Prophecy of 70 We-
eks. In: VANDERKAM, J. C.; ADLER, W. (Ed.). The Jewish Apocalyptic Heritage in Early
Christianity, p. 201-238). Tal papel é importante também no conceito de translatio imperii (cf.
PODSKALSKY, G. Byzantinische Reichseschatologie: die Periodisierung der Weltgeschichte in
den vier Grossreichen (Daniel 2 und 7) und dem tausendjährigen Friedensreiche (Apok. 20), e De
BOER, S. Rome, the “Translatio Imperii” and the Early-Christian Interpretation of Daniel II and
VII. RSLRF 21.2 (1985), p. 181-218), cujo último antecedente bíblico foi Dn 2 e 7. Já Irshai
discute os cálculos dos escritores apocalípticos judaicos e cristãos na antiguidade tardia (cf.
IRSHAI, O. Dating the Eschaton: Jewish and Christian Apocalyptic Calculations in Late Antiquity.
In: BAUMGARTEN, A. I. (Ed.). Apocalyptic Time, p. 113-153).
130
LANGE, A. Interpretation als Offenbarung: zum Verhältnis von Schriftauslegung und
Offenbarung in apokalyptischer und nichtapokalyptischer Literatur. In: GARCÍA MARTÍNEZ, F.
(Ed.). Wisdom and Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls and in the Biblical Tradition, p. 17-33.
131
Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistemática, p. 207-220.
132
SACCHI, P. L’apocalittica giudaica e la sua storia (1990); Idem. Formazione e linee portanti
dell’apocalittica giudaica precristiana. RSB 7.2 (1995), p. 19-36; Idem. Impurità e male nel
pensiero apocalittico. In: CERUTTI, M. V. (Ed.). Apocalittica e gnosticismo: atti del Colloquio
internazionale, Roma, 18-19 giugno 1993, p. 45-58.
133
CRENSHAW, James L. Prophetic Conflict: Its Effect upon Israelite Religion, p. 39-109.
70

entende, o uso do gênero permitiu a extensão radical de horizontes espaciais e


temporais, possibilitando, assim, que a origem do mal fosse situada como um e-
vento sobrenatural em um passado primordial. O resultado desse evento corrom-
peu a criação e assim foi compreendido como tendo tido um efeito subsequente
variável sobre o livre-arbítrio humano.
A preocupação com a origem do mal, bem como a solução escatológica pa-
ra os seus efeitos, se articula no primitivo material de Enoque134 e se expressa em
várias formulações um alguns textos de Qumran e apocalipses tardios.135 As obje-
ções básicas à alegação de Sacchi são que um único motivo ou tema não pode de-
finir o gênero apocalíptico e, mais concretamente, uma preocupação com teodiceia
não se encontra presente em muitos exemplos do gênero.136
Entretanto, o trabalho de Sacchi, já que decorre de uma investigação acerca
da literatura primitiva de Enoque, ressalta o fato de que, embora uma conexão en-
tre apocalipsismo e crise histórica possa ser apropriada como uma explicação ge-
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ral para a produção de apocalíptica histórico-política, ela não parece ser tão apro-
priada àqueles textos preocupados com ascensão celestial e temas relativos a esse.
De fato, um dos principais pontos do trabalho de Sacchi é que a perspectiva do
material de Enoque difere do restante da literatura apocalíptica.137 Como Collins
observa, a teoria de que apocalipses foram produzidos por grupos em crise se en-
caixa em alguns apocalipses, não em todos eles, e os apocalipses com ascensão
celestial nem sempre se encaixam nesse molde.138 De fato, a teoria dos “grupos
em crise” parece pouco adequada para explicar o interesse de certos apocalipses
no conhecimento científico-sapiencial, sendo, portanto, inadequada para delinear a

134
Cf., por exemplo, COLLINS, J. J. The Origin of Evil in Apocalyptic Literature and the Dead
Sea Scrolls. In: EMERSON, J. A. (Ed.). Congress Volume: Paris, 1992, p. 25-38 (republicado em
Seers, Sibyls, and Sages in Hellenistic-roman Judaism, p. 287-299); LUPIERE, E. Il problema del
male e della sua origine nell’apocalittica giudaica. In: GIANOTTO, Claudio. (Ed.). La domanda di
Giobbe e la razionalità sconfitta, p. 31-51.
135
STUCKENBRUCK, Loren T. The “Angels” and “Giants” of Genesis 6:1-4 in Second and Third
Century BCE Jewish Interpretation: Reflections on the Posture of Early Apocalyptic Traditions.
DSD 7.3 (2000), p. 354-377.
136
Cf. MARCONCINI, B. “Ancora sull apocalittica: una luce da non spegnere. RBI 45 (1995), p.
199-209; COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination, p. 11. Veja-se, entretanto, a afirmação de
A. Segal: “Para mim, a única coisa que parece ser universal em todos eles [apocalipses] é que to-
dos visam a questões de teodiceia” (SEGAL, A. F. Apocalypticism and Life After Death. PIBA 22
(1999), p. 41-63; aqui p. 61).
137
Cf. as respostas ao trabalho de Sacchi reunidas em GIANOTTO, C. et at. Ancora a proposito di
apocalittica. Henoch 20 (1998), p. 89-106. Um resumo é dado por Sacchi em SACCHI, P. La
teologia dell’enochismo antico e l’apocalittica. MG 7.1 (2002), p. 7-13.
138
COLLINS, J. J. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism. In: COL-
LINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 11-32.
71

função desses textos.139


Com relação ao Sitz im Leben, o apocalipsismo e a visão de mundo que ele
pressupõe e endossa são frequentemente (mesmo que implicitamente) produzidos
para arcar com a responsabilidade de ligar uma forma literária e sua função com
contextos sociais e propósitos. Com a visão tradicional de apocalipses como sendo
literatura de crise e consolação, originou-se o interesse pelo contexto social a par-
tir dos quais eles surgiram.140 A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto e sua
afiliação inicial a uma comunidade apocalíptica de judeus fundamentalistas viven-
do às margens da sociedade na qual estavam em oposição certamente contribuiu
para essa avaliação.
No caso desses manuscritos, a comunidade ligada a eles é definida como
sendo “uma ‘comunidade apocalíptica’, que teve sua origem no ambiente dos mo-
vimentos apocalípticos, muito difundidos naquela época”.141 Para alguns, os ma-
nuscritos oferecem “a única oportunidade para estudar o ambiente institucional do
pensamento apocalíptico”,142 bem como “juntamente com os escritos do cristia-
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nismo primitivo, proveem nossa principal evidência antiga de uma comunidade na


qual as crenças apocalípticas desempenharam um papel importante”.143
Em verdade, a comunidade vivia entre o nomismo e o apocalipsismo, nu-
ma tensão entre essas duas tendências: o cumprimento estrito das normas legais da
comunidade e a esperança escatológica num fim previsto pelas Escrituras que ha-
veria de se concretizar na comunidade. O Mestre da Justiça, um tipo de sacerdote
instituído por Deus para guiar os membros da comunidade, comunicava ao grupo
as revelações pertinentes a tudo o que fosse sagrado. Sua conduta era pautada na
fidelidade às normas e na repulsa ao sacerdócio de Jerusalém. O interesse pelos
aspectos legais da Torá levou-os a ser identificados com o grupo religioso chama-
do de assideus (em grego) ou hasîdîm (em hebraico), homens piedosos do período
macabaico, os quais são considerados os precursores dos fariseus e dos essê-
nios.144

139
Cf. STONE, Michael E. Apocalyptic Writings. In: Jewish Writings of the Second Temple Pe-
riod, p. 383-441.
140
Plöger (1962) e Vielhauer (1964) descreveram os apocalipses como expressões da esperança
escatológica de pequenos grupos desprivilegiados, não-emancipados. (cf. PLÖGER, Otto. Theo-
cracy and Eschatology; VIELHAUER, P. Apocalypses and Related Subjects. Introduction. In:
HENNECKE, E.; SCHNEEMELCHER, W. (Ed.). NTA, p. 581-607. v. 2).
141
GARCÍA MARTÍNEZ, F.; TREBOLLE BARRERA, Julio. Os homens de Qumran, p. 81.
142
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination, p. 145.
143
Ibidem, p. 175.
144
Cf. a discussão sobre esses grupos adiante.
72

Uma das principais características do apocalipsismo presente nos docu-


mentos de Qumran é o dualismo. A Regra da Guerra, conhecida também como
“A guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas”, propõe que Deus aniquila-
rá as forças do mal numa guerra escatológica que precederá a era vindoura. Essa
noção de batalha final entre bem e mal acompanha a escatologia apocalíptica. Os
membros da comunidade viviam um ambiente escatológico bastante acentuado.
No Manual de Disciplina, por exemplo, chamado também de Regra da
Comunidade (principal livro que contém as normas reguladoras da vida da comu-
nidade), os filhos da justiça são exortados a andar de acordo como o “espírito da
verdade”, pois o “espírito de perversidade” acompanha os maus; os homens ado-
tam um entre esses dois caminhos. Os filhos da justiça são dirigidos pelo Príncipe
da Luz e, portanto, andam num caminho de luz, ao passo que os filhos da perver-
sidade são regidos pelo Anjo das Trevas e trilham o seu caminho. Esse anjo que
regula o caminho mau se opõe constantemente aos filhos da justiça, os quais são
ajudados constantemente por Deus e pelo Anjo da Verdade. 145
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A ideia de que a literatura apocalíptica desenvolveu-se a partir dos peque-


nos grupos está mais associada a Hanson, cuja tese principal se ocupa com o de-
senvolvimento da escatologia apocalíptica.146 Em poucos traços, ele delineia a di-
visão entre dois grupos sociais imediatamente após a era exílica. Por um lado es-
tava o estabelecimento do sacerdócio, cujos membros colaboraram com as autori-
dades persas e cuja teologia do Templo era ideológica e circunscrita por horizon-
tes terrenos e históricos. Por outro lado, havia um grupo menor, visionário, o qual
se opunha à reconstrução do Templo e que, em face do crescente domínio da he-
gemonia hierocrática, tornou-se oprimido e marginalizado. Como resultado, seus
membros formularam cada vez mais suas expectativas em concepções utópicas e
linguajar mitológico e as transferiram para a dimensão escatológica. O grupo sa-
cerdotal produziu literatura tais como Ageu, Zc 1-8 e Ez 40-48, ao passo que os
visionários são representados por Is 56-66.

145
Cf. RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 43. Outras caracterís-
ticas consideradas apocalípticas encontradas em Qumran são: a crença em que todas as coisas es-
tão reguladas de acordo com os mistérios de Deus, a periodização da história em vista a uma ba-
talha final em que os poderes da luz derrotarão os poderes das trevas (referência ao já citado dua-
lismo), a expectativa messiânica, e alguma noção de continuidade da vida no pós-morte, com paz e
luz eternas para os bons e terror e desonra eternos para os maus (cf. a análise dessas outras caracte-
rísticas apocalípticas nos Manuscritos de Qumran em COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imaginati-
on, p. 150-174).
146
Cf. HANSON, P. D. Apocalypse, Genre, and Apocalypticism. In: CRIM, Keith (Ed.). IDBSup,
p. 27-34, de 1976, e especialmente The Dawn of Apocalyptic (1975).
73

Conforme já assinalado, esse ponto de vista do contexto social dos apoca-


lipses e essa noção de apocalipsismo têm sido questionados. A pesquisa mais re-
cente ofereceu uma nova visão do que constitui um grupo ou movimento apocalíp-
tico. As características dessa pesquisa recente são: a hesitação em descrever o con-
texto social da literatura apocalíptica, e assim também suas funções, em termos
monolíticos ou binários; um desejo de empregar o resultado de outras disciplinas,
particularmente os estudos científico-sociais dos modernos movimentos milenaris-
tas; e uma compreensão integral dos elementos constituintes do fenômeno.147 Em
estudos posteriores, o próprio Hanson questionou se em alguns casos o apocalip-
sismo pode ter sido empregado por outros grupos além dos grupos minoritários e
oprimidos.148
Apesar de admitir que as raízes da apocalíptica sejam encontradas no início
do judaísmo pós-exílico, Albertz sugere que as pressões sócio-econômicas, e não
as disputas teológicas, foram a fonte dos movimentos apocalípticos entre determi-
nados grupos em relação à expectativa escatológica.149 Para Webb, a definição de
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Hanson sobre apocalipsismo se embaraça nas distinções entre ideologia e movi-


mento social, e sua aplicação deve ser restrita à ideologia.150
Sappington isola as duas principais funções literárias dos apocalipses ju-
daicos e discute sistematicamente a relação delas com o conteúdo e as funções dos
textos.151 A primeira é consolo e incentivo dos justos, apoiada por uma variedade
de revelações transcendentes: (1) a futura bem-aventurança dos justos e a conde-
nação dos ímpios; (2) a soberania e a fidelidade de Deus; (3) a ordem do cosmos;
e (4) a experiência da glória de Deus e/ou consolação. A segunda função é a exor-
tação para que se permaneça na obediência, expressa através de várias revelações
147
Segundo Nickelsburg, um reconhecimento de que o pensamento sobre o passado requer agora
uma resoluta apreciação holística de seus muitos elementos (cf. NICKELSBURG, G.W.E. Wisdom
and Apocalypticism in Early Judaism: Some Points for Discussion, p. 715-732; aqui p. 729).
148
Cf. HANSON, P. D. Israelite Religion in the Early Post-Exilic Period. In: MILLER, P.D.;
HANSON, P.D.; McBRIDE, S.D. (Ed.). Ancient Israelite Religion: Essays in Honor of Frank
Moore Cross, p. 485-508.
149
Cf. ALBERTZ, Rainer. Religionsgeschichte Israels in alttestamentlicher Zeit, especialmente p.
461-494. v. 2.
150
WEBB, R. L. ‘Apocalyptic’: Observations on a Slippery Term. JNES 49.2 (1990), p. 115-126.
De fato, os movimentos sociais que expressam essa ideologia (grupos minoritários e oprimidos),
tradicionalmente descritos como “apocalípticos”, deveriam ser mais bem rotulados como “milena-
ristas”, classificação sociológica antecipada por Davies e utilizada por Esler (cf. DAVIES, P. R.
The Social World of Apocalyptic Writings. In: CLEMENTS, R. E. (Ed.). The World of Ancient
Israel: Sociological, Anthropological and Political Perspectives, p. 251-271; ESLER, Philip F.
Political Oppression in Jewish Apocalyptic Literature: A Social-Scientific Approach. JRC 28.2
(1993), p. 181-199).
151
SAPPINGTON, Thomas J. The Factor of Function in Defining Jewish Apocalyptic Literature.
JSP 12 (1994), p. 83-123.
74

transcendentes: (1) a bem-aventurança dos justos e a condenação dos ímpios; (2) a


ordem do cosmos; e (3) o exemplo dos justos. Essas funções foram construídas
“para consolar e encorajar os justos e exortá-los a obedecer diligentemente os
mandamentos de Deus”.152
Haveria, ainda, uma terceira função, manifesta somente em 1 Enoque: a
advertência ou repreensão dos ímpios. Sappington conclui sugerindo que a hesita-
ção de Yarbro Collins em enfatizar os termos “exortar” e “consolar”153 é equivo-
cada, uma vez que estas funções são óbvias, características e definitivas.
De acordo com Tigchelaar, “função, ao contrário de marco social, pode ser
vista como uma propriedade genérica possível. Mas (...) a função pode ser de vá-
rios tipos”.154 O marco social é um fenômeno extraliterário, e não se pode esperar
que um gênero com um alto grau de complexidade como o apocalíptico se encaixe
somente em um único Sitz im Leben, ainda mais se levado em conta que o marco
social em que o gênero teve origem não é necessariamente o mesmo dos exemplos
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apocalípticos tardios. Collins vai além: para ele, a evidência indica uma multipli-
cidade de pequenos grupos apocalípticos em vez de um movimento monolítico.155
Em resposta, Lange, embora reconhecendo diferenças entre certos textos,
postula um ambiente social compartilhado baseado em símbolos e técnicas visio-
nárias e relacionados à tradição sapiencial de Israel.156 Collins responde novamen-
te afirmando que há uma diferença entre uma cosmovisão expressa através de uma
forma literária e uma cosmovisão compartilhada com um ambiente social, e que
está claro que todos os textos apocalípticos não compartilham isso. Ele também
questiona o simples uso de “sabedoria”, pois por algum tempo os estudiosos reco-
nheceram que alguns elementos da tradição sapiencial do antigo Oriente Próximo
eram mais importantes para o apocalipsismo do que outros.157
Nickelsburg já havia feito uma boa introdução concernente aos principais

152
Ibidem, p. 117.
153
YARBRO COLLINS, A. Introduction. In: Early Christian Apocalypticism: Genre and Social
Setting. Semeia 36 (1986), p. 1-11; aqui p. 6.
154
TIGCHELAAR, E.J.C. Prophets of Old and the Day of the End: Zechariah, the Book of Watch-
ers and Apocalyptic, p. 4.
155
COLLINS, J. J. Pseudepigraphy and Group Formation in Second-Temple Judaism. In: CHA-
ZON, E. G.; STONE, M. E. (Ed.). Pseudepigraphy Perspectives: The Apocrypha and Pseudepi-
grapha in Light of the Dead Sea Scrolls, p. 43-58.
156
LANGE, A. Dream Visions and Apocalyptic Milieus. In: BOCCACCINI, G. (Ed.). Enoch and
Qumran Origins, p. 27-34.
157
COLLINS, J. J. Response: The Apocalyptic Worldview of Daniel. In: BOCCACCINI, G. (Ed.).
Op. cit. p. 59-66.
75

aspectos sociais do antigo apocalipsismo judaico e cristão.158 Ele examina a litera-


tura do passado, resume o estado da questão, identifica dois problemas metodoló-
gicos (o uso apropriado de fontes antigas e o possível perigo em impor métodos
teóricos), delineia uma abordagem possível e a aplica um texto como teste, a Epís-
tola de Enoque. O mais importante é que Nickelsburg defende o estudo de um tex-
to individual a partir do próprio texto em questão, fazendo a ele uma série sistemá-
tica de questões destinadas a obter o seu contexto social, e somente então compa-
rando grupos de textos para revelar potenciais interrelações. Ele ainda salienta cor-
retamente que “a atenção primária deve ser dada aos documentos em si mesmos
(...) modelos não devem se tornar um dado que formate os materiais antigos ou um
filtro que realce ou destrua dados textuais de maneira predeterminada”.159 Isso não
quer dizer que os textos existem de forma isolada do leitor, e Nickelsburg não su-
gere isso. Ao contrário de alguns estudos científico-sociais sobre apocalipsismo ou
movimentos milenaristas, o artigo de Nickelsburg é desprovido de jargão especia-
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lizado e terminologia obscura.


No entanto, foi precisamente esse tipo de estudo, sócio-científico, especi-
almente a investigação de novos movimentos religiosos contemporâneos, que de-
safiou as noções tradicionais acerca dos aspectos sociais dos apocalipses antigos e
do apocalipsismo e serviu como fundamento para novas hipóteses quanto ao que
constitui os movimentos apocalípticos.160 Davies acredita que a apocalíptica judai-
ca do Período do Segundo Templo não foi nem a herdeira literária da profecia ou
(deutero-) escatologia profética e nem fruto de pequenos grupos marginalizados,
identificados diversas vezes com os hasîdîm e/ou essênios. Tampouco era filha da
sabedoria, pelo menos não da “corte jurídica pautada em instruções terrenas de
Provérbios baseadas na observação e dedução, e promotoras da ordem social”.161
Em vez disso, a qualidade mântica fundamental dos apocalipses, particularmente

158
NICKELSBURG, G.W.E. Social Aspects of Palestinian Jewish Apocalypticism. In: HELL-
HOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 641-654.
159
Ibidem, p. 648.
160
Cf. DAWSON, Lorne L. Comprehending Cults: The Sociology of New Religious Movements
(2006). Embora o uso de estudos antropológicos ou sócio-científicos ou mesmo modelos teóricos
nos estudos bíblicos não fosse desconhecido antes de 1989 (cf. ISENBERG, S. Millenarism [sic] in
Greco-Roman Palestine. Religion 4.1 (1974), p. 26-46; HANSON, P. D. The Dawn of Apocalyptic
(1975); GAGER, J. G. Kingdom and Community: The Social World of Early Christianity (1975);
SMITH, Jonathan Z. Map Is Not Territory: Studies in the History of Religions (1978)), dois influ-
entes artigos publicados neste ano estabeleceram o marco para a pesquisa subsequente: DAVIES,
P. R. The Social World of Apocalyptic Writings. In: CLEMENTS, R. E. (Ed.). The World of An-
cient Israel, p. 251-271; GRABBE, Lester L. The Social Setting of Early Jewish Apocalypticism.
JSP 4 (1989), p. 27-47.
161
DAVIES, P. R. Op. cit. p. 260.
76

como a revelada no livro de Daniel e no Livro Astronômico de 1 Enoque, indica


um ambiente de escribas. Além disso, a literatura seria (pelo menos a mais impor-
tante) não o produto de grupos perseguidos ou oprimidos, mas refletiria elementos
da classe dominante.
Segundo Davies, “apelo ao conhecimento esotérico, revelação divina e uso
do mito são todos igualmente, se não mais, características dos métodos pelos quais
pequenos grupos dominantes justificam seu status e exercem o controle ideológi-
co”, ao passo que os autores de Daniel são “muito provavelmente da aristocracia,
até mesmo sacerdotes, escribas”.162 Ele assevera ainda que “o pano de fundo soci-
al dos escritos apocalípticos assim equipados é descrito com mais detalhes e preci-
samente documentado pela atividade dos escribas como grupo sociopolítico do-
minante e culturalmente cosmopolita do que de visionário de oposição estabeleci-
do em pequenos redutos”.163 Embora não fosse correto sugerir que todas as con-
clusões de Davies tiveram um impacto substancial sobre a pesquisa do tema (de
fato, muitas delas são questionáveis),164 sua ênfase em contextos sociológicos e a
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investigação dos elementos mânticos da literatura apocalíptica se mostrou bastante


relevante.
Grabbe aborda a armadilha metodológica na qual os apocalipses são fre-
quentemente interpretados à luz da situação social estabelecida pelos próprios tex-
tos. Entre suas muitas assertivas, ele afirma que os aspectos literários e sociais da
apocalíptica são distintos, e que “não há conexão necessária entre apocalipses e
comunidades apocalípticas”.165 Ele sugere que apocalipsismo nem sempre é a pro-
víncia dos impotentes, marginalizados ou oprimidos. Escribas ou sacerdotes po-
dem ter composto apocalipses,166 os quais “surgiram em uma variedade de contex-
tos sociais”,167 uma vez que as categorias de profecia, escritos mânticos e apoca-
líptica não são tão distintas entre si como a erudição tradicional assegura. Esse úl-
timo é um tema constante no trabalho recente de Grabbe sobre o assunto. A suges-

162
Ibidem, p. 258.
163
Ibidem, p. 263 (grifos do autor).
164
Cf., por exemplo, a crítica de Sim em: SIM, David C. The Social Setting of Ancient Jewish
Apocalypticism: A Question of Method. JSP 13 (1995), p. 5-16.
165
GRABBE, Lester L. Op. cit. p. 29. Grabbe rejeita o uso de privação relativa como a única ex-
plicação para o apocalipsismo.
166
O que já havia sido notado por STONE, M. E. Scriptures, Sects and Visions: A Profile of Ju-
daism from Ezra to the Jewish Revolts, p. 44, e corroborado novamente por Grabbe em Prophetic
and Apocalyptic: Time for New Definitions – and New Thinking. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R.
D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 107-133.
167
GRABBE, Lester L. The Social Setting of Early Jewish Apocalypticism. JSP 4 (1989), p. 39.
77

tão de seu trabalho é que os estudos sociológicos e antropológicos acerca de gru-


pos milenaristas são, por vezes, mais adequados à tarefa de iluminar o background
social dos antigos movimentos apocalípticos e sua literatura do que os apocalipses
em si mesmos.
Esler examina a pesquisa científico-social sobre os exemplos históricos da
interação entre poderes colonizadores e sociedades indígenas.168 Ele aplica as
perspectivas desses exemplos ao estudo dos textos judaicos antigos e verifica que
eles refletem um background social e religioso comum. Para ele, os apocalípticos
judaicos antigos foram compostos em resposta às crises de 167-164 a.C. ou 67-73
d.C. e estão preocupados com dados históricos de cunho geopolíticos. Trata-se de
exemplos de absoluta privação (“a eliminação efetiva das necessidades físicas e
outros bens perceptíveis”).169 Além disso, Esler vê em Dn 7-12 (o qual ele alega
não ter sido composto por um movimento milenarista) mais do que a simples es-
perança de futuro glorioso, ou, em oposição a Collins, mais do que a transcendên-
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cia sobre a morte: “Ao contrário, o mito futurista, bem como outro mito, funciona
para criar uma experiência no presente de realidades que ele retrata através de uma
vasta gama de experiência humana, mas especialmente em relação à manutenção
da identidade social em um momento de graves dificuldades”.170
Zerbe considera vários dos mesmos textos antigos de uma perspectiva dife-
rente.171 Ele conclui que quatro “escritos apocalípticos” (Daniel, Testamento de
Moisés, 2 Baruque e Apocalipse) defendem o que poderia ser chamado de “resis-
tência passiva” e incentivam a fidelidade e perseverança. Nenhum deles defende
uma resposta militar ou espera que os eleitos participem da batalha final. Ao con-
trário, a vitória final é promessa e responsabilidade de Deus e seus agentes.
Zerbe alega, no entanto, que rotular esses textos como “pacifistas” trans-
cende as evidências, especialmente porque nenhum texto explicitamente rejeita a
opção militar. Nesse ponto ele difere um pouco de Cristofani, o qual afirma que
pelo menos um segmento do (s) grupo (s) por trás desses apocalipses era milena-

168
ESLER, Philip F. Political Oppression in Jewish Apocalyptic Literature: A Social-Scientific
Approach. JRC 28.2 (1993), p. 181-199.
169
Ibidem, p. 188.
170
Ibidem, p. 193.
171
ZARBE, G. M. “Pacifism” and “Passive Resistance” in Apocalyptic Writings: A Critical Evalu-
ation. In: CHARLESWORTH, J. H.; EVANS, C. A. (Ed.). The Pseudepigrapha and Early Biblical
Interpretation, p. 65-95.
78

rista, pacifista e quietista.172 Cristofani também vê as origens sociais da apocalíp-


tica nos maskîlîm, tendo como elemento catalisador o sofrimento das pessoas (es-
pecialmente crianças) sob a perseguição de Antíoco. Já Reid vislumbra, entretan-
to, mesmo entre o contexto limitado de alguns apocalípticos do Período do Segun-
do Templo, uma maior variedade de contextos sociais que do que o que é admitido
por essa hipótese.173
S. L. Cook aplica métodos sócio-científicos e trabalha em movimentos mi-
lenaristas para o estudo do desenvolvimento da apocalíptica. Seu foco está em três
textos “proto-apocalípticos”: Ez 38-39, Zc 1-8 e Jl. Cook assevera que nem todos
os antigos ou modernos grupos de produção de apocalipses são periféricos, ou pri-
vados, independentemente se a privação seja absoluta ou relativa.174 Em vez disso,
“o grupo milenarista [é] o Sitz-im-Leben da literatura apocalíptica”.175 Ecoando
Davies e Grabbe, e opondo-se às proposições de Hanson, Cook afirma que tais
grupos não precisam ser situados nas margens do poder político ou do grupo só-
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cio-político dominante, nem precisam estar em conflito com a autoridade constitu-


ída. A privação pode ou não ser um componente de autocompreensão de tais gru-
pos.
De fato, um argumento principal de seu livro é que os grupos Zadoquitas,
ocupando uma posição central na sociedade, foram responsáveis pelos três textos
em discussão. A visão de mundo compartilhada por esses grupos combina uma
concepção linear da história com uma escatologia futurista esperando uma mudan-
ça radical e iminente na atual ordem das coisas.176 Notavelmente, Cook mantém
um papel central para a escatologia em sua concepção acerca dessa visão de mun-
do. Nada menos do que “um espectro de componentes: social, econômico, religio-
so e político”177 provocam uma variedade de Sitzen im Leben, incluindo um espe-
cífico para a literatura apocalíptica, que é o Sitz im Leben do movimento milena-
rista, que por sua vez está ligado ao gênero apocalíptico.
Baumgarten sugere dois tipos de movimentos milenaristas. O primeiro de-
corria de um sentido de privação; já o segundo era triunfalista, no sentido de que

172
CRISTOFANI, J. R. Dor e resistência: jovens, mulheres e crianças na origem social do apoca-
lipsismo judaico – relendo Daniel 11,29-35. EstTh 34.1 (1994), p. 87-100.
173
REID, Stephen B. Enoch and Daniel: A Form Critical and Sociological Study of the Historical
Apocalypses (2004).
174
COOK, Stephen. L. Prophecy & Apocalypticism: The Postexilic Social Setting, p. 46.
175
Ibidem, p. 52.
176
Ibidem, p. 26.
177
Ibidem, p. 53.
79

os vencedores tinham conseguido a vitória, e as coisas estavam finalmente se de-


finindo corretamente, e que os seres humanos e Deus estavam agora se deslocando
juntos na marcha final da história para “o mais glorioso de todos os novos mun-
dos”.178 O último tipo foi exemplificado por Ageu, Zacarias e pelo movimento
macabeu.
Collins, que questiona os exemplos triunfalistas de Baumgarten, distingue
entre três “modalidades” de expectativa milenarista: “O triunfalismo do poder im-
perial considerado como o cumprimento da história; a escatologia adiada daqueles
que procuram uma utopia final, mas são submissos aos poderes do presente; e a
perspectiva revolucionária de uma expectativa radical e iminente”.179 Ele observa
que exemplos de escatologia procrastinada nos antigos apocalipses judaicos são
atípicos, e que não há, verdadeiramente, analogia à modalidade triunfalista no Pe-
ríodo do Segundo Templo, uma vez que os judeus nunca estiveram numa posição
política que pudesse ter promovido essa atitude. Em vez disso, houve uma pers-
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pectiva radical, revolucionária, que foi duramente crítica em relação à sua situação
política contemporânea e aguardava sua iminente resolução. Essa perspectiva era
essencialmente quietista e concentrou-se nas distinções entre a opressão e a cor-
rupção do presente, o qual ela rejeitou e condenou veementemente, com a pureza
do esperado mundo futuro.
Sweeney amplia a reconstrução de Cook acerca do background social Za-
doquita através da análise do papel das citações bíblicas e alusões nos textos cha-
mados proto-apocalípticos.180 Ele argumenta que todos esses textos são Zadoqui-
tas: cada um reutiliza antigo material profético e do Pentateuco para definir um
núcleo de perspectivas sacerdotal e executar a função essencial de ensino da Torá.
Em alguns casos, como Joel, Ez 38-39 e Zacarias, isso seria patente. Em outros,
como Is 24-27 e 55-66, a sua afirmação da centralidade do Templo, o uso de mito-
logia e ênfase nos temas de transformação e restauração (de Israel e de Criação) os
marca também como composições Zadoquitas.
Esse argumento, representativo de uma linha de pensamento sugerida ou

178
BAUMGARTEN, Albert I. The Flourishing of Jewish Sects in the Maccabean Era: An Inter-
pretation, p. 165.
179
COLLINS, J. J. Temporality and Politics in Jewish Apocalyptic Literature. In: ROWLAND, C.;
BARTON, J. (Ed.). Apocalyptic in History and Tradition, p. 26-43; aqui p. 29 (republicado em
Encounters with Biblical Theology, p. 129-141).
180
SWEENEY, M. A. The Priesthood and the Proto-Apocalyptic Reading of Prophetic and Penta-
teuchal Texts. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p.
167-178.
80

buscada por vários estudiosos, é atraente em vários níveis, embora uma maior in-
vestigação sobre o tema seja necessária. Por exemplo, uma vez que tais alusões
bíblicas, citações e temas aparecem também nos apocalipses judaicos clássicos de
um período posterior, pode-se perguntar se eles também deveriam ser considera-
dos produto do sacerdócio zadoquita. Se não, como provavelmente é o caso, pode-
ria se perguntar quais teriam sido os processos históricos que levaram ao abando-
no dessa visão de mundo pelo sacerdócio zadoquita e/ou a sua subsequente apro-
priação por parte de outros grupos.
O uso generalizado de dados e modelos sociológicos para iluminar a con-
figuração social de gênero e ideologia não tem sido poupado de críticas. Também
é um equívoco supor que todos os seus defensores são uníssonos em seus argu-
mentos e conclusões. Da mesma forma, trata-se de um erro a divisão da pesquisa
em dois campos opostos: aqueles que utilizam os frutos da investigação científico-
social e os que não os utilizam. Alguns questionam o valor desse tipo de pesquisa;
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o debate se dá mais no âmbito das condições de seu uso. Por exemplo, enquanto
afirma veementemente a grande capacidade da utilização da abordagem sociológi-
ca, Sim adverte contra seu uso indevido quando as teorias baseadas nesse modelo
orientam indevidamente a evidência.181 Ele questiona o pressuposto básico de
Grabbe de que o apocalipsismo judaico antigo pode ser classificado sob o âmbito
genérico de “milenarismo” e lista uma série de dúvidas sobre as fontes nas quais
Grabbe apoia sua pressuposição, afirmando que não há uma conexão automática
entre grupos milenaristas e a produção de apocalipses. Sim argumenta citando a
eficiente máxima de Nickelsburg de que os modelos não devem formatar a evi-
dência textual de forma predeterminada.182
A suposição mais recente de que os apocalipses e escritos a ele relaciona-
dos sejam necessariamente produto de comunidades milenaristas também é ques-
tionada por Grabbe183 (como já havia feito em relação ao apocalipsismo). Essa
linha de questionamento é seguida por outros estudiosos, especialmente contra a
visão de Hanson acerca das origens sociais dos textos chamados de proto-
apocalípticos. Em sua monografia sobre Zc 9-13, Larkin conclui que a escatologia

181
SIM, David C. The Social Setting of Ancient Apocalypticism: A Question of Method. JSP 13
(1995), p. 5-16.
182
Grabbe reitera seus argumentos em Prophetic and Apocalyptic: Times for New Definitions –
and New Thinking. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 108-109, n. 4.
183
Ibidem, p. 107-133. Cf. também a resenha do livro de S. L. Cook (Prophecy and Apocalyptic-
ism: The Postexilic Social Setting, 1995) feita por Grabbe em JTS 49.1 (1998), p. 189-191.
81

apocalíptica não é necessariamente um produto de conflito social.184 Já Boeve en-


tende a apocalíptica como uma metáfora para o “pontapé derradeiro”, no qual um
recurso ao extraordinário ou incomum é uma resposta à necessidade individual de
definir-se dentro de um contexto de indistinção coletiva.185 Enfim, apesar de os
estudos de Hanson e Cook chegarem a conclusões divergentes quanto à situação
social dos textos proto-apocalípticos, Polaski critica ambos pela suposição de que
a literatura simplesmente reflete a sociedade e suas ideologias em vez de também
contribuir para criação de realidades sociais.186
Como pode ser observado, a visão de que o apocalipsismo possa ter sido
associado com círculos sociais estabelecidos desfruta de certa atração no mundo
acadêmico. Barker oferece uma das formulações mais idiossincráticas.187 Para ela,
o Santo dos Santos no Templo era eterno e atemporal, ao passo que o véu que o
resguardava era o limite entre a terra e o céu. Extraindo livremente a partir de tex-
tos proféticos, apocalípticos e vários autores antigos e medievais, ela assevera que
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as análises apocalípticas da história incluem o futuro porque a natureza do Santo


dos Santos permitiu aos sacerdotes (ou àqueles que desempenhavam esse papel)
enxergar além das limitações de espaço e tempo. Uma vez que o Templo era o mi-
crocosmo da criação, o escritor apocalíptico estava também a par dos mistérios e
processos da criação. Para que o leitor não ficasse confuso sobre o que ela queria
transmitir, conclui:
Primeiramente, a mistura de assuntos nos textos apocalípticos (...) pode ser expli-
cada: visões de trono, lista de segredos da criação e pesquisas da história que tra-
tam não somente com o passado, mas também com o futuro são o conhecimento
dado para aqueles que passaram além do véu do templo. Em segundo lugar, isso
sugere que o material dos apocalipses se originou com sumo-sacerdotes, uma vez
188
que foram eles os que passaram através do véu e adentraram os santos.

Dado todo o exposto, podemos verificar que a antiga possibilidade de o


gênero ter como marco social grupos oprimidos e como função dar voz a esses
grupos não pode ser totalmente descartada, pelo menos para determinadas obras e
contextos (como, por exemplo, o caso de 2 Macabeus e de Dn 7-12).
De uma forma geral, em relação ao tratamento do fenômeno apocalíptico

184
LARKIN, Katrina J. A. The Eschatology of Second Zechariah: A Study of the Formation of a
Mantological Wisdom Anthology (1994).
185
BOEVE, Lieven. God Interrupts History: Apocalypticism As an Indispensable Theological
Conceptual Strategy. LS 26.3 (2001), p. 195-216.
186
POLASKY, D. C. Authorizing an End: The Isaiah Apocalypse and Intertextuality, p. 13-25.
187
BARKER, Margaret. Beyond the Veil of the Temple: The High Priestly Origins of the Apoca-
lypses. SJT 51.1 (1998), p. 1-21.
188
Ibidem, p. 19-20 (grifos do autor).
82

entre os principais estudiosos do tema, podemos observar determinada falta de cla-


reza advinda da diversidade de opiniões, certamente devido à própria complexida-
de do assunto. Apesar disso, podemos distinguir o apocalipse enquanto gênero e a
apocalíptica enquanto mentalidade, deixando a escatologia como um tema à parte,
já que não é um tema exclusivo da apocalíptica nem um tema que, embora muito
recorrente, necessariamente nela apareça.
Podemos asseverar, então, clareando tudo o que foi exposto acima, que
apocalipse pode ser definido como um gênero literário, e apocalíptica trata-se de
uma mentalidade, uma forma de pensar específica, cuja expressão se dá por diver-
sas formas literárias; a apocalíptica utiliza uma variada gama de gêneros literários,
dentre os quais se destaca o gênero apocalíptico, que seria o que melhor expressa
as características da referida mentalidade. Assim sendo, a literatura apocalíptica
abarca os diversos escritos que refletem a apocalíptica enquanto mentalidade que
se expressa em diversas formas literárias.
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Portanto, além do gênero apocalíptico, a mentalidade apocalíptica incor-


pora outros gêneros literários (testamento, parábola, hino, oração e outros). Essas
formas literárias não constituem extremos, ou seja, nem um “macrogênero” (como
afirmou Koch) e nem são “subgêneros” do apocalipse (como asseverou J. G.
Gammie) ou “gêneros menores”, mas a expressão variada de um pensamento do-
minante (o apocalíptico), de uma determinada concepção da realidade e a explica-
ção de seu sentido, expressão essa que se utiliza de vários gêneros literários.
Deve-se ressaltar que o gênero literário de uma obra deve ser definido mais
pela forma literária do que pelo seu conteúdo. Para Collins, no caso do gênero a-
pocalíptico, a definição deve ser dada por uma combinação da forma com o conte-
údo; além disso, tal definição não deve levar em conta, necessariamente, o ambi-
ente social, a função e a intenção do escrito.189 Esses aspectos podem ser adicio-
nados, mas, ao se fazer isso, ampliará o leque em que uma obra poderá ser classi-
ficada como apocalíptica.
A aproximação principal entre as obras de cunho apocalíptico se dá especi-
almente nos motivos e nas características do gênero, cujo tema predominante é a
escatologia apocalíptica, a qual se distingue da escatologia profética pela ênfase
muito maior na consumação da história do que no curso dela. Observa-se ainda
que por vezes a apocalíptica transforma gêneros tradicionais em formas híbridas,

189
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 4-5.
83

mas o resultado será sempre a expressão da mentalidade apocalíptica.

2.4. A experiência visionária

Não poderíamos deixar de citar ainda a questão da experiência do visioná-


rio, pois os últimos anos testemunharam alguns trabalhos interessantes sobre essa
temática, cujos pontos de contato com outras disciplinas incluem a investigação
psicológica e fisiológica, bem como os modelos sociológicos e antropológicos
comuns na atualidade. Um dos primeiros exemplos é a investigação de Merkur
acerca das práticas visionárias dos autores dos apocalipses judaicos.190 Yarbro
Collins observa que muitos elementos do estado emocional e físico do visionário
estão refletidos nos estados experimentos por aqueles presentes em movimentos
religiosos com êxtase.191 Ela identifica os dispositivos preparatórios do vidente,
como os presentes nas visões de revelação do livro de Daniel, em particular a im-
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portância do luto e da dor. Fortes emoções podem ser poderosos agentes psicoló-
gicos, especialmente quando elas são vivenciadas ao longo de um período de tem-
po continuado, como é comum acontecer em grandes tristezas. Segundo ela, a dor
prolongada pode precipitar as condições associadas, psicológicas e fisiológicas,
cujos elementos se combinam para produzir uma depressão que poderia iniciar um
processo inconsciente que leva a um “sonho acordado”.
Segal discute os chamados Estados de Consciência Interpretados Religio-
samente na Bíblia Hebraica.192 A categoria abrange os sonhos e visões, mas em
seu vocabulário e imaginário intercepta fenômenos como o sono, transes, êxtase e
possessão espiritual. Segal discute os rituais e as técnicas para indução (ou produ-
ção) de tais estados. Ele assevera que o conteúdo dos apocalipses não pode ser
simplesmente o resultado de exegese, mas deve ser atribuído também à experiên-
cia do visionário. Ele cita o exemplo da visão do Ancião de Dias e de “um seme-
lhante a um ser humano” em Dn 7, o que ele chama de um “sonho-visão’. Eles não
são, de acordo com Segal, midrashim, homilias, targumim ou pesharim. Esse meio
de revelação foi levado a sério pelos judeus da época de Daniel, e por aqueles do

190
MERKUR, D. The Visionary Practices of the Jewish Apocalypticists. In: BOYER, L. Bryce;
GROLNIK, S. A. (Ed.). The Psychoanalytic Study of Society, p. 119-148. v. XIV.
191
YARBRO COLLINS, A. Meaning and Significance in Apocalyptic Texts. In: Cosmology and
Eschatology in Jewish and Christian Apocalypticism, p. 1-20.
192
RIBAs, a sigla em inglês. Cf. SEGAL, A. F. Apocalypticism and Life After Death. PIBA 22
(1999), p. 41-63.
84

século precedente e subsequente. Seu objetivo era principalmente de consolação, e


não deve ser considerado nem uma invenção nem uma ficção.
Himmelfarb afirma audaciosamente que “apocalipses são literatura, na
verdade pode-se mesmo dizer, de ficção”;193 ele ainda nega que a ascensão nos
apocalipses reflita a experiência do próprio autor.194
Certamente o estudo mais interessante é o de Stone.195 Ele assegura que os
estudiosos tendem a ignorar ou se sentem desconfortáveis com a reivindicação
explícita da parte de profetas e visionários de que eles estão relatando algo que
realmente experimentaram. Ele lista as objeções levantadas para a tese de a expe-
riência visionária ser experiência concreta do próprio autor: (1) a atribuição pseu-
donímica é, em um grau ou outro, convencional aos apocalipses; (2) descrições de
experiências de revelação são elaboradas a partir de um cabedal comum e tradi-
cional de terminologia e descrições; (3) o uso de termos de tal cabedal testemunha
contra o vocabulário de espontaneidade que se deveria supor acompanhar relatos
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autênticos; e (4) o uso intenso desses três primeiros elementos faria sucumbir
qualquer cerne de autenticidade, deixando-a fora do alcance de recuperação.
Entretanto, usando o exemplo de 4 Esdras e seguindo uma linha de pensa-
mento que ele desenvolveu a partir de seu comentário da série Hermeneia e logo
depois,196 Stone demonstra sistematicamente que “quase todas [essas objeções]
cessam no momento em que a ‘realidade’ da experiência religiosa pode ser de-
monstrada”.197 Ele argumenta que a sofisticação dos relatos denota a sua veracida-
de e observa que convenção literária e elementos do cabedal cultural não contradi-
zem a realidade da experiência. Stone não faz distinção entre o “Esdras” do texto e
o autor do texto: a fonte da descrição da revelação é o “conhecimento direto ou
mediado da experiência religiosa”.198 Esse relato só poderia ser comunicado em
um linguajar cultural específico que usava e reusava certas palavras e imagens,
uma vez que “não há nenhuma outra linguagem que possa ser usada por eles”.199

193
HIMMELFARB, M. Revelation and Rupture: The Transformation of the Visionary in the As-
cent Apocalypses. In: COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revela-
tions, p. 79-90; aqui p. 87.
194
Idem. The Practice of Ascent in the Ancient Mediterranean World. In: COLLINS, J. J.; FISH-
BANE, M. (Ed.). Death, Ecstasy, and Other Worldly Journeys, p. 123-137.
195
STONE, Michael E. A Reconsideration of Apocalyptic Visions. HTR 96.2 (2003), p. 167-180.
196
Idem. Fourth Ezra: A Commentary on the Book of Fourth Ezra (Hermeneia, 1990); Idem: On
Reading an Apocalypse. In: COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Op. cit. p. 65-78.
197
Idem. A Reconsideration of Apocalyptic Visions. Op. cit. p. 177.
198
Ibidem, p. 178.
199
Ibidem, p. 179 (grifo do autor).
85

Dado o exposto e seja como for, o fato é que os leitores apocalípticos en-
tendiam a veracidade da mensagem, independentemente de considerarem a expe-
riência do visionário concreta ou não. O mais importante era o conteúdo da mes-
ma. Para tanto, era extremamente neste processo de comunicação o fenômeno da
pseudonímia.

2.5. O fenômeno da pseudonímia

Christopher Rowland sugeriu que a experiência visionária pode ser a raiz


da pseudonímia.200 Certo é que a maior parte dos autores apocalípticos lança suas
profecias a um passado remoto e escreve em nome de uma figura honrada, a qual
teria recebido a revelação que o visionário quer comunicar: é o fenômeno da
pseudonímia, uma característica literária comum aos apocalipses. Segundo Rus-
sell, o método da pseudonímia não é exclusivo dos judeus; por exemplo, há entre
os egípcios uma técnica similar presente já na XII dinastia.201 Provavelmente, era
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uma técnica bastante presente no Oriente e compartilhada por diferentes tradições


literárias. Para Russell, entretanto, não se pode concluir que a apocalíptica judaica
seja uma imitação dessa técnica; ao contrário, parece que entre os judeus explica-
se melhor o fenômeno como uma forma de escrita da tradição judaica.
O fenômeno aparece já em Gn 49, na “bênção de Jacó” dirigida a seus do-
ze filhos, a qual provavelmente foi escrita no princípio do período monárquico,
refletindo a situação histórica dessa época e levando o nome do Patriarca; o desti-
no das tribos até a época monárquica é formulado em forma de predições retroati-
vas à época de Jacó (profecia ex eventu). O mesmo ocorre com muitos Salmos a-
tribuídos a Davi e muitos provérbios creditados a Salomão. Uma diferença é que
os apocalipses são reconhecidamente pseudônimos e usam o recurso das visões,
sonhos e transes para enfatizar essa característica.
Muitas razões foram levantadas para a adoção da pseudonímia. Uma su-
gestão corrente é que a adoção da pseudonímia evitaria perigos da época de opres-
são do escritor, lançando a autoria de seus ensinos para um indivíduo do passado;
entretanto, tal teoria não convence, pois o uso da anonímia cumpriria esta finali-
dade. Outra ideia é que a adoção de uma figura notável do passado daria autorida-

200
Cf. ROWLAND, C. The Open Heaven: A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christian-
ity, p. 243.
201
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 128.
86

de e aceitação ao escrito, uma vez que a Torá era, nessa época, a autoridade maior,
fato que dificultava a aceitação de revelações recentes. Outro fator é que duas par-
tes (coletâneas) das Escrituras Judaicas já estavam cristalizadas por volta de 200
a.C. Somente entre os Hagiógrafos continuaram a ser admitidos livros até 100
a.C.; no entanto, esses escritos teriam que remontar no mínimo ao tempo do per-
sonagem Esdras para ser aceitos. O único apocalíptico que conseguiu admissão foi
o livro de Daniel, entre os Hagiógrafos, talvez pela aceitação do mérito antigo de
seu nome.
Rowley dá uma sugestão mais pragmática, explicando a origem da pseu-
donímia pelo livro de Daniel. 202 O escritor desse livro teria publicado histórias so-
bre Daniel anonimamente; quando escreveu as visões da segunda parte, o fez em
nome de Daniel para simplesmente estabelecer sua identidade com o escritor da
primeira parte do livro (as histórias dos capítulos 1 a 6). Assim, a pseudonímia não
foi feita com uma intenção consciente, mas como uma técnica literária que foi co-
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piada pelos outros escritores. Entretanto, ao que se consta, a pseudonímia não pa-
rece ter sido um simples recurso literário; a maior parte dos escritos apocalípticos
parece ter sido aceita pelos leitores como revelação genuína, e a mesma convicção
parece estar firmemente alicerçada na mente dos escritores. Collins assevera que:
Devemos assumir, pelo menos, que os círculos imediatos dos autores estavam
conscientes da maneira pela qual as obras eram de fato produzidas. Em contraste,
a atribuição dos livros apocalípticos [à pseudonímia] era aparentemente aceita pe-
lo público em geral, e não há evidência de que a convenção literária era comu-
203
mente reconhecida no judaísmo ou cristianismo primitivo.

Russell traz uma suposição mais voltada ao aspecto psicológico.204 Para e-


le, os escritores apocalípticos tinham consciência de que estavam, de certa forma,
substituindo os antigos profetas. O uso do nome próprio na cultura hebraica deve
ser levado em consideração; o nome não é apenas uma designação oral ou escrita,
mas a extensão da própria personalidade, indicando a essência do ser, sua vida, o
próprio ser.205 Assim, os próprios escritores acreditavam ter afinidade com os vi-
sionários antigos em nome dos quais eles escreviam e na linha de tradição na qual
estavam inseridos. Assumindo seu nome, o escritor poderia estar compartilhando
seu autêntico caráter.

202
ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica: um estudo da literatura apocalípti-
ca judaica e cristã de Daniel ao Apocalipse, p. 39-40.
203
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 56.
204
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 127-139.
205
Ibidem, p. 137.
87

O próprio Russell reconheceu que não há provas disso nos escritos;206 en-
tretanto, assinala que há indicações em muitos livros apocalípticos de que a esco-
lha do pseudônimo não foi totalmente arbitrária, mas sim em consonância com a
perspectiva do escritor, ou seja, frequentemente existe uma conexão entre o pseu-
dônimo escolhido e os problemas que ocupavam a mente do escritor.
Além do uso específico do nome na cultura hebraica, Russell emprega ain-
da duas noções para defender seu argumento: a de “personalidade corporativa”, ou
seja, o grupo engloba a todos os indivíduos que a ele pertencem, de tal forma que
existe uma “identidade” entre o indivíduo e os membros desse grupo, e a da “con-
temporaneidade”, ou seja, dois eventos separados podem ser equiparados e vistos
como um só por causa da semelhança em seu “conteúdo psicológico”.207
Essa ideia da “união quase mística” entre o escritor apocalíptico e o nome
da tradição na qual está inserido recebeu muitas críticas, sendo até mesmo desa-
creditada pelos estudiosos em geral. De fato, elas vão além do que dizem os escri-
tos. Russell mesmo reconheceu sua fragilidade posteriormente.208 Mas continuou
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asseverando, mesmo sem o recurso às duas noções anteriores, que a pseudonímia


não era um simples recurso literário, e que ela não se deu por acaso. Seria um re-
curso usado pelos escritores apocalípticos para mostrar que a revelação que rece-
beram, em última instância, não era sua; tinha sido recebida de tempos antigos,
através de alguém que exemplificava, em sua própria pessoa reverenciada, toda
uma tradição viva. Os apocalípticos eram, então, herdeiros e não os criadores de
uma revelação secreta que divulgavam agora, pela primeira vez, em seus livros.209
Collins compartilha a opinião de que o pseudônimo não era escolhido sim-
plesmente ao acaso:
Parece claro que os escritores apocalípticos sentiam que podiam atribuir com va-
lidade suas visões aos seus autores pseudônimos, e que a atribuição era apropria-
da e legitimada. (...) Devemos admitir que o autor pseudônimo era deliberada-
mente escolhido porque era particularmente apropriado para o propósito do autor
real. Seu nome deveria ser acrescido para eficácia da obra, não apenas pela sua
210
autoridade, mas também pelos valores e ideias associados a ele.

Assim sendo, podemos supor que o escritor-redator de Daniel, por exem-


plo, partilhava com o herói legendário (provavelmente conhecido no exílio babi-

206
Ibidem, p. 138.
207
Ibidem, p. 132-137.
208
Idem. Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica, p. 97.
209
Ibidem, p. 99-100.
210
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Vision of the Book of Daniel, p. 72.
88

lônico) circunstâncias semelhantes e papel análogo enquanto “homem sábio”.


Segundo Russell, os apocalípticos tinham certeza de pertencer a antigas
tradições.211 Podem ser detectadas nesses escritos duas ou talvez três principais
linhas de tradição secreta acerca das crises da história do mundo, associadas ao
nome de Enoque (com Noé), Moisés (com Esdras) e possivelmente com Daniel. À
tradição de Enoque associam-se os livros os três livros que levam o seu nome e o
Livro dos Jubileus.
Os relatos dessa tradição remontam à crença de que os homens anteriores
ao dilúvio eram homens superiores em sabedoria. Tais legendas encontram refe-
rência no Gênesis e em material mitológico de origem babilônica. De acordo com
Gn 5, Enoque era o sétimo na linhagem de Adão (ser “sétimo”, pela simbologia do
número, revela a grandeza dessa personagem.). O sétimo na listagem dos reis ba-
bilônicos antidiluvianos é Enmenduranna,212 o qual foi rei em Sipar, a cidade sa-
grada do deus sol Shamash. Essa figura lendária é apresentada como fundador de
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uma corporação hereditária de sacerdotes divinos. Os deuses o convidavam para


andar em sua companhia, contavam-lhe os mistérios do Céu e da Terra e o inicia-
vam na arte divina, a qual ele passou a seu filho e este às gerações seguintes. No
Gênesis, a figura de Enoque é bem-vinda na presença de Deus (Gn 5,22) e sua vi-
da é descrita como sendo de 365 anos (Gn 5,23), bem menor do que as dos demais
patriarcas mencionados no mesmo capítulo; não pode ser considerado acidental o
fato de os anos de sua vida corresponderem ao número de dias do ano solar (em
referência ao deus sol).
Portanto, segundo Russell, é provável que a figura misteriosa de Enoque
veio a se tornar conhecida nos círculos judaicos como equivalente do Enmendu-
ranna babilônico, e sua iniciação nos mistérios do Céu e da Terra teria dado início
à linha de tradição presente na literatura de Enoque. Nesse caso, verifica-se, então,
para além de influências de origem persa, uma influência mais antiga, mesopotâ-
mica, na tradição apocalíptica.
De fato, Enoque distingue-se dos outros patriarcas mencionados em Gn 5
em muitos traços: vida mais curta, atingindo um número perfeito (os dias do ano
solar); anda com Deus (à semelhança de Noé em Gn 6,9); e, por fim, desaparece à
semelhança de Elias (2Rs 2,9-18). Dessa forma, torna-se um grande exemplo de

211
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 109-113.
212
Cf. PRITCHARD, J. B. (Ed.). ANET, p. 265.
89

devoção para a tradição judaica (Eclo 44,16; 49,14).213


Para a questão da imortalidade e ressurreição, a figura de Enoque torna-se
importante na medida em que, pela tradição incorporada ao judaísmo do Período
do Segundo Templo, Enoque não passou pela morte, sendo revestido, então, pela
auréola da imortalidade. A temática é mais evidente no livro de 1 Enoque, o qual
é, na verdade, um livro compósito, dividido em cinco partes em sua forma final,
talvez por analogia ao Pentateuco ou aos Salmos.214 Se essa divisão for, de fato,
intencional, a obra não seria então apenas uma coleção de livros atribuídos a Eno-
que, mas um Pentateuco de Enoque. O fato é que não se sabe quando os cinco li-
vros foram reunidos; entretanto, é aceito que os livros circularam independente-
mente, já sob a alcunha de Enoque, antes de serem reunidos.
Dos três livros da tradição de Enoque, o 1 Enoque é justamente o mais an-
tigo. Sua datação possível se estende do III século a.C. ao I d.C. e sua autoria é
considerada compósita. Segundo Rowley, suas seções mais antigas pertencem à
época dos macabeus, pouco depois do aparecimento do livro de Daniel.215 Collins
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data a obra como sendo, provavelmente, do I século a.C., juntamente com o Tes-
tamento de Abraão.216
Durante muito tempo o livro foi conhecido pela tradução etiópica desco-
berta na Etiópia em 1769 (daí sua alcunha “Enoque etiópico”).217 Com as desco-
bertas em Qumran, foram encontrados fragmentos aramaicos de todas as seções do
livro, exceto para as chamadas Similitudes ou Parábolas de Enoque (capítulos 37-
71). O fragmento mais antigo pode ser datado da primeira metade do século II
a.C., confirmando a hipótese de Rowley. Isso atesta, pelo menos, que a maior par-
te da obra que se conhece atualmente era já conhecida da comunidade de Qumran
em época pré-cristã. O livro 5 (91-108, a Epístola de Enoque) possui fragmentos
correspondentes aos capítulos 91-94 (onde se menciona a ressurreição corporal)
encontrados em Qumran datados de cerca de 50 a.C.,218 sendo as ideias escatoló-
gicas apresentadas neles, com certeza, bem mais antigas que essa data, podendo
representar uma tradição mais antiga que a do livro de Daniel.

213
Eclo 44,16: “Enoque agradou ao Senhor e foi arrebatado, exemplo de sabedoria para as gera-
ções”; 49,14: “Ninguém sobre a terra foi criado igual a Enoque, ele que foi arrebatado da terra”.
214
RUSSELL, D. S. Desvelamento divino, p. 64.
215
ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica, p. 57.
216
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination, p. 35.
217
Pela mesma razão, o 2 Enoque é conhecido como Enoque eslavônico e o 3 Enoque como o Li-
vro hebreu de Enoque.
218
Cf. MILIK, Jazef T. (Ed.). The Books of Enoch: Aramaic Fragments of Qumrân Cave 4, p. 6.
90

Outra linha de tradição é a relacionada ao nome de Moisés (juntamente


com Esdras, o “segundo Moisés”). Essa tradição está representada no livro Assun-
ção de Moisés (no qual Moisés entrega livros secretos a Josué para serem preser-
vados e escondidos até o fim dos dias), no Livro dos Jubileus (no qual a narrativa
é outorgada a uma tradição secreta revelada a Moisés no Sinai, narrativa essa que
mostra a ele todos os eventos da história, tanto do passado quanto do futuro), e no
livro de 2 Esdras (no qual Esdras, o “segundo Moisés”, recebe os 24 livros da Es-
critura para divulgar e 70 livros da tradição apocalíptica para serem mantidos em
segredo). É provável que tenha existido mais material relativo a essa tradição não
disponível atualmente.
Uma terceira provável linha de tradição é associada ao nome de Daniel.
Essa tradição tem menos evidência do que a de Enoque e a de Moisés; entretanto,
há indicações de que o Daniel da apocalíptica judaica reflete um antigo herói cujo
nome já era conhecido dos judeus há vários séculos e também em legendas estran-
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geiras. Em Ezequiel (14,14.20; 28,3) ele aparece sob a forma Dan’el, sendo asso-
ciado a Noé e a Jó em 14,14.20 como três heróis populares louvados no texto por
sua justiça e poder de intercessão, e em 28,3 por sua sabedoria e conhecimento
acerca das tradições secretas. Fora de Israel sua justiça e sabedoria são louvadas
nos poemas de Ras Shamra (em tabletes encontrados no norte da Síria, em Ugarit,
datados no XIV século a.C.), na legenda de Aqatu, onde é feita menção a certo
Dan’el, um homem justo que zelava pelos órfãos e viúvas na angústia deles.219
Não é certo que o Dan’el de Ras Shamra se refira ao de Ezequiel, nem que
ambas as referências possam ser identificadas com o Daniel apocalíptico, mas a
evidência torna essa identificação bastante plausível. É provável que o redator de
Daniel conhecesse o livro de Ezequiel, como já conhecia na mesma época Ben
Siraque (Eclo 49,6-7), o que também pode ser atestado quando se compara o orá-
culo de Ez 31 com Dn 4.220
Portanto, o redator de Daniel deve ter retirado o nome de seu herói da tra-
dição do herói antigo, provavelmente a partir de Ezequiel; o fato de o antigo
Dan’el ser renomado por sua justiça e sabedoria em revelar segredos e mistérios
deu o recurso necessário para que o escritor adotasse seu nome. De fato, em Dn

219
Cf. PRITCHARD, J. B. (Ed.). ANET, p. 149-155.
220
A grandeza do Faraó é descrita em Ezequiel por meio de uma parábola que evoca a grandeza do
cedro do Líbano, mesmos termos utilizados para descrever a grandeza de Nabucodonosor no capí-
tulo 4 do livro de Daniel.
91

1,4 o herói do livro e seus três companheiros são descritos como “instruídos em
toda sabedoria, conhecedores da ciência e sutis no entendimento”, além de instruí-
dos na “escrita e língua dos caldeus”. Como nas outras duas tradições, Daniel é
orientado a manter segredo sobre as revelações (8,26; 12,4.9), mantendo o livro
lacrado até o tempo determinado; é a expressão do caráter esotérico presente tam-
bém nesta tradição.
Esses três nomes não esgotam os pseudônimos usados nos apocalípticos,
sendo apenas os principais; aparecem também, por exemplo, Abraão, os Patriar-
cas, Salomão, Isaías e Baruque. Em relação à possibilidade de ciclos de escritos
formados por nomes de heróis lendários, Trebolle Barrera afirma que:
Possivelmente existissem ciclos de escritos apócrifos, cada um colocado sob a au-
toridade de um personagem bíblico ou neotestamentário como Daniel, Esdras,
Maria, Pilatos, os apóstolos e outros personagens do cristianismo nascente. Estes
ciclos estavam relacionados, quem sabe, com escolas, que seguiam um mestre e
221
representavam uma linha determinada da tradição.
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Observa-se, assim, o uso da pseudonímia como uma importante caracterís-


tica do fenômeno apocalíptico em geral. Sua importância se dá especialmente na
delimitação do marco social das obras apocalípticas, para o qual os pseudônimos
muito representavam; no caso de Daniel, por exemplo, o personagem é de fato a
personificação da justiça divina esperada em tempos de dificuldades e crise social.

2.6. Origens e influências

2.6.1. As relações com o profetismo e a sabedoria

Por muito tempo a apocalíptica foi vista como uma literatura e forma de
pensar completamente separada do profetismo, da escatologia e da literatura sapi-
encial. Os trabalhos de estudiosos como Betz,222 Cross223 e especialmente Martin
Hengel224 estabeleceram um forte fundamento para o estudo moderno da origem e
desenvolvimento dos apocalipses antigos e do apocalipsismo. A influência do

221
TREBOLLE BARRERA, Julio. A Bíblia hebraica e a Bíblia cristã, p. 285.
222
BETZ, H. D. On the Problem of the Religio-Historical Understanding of Apocalypticism. In:
FUNK, Robert W. (Ed.). Apocalypticism, p. 134-156 (1969; original alemão de 1966).
223
CROSS, F. M. New Directions in the Study of Apocalyptic. In: FUNK, R. W. (Ed.). Op. cit. p.
157-165.
224
HENGEL, Martin. Judaism and Hellenism : Studies in Their Encounter in Palestine during the
Early Hellenistic Period. 2 v. (1974, original alemão de 1969).
92

Congresso de Uppsala (1979) já citado também não pode ser subestimada.225 A-


pesar dessa nobre herança, no entanto, ainda não existe consenso em relação a vá-
rios aspectos mais específicos. O lugar ocupado pela tradição profética de Israel é
uma das questões mais antigas e mais controversas do estudo do desenvolvimento
dos apocalipses e do apocalipsismo. Alguns duvidam que a profecia israelita e a
escatologia profética desempenharam um papel importante, ou perguntam qual a
natureza específica desse papel.
Os resultados dos recentes estudos continuam a refinar os parâmetros das
pesquisas em curso e a mapear os caminhos de novas abordagens. Existe uma
maior flexibilidade geográfica, étnica, de limites cronológicos e para a transmissão
de ideias através deles. O debate já não é mais formulado, por exemplo, em termos
elementares de desenvolvimento dentro de grupo determinado ou de conflito ver-
sus influência externa ou osmose.
Claro está que a apocalíptica judaica sofreu mudanças que a levaram a um
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desenvolvimento. De acordo com Collins, existiram três importantes fases no de-


senvolvimento da apocalíptica judaica: a primeira estaria localizada após o exílio
babilônico (a partir do V século a.C.); nos escritos proféticos tardios pode-se en-
contrar uma tendência a retratar o futuro em termos cósmicos, com menos refe-
rências específicas a particularidades concretas da situação do próprio profeta do
que ocorria no período anterior. O principal desenvolvimento, entretanto, está na
segunda fase, no Período Helenístico, quando a crença no julgamento dos mortos
começa a encontrar aceitação no judaísmo; a esperança em uma vida futura bem-
aventurada é um dos principais fatores que distinguem a escatologia dos escritores
apocalípticos daquela dos profetas. A terceira fase do desenvolvimento, encontra-
da em apocalipses do Período Romano (cerca de 100 d.C.), é distinguida pela ten-
tativa de sintetizar tradições diferentes e proporcionar uma exposição mais siste-
mática da esperança no futuro.226 De fato, no Período Helenístico, a partir de 200
a.C., uma série de obras floresceram em território judaico, todas consideradas co-
mo pertencentes ao matiz apocalíptico.227

225
HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East (1989).
226
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: McGINN,
B.J.; COLLINS, J.J.; STEIN, S.J. (Ed.). The Continuum History of Apocalypticism, p. 64-88.
227
Dentre todas essas obras, as que mais interessam para o objetivo deste trabalho (a questão das
mudanças nas concepções judaicas acerca do pós-motre, especialmente a ressurreição individual
seguida de julgamento, com desdobramentos no cristianismo primitivo) além de Daniel são 1 Eno-
que 2 Macabeus. Em relação ao primeiro, conforme já assinalado supra, a obra faz parte de uma
tradição judaica do Período do Segundo Templo que tinha a figura do Patriarca Enoque em alta
93

Em relação às raízes proféticas, a escola britânica há muito situou a apoca-


líptica judaica na profecia do AT. Rowley foi um dos primeiros a citar a influência
do profetismo na apocalíptica: “Proclamava-se, para um futuro bem distante, o dia
do livramento divino e uma idade áurea, o que sustentava a mensagem dos profe-
tas e se constituía numa das fontes da literatura apocalíptica”.228 Apesar disso, ele
viu diferenças: os livros proféticos são formados grandemente de breves oráculos,
muitas vezes em forma poética, ao passo que os apocalipses são escritos, quase
sempre, em prosa e com longa extensão; os apocalipses têm comumente caráter
esotérico (a mensagem deve manter algum conhecimento em segredo), ao passo
que a profecia não.229 Ambos, entretanto, refletem a situação histórico-política de
suas respectivas épocas.
Russell também foi pioneiro em descrever a apocalíptica com sua raiz
principal situada no profetismo. Deste a apocalíptica teria se nutrido e capacitado
para chegar à plena forma em torno dos inícios do II século a.C. Segundo ele, a
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apocalíptica reinterpretou as antigas profecias, adaptando-as para sua finalidade, e


foi influenciada por elas no linguajar simbólico e no pensamento, às vezes até
mesmo de forma inconsciente.230 Assim, “os escritores apocalípticos eram essen-
cialmente estudantes da profecia, que acreditavam que tinham sido levantados por
Deus para fazer conhecido o significado dela a seus contemporâneos”.231
Posteriormente, a apocalíptica foi vista excessivamente como fruto de in-
fluência estrangeira aos judeus. Martin Rist chegou a afirmar que o apocalipsismo
era “um tipo de pensamento religioso que aparentemente originou-se no zoroas-
trismo, a antiga religião persa; foi adotado pelo judaísmo nos períodos exílico e
pós-exílico, e mediado pelo judaísmo ao cristianismo primitivo”.232 Assim, após

estima, o que vale também para a tradição cristã primitiva: em Jd 14.15, Enoque é descrito como
um profeta, o “sétimo dos patriarcas a contar de Adão”, que profetizou o juízo de Iahweh contra os
ímpios e o julgamento de todos os homens. Trata-se de uma referência a 1En 1,9, obra à qual cer-
tamente se creditou alguma autoridade como livro sagrado no cristianismo primitivo.
228
ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica, p. 23.
229
Ibidem, p. 14.
230
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 178-202.
231
Ibidem, p. 181. Deve-se ressaltar, no entanto, que a escola britânica (da qual Russell e Rowley
são dois dos principais representantes) foi grandemente influenciada no século passado pelos estu-
dos de R. H. Charles (erudito do final do século XIX e início do XX); Charles descreveu a origem
da apocalíptica principalmente em função da profecia veterotestamentária. Apesar de a profecia ser
considerada, de fato, a principal fonte da literatura apocalíptica também por outras escolas, a assi-
milação exagerada da profecia na apocalíptica pode levar a perder de vista os componentes mitoló-
gicos e cosmológicos estrangeiros presentes nessa literatura (cf. COLLINS, J. J. The Apocalyptic
Imagination, p. 15). De qualquer forma, apesar de fundamentarem a apocalíptica a partir da profe-
cia, Russell e Rowley também admitiram a influência estrangeira na apocalíptica judaica.
232
RIST, M. Apocalypticism. In: BUTTRICK, G. A. (Ed.). IDB, p. 157. v. 1.
94

uma fase intensa de estudos nos quais se confirmaram as influências estrangeiras


(principalmente iranianas) na apocalíptica judaica (especialmente no período hele-
nista),233 muitos estudiosos voltaram sua atenção novamente às raízes mais antigas
da apocalíptica.
Em verdade, a visão padrão da relação entre profecia e apocalipse fortale-
cida por Rowley, defendida por Russell e aumentada com uma formulação clássi-
ca no artigo de Cross depende da ideia de processo histórico e transformação ideo-
lógica. Com poucas exceções, a crise política e social provocada pelo exílio babi-
lônico sinalizou o fim da profecia clássica e sua estreita relação com a antiga rea-
leza. Para os judeus de cunho apocalíptico, as teologias da história no período pós-
exílico adotadas na tradição sacerdotal e na redação final deuteronomista foram
consideradas inadequadas ou insuficientes para responder a novas situações, como
as interações com novos povos e culturas. Em seu lugar surgiram novas vozes, as
quais olharam para além das formas e recursos inerentes ao antigo culto nacional,
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procurando respostas nas mais antigas e míticas vertentes da religião israelita.


Como afirma Cross, “a história e o mito, a tradição da sabedoria e a tradição do
profeta se amalgamaram no final do sexto século e jamais se separaram totalmen-
te”.234 Um dos resultados desse amálgama radical foi a literatura apocalíptica pri-
mitiva, em que as antigas formas e temas proféticos foram rearticulados no antigo
linguajar mitológico e reformulados em termos de seu horizonte escatológico.
O ponto de vista da origem profética do apocalipsismo foi reforçado e au-
mentado de diferentes formas. Alguns estudiosos têm centrado seus esforços nos
elementos de interpretação e de revelação. Carroll, por exemplo, emprega o con-
ceito sócio-científico da dissonância cognitiva para explicar a gênese do apocalip-
sismo em termos de falência da profecia.235 Para ele, a reinterpretação de dados
proféticos na literatura apocalíptica, o que ocorreu tectonicamente e não como um
movimento suave, permitiu que alguns aspectos dos antigos oráculos mantivessem
seu valor para a comunidade da época e resolvessem tensões criadas por seu apa-
rente fracasso. Clements sugere que os apocalipses do Período do Segundo Tem-

233
Cf. especialmente FROST, Stanley B. Old Testament Apocalyptic: Its Origins and Growth, p.
19 passim.
234
CROSS, F. M. New Directions in the Study of Apocalyptic. In: FUNK, Robert W. (Ed.). Apo-
calypticism, p. 157-165; aqui p. 163.
235
CARROLL, R. P. When Prophecy Failed: Cognitive Dissonance in the Prophetic Traditions of
the Old Testament. Cf. ainda, do mesmo autor, Second Isaiah and the Failure of Prophecy. ST 32
(1978), p. 119-131; Twilight of Prophecy or Dawn of Apocalyptic? JSOT 14 (1979), p. 3-35.
95

plo tentaram recapturar a ênfase na predição,236 a qual tinha sido a esfera de ação
da profecia israelita clássica, mas foi abandonada em favor de uma ênfase no arre-
pendimento através da Torá.237
Arcari compreende o aumento do apocalipsismo em termos de um desen-
volvimento social e literário de um novo modo de interpretação dos textos proféti-
cos, que começou no início do período pós-exílico e continuou por todo o judaís-
mo e cristianismo antigos.238 Aranda Pérez argumenta que a perda do Templo, as
experiências do exílio e as exigências do retorno expandiram e alteraram o concei-
to de revelação ao longo de linhas que alcançariam sua expressão plena nos apoca-
lipses clássicos.239
Hanson, conforme já assinalado supra, também fez uma reavaliação da a-
pocalíptica retornando a busca da sua origem muito antes do livro de Daniel. Ele
acredita que a origem da apocalíptica se dá a partir da escatologia profética.240
Mais especificamente, a apocalíptica teria sua raiz na tradição profética antiga.
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Hanson inclui em seus estudos Ex 15 (o cântico de Miriam), Ez 38-39.40-48, Zc


1-8 e/ou 9-14 e,241 principalmente, o Dêutero e o Trito-Isaías (Is 40-66), com o
incorretamente chamado “Apocalipse de Isaías” (Is 24-27, de fins do século VI e
início do V século a.C.).242 Posteriormente, Hanson centrou seus estudos na pri-

236
CLEMENTS, Ronald E. Prophecy and Tradition, p. 73-86.
237
Cf. também KNIBB, M. Prophecy and the Emergence of the Jewish Apocalypses. In: COG-
GINS, R; PHILLIPS, A.; KNIBB, M. (Ed.). Israel’s Prophetic Tradition: Essays in Honour of
Peter R. Ackroyd, p. 155-180, onde a escatologia apocalíptica representa uma continuação da ex-
pectativa futura dos profetas (p. 176).
238
ARCARI, L. La titolatura dell’Apocalisse di Giovanni: “apocalisse” o “profezia”? Appunti per
una ri-definizione del “genere apocalittico” sulla scorta di quello “profetico”. Henoch 23 (2001), p.
243-265. Cf. também, do mesmo autor, Sui rapporti tra apocalissa “con viaggio ultraterreno” e
“senza viaggio ultraterreno”. Indagine per una “storia” de “genere apocalittico”. Henoch 26 (2004),
p. 63-85.
239
ARANDA PÉREZ, G. El destierro de Babilonia y las raíces de la apocalíptica. EstBíb 56
(1998), p. 335-355.
240
HANSON, P. D. Old Testament Apocalyptic Reexamined. Int 25.4 (1971), p. 454-479; Idem.
The Phenomenon of Apocalyptic in Israel: Its Background and Setting. In: The Dawn of Apocalyp-
tic, p. 1-31; Idem. Apocalypticism. In: CRIM, Keith (Ed.). IDBSup, p. 29-34; Idem. (Ed.). Intro-
duction. In: Visionaries and Their Apocalypses, p. 1-15; Idem. Israelite Religion in the Early Post-
Exilic Period. In: MILLER, P.D., Jr.; HANSON, P.D.; McBRIDE, S.D. (Ed.). Ancient Israelite
Religion: Essays in Honor of Frank Moore Cross, p. 485-508.
241
Sobre a proto-apocalíptica nos textos de Ezequiel e Zacarias, cf. também COOK, S. L. Prophe-
cy and Apocalypticism: The Postexilic Social Setting, p. 85-166; COLLINS, J. J. The Eschatology
of Zechariah. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p.
74-84.
242
A tendência da crítica atual é considerar o trecho de Is 24-27 como sendo exílico ou do início
do pós-exílio (cf. HANSON, Paul D. The Dawn of Apocalyptic, p. 27.313-315. Hanson considera
Is 24-27 como sendo um “apocalipse primitivo”). Sobre a datação deste trecho de Isaías, cf. ainda
JÜNGLING, Hans-Winfried. O Livro de Isaías. In: ZENGER, Erich (Ed.). Introdução ao Antigo
Testamento, p. 380-398; aqui p. 395. Millar também defende Is 24-27 como um “proto-apocalipse”
(cf. MILLAR, W. R. Isaiah 24-27 and the Origin of Apocalyptic). Muitos estudiosos discordam
96

meira fase do pós-exílio com os primeiros capítulos do livro de Zacarias.


Muitas composições foram classificadas como pertencentes a essa fase
“proto-apocalíptica”, embora seja frequentemente obscuro sobre qual fundamento
(gênero, ideologia ou escatologia) tal classificação foi feita. Cook, Sweeney e
Plöger defendem que o livro de Joel também seja um proto-apocalipse.243 Attridge
descreve a Crônica Demótica do Egito helenístico também como um proto-
apocalipse.244 Para Olson, o conteúdo e a estrutura quiástica de Jr 4,5-31 pressu-
põe uma forma de mito expressa no Livro dos Vigilantes do 1 Enoque.245 Johnson
reivindica um status de protoapocalipse para Jó em virtude de sua mensagem, ca-
racterísticas transcendentais e a forma de revelação em 4.17-21 e 28.23-28, a des-
peito da “ausência de evidente escatologia”. 246 Ele afirma que:
Em suma, é difícil não sugerir que Jó contém padrões literários que são geralmen-
te associados com apocalipses, mesmo se claramente termos e conceitos escatoló-
gicos não estejam notoriamente presentes. Eu certamente não argumento que Jó
representa um apocalipse “maduro”, mas sinto que padrões apocalípticos apresen-
tam-se a si mesmos de tal forma que uma busca por uma moldura apocalíptica se
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247
justifica.

Segundo Clements, muitos dos textos proto-apocalípticos são coleções dis-

dessa opinião: cf., por exemplo, a conclusão de N. O. Skjoldal: “Os capítulos 24-27 de Isaías não
fornecem auxílio na reconstrução do background histórico e sociológico da literatura apocalíptica”
(SKJOLDAL, Neil O. The Function of Isaiah 24-27. JETS 36.2 (1993), p. 163-172; aqui p. 172).
243
COOK, S. L. Prophecy and Apocalypticism: The Postexilic Social Setting, p. 167-210; SWEE-
NEY, M. A. The Priesthood and the Proto-Apocalyptic Reading of Prophetic and Pentateuchal
Texts. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 167-187; PLÖGER, Otto. Theocracy
and Eschatology, p. 26-105.
244
ATTRIDGE, H. W. Greek and Latin Apocalypses. In: COLLINS, J. J. (Ed.). Apocalypse: The
Morphology of a Genre. Semeia 14 (1979), p. 159-186. Wilson considera que a Crônica Demótica
“também pode ter sido criada como propaganda política (...) O texto como um todo foi criado pro-
vavelmente pelo mesmo tipo de grupo oprimido responsável pelo ‘Oráculo do oleiro’, servindo
para articular os pontos de vista próprios do grupo” (Cf. WILSON, Robert R. Profecia e sociedade
no antigo Israel, p. 160). Entretanto, Wilson classifica o texto como “outro exemplo de profecia
periférica em forma escrita” (Ibidem, com referências para a discussão do tema).
245
OLSON, D. C. Jeremiah 4.5-31 and Apocalyptic Myth. JSOT 73 (1997), p. 81-107.
246
JOHNSON, T. J. Job As Proto-Apocalypse: Proposing a Unifying Genre. PhD Dissertation,
Marquette University, 2004.
247
Idem. Job As Proto-Apocalypse: A Fresh Proposal for Job’s Governing Genre. SBLSP 43
(2004), p. 227-250; aqui p. 236. Collins já havia observado que o livro de Jó “tem grandes afini-
dades com a apocalíptica” (cf. COLLINS, J. J. Cosmos and Salvation: Jewish Wisdom and Apoca-
lyptic in the Hellenistic Age. HR 17.2 (1977), p. 121-142; aqui p. 140. Na nota 74 dessa mesma
página ele afirma que o livro de Jó é “o livro da sabedoria hebraica que tem as maiores afinidades
com a apocalíptica”). Collins alega que Jó, assim como outros apocalipses, “surge de uma falha em
encontrar a ordem e a justiça no mundo”, e a “revelação sobrenatural” advinda no turbilhão da
tempestade ajuda a Jó na superação dessa questão. Christopher Rowland dedicou duas páginas de
seu clássico estudo sobre a literatura apocalíptica às características apocalípticas de Jó e concluiu
que “a estrutura de Jó como um todo oferece uma forma embrionária dos apocalipses tardios” (cf.
ROWLAND, C. The Open Heaven, p. 206-207). F. M. Cross achou interessante que a Comunidade
de Qumran tenha preservado o livro de Jó em paleo-hebraico; segundo ele, é “intrigante que a im-
portância de Jó não foi esquecida nos círculos apocalípticos” (cf. CROSS, F. M. New Directions in
the Study of Apocalyptic. In: FUNK, R. W. (Ed.) Apocalypticism, p. 157-165; aqui p. 162-163).
97

tintas anexadas a grandes agregações de oráculos proféticos, ou o resultado de


uma reformulação ou elaboração de oráculos mais antigos.248 Por exemplo, um
“padrão apocalíptico de pensamento” transformou a natureza originalmente profé-
tica da expectativa do fim conforme expressa em Is 10,23; 28,22 e Dn 9,27. Bec-
king faz uma intrigante proposição ao afirmar que “não há expectativas sobre o
fim dos tempos na Bíblia Hebraica”,249 embora ele admita que o livro de Daniel
esteja “no limite”.250 Entretanto, podemos discordar e afirmarmos que a expectati-
va do advento do Reino de Deus em Dn 2 representa uma refutação inequívoca a
essa proposição.251
Allen aborda o valor hermenêutico de Ezequiel e Joel como sendo proce-
dentes da escatologia apocalíptica.252 Reventlow examina a “escatologização” dos
livros proféticos como um estágio anterior ao desenvolvimento da literatura apo-
calíptica,253 e Sweeney também afirma que “a literatura apocalíptica desenvolveu-
se inicialmente a partir da literatura profética”,254 citando como prova seções pro-
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to-apocalípticas incorporadas dentro dos livros proféticos.


Uffenheimer detalha uma sequência de quatro estágios a partir da escatolo-
gia profética até a escatologia apocalíptica:
O primeiro tipo, representado principalmente por Isaías, é baseado na crença de
que a intervenção redentora final de Deus será o resultado imediato da situação
histórica presente (...) O segundo tipo é também enraizado no Livro de Isaías, em
2,1-4 e caps. 24-27, sendo o seu principal representante, entretanto, Ezequiel (...)
[cuja] abordagem é o resultado de um desprendimento completo da escatologia a
partir da história contemporânea (...) O terceiro, aquele do Dêutero-Isaías, é base-
ado na identificação da história contemporânea com escatologia... O quarto tipo é
a tentativa de Ageu e Zacarias de efetuar, tornar real a era escatológica, exigindo
a finalização da construção do Templo e pela coroação de Zorobabel como o mes-
255
siânico Rei de Judá.

248
CLEMENTS, Ronald E. The Interpretation of Prophecy and the Origin of Apocalyptic. In: Old
Testament Prophecy: From Oracles to Canon, p. 182-188.
249
BECKING, B. Expectations about the End of Time in the Hebrew Bible: Do They Exist? In:
ROWLAND, C.; BARTON, J. (Ed.). Apocalyptic in History and Tradition, p. 44-59; aqui p. 44.
250
Ibidem, p. 57-59.
251
Cf. SOARES, Dionísio O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho
da estátua de Nabucodonosor. Dissertação de Mestrado, PUC-Rio, 2006.
252
ALLEN, Leslie C. Some Prophetic Antecedents of Apocalyptic Eschatology and Their Herme-
neutical Value. Ex Auditu 6 (1990), p. 15-28.
253
REVENTLOW, Henning G. The Eschatologization of the Prophetic Books: A Comparative
Study. In: Eschatology in the Bible and in Jewish and Christian Tradition, p. 169-188.
254
SWEENEY, M. A. The Priesthood and the Proto-Apocalyptic Reading of Prophetic and Penta-
teuchal Texts. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p.
167-178; aqui p. 167.
255
UFFENHEIMER, Benjamin. From Prophetic to Apocalyptic Eschatology. In: REVENTLOW,
H. G. (Ed.). Op. cit. p. 200-217; aqui p. 201. Mariano Bianca também propõe uma classificação
em quatro tipos de escatologias, uma das quais é um modelo de “apocalíptica”; entretanto, sua
classificação serve mais como modelo de guia, muito menos baseada historicamente (cf. BIANCA,
98

Quando a história ignora Zorobabel, argumenta Uffenheimer, o senso de


antecipação escatológica premente diminui. O zelo profético decresce com o fra-
casso da realização escatológica e permanece dormente até reviver, ainda que de
forma nova, com as expectativas apocalípticas desencadeadas pela crise da época
de Antíoco Epífanes (época de composição final do livro de Daniel).
Hanson acredita que, quando se colocou o início da apocalíptica em Dani-
el, as conexões entre o profetismo e a apocalíptica foram mal interpretadas, atribu-
indo-se exagerada ênfase nos elementos que fariam diferença entre profetismo e
apocalíptica. Além disso, esses elementos foram procurados exageradamente em
religiões estranhas ao judaísmo no Período Helenístico. Em verdade, a apocalípti-
ca teria surgido em meio a atribuladas circunstâncias da comunidade judaica no
período pré-exílico, “pois é lá que se pode detectar a escatologia profética sendo
transformada em apocalíptica, sugerindo assim onde o estudo da natureza e das
origens da apocalíptica judaica deve começar”.256
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Ressalta-se ainda que a própria profecia surgiu num ambiente religioso mí-
tico, com a atividade divina situada num plano cósmico, sendo a esfera mundana
considerada somente reflexão do drama dos deuses. Assim, segundo Hanson, as
influências que fizeram surgir a literatura apocalíptica judaica se devem, primei-
ramente, a uma renovação com maior intensidade de material mítico enraizado em
solo israelita muito antes do Período Helenístico, o qual Russell já havia apontado
anteriormente, como já assinalamos. Daí a necessidade de análise de textos da lite-
ratura profética mais antigos.
Hanson também aponta diferenças: no profetismo clássico, a história hu-
mana era a esfera para a relação de alianças de YHWH com seu povo, não estando
presa a uma pré-determinação em direção a um final (o povo podia se arrepender e
YHWH mudar seus planos, tudo com o intuito de realizar as promessas da alian-
ça); na apocalíptica, a história é usada como uma espécie de calendário que aponta
para o fim, quando o poder do mal que aprisiona os eleitos será quebrado (dualis-
mo); além disso, a apocalíptica usa muito mais a profecia ex eventu para firmar a
credibilidade do vidente. O profetismo possui a tensão de relacionar expressamen-
te a esfera divina com a humana, ausente no caráter esotérico do apocalipsismo;

M. L. Sentimenti apocalittici e modelli escatologici. In: MACIOTI, Maria I. (Ed.). Attese


apocalittiche alle soglie del millennio, p. 63-78.
256
HANSON, P. D. Old Testament Apocalyptic Reexamined. Int 25.4 (1971), p. 454-479; aqui p.
457.
99

assim, os papéis do profeta e do vidente apocalíptico possuem uma diferença cla-


ra: o profeta é um porta-voz de YHWH com responsabilidade de transmitir a men-
sagem ao seu povo no âmbito terreno, ao passo que o apocalíptico deixa a visão
em nível cósmico.257
Para Hanson, a visão pessimista do apocalíptico em relação ao presente é
um desenvolvimento do pensamento profético na direção de enfatizar cada vez
menos a relação de aliança com YHWH em detrimento do juízo iminente visto
como catástrofe inevitável, apontando para um novo começo radical como única
forma de restabelecer a aliança. Assim, “a escatologia profética se transforma em
apocalíptica no momento em que a tarefa de traduzir a visão cósmica para as cate-
gorias da realidade do mundo é renunciada”,258 o que pode ser verificado já no
Dêutero-Isaías. Em Zc 14 (composição do V século a.C.) já se manifestam algu-
mas das características essenciais do apocalipsismo plenamente desenvolvidas: o
dualismo, a divisão da história em eras, e a descrição exuberante de distúrbios e
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catástrofes na natureza acompanhando a teofania e o juízo final de Iahweh.


Dessa forma, Hanson chega ao livro de Daniel não como sendo apenas um
fenômeno do II século a.C. desprovido de conexão com o profetismo clássico e
muito ligado ao dualismo persa, mas como sendo apenas “uma estação ao longo
de um processo contínuo que se estende desde a profecia pré-exílica até a apoca-
líptica madura, estando muito em casa em solo judaico, e manifestando emprésti-
mos estrangeiros apenas como enfeites periféricos”.259 Na mesma linha de pensa-
mento de Hanson está Otto Plöger,260 o qual também atribui as origens da apoca-
líptica às esperanças da profecia escatológica do V século, chegando à sua plena
forma em Daniel no II século, depois de passar por Is 24-27, Zc 12-14 e Jl 3-4.
A definição de Hanson de escatologia profética realça suas dimensões his-
257
Antes de Hanson, Martin Buber já havia afirmado que “a apocalíptica madura não reconhece
mais um futuro histórico em seu verdadeiro sentido. O fim de toda a história está próximo. (...) O
Apocalipse de Baruque expressa: ‘O futuro dos tempos já está quase passado’. Do éon presente, ao
qual pertencem o mundo e a história deste mundo, ‘Esra’ afirma ‘que ele se dirige poderosamente
para o fim’. O éon futuro, a transformação de todas as coisas pela irrupção da transcendência, está
iminente. O objeto propriamente dito e paradoxal dos últimos apocalípticos é um futuro que não é
mais o tempo de um acontecimento, não é mais história, e ele antecipa de tal forma este objeto que
tudo que ainda possa vir, em termos de história, não possui mais para ele um caráter histórico. O
homem não pode fazer nada, mas ele também não tem mais o que fazer” (BUBER, M. Prophetie
und Apokalyptik. In: Werke, p. 925-942. v. 2; aqui p. 939. Cf. também o tratamento do tema em
LUCK, Ulrich. Das Weltverständnis in der jüdischen Apokalyptik, dargestellt am äthiopischen
Henoch und am 4. Esra. ZThK 73 (1976), p. 283-305).
258
HANSON, P. D. Old Testament Apocalyptic Reexamined. Op. cit. p. 469.
259
Ibidem, p. 473.
260
PLÖGER, Otto. Theocracy and Eschatology, p. 26-105. Cf. também MILLAR, W. R. Isaiah
24-27 and the Origin of Apocalyptic, p. 103-120.
100

tóricas e terrenas. O profeta interpreta como o plano divino para Israel e o mundo
“será efetuado no âmbito do contexto da história da nação deles [profeta e povo] e
da história do mundo”.261 Em contrapartida, a escatologia apocalíptica:
Concentra-se na revelação (geralmente de natureza esotérica) ao eleito da visão
cósmica da soberania de Iahweh – especialmente quando ela se relaciona com a
atuação de Iahweh para libertar seus fiéis – revelação essa que os visionários em
grande parte deixaram de traduzir em termos de história comum, políticas reais e
instrumentalidade humana, devido a uma visão pessimista da realidade, a qual era
crescente nas áridas condições do pós-exílio, dentro das quais aqueles associados
ao visionários se encontravam. Essas condições pareciam ser para eles inadequa-
262
das como contexto para a almejada restauração do povo de Iahweh.

Sustentando essas definições está uma concepção de transformação e pro-


cesso que não só se baseia no trabalho de Cross e outros, notavelmente em seu fo-
co sobre a importância do mito e da linguagem mítica, mas também sobre a re-
construção dos contextos sociais. Como vimos, Hanson associa o surgimento da
escatologia apocalíptica com um grupo pequeno e descontente cujos membros es-
tabeleceram oposição à aristocracia religiosa e seu programa de reconstrução do
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Templo. O horizonte conceitual de sua literatura “proto-apocalíptica”, ilimitada


pelas fronteiras da Terra ou da história, esboçou a escatologia que viria a caracte-
rizar os apocalipses maduros de uma era posterior.
A teoria de que os proto-apocalipses representam um elo perdido entre pro-
fecia e apocalipse ou de que o proto-apocalipsismo é uma forma nascente de apo-
calipsismo não escapou de críticas. Oswalt enumera as críticas mais contundentes
que foram levantadas contra as hipóteses de Hanson e Millar, incluindo:
Uma ênfase excessiva no uso de fontes míticas por parte dos profetas tardios; uma
duvidosa aplicação do tema do Guerreiro Cósmico; um excesso de confiança nas
tipologias de desenvolvimento, tanto literária quanto sociológica, resultando em
rearranjo do texto com pouca ou nenhuma consideração de possíveis arranjos al-
ternativos ou possíveis explicações; e forte dependência nas reconstruções hipoté-
263
ticas da história e sociedade israelitas.

O método “contextual-tipológico” usado por Millar e Hanson para datar e


desse modo reorganizar o texto dos profetas pós-exílicos de acordo com suas esca-
tologias é, para parafrasear os sentimentos de muitos críticos, incapaz de suportar
o peso da tarefa que lhe foi solicitado efetuar.
Polaski analisa o chamado “Apocalipse de Isaías” (Is 24-27) em parte com

261
HANSON, P. D. The Dawn of Apocalyptic, p. 11.
262
Ibidem.
263
OSWALT, J. N. Recent Studies in Old Testament Apocalyptic. In: BAKER, D. W.; ARNOLD,
B. T. (Ed.). The Face of Old Testament Studies: A Survey of Contemporary Approaches, p. 369-
390; aqui p. 380.
101

o intuito de verificar a tese de que a “proto-apocalíptica’ é uma categoria identifi-


cável e, em caso afirmativo, isolar a base pela qual ela possa servir a um lugar sig-
nificativo na história do desenvolvimento da literatura apocalíptica.264 Ele questi-
ona a natureza da relação entre texto e contexto, a qual tem sustentado as conclu-
sões de estudiosos desde Hanson até Grabbe e Cook, a despeito de suas diferentes
conclusões. Ele aborda a cultura social por trás desses capítulos de forma intertex-
tual ou, como ele mesmo afirma, “através da leitura cuidadosa dos deslocamentos
dentro de Is 24-27 e entre este e outros textos do período. As tensões distribuídas
desigualmente devem proporcionar uma compreensão daquela cultura”.265
Enquanto Polaski é relativamente indiferente em relação à identificação do
movimento social específico responsável pela composição do texto, ele questiona
como a teoria de Hanson dá conta da aparente incoerência do fato de que a litera-
tura proto-apocalíptica, supostamente composta por grupos marginalizados, tor-
nou-se parte do corpus literário oficial do grupo sócio-político e religioso que diri-
gia o Templo.266 A abordagem de Polaski baseia-se em pesquisa anterior, incluin-
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do o trabalho de Grabbe e Baumgarten,267 os quais questionam se existe algum


fundamento real para a afirmação de que Ageu e Zacarias são produtos de comu-
nidades oprimidas.
Outros estudos avaliam as escatologias profética e apocalíptica a partir de
diferentes perspectivas. A distinção de Gruenwald entre apocalipsismo e o que ele
denomina de “profetismo” reflete seu interesse no misticismo judaico da Merka-
vah e, portanto, concentra-se no fluxo cosmológico da ideologia em detrimento de
seu fluxo histórico-político.268 Ele identifica várias características do apocalipsis-
mo, incluindo a participação de anjos no processo e a capacidade do visionário de
transcender os limites terrestres e visitar os domínios transcendentais. Esta última
é, por vezes, tão óbvia que chega a ser negligenciada.
David Sim assevera que a escatologia apocalíptica é emoldurada por um

264
POLASKI, D. C. Authorizing an End: The Isaiah Apocalypse and Intertextuality, p. 1-241, 280-
361.
265
Ibidem, p. 48.
266
Ibidem, p. 18.
267
GRABBE, L. L. The Social Setting of Early Jewish Apocalypticism. JSP 4 (1989), p. 27-47;
Idem. Poets, Scribes, or Preachers? The Reality of Prophecy in the Second Temple Period. SBLSP
37 (1998), p. 524-545; BAUMGARTEN, A. I. The Pursuit of the Millennium in Early Judaism. In:
STANTON, G. N.; STROUMSA, G. G. (Ed.). Tolerance and Intolerance in Early Judaism and
Christianity, p. 38-60.
268
GRUENWALD, I. Priests, Prophets, Apocalyptic Visionaries, and Mystics. In: From Apocalyp-
ticism to Gnosticism: Studies in Apocalypticism, Merkavah Mysticism and Gnosticism, p. 125-144.
102

sentido de determinismo e dualismo, exibindo vários temas recorrentes: a expecta-


tiva de um fim iminente, um juízo final (incluindo um interesse pelo destino de
justos e de ímpios), o advento das desgraças escatológicas, e o aparecimento de
uma figura salvadora.269
Para Aune, a escatologia apocalíptica contém duas principais crenças que
a caracterizam; essas crenças acreditam que: “(1) a ordem mundial presente, con-
siderada tanto má quanto opressora, está sob o controle temporário de Satanás e
seus cúmplices humanos, e (2) esta má ordem mundial presente em breve será des-
truída por Deus e substituída por uma nova e perfeita ordem, correspondente ao
Éden antes da queda”.270 Segundo Aune, “durante o presente século mau o povo
de Deus é uma minoria oprimida, que espera fervorosamente por Deus, ou pelo
seu agente especialmente escolhido, o Messias, para resgatá-lo”.271
Já Allison afirma que:
A “escatologia apocalíptica” poderia designar os ensinamentos escatológicos dis-
tintivos ou comuns aos apocalipses judaicos. Entretanto, isso limitaria severamen-
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te o termo, pois há apocalipses com muito pouco material escatológico (por e-


xemplo, o 2 Enoque). Por essa e outras razões, é melhor dar à “escatologia apoca-
líptica” o significado mais comum e mais amplo: ela se refere a esse conjunto de
temas e expectativas que se desenvolveu, frequentemente em associação com a
crença num fim próximo, nas circunstâncias alteradas do período pós-exílico. E-
lementos característicos incluem a ênfase em sinais escatológicos, expectativa de
um cataclismo cósmico, crença em um reino transcendental que se efetivará em
breve, preocupação com a história humana universal e interesse em figuras celes-
tiais redentoras, como Melquisedeque nos Manuscritos do Mar Morto ou o obscu-
272
ro Filho do homem em 1 Enoque.

Ele ainda assinala que “passagens do AT como Is 24-27 (profecias escato-


lógicas misturadas com concepções semimitológicas), Ez 40-48 (viagem/visão de
uma Jerusalém nova ou ideal), e Zc 1-8 (visões esclarecidas por um intérprete an-
gelical) nos revelam a escatologia profética começando a se tornar escatologia a-
pocalíptica”. 273
J. W. Marshall emprega o termo híbrido “profeta apocalíptico” para des-
crever figuras como Jesus, Paulo, o Mestre de Justiça e também João Batista, os
quais:

269
SIM, David C. The Major Characteristics of Apocalyptic Eschatology. In: Apocalyptic Escha-
tology in the Gospel of Matthew, p. 23-53.
270
AUNE, D. E. Understanding Jewish and Christian Apocalyptic. Word & World 25.3 (2005), p.
233-254; aqui p. 236.
271
Ibidem, p. 236.
272
ALISSON, D. C., Jr. Apocalyptic. In: GREEN, Joel B.; McKNIGHT, Scot (Ed.). Dictionary of
Jesus and the Gospels, p. 17-20; aqui p. 18.
273
Ibidem, p. 18.
103

...fazem a sua causa, relativa à situação presente, estar em relação a um quadro


muito maior de referência (criação, escaton, o reino ideal de Deus, adversários fi-
nais, os confins do cosmos). Tal profeta alegaria conhecimentos dos reinos além
da cognição humana do dia-a-dia (o futuro, os céus, o livro da vida), embora a ar-
ticulação de tal conhecimento tomasse lugar em diálogo com uma coleção de ma-
terial oral e textual específica a uma trajetória cultural, e que formasse os recursos
para reforçar as reivindicações de conhecimento, visão e introspecção. O objetivo
de tal profecia é fazer reivindicações sobre a situação presente, as quais são con-
dicionadas por este contexto mais amplo, seja por intervenção direta, ou pelo co-
274
nhecimento que este contexto mais amplo proporciona.

Collins se concentra no desenvolvimento das ideias sobre a expectativa do


fim através de uma pesquisa da literatura a partir dos profetas pós-exílicos até os
apocalipses do início da era pós-destruição de Jerusalém em 70 d.C.275 De acordo
com ele, embora as profecias visionárias do início do período da restauração sejam
escatologicamente orientadas e ostentem uma inclinação para imagens cósmicas
que vão além daquelas dos profetas clássicos, elas ainda não apresentam as carac-
terísticas do apocalipsismo dos textos tardios. Os primeiros estratos de Enoque e
Dn 7-12, no entanto, são propriamente apocalipses, e revelam os elementos distin-
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tivos e temas acerca da ideia de fim que Collins separa mais plenamente em outros
trabalhos.276 O judaísmo primitivo experimentou dois grandes resplendores na
produção de apocalipses: na primeira metade do II século a.C., pouco antes e du-
rante a Revolta dos Macabeus, e novamente nas décadas seguintes ao ano 70 d.C.,
um período representado por 4 Esdras, 2 e 3 Baruque. No entanto, o apocalipsismo
e a literatura apocalíptica não desapareceram nos séculos intermediários, e Collins
identifica diversas preocupações e interesses escatológicos que se desenvolveram
ou se tornaram proeminentes durante esse período.
Em uma longa e valiosa contribuição, a qual parcialmente confronta seus
trabalhos anteriores sobre temas relacionados, Grabbe afirma que é hora de se es-
tabelecer novas definições para o que se chama de “profético” e “apocalíptico”.277
Sua argumentação se dá na sobreposição dos modos (ou formas) de pensamento
profético, apocalíptico e mântico. Poucos negariam atualmente que existe tal so-
breposição, mas Grabbe entende que ela é heuristicamente significativa o suficien-

274
MARSHALL, J. W. Apocalypticism and Anti-Semitism: Inner-Group Resources for Inter-
Group Conflicts. In: KLOPPENBORG, J. S.; MARSHALL, J. W. (Ed.). Apocalypticism, Anti-
Semitism and the Historical Jesus: Subtexts in Criticism, p. 68-82; aqui p. 70.
275
COLLINS, J. J. From Prophecy to Apocalypticism: The Expectation of the End. In: The Encyc-
lopedia of Apocalypticism, p. 129-161. v. 1.
276
Cf. especialmente The Apocalyptic Imagination, p. 43-115.
277
GRABBE, Lester L. Prophetic and Apocalyptic: Time for New Definitions – and New Think-
ing. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 107-133.
Esta obra é a mais recente e importante sobre o tema das escatologias profética e apocalíptica.
104

te para enfraquecer os aspectos fundamentais das distinções tradicionais entre os


modos. Por um lado, profetas, adivinhos, visionários apocalípticos ou qualquer
que atua em todos os três modos compartilham o mesmo objetivo: “Descobrir a
vontade de Deus, o plano de Deus, e o que o futuro reserva”.278 Por outro lado,
elementos considerados distintivos de um modo são também comuns a todos os
três modos ou irrelevantes para a natureza da associação entre eles. Como resulta-
do, Grabbe propõe agrupar as três modalidades sob o rótulo geral de “adivinha-
ção”.
Entretanto, Grabbe assevera que as manifestações literárias e sociais de fe-
nômenos como a profecia e a apocalíptica são distintas, e não se deve supor que
um gênero literário específico indique uma origem social específica. Em segundo
lugar, as literaturas profética e apocalíptica foram primeiramente criações dos es-
cribas, e devem ser distinguidas das palavras efetivas (reais) dos profetas e das
experiências dos visionários. Em terceiro lugar, escritos proféticos e apocalípticos
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podem ser o resultado de um único indivíduo, em vez de movimentos ou grupos.


Em quarto, Grabbe adverte que as definições modernas, embora úteis, têm a ten-
dência a se imporem sobre a evidência. Seu comentário de que “literatura proféti-
ca, literatura apocalíptica, e literatura mântica estão intimamente relacionadas, so-
brepostas extensivamente, e nem sempre são distinguíveis”279 é uma clara resposta
para as definições formuladas por Collins e pelos grupos da SBL. Em quinto lu-
gar, contra Hanson, Grabbe assevera que a relação entre profecia e apocalíptica
não é uma relação de desenvolvimento e processo histórico, e nem a profecia ces-
sou abruptamente no judaísmo ou fora dele.280 Finalmente, Grabbe observa que a
pesquisa histórica e antropológica indica que nem a profecia e nem a apocalíptica
são específicas ao Judaísmo do Segundo Templo.

278
Ibidem, p. 123; cf. também, do mesmo autor, Poets, Scribes, or Preaches? The Reality of
Prophecy in the Second Temple Period. SBLSP 37 (1998), p. 524-545, republicado com pequena
revisão em Knowing the End from the Beginning, p. 192-215; na p. 212 Grabbe afirma: “Qualquer
que seja a diferença real entre profecia e apocalíptica, em nível literário elas parecem ter funciona-
do de uma forma muito semelhante”.
279
GRABBE, L. L. Prophetic and Apocalyptic: Time for New Definitions – and New Thinking. In:
Op. cit. p. 130.
280
Cf. o artigo de Rowland no mesmo volume: ROWLAND, C. Apocalypse, Prophecy and the
New Testament. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 149-166. Cf. também, sobre
esse tema, GREENSPAHN, F. E. Why Prophecy Ceased. JBL 108.1 (1989), p. 37-49, e ALEX-
ANDER, P. S. “A Sixtieth Part of Prophecy”: The Problem of Continuing Revelation in Judaism.
In: DAVIES, J.; HARVEY, G; WATSON, W.G.E. (Ed.). Words Remembered, Texts Renewed:
Essays in Honour of John F. A. Sawyer, p. 414-433.
105

No mesmo volume, Collins responde a Grabbe em diversos pontos.281


Quanto à terminologia e definições, ele analisa os motivos para se fazer da forma
literária o ponto de partida da discussão e a questão do abandono do uso do termo
“apocalíptico”.282 Para ele, este último dado, o abandono das definições cristaliza-
das, “coloca a discussão de volta ao estado de confusão que prevalecia antes de
Koch escrever sua monografia”.283 Quanto à controvérsia acerca das escatologias,
ele concorda com Grabbe que a diferença entre escatologia profética e apocalípti-
ca não deve ser articulada como sendo um simples contraste entre história e mito.
Ao mesmo tempo, ele acredita que é errado postular que não há distinção em ab-
soluto.
Após essas considerações, Collins separa duas questões críticas. A primei-
ra é se uma categoria do pós-exílio, escatologia “proto-apocalíptica”, pode ser di-
ferenciada da escatologia profética clássica. Ele observa que, embora a escatologia
com orientação cosmológica seja uma característica proeminente nos textos do
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pós-exílio, ela é também evidente na literatura pré-exílica. Além disso, as anteci-


pações nacionais, terrenas, deste mundo, características da profecia hebraica clás-
sica, de modo algum estão ausentes nos profetas pós-exílicos.284 Embora a distin-
ção entre restauração nacional e escatologia cósmica no corpus profético tardio
possa ser eventualmente difícil de ser identificada, Collins afirma que o conheci-
mento atual deixa a desejar, sendo necessárias mais pesquisas. A segunda questão
é saber se a escatologia apocalíptica é distinta da escatologia profética, seja ela
clássica ou do pós-exílio; Collins é categórico: a expectativa de julgamento indi-
vidual no pós-morte marca, caracteriza a escatologia apocalíptica (cf. já assinalado
neste trabalho), começando com as suas mais antigas ilustrações em Daniel e 1
Enoque.
À luz do estado atual da pesquisa sobre os dois temas, Collins propõe “uma
moratória no uso de ‘apocalíptico’ ou ‘proto-apocalíptico’ na discussão de textos
da Bíblia Hebraica que não sejam o livro de Daniel”.285 Ele também argumenta
que juntar os modos de pensamento profético, apocalíptico e mântico (ou os seus
281
COLLINS, J. J. Prophecy, Apocalypse and Eschatology: Reflections on the Proposals of Lester
Grabbe. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 44-52.
282
Cf. suas observações semelhantes em COLLINS, J. J. Response: The Apocalyptic Worldview
of Daniel. In: BOCCACCINI, Gabriele (Ed.). Enoch and Qumran Origins: New Light on a Forgot-
ten Connection, p. 59-60.
283
Idem. Prophecy, Apocalypse and Eschatology. In: Op. cit. p. 46.
284
Cf. sua análise sobre isso em outro artigo do mesmo volume: COLLINS, J. J. The Eschatology
of Zechariah. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Op. cit. p. 74-84.
285
Idem. Prophecy, Apocalypse and Eschatology. In: Op. cit. p. 52.
106

literários prematuros) sob uma categoria mais ampla, como “adivinhação”, não
avança o conhecimento acerca dos temas, uma vez que ainda é preciso distinguir
uma subcategoria das outras. Mesmo se definições categóricas precisas forem im-
possíveis, “uma abordagem que não enxergue diferença entre Isaías e Daniel, ou
entre astrologia e profecia não é, em última instância, muito útil para a compreen-
são de coisa alguma em sua especificidade”.286
Vê-se assim que a ligação entre a profecia e apocalipse é mais articulada
regularmente em termos de suas escatologias.
Outra linha de pensamento acerca da origem da apocalíptica é a tese de que
sua origem se dá na literatura sapiencial.287 Seu mais conhecido expoente, Gerhard
Von Rad, vê a origem da apocalíptica na literatura sapiencial, identificando o ele-
mento central da apocalíptica como sendo a interpretação da história e a observa-
ção de diversos “tempos”.288 Segundo ele, “a apocalíptica parece ter as suas ori-
gens principalmente nas tradições da sabedoria”.289 Mais recentemente, Gammie
retomou essa tese e a expandiu.290
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Von Rad parte de uma abordagem histórico-traditiva na elaboração de seus


argumentos. Se o apocalipse é o prolongamento da profecia, é de se estranhar que
ele não se ligue aos grandes nomes do profetismo, mas somente aos antepassados
da sabedoria: Daniel, Enoque, Esdras e outros. Um dos livros apocalípticos mais
importantes, 1 Enoque (37 a 71), define a si mesmo como um “discurso de sabe-
doria”,291 dividido em duas partes sob o título de (“adágio”, “provérbio”),
antigo termo técnico de ensino sapiencial.
Von Rad aceita que a literatura apocalíptica em Israel recebeu influências
estrangeiras, especialmente a iraniana; mas assevera que essa influência já estaria
presente na sabedoria israelita desde a época de Salomão, sendo mais acentuada

286
Ibidem, p. 51.
287
A sabedoria como saber prescritivo é um fenômeno sem fronteiras no Oriente Antigo, expresso
em diversas formas literárias. Poderia ser definida, grosso modo, como um saber prático baseado
na experiência e utilizado com o intuito de orientação. Uma definição escolar, em geral, perde-se
nos detalhes, pois essa sabedoria constitui “ao mesmo tempo um corpo literário, um modo de pen-
sar e uma tradição” (cf. ASENSIO, V. M. Livros sapienciais e outros escritos, p. 32).
288
Cf. VON RAD, G. The Divine Determination of Times. In: Wisdom in Israel, p. 263-283.
289
Idem. Daniel e o apocalipse. In: Teologia do Antigo Testamento, p. 723-744; aqui p. 724.
290
GAMMIE, J. G. From Prudentialism to Apocalypticism: The Houses of the Sages amid the Va-
rying Forms of Wisdom. In: GAMMIE, J. G.; PERDUE, Leo G. (Ed.). The Sage in Israel and the
Ancient Near East, p. 479-497.
291
1En 37,2 relata: “Este é o início das palavras de sabedoria as quais eu desejo transmitir em alta
voz, dizendo àqueles que habitam na Terra: ‘Escutai, vós Patriarcas, e olhai vós, os descendentes,
as palavras do Único Santo, as quais eu ensino diante do Senhor dos Espíritos’” (cf. CHARLES-
WORTH, J. H. (Ed.). OTP, p. 29-30. v. 1).
107

no Império Persa, principalmente em relação às ideias cosmológicas de caráter


claramente escatológico.292
A paixão pelo conhecimento, especialmente aplicada ao domínio da natu-
reza e do cosmos (mudanças das estações, movimento dos corpos celestes, interes-
ses geográficos e meteorológicos) são temas eminentemente sapienciais. Os apo-
calipses compartilham a convicção sapiencial antiga pela qual a ordem do mundo
não pode ser compreendida pela razão lógica. Além disso, o pré-determinismo da
história, segundo o qual esta é dividida por Deus em períodos que conduzem ao
estabelecimento de uma nova Era, é estanho ao profetismo, que via a história co-
mo a arena em que Deus se deu a conhecer pelos seus atos salvíficos.
No livro de Daniel, por exemplo, no que concerne à parte histórica de duas
grandes visões (a da estátua compósita, no capítulo 2, e a dos quatro animais, no
capítulo 7),293 a história de Israel nem é mencionada (apesar de ser em outras vi-
sões); nessas duas grandes visões a história é vista através dos impérios do mundo.
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O próprio “Filho do Homem” não vem de Israel, mas “desce das nuvens”, fazendo
da salvação um ato escatológico e futuro. Essa pré-determinação histórica e a in-
terpretação desta por meio de sonhos e visões é função do “homem sábio”: “De
fato, a tarefa principal dos sábios em toda a história espiritual do antigo Oriente
foi compreender os tempos, interpretar os oráculos e sinais, decifrar os sonhos dos
reis”.294 A interpretação dos sonhos já era considerada uma “ciência empírica” pe-
los antigos egípcios, e a ideia da pré-determinação é uma noção essencial da anti-
ga sabedoria oriental. Essa determinação dos tempos encontra eco na literatura
sapiencial do AT em Eclesiastes (3,1ss) e no Sirácida (4,20; 20,6ss; 27,12); se-
gundo este, Deus já determinou o bem e o mal “desde o começo” (Eclo 39,25).
Von Rad compara ainda a interpretação do sonho dada por Daniel com a
de José em Gn 41, verificando que possuem mais pontos em comum do que dife-
renças; entre outras coisas, observa também que na narrativa de José o intérprete
carismático já propõe um esquema periódico da história (divisão em tempo de sal-
vação e tempo de desgraça).
A tese da origem da apocalíptica na sabedoria foi rejeitada por muitos es-

292
VON RAD, G. Daniel e o apocalipse. In: Teologia do Antigo Testamento, p. 723-744; aqui p.
736.
293
O esquema da sucessão de impérios presente em Dn 2 já devia existir no VI século a.C., como,
por exemplo, nas profecias dinásticas (cf. GRAYSON, A. K. Babylonian Historical-Literary
Texts, p. 13-37); cf. tratamento infra.
294
VON RAD, G. Op. cit. p. 731.
108

tudiosos, especialmente pela proximidade da apocalíptica com a profecia. Hanson,


conforme assinalado supra, assinala como muito mais evidente colocar-se a ori-
gem da apocalíptica na profecia do que na sabedoria.295
Na opinião de Russell, o tema da escatologia, tão destacado nos profetas e
nos apocalípticos, está ausente da tradição sapiencial; além disso, não há realmen-
te nada na literatura sapiencial que corresponda ao determinismo exacerbado da
apocalíptica. Em suas conclusões, há muito mais semelhança da apocalíptica com
a profecia do que com a sabedoria, e os próprios apocalípticos reconheciam que a
interpretação do profetismo era a principal função de sua mensagem.296
Osten-Sacken assevera que, já que Von Rad utiliza o método da história
da tradição, deveria começar sua análise não pela totalidade dos escritos apocalíp-
ticos, mas sim a partir do livro de Daniel, o qual seria o apocalipse mais antigo
conservado.297 Quando se procura a origem do apocalipse nos demais documentos
posteriores, estes podem conter material que não esteve, a princípio, à disposição
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do apocalipsismo; “este material pode levar muito facilmente a uma pista erra-
da”.298 Ele acredita que Von Rad chega a conclusões equivocadas por partir de um
ponto metodologicamente equivocado. A maioria das ideias apocalípticas que Von
Rad ancora na sabedoria são comprovadas por obras secundárias em relação a Da-
niel. Osten-Sacken, como Von Rad, também vai buscar referência em Dn 2, mas
em relação ao Dêutero-Isaías. Nesse particular, ele se aproxima de Hanson.
Com relação à tese de que a característica apocalíptica da determinação es-
quemática da história está já presente no Eclesiastes, Osten-Sacken assevera que
em lugar algum da literatura sapiencial os enunciados deterministas (inclusive os
do Pregador) se referem à história como um todo político a movimentar as nações
levando-as a um fim no qual tudo se consumará, como ocorre na apocalíptica; di-
zem respeito apenas ao indivíduo e ao processo natural, situando a pessoa humana
como parte da Criação, contrapondo Criador onipotente e criatura impotente.
Osten-Sacken aceita que o apocalipsismo recebeu cunho sapiencial em fase
relativamente tardia. Conclui que “o apocalipsismo é filho legítimo, se bem que

295
Cf. por exemplo HANSON, P. D. Apocalypses and Apocalypticism. Introductory Overview. In:
FREEDMAN, David N. (Ed.). ABD, p. 279-292. v. 1; aqui p. 281.
296
RUSSELL, D. S. Desvelamento divino, p. 44.
297
Entretanto, conforme demonstrado neste trabalho, a apocalíptica judaica possui paralelos bem
anteriores aos séculos III e II a.C. (época dos livros de 1 Enoque e Daniel, respectivamente, sendo
o livro de Daniel um desenvolvimentos já maduro do gênero apocalíptico).
298
OSTEN-SACKEN, Peter von der. Die Apokalyptik in ihrem Verhältnis zu Prophetie und
Weisheit. ThEH 157 (1969), p. 18-34; aqui p. 20.
109

tardio e muito peculiar, do profetismo, e mesmo que já demonstrasse erudição em


sua juventude, apenas com o avanço da idade abriu as partes à sabedoria”.299
Collins também se opõe à posição de Von Rad: “É importante, entretanto,
que a sabedoria de Daniel é uma sabedoria profética, interessada em sonhos e mis-
térios, e não uma sabedoria proverbial, a qual dá pouca importância a tal fenôme-
no obscuro”.300 Ele considera o precedente bíblico da história de José como sendo
também sabedoria profética, mas chama a atenção para o contexto de Daniel: o
interesse babilônico na interpretação de sonhos, o qual os judeus confrontaram na
diáspora oriental.301
Vê-se que Von Rad foi muito contestado justamente por, logo de início,
negar uma proposição (relacionamento direto entre apocalíptica e profecia) que
era considerada pacífica pelos estudiosos, relação essa que, após as refutações à
tese de Von Rad, acabou saindo ainda mais fortalecida. A contribuição de Von
Rad não deixa de ser oportuna: fica evidente que há uma relação próxima entre
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sabedoria e apocalíptica, pelo menos em alguns escritos.


No livro de Daniel, por exemplo, pode-se pensar num paralelo entre o per-
sonagem Daniel e a história de Aicar,302 pois os dois apresentam um esquema de
certa forma comum: um personagem de baixa condição social consegue solucionar
problemas ou enigmas propostos na corte real, ao passo que os “sábios” não con-
seguem resolver o problema. O herói é recompensado pelo rei com a elevação de
seu status social, passando a ocupar funções-chave na corte. Tanto a história de
Daniel quanto a de Aicar possuem uma dimensão sapiencial evidente: graças à
sabedoria do herói, os problemas são resolvidos. Entretanto, no relato de Daniel a
dimensão religiosa tem lugar preponderante (a sabedoria do personagem vem do

299
Ibidem, p. 34.
300
COLLINS, J. J. The Apocalyptic Imagination, p. 92.
301
Collins chama a atenção também para o fato relevante de que a história de José também é situa-
da num lugar de exílio: o Egito (assim como a dominação estrangeira no marco social de Daniel).
Idem, loc. cit.
302
Trata-se aqui do Aicar assírio, ou seja, Palavras de Aicar, no qual são reunidos os temas de
conselhos à juventude escritos por Aicar (talvez fictício) no intuito de educar seu herdeiro (Aicar
foi conselheiro dos reis Senaqueribe, 704-681 a.C., e Assaradon, 680-669 a.C.). A data desta obra é
incerta: Víctor M. Asensio a coloca no V ou IV século a.C. (cf. ASENSIO, V. M. Livros sapienci-
ais e outros escritos, p. 84), e José V. Líndez afirma que sua versão egípcia já existia no VI século
a.C. (cf. LÍNDEZ, J. V. Sabedoria e sábios em Israel, p. 27). Trata-se da história de um funcioná-
rio real que, após ser traído por seu sobrinho, caiu em desgraça. Entretanto, os enigmas que o so-
brinho traidor precisava esclarecer eram superiores à sua capacidade perceptiva. Aicar os desven-
dou e voltou triunfante para a corte; então castigou seu sobrinho e lhe dirigiu censuras. Em Tb
1,21-22; 2,10; 11,18; 14,10 esse legendário personagem é citado (cf. o texto em CHARLES, R. H.
(Ed.). APOT, p. 715-784. v. 2; para uma versão em língua espanhola, cf. BOROBIO, E. Martínez.
In: MACHO, A. Díez (Ed.). Apócrifos del Antiguo Testamento, p. 169-189. v. 3).
110

Deus de Israel), o que já não ocorre no relato de Aicar. O que é certo em ambos é
o caráter alegórico; entretanto, isso não exclui o aparecimento de personagens e
fatos do âmbito histórico, sem, com isso, pretender autenticidade histórica. A rela-
ção com a história de Aicar (a qual é geralmente considerada como originária na
Mesopotâmia por causa de seu marco social na corte Assíria) é importante por re-
velar que esse tipo de relato era muito difundido no Antigo Oriente Próximo:
É evidente que a história de Aicar pertence ao mesmo tipo de literatura que o li-
vro de Daniel, em termos de marco social, tipo de intriga e, em parte, devido ao
linguajar. As afinidades de Daniel com Aicar são importantes porque elas mos-
tram que esse tipo de literatura não era somente de tradição intrabíblica ou intra-
303
judaica.

Também na concepção de história constata-se com certeza uma aproxima-


ção da apocalíptica com a sabedoria maior do que com o profetismo.304 Neste, o
livro de Jonas é um exemplo de que o profeta está sempre na expectativa de novas
decisões de Deus a serem tomadas no âmbito da história; a própria irrupção da pa-
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lavra é, para ele, algo inesperado. Já na sabedoria encontramos a concepção de


tempo como algo pré-determinado, especialmente em textos tardios como o Ecle-
siastes e o Eclesiástico (Ecl 3,1-15; Eclo 33,7-15; 39,16-35). Ao mesmo tempo,
percebemos o sábio consciente dos limites de suas afirmações, devido ao proble-
ma da liberdade do homem; daí outros textos sapienciais afirmarem o não-
determinismo da história e enfatizarem a responsabilidade do homem, como Eclo
15,11-20.
Em suma, não restam dúvidas de que há fortes laços da apocalíptica com a
profecia, especialmente no que se refere à história. O esquema teológico israelita
promessa – cumprimento presente na literatura profética levava à espera de uma
época totalmente nova, época essa em que a promessa chegaria ao seu cumpri-
mento definitivo. Essa ideia, presente já na profecia clássica, é um ponto de gran-
de importância para a apocalíptica. Por outro lado, é justamente “a concepção da
história [que] constitui o tema essencial, no qual se distinguem profundamente
profetas e apocalípticos”.305 A principal diferença é que o determinismo apocalíp-
tico se encontra ausente no profetismo, o que leva, dentre outras coisas, a uma

303
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 41. Vale ressaltar que esses
relatos do Antigo Oriente são encontrados sobretudo no historiador grego Heródoto.
304
ASURMENDI, J. M. Daniel e a apocalíptica. In: CARO, J. M. Sánchez (Ed.). História,
narrativa, apocalíptica, p. 451-453.
305
Ibidem, p. 451.
111

considerável diferença entre a escatologia profética e a apocalíptica, conforme no-


tado supra. Quanto à sabedoria, não restam dúvidas também do influxo dela no
movimento apocalíptico, especialmente na figura do sábio visionário. No entanto,
as discussões sobre a relação entre apocalíptica e sabedoria foram e ainda são a-
bundantes.

2.6.2. Tradições clássicas e do antigo Oriente Próximo

Essencialmente, a questão de se saber se a literatura do Oriente Próximo ou


do Mediterrâneo deve ser levada em consideração quando se estuda o corpus ju-
daico e cristão se tornou ponto pacífico.306
Quanto à possibilidade de influência do Mediterrâneo antigo e Oriente
Próximo, Semeia 14 trouxe artigos inovadores também quanto a este tema.307 A
obra de Uppsala também trouxe várias contribuições ao tema. Ringgren aborda
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uma coleção de textos mânticos ex eventu datada entre o final do terceiro e mea-
dos do primeiro milênio a.C. que provê informações futuras via presságios.308 Ele
argumenta que os textos acadianos representam um dos primeiros estágios no de-
senvolvimento do apocalipsismo.
De fato, em relação à filosofia da história presente no livro de Daniel (Dn 2
e 7), ou seja, a ideia de que a história universal é dividida por uma sucessão de
reinos (divisão da história em períodos, característica da apocalíptica presente em
diversas obras), foi levantada a tese de que essa filosofia tenha vindo do Antigo
Oriente Médio, tese apoiada por textos provindos da Babilônia persa ou selêucida,
os quais A. K. Grayson classificou como profecias acadianas.309 Entre elas está a

306
Cf. COLLINS, J. J. Genre, Ideology, and Social Movements in Jewish Apocalypticism. In:
COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 11-32; aqui p. 20-
22. Em relação à questão das influências persas e iranianas, ponto ainda bastante debatido, tratare-
mos adiante.
307
Cf. ATTRIDGE, H. W. Greek and Latin Apocalypses. In: COLLINS, J. J. (Ed.). Apocalypse:
The Morphology of a Genre. Semeia 14 (1979), p. 159-186; COLLINS, J. J. Persian Apocalypses.
In: Ibidem, p. 207-217; SALDARINI, A. J. Apocalypses and “Apocalyptic” in Rabbinic Literature.
In: Ibidem, p. 187-205.
308
RINGGREN, H. Akkadian Apocalypses. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Me-
diterranean World and the Near East, p. 379-386. Cf. também o artigo homônimo de GRAYSON,
A. K.; LAMBERT, W. G. Akkadian Prophecies. JCS 18.1 (1964), p. 7-30.
309
GRAYSON, Albert K. Babylonian Historical-Literary Texts, p. 13-37. Segundo o próprio
Grayson, elas não devem ser confundidas com as profecias bíblicas por serem muito diferentes
(Ibidem, p. 14). De fato, embora os textos pareçam estar relacionados com literatura apocalíptica,
eles não têm a forma do apocalipse clássico (para estudo crítico das formas desses textos, cf. HE-
INTZ, J. G. Note sur l’origine de l’apocalypse judaïque à la lumière des “prophéties akkadiennes”.
In: RAPHAËL, Freddy et al. L’apocalyptique, p. 71-87).
112

denominada profecia dinástica, publicada pela primeira vez por Grayson. Nesse
tipo de profecia está presente o conceito de ascensão e queda de impérios, que de-
ve ter suas raízes na tradição dinástica da cronologia mesopotâmica; em Daniel,
esse conceito aparece de forma similar.310
Robert Wilson assinala que “é claro que as profecias acádicas são ‘predi-
ções após o evento’ (vaticinia ex eventu) e que pelo menos algumas delas foram
produzidas com o objetivo de apoiar os pontos de vista de seus criadores sobre
eventos políticos correntes”.311 De fato, pelo menos em uma delas aparece a tenta-
tiva de predizer a queda dos reis helenistas, cumprindo um papel semelhante ao da
propaganda política. Apresenta a sequência de reinos na história universal como
sendo Assíria – Babilônia – Pérsia – Macedônia. Nela subjaz também a esperança
de um mau regime ser derrubado e substituído por um reino mais justo e duradou-
ro, como no livro de Daniel. Não há, entretanto, a ideia de um clímax e conse-
quente fim da história mundial. A sequência de reinos difere de Daniel (que omite
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a Assíria e inclui a Média), mas este paralelo da profecia dinástica a Daniel é mui-
to interessante na medida em que também usa a profecia ex eventu de sucessivos
reinos para desenvolver a propaganda contra o reino dominante.312
VanderKam amplia a discussão e salienta que os textos acadianos contêm
muitas características semelhantes aos apocalipses do Período do Segundo Tem-
plo, incluindo a pseudonímia, um pendor para o linguajar enigmático e profecia ex
eventu.313 Em estudo mais recente acerca do caráter dos textos acadianos, Nissinen
argumenta que nem o termo “profecia” e nem “apocalipse” seriam uma definição
adequada para esses textos.314 Além dos elementos mencionados por Vanderkam,
Nissinen cita a periodização da história e outras características compartilhadas
com o livro de Daniel. Mas, segundo ele, apesar de algumas semelhanças, a sim-
ples qualidade de predição dos textos acadianos não é suficiente para justificar que

310
Tal similaridade tem servido também de argumentação para a defesa da tese conservadora e
tradicional da datação do livro de Daniel no período babilônico, pois certamente esse tipo de pro-
fecia era conhecido na Babilônia do VI século a.C., já que parte dessa literatura pode remontar pelo
menos à época de Nabucodonosor I, por volta de 1126 – 1105 a.C. (cf. BALDWIN, J. G. Daniel,
an Introduction and Commentary, p. 44-47). Entretanto, esse argumento isolado é fraco e, ampli-
ando-se a discussão, não convence.
311
Cf. WILSON, Robert R. Profecia e sociedade no antigo Israel, p. 153.
312
Cf. COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 168.
313
VANDERKAM, J. C. Prophecy and Apocalyptics in the Ancient Near East. In: SASSON, Jack
M. (Ed.). Civilizations of the Ancient Near East, p. 2083-2094. v. 3.
314
NISSINEN, Martti. Neither Prophecies nor Apocalypses: The Akkadian Literary Predictive
Texts. In: GRABBE, L. L.; HAAK, R. D. (Ed.). Knowing the End from the Beginning, p. 134-148.
Em relação à profecia, ele corrobora o que já havia concluído Grayson.
113

sejam rotulados como “profecias”, e muito mais tendo em conta as rigorosas qua-
lidades formais da profecia bíblica.
Embora as ligações entre apocalipsismo e os textos acadianos sejam fortes,
a falta de uma escatologia transcendente e características inerentes a ela desquali-
ficam esses textos como exemplos formais do gênero apocalíptico. Nissinen esta-
belece para eles a designação de “textos de literatura predicativa”, e compreende o
material acádio como parte de um processo complexo da Era Helênica onde diver-
sas (e frequentemente relacionadas) formas de expressar a predição foram desen-
volvidas e formuladas. Wilson conclui que “embora os textos na verdade pareçam
estar relacionados com literatura apocalíptica, não têm a forma do apocalipse clás-
sico. Por isso, parece melhor no momento reter a designação tradicional de ‘profe-
cias’”.315 Essas profecias dinásticas têm levantado várias questões em sua inter-
pretação; entretanto, o fato é que elas estabelecem, pelo menos, a existência de um
gênero literário conhecido no Antigo Oriente Médio com o qual o livro de Daniel
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tem estreita ligação.


VanderKam examina ainda a gama completa de material profético do anti-
go Oriente Próximo (de Mari, Assíria, Egito, Siro-Fenícia, Israel e Judá) e de tex-
tos apocalípticos (do Egito Helenístico, Pérsia e do Judaísmo do Segundo Tem-
plo).316 Por um lado, as evidências literárias indicam que a literatura apocalíptica
foi em parte uma resposta a um sentido de perda (espalhado pelo Oriente Próxi-
mo) da soberania do imperador helênico Alexandre e seus sucessores.317 Ao mes-
mo tempo, ele observa que existem numerosos pontos de contato entre todos esses
textos apocalípticos bem como entre a literatura apocalíptica judaica e outras mais
antigas, antecedentes autóctones; estes últimos são especialmente as tradições pro-
féticas e sapienciais do antigo Israel.
González Blanco defende a apocalíptica no Mediterrâneo a partir de um
Sitz im Leben ampliado para a linha de pensamento que postula que a apocalíptica

315
Cf. WILSON, Robert R. Op. cit. p. 152, n. 224. No entanto, devido à semelhança maior das
profecias acadianas com a literatura bíblica apocalíptica do que com a literatura bíblica profética,
alguns autores chamam os textos mesopotâmicos de “apocalipses acadianos” (cf., por exemplo,
HALLO, W. W. Akkadian Apocalypses. IEJ 16 (1966), p. 231-242).
316
VANDERKAM, J. C. From Revelation to Canon: Studies in the Hebrew Bible and Second
Temple Literature, p. 255-275.
317
Cf. também EDDY, S. K. The King is Dead: Studies in the Near Eastern Resistance to Hellen-
ism, 334-31 BC (1961).
114

é um fenômeno efetivado por um estado de opressão política.318 Como já mencio-


nado neste trabalho, embora esse possa ser o caso em se tratando de apocalíptica
histórica, a conexão com o viés transcendental do gênero não é tão óbvia. Clifford
aprofunda o assunto, examinando as raízes da apocalíptica nos mitos da Mesopo-
tâmia, Canaã e antigo Israel.319 Ele destaca os elementos recorrentes que desem-
penham um papel significativo nos apocalipses mais antigos. Entre esses elemen-
tos estão o mito do combate no antigo Oriente Próximo, o tema da vitória da or-
dem (o céu) sobre as forças do caos (o mar), e a forma literária das profecias ex
eventu. Lincoln aborda as inscrições persas antigas que, embora não sejam apoca-
lipses, exibem paralelos com o gênero em suas imagens mitológicas e perspectiva
teológica geral.320 Charlesworth explora o folclore na literatura apocalíptica, con-
centrando-se no tema da comicidade, com especial referência ao Apocalipse de
Abraão, e nas imagens e iconografias de fantásticas criaturas aladas no ambiente
mais amplo do antigo Oriente Próximo.321
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Collins demonstra que elementos do abastado complexo mitológico do an-


tigo Oriente Próximo são parte integrante de algumas visões no livro de Daniel.322
Abusch discute o fenômeno da subida para as estrelas no ritual mesopotâmico, um
tema que tem conexões formais com as viagens transcendentais e conexões temá-
ticas com a sabedoria acerca de sonhos e astronomia.323
Fröhlich afirma que o cenário da Mesopotâmia no exílio contribuiu com
três tradições para o Judaísmo do Segundo Templo: (1) a interpretação de sonhos
e visões, que ele identifica pelos termos pishra (aramaico) ou pesher (hebraico),
os quais ele enxerga em vários dos relatos da corte do livro de Daniel; (2) revela-
ção científica por meio da adivinhação e astrologia, a qual estaria por trás da tradi-
ção de Enoque, e (3) a visão do trono celeste, mais uma vez uma característica de

318
GONZÁLEZ BLANCO, A. La apocalíptica, fenómeno mediterráneo. In: BORREL, A. et al
(Ed.). La Bíblia i el Mediterrani: Actes del Congrés de Barcelona 18-22 de setembre de 1995, p.
205-225. v. 1; aqui p. 224.
319
CLIFFORD, R. J. The Roots of Apocalypticism in Near Eastern Myth. In: COLLINS, J. J.
(Ed.). The Encyclopedia of Apocalypticism, p. 3-38. v. 1.
320
LINCOLN, B. Apocalyptic Temporality and Politics in the Ancient World. In: Ibidem, p. 457-
475.
321
CHARLESWORTH, J. H. Folk Traditions in Jewish Apocalyptic Literature. In: COLLINS, J.
J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 91-113.
322
COLLINS, J. J. Apocalyptic Genre and Mythic Allusions in Daniel. JSOT 21 (1981), p. 83-100.
323
ABUSCH, T. Ascent to the Stars. In: COLLINS, J. J.; FISHBANE, M. (Ed.). Death, Ecstasy,
and Other Worldly Journeys, p. 21-39.
115

alguns folhetos mais antigos da tradição de Enoque.324 Fröhlich sustenta que essas
três tradições coexistiram e frequentemente se encontram misturadas na literatura
do judaísmo da época helenística, especialmente nos primeiros apocalipses.
Com relação à escatologia, Benjamim Foster afirma que:
A evidência para a escatologia na Mesopotâmia é tardia para os padrões de uma
cultura que já poderia escrever pelo final do quarto milênio, pois a evidência data
dos períodos de dominação aquemênida e macedônia, isto é, após o último quartel
do sexto século a.C. Isso é feito tentando associar o pensamento escatológico na
Mesopotâmia com descontentamento e protesto contra uma nova ordem imposta
por um poder estrangeiro aparentemente invencível, como tem sido frequente-
325
mente alegado para a escatologia judaica e cristã.

Segundo ele, uma definição restrita do pensamento escatológico poderia se


concentrar em uma noção de um período de tempo fixo para a história humana,
com um final claro e identificável, ao qual foi adicionada, especialmente no cristi-
anismo tardio, uma dimensão de calendário, usando datas de acordo com a Era
Cristã em vez de determinados períodos de tempo. Outro aspecto do pensamento
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escatológico, estreitamente definido, é uma mensagem de esperança de que o bom


será recompensado e o mal castigado, ou, pelo menos, o mundo será refeito de
modo a justificar uma crença religiosa específica a despeito de algo maior, não
acreditando no poder político e militar. Foster assevera que, à luz dessas defini-
ções, a evidência da Mesopotâmia é escassa, mas sugestiva.326
No que concerne à literatura clássica e egípcia, outros artigos na obra de
Uppsala tratam desses temas. Betz investiga o Oráculo de Trofônio e o desenvol-
vimento histórico da mitologia relacionada a ele.327 Burkert se dedica ao tema da
apocalíptica na Grécia clássica,328 enquanto o artigo de Cancik diz respeito à libri

324
FRÖHLICH, Ida. Pesher, Apocalyptical Literature and Qumran. In: TREBOLLE BARRERA,
J.; MONTANER, L. Vegas (Ed.). The Madrid Qumran Congress: Proceedings of the International
Congress on the Dead Sea Scrolls, Madrid, 18-21 March, 1991, p. 295-305.
325
FOSTER, B. R. Mesopotamia and the End of Time. In: AMANAT, A.; BERNHARDSSON, M.
(Ed.). Imagining the End: Visions of Apocalypse from the Ancient Middle East to Modern America,
p. 23-32; aqui p. 25.
326
Ibidem. Segundo ele, “maior atenção tem sido dada, consideravelmente, a um pequeno grupo de
documentos tardios normalmente chamados de ‘profecias’ ou ‘apocalipses’. Esses se referem a
eventos futuros em linguajar velado, alguns dos quais parecem relacionados com os governantes
aquemênidas e helenísticos” (Ibidem).
327
Cf. BETZ, H. D. The Problem of Apocalyptic Genre in Greek and Hellenistic Literature: The
Case of the Oracle of Trophonius. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterra-
nean World and the Near East, p. 577-597. Trofônio foi um arquiteto que ajudou a construir o
Templo de Delfos. O Oráculo de Trofônio ficava na Beócia, Grécia antiga, onde o arquiteto foi
sepultado. Segundo consta, ele permitia, entre outras coisas, “visitas” ao mundo subterrâneo dos
mortos.
328
BURKERT, W. Apokalyptik im frühen Griechentum: Impulse und Transformationen. In:
Ibidem, p. 235-254.
116

fatales (“Livros do Destino”) de Roma.329 Segundo ele, as devoções à adivinha-


ção, os oráculos e outros tipos de previsão romanos penetraram múltiplos aspectos
de sua vida pública e privada, e foram, em grande parte, uma herança dos etrus-
cos.330 Quanto ao Egito, J. G. Griffiths trata da apocalíptica egípcia no Período
Helenístico, incluindo a História de Nectanebo, a Crônica Demótica, a Profecia
do Cordeiro sob Bocchoris, e o Oráculo do Oleiro.331 Já Simon aborda os primei-
ros Oráculos Sibilinos Judaicos, produtos do Egito Ptolemaico.332
Dado todo o exposto, podemos observar que a erudição atual traçou o ca-
minho para uma nova direção. Existe um consenso crescente de que o apocalip-
sismo forneceu uma estrutura conceitual pela qual tradições distintas do antigo
Israel foram reinterpretadas à luz das realidades do Período do Segundo Templo.
A capacidade da ideologia apocalíptica de acomodar vários domínios da investi-
gação dentro de uma perspectiva fundamentalmente transcendental também per-
mitiu suas amplas aplicações sociais e literárias. Mas os detalhes permanecem em
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boa parte ainda incompreendidos.


Talvez se faça necessária uma teoria nova e abrangente, que esteja funda-
mentada nas classificações da geração passada, mas que acomode novas aborda-
gens e novas percepções, abordando problemas trazidos à tona por estudos recen-
tes. O foco desta teoria deve ser o apocalipsismo, sem abrir mão da análise dos
textos antigos. Deve se levar em conta que é a dimensão interpretativa do apoca-
lipsismo que conceitualmente enquadra a escatologia e que provocou o apareci-

329
CANCIK, Hubert. Libri fatales. Römische Offenbarungsliteratur und Geschichtstheologie. In:
Ibidem, p. 549-576.
330
Cancik retorna ao tema da escatologia Greco-romana e ao apocalipsismo em artigo posterior
para The Encyclopedia of Apocalypticism (cf. CANCIK, H. The End of the World of History, and
of the Individual in Greek and Roman Antiquity. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of
Apocalypticism, p. 84-125. v. 1) . Neste caso, ele aborda a adivinhação, os oráculos e os cultos, e
discute ideias pertinentes ao tempo e seu fim na mitologia, história e filosofia Greco-romanas.
331
GRIFFITHS, J. G. Apocalyptic in the Hellenistic Era. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Op. cit. p.
273-293. Cf. ainda, nesta mesma obra, o artigo de J. Assman (ASSMAN, J. Königsdogma und
Heilserwartung. Politische und kultische Chaosbeschreibungen in ägyptischen Texten. In: Ibidem,
p. 345-377) e o artigo introdutório ao tema de J. Bergman (BERGMAN, J. Introductory Remarks
on Apocalypticism in Egypt. In: Ibidem, p. 52-60). Sobre o Oráculo do oleiro, Wilson afirma que a
obra é conhecida em documentos do II ou III séculos a.C. mas pode refletir um original mais anti-
go; ele acredita que “os regentes estrangeiros mencionados no texto são provavelmente os persas e
gregos, devendo todo o texto ser possivelmente interpretado como a obra de um grupo oprimido no
Egito ptolemaico que tentava resistir às pressões do helenismo (...) Por meio da profecia, os autores
oprimidos buscavam reformar a presente situação política e tentavam fazer retornar o poder políti-
co às próprias mãos. O texto pode ter continuado a funcionar da mesma maneira em épocas poste-
riores quando os romanos substituíram os Ptolomeus como os opressores” (cf. WILSON, Robert R.
Profecia e sociedade no antigo Israel, p. 159-160).
332
SIMON, M. Sur quelques aspects des Oracles Sibyllins juifs. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Op.
cit. p. 219-223. Collins também abordou, em vários outros artigos (muito numerosos para serem
citados), a maioria dos aspectos relevantes concernentes a esses Sibilinos Judaicos.
117

mento da literatura, incluindo o próprio gênero, com seu linguajar característico,


temas e formas, além da apocalíptica em seu sentido mais amplo, ou seja, a pró-
pria mentalidade apocalíptica. Além disso, caso se possa expressar a função do
apocalipsismo de outra forma, uma forma que não seja aquela expressa pelo gêne-
ro, com referência à evidente pluralidade de tipos de expressão literária, então po-
de ser que a relação entre ideologia, gênero e marco social se torne mais distinta.
À essa luz, a articulação da escatologia e a formação do gênero, bem como seu
desenvolvimento histórico, seriam parte de uma investigação abrangente sobre o
surgimento e a evolução do apocalipsismo na antiguidade como um fenômeno e-
pistemológico, com as dimensões escritural, política, histórica, sapiencial, ética,
social e, é claro, teológica.
À luz da pesquisa atual, podemos admitir que a raiz da apocalíptica judaica
está no profetismo exílico e pós-exílico, com posterior influência da tradição sapi-
encial e de elementos orientais (especialmente babilônicos e persas); nem sempre
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é possível discernir com clareza a origem dos diversos elementos.


O contato com a cultura oriental deve ter ocorrido já no exílio, com intensi-
ficação da assimilação estrangeira no Período Helenístico (330 – 141 a.C.). Essa
influência não significa mero empréstimo estrangeiro, mas a adoção de alguns
moldes para expressar a tradição judaica de forma renovada.
Como semelhanças entre o profetismo e a apocalíptica, pode-se registrar
que tanto um quanto outro se interessam pelo futuro e empregam com frequência
linguajar simbólico, e ambos revelam preocupação com o “remanescente justo”.
Algumas diferenças notáveis também podem ser citadas: a apresentação inicial da
profecia era, normalmente, em forma oral, sendo depois registrada por escrito, ao
passo que a apresentação inicial da apocalíptica era, em geral, escrita; os pronun-
ciamentos proféticos são, com frequência, oráculos separados e breves, ao passo
que os apocalípticos são normalmente mais longos e mais contínuos; a apocalípti-
ca contém mais simbolismo que a profecia, usando inclusive animais e outras
formas vivas; a apocalíptica normalmente é mais pessimista acerca da eficácia da
intervenção humana no estado de coisas presente, ao passo que a profecia focaliza
a importância da mudança humana; o gênero apocalíptico normalmente utiliza a
pseudonímia, enquanto a profecia é, em geral, falada ou escrita em nome de seu
autor; além disso tudo, a apocalíptica usa mais a profecia ex eventu.
Entretanto, uma diferença fundamental é a concepção de história, franca-
118

mente diferente: na apocalíptica ela é esquematizada com fim específico, ao passo


que na profecia ela é o palco dos atos salvíficos de Deus para com Israel.
Em relação ao gênero apocalíptico como um todo, pode-se afirmar que
muitos níveis literários diferentes podem ser discernidos a partir de um texto. Col-
lins assevera que:
Uma forma literária particular pode ser considerada como um gênero independen-
te ou como um subtipo de uma categoria mais ampla. O nível de abstração apro-
priado ao gênero é determinado em parte pelo uso comum e em parte pelo grau de
coerência que percebemos dentro de um grupo de textos. Em certo nível, as obras
que são chamadas de apocalipses pertencem à categoria mito, em qualquer dos vá-
rios sentidos, e.g., como uma história sobre seres sobrenaturais, ou como uma ex-
pressão simbólica de intuições básicas, ou como uma narrativa com propósito de
percepções questionadoras. Não obstante, o mito é uma categoria muito mais am-
pla do que o apocalipse; assim, o gênero desses textos pode ser definido mais
333
proveitosamente em um nível menor de abstração.

Assim sendo, o gênero literário deve levar em conta também a forma do


texto (estrutura, elementos formais), além de seu conteúdo. Só assim o nível de
abstração na classificação será menor. Em todo caso, ainda assim diferentes níveis
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podem ser abstraídos de um texto individual.

Por fim, observamos que as raízes da apocalíptica remontam a período


muito anterior ao livro de Daniel, em solo judaico; o fenômeno apocalíptico, numa
perspectiva da religião comparada, insere a apocalíptica judaica num contexto
muito mais amplo, como o da apocalíptica iraniana, entre outros. As influências
estrangeiras na apocalíptica judaica, tanto em termos de moldura quanto em ter-
mos de ideias e motivos, assinalam que o gênero era já conhecido no Oriente An-
tigo, sendo ponto pacífico que, direta ou indiretamente, o Judaísmo do Segundo
Templo recebeu tais influências. Mesmo que a origem da apocalíptica tenha se
dado na sabedoria, esta também era praticada no Oriente bem antes da época dos
macabeus.

333
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 4 (grifo do autor).
3. O Zoroastrismo: apocalíptica, ressurreição e contatos
com o Judaísmo primitivo

Desde o trabalho de Richard Reitzenstein, um classicista alemão cujo pon-


to de vista ajudou a moldar a abordagem acadêmica para o estudo da religião em
sua época, a questão da relação ou possível influência entre a literatura iraniana e
a judaica tardia (com posterior reflexo no cristianismo primitivo), especialmente
no que concerne às ideias escatológicas, tem sido debatida.1 Como consequência
óbvia, dois extremos se posicionaram: a aceitação e a recusa. É mister, então, uma
avaliação mais sóbria das evidências.
O primeiro passo deve ser a discussão da articulação de tradições apocalíp-
ticas iranianas dentro da mitologia zoroastriana e a análise de vários temas “apoca-
líptico-escatológicos” relevantes em termos de antecipação do fim. Estes incluem
a expectativa de sinais e tribulações do fim dos tempos, o milênio de Zoroastro, o
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confronto final entre o bem e o mal, juízo final e a restauração do mundo, junta-
mente com a ressurreição dos mortos. Para tanto, é necessária a compreensão da
religião de Zoroastro, seu surgimento, a figura do profeta, suas escrituras e princi-
pais ideias escatológicas.
No que tange especificamente à ressurreição dos mortos (noção que tem
sua origem em grupos apocalípticos), é interessante notar sua fenomenologia no
Oriente antigo, bem como na Grécia arcaica e helenística, e traçar possíveis para-
lelos com o judaísmo primitivo e pós-exílico. O contato dos judeus com culturas
estrangeiras teria amadurecido e ampliado antigas ideias, especialmente a partir do
período chamado de Judaísmo do Segundo Templo.

1
REITZENSTEIN, R. Vom Töpferorakel zu Hesiod. In: REITZENSTEIN, R.; SCHAEDER, H. H.
(Ed.). Studien zum antiken Synkretismus aus Iran und Griechenland, p. 38-68. A obra é um dos
clássicos da Escola da História das Religiões; nela, Reitzenstein alega que a literatura apocalíptica
da época helenística (bem como antigas ideias gregas e platônicas subjacentes a ela) foi fortemente
influenciada pelas antigas tradições iranianas. Um ponto central de seu argumento é que o mito de
uma sequência de idades que se deterioram (cada uma associada a um metal) encontrado no Mito
das cinco raças, de Hesíodo, também faria parte da tradição iraniana. Reitzenstein usa como prin-
cipal fonte iraniana o Zandi î Vahman Yasht (chamado também de Bahman Yasht), o qual recebeu
sua redação final no IX ou X século d.C., mas que, segundo ele, representa uma tradição iraniana
muito antiga. Sobre Hesíodo, o mesmo ponto de vista é postulado atualmente por M. L. West em
sua edição crítica de Os trabalhos e os dias (cf. WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p. 172-
177). Paralelos entre o Bahman Yasht e o sonho de Nabucodonosor sobre uma estátua compósita
em Dn 2,31-45 também foram postulados, bem como entre o mito hesiódico e o texto daniélico (cf.
SOARES, Dionísio O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho da
estátua de Nabucodonosor. Dissertação de Mestrado, PUC-Rio, 2006. p. 185-194).
120

3.1. Zoroastro e sua religião

3.1.1. Os fundamentos da religião de Zoroastro

Os antigos iranianos não possuíam ainda a sistematização da questão de


como o mundo conhecido poderia acabar. Assim como muitos outros povos anti-
gos, acreditavam que o mundo iria continuar indefinidamente com a ordem natural
já conhecida há séculos. Nesse cosmos havia uma luta constante entre a ordem e o
caos. Era atribuição dos deuses manterem ou restabelecerem essa ordem.2 Esse
mundo que os iranianos pastores conheceram por séculos começou a sofrer modi-
ficações na época de Zoroastro,3 considerado profeta e reformador da religião
masdeísta (o Masdeísmo é a mais antiga religião dos iranianos).4
Assim, uma sociedade relativamente pacífica começou a ser conturbada
por guerras tribais. Ao que parece, Zoroastro foi atingido pela diferença entre as
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antigas tribos pacíficas e as novas tribos guerreiras. As tribos antigas eram criado-
ras de gados, nômades, cuja única preocupação era encontrar boas pastagens para
sua sobrevivência. Mas essas tribos estavam sendo devastadas por tribos com car-
ruagens de guerra e novos tipos de armas, as quais estavam massacrando esses cri-
adores de gado e tomando posse de seus rebanhos.5
Zoroastro acabou sendo considerado também, a partir dessa reforma, o
fundador do Zoroastrismo, a qual teria se tornado religião oficial do Império Persa
no século VI anterior à Era Comum. Alguns acreditam que Zoroastro teria vivido
entre o IX e o VI século a.C.; a tradição zoroastriana afirma que ele teria vivido
258 anos antes de Alexandre, o Grande, portanto em meados do VI século. Entre-
tanto, a pesquisa recente demonstrou que esse cálculo estava equivocado; a ten-

2
COHN, Norman. How Time Acquired a Consummation. In: BULL, Malcolm (Ed.). Apocalypse
Theory and the Ends of the World, p. 21-37; aqui p. 21.
3
O nome Zoroastro é a forma grega do persa Zaratustra, a qual provavelmente significa, no persa
antigo, “aquele que controla camelos”, ou “aquele que possui camelos reais” (cf. Y. 44,18). Não há
um consenso acerca do significado de “zarath”, que pode ser “camelos amarelos”, ou “camelos
selvagens” (daí a definição “aquele que controla camelos”). De qualquer forma, o significado do
nome reflete a época de uma sociedade pastoril tradicional, anterior à prática da agricultura, o que
também é usado para atestar a longa antiguidade da figura do profeta. O nome grego se dá a partir
de uma etimologia popular: zôrós (“puro”, “não-misturado”, com vinho), e ástron (“estrela”, pro-
vavelmente incorporado devido à identificação posterior do profeta como sendo a fonte do conhe-
cimento astrológico); cf. HUMBACH, Helmut. The Gâthâs of Zarathushtra and the Other Old
Avestan Texts, p. XXI. v. 1.
4
O termo no persa antigo é Mazdayasna, “Reverência à Sabedoria”.
5
COHN, Norman. Cosmos, Chaos, and the World to Come: The Ancient Roots of Apocalyptic
Faith, p. 94-95.
121

dência atual é considerar que ele teria vivido num período muito anterior,6 entre
cerca de 1550 e 1200 a.C., ou pelo menos antes do ano 1000.7
Mary Boyce é uma das principais defensoras da antiguidade do profeta, va-
riando bastante a datação ao longo de suas publicações: em 1975 ela concluiu que
“na ausência de qualquer evidência externa vigorosa, portanto, parece natural con-
cluir que o profeta viveu em algum tempo entre, digamos, 1400 e 1000 a.C., numa
época em que seu povo estava talvez ainda habitando no norte da Ásia Central,
antes de ir para o sul em seu desvio de direção para fixar residência no Khwa-
rezm”. 8 Em 1977 ela escreveu: “é preciso lembrar que Zoroastro viveu muito tem-
po atrás, possivelmente por volta de 1500 a.C. ou mesmo antes”.9 Em 1979, ela
datou Zoroastro novamente entre 1700 e 1500 a.C., mas admitiu que “é impossível
estabelecer datas fixas para a época de sua vida.10 Em 1982, ela o colocou antes de
1200 a.C.11 Por fim, ela afirmou que “a data mais provável, portanto, parece ser
entre 1400 e 1200 a.C.”.12 Os seus argumentos são baseados especialmente nas
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afinidades linguísticas dos Gathas com o Rig Veda e no ambiente cultural refletido
neles. Por exemplo, sendo o gado muito importante, não há metáforas ou analogi-
as provenientes da agricultura nos Gathas (hinos sagrados).13
Já há muito se levantou a tese da época remota de Zoroastro (pelo menos
no início do primeiro milênio a.C.).14 Entretanto, Henning e Zaehner defendiam o
VI século a.C.15 Mais recentemente, Alan Segal forneceu um veredicto mais equi-
librado, afirmando que Zoroastro “pode ter vivido em qualquer época entre o dé-
cimo-primeiro e o sétimo século a.C., mas provavelmente viveu em torno do iní-

6
O cálculo usado pela tradição baseava-se em uma ficção da época grega: a fixação da primeira
era da humanidade em 312/311 a.C. pelos Selêucidas: cf. BOYCE, Mary. Textual Sources for the
Study of Zoroastrianism, p. 15; cf. também SHAHBAZI, Shapur. The ‘Traditional Date of Zo-
roaster’ Explained. BSOAS 40.1 (1977), p. 25-35; aqui p. 32. A análise detalhada das razões para
isso pode ser verificada em KINGSLEY, Peter. The Greek Origin of the Sixth-Century Dating for
Zoroaster. BSOAS 53.2 (1990), p. 245-265.
7
GNOLI, Gherardo. Zoroaster’s Time and Homeland: A Study on the Origins of Mazdeism and
Related Problems, p. 159-179. Em geral, a datação varia de 1700 a 600 a.C.
8
BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: The Early Period, p. 190.
9
Idem. A Persian Stronghold of Zoroastrianism: Based on the Ratanbai Katrak Lectures, p. 16.
10
Idem. Zoroastrians: Their Religious Beliefs and Practices, p. 2.
11
Idem. A History of Zoroastrianism: Under the Achaemenians, p. 3.
12
Idem. On the Antiquity of Zoroastrian Apocalyptic. BSOAS 47.1 (1984), p. 57-75; aqui p. 75;
Idem. Textual Sources for the Study of Zoroastrianism, p. 11.
13
Idem. A History of Zoroastrianism: The Early Period, p. 14.
14
CHARPENTIER, Jarl. The Date of Zoroaster. BSOAS 3.4 (1925), p. 747-755. Charpentier acre-
ditava que “o Masdeísmo floresceu na Média no máximo por volta de 700 a.C” (Ibidem, p. 755).
15
Cf. HENNING, W. B. Zoroaster, Politician or Witch-Doctor?, p. 35-51, aqui p. 41; ZAEHNER,
R. C. The Dawn and Twilight of Zoroastrianism, p. 33 (o título desta obra é significativo: de fato, o
autor praticamente ignora o que seria o “ínterim” da “aurora” e do “crepúsculo” na história do zo-
roastrismo).
122

cio do século VIII a.C.”.16


Zoroastro seria então um sacerdote masdeísta e os hinos de sua autoria re-
velam que ele era pobre, dono de um pequeno rebanho de gado, e estava preocu-
pado, por razões óbvias, com a proteção de seu rebanho.17 Segundo a tradição, ele
entrou para a vida contemplativa com vinte anos de idade, viajou por vários luga-
res e visitou muitos sábios. Quando estava com 30 anos, foi purificar-se num rio,
durante uma festa da primavera, e ali, em estado de pureza, teve um primeiro en-
contro (através de uma visão) com Ahura Mazda (o deus supremo do zoroastris-
mo).18 Essa visão revelou a Zoroastro fatos referentes ao futuro. A partir de então,
Zoroastro assume definitivamente a sua condição de profeta e reformador. A nar-
rativa da visão é descrita no Avesta,19 livro sagrado do zoroastrismo, formado a
partir da tradição religiosa dos masdeístas.
Outras visões aconteceram, as quais teriam convencido Zoroastro de que
ele havia sido chamado pela divindade para profetizar uma futura renovação do
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mundo, na qual aqueles que se aliassem à justiça seriam recompensados. Zoroas-


tro teria percebido também que a época para o início dessa renovação estava pró-
xima.20 Posteriormente, o profeta recebeu um importante apoio: um príncipe cha-
mado Vishtaspa. Entretanto, a nova doutrina não foi bem recebida pelos sacerdo-
tes tradicionais, os quais, juntamente com outros príncipes, combateram Vishtaspa
e Zoroastro. Nessa disputa, os seguidores de Zoroastro prevaleceram,21 o que deve
ter reforçado ao profeta a ideia de que uma batalha entre o bem e o mal viria em
seguida.

16
Cf. SEGAL, Alan F. Life After Death: A History of the Afterlife in Western Religion, p. 176. De
qualquer forma, os estudiosos ainda se dividem na questão da historicidade de Zaratustra (a tenta-
tiva mais recente contra a historicidade dele encontra-se em KELLENS, Jean. La quatrième nais-
sance de Zarathushtra, 2006), mas não acerca da importância da narrativa de Zaratustra para o
desenvolvimento do zoroastrismo (cf., por exemplo, STAUSBERG, Michael. Die Religion Zara-
thushtras: Geschichte, Gegenwart, Rituale, p. 62-67. v. 1).
17
Cf. Y. 44,20.
18
Cf. BOYCE, Mary. Zoroastrians: Their Religious Beliefs and Practices, p. 19. Boyce assevera
que mesmo antes do advento do zoroastrismo, Ahura Mazda era reconhecido pelos Medos e Persas
como sua divindade principal (cf. Idem. A History of Zoroastrianism: The Early Period, p. 39).
Ahura significa “senhor”, e “Mazda” “sábio”, daí “Senhor da sabedoria” (cf. Idem. Ahura Mazda.
In: YARSHATER, Ehsan (Ed.). Encyclopaedia Iranica, p. 684-687. v. 1). Nos textos em pálavi
(tardos) Ahura Mazda é chamado de Ozmard e Angra Mainyu (divindade do mal) de Ahriman.
19
O Avesta (iraniano medieval abêstag) é a coleção de escritos sagrados; significa “A injunção” de
Zoroastro (cf. KELLENS, J. Avesta. In: YARSHATER, Ehsan (Ed.). Op. cit. p. 35-44. v. 3).
20
COHN, Norman. How Time Acquired a Consummation. In: BULL, Malcolm (Ed.). Apocalypse
Theory and the Ends of the World, p. 21-37; aqui p. 30.
21
Idem. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 78.
123

3.1.2. As Escrituras Sagradas do Zoroastrismo

Em relação aos escritos sagrados, sua reunião é chamada de Avesta. Ele in-
clui dezessete hinos cuja composição é atribuída ao próprio Zoroastro, divididos
em cinco grupos, chamados de Gathas. 22 Eles se destacam do restante do Avesta,
juntamente com um pequeno texto chamado de “Yasna de Sete Capítulos”, pois
estão escritos em avestan (daí esse idioma ser chamado “gathic” avestan).23 Ao
contrário de outras línguas iranianas antigas, o avestan não pode ser atribuído a
nenhuma das tribos iranianas atualmente conhecidas pela história. Tanto uma ori-
gem no noroeste iraniano quanto no oriente iraniano foram sugeridas, mas pelo
menos a primeira hipótese foi descartada.24 Outra conhecida hipótese é a possibi-
lidade de o avestan ter sido um idioma religioso tradicional, ou seja, uma “língua
sagrada” adotada pelo profeta para sua finalidade religiosa e preservada artificial-
mente25 (uma espécie de “latim medieval”, o qual continuou presente na literatura
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e nos rituais religiosos centenas de anos depois de deixar de existir como língua
falada). Entretanto, os estudos mais recentes não comprovam essa teoria; ao con-
trário, a linguística revela os traços de uma poesia composta e recitada em uma
tradição oral, nos moldes da época de Homero e do Rig Veda, o que corrobora a
data anterior ao sexto século para os Gathas e o próprio Zoroastro.26
Os hinos que compõem os Gathas estão inseridos na parte mais antiga do
22
Em avestan, “Gatha” significa “forma estrófica”, ou seja, os Gathas são hinos de uma determi-
nada forma de estrofes, ou grupo de hinos com a mesma forma estrófica. Em védico, gáttha signi-
fica simplesmente “música” (cf. HUMBACH, Helmut. The Gâthâs of Zarathshtra and Other Old
Avestan Texts, p. 3. v. 1). O número de estrofes é variável, mas cada uma possui o mesmo número
de linhas (3 a 5), basicamente isossilábicas (variando algumas vezes com uma sílaba a mais ou a
menos), com uma cesura ou quebra fixa.
23
Cf. BOYCE, M. Persian Religion in the Achemenid Age. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN,
L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Persian Period, p. 279-307, aqui p. 279; HULTGÅRD, A. Per-
sian Apocalypticism. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of Apocalypticism, p. 39-83. v.
1; aqui p. 65. O avestan (ou “gathic” avestan) é um idioma muito antigo do Irã oriental. Uma des-
crição gramatical pormenorizada da morfologia e fonologia do avestan tanto em seus aspectos his-
tóricos quanto sincrônicos pode ser encontrada em HOFFMANN, Karl. Avestan Language. In:
YARSHATER, Ehsan (Ed.). Op. cit. p. 47-62 (v. 3), e KELLENS, Jean. Avestique. In: SCHMITT,
Rüdiger (Ed.). Compendium Linguarum Iranicarum, p. 32-55.
24
Cf. HUMBACH, H. Op. cit. p. 6. Por outro lado, a língua do Avesta como um todo, conforme
foi transmitido, não é homogênea; provavelmente contém elementos de dialetos pertencentes a
diversas regiões, bem como aos diversos extratos cronológicos, o que dificulta ainda mais a ques-
tão da datação dos textos.
25
Ibidem, p. 8.
26
A similaridade linguística dos Gathas com o Rig Veda indiano é um dos principais argumentos
para a datação daqueles no II milênio a.C. (cf., entre outros, WIESEHÖFER, Josef. Ancient Persia:
From 550 BC to 650 AD, p. 97; HUMBACH, H. Op. cit. p. 72-73). Alguns estudiosos têm afirma-
do que a data em torno de 600 a.C. ainda pode ser considerada plausível, partindo do princípio de
que o avestan dos Gathas foi, em verdade, uma língua sagrada preservada artificialmente. Entretan-
to, conforme assinalado acima, essa ideia não encontra muito respaldo na crítica atual.
124

Avesta, chamada Yasna27 (a qual, apesar de ser a mais antiga, contém textos mais
recentes que os Gathas). Os Gathas correspondem aos Y. 28-34, 43-51 e o 53, per-
fazendo dezessete hinos.28 Cada um desses hinos constitui um “capítulo” do Yas-
na, e cada um dos cinco Gathas consiste de um a sete “capítulos”. O agrupamento
em cinco se deve às cinco diferentes métricas sob as quais eles são constituídos. É
bem possível que o arranjo puramente formal dos hinos de acordo com suas res-
pectivas métricas reflita a ordem original de composição conforme teria sido pla-
nejada pelo próprio escritor (Zoroastro), apesar de a procura por uma linha temáti-
ca (por exemplo, moral, ou ética) ao longo dos Gathas ter se revelado infrutífera.29
O texto dos Gathas constitui, portanto, a parte mais antiga e mais importante da
literatura zoroástrica, no sentido de se estabelecer e conhecer os primórdios da re-
ligião em relação ao profeta fundador e sua doutrina original, apesar de ser con-
senso que o texto dos Gathas é de difícil tradução e interpretação.30
Os Gathas se tornaram objeto de veneração já na época do Avesta Mais
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Novo, como costuma ser denominado o restante do Avesta (ou Avesta Posterior).

27
Segundo Humbach, “Yasna, em avestan, significa ‘liturgia’, literalmente ‘adoração’. Em Védico
‘yajñá’ significa ‘adoração, devoção, prece’” (cf. HUMBACH, H. Op. cit. p. 4). O Yasna é a parte
do Avesta que contém os textos recitados durante o ato de adoração (yasna), divididos em 72 se-
ções numeradas. Cf. a tradução completa de L. H. Mills em MÜLLER, F. M. (Ed.). The Zend-
Avesta Part III: The Yasna, Visparad, Âfrîganân, Gâhs, and Miscellaneous Fragments (SBE v.
31), 1887 (repr. 1965).
28
O Y. 53, uma espécie de liturgia de casamento para a filha de Zoroastro, só foi incluído no grupo
dos Gathas posteriormente, ou seja, primeiramente eram contabilizados 16 hinos para os Gathas
(cf. YAMAUCHI, Edwin M. Persia and the Bible, p. 403).
29
Foram feitas diversas tentativas de se estabelecer uma suposta ordem original dos Gathas, dife-
rente da ordem tradicional, especialmente por DUCHESNE-GUILLEMIN, Jacques. Zoroastre;
étude critique, avec une traduction commentée des Gâthâ, p. 23-44, e por LOMMEL, Herman. Die
Gâthâs des Zarathustra, p. 186-237. v. 1 Almut Hintze conclui que “conforme a pesquisa sobre
sua composição avança, é cada vez mais evidente não só que os hinos estão individualmente estru-
turados internamente por paralelismo e composição em círculo, mas também que a forma como os
Gathas estão dispostos em sequência é deliberada, com referências cruzadas para frente e para trás.
Os hinos gáticos estão dispostos em círculos concêntricos ao redor do Yasna Haptanhâiti, o qual
marca o ponto alto da liturgia de toda a cerimônia” (cf. HINTZE, A. On the Literary Structure of
the Older Avesta. BSOAS 65.1 (2002), p. 31-51; aqui p. 50).
30
As traduções mais conhecidas ou usadas são: em inglês, MILLS, L. H., The Zend-Avesta (The
Sacred Books of the East 31, 1887, reimpresso em 1965, é a mais antiga, com diversos problemas
na tradução); DUCHESNE-GUILLEMIN, Jacques. The Hymns of Zarathustra (1952); ANKLE-
SARIA, Behramgore Tehmurasp. The Holy Gâthâs of Zarathustra (1953); INSLER, S. The Gâthâs
of Zarathustra (1975); em francês, DUCHESNE-GUILLEMIN, Jacques. Zoroastre; étude critique,
avec une traduction commentée des Gâthâ (1948); KELLENS, J.; PIRART, E. Les textes vieil-
avestiques, 3 v. (1988-1991), a melhor tradução em francês; em alemão, BARTHOLOMAE,
Christian. Die Gatha’s des Awesta (1905), e duas outras boas traduções, a de LOMMEL, Herman.
Die Gathas des Zarathustra (1959), e a de HUMBACH, H.; SKJAERVØ, P. O.; ELFENBEIN, J.
Die Gathas des Zarathustra, 2 v. (1959, com versão inglesa The Gâthâs of Zarathushtra and the
Other Avestan Texts em 1991). Esta última e a de KELLENS-PIRART são consideradas as melho-
res e são as usadas para os textos do Avesta neste trabalho. Mary Boyce também apresenta uma
boa tradução de vários textos selecionados do Avesta e da literatura pálavi, também usada neste
trabalho (BOYCE, Mary. Textual Sources for the Study of Zoroastrianism, 1984).
125

Nessa parte encontra-se a segunda e a terceira seções principais do Avesta. A se-


gunda seção é chamada de Yasht (“preces”),31 a qual contém vinte e um hinos em
honra dos yazatas, seres merecedores de adoração.32 O Yasht preserva material de
mitos e legendas anteriores a Zoroastro e sua composição comumente é datada em
cerca de 430 a 420 a.C.,33 embora atualmente não se tenha mais certeza disso.34 A
terceira seção principal se intitula Videvdat (ou Vendidad, uma corruptela do pála-
vi Videvdad a partir do avestan vidaevo data, a “lei dirigida contra os demônios”),
compilada no Período Sassânida (224 d.C. – 651) a partir de antigo material do
Período Parta (141 a.C. – 224 d.C.).35 Trata-se da única remanescente dentre vinte
e uma obras (chamadas de nasks, literalmente “feixes”, “ramos”) compostas no
mesmo período. Apesar de mais recente que os Gathas, a crítica das tradições tem
revelado que o Avesta Mais Novo possui ensinamentos muito antigos, muito pro-
vavelmente da época dos Gathas.36
Além do Avesta, há as obras em pálavi (médio-persa),37 com redação final
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já nos séculos IX e X d.C.; elas incluem um resumo de todo o Avesta original


chamado Dinkard (“atos da religião”, texto pálavi do IX século) contendo tradu-
ções de textos perdidos do Avesta e longos trechos traduzidos como sendo perten-
centes a porções perdidas do Avesta, certamente antigas, mas de difícil datação.38
Além do Dinkard (Dk.), os textos mais importantes são o Bundahishn (Bd.), o
Bahman Yasht (BYt.), o Wizidagiha î Zadspram (WZ), o Dadestan î Denig (DD),
o Pálavi Rivayat que Acompanha o Dadestan î Denig (PR), e o livro de Arday Wi-
raz Namag.

31
Cf. a tradução por James Darmesteter em MÜLLER, F. M. (Ed.). The Zend-Avesta Part II: The
Sîrôzahs, Yasts, and Nyâ (SBE v. 23), 1883.
32
Sobre essas divindades, Boyce comenta que se trata de seres beneficentes de estatuto menor, que
não são exatamente “deuses”, mas divindades menores, criadas por Ahura Mazda (tendo em vista
que a criação operada por ele inclui todas as divindades beneficentes), dignas de adoração pela
posição que ocupam. Sua posição é maior do que aquela dada aos anjos de outras religiões monote-
ístas quando elas precisam transpor o abismo entre o homem e a divindade (BOYCE, Mary. A His-
tory of Zoroastrianism: The Early Period, p. 196). Os parsis modernos comparam os yazatas com
os anjos ou santos cristãos.
33
Cf. GERSHEVITCH, Ilya. The Avestan Hymn to Mithra, p. 22;
34
Cf. BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: The Early Period, p. 20, n. 76. O certo é que,
pela crítica das tradições, sabe-se que grande parte do material provém de tradição muito antiga,
especialmente o relativo à escatologia (cf. adiante).
35
A única tradução completa continua sendo a de James Darmesteter em MÜLLER, F. M. (Ed.).
The Zend-Avesta Part I: The Vendîdâd (SBE v. 4), 1895 (repr. 1965).
36
Existe ainda o Khorda Avesta (“pequeno Avesta”), uma coleção de hinos compilada durante o
reinado do rei sassânida Shapur II (309-379 d.C.). Trata-se de um livro de orações para uso diário.
37
Língua da literatura zoroástrica a partir do século III d.C. Para uma visão bem fundamentada da
tradição manuscrita desse período, cf. CERETI, Carlo G. La letteratura pahlavi: introduzione ai
testi con riferimenti alla storia degli studi e alla tradizione manoscrita (2001).
38
Cf. MADAN, D. M. (Coord.). The Complete Text of the Pahlavi Dinkard, 2 v. (1911).
126

Entre todos esses, talvez o mais interessante em termos de escatologia seja


o Bundahishn (“Criação Original”, chamado também de Zand Akasih e conhecido
como o “Grande Bundahishn” para diferenciar do Bundahishn indiano, que é me-
nor). Trata-se de um compêndio pálavi composto principalmente entre o VIII e o
IX século d.C. (contemporâneo do Dinkard).39 Traz os eventos e componentes da
cosmologia zoroastriana, a criação do mundo e seu final.40 Os comentários do A-
vesta em pálavi são chamados de Zend, e à junção deles ao Avesta recebeu o nome
de Zend-Avesta. Para o caso do objetivo deste trabalho, estas obras possuem inte-
resse na medida em que, apesar de tardias, for possível esclarecer as antigas tradi-
ções refletidas por elas. Sabe-se que textos tardios escritos em avestan, bem como
os livros em pálavi, associaram crenças apocalíptico-escatológicas com palavras e
expressões encontradas nos Gathas, embora o significado original delas possa ter
sido diferente.41
Já o Bahman Yasht (chamado também de Zand î Vohuman Yasht) é, mais
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provavelmente, uma compilação de outras obras apocalípticas, composto no Perí-


odo Macedônio (330 – 141 a.C.).42 No primeiro capítulo, há uma visão de Zoroas-
tro acerca de uma árvore com quatro galhos de metal: ouro, prata, aço e ferro mis-
turado com argila, e esses elementos são explicados como representação de quatro
eras períodos da humanidade, sendo a última era de domínio por demônios com
cabelo despenteado (no terceiro capítulo há uma variante em que aparece uma ár-
vore com sete ramos). Ahura Mazda interpreta os galhos como períodos futuros.
Apesar de esse yasht, na forma em que se apresenta atualmente, ser uma composi-
ção tardia, é largamente aceito que ele preserva material muito antigo do Avesta.
A última era é peculiar. Nela, o representante do mal destinado a se opor à
boa religião (espécie de anticristo do cristianismo) chegará e impedirá as pessoas
de adorar o Bem. O sol não será mais tão brilhante e a Terra ficará estéril. No lu-
gar da chuva, cairão seres do mal. Zoroastro pergunta quando esses demônios se-

39
Cf. ANKLESARIA, B. T. (Translit. and transl.). Zand-Âkâsîh: Iranian or Greater Bundahišn
(1956).
40
Trata-se de um Zend (comentário anotado, em pálavi, acerca de um texto mais antigo).
41
Boyce considera o uso do termo “apocalíptico” para textos do Avesta fora dos Gathas, em senti-
do delimitador: “Em estudos zoroastrianos ele [o termo] pode ser útil para distinguir as ‘revela-
ções’ secundárias, como a encontrada no Yt. 19 em diante, das que são rastreadas nos próprios
Gathas” (BOYCE, M.; GRENET, F. A History of Zoroastrianism: Zoroastrianism under Macedo-
nian and Roman Rule, p. 383, n. 89).
42
Cf. a edição crítica de CERETI, Carlo G. The Zand î Wahman Yasn: A Zoroastrian Apocalypse
(1995). O que se tem hoje é apenas um comentário (um zand) produzido no Período Sassânida
(224 d.C. – 651) do original avéstico.
127

rão destruídos e é informado de que sinais serão revelados nas estrelas e planetas.
Após esses sinais, uma espécie de salvador (Saoshyant) inaugurará uma época
chamada de Renovação, com a ordem pacífica estabelecida e todos os povos agin-
do conforme os preceitos do zoroastrismo.
O Wizidagiha î Zadspram (WZ), o Dadestan î Denig (DD) e o Pálavi Ri-
vayat que Acompanha o Dadestan î Denig (PR) também são parte da literatura
pálavi que contém temas escatológicos. O Wizidagiha î Zadspram (literalmente,
“As seleções de Zadspram”) é datado no IX século d.C.; seu autor, Zadspram,
compilou a obra a partir de fontes da tradição (os dois últimos capítulos, 34 e 35,
contêm as descrições de eventos escatológicos).43 O Dadestan î Denig também foi
composto no IX século d.C. por um irmão de Zadspram chamado Manushcihr,44
um sumo sacerdote do zoroastrismo no Irã; a composição tem o formato de per-
guntas e respostas, sendo que as questões 34 a 36 tratam de temas escatológicos,
especialmente a ressurreição dos mortos e a natureza do mundo imediatamente
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antes e após a Renovação. Já o Pálavi Rivayat é uma compilação de material da


tradição do início do Período Islâmico (século VII d.C.), com uma importante se-
ção sobre apocalipsismo e escatologia (capítulo 48).45
Outra obra importante em pálavi é o livro de Arday Wiraz Namag, o me-
lhor exemplo persa de apocalipse com viagem transcendental.46 Collins e outros
consideram um apocalipse desenvolvido; na forma atual, é datado no IX século
d.C., mas o tema da ascensão é antigo na tradição persa.47 Trata-se de um texto
que descreve em detalhes vívidos uma viagem transcendental e que possui nume-
rosas reminiscências de viagens semelhantes descritas nos apocalipses judaicos,
como 1 Enoque. Viraf foi escolhido para a viagem com a missão de ver se as ora-
ções das pessoas estavam chegando ao céu. Ao chegar lá é guiado por seres divi-
nos que lhe explicam tudo o que vê. Ele contempla o céu, o inferno e a hamesta-
gan, que é a morada das pessoas cujas más ações equilibram-se perfeitamente com
suas boas ações. As descrições do inferno ocupam a maior parte do livro e são

43
Cf. WEST, Eduard W. (Transl.). Selections of Zâd-sparam. In: MÜLLER, F. M.; WEST, E. W.
(Ed.). Pahlavi Texts Part I, p. 153-188.
44
Cf. JAAFARI-DEHAGUI, M. (Transc., transl. and commentary). Dâdestân î dênîg (1998).
45
Cf. WILLIAMS, A. V. (Ed. and commentary). The Pahlavi rivâyat accompanying the Dâdestân
î denig, 2 v. (1990). Para um tratamento extenso dessa obra, comparando-a com escritos judaicos,
cf. NEUSNER, Jacob. Judaism and Zoroastrianism at the Dusk of Late Antiquity: How Two An-
cient Faiths Wrote Down Their Great Traditions, p. 127-202.
46
Cf. GIGNOUX, P. Le livre d’Ardâ Vîrâz: Translittération, transcription et traduction du texte
pehlevi (1984).
47
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 15.
128

muito mais detalhadas que as do céu. Viraf vê as pessoas sendo fortemente casti-
gadas por inúmeras formas, e os seres divinos lhe informam que o pecado que es-
sas pessoas cometeram as levou a ter esse tratamento.
Deve-se ainda ressaltar que o Avesta conhecido equivale a cerca de apenas
um quarto do original, recebendo sua forma escrita como um todo e a condição de
escrituras sagradas do zoroastrismo apenas no final do Período Sassânida e início
do Período Islâmico (século VII d.C.).48 O impacto dos livros sagrados de outras
religiões antigas (como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo) inspirou a for-
mação de um cânon zoroastriano, o qual tinha como pré-requisito a utilização do
dialeto avestan. A avaliação dos textos pálavi como fontes de crenças apocalípti-
cas iranianas em períodos antes do domínio islâmico deve levar em consideração a
análise histórica da forma desses textos. Em muitos casos, a determinação das
formas e gêneros subjacentes às compilações posteriores ao Período Sassânida se
torna difícil pelo fato de que as citações de textos anteriores são, geralmente, mui-
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to curtas, ou foram retrabalhadas.


De acordo com um sumário do Livro VII do Dinkard, as tradições mazde-
ístas no Período Sassânida tardio eram divididas em vinte e uma coleções menores
(os nasks). Comparando o Avesta atual com esse sumário, os estudiosos chegaram
à conclusão de que aproximadamente três quartos foram perdidos durante as tribu-
lações que se seguiram à conquista árabe. Além disso, existe ainda bastante incer-
teza quanto à extensão do Avesta escrito durante o Período Sassânida, bem como a
suposição de que o sumário do Dinkard possa se referir parcialmente a “textos o-
rais”. O que de fato sobreviveu das tradições escritas do Avesta foram textos usa-
dos em rituais após o Período Sassânida. Entretanto, é tido como certo que as suas
tradições são muito antigas, preservadas por rígida transmissão oral.49
De fato, somente na Idade Média (na época do Período Islâmico no Irã,
após 650 d.C.) é que se podem encontrar descrições completas da cosmogonia e

48
A partir do Período Aquemênida (550 a.C.) várias tradições do Avesta circularam oralmente por
séculos. Ilya Gershevitch supõe que a composição do Avesta Mais Novo começou por volta de 425
a.C. (cf. GERSHEVITCH, Ilya. Zoroaster’s Own Contribution. JNES 23.1 (1964), p. 12-38; aqui p.
14). Não se sabe, de fato, quando esses textos foram postos por escrito. Tradições tardias zoroastri-
anas no Dinkard responsabilizam Alexandre, o Grande, pela destruição desenfreada do Avesta, o
qual supostamente havia sido escrito com tinta de ouro em doze mil couros, armazenados perto de
Persépolis. A destruição por parte de Alexandre é plausível; entretanto, essa tradição continua, por
enquanto, sem fundamentação histórica.
49
Cf. BOYCE, Mary. Textual Sources for the Study of Zoroastrianism, p. 1; COHN, Norman.
Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 79-80; Idem. How Time Acquired a Consummation.
In: BULL, Malcolm (Ed.). Apocalypse Theory and the Ends of the World, p. 21-37; aqui p. 23.
129

da escatologia iraniana que permitem traçar uma tradição apocalíptica.50 O fato de


as ideias escatológico-apocalípticas estarem bem integradas na visão geral do zo-
roastrismo não favoreceu a produção independente de obras apocalípticas, como
se pode encontrar no judaísmo e no cristianismo. Somente o Bahman Yasht pode-
ria reivindicar tal status, conforme assinalado supra.
Entretanto, as seções apocalíptico-escatológicas são um componente im-
portante na maioria dos textos em pálavi, ocorrendo especialmente no final das
composições. No Bahman Yasht, por exemplo, a redação incluída é mínima, e isso
reduz a qualidade literária, mas, por outro lado, permite ao historiador obter uma
ideia mais clara das fontes utilizadas.
Em resumo, as principais Escrituras Sagradas do Zoroastrismo incluem:

As Escrituras Sagradas do Zoroastrismo


Avesta
Avesta original Avesta Posterior
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Yasna (72 seções): in- Yasht (21 hinos): bastan- Vendidad: única rema-
clui os Gathas, 17 hinos te antiga e com porções nescente dentre 21 obras
da época dos Gathas chamadas nasks (“ra-
Yasna de Sete Capítulos Khorda Avesta (“Peque- mos”, “feixes”)
no Avesta”): com Yasht
mais recentes
Outras Escrituras mais recentes
Dinkard: resumo de todo o Avesta, contendo textos perdidos dele
Bundahishn (ou “Grande Bundahishn”, chamado assim para ser distinguido do
Bundahishn indiano, menor): cosmologia, criação e fim do mundo
Bahman Yasht: composto de obras apocalípticas
Wizidagiha î Zadspram: contém temas escatológicos
Dadestan î Denig: contém temas escatológicos
Pálavi Rivayat que Acompanha o Dadestan î Denig: temas escatológicos
Livro de Arday Wiraz Namag: apocalipse com viagem transcendental
51
Tabela 01: As Escrituras Sagradas do Zoroastrismo

50
HULTGÅRD, Anders. Persian Apocalypticism. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of
Apocalypticism: The Origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity, p. 39-83. v. 1; aqui p.
40. Para uma visão geral da escatologia do Avesta, cf. MÜLLER, F. M. The Eschatology of the
Avesta. In: Theosophy; Or, Psychological Religion, p.177-207.
51
À junção do Avesta com as Escrituras mais recentes costuma-se dar o nome de Zend-Avesta.
130

3.1.3. As ideias fundamentais

Zoroastro baseou seu ensino em muitas crenças da religião masdeísta tradi-


cional. Por exemplo, os iranianos criam que, no início, havia apenas um exemplar
de tudo o que existe (uma planta, um animal, um ser humano). A partir disso, Zo-
roastro afirmou que, no início, deveria ter havido apenas um deus, Ahura Mazda,52
o qual criou tudo o que existe de bom no mundo, incluindo os Amesha Spentas
(“Imortais Beneficentes”),53 seres divinos do bem, cuja função era ajudar a Ahura
Mazda a manter a boa ordem de sua criação. A posição única de Ahura Mazda é
encontrada nos Gathas:
(3) Isto eu peço a Ti, diga-me claramente, ó Ahura:
Quem (é) inteiramente (em seu) início o pai primevo da verdade [asha]?
Quem nomeou o curso do sol e das estrelas (seu lugar apropriado)?
Quem (é Ele) através do qual a lua (ora) aumenta, ora diminui?
Estes (são) as muitas (coisas que) eu gostaria de saber, e outras (coisas),
ó Único Sábio.
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(4) Isto eu peço a Ti, diga-me claramente, ó Ahura:


Quem segura a Terra por baixo, e os céus (acima)
(para impedi-los) de cair, que (sustenta) as águas e as plantas?
Quem atrelou as velozes parelhas ao vento e às nuvens?
Quem (é) o criador do bom pensamento, ó Único Sábio?

(5) Isto eu peço a Ti, diga-me claramente, ó Ahura:


Qual o artista que criou a luz e as trevas?
Que artista atribuiu tanto o sono quanto a vigília (a seu devido tempo)?
Quem (é Ele) através do qual a aurora, o meio-dia, e o anoitecer (existem)
os quais lembram a uma responsável (pessoa) sobre (seu zeloso) dever?

(6) Isto eu peço a Ti, diga-me claramente, ó Ahura:


-no caso de aquelas (palavras) que eu (agora) pronunciar serem verdadeiras,
como segue:
“Pelas (suas) ações o direito de mente [juízo] consolida a verdade [asha];
com o bom pensamento ele confia o poder a Ti”-
(Isso eu peço a Ti:) Para qual povo Tu formaste
a vaca fértil fornecedora de satisfação?

(7) Isto eu peço a Ti, diga-me claramente, ó Ahura:


Quem formou o estimado direito de mente, juntamente com o poder?
Quem em (Seu) espírito vivaz proporciona a um pai um ilustre filho?
Com estas (questões), eu ajudo a Ti, ó Único Sábio, a discernir (a Ti),
54
como o criador de todas (as coisas) por meio do espírito auspicioso.

52
Cf. Y. 29,4.6; 31,13; 33,13; 45,3.5; 46,19; 48,2-3; Yt. 1,7.8.12.13-14; Vd. 2,1; 19,20.
53
Cf. Bd. 1,53; cf. também BOYCE, Mary. Amesha Spenta. In: YARSHATER, E. (Ed.). Encyclo-
paedia Iranica, p. 933-936. v. 1; Idem. The History of Zoroastrianism: Early Period, p. 192-198.
54
Y. 44,3-7: Cf. a tradução inglesa em HUMBACH, H. The Gâthâs of Zarathushtra and the Other
Old Avestan Texts, p. 157-158. v. 1, cotejada com a tradução de BOYCE, M. Textual Sources for
the Study of Zoroastrianism, p. 34, e de KELLENS, J.; PIRART, E. Les textes vieil-avestiques, p.
149-150. v. 1; Kellens-Pirart traduzem asha por “Harmonia” (fr. l’Harmonie), não por “Verdade”.
131

Assim, Zoroastro deu a Ahura Mazda uma posição muito superior a que
qualquer outra divindade do mundo antigo já recebera. Sendo criado por si mes-
mo, Ahura Mazda foi a causa original de tudo o que é bom no universo, seja divi-
no ou humano, animado ou inanimado, abstrato ou concreto.
No zoroastrismo, o princípio imutável que a tudo faz existir, responsável
pelo cosmo e necessário à ordem cósmica, é denominado asha (equivalente ao rita
védico,55 à ma’at egípcia e ao lógos grego).56 Mas os antigos iranianos reconheci-
am também o princípio que negava asha: o druj (“mentira”, “falsidade”).57
Zoroastro expandiu esses conceitos tradicionais e insistiu em que a perfeita
ordem deve incluir a justiça final, onde os defensores de asha (o bem) seriam re-
compensados e os parceiros de druj (o mal) seriam punidos;58 a ação de druj pode
até prevalecer por mais um pouco, mas no fim todo o universo estará estabelecido
sobre a justiça cósmica. Ao reelaborar o conceito de druj, Zoroastro atribuiu-o ao
opositor fundamental de Ahura Mazda, a negação deste: Angra Mainyu, o espírito
da destruição, o mal ativo.59
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Assim sendo, nenhum mal poderia vir de Ahura Mazda, como nada de
bom poderia vir de Angra Mainyu.60 Um era defensor de asha e outro de druj.61
Há muito que essas duas forças estão em combate:

(3) Estes (são) os dois espíritos (presentes) no primeiro (estágio da


existência), gêmeos que se tornaram renomados (revelando-se a si mes-
mos como) os dois (tipos de) ideais,
os dois (tipos de) pensamentos e palavras, (e) os dois (tipos de)
ações, o melhor e o maligno.
E entre estes dois, o magnânimo discrimina corretamente,
(mas) não o mesquinho.

55
ZAEHNER, R. C. The Dawn and Twilight of Zoroastrianism, p. 48.
56
Cf. SCHLERATH, Bernfried; SKJAERVØ, Prods O. Asha. In: YARSHATER, E. (Ed.). Op. cit.
p. 694-696. v. 2; segundo esses autores, “Asha significa ‘verdade’ em Avestan e deriva do Indo-
iraniano *ṛtá-, um substantivo neutro que tem o mesmo significado. A palavra é atestada no persa
antigo como a¡rta e no indiano antigo como ṛtá-” (Ibidem, p. 694).
57
Cf. NIGOSIAN, S. A. The Zoroastrian Faith: Tradition and Modern Research, p. 20. Sobre o
significado de druj, cf. KELLENS, Jean. Druj. In: YARSHATER, E. (Ed.). Op. cit. p. 562-563. v.
7, fasc. 6.
58
RUSSELL, James R. Asha in Armenia. In: Armenian and Iranian Studies, p. 175-182. v. 9; aqui
p. 176.
59
Cf. assinalado acima, nos textos tardios, em pálavi, Angra Mainyu é chamado de Ahriman, exer-
cendo o mesmo papel (DUCHESNE-GUILLEMIN, Jacques. Angra Mainyu. See Ahrîman. In:
YARSHATER, E. (Ed.). Op. cit. p. 670-673. v. 1.
60
NIGOSIAN, S. A. Op. cit. p. 84.
61
Cf. ZAEHNER, R. C. Op. cit. p. 34-35.
132

(4) E quando esses dois espíritos se confrontam (para competir por uma pessoa),
então (aquela pessoa) decide (de que índole será) o primeiro (estágio de
sua existência):
vida e a ausência de vida, e (por outro lado) de que índole (sua)
existência será no fim:
a do enganador (será) o pior, mas o melhor pensamento (estará reservado)
para o fiel.

(5) Desses dois espíritos, o traiçoeiro escolhe fazer as piores (coisas),


(mas) o espírito mais florescente, o qual está revestido com os mais sóli-
dos diamantes, (escolhe) a verdade [asha], como também (fazem aqueles)
que dedicadamente satisfazem
62
a Ahura com ações verdadeiras, (Ele), o Único Sábio.

A diferença absoluta entre os dois seres é fortemente salientada:

Eu (agora) promulgarei os dois espíritos (presentes) no primeiro (estágio)


da existência
dos quais o mais florescente se dirigirá ao pernicioso:
“Nem os nossos pensamentos, nem as nossas declarações, nem nossos intelectos,
nem nossas escolhas, nem nossas opiniões, nem as nossas ações,
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nem nossos pontos de vista religiosos, nem nossas almas, concordam”.63

Essa concepção dualista influenciou toda a ética e os fundamentos dos en-


sinos de Zoroastro. A princípio, esse dualismo se dava no interior do próprio ser
humano, em sua mente e coração; posteriormente, esse dualismo foi também atri-
buído ao universo material. Este era considerado um campo de batalha entre os
dois princípios primordiais, batalha em curso, mas que teria um final. O próprio
tempo é dividido entre o tempo limitado e o ilimitado, ou o tempo material e o da
eternidade.
Muitas ideias e ensinamentos tiveram desdobramentos tardios, aperfeiço-
ando ou expandindo as ideias contidas nos Gathas. Certamente essas ideias são
desdobramentos da teologia de Zoroastro, no que se poderiam verificar também
possíveis influências cristãs.
De qualquer forma, as ideias fundamentais permanecem ao longo da tradi-
ção zoroastriana, com releituras de acordo com o marco social exigido.

62
Y. 30,3-5 (tradução em HUMBACH, H. Op. cit. p. 123-124, v. 1, cotejada com a tradução de
BOYCE, Mary. Op. cit. p. 35, e de KELLENS, J.; PIRART, E. Op. cit. p. 110-111, v. 1). Nas tra-
duções, seguimos a disposição dos versos da edição de Humbach.
63
Y. 45,2 (HUMBACH, H. Op. cit. p. 164. v. 1; BOYCE, M. Op. cit. p. 36; KELLENS, J.; PI-
RART, E. Op. cit. p.155. v. 1).
133

3.2. A apocalíptica zoroastriana e as evidências de ressurreição

3.2.1. A tradição tardia

Segundo a tradição zoroastriana, atualmente o mundo estaria em uma fase


mista, em que bem e mal coexistem. Entretanto, não foi dessa forma que Ahura
Mazda criou o mundo, e nem é dessa forma que ele permanecerá para sempre. Pa-
ra entender a visão zoroastriana do final dos tempos, é necessário entender a sua
visão do início dos tempos, pois, segundo ela, o final vai espelhar o começo.64
Ahura Mazda é onisciente e, portanto, estava ciente desde o princípio acer-
ca da existência de Angra Mainyu, o qual morava em um abismo de escuridão e-
terna. Angra Mainyu não é onisciente e, portanto, não pode prever sua própria
morte. Ele deseja destruir o reino da luz, onde Ahura Mazda reside. É com o intui-
to de derrotar o maléfico Angra Mainyu que Ahura Mazda cria o mundo.65 O
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mundo foi criado não-material, num estado espiritual chamado menog; entretanto,
com o intuito de criar um cenário onde a batalha entre bem e mal pudesse ocorrer
e o mal ser derrotado, ele trouxe à existência o mundo material, ou getig. A exis-
tência getig, ou seja, material, é vista como sendo superior ao estado menog; ter a
forma material, no zoroastrismo, é entendido como tendo uma qualidade da cria-
ção, sendo preferível a ter somente o estado espiritual.66 Isso pode explicar o fato
de o zoroastrismo esperar por uma ressurreição física do corpo e uma renovação
da Terra, e não uma existência imaterial em um lugar também imaterial.
Ahura Mazda criou uma única planta, um único animal (um bovino) e um
único ser humano, os quais foram mortos por Angra Mainyu. Entretanto, a partir
desses espécimes únicos vieram a existir todas as plantas, animais e seres huma-
nos, todos com o objetivo de lutar contra o ataque de Angra Mainyu.67 Como con-
traponto, a tudo de bom que Ahura Mazda criou seu oposto, Angra Mainyu, criou
um equivalente mau: criou as trevas para se opor à luz, a mentira à verdade, a do-
ença à saúde, a morte à vida, e criaturas do mal para combater as criaturas do

64
KREYENBROEK, Philip G. Millennialism and Eschatology in the Zoroastrian Tradition. In:
AMANAT, A.; BERNHARDSSON, M. (Ed.). Imagining the End: Visions of Apocalypse from the
Ancient Middle East to Modern America, p. 33-55; aqui p. 47.
65
COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 85-86; ZAEHNER, R. C. The Teachings
of the Magi: A Compendium of Zoroastrian Beliefs, p. 18; Idem. The Dawn and Twilight of Zo-
roastrianism, p. 265.
66
BOYCE, Mary. Zoroastrians: Their Religious Beliefs and Practices, p. 25.
67
KREYENBROEK, Philip G. Op. cit. p. 35.
134

bem.68 Ahura Mazda criara os seis Amesha Spentas para ajudar a manter asha;
opondo-se a isso, Angra Mainyu criou seis seres do mal, espécies de arcanjos em
forma de demônios. 69 Por fim, contra a própria criação como um todo, ele fez uma
espécie de “contra-criação”, na qual começou a era da mistura (bem e mal convi-
vendo juntos), na qual se encontra o tempo presente.
Os seres humanos possuem um lugar especial na criação: eles têm o livre-
arbítrio, sendo os únicos com a capacidade de escolher entre ser bom ou mau, 70 e
essa escolha tem que ser feita, obrigatoriamente. Ao final dos tempos, cada um
será confrontado com seus atos bons ou maus.
Também nos escritos tardios, a conclusão da luta entre as duas divindades
assinalará o tempo do fim: através da obra de um mediador (o Saoshyant, “futuro
benfeitor”),71 Ahura Mazda lançará Angra Mainyu no abismo, vindo em seguida o
fim do mundo, com a ressurreição dos mortos e o juízo final. Inicia-se então a no-
va era em uma nova Terra: druj deixa de existir, prevalecendo asha e Ahura Maz-
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da por toda parte: é o estabelecimento do paraíso. Não há no zoroastrismo a noção


de reencarnação ou carma.
A própria noção persa de “paraíso” expressa o ideal político-ideológico
tanto do mundo natural quanto da sociedade persa (ideal este especialmente ex-
presso nos jardins imperiais);72 o termo avesta pairidaeza (pálavi Garodman), fa-
miliarizado ao antigo persa paridaida e ao medo paridaiza, é recebido no grego
como parádeisos:73 é com este termo que a LXX traduz a narrativa da Criação em
Gn 2,8,74 certamente com a mesma significação social e ideológica que ele expri-
mia para a sociedade persa.
Os acontecimentos relativos à “alma” no pós-morte também estão presen-
tes na tradição zoroastriana em geral.75 A “alma” paira sobre as imediações do
corpo durante três dias, ao longo dos quais é feita uma meditação sobre a sua vida

68
NIGOSIAN, S. A. The Zoroastrian Faith: Tradition and Modern Research, p. 86.
69
Cf. Bd. 1,47-49.55.
70
KREYENBROEK, Philip G. Loc. cit.
71
A figura do Saoshyant e seu papel são descritos nos Yt. 13 e 19.
72
Cf. PEREIRA, N. C. Jardim e poder: império persa e ideologia. In: REIMER, H.; SILVA, Val-
mor da (Org.). Hermenêuticas bíblicas: contribuições ao I Congresso Brasileiro de Pesquisa Bí-
blica, p. 121-128.
73
LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 1308.
74
BAILLY, Anatole. AB, p. 1461.
75
A palavra do avestan usada com o sentido de “alma” é uruuan, (em pálavi urvan), a qual repre-
senta “a faculdade espiritual que exerce o livre-arbítrio, a capacidade de escolha entre o bem e o
mal” (PAVRY, Jal D. C. Zoroastrian Doctrine of a Future Life: From Death to the Individual
Judgment, p. 9). O termo “alma” não é o ideal para a tradução; talvez “si próprio” seja melhor (cf.
SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 184).
135

que se finda.76 Após isso, ela segue para a Ponte do Separador (Chinvat Puhl)77
para ser julgada de acordo com seus pensamentos, palavras e ações pelos três juí-
zes das almas, Mitra, Sraosha e Rashnu.78 Com base neste julgamento, seu destino
pode ser o céu, o inferno (pálavi Dushox) ou confinada no lugar de mistura, à es-
pera (nos três casos) da ressurreição, do julgamento final e da Renovação.79 As
“almas” dos enganosos se afastarão de seus corpos no momento em que eles al-
cançarem a ponte, e então “serão hóspedes para sempre na casa da Falsidade”.80
Na Renovação, com a vinda do Saoshyant (o “que restaura a vida”), todas
as pessoas que viverem nessa época não morrerão. Aqueles que estão mortos serão
ressuscitados em um grande ato da ressurreição geral chamada Ristaxez em pálavi
(“ressurreição dos mortos”).81 Geralmente, considera-se que essa ressurreição o-
corre após a eliminação do mal. Em algumas tradições tardias a ressurreição é
considerada como uma realização do Saoshyant com a ajuda de outras figuras es-
catológicas,82 em outras é Ahura Mazda quem recria o corpo do morto.83
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Nesses textos, a ressurreição é descrita em mais detalhes, e esses relatos,


surgidos a partir de uma tradição sagrada, refletem a preocupação em explicar
uma ideia (a ressurreição) que pode ter enfrentado questões e dúvidas.84 Essas
questões são colocadas na boca de Zoroastro e dirigidas a Ahura Mazda (chamado
de Ormazd na literatura pálavi) e se baseiam no fato de como seria possível aos
que morreram há tanto tempo receber um novo corpo. A resposta é dada através
de uma referência à criação:
(4) Como se diz: “Zarathushtra perguntou a Ormazd: ‘De onde deverão eles rea-
ver a forma do corpo que o vento soprou para longe, e a água arrastou para bai-
xo, e como ocorrerá [então] a ressurreição?’

(5) Ormazd respondeu: ‘Como eu produzi o céu terrestre sem pilares, de duração
espiritual, com as extremidades muito distantes, e brilhantes, da substância de aço
brilhante; assim como eu produzi a terra, que carrega (toda) a vida material, e não

76
BOYCE, Mary. Zoroastrians: Their Religious Beliefs and Practices, p. 14-15.
77
Em avestan, Cinuuatô Peretush (Y. 46,10), literalmente “Ponte do Detentor da Conta” (cf.
HUMBACH, H. The Gâthâs of Zarathushtra and the Other Old Avestan Texts, p. 170. v. 1) ou a
“Ponte do Juiz” (KELLENS, J.; PIRART, E. Les textes vieil-avestiques, p. 160. v. 1).
78
SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 186.
79
Cf. DE JONG, Albert. Traditions of the Magi: Zoroastrianism in Greek and Latin Literature, p.
325; BOYCE, M. A History of Zoroastrianism: Zoroastrianism under Macedonian and Roman
Rule, p 363; COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 96.
80
Cf. Y. 46,11; 51,13.
81
Cf. Yt. 19,11.89-90. Essa ressurreição se dará na forma de um corpo chamado de “o corpo futu-
ro”, um tipo de corpo num estado espiritual, aperfeiçoado em relação ao de antes da morte (cf.
SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 190).
82
Bd. 34,3.7-8; PR 48,54.
83
Bd. 34,5-6; WZ 34,19-20.
84
Bd. 34,4-9; WZ 34,1-20; 35,18-30; PR 48,53-65.
136

tem material de escoramento (acima); como eu fiz o sol, a lua e as estrelas a girar
no firmamento com corpos astrais brilhantes; como eu produzi a semente, de mo-
do que elas possam espalhar-se no solo, e ela pode retornar com o desenvolvi-
mento, crescendo novamente; assim como eu produzi cor de vários tipos em plan-
tas; assim como eu produzi o fogo (com) a combustão externa em plantas e outras
coisas; assim como eu produzi e alimentei a criança no ventre da mãe, e atribuí
distintamente (o cabelo), pele, unhas, sangue, pés, olhos, orelhas e outros mem-
bros; assim como eu dei pés para a água de modo que ela possa fluir; (assim co-
mo eu) produzi (a espiritual) nuvem que carrega a água material, e chuvas onde
quer que ela escolha; e assim como eu produzi o ar que sopra à vontade, abaixo e
acima, com a força do vento, como é visível a olho [nu]; ̶ não se pode agarrá-lo
com as mãos; ̶ eu produzi a cada um destes quando sua produção era mais difícil
para eu conseguir do que ressuscitar os mortos; pois, na ressurreição dos mortos,
eu tenho a ajuda dos tais [seres que já existem], a qual eu não tinha quando (eu)
os produzi; o que foi [feito] pode ser [feito] novamente; eis que, se eu fiz o que
não existia, como não posso reformar o que já existia? Pois, naquele tempo, eu e-
xigirei a estrutura óssea [que está com] do espírito da terra, o sangue [que está
com] da água, o cabelo das plantas, e a vida do vento, conforme eles haviam re-
85
cebido no início da criação’”.

Essa afirmação é baseada na ideia de que na morte as diferentes partes da


pessoa humana são recebidas pelos elementos da natureza, de onde, por ordem
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divina, são trazidas de volta e recriadas na época da ressurreição. Carne e ossos


vêm da terra, o sangue das águas, o cabelo das plantas e o espírito de vida do ven-
to.86
Na tradição tardia, a ressurreição dos mortos inclui tanto justos quanto ím-
pios, iranianos e não-iranianos. Ela é concebida como sendo um processo ritual
ordenado pelo Saoshyant e seus ajudantes. Através da celebração de sucessivas
cerimônias (yasnas), toda a humanidade ressuscitará em cinco estágios, sendo o
homem original (Gayo-Maretan em avestan, Gayomard em pálavi) e o primeiro
casal de humanos os primeiros a ressuscitar.87
A questão dos ímpios e seu destino parece ter preocupado os zoroastrianos

85
Bd. 34,4-5. Tradução inglesa em ANKLESARIA, B. T. Zand-Âkâsîh: Iranian or Greater
Bundahišn, p. 285 (cf. também WZ 34,20).
86
Cf. também WZ 34,7; PR 48,55.
87
Bd. 34,6; WZ 34,18-19; 35,19-20; PR 48,56. A restauração da humanidade a um novo estado de
perfeição é normalmente entendida como acontecendo em sucessivos momentos, nos quais a puri-
ficação do ímpio também é incluída. Embora os temas e épocas sejam as mesmas na tradição sub-
jacente, a ordem exata de realização não emerge claramente em todos os textos, e a confusão que
se pode sentir pode ser devido tanto a incongruências redacionais quanto a opiniões diferentes re-
gistradas nas fontes sassânidas ou expressas na época de sua compilação no Período Islâmico. O
significado da Renovação (o “tornar maravilhoso”, “reabilitação da existência”, ou “feitura do no-
vo”, Frashokereti em avestan e Frashegird em pálavi) é fortemente enfatizado na tradição em pá-
lavi, embora seus detalhes sejam descritos apenas em um número limitado de passagens. A ressur-
reição, por exemplo, é descrita no WZ como sendo “semelhante a árvores e arbustos secos a partir
dos quais novas folhas começam a brotar e botões se abrem” (WZ 34,28). Sobre essa tradição do
“tornar maravilhoso”, a qual se relaciona ao tema da Renovação, ao juízo final e à ressurreição dos
mortos, cf. SEGAL, Alan F. Death After Life, p. 197; COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to
Come, p. 99; ELIADE, Mircea (Ed.). The Encyclopedia of Religion, p. 158. v. 1.
137

de forma peculiar. Embora a crença na separação das “almas” após a morte, na


entrada dos justos no paraíso e dos ímpios no inferno seja indiscutível e firmemen-
te enraizada no antigo Irã, o destino dos ímpios na ressurreição estabeleceu um
problema, e soluções divergentes são encontradas nas obras em pálavi. 88 A ideia
geral de uma eliminação do mal e uma purificação do mundo e da humanidade
favoreceu a crença de que o ímpio não poderia ser punido com a condenação eter-
na; tinha que ser purificado e incluído na nova comunidade do mundo restaurado.
A ideia da punição temporária dos ímpios após a reunião de suas almas com seus
corpos na ressurreição se impôs como a solução mais satisfatória.
Os momentos da Renovação são descritos especialmente no Bundahishn.
Segundo essa obra, após a ressurreição todos comparecerão conjuntamente a uma
grande assembleia que recorda as cenas de julgamento das escatologias judaica,
cristã e islâmica. Nesse encontro cada pessoa reconhecerá aqueles a quem conhe-
ceu durante sua vida: “esse é meu pai, essa é minha mãe, esse é meu irmão, essa é
minha esposa e esse é alguém de minha família”.89 O ímpio já será distinguido do
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justo pela aparência externa, como “cavalos pretos de cavalos brancos”,90 e o


Bundahishn explica isso afirmando que as obras de todos serão manifestadas: “na-
quela assembleia cada pessoa irá contemplar as boas e as más obras que ele ou ela
praticaram; o justo será visível entre o ímpio como a ovelha branca é visível entre
as ovelhas negras”. 91 As punições e recompensas serão então distribuídas. Os ím-
pios serão lançados de volta ao inferno por três dias e três noites, sofrendo então
muita dor no corpo e na alma, ao passo que os justos entrarão no paraíso.92
A despeito das declarações sobre o caráter limitado do conhecimento hu-
mano acerca do mundo vindouro, as tradições sobre a Renovação às vezes trans-
mitem uma visão bastante detalhada sobre como será a vida no mundo renovado.
Além de a humanidade contemplar e louvar Ormazd e as outras divindades,93 ou-

88
Cf., por exemplo, PR 48,66-68.
89
Cf. Bd. 34,9; também PR 48,57.
90
Cf. WZ 35,32.
91
Bd. 34,11.
92
Bd. 34,13-14; WZ 35,40-45. A separação entre justos e ímpios é descrita de forma vívida: “E
todas as pessoas passarão através de seus próprios atos; os justos chorarão pelos ímpios, e os ím-
pios (chorarão) por si mesmos; nisso pode ser que haja um pai que seja justo e o filho ímpio, ou
pode ser que haja um irmão que seja justo e outro ímpio...” (Bd. 34,15); no WZ, é descrito que
“naquele tempo toda a humanidade lamentará juntamente e derramará lágrimas sobre o solo, pois o
pai verá seu filho ser lançado no inferno, o filho (verá) seu pai, a esposa seu marido, o marido sua
esposa, o amigo seu amigo” (WZ 35,41).
93
Exatamente como nas descrições judaica e cristã do paraíso, em que os justos são retratados con-
templando e louvando a Deus.
138

tras ideias apresentadas refletem os pressupostos zoroastrianos para o que é bom


na vida. Os adultos serão restaurados à idade de 40 anos e os jovens e crianças à
idade de quinze. Aqueles que em vida não tiveram uma esposa lhes será dada uma.
Homens e mulheres continuarão a ter desejo entre si, e se unirão no amor sem que
haja nascimento a partir deles.94 Plantas e animais benéficos serão restaurados, e
eles não diminuirão nem aumentarão mais.95 A Terra será ampliada sem monta-
nhas íngremes e colinas, e florescerá como um jardim.
Em suma, os sinais apocalípticos, com tribulações e desgraças, são descri-
tos em mais detalhe durante o final do milênio de Zoroastro, o qual seria a primei-
ra era escatológica por vir. A análise dos textos em pálavi revela que há uma gran-
de variedade de sinais e tribulações anunciando o fim dos tempos. Existem tantas
correspondências em motivos e em detalhes que se pode assumir a existência de
uma tradição que serviu de base a todas as variações, tradição essa que os compi-
ladores e escritores tinham à sua disposição, elaborando-a diferentemente de acor-
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do com os propósitos que cada escritor ou compilador estabeleceu. Ao mesmo


tempo, novos detalhes foram adicionados para tornar as alusões a acontecimentos
contemporâneos mais claras. Na apresentação dos sinais do fim, com as caracterís-
ticas e funções desses sinais, segue-se o esquema tradicional de uma subdivisão
dos últimos três mil anos em três milênios.
Por fim, verifica-se que os textos da literatura pálavi (tardia) são abundan-
tes em temas apocalíptico-escatológicos. Em que medida eles remetem a antigas
tradições zoroastrianas é um ponto fulcral para a possibilidade de influxos na lite-
ratura judaica pós-exílica.

3.2.2. As tradições apocalípticas no Avesta original e as repercus-


sões no chamado Avesta Mais Novo

Como já assinalado neste trabalho, temas escatológicos são uma parte inte-
grante do que poderia ser chamado de literatura apocalíptica. De acordo com
Hultgård, temas escatológicos presentes na tradição tardia, como a expectativa de
sinais e tribulações do fim dos tempos, o confronto final entre o bem e o mal, e a
restauração do mundo, foram baseados em antigas tradições em avestan, as quais

94
Bd. 34,24; PR 48,101.107; WZ 35,52.
95
PR 48,103.107.
139

são anteriores ao III século a.C., e as partes mais antigas do Avesta (os Gathas e o
Yasna de Sete Capítulos) precedem o Império Persa.96 Ele assevera que a difusão
dessas tradições da antiguidade é indicada através de descrições do zoroastrismo
por Plutarco e outros autores clássicos, bem como de antigas compilações como o
Oráculo de Hystapes, as quais carregam uma forte marca iraniana. Em suma,
permitindo certa obscuridade inerente à prova e à possibilidade de adaptação his-
tórica das ideias religiosas, Hultgård conclui que muitas tradições escatológicas e
cosmológicas preservadas pelas compilações em pálavi originaram no pensamento
iraniano antigo.
Quanto à influência do pensamento sobre a apocalíptica judaica e cristã an-
tiga,97 ele afirma que nenhum empréstimo direto ocorreu. Mesmo assim, o desen-
volvimento do apocalipsismo foi consideravelmente influenciado pelas preocupa-
ções e teor do apocalipsismo persa. Por fim, os textos em pálavi, importantes para
o mundo medieval, são igualmente muito importantes para o estudo do apocalip-
sismo também no mundo antigo.98
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Os Gathas apresentam um dualismo em diversos níveis, conforme assina-


lado acima. Entretanto, um ponto final para esse dualismo é aludido em algumas
passagens,99 e, nesses casos, o contexto sugere uma interpretação escatológica,
visto que será distribuída recompensa para as ações dos indivíduos, uma má para o
mal, mas uma boa recompensa para os bons.100
Assim, nos Gathas, parte mais antiga do Avesta, já estão presentes muitas
características que normalmente aparecem nas obras apocalípticas, como o dua-
lismo, visões, revelações de conhecimentos secretos e a expectativa de um julga-
mento final. O Y. 30, por exemplo, cita a grande consumação, quando os que op-
taram pela justiça serão recompensados, ao passo que os ímpios serão destruídos.
Ressalta ainda as ações justas e a função de Ahura Mazda como retribuidor da jus-
tiça no final dos tempos. O determinismo, outra característica marcante da apoca-

96
Cf. HULTGÅRD, Anders. Bahman Yasht: A Persian Apocalypse. In: COLLINS, J. J.; CHAR-
LESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations: Apocalyptic Studies since the Uppsala Col-
loquium, p. 114-134. Bem antes de Hultgård, Benveniste já havia chamado a atenção para os clás-
sicos gregos no estudo da religião persa (cf. BENVENISTE, Emile. The Persian Religion: Accor-
ding to the Chief Greek Texts, 1929).
97
Ele faz um tratamento detalhado do tema em HULTGÅRD, Anders. Das Judentum in der
hellenistisch-römischen Zeit und die iranische Religion: ein religiongeschichtliches Problem.
ANRW II.19.1 (1979), p. 512-590.
98
Cf. HULTGÅRD, Anders. Bahman Yasht: A Persian Apocalypse. In: Op. cit. p. 134.
99
Cf. Y. 43,5; 51,6.
100
Cf. Y. 30,4 (transcrito supra).
140

líptica judaica, é encontrado no Y. 44, onde Zoroastro pergunta a Ahura Mazda


sobre a batalha prevista para o final dos tempos, cujo resultado já foi previamente
decretado.
Essa última pode ser considerada uma passagem-chave dos Gathas; o Y.
44,14-15 pode aludir ao último confronto entre a Verdade e a Mentira. Na estrofe
14 o antagonismo entre Verdade e Mentira é proclamado e o narrador suplica a
Ahura Mazda para “trazer sua arma impetuosa sobre o enganador (e) trazer aflição
e injúria sobre ele”. Na estrofe seguinte é feita menção a dois exércitos opostos
que se confrontarão, e o narrador solicita a Ahura Mazda retoricamente: “A qual
lado dentre os dois (lados), para quem Tu atribuirás a vitória?”. Para a tradição
zoroastriana isso era uma clara alusão ao grande combate escatológico entre o
Bem e o Mal.
A crença na vida humana no pós-morte representada pela “alma” (avestan
uruuan) é um elemento proeminente nos Gathas, presença que parece incontestá-
vel entre os intérpretes modernos.101 O destino final do ser humano do bem (cha-
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mado de “verdadeiro”) será junto a Ahura Mazda na “morada do Bom Pensamen-


to”, ao passo que o enganoso irá para “a casa da Falsidade” ou “a morada do Pior
Pensamento”.102
No Y. 43, estrofe 5, é estabelecida a distribuição de recompensa e punição
por ocasião da “reviravolta final na criação”. No Y. 51,9 essa recompensa escato-
lógica através do fogo é conectada com (ou especificada como) uma provação pe-
lo metal fundido.103 Várias outras passagens parecem também incluir alusões a
diferentes existências dos indivíduos no pós-morte, embora elas possam ao mesmo
tempo referir-se a recompensas e punições divinas a serem distribuídas durante
sua vida terrena.104 A provação pelo fogo exerce importante papel nessas retribui-
ções escatológicas.105 A noção de ressurreição dos mortos também aparece nos
Gathas, ligada à ideia da reviravolta final na criação.106
A ideia de um mundo perfeito pode estar subjacente às referências acerca

101
Uma importante noção nos Gathas é a ideia expressa pelo termo “ahu-” (“existência”), a qual
parece ter diversas conotações. Determinada por “astuuant-” (“de osso”), expressa a existência
corporal de humanos e animais; ligado a “mainiiu-”, denota sua existência espiritual. O termo pode
se referir a diversas formas de existência, individual (“vida”) e universal (“mundo”, “universo”).
102
Cf. Y. 32,13.15; 51,14.
103
Cf. também Y. 32,7.
104
Cf. Y. 30,4; 34,13; 43,12; 44,19; 45,7.
105
Cf. Y. 43,4; 47,6 (possivelmente também no Y. 31,3).
106
Cf., por exemplo, o Y 30,7. O ensino gáthico especificamente sobre a ressurreição será tratado
adiante.
141

da criação de uma existência “brilhante”, “feliz”, “abundante”.107 A menção dessa


criação no Y. 30,9, colocada no contexto de derrota e punição do Engano, expres-
sa o desejo da comunidade gáthica de estar entre aqueles que ajudam a trazer essa
perfeição. A outra menção é uma prece a Ahura Mazda em fazer a existência “es-
plêndida” (Y. 34,15). A reivindicação para uma continuidade das crenças entre os
Gathas e os textos em pálavi é também apoiada pelo fato de que o Yt. 19 profetiza
a renovação do mundo através do redentor final em estreita semelhança com os
conteúdos das estrofes gáthicas.108
A viagem transcendental como um meio para aquisição de conhecimento
divino (a qual é uma característica da experiência do visionário iraniano), confor-
me atestada nos apocalipses em pálavi Arday Wiraz Namag e Bahman Yasht, pode
também ter sua origem em época bem anterior. Os Gathas incluem algumas pas-
sagens que podem ser interpretadas como reflexo de jornadas de visionários. No
Y. 33,5 ocorre uma menção “dos caminhos retos nos quais Mazda Ahura perma-
nece”,109 os quais são alcançados pelo narrador. Semelhantemente, no Y. 43,3 en-
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contra-se o desejo de que um homem específico deveria ensinar à comunidade “os


corretos caminhos da benfeitoria”, o que pode ser comparado à prece no Y. 34,12
dirigida a Ahura Mazda: “Mostre-nos com Verdade os caminhos do Bom Pensa-
mento, fácil para percorrer”. Passagens mencionando os caminhos divinos podem
se referir ao bom comportamento ritual que confere ao sacrificador uma recom-
pensa escatológica, mas podem também conter alusões aos caminhos percorridos
durante uma visão divina.
Duas outras passagens aludem a visões empreendidas pela “alma” ou por
uma pessoa nomeada: no Y. 44,8 o narrador pergunta pelo caminho no qual sua
“alma” pode prosseguir para alcançar as coisas futuras, e no Y. 51,16 Vishtaspa é
orientado a prosseguir nos caminhos do Bom Pensamento para alcançar o discer-
nimento concebido por Ahura Mazda. A jornada mencionada nessas duas passa-
gens parece se referir primeiramente à ascensão da “alma” ao paraíso após a mor-
te, mas também podem aludir a viagens a outro mundo para a aquisição de discer-
nimento divino. Como se pode ver, o caminho após a morte pelo qual a “alma”
alcançará o paraíso nas tradições do zoroastrismo clássico pode ser o mesmo pelo

107
Cf. Y. 30,9; 34,15.
108
Cf. Yt. 19,89.
109
Ou, de acordo com Kellens e Pirart, “e os caminhos retos... a Harmonia, ao final dos quais, ó
Mazda, o mestre [Ahura] habita” (cf. KELLENS, Jean; PIRART, Eric. Les textes vieil-avestiques,
p. 123. v. 1).
142

qual o visionário caminha, e o alvo também o mesmo: o encontro com a divindade


suprema. A descrição da visão em êxtase por parte de Vishtaspa no Dinkard é ex-
plicitamente descrita como uma jornada ao paraíso no relato paralelo do Pálavi
Rivayat.110
No Avesta Mais Novo, o texto mais importante que trata da batalha final
entre o Bem e o Mal e da renovação do mundo é o Yt. 19, composto muito prova-
velmente no V século a.C (Período Aquemênida). Nas estrofes 88-94 uma única
predição escatológica foi preservada, apresentando os temas básicos da escatolo-
gia apocalíptica como ela é encontrada nos livros em pálavi. Esse Yasht é dedica-
do à glória divina e enumera os heróis e figuras que a “glória” acompanhou no
passado para ajudá-los a cumprir suas ações renomadas. Entretanto, em relação à
última figura, a cena é colocada no futuro e descreve a aparição e missão do As-
vat-ereta (“Justiça Encarnada”),111 o qual é caracterizado como um Saoshyant; o
Yasht então se vale de um conceito presente nos Gathas e o aplica a um salvador
escatológico específico.112 A esperança da ressurreição dos mortos é expressa no
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Yt. 19,11 (repetida no v. 89), na mesma linha do texto gáthico Y. 30,7 citado aci-
ma.113
O nascimento de Asvat-ereta é aludido na estrofe 92, onde se registra que
ele nascerá nas águas do Lago Kâsava e que sua mãe se chama Vîspa.taurvairi.
Ele é o promovedor da Renovação, na qual, segundo os Gathas, tomarão parte
também os fiéis verdadeiros, através de seus bons pensamentos, palavras e a-
ções.114 A batalha final entre Bem e Mal é claramente anunciada. Ele sobrepujará
o grande inimigo, “a má Falsidade, de raízes más e nascida de trevas” (estrofe 95).

110
Cf. Dk. VII, 4,84-86 e PR 47,30. Neste caso, a conexão com o Y. 51,16 parece óbvia, o que
implica uma antiga interpretação daquela estrofe como uma viagem transcendental feita por Vish-
taspa durante a sua vida.
111
O último Saoshyant (pálavi Asvat-ereta, “Que tem a ordem [cósmica] por corpo”, “Personifica-
ção da verdade”, a justiça encarnada), nascerá da virgem Vispa-Taurvairi (“A que tudo conquis-
ta”), cf. Yt. 19,92. Esse último Saoshyant é o supremo Saoshyant, o Asvat-ereta, o qual promoverá
efetivamente a Renovação (Yt. 19, 88-96), conforme também o Bd. 34. Segundo o Bundahishn, a
história do mundo se divide em 12 mil anos, em que nos três primeiros estão os preparativos para a
luta cósmica e no início do segundo quarto de milênio (ano 9000) Zoroastro recebe a revelação de
Ahura Mazda. No último quarto de milênio se dá a batalha final; no entanto, este período também é
dividido em três períodos de mil anos, sendo que ao final de cada um desses milênios os ensinos de
Zoroastro caem no esquecimento, havendo então a necessidade do surgimento de um novo reden-
tor (assim, o Saoshyant acaba sendo triplicado, sendo o Asvat-ereta o último a surgir).
112
Para esse desenvolvimento, cf. HINZE, A. The Rise of the Saviour in the Avesta. In: RECK,
Christiane; ZIEME, Peter (Ed.). Iran und Turfan: Beiträge Berliner Wissenschaftler, Werner
Sundermann zum 60. Geburtstag gewidmet, p. 77-98.
113
Para o tratamento específico desse Yasht, ao lado do Y. 30,7 (a questão da ressurreição dos
mortos), cf. adiante.
114
Cf. Y. 34,23; 46,3; 48,12.
143

A Falsidade será expulsa do mundo da Verdade.


Os seguidores de Asvat-ereta são então descritos como uma comitiva de
homens sinceros, religiosos, notáveis em termos de moral; eles afastarão o destru-
idor Aeshma (o demônio Heshm nos livros em pálavi). Algumas das criaturas di-
vinas e entidades ao redor de Ahura Mazda escolherão, cada uma, seu próprio ad-
versário: Vohu Manah (o “Bom Pensamento”) derrotará Aka Manah (o “Mau Pen-
samento”), a Palavra Falada Verdadeiramente subjugará a Palavra Falada Fal-
samente, Imortalidade e Integridade subjugarão a Fome e a Sede, e Angra Mainyu
fugirá destituído de seu poder (estrofe 96).
Assim, o tema dos combates escatológicos entre as divindades e demônios
encontrados nos textos em pálavi já se encontra presente no zoroastrismo do Perí-
odo Aquemênida (550 – 330 a.C.). Ele parece ser um motivo indo-europeu, como
é característico na antiga mitologia épica indiana (a batalha no Mahabárata).115
Alusões dispersas a esta descrição coerente acerca do final dos tempos são
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encontradas em outras passagens do Avesta Mais Novo. O Saoshyant do tempo


final é mencionado em várias passagens, sempre associado com o epíteto de “vito-
rioso”.116 O curso da história do mundo é resumido na expressão “do homem pri-
mordial (Gayo-Maretan, pálavi Gayômard) ao vitorioso Saoshyant”.117 O mito de
seu nascimento é aludido no Vd. 19,5: “até que o vitorioso Saoshyant nascerá no
Lago Kâsava” (cf. também Bd. 33,38), e a Renovação como um alvo desejado é
suplicada no Yt. 13,58.118
Como se vê, há uma estreita conexão entre muitas ideias escatológicas da
tradição tardia e o pensamento antigo expresso nos Gathas, entre elas a ideia de
restauração da criação com julgamento e retribuições, incluindo a noção de ressur-
reição individual. Somado a isso, outra forte evidência para a tese da continuidade
da tradição dos Gathas nos textos mais novos consta dos relatos de autores greco-
latinos.

115
O Mahabárata é uma legenda que constitui o segundo dos dois grandes poemas épicos da Índia,
com cerca de cem mil versos compostos em mais de 800 anos, com início por volta de 400 a.C.
116
Cf. Yt. 13, 129.145; Vd. 19,5: Y. 26,10; 59,28. No Yt. 13,129 seus dois nomes são explicados:
Saoshyant (“Futuro Benfeitor”) na medida em que ele fará com que toda a existência corporal
prospere, e Asvat-ereta (“Justiça Encarnada”) “na medida em que como criatura corporal (e) viva
ele dará livramento corporal do perigo” (cf. HINZE, A. Op. cit. p. 92).
117
Yt. 13,145; Y. 26,10.
118
Cf. também Y. 62,3 ; Vd. 18,51.
144

3.2.3. As evidências de autores gregos e latinos

A evidência a partir de textos em avestan é escassa, de caráter alusivo e


contrasta nitidamente com a rica descrição do tempo final feita pelas obras em pá-
lavi. Se não fosse pelo testemunho dos autores gregos e latinos, o argumento para
a continuidade do apocalipsismo iraniano a partir do Avesta original e Posterior
até os livros em pálavi do início do Período Islâmico seria menos convincente.
Uma das principais fontes para o conhecimento dos persas antigos é o es-
critor grego Heródoto, considerado um “historiador” antigo. Ele descreve o confli-
to entre persas e gregos no V século a.C. Embora não mencione Zoroastro, ele
discorre acerca dos costumes dos persas, especialmente sobre o clã sacerdotal dos
magos. Os persas ofereciam sacrifícios a Zeus (Ahura Mazda), à lua, ao sol, terra,
fogo, água, ventos e a uma deusa chamada Vênus Urânia, que os assírios chama-
vam de Milita e os árabes de Alita.119 Segundo Heródoto, os magos entoavam um
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texto sagrado, matavam criaturas nocivas como formigas e cobras, e exibiam ca-
dáveres humanos para serem mutilados por “pássaro ou cão”.120 Muitas dessas
práticas correspondem àquelas encontradas em textos zoroastrianos tardios.121
Um contemporâneo de Heródoto, Xantos de Lídia, foi o primeiro ocidental
a mencionar Zoroastro, o que mostra que ele já era conhecido no Ocidente nessa
época. Xantos escreveu em grego e viveu durante o reinado de Artaxerxes I (465-
424 a. C.). Ele era um especialista nos magos, os sacerdotes medos. Em um famo-
so fragmento preservado por Diógenes Laércio (III século a.C) ele chama Zaratus-
tra de Zoroastro (“astro puro”),122 cujo nome parece insinuar que, nessa época,
Zoroastro era conhecido pelas suas conexões com a astrologia e a astronomia ba-
bilônicas, apesar de nos Gathas não haver registro de tal correlação.
Plínio, o Velho, cita Eudoxo de Cnido (IV século a.C.), um discípulo de
Platão, para a ideia de que Zoroastro viveu seis mil anos antes.123 Pelo final do IV

119
HERÓDOTO. História, I.131.
120
Ibidem, I.132.140.
121
MOLÉ, Marijan. Culte, mythe et cosmologie dans l’Iran ancien: le problème zoroastrien et la
tradition mazdéenne, p. 78. Segundo Boyce, “em geral, os comentários de Heródoto sobre a religi-
ão dos persas concordam muito bem com as crenças e práticas zoroástricas tal como elas teriam
sido apreendidas por um observador inteligente e questionador, o qual não procurava penetrar mui-
to na doutrina ou nos atos sacerdotais de culto, mas estava satisfeito em registrar o que ele via por
si mesmo e o que seus amigos poderiam relatar-lhe” (Cf. BOYCE, Mary. A History of Zoroastria-
nism: Under the Achaemenids, p. 183).
122
DIÓGENES LAÉRCIO VI.1.3-4.
123
PLÍNIO. Naturalis Historia XXX.1.3
145

e início do III século a.C., Zoroastro era conhecido pelos gregos como um mago e
um antigo legislador do povo iraniano.124 Estrabão (63 a.C. – 19 d.C.) registra uma
extensa passagem sobre a religião persa: “Agora, os persas não erguem estátuas e
altares, mas oferecem o sacrifício em um lugar alto, sobre os céus, como Zeus, e
eles também adoram Hélio [o Sol], a quem eles chamam de Mitras, Selene [Lua] e
Afrodite (...) mas é sobretudo ao fogo que eles oferecem sacrifício”.125
Outro testemunho importante é o de Plutarco (46 – 127 d.C.) em seu ensaio
De Iside et Osiride (Sobre Ísis e Osíris) 46-47, escrito entre 100 e 127 d.C.126 No
capítulo 46 ele registra:
Esta é a opinião da maioria e dos mais sábios; pois alguns acreditam que existem
dois deuses que são rivais, por assim dizer, na arte, um sendo o criador do bem, e
o outro do mal; outros chamam o melhor desses um deus e seu rival um daemon
[demônio], como, por exemplo, Zoroastro, o Mago, o qual viveu, assim eles regis-
tram, cinco mil anos antes do Cerco de Troia. Ele costumava chamar um de Ho-
romazes e o outro de Areimanios, e mostrou também que o primeiro foi especial-
mente aparentado, entre os objetos da percepção, à luz, e o segundo, ao contrário,
à escuridão e ignorância, enquanto que entre os dois estava Mitra; e é por isso que
os persas chamam Mitra de “o Mediador”. Ele também ensinou que ofertas voti-
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vas e de agradecimento devem ser feitas para Horomazes, mas cerimônias lúgu-
bres para Areimanios, e aquelas destinadas a evitar o mal. Uma delas consiste em
colocar uma libra de determinada erva chamada omômi num almofariz, invocando
Hades e as trevas, e então depois de se misturar com o sangue de um lobo degola-
do eles a levam a um lugar sem sol e a lançam fora. Eles acreditam que também
entre as plantas algumas pertencem ao deus do bem o outras ao daemon do mal, e
que entre os animais alguns, tais como cães, aves e porcos-espinhos da terra, per-
tencem ao bom deus, ao passo que ouriços d’água pertencem à divindade má, e
por essa razão eles consideram feliz qualquer que mata um grande número de-
127
les.

Plutarco oferece uma curta mas detalhada descrição da cosmogonia e esca-


tologia zoroastrianas (com um relato variante no capítulo 47). Nesta parte do tra-
tado Plutarco pretende ilustrar uma opinião generalizada “sustentada pela maioria
das pessoas e pelos homens mais sábios” acerca dos dois princípios, o bem e o
mau, os quais, apesar de incompatíveis, ambos têm sua fonte e origem na natureza
em si mesma. Para essa finalidade, a doutrina persa acerca dos dois poderes cós-
micos opostos apresenta, em si mesma, um exemplo bastante apropriado.
Primeiramente, Plutarco claramente atesta o mito cosmogônico básico co-
nhecido, de outra forma, somente a partir de textos em pálavi. Vários pontos reve-
124
Cf. BENVENISTE, Emile. The Persian Religion: According to the Chief Greek Texts, p. 10.
125
ESTRABÃO XV.3.1.
126
PLUTARCO. De Iside et Osiride. Introducción, texto crítico, traducción y comentario por Ma-
nuela García Valdés, p. 20.
127
PLUTARCO. De Iside et Osiride, 46. In: Plutarch’s De Iside et Osiride. Edited with an Intro-
duction, Translation and Commentary by J. Gwyn Griffiths, p. 191.
146

lam uma surpreendente correspondência em detalhes, o que enfatiza a plausibili-


dade da transmissão oral daquele mito através do tempo.
O estado inicial do cosmos, com o Bem e o Mal sendo duas entidades o-
postas já a partir desse início, é descrita por uma redação quase idêntica a que se
encontra na abertura do primeiro capítulo do Bundahishn e do Wizidagiha î Zads-
pram. A divindade boa, afirma Plutarco, é chamada Horomazes e a má é chamada
Areimanios; a boa é comparada com a luz, e a má com trevas e ignorância (primei-
ra variação no capítulo 46). A redação da segunda variante (capítulo 47) é ligeira-
mente diferente na medida em que se afirma que Horomazes nasce a partir da mais
pura luz e Areimanios das trevas:
Mas eles (os persas) também relatam muitos detalhes míticos acerca dos deuses, e
os seguintes são exemplos. Horomazes nasce da mais pura luz e Areimanios das
trevas, e eles estão em guerra um com o outro. O primeiro (Horomazes) criou seis
deuses, sendo o primeiro deus o da boa vontade, o segundo deus o da verdade, o
terceiro deus o da boa ordem, e os outros deuses da sabedoria e da riqueza, o sex-
to sendo o criador de prazer nas coisas belas. O outro (Areimanios) criou um nú-
mero igual como rivais a esses. Então Horomazes, tendo ampliado a si mesmo em
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três vezes seu tamanho, retirou-se para tão longe do sol quanto o sol está distante
da Terra, e adornou o céu com estrelas; e uma estrela, Sirius, ele estabeleceu so-
bre todas as outras como um guardião e vigia. Vinte e quatro outros deuses foram
criados por ele e colocados dentro de um ovo. Aqueles que foram criados a partir
de Areimanios foram de igual número, e eles penetraram no ovo... e assim disso
resultou que bem e mal estão misturados. Chegará o tempo destinado quando Are-
imanios, o portador da peste e da fome, deve necessariamente ser totalmente des-
truído e obliterado por estas. A Terra será plana e nivelada, e um modo de vida e
um governo surgirá de todos os homens, os quais serão felizes e falarão a mesma
língua. Teopompo afirma que, de acordo com os Magos, por três mil anos, alter-
nadamente, um deus dominará o outro e será dominado, e que por mais três mil
anos eles lutarão e farão guerra, até que um despedace o domínio do outro. No fi-
nal Hades perecerá e os homens serão felizes; eles não precisarão nem de sustento
e nem de projetar uma sombra, enquanto o deus que terá proporcionado isso fica-
rá tranquilo e descansará, não por muito tempo mesmo para um deus, mas pelo
tempo que seria razoável para um homem que adormece. Essa é a mitologia dos
128
Magos.

Vê-se que, do ponto de vista literária, o relato de Plutarco não é uniforme;


ele parece se basear em diferentes fontes e informantes. Assim, ele fornece dois
relatos variantes para o estado original do cosmos, nos quais o conteúdo é o mes-
mo, mas a terminologia é diferente.129
Na primeira variante existe também uma menção ao espaço intermediário
que separa os dois poderes cósmicos: “no meio do caminho entre os dois se encon-
128
Idem. De Iside et Osiride, 47. In: Ibidem, p. 193.
129
Cf. HULTGÅRD, Anders. Mythe et histoire dans l’Iran ancien: étude de quelques thèmes dans
le Bahman Yašt. In: WIDENGREN, Geo; HULTGÅRD, Anders; PHILONENKO, Marc (Ed.).
Apocalyptique iranienne et dualisme qoumrânien, p. 63-162; aqui p. 96-98.
147

tra Mitra”. Isso pode ser comparado com a abertura do mito no Bundahishn: “Or-
mazd estava em suprema onisciência e bondade, pelo infinito ele esteve sempre na
luz... (...) Ahriman estava no fundo das trevas, ignorante e cheio de desejo torpe
para ferir. No meio do caminho entre eles estava o vazio”.130
Plutarco acrescenta que Horomazes e Areimanios “estão em guerra um
com o outro”, e descreve brevemente o trabalho da criação, como dos antigos
moldes surgiram seis divindades que correspondem claramente ao grupo dos A-
mesha Spentas, os “Imortais Beneficentes”.131 Areimanios responde pela criação
de seis entidades opostas, justamente como Ahriman produz os “arquidemônios”
como uma “anticriação” de acordo com o mito pálavi.132 Hromazes adornou o céu
com luminares, e “ele estabeleceu uma estrela sobre todas as outras como um
guardião e vigia, a Sirius”. A primeira afirmação recorda a narrativa do Bd. 2,1:
“Ormazd formou os luminares entre o céu e a Terra”. Já a citação que Plutarco faz
de Sirius parece ser uma citação em grego a partir de uma passagem em avestan
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do Yasht dedicada ao deus-estrela Tishtriya, o qual é o equivalente de Sirius: “A


brilhante e gloriosa estrela Tishtriya nós adoramos, a quem Ahura Mazda estabe-
leceu como senhor e vigia sobre todas as estrelas”.133
Vinte e quatro outras divindades são criadas por Horomazes e colocadas
dentro do cosmos. Uma criação oposta feita por Areimanios vem novamente em
seguida, produzindo vinte e quatro demônios. Areimanios e seus demônios então
rompem o espaço cósmico, e, dessa forma, afirma Plutarco, se deu a mistura entre
bem e mal. Aqui é óbvia a alusão à irrupção de Ahriman dentro da criação de Or-
mazd e, como consequência, o surgimento do mundo presente em um “estado de
mistura” entre bem e mal.
Em seguida, Plutarco passa diretamente para a era escatológica: um tempo
designado virá quando Areimanios e seus assistentes serão totalmente destruídos
pela peste e fome que eles mesmos carregavam e desaparecerão totalmente, con-
forme já decretado previamente. A ênfase de Plutarco sobre o que foi decretado se
coaduna bem com a ideia de que a derrota final de Ahriman estava determinada
por Ormazd já na criação. As tribulações do fim dos tempos também são aludidas

130
Bd. 1,1-3; cf. relato semelhante em WZ 1,1-2. Em verdade, no Bd. 1,3 uma tradição variante é
relatada, na qual o “vazio” aparece como “caminho” (“vento, atmosfera”) ao mesmo tempo em que
é considerado como uma divindade (avestan Vayu) da mesma dignidade de Mitra.
131
Cf. Bd. 1,53.
132
Cf. Bd. 1,47-49.55.
133
Yt. 8,44.
148

pelas palavras “pestilência e fome”, e a ideia de que elas são produzidas por Are-
imanios mas que também causarão a sua própria destruição está em conformidade
com a tradição pálavi da luta interna mortal dentro do acampamento dos demô-
nios. Quando o fim se aproxima, um aumento da atividade do mal é esperado, co-
mo indicado no Bahman Yasht: “Quando o momento de sua destruição estiver
próximo, o Mau Espírito enganador será mais opressivo e sua forma de governo
pior”.134
A ideia da reviravolta da criação com a chegada da Renovação também é
abordada por Plutarco: a Terra se tornará uma planície, e haverá um só modo de
vida e uma só forma de governo para uma humanidade abençoada em que todos
falam a mesma língua. Pode-se notar que os textos em pálavi da tradição zoroas-
triana tardia também tem como background essas ideias quando tratam da Reno-
vação. A primeira argumentação para a existência de um paralelo claro é que ele é
encontrado no Bundahishn, numa citação a partir de uma antiga tradição sagrada:
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“Essa Terra se tornará uma planície, nivelada, sem inclinações, e não haverá de-
pressões, montanhas e picos, nem para cima e nem para baixo”.135
No Bd. 34,21 também é narrado que, quando a alma for reunida ao corpo,
“a humanidade será reunida e, a uma só voz, ruidosamente dará louvores a Or-
mazd e aos Imortais Beneficentes”.136 Não está claro se esse é o significado que
deve ser atribuído à declaração de Plutarco. Entretanto, a unidade escatológica na
forma de vida e de governo aludida no texto grego e para a qual bons paralelos até
agora não foram apresentados pode, de fato, ser interpretada à luz de algumas pas-
sagens em pálavi acerca da Renovação.137 O Dinkard afirma que “toda a humani-
dade irá se reunir em torno da religião de Ormazd em uma única comunidade”.138
A unidade de pensamento, fala e ação que existe entre os Amesha Spentas será
também característica da humanidade após a Renovação, conforme é expresso nas
declarações proferidas pelos Imortais Beneficentes: “Sendo do mesmo pensamen-
to, do mesmo discurso e da mesma ação, você será sem envelhecimento, sem do-

134
Cf. BYt. 2,54.
135
Bd. 34,33.
136
Cf. os comentários acerca dessa passagem em BIDEZ, Joseph; CUMONT, Franz. Les mages
hellénisés: Zoroastre, Ostanès et Hystaspe, d’après la tradition grecque, p. 77. v. 2;
WIDENGREN, Geo. Leitende Ideen und Quellen der iranischen Apokalyptik. In: HELLHOLM,
D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East: Proceedings of the Inter-
national Colloquium on Apocalypticism, p. 77-162; aqui p. 132.
137
Cf. WIDENGREN, Geo. Loc. cit.
138
Dk. VII: 11,6.
149

enças e sem corrupção conforme nós vemos os Amahraspand serem”.139


Na última parte de seu relato, Plutarco menciona explicitamente uma fonte
anterior a partir da qual ele faz uma breve citação: o historiador Teopompo, de
Chios, escritor do IV século a.C., cuja obra, infelizmente, sobreviveu apenas em
fragmentos.140 É de grande importância que a periodização persa da história do
mundo apareça aqui de forma semelhante à que é narrada no mito cosmogônico
básico dos textos em pálavi, com pequenas variações, como a distribuição um tan-
to diferente da soberania entre Ormazd e Ahriman. Ao se referir explicitamente
aos Magos, Teopompo afirma que cada divindade reinará, por sua vez, por três mil
anos e que, durante outro período de três mil anos, elas lutarão, farão guerra e des-
truirão o trabalho uma da outra. Assim, a história do mundo aparece composta por
nove mil anos e subdividida em três períodos de três mil anos, cada um com suas
características próprias (no Bundahishn, são doze mil anos, conforme assinalado
supra).
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O tema da destruição final do mal e a consequente felicidade do mundo re-


novado também é abordado brevemente. Areimanios (chamado aqui de Hades)
perecerá e toda a humanidade será abençoada e feliz, “sem ter necessidade de se
alimentar e sem projetar qualquer escuridão”. Esses detalhes estranhos estão em
conformidade com a tradição escatológica persa tardia. O Bundahishn e o Dinkard
preveem que a humanidade irá, gradualmente, deixar de ter necessidade de se ali-
mentar quando o final dos tempos se aproximar. Primeiramente, uma única refei-
ção será suficiente para três dias. Em seguida as pessoas desistirão de comer carne
e se alimentarão com leite e legumes: “Então eles desistirão de beber leite, depois
rejeitarão os legumes e beberão somente água. Dez anos antes da vinda do Saosh-
yant, eles viverão totalmente sem alimento e bebida, e não morrerão.141
Esse processo é o inverso daquele ao qual o primeiro casal humano se
submeteu; eles começaram bebendo água, depois acrescentaram legumes, leite, e
finalmente acrescentaram também carne.142 Para a ideia dos bem-aventurados não
projetarem espectro, crenças semelhantes foram propagadas também pelos pitagó-
ricos, os quais disseram que “as almas dos mortos não projetavam um espec-

139
Cf. WZ 35,2. “Amahraspand” é a denominação em pálavi para os Amesha Spentas (cf. BOY-
CE, Mary. Amesha Spenta. In: YARSHATER, Ehsan (Ed.). Encyclopaedia Iranica, p. 933. v. 1).
140
Teopompo de Chios, na Jônia, teria vivido na mesma época de Platão. Voltaremos a tratar de
Teopompo, adiante, devido à importância de sua afirmação sobre a ressurreição.
141
Cf. Bd. 34,3; Dk. 7:10,8-9; WZ 34,38-41.
142
Bd. 34,1.
150

tro”.143
A citação de Teopompo por Plutarco conclui com a curiosa afirmação de
que Horomazes, o deus que tinha trazido a felicidade final para a humanidade, a-
gora “terá sossego e repouso durante algum tempo”. Isso pode ser explicado a par-
tir da ideia de que Ormazd, tendo efetuado com êxito a Renovação, não precisa
mais desempenhar qualquer ação.144
As concordâncias pormenorizadas entre o relato de Plutarco e os textos em
pálavi revelam que Plutarco e sua fonte Teopompo estavam bem informados sobre
as ideias iranianas de cosmologia e escatologia, sugerindo ainda que esse conhe-
cimento derivou diretamente de informantes persas. Através do testemunho de
Teopompo, ainda se pode saber que o mito cosmogônico básico, com suas impli-
cações apocalíptico-escatológicas, estava em circulação no final do Período A-
quemênida (no IV século a.C.) e, provavelmente, também no V século a.C.
A crença na ressurreição dos mortos não é mencionada explicitamente no
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relato de Plutarco, mas está certamente implícita no que ele afirma acerca do esta-
do de bem-aventurança da humanidade após o desaparecimento do mal. J. G. Grif-
fiths assevera que o estado de felicidade mencionado por Plutarco virá aos homens
quando alcançarem a nova vida após a ressurreição.145 Outros escritores gregos
também se referem a Teopompo como sua principal fonte na atribuição da ressur-
reição dos mortos aos ensinamentos dos magos e de Zoroastro. Assim o faz Dió-
genes Laércio em seu Proêmio: “o qual [Teopompo] afirma que, segundo os Ma-
gos, a humanidade viverá novamente e será imortal. Isso também é relatado por
Eudemo de Rodes”.146 Eudemo é outro autor do IV século a.C. que, aparentemen-
te, conhecia as crenças persas, mas cujas obras também não sobreviveram.
Aenas de Gaza (neoplatonista do VI século d.C.) também se refere a Teo-
pompo para a ideia de ressurreição: “Zoroastro prediz que haverá um momento em
que a ressurreição de todos os mortos acontecerá. Teopompo sabe o que eu afirmo
e ele ensina também aos outros (escritores)”.147

143
Cf. PLUTARCO. Quaestiones Graecae, 39. J. Gwyn Griffiths afirma que “a ideia iraniana de
não projetar uma sombra significa estar na luz, em vida e prazer; a ideia pitagórica implica a morte
e perda da personalidade” (cf. GRIFFITHS, J. G. Plutarch’s De Iside et Osiride. Edited with an
Introduction, Translation and Commentary, p. 482).
144
PR 48,101; cf. também Bd. 34,22.
145
Cf. GRIFFITHS, J. G. Op. cit. p. 481.
146
Cf. DIÓGENES LAÉRCIO. Bivoi kaiV gnw~~mai tw~~n e*n φilosoφivai eu*dokimhsavntwn (Vida e
opiniões dos mais eminentes filósofos) 1.6-9 (Livro 1: Proêmio).
147
Apud BIDEZ, Joseph; CUMONT, Franz. Les mages hellénisés: Zoroastre, Ostanès et Hystaspe,
d’après la tradition grecque, p. 70. v. 2.
151

A difusão das crenças apocalípticas iranianas na antiguidade não possui


eco apenas entre os escritores do mundo greco-romano; ela pode ser vista também
no surgimento de compilações relacionadas à tradição sibilina com menor ou mai-
or influência iraniana. Esses textos eram normalmente atribuídos a Hystaspes
(forma grega do iraniano Vishtaspa) e propagados em versões diferentes e por di-
ferentes grupos durante o Período Helenístico e os primeiros séculos da Era Cris-
tã.148 Entre eles está o Oráculo de Hystaspes, o qual deve sua origem a um ambi-
ente onde as ideias apocalípticas iranianas eram usadas para preservação espiritual
e resistência política contra os macedônios e o governo selêucida na Ásia ociden-
tal. Essa obra sobreviveu apenas em fragmentos e a natureza real desse oráculo é
controversa.149
Os oráculos foram reutilizados entre vários grupos durante séculos subse-
quentes com uma tendência anti-romana. A oposição contra o Império Romano
arregimentou em conjunto iranianos, sírios, judeus e outros povos ocidentais, e o
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Oráculo de Hystaspes possuía uma larga popularidade na condição de panfleto


apocalíptico. Nenhuma versão original de um texto do Oráculo sobreviveu; o seu
conteúdo é conhecido apenas através de paráfrases incompletas e resumos feitos
por Lactâncio, principalmente em suas Instituições Divinas (considerada sua obra
mais importante), redigida no início do IV século d.C. A questão que se põe é que
não são encontrados muitos elementos característicos que possam ser claramente
associados unicamente com ideias apocalípticas, como ocorre, por exemplo, com
o relato de Plutarco. Conforme os estudiosos notaram há muito tempo, a descrição
dos sinais apocalípticos nas paráfrases de Lactâncio lembra notavelmente aqueles
encontrados nos textos em pálavi, em especial no Bahman Yasht.
Por outro lado, as semelhanças com os apocalípticos judaicos e os primei-
ros apocalipses cristãos são igualmente evidentes, fato que pode ser explicado pelo

148
COLPE, Carsten. Hystaspes. In: KLAUSNER, Theodor (Ed.). Reallexikon für Antike und
Christentum: Sachwörterbuch zur Auseinandersetzung des Christentums mit der antiken Welt, p.
1057-1082. v. 16.
149
Desde H. Windisch (iniciador da pesquisa moderna sobre essa obra) que se acredita ser esse
texto um oráculo zoroástrico escrito em grego (cf. WINDISCH, Hans. Die Orakel dês Hystaspes,
p. 13). Entretanto, seu eminente estudo está baseado em duas suposições equivocadas: acreditar
que os Oráculos sejam inteiramente uma obra persa, e, por outro lado, acreditar que tudo o que
possa ser definido como “judeu” ou “cristão” na citação de Lactâncio dos Oráculos não fazia parte
deles. David Flusser propõe que era, na realidade, “um livro judaico em língua grega, baseado em
algum material ou livro zoroastriano. Hispaste é a forma grega do persa Vištâsp, rei e protetor de
Zaratustra” (cf. o tratamento do tema em FLUSSER, D. Histaspe e João de Patmos. In: O Judaís-
mo e as origens do Cristianismo, p. 171-236. v. 2; aqui p. 174. Tanto Windisch quanto Flusser,
entretanto, asseveram que esse texto teve alguma influência sobre a apocalíptica judaica e cristã.
152

conteúdo universal destes sinais e por influências transculturais. Isso faz com que
a separação das ideias genuinamente iranianas de ideias das tradições judaico e
cristã seja uma questão, de fato, intrincada.
As mudanças no cosmos e na natureza anunciando o fim dos tempos pre-
vistas em Lactâncio apresentam afinidades inconfundíveis com o Bahman Yasht,
bem como também com a profecia do Livro Astronômico na coleção judaica de
Enoque e com as previsões em 4 Esdras.150 No entanto, existe uma correspondên-
cia maior na formulação entre as Instituições Divinas e o Bahman Yasht. Lactân-
cio afirma, por exemplo, que “o ano será abreviado e o mês reduzido e o dia enco-
lhido em um curto espaço”.151 As predições paralelas de 1En 80,2a (“Mas nos dias
dos pecadores, os anos serão mais curtos, suas sementes chegarão tarde no país e
nos campos”) e de 4Esd 5,4b (“De repente o sol brilhará no meio da noite, e a lua
durante o dia”) certamente atestam a dissolução da ordem do cosmos; entretanto,
somente o Bahman Yasht fornece o equivalente preciso: “O sol será menos visível
e menor, e o ano, mês e dia mais curtos”.152 O fogo escatológico descrito por Lac-
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tâncio corresponde, pela sua função, claramente ao conceito iraniano e não ao ju-
daico-cristão.153
Os Oráculos enfatizam que o fogo divino queimará tanto o justo quanto o
ímpio, e que o ímpio será julgado pelo fogo divino, mas ele não machucará os jus-
tos (“mas aqueles a quem a justiça plena e a maturidade da virtude impregnaram
não perceberão aquele fogo”), ao passo que ele afetará os ímpios “com uma sensa-
ção de dor”, mas não os destruirá. O fogo “não somente queimará os ímpios, mas
os formará novamente, e substituirá o tanto que consumirá de seus corpos”. Isto
corresponde precisamente ao caráter do fogo escatológico descrito nos textos apo-
calípticos iranianos.
O cenário do final dos tempos nos Oráculos se assemelha muito àquele en-
contrado nos apocalipses “históricos” judaico-cristãos, mas existem detalhes e
formulações que revelam o background original persa. Quando as tribulações es-
catológicas estiverem em seu auge, os justos se separarão dos ímpios e fugirão pa-
ra uma montanha. O rei do mal que domina o mundo ficará cheio de ira ao ouvir
isso, e então cercará a montanha com um grande exército. Os fiéis suplicarão a

150
Cf. LACTÂNCIO. Institutiones Divinae VII: 16.6-11; BYt. 2,31-32; 1En 80,2-8; 4Esd 5,1-12;
6,20-25.
151
LACTÂNCIO. Op. cit. VII: 16.10.
152
BYt. 2,31.
153
LACTÂNCIO. Op. cit. VII: 21.3-7.
153

Deus por ajuda, serão ouvidos e Deus lhes enviará um salvador do céu que, com
seus seguidores, socorrerá os justos e destruirá os ímpios. A expectativa da vinda
do salvador nos Oráculos de Hystaspes pode significar, originalmente, uma figura
persa do salvador que seria Mitra,154 ou último Saoshyant (Asvat.ereta)155 ou o
Dario redivivo.156 O salvador é chamado de “o grande rei”, uma clara alusão à
terminologia da realeza iraniana, e em outra passagem Lactâncio menciona “o lí-
der da comitiva sagrada”, o que claramente alude aos seguidores de Saoshyant, e
talvez seu líder não seja outro senão Pishyotan.157
O cenário com a montanha é mais bem explicado a partir do costume persa
de adoração divina sobre o topo de montanhas, conforme descrito por Heródoto.158
Os justos serão chamados de “seguidores da verdade”, o que recorda a ênfase zo-
roastriana na Verdade e os seus seguidores como sendo os verdadeiros. Em uma
referência explícita à profecia de Hystaspes, Lactâncio reproduz mais diretamente
a narrativa dos Oráculos ao dizer que os fiéis sitiados na montanha suplicarão por
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ajuda e “Júpiter olhará para a Terra e ouvirá as vozes dos humanos e exterminará
os ímpios”.159 Júpiter aparece aqui no lugar de Zeus (era o equivalente ao Zeus
grego na mitologia romana), o qual era o nome grego de uso estabelecido para
Ahura Mazda. É improvável que judeus ou cristãos tivessem usado o nome “Zeus”
em seus próprios escritos no lugar do termo grego theós, de uso geral. Lactâncio
está ciente disso em seu comentário seguinte à citação: “Tudo isso é verdade, ex-
ceto uma coisa, a saber, que ele [Hystaspes] afirmou que Júpiter irá cumprir o que
Deus fará”.160
Assim sendo, o background iraniano das paráfrases de Lactâncio dos Orá-
culos de Hystaspes pode ser constatado,161 e parece razoável concluir que as pas-
sagens nos Oráculos que revelam semelhanças tanto pertinentes à tradição irania-
na quanto aos apocalipses judaico-cristãos devem, primeiramente, ser interpreta-

154
BIDEZ, Joseph; CUMONT, Franz. Les mages hellénisés: Zoroastre, Ostanès et Hystaspe,
d’après la tradition grecque, p. 71. v. 2.
155
Cf. WIDENGREN, Geo. Leitende Ideen und Quellen der iranischen Apokalyptik. In:
HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 77-162;
aqui p. 133.
156
COLPE, Carsten. Hystaspes. In: KLAUSNER, Theodor (Ed.). Reallexikon für Antike und
Christentum, p. 1057-1082. v. 16; aqui p. 1077.
157
Pishyotan é filho imortal de Vishtaspa (Cf. BYt. 6,3).
158
Cf. HERÓDOTO. História, I.131-132.
159
LACTÂNCIO. Institutiones Divinae VII: 17-18.
160
Ibidem, VII: 18.2.
161
Cf. SHAKED, Shaul. Eschatology and Vision. In: Dualism in Transformation: Varieties of Re-
ligion in Sasanian Iran, p. 27-52; aqui p. 31.
154

das como elementos persas. O Oráculo de Hystaspes é, inegavelmente, um impor-


tante testemunho do impacto das ideias apocalípticas persas no mundo grego-
romano ocidental.
Há uma continuidade básica na expectativa persa acerca do final dos tem-
pos desde a época dos Gathas (cerca de 1000 a.C.) até o início do Período Islâmi-
co (VII século d.C.). Entretanto, no decorrer do tempo as novas versões da escato-
logia apocalíptica se desenvolveram como resultado das novas situações históricas
e culturais; apesar disso, elas mantiveram as ideias fundamentais intactas. A ino-
vação mais notável parece ser a triplicação da noção de fim dos tempos e seus e-
ventos escatológicos. Essa inovação parece ser o resultado de “desenvolvimentos
escolásticos intencionais”.162 O último período da história mundial foi subdividido
em três milênios, cada um com a sua própria figura-chave. Desses três, o primeiro
milênio, o de Zoroastro, já começou e se aproxima do seu fim, mas antes da res-
tauração final do mundo mais duas figuras com a função de “salvador” são espe-
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radas, cuja aparição de cada um introduz um novo milênio. Na mudança dos milê-
nios eventos muito semelhantes ocorrem, caracterizados primeiro pela deteriora-
ção seguida de desenvolvimento.
Assim, a tradição apocalíptica original constante do Yt. 19 e ainda em cur-
so no início da época helenística conforme revelada por Teopompo e pelos Orácu-
los de Hystaspes foi reinterpretada e seus temas distribuídos em três “fim dos
tempos”.
Vestígios do novo arranjo das tradições podem ser encontrados nas incon-
gruências e perda de clareza verificadas em algumas passagens dos livros em pá-
lavi. Pode-se citar como exemplo Pishyotan e a tradição ligada a ele. Originalmen-
te um dos companheiros do salvador final Asvat.ereta, Pishyotan e sua tradição
foram posteriormente transferidos para o final do milênio de Zoroastro, onde ele e
seus seguidores se revelam como precursores de Ushedar, o primeiro salvador a
chegar. No Bahman Yasht se afirma que Ahura Mazda e os Imortais Beneficentes
se manifestarão sobre a Terra e convocarão Pishyotan para restaurar a religião
mazdeísta.163 De acordo com o Dinkard, Pishyotan ferirá o Mau Espírito e os de-
mônios.164 Tanto o Bahman Yasht quanto o Dinkard colocam esses eventos na vi-

162
Cf. BOYCE, Mary. On the Antiquity of Zoroastrian Apocalyptic. In: BSOAS 47.1 (1984), p. 57-
75; aqui p. 68-69.
163
Cf. BYt. 3,25-31.
164
Dk. VII: 8,47.
155

rada entre os milênios de Zoroastro e Ushedar. No entanto, a aparição da divinda-


de suprema e seus “arcanjos” na Terra e a derrota de Ahriman são claramente es-
peradas no final da história do mundo, e essas ideias foram originalmente conec-
tadas à tradição Frashegird (o “tornar maravilhoso”), citada acima.
Visto que as crenças escatológicas estiveram no centro do Mazdeísmo an-
tigo, elas poderiam facilmente ser atualizadas em tempos de crise e assumir novas
formulações. Parece que na esteira da conquista do Império Aquemênida por Ale-
xandre o apocalipsismo recebeu um novo impulso. Novas profecias semelhantes
ao gênero das predições sibilinas foram propagadas entre os iranianos para encora-
jar a resistência e dar esperança de uma salvação futura.
Assim sendo, as profecias iranianas acabam servindo aos interesses de um
movimento antimacedônico mais amplo e, posteriormente, antirromano nas pro-
víncias ocidentais. As antigas tradições avestanas adormecidas e subjacentes aos
atuais Bahman Yasht e Oráculos de Hystaspes muito provavelmente tomaram
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forma no início do Período Helenístico. Essas tradições foram fielmente preserva-


das e provavelmente reutilizadas até o Período Sassânida (224 – 651 d.C.), ao lon-
go do qual novas interpretações foram adicionadas.
A queda do Império Sassânida com a conquista árabe-muçulmana afetou
profundamente as comunidades zoroastrianas. Da posição de religião mais favore-
cida, o Mazdeísmo tornou-se em dois séculos uma religião minoritária e oprimida.
Essas mudanças dramáticas deram um novo ímpeto às expectativas apocalípticas,
deixando suas marcas nas vertentes escatológicas dos livros em pálavi. Novas pro-
fecias foram adicionadas, e a tradição apocalíptica sassânida foi submetida a uma
reinterpretação geral.
No capítulo 33 do Bundahishn é delineada a história das “terras iranianas”,
segundo um esquema milenar que é uma retrospectiva até o Período Islâmico ini-
cial, mencionando a derrota dos iranianos, a morte de seu líder e a fuga de seu fi-
lho para recrutar um novo exército. Em seguida, o relato se torna escatológico,
dando previsões de eventos futuros que preparam o caminho para o advento do
Pishyotan e o início do milênio de Ushedar. Os inimigos então se tornam os árabes
muçulmanos, e seu governo ímpio é descrito sucintamente. O impacto desse de-
sastre nacional sobre os seguidores do zoroastrismo é afirmado claramente: “Des-
de a criação primitiva até o dia atual nenhum mal maior do que este sobreveio”.165

165
Bd. 33,22.
156

Movimentos de resistência e rebelião contra o governo islâmico surgiram


em várias partes do território iraniano. Eles foram liderados por pessoas que legi-
timavam suas atividades associando-se às esperanças tradicionais de salvação zo-
roastrianas. No Jâmâsp Nâmag vários oráculos que se referem parcialmente a e-
ventos após o acontecimento foram preservados, testificando a efervescência apo-
calíptica dos primeiros conturbados séculos da expansão islâmica.166
Enfim, deve ser enfatizado que a escatologia apocalíptica é um dos ele-
mentos mais proeminentes do zoroastrismo e que, ao longo de toda a sua história,
a expectativa do final dos tempos foi transmitida como uma doutrina de vida. Os
zoroastrianos foram, assim, preparados espiritualmente para lidar com situações
de grave crise que sobrevieram à religião dos adoradores de Mazda, como a con-
quista macedônia do antigo Irã através de Alexandre e a destruição árabe mulçu-
mana do Império Sassânida quase mil anos depois, sendo esta última a crise mais
espetacular.
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No Período Helenístico, a Palestina também esteve sob as conquistas de


Alexandre: outro povo começava a sofrer o mesmo tipo de confrontação com anti-
gas ideias e crenças, buscando respostas para novas situações vividas, especial-
mente em tempos de crise, à semelhança dos iranianos.

3.3. Apocalíptica iraniana e judaica

3.3.1. A questão das conexões entre a literatura iraniana e a judaica

Desde que dados textuais são fundamentais para qualquer discussão sobre a
possível "influência" de ideias iranianas no desenvolvimento de ideias judaicas,
dois caminhos foram geralmente traçados para escolha: o primeiro foi a tese da
existência de uma “tradição Zoroastriana” que encontrou sua expressão máxima
na coleção de escritos sacerdotais do Oriente persa no século IX d.C., tese esta
exposta acima. O ponto frágil dessa abordagem seria o fato de ela exigir que do-
cumentos com sua forma final no século IX fossem invocados como prova da “in-
fluência” sobre a evolução que eles próprios teriam tido retrocedendo a mais de

166
Cf. KIPPENBERG, H. G. Die Geschichte der mittelpersischen apokalyptischen Traditionem.
Studia Iranica 7 (1978), p. 49-80; OLSSON, Tord. The Apocalyptic Activity. The Case of Jâmâsp
Nâmag. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near
East, p. 21-49. O Jâmâsp Nâmag (“História de Jamasp”, um dos discípulos mais próximos de Zo-
roastro) é um livro de revelações em pálavi que teria sido composto por volta do VII século d.C.
157

mil anos antes. O segundo caminho foi, então, considerar essa possibilidade im-
provável (apesar das evidências apontadas acima) e aceitar apenas os textos que
eram mais seguramente datados no primeiro milênio a.C., ou seja, o Avesta (origi-
nal e Posterior), o qual contém os textos utilizados em rituais do zoroastrismo.
Não havia muita certeza acerca da datação desses textos também, mas, como vi-
mos, eles são geralmente datados como sendo desde a primeira metade do I milê-
nio a.C. até o V século a.C.
Verificou-se então a escassez e dificuldade de interpretação dessas obras
sem recorrer à literatura tardia. Conforme já citado neste trabalho, os Gathas são
os mais importantes textos, as "músicas" de Zaratustra. Eles pertencem a um gêne-
ro de poesia inspirada no qual a principal divindade desses textos, Ahura Mazda, é
elogiado e seus oponentes, os daevas, são repelidos. Como já visto, existem ape-
nas dezessete destes hinos, agrupados em uma coleção de cinco grupos arranjados
de acordo com a métrica.167 Eles são, aliás, extremamente difíceis de serem inter-
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pretados, por várias razões distintas. Uma das razões é a reduzida dimensão do
corpus, tendo como resultado um grande número de hapax legomena; outras ra-
zões são a natureza simbólica desse gênero de composição, bem como a forma
concisa de alguns versos associada a uma aparente falta de contexto literário onde
aparecem. Como consequência importante, os estudiosos ficaram divididos em
relação à abordagem mais apropriada para a interpretação desses textos.
No início do século XX, os hinos dos Gathas eram vistos como "sermões
em verso", contendo, pensava-se, as instruções do profeta para aqueles que pre-
tendiam conquistar a sua nova religião, uma exposição (por assim dizer) dos prin-
cipais pontos das revelações de seu visionário.168 Essa interpretação permitiu aos
estudiosos seguir o que foi "ensinado" neles em poucas palavras, conforme desdo-
brado na tradição posterior. Como consequência, a tradição posterior passou a ser
vista como contendo elementos de uma “reforma” de Zoroastro que não poderia
ser atribuída aos Gathas em si, mas poderia ser postulada como tendo sido parte de
sua revelação.169 Outros estudiosos, no entanto, rejeitaram essa interpretação, em
virtude de sua noção romântica de "profeta" do Irã antigo.170 Estes se concentra-
ram mais em comparar os Gathas com o (muito mais extenso) corpus de textos

167
Como vimos, pensa-se que este arranjo possa ter se dado mais tarde em uma reestruturação da
liturgia.
168
BARTHOLOMAE, Christian. Die Gatha's des Awesta: Zarathustra's Verspredigten, p. 1-11.
169
Cf. especialmente BOYCE, M. A History of Zoroastrianism: The Early Period, p. 19-20.
170
Cf. STAUSBERG, M. Die Religion Zarathustras, p. 22-68. v. 1.
158

que estão mais estreitamente relacionados a eles na linguagem, datação e cultura:


os hinos do Rig Veda.171 Tal como os outros (os da interpretação "tradicional"),
nesta abordagem a opacidade do conteúdo dos Gathas foi compensada pela sua
interpretação como o reflexo de uma tradição ritual poética de legado indo-
iraniano. Desta forma, tudo o que os estudiosos acreditavam ser novo ou diferente
nos textos do antigo Avesta foi dissipado.172
O debate sobre a interpretação destes textos está, atualmente, longe de che-
gar a um bom termo. O que o torna importante para aqueles com interesse na pos-
sibilidade de elementos iranianos na literatura judaica é o fato de que os Gathas
parecem oferecer o mais impressionante paralelo com a noção de dois espíritos
presentes nos escritos judaicos. Estudiosos sempre estiveram conscientes de que,
no zoroastrismo “clássico”, os dois espíritos, Ahura Mazda e Angra Mainyu, con-
forme assinalado supra, eram ambos vistos como sendo contemporâneos, não-
criados, seres vivos, que representam os dois mundos opostos, do bem e do mal.
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Um não criou o outro, nem o evocou, mas eles sempre estiveram lá, uniformemen-
te equilibrados em poder e continuidade. A escatologia, nesse sistema, não prevê
uma aniquilação do Espírito do Mal, uma vez que esta não foi considerada possí-
vel; ele foi apenas destituído de poder.
Nos Gathas, no entanto, de acordo com algumas interpretações, Ahura
Mazda era superior a dois espíritos, um bom (Spenta Mainyu) e o outro mal (An-
gra Mainyu). Alguns estudiosos acreditam que estes dois espíritos são apresenta-
dos como descendentes gêmeos de Ahura Mazda,173 e todo o sistema do zoroas-
trismo mais antigo poderia, portanto, ser interpretado como um monoteísmo (des-
de que apenas Ahura Mazda seja reconhecido como não-criado), atenuado por
uma "segunda camada” dualística.174 Essa interpretação dos Gathas foi, no entan-
to, questionada por razões filológicas.175 Além disso, sérias reservas são necessá-
rias na aplicação dos conceitos de "monoteísmo" e "dualismo", os quais funciona-
ram principalmente como polêmicos instrumentos normativos em debates entre as
comunidades religiosas que surgiram muito depois do zoroastrismo.
171
Cf. especialmente HUMBACH, H. The Gathas of Zarathushtra and the Other Old Avestan
Texts, p. 72-73. v. 1; KELLENS, J.; PIRART, E. Les textes vieil-avestiques, p. 3-41. v. 1.
172
Cf. DE JONG, Albert. Views of Zoroastrian History. In: Traditions of the Magi, p. 39-75.
173
Cf. Y. 30,3 (transcrito acima).
174
Cf. a famosa declaração de Henning: “A religião de Zoroastro (como são a maioria dos movi-
mentos dualistas) é mais bem compreendida como um protesto contra o monoteísmo” (HENNING,
W. B. Zoroaster: Politician or Witch-Doctor?, p. 46; grifo do autor).
175
Cf, por exemplo, KELLENS, J.; PIRART, E. La strophe des jumeaux: stagnation, extravagance
et autres méthodes d'approche. JA 285.1 (1997), p. 31-72.
159

Os que não aceitam o uso dos Gathas como evidência para possíveis influ-
ências sobre outros textos alegam que esse uso é problemático por várias razões,
especialmente porque as evidências de que os Gathas ou mesmo qualquer outro
texto do Avesta serviram como “fonte” de informação religiosa são apenas indire-
tas.176 Mas, apesar disso, não se deve subestimar a antiga tradição presente nas
fontes persas. O mais importante para a questão das influências é o problema da
datação das fontes persas, ou de fontes antigas, indiretas, que remetam a elas.
A principal função dos textos do Avesta, dentro do zoroastrismo, é litúrgi-
ca. Os textos que chegaram até os estudiosos hoje eram (e continuam sendo para o
zoroastrismo moderno) empregados nos rituais religiosos, onde são citados por
sacerdotes. Esses textos foram compostos e transmitidos no avestan, conforme as-
sinalado acima, um idioma que não pode ser conhecido a partir de nenhuma outra
fonte e nenhum outro descendente. A preservação dos textos neste idioma é a úni-
ca (e irrefutável) prova da propagação da religião que se desenvolveu dentro do
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zoroastrismo. Ou seja: na antiguidade, “zoroastrianos” eram os iranianos que utili-


zaram um linguajar ritualístico específico. Duas outras suposições derivam disso:
primeira, que estes textos surgiram em uma sociedade onde a linguagem era emi-
nentemente oral (sociedade que não deixou outros traços de sua existência), e en-
tre os membros dessa sociedade a maior compreensão desses textos deve ter sido
uma “compreensão literal”; segunda, ao que parece, esses textos se dispersaram a
partir deste grupo “original” e foram adotados por outros grupos iranianos.
Assim sendo, pode-se supor que, neste processo, o significado dos textos
os acompanha: a imagem invocada por eles (sem dúvida, com certo exagero ro-
mântico) é a de “sacerdotes missionários” empenhados em converter os outros po-
vos iranianos à mensagem de Zaratustra.177 Tudo isso se deu entre as sociedades
não-alfabetizadas, de pequena escala, e a sobrevivência do Avesta (que era a cole-
ção dos textos em que tais rituais estavam reunidos mais de uma vez pela elite re-
al) em sua própria língua distintiva, com a preservação também de diferentes dia-
letos dentro dele, é uma testemunha fiel do processo de memorização palavra-por-
palavra efetuado por esses grupos.
Esse processo tem forte semelhança com a propagação do idioma sânscrito

176
Cf. DE JONG, Albert. The Culture of Writing and the Use of the Avesta in Sasanian Iran. In:
PIRART, E.; TREMBLAY, X. (Ed.). Zarathushtra entre l'Inde et l'Iran, p. 27-41.
177
Cf. BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: Under the Achaemenians, p. 40-48.
160

e da religião védica na Índia.178 Entretanto, entre os dois processos existe uma di-
ferença crucial: a transmissão, em textos rituais, de uma narrativa religiosa que
tem como foco uma pessoa que foi responsável pela presença dessa religião sobre
a Terra, ou seja, Zaratustra. Ele veio para ser visto, já nos tempos do avestan, co-
mo a autoridade que está por trás de todo o corpo textual do Avesta, e estes textos
por si mesmos são tidos como o mais potente instrumento em uma batalha que es-
tava sendo travada neste mundo entre as forças do bem e as do mal.
Entretanto, ao que parece, os textos por si só não foram considerados o ú-
nico instrumento presente nos rituais. Havia uma série de outras instituições e
prescrições que, regulamentadas, dominavam a vida quotidiana. Por exemplo, o
tratamento especial dado ao fogo, considerado como a mais importante manifesta-
ção do divino na Terra, e um extenso código de leis de pureza, concentrados em
duas categorias de impureza (fluidos corporais e cadáveres), cada uma com seu
próprio conjunto de prescrições. Essas prescrições foram acompanhadas pela no-
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ção de que seriam boas para qualquer pessoa, mas absolutamente obrigatórias para
aqueles que optaram por participar na luta contra as forças do mal que os textos
delineavam e, dessa forma, aceitaram a sua mensagem básica.
Os muitos paralelos com a Índia mostram que esse desenvolvimento é pos-
sível, mas também que não irá, por si só, conduzir a um conjunto de crenças e prá-
ticas unificado e coerente. O zoroastrismo é considerado notavelmente coerente.
Essa coerência foi frequentemente atribuída à competência do próprio Zaratustra
como professor da humanidade; entretanto, parece existir uma explicação histori-
camente mais plausível: trata-se da ideia de que a comparativa uniformidade do
zoroastrismo na forma como tem sobrevivido se originou de um processo de cen-
tralização e reformulação do seu núcleo textual, ritual, teológico e expressões so-
ciais, pelos reis aquemênidas.179 A evidência para tal processo é grande, apesar de
que alguns estudiosos sequer aceitam que os reis aquemênidas foram zoroastria-
nos.180 Isso certamente não pleiteia confirmar que após a intervenção dos reis o
zoroastrismo continuou a existir como algum tipo de expressão monolítica acaba-
da da religião iraniana. Todas as evidências levam, na verdade, ao oposto.
Entretanto, algumas inovações do Período Aquemênida (550 – 330 a.C.)

178
Cf., por exemplo, POLLOCK, Sheldon I. The Language of the Gods in the World of Men: San-
skrit, Culture, and Power in Premodern India, p. 37-280.
179
Cf. DE JONG, Albert. The Contribution of the Magi. In: CURTIS, Vesta S.; STEWART, S.
(Ed.). Birth of the Persian Empire, p. 85-99.
180
Quanto a essa questão, cf. adiante.
161

tiveram efeito duradouro sobre o desenvolvimento do zoroastrismo e parecem ter


sido propagadas com o apoio dos reis. Duas delas são de ordem técnica, organiza-
cional: o calendário zoroastriano,181 uma fusão do cálculo egípcio acerca do ano
com a prática iraniana de nomear os meses e dias com base em um “calendário”
de divindades fixo, e a introdução de um culto do fogo no templo, com uma rees-
truturação do sacerdócio.182
O importante a destacar é a evidência que sugere que o tribunal dos sacer-
dotes aquemênidas, composto pelos Magos, deu forma a uma grande e coerente
narrativa de sua religião em termos de uma história do mundo, começando com
um pacto selado entre os dois espíritos, segundo o qual haveria uma guerra entre
eles, neste mundo, por um período de tempo limitado, ou seja, nove mil anos, e
terminando com a promessa de uma eventual derrota do mal e recompensas para
aqueles que contribuíram para a vitória final do bem.183 Dentro dessa história, co-
mo a tradição exige, a aparição de Zoroastro marcou um ponto de reviravolta e
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esta se dá com o nascimento de um de seus filhos, já perto do final dos tempos,


anunciando a batalha final.
A evidência de que isso seja uma reestruturação aquemênida consiste de
uma observação negativa e outra positiva. A negativa é clara: a narrativa, na forma
como se tornou conhecida, não é encontrada nos textos antigos do Avesta, nem
nos recentes, apesar de que estes frequentemente fazem alusão a elementos da
mesma. A positiva é o fato de que, no século IV a.C., na Grécia, essa narrativa foi
bem conhecida como sendo o principal resumo da “filosofia dos magos”, algo que
foi ensinado aos príncipes da Pérsia184 e uma ideia que foi estudada e frequente-
mente invocada pelos filósofos gregos que procuravam exemplos de não-gregos
que considerassem a possibilidade de um princípio eterno do mal.185
De fato, o nome de Zoroastro era já difundido na misteriosa sabedoria ori-
ental conhecida pelos gregos antigos. No Período Helenístico da história persa

181
Cf. BOYCE, Mary. Further on the Calendar of Zoroastrian Feasts. Iran 43 (2005), p. 1-38 (com
referências).
182
Cf. BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: Under the Achaemenians, p. 225-228.
183
Cf. DE JONG, Albert. The Contribution of the Magi. In: Ibidem.
184
Cf. PSEUDO-PLATO. Greater Alcibiades 1.121-122. Sobre a discussão da autoria platônica ou
não, cf. BLUCK, R. S. The Origin of the Greater Alcibiades. CQ 3.1/2 (1953), p. 46-52, e
CLARK, Pamela M. The Greater Alcibiades. CQ 5.3/4 (1955), p. 231-240. De qualquer forma, a
obra é normalmente datada em cerca de 390 a.C. (cf. YOUNG, Charles M. Plato and Computer
Dating. In: SMITH, Nicholas D. (Ed.). Plato: Critical Assessments, p. 29-49. v. 1).
185
PLUTARCO. De Iside et Osiride 46-47; DIÓGENES LAÉRCIO. Bivoi kaiV gnw~~mai tw~~n e*n
φilosoφivai eu*dokimhsavntwn (Vida e opiniões dos mais eminentes filósofos) 1.6-9 (Livro 1: Pro-
êmio); DE JONG, Albert. Traditions of the Magi, p. 157-228.
162

(330 – 141 a.C), muitos textos esotéricos ou com caráter de magia eram escritos
usando o nome de Zoroastro, sendo ele estimado como um dos maiores magos que
existiram até então. Nenhum desses escritos provém do próprio profeta; entretan-
to, seu status famoso atesta a sua antiguidade já remota nessa época: “Zoroastro
desenvolveu uma reputação como um mestre de conhecimento esotérico, quando
Ele e seus seguidores chegaram a ser associados com os MAGOS descritos por
Heródoto”.186
Em grande parte, as profecias de Zoroastro compartilhavam o teor de al-
guns visionários do judaísmo tardio: dentre outros temas, são mensagens revolu-
cionárias, de pureza religiosa e justiça social, dirigidas contra sacerdotes corruptos
e pessoas poderosas, pessoas essas com muita influência política.
O zoroastrismo “clássico” pode, portanto, ser atribuído a uma fonte mais
recente que a virada do II para o I milênio a.C., embora a transmissão do conhe-
cimento religioso continuasse a ser um processo exclusivamente oral. Em vez da
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antiga imagem romântica de sacerdotes missionários enviados por Zoroastro para


converter os iranianos à sua mensagem, podemos ter uma hipótese historicamente
mais confiável de sacerdotes sob o patrocínio dos reis que se espalharam entre os
iranianos e transmitiram uma expressão mais coerente da religião. Esta é a expres-
são do zoroastrismo que sobreviveu e foi assimilada por não-iranianos (sobretudo
gregos), que queriam saber em que os iranianos acreditavam. Seus registros reve-
lam ainda uma variedade de opiniões sobre vários assuntos, incluindo uma que
tem frequentemente aparecido nas discussões acerca da relação entre Qumran e
Irã: a posição teológica conhecida como zurvanismo (ramificação do zoroastrismo,
surgida provavelmente durante o Período Aquemênida e oficializada bem mais
tarde, já no Período Sassânida, 224 d.C. – 651),187 que apresenta os dois espíritos
como os filhos de um deus supremo do Tempo (Zurvan) e, assim, mais uma vez,
reflete a doutrina dos dois espíritos presentes em alguns textos de Qumran até de
forma mais acentuada do que no zoroastrismo “clássico”.188
O zurvanismo é de fato um assunto problemático na história do estudo do
zoroastrismo, tendo já sido considerado como o maior desafio para o zoroastrismo

186
SKJAERVO, P. Oktor. Zoroaster, Zoroastrianism. In: SAKENFELD, Katharine D. (Ed.). NIB,
p. 993. v. 5 (grifo do autor).
187
Sobre esta ramificação do Zoroastrismo “clássico”, cf. FRYE, Richard N. Zurvanism Again.
HTR 52.2 (1959), p. 63-73.
188
Cf., por exemplo, MICHAUD, Henri. Un mythe zervanite dans un des manuscrits de Qumrân.
VT 5.2 (1955), p. 137-147.
163

“ortodoxo”, com muitos aspectos que os estudiosos consideravam inconciliáveis


com o zoroastrismo “real”, como, por exemplo, o fatalismo, o qual estaria em o-
posição à doutrina do livre-arbítrio ensinada por Zoroastro. Para alguns, o zurva-
nismo seria um desvio, uma “heresia” zoroastriana. Entretanto, já foi mostrado
que há pouca evidência apoiando a ideia do zurvanismo ser uma “heresia zoroas-
triana”, devendo ser entendido principalmente como uma das diversas variantes do
mito cosmogônico principal.189
O importante para o caso da possível influência persa no judaísmo tardio é
discutir as vias possíveis através das quais as ideias do antigo Irã podem ter se tor-
nado familiar para os judeus, como empréstimo de palavras e imagens. Embora a
situação limitada do corpus iraniano faça com que uma conclusão definitiva seja
limitada, uma fonte iraniana para a ideia da ressurreição no livro de Daniel deve
ser levada em conta de forma muito veemente: o surgimento histórico do gênero
apocalíptico.
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Existem dois diferentes possíveis contextos que poderiam explicar a pre-


sença de ideias de origem iraniana nos escritos da Judeia do II e I séculos a.C. O
primeiro é de conhecimento geral, já o segundo nem tanto, por razões que serão
discutidas em seguida.
O primeiro contexto é o da já extensivamente documentada interação per-
sa-judaica no Período Aquemênida (550 – 330 a.C., mais precisamente entre 550 –
330 a.C.), quando a província de Yehud (província judaica, remanescente do Rei-
no de Judá) era parte do Império Aquemênida. Essa interação pode ser traçada tan-
to na documentação de fontes militares, especialmente as da guarnição judaica em
Elefantina, bem como na própria Bíblia hebraica, particularmente nos livros de
Esdras e Neemias. Esses textos refletem uma interação na vida real dos habitantes
da província de Judá e seus compatriotas no Egito (e Mesopotâmia) com as auto-
ridades iranianas. A impressão geral a partir dessas fontes é de uma relação bas-
tante amigável. Existe uma notável ausência de invectivas contra a religião irania-
na. Isso poderia ser explicado de duas formas diferentes, ambas apoiadas por evi-
dências históricas e estruturais.
Primeiramente, os persas não impuseram, como regra, sua religião sobre as
nações que lhes estavam sujeitas. As razões para isso não são claras, mas devem

189
Cf. SHAKED, Shaul. The Myth of Zurvan: Cosmogony and Eschatology. In: GRUENWALD,
I.; SHAKED, S.; STROUMSA, G. G. (Ed.). Messiah and Christos: Studies in the Jewish Origins
of Christianity Presented to David Flusser on the Occasion of His 75th Birthday, p. 219-240.
164

ser procuradas, pelo menos parcialmente, em uma prática de estabelecer um bom


estadismo. O Império Persa era uma novidade na história do mundo; nunca antes
tinha havido um império de tais dimensões, incluindo tal diversidade de nações,
cada qual caracterizada por seus próprios costumes e tradições, alguns dos quais
classificados atualmente como pertencentes à sua própria “religião”. Evidências a
partir do Egito e da Bíblia sugerem que os aquemênidas fizeram inquirições às
classes representativas de cada nação dentro de seus territórios recém adquiridos
acerca de suas tradições particulares com o intuito de reunir essas tradições em
uma coleção adequada, de modo que essas tradições pudessem ser consideradas
como leis ou normas “nacionais” para essas províncias, com (pode-se assim pen-
sar) leis complementares que regulariam as obrigações em relação ao governo per-
sa.
A presença persa nessas terras seria, portanto, intensamente percebida em
nível do funcionalismo de alto escalão, com a chegada de um sátrapa persa e sua
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comitiva e a obrigação de pedir permissão oficial (real) em casos importantes. En-


tretanto, é improvável que essa autoridade tenha interferido na vida da maioria da
população, incluindo os sacerdotes do templo, cuja gerência poderia ser melhor se
deixada por conta do direito consuetudinário local.
Em outras palavras, não havia uma política religiosa específica por parte
dos aquemênidas e, portanto, era improvável que as sensibilidades religiosas fos-
sem feridas em uma escala suficientemente grande para causar sérios problemas.
Não existem evidências para a existência de movimentos sediciosos entre os habi-
tantes da Pérsia judaica; além disso, as comunidades israelitas em outras partes do
Império Persa (Média e Mesopotâmia, por exemplo) mantiveram-se em grande
número nas terras para as quais os seus antepassados tinham sido trazidos à força,
aparentemente satisfeitos com sua posição.
Um segundo fator que poderia explicar a ausência de tratamento hostil da
religião iraniana na literatura bíblica e judaica é, sem dúvida, o fato de que o zoro-
astrismo em si mesmo não foi caracterizado pelos dois alvos tradicionais das po-
lêmicas bíblicas: certo tipo de politeísmo e o culto a estátuas representativas de
divindades. Não há duvidas de que os adeptos do zoroastrismo na antiguidade a-
doravam uma variedade de seres divinos, e que o zoroastrismo pode ser rotulado
como “politeísta”, mas acima dos nomes de todas essas divindades estava o su-
premo deus Ahura Mazda, o qual era visto como sendo o criador de todas elas. O
165

paralelo entre Ahura Mazda com seus companheiros celestes (os yazatas) e o Deus
de Israel com sua corte celestial cheia de anjos é um paralelo estrutural.
Quanto a imagens de culto, é sabido que os persas não as tinham como um
elemento fixo de sua religião. Há alguma evidência de que o culto a estátuas de
divindades foi introduzido na prática da religião persa no Período Aquemênida,
mas nunca alcançou o status de elemento característico dessa religião.190 Ao con-
trário, parece que o zoroastrismo permaneceu por um período notavelmente longo
como uma religião interna, doméstica, no qual os rituais em maior escala ocorre-
ram em um local preparado para essas ocasiões (pela purificação e pelo desenho
de um sistema de sulcos na terra), o qual poderia ser abandonado posteriormente,
sem deixar, portanto, vestígios arqueológicos.
Essas indicações de entendimento amigável entre judeus e iranianos não
desapareceram com a destruição do Império Persa por Alexandre. Ao contrário, as
configurações iranianas para histórias judaicas parecem proliferar durante o Perío-
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do Helenístico. Esses livros são frequentemente repletos de dificuldades cronoló-


gicas e geográficas, pois eles projetam (parte de) sua história para (ficticiamente
lembradas) realidades do passado distante. Como consequência, há muito pouca
evidência factual para uma interação judaico-iraniana nesses textos. Os exemplos
bem conhecidos são o livro de Daniel, com sua menção intrigante de Dario, o Me-
do; o livro de Ester, situado no Império Persa e contendo vários nomes e palavras
iranianas; o livro de Tobite, também situado, pelo menos parcialmente, no Irã
(Ecbátana e Raga, na Média), e apresentando um demônio iraniano (Asmodeus); e
ainda, talvez, o livro de Judite, cujo único elemento iraniano é o nome de seu anti-
herói trágico, Holofermes. Fragmentos de vários desses textos foram encontrados
entre os Manuscritos de Qumran, juntamente com outros textos pertencentes a um
gênero semelhante: contos judaicos edificantes em um cenário iraniano.191
Vale ressaltar dois aspectos: o primeiro é (novamente) o contraste com a
explícita hostilidade para com os selêucidas mostrada na literatura judaica; o se-
gundo é o fato de que “cenários persas” são também muito proeminentes nas cha-
madas novelas helenísticas, romances de corte situados em locais estrangeiros.
Aqui, também, tem sido frequentemente sugerido que os elementos persas nessas
histórias não passam de decoração, mas a questão ainda está longe de ser resolvi-

190
Cf. BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: Under the Achaemenians, p. 216-218.
191
Voltaremos à questão da dominação política persa sobre os judeus adiante, quando da análise
das interações culturais.
166

da.192
O segundo contexto possível que poderia explicar os elementos iranianos
presentes na literatura judaica do chamado Período do Segundo Templo é o cres-
cimento dos Partos (povo oriundo dos iranianos antigos que viviam no norte, o
qual inicia o Período Parta da história iraniana em 141 a.C.). Por volta do início do
III século a.C., eles se tornaram os mais notáveis oponentes dos Selêucidas (os
quais eles acabaram expulsando do Irã e da Mesopotâmia) e uma das causas do
desaparecimento final destes. Desde que as guerras dos Selêucidas com os Ptolo-
meus são muito bem documentadas, e que são mais imediatamente úteis aos histo-
riadores do judaísmo e do “oriente próximo romano”, a história dos Selêucidas foi
frequentemente escrita a partir de uma perspectiva inteiramente “ocidental”, como
se a perda do domínio selêucida para os partos no Irã e na Mesopotâmia tivesse
importância apenas secundária. Certamente, no entanto, o surgimento de uma no-
va e inesperada força poderosa de origem persa a partir do Oriente deve ter reper-
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cutido de forma semelhante entre gregos e judeus, e existem muitos vestígios do


seu impacto direto na vida dos judeus.
A partir desses dados, a controvérsia acerca da influência persa continua na
pesquisa moderna, mas agora parece que a tendência a admitir a influência irania-
na tem prevalecido. De qualquer forma, a questão divide os estudiosos. Os recen-
tes defensores de uma influência iraniana determinante são Mary Boyce pelo lado
dos especialistas em literatura iraniana e Norman Cohn pelo lado dos historiadores
culturais.193 Por outro lado, são ouvidas vozes críticas que enfatizam a dificuldade
em provar as influências iranianas, normalmente com referência à datação tardia

192
Cf. especificamente DAVIS, Dick. Panthea’s Children: Hellenistic Novels and Medieval Per-
sian Romances, p. 1-7.
193
Cf., por exemplo, BOYCE, M.; GRENET, F. Zoroastrian Contributions to Eastern Mediterra-
nean Religion and Thought in Greco-Roman Times. In: A History of Zoroastrianism: Zoroastrian-
ism under Macedonian and Roman Rule, p. 361-490, e COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World
to Come, p. 77-118, 141-231. Entre os mais antigos a pleitear a influência persa está CARTER, G.
W. Zoroastrianism and Judaism, p. 23-103. Além das obras de Boyce e Cohn, entre os que pleitei-
am a influência persa, cf. especialmente SHAKED, Shaul. Iranian Influence on Judaism: First Cen-
tury B.C.E. to Second Century C.E. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: Introduc-
tion: The Persian Period, p. 308-325. v. 1; e HINNELLS, J. R. Zoroastrian Influence on the Ju-
daeo-Christian Tradition. JCOI 45 (1976), p. 1-23. Entre os que rejeitam, encontram-se BARR,
James. The Question of Religious Influence: The Case of Zoroastrianism, Judaism, and Christiani-
ty. JAAR 53.2 (1985), p. 201-235; e HANSON, P. D. The Phenomenon of Apocalyptic in Israel: Its
Background and Setting. In: The Dawn of Apocalyptic, p. 1-31 (Hanson não chega a negar a influ-
ência persa, mas não admite que a origem das noções apocalíptico-escatológicas seja persa). Re-
centemente, Charles D. Isbell publicou um artigo no qual, a partir de argumentos puramente lin-
guísticos e pouco convincentes, defende a proposta minimalista, ou seja, de que não houve qual-
quer influência persa sobre o judaísmo antigo (cf. ISBELL, C. D. Zoroastrianism and Biblical Re-
ligion. JBQ 34.3 (2006), p. 143-154).
167

dos escritos em pálavi. Argumentos para desenvolvimentos no interior do judaís-


mo como uma explicação suficiente para o surgimento de novas crenças escatoló-
gicas, sem influência estrangeira, tem sido frequentemente apresentados.
Além disso, há uma crescente tendência em demonstrar que as ideias hele-
nísticas, judaicas e gnósticas poderiam ter influenciado as noções antropológicas,
cósmicas e apocalípticas dos livros em pálavi. Assim, segundo alguns estudiosos,
a descrição das idades do mundo simbolizadas por diferentes metais no Bahman
Yasht, por exemplo, seria dependente do livro de Daniel.194 As especulações sobre
microcosmos e macrocosmos em alguns textos em pálavi têm sido também apre-
sentadas como sendo outro exemplo de influência da antiguidade tardia sobre o
pensamento iraniano.
Embora não seja incomum que ideias semelhantes se desenvolvam de for-
ma independente quando sob circunstâncias similares (ou até mesmo diferentes),
“não parece absolutamente provável que tantas semelhanças pudessem ter sido
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formados em paralelo de forma independente, e, a despeito das dificuldades cro-


nológicas da documentação, na maioria dos pontos paralelos pode-se sentir bas-
tante confiante de que as ideias eram nativas ao Irã”.195 Entre os temas paralelos
encontram-se, especialmente: a oposição entre a divindade do Bem e o Mal e entre
anjos e demônios; paraíso e inferno; chegada de um Messias salvador; eventos
cósmicos durante o final do mundo; a batalha final entre Bem e Mal seguida de
um período de milênio; a ressurreição do corpo e vida eterna; e julgamento indivi-
dual e universal escatológicos.
A questão da influência religiosa no que diz respeito às ideias e doutrinas é
de tratamento delicado, uma vez que a evidência está aberta a diferentes interpre-
tações. Antes de a influência de uma religião sobre outra poder ser avaliada corre-
tamente, duas condições básicas precisam ser preenchidas: primeiro, a prioridade
no tempo para uma ideia específica de uma das religiões sujeitas à comparação;
segundo, a possibilidade de contato religioso e cultural entre as religiões envolvi-
das. Ambas as condições básicas estão presentes no caso de influência persa sobre
o judaísmo e cristianismo.
194
Cf. DUCHESNE-GUILLEMIN, Jacques. Apocalypse juive et apocalypse iranienne. In: BI-
ANCHI, Ugo; VERMASEREN, M. J. (Ed.). La soteriologia dei culti orientali nell’Impero
romano: atti del Colloquio internazionale su la soteriologia dei culti orientali nell’Impero
romano, Roma, 24-28 settembre 1979, p. 753-761; GIGNOUX, Philippe. Le livre d’Ardâ Vîrâz:
translittération, transcription et traduction du texte pehlevi, p. 58-64.
195
SHAKED, Shaul. Iranian Influence on Judaism: First Century B.C.E. to Second Century C.E.
In: Op. cit. p. 324.
168

Conforme já assinalado anteriormente, uma escatologia apocalíptica é ates-


tada no zoroastrismo pelo menos no V século a.C. e ela é, além disso, bem inte-
grada na cosmovisão iraniana. Além disso, sabe-se que judeus e persas estavam
em estreito contato geográfico do Período Aquemênida até a queda do Império
Sassânida (VII século d.C.). A Palestina esteve sob o domínio aquemênida por
duzentos anos, desde 538 a.C. até a conquista macedônia. A enorme população
judaica na Mesopotâmia permaneceu sob a soberania iraniana também nos Perío-
dos Parta (141 a.C. – 224 d.C.) e Sassânida (224 – 651 d.C.). O próprio Irã incluiu
importantes comunidades judaicas em seu território a partir do Período Helenísti-
co. Da mesma forma, na Ásia Menor, os iranianos e judeus também tinham gran-
des oportunidades para contatos pessoais e culturais, uma vez que ambos os gru-
pos estavam representados por importantes comunidades locais. Desde a liberta-
ção dos judeus do exílio por Ciro II (aclamado como um Messias no Dêutero-
Isaías), havia fortes vínculos de solidariedade política entre os judeus e os per-
sas.196
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Conforme demonstrado por escritores gregos e romanos citados acima, as


crenças iranianas eram bem conhecidas na antiguidade e não poderiam ter passado
despercebidas no meio judeu helenístico, tal como indicado por Filo de Alexandri-
a. Pode-se ainda verificar afinidades religiosas e sociais entre as classes sacerdo-
tais de judeus e persas no Período Helenístico. Entre os judeus, os zadoquitas de-
sempenhavam as mesmas funções religiosas e ocupavam a mesma posição na so-
ciedade que os magos entre os persas.197 Esses interesses comuns teriam facilitado
os contatos tanto em nível pessoal quanto oficial e, de fato, é possível distinguir
uma vertente particular de ideias iranianas influenciando os escritos zadoquitas
pré-essênios.198
O cerne da questão precisa ser enfrentado; então perguntamos: se for o ca-
so, quanto custa à tradição judaico-cristã dever ao apocalipsismo persa? Não

196
Quanto a isso, cf. adiante.
197
O termo “mago” (do avestan môghu) designava o membro de uma tribo sacerdotal originária da
Média, no Irã ocidental (cf. HERÓDOTO. História, I.101; ESTRABÃO 15.3.1). Essa tribo teria se
convertido ao zoroastrismo por volta do VII século a.C. A palavra aparece apenas uma vez nos
Gathas (Y. 44,25) no composto môghutbish (“o que odeia ou injuria os magos”), embora apareça o
cognato maga, com várias conotações (“presente”, “dedicação”, “tesouro”, “irmandade”, “sacra-
mento”, “tarefa”), seis vezes nos Yt. do Khorda Avesta (o “Pequeno Avesta”): 2,11; 11,14;
16,11.16; 17,7 (duas vezes), e o adjetivo magavan (“ser magnânimo”, “liberal”, “generoso”) duas
vezes, em 6,7 e 16,15 (Cf. BOYCE, M. Textual Sources for the Study of Zoroastrianism, p. 41). O
termo é ligado ao sânscrito maghá (“dádiva”, “magnanimidade”, “generosidade”).
198
HULTGÅRD, Anders. Prêtres juifs et mages zoroastriens: influences religieuses à l’époque
hellénistique. RHPR 68 (1988), p. 415-428.
169

houve empréstimo direto e geral da escatologia apocalíptica iraniana como tal pelo
judaísmo e cristianismo. Em vez disso, a influência deve ter se dado de forma in-
direta, porém não menos importante. O encontro com a religião iraniana produziu
o estímulo necessário para o desenvolvimento pleno de ideias que estavam lenta-
mente em curso dentro do judaísmo. A personificação do mal em forma de figuras
como Satã, Belial ou Diabo, o importante aumento da oposição dualista entre Bem
e Mal, bem como seu confronto escatológico são ideias que provavelmente não
emergiram sem influência externa. A doutrina dos dois espíritos conforme preco-
nizada pela comunidade de Qumran fornece um exemplo notável do impacto da
religiosidade persa (cf. assinalado supra quanto ao zurvanismo), a qual teve efeitos
amplos e duradouros nas tradições judaica e cristã.199
Garcia Martinez, dentre outros, conclui que a comunidade de Qumran, a
qual deu origem aos manuscritos, foi provavelmente muito influenciada pelas i-
deias persas. As figuras de anjos e demônios revelariam sinais dessa influência.
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Por exemplo, um fragmento da gruta 4 menciona a “ponte sobre o abismo”, a qual


não tem precedente na Bíblia hebraica; ela parece ser uma referência à Ponte
Chinvat zoroastriana, a qual deve ser atravessada pela alma do falecido em seu
caminho para o céu, sobre um abismo, no qual os maus caíam.200 O forte dualismo
persa parece ter-se infiltrado no pensamento judaico descrito em O Rolo da Guer-
ra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas. Essa obra contém ainda outros
elementos que parecem advir da apocalíptica iraniana.201
Assim, pode-se afirmar que o surgimento de uma escatologia apocalíptica
entre judeus e cristãos no Período Helenístico foi impulsionado pelo encontro fe-
cundo com uma religião profundamente preocupada com a luta entre bem e mal e
firmemente assegurada da restauração final do mundo.
Muitas ideias persas perpassam também o livro de Daniel, cuja redação fi-
nal se dá no tempo da perseguição de Antíoco. Há uma ressurreição dos mortos,
um julgamento final com recompensa e punição, e a ideia de um messias salvador.
No capítulo 2, o sonho de Nabucodonosor sobre uma estátua com cabeça de ouro,

199
Cf. PHILONENKO, Marc. La doctrine qoumrânienne des deux Esprits: Ses origines iraniennes
et ses prolongements dans le judaïsme essénien et le christianisme antique. In : WIDENGREN,
Geo; HULTGÅRD, Anders; PHILONENKO, Marc (Ed.). Apocalyptique iranienne et dualisme
qoumrânien, p. 163-212.
200
GARCÍA MARTINEZ, Florentino. Iranian Influences in Qumran? In: McNAMARA, Martin
(Ed.). Apocalyptic and Eschatological Heritage: The Middle East and Celtic Realms, p. 37-49;
aqui p. 39-41.
201
Ibidem, p. 43-49.
170

peito e braços de prata, barriga e coxas de bronze, pernas de ferro e pés de ferro
misturado com argila é interpretado por Daniel como a representação de cinco pe-
ríodos da história mundial: as várias partes representam cinco reinados mundiais
sucessivos, progressivamente inferiores, sendo o primeiro o do Rei Nabucodono-
sor. Após o quinto reinado, o Deus de Israel estabelecerá um novo reinado, o qual
suplantará todos os outros e será eterno.
Há também semelhança com a já citada visão encontrada no Bahman Ya-
sht, em que Zoroastro vê uma árvore com ramos de ouro, prata, aço e ferro mistu-
rado com argila, e estes elementos também são explicados como sendo representa-
tivo de quatro períodos da humanidade. Esse yasht se parece com os apocalipses
judaicos tanto na forma quanto no conteúdo; a influência persa é possível, mas a
dificuldade de datação do material persa deixa a discussão em aberto.
Em ambos os relatos (judaico e persa), o rumo das fases futuras é revelado
numa visão de um sonho simbólico, o qual é então interpretado ao homem que a
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teve; em ambos os casos as idades ou reinos são representados por uma sequência
de metais, indo do ouro ao ferro, ligadas como membros de um organismo, uma
árvore num caso e uma grande estátua no outro.
O texto da narrativa de Daniel é considerado tardio (II século a.C), data da
formação do livro. Entretanto, a narrativa pode ter existido muito antes dessa épo-
ca, até mesmo em forma escrita; o autor das legendas de Daniel escreve sobre os
Impérios Babilônico e Persa, e provavelmente deve ter obtido essa história de uma
fonte babilônica, persa, ou grega (Hesíodo), e é certo que a origem dela não é ju-
daica. Influência persa também pode ser percebida em outras obras judaicas do
período intertestamentário, como 2 Macabeus e 2 Enoque.
Dois pontos de discordância ainda resistem no debate sobre o tema das in-
fluências persas e iranianas no judaísmo, especialmente as influências sobre as
origens do apocalipsismo judaico antigo: se as mais antigas partes da literatura
medieval zoroastriana, preservada basicamente em pálavi, contêm tradições anti-
gas o bastante para serem consideradas fontes potenciais de influência, e se tais
influências podem ser demonstradas ou até mesmo possíveis cronologicamente.
Podemos afirmar que ambos os pontos, se colocados em forma de perguntas, po-
dem ser respondidos positivamente. Conforme atestamos acima, os argumentos
para responder afirmativamente estão na evidência da continuidade de ideias esca-
tológicas do Avesta original na tradição tardia (pálavi) e nas evidências das cita-
171

ções de autores gregos e latinos do Período Helenístico.


No volume de Uppsala, por exemplo, Hultgård e Widengren também con-
sideram totalmente plausível a afirmação positiva acerca desses dois pontos.202
Em obra mais recente, em coautoria com Hultgård e M. Philonenko, Widengren
corrobora o mesmo ponto de vista em relação ao esquema das quatro eras ou rei-
nos para a história universal, e Hultgård em relação especificamente ao Bahman
Yasht.203
Em uma resenha bastante crítica sobre a obra conjunta desses três autores
(Apocalyptique iranienne et dualisme qoumrânien, 1995), Philippe Gignoux ar-
gumenta que, baseado em sua pesquisa e na edição crítica de Carlo G. Cereti (The
Zand î Wahman Yasn: A Zoroastrian Apocalypse, 1995), o estrato mais antigo dos
textos em pálavi não pode ser anterior ao Período Sassânida (224 d.C. – 651
d.C.).204 Entretanto, o que deve ser levado em conta não são as recentes camadas
redacionais da literatura persa tardia, mas sim a antiguidade das tradições (moti-
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vos) que possam ser identificadas nessa literatura.


Norman Cohn também se coloca no lado oposto à abordagem de Gig-
noux.205 De acordo com ele, foi o próprio Zoroastro que, entre 1500 e 1200 a.C.,
adaptou o mito comum no antigo Oriente Próximo acerca da luta milenar entre o
deus (ou deuses) da ordem e as forças do Caos. O profeta teria usado uma teologia
linear da história cujo clímax foi a batalha final e decisiva, na qual o Caos seria
derrotado para sempre. Ele afirma ainda que, embora a historiografia zoroástrica
não tenha penetrado no Javismo israelita, ela teria influenciado diretamente as
concepções de história de vários grupos judeus e cristãos primitivos, como conse-

202
Cf. HULTGÅRD, Anders. Forms and Origins of Iranian Apocalypticism. In: HELLHOLM, D.
(Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near East, p. 387-411; WIDENGREN,
Geo. Leitende Ideen und Quellen der iranischen Apokalyptik. In: Ibidem, p. 77-162. De fato, o
zoroastrismo não se configura como uma religião ou modo de pensar que produz obras apocalípti-
cas nos moldes do judaísmo, ou seja, obras que possam ser consideradas, como um todo, “apoca-
lípticas”. Entretanto, isso não significa que traços e elementos apocalípticos não sejam encontrados
em obras da tradição zoroastriana; ao contrário, perpassam em grande escala toda essa literatura.
203
Cf. WIDENGREN, Geo. Les quatre âges du monde. In: WIDENGREN, Geo.; HULTGÅRD,
A.; PHILONENKO, M. (Ed.). Apocalyptique iranienne et dualisme qoumrânien, p. 23-62;
HULTGÅRD, A. Mythe et histoire dans l’Iran ancien: Etude de quelques thèmes dans le Bahman
Yašt. In: Ibidem, p. 63-162. Cf. também HULTGÅRD, A. Bahman Yasht: A Persian Apocalypse.
In: COLLINS, J. J.; CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). Mysteries and Revelations, p. 114-134, e
ainda HULTGÅRD, A. Persian Apocalypticism. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of
Apocalypticism, p. 39-83. v. 1.
204
GIGNOUX, Philippe. L’Apocalyptique iranienne est-elle vraiment ancienne? Notes critiques.
RHR 216.2 (1999), p. 213-227.
205
Cf. COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 77-118, 141-193, e Idem. How Time
Acquired a Consummation. In: BULL, M. (Ed.). Apocalypse Theory and the Ends of the World, p.
21-37.
172

quência do exílio babilônico. É discutível se Cohn consegue demonstrar de forma


convincente a comprovação para cada uma das muitas áreas de influência que ele
alega.
Vale ressaltar que o Bahman Yasht, por exemplo, não é considerado, origi-
nalmente, um “apocalipse”; ele é mais bem definido por Hultgård como “uma
compilação secundária de material apocalíptico de diversas origens”.206 De qual-
quer forma, esse é o único texto tradicionalmente chamado de “apocalipse persa”
como um todo, pois apresenta elementos característicos de uma obra apocalíptica,
tais como o diálogo do profeta com a divindade (Zoroastro e Ahura Mazda), a pe-
riodização da história (visão das quatro eras e, posteriormente, das sete idades do
mundo, ambas com ligações com o livro de Daniel), sinais de anúncio do fim do
milênio de Zoroastro, a investida final dos inimigos e demônios nas terras do Irã, a
visão do homem rico no inferno e do homem pobre no paraíso, e outros eventos
relativos ao fim dos tempos.
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O fato é que os livros em pálavi do início do Período Islâmico normalmen-


te remetem suas ideias apocalípticas a uma antiga tradição oficial a qual pode ser
muito bem situada no V e VI séculos da Era Sassânida (224 d.C. – 651), época em
que a escrita avestan era usada com o intuito de se registrar textos considerados
sagrados (primeiramente aqueles que eram recitados nas liturgias). Somente algu-
mas cópias escritas do Avesta completo deviam estar em circulação, e a transmis-
são oral ainda precisava ser utilizada, seja concernente a textos no antigo avestan
ou a tradições religiosas. O processo de tradução e compilação de textos em aves-
tan para línguas iranianas mais novas provavelmente se iniciou no mesmo período,
resultando em uma coleção oficial das tradições em avestan com traduções em pá-
lavi no Período Sassânida tardio, à qual também tradições míticas e lendárias teri-
am sido acrescentadas. A partir de então teria emergido um corpus textual em pá-
lavi que se constituía basicamente de uma tradução das tradições em avestan, mas
que foi em grande medida também uma reinterpretação dessas tradições. Esses
textos, transmitidos tanto em forma oral quanto escrita, vieram a ser a fonte prin-
cipal para os compiladores dos livros em pálavi com respeito às crenças escatoló-
gicas e apocalípticas.
A questão que se impõe, novamente, é o quanto se pode retroagir no tempo

206
Cf. HULTGÅRD, Anders. Forms and Origins of Iranian Apocalypticism. In: HELLHOLM, D.
(Ed.). Op. cit. p. 388; Idem. Persian Apocalypticism. In: Op. cit. p. 45-46.
173

a escatologia apocalíptica do Período Sassânida tardio. Assumindo-se que as prin-


cipais ideias dessa escatologia sassânida foram baseadas em textos escritos em
avestan quando esse dialeto era ainda língua viva (isto é, antes do início do III sé-
culo a.C.), pode-se ter mais um critério útil (além dos citados acima) para a data-
ção dessas tradições. O problema neste caso é, contudo, que não se pode saber em
que medida os sacerdotes zoroastrianos compuseram novos textos em avestan du-
rante os Períodos Parta (141 a.C – 224 d.C.) e Sassânida (224 d.C. – 651). Sendo
um dialeto iraniano antigo, o avestan como língua viva deve ter sido substituído
pelos novos dialetos bem antes da Era Sassânida, mas continuou a viver como lín-
gua ritual do zoroastrismo como o faz ainda atualmente. Alguns textos no Avesta
Mais Novo (que é heterogêneo) apresentam um caráter epigônico com um uso de-
ficiente do avestan, o qual revela que os autores não dominavam mais esse dialeto.
Os textos podem ter sido compostos em um avestan imperfeito durante to-
do o Período Sassânida; entretanto, pode-se assumir também que, no caso das tra-
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dições do avestan nas quais os textos do Zend em pálavi foram baseados, eles e-
ram genuínos e tiveram uma origem pré-sassânida.207 Caso contrário, seria difícil
supor que os sacerdotes sassânidas compusessem os textos primeiramente em a-
vestan para depois comentá-los em pálavi. 208 No entanto, o argumento linguístico
é complexo e nem sempre aplicável; assim sendo, se faz necessário o uso dos ou-
tros argumentos que endossam o linguístico, a fim de que se demonstre a continu-
207
Cf. SHAKED, Shaul. Eschatology and Vision. In: Dualism in Transformation: Varieties of Re-
ligion in Sasanian Iran, p. 27-52; aqui p. 29-30. Este é o segundo capítulo dessa obra, onde Shaked
aborda o tema da escatologia zoroastriana no que tange ao quando a fé e a visão apocalíptica se
desenvolveram (p. 27-37). Embora não compartilhando totalmente o mesmo pressuposto de outros
estudiosos como Mary Boyce e Anders Hultgård, os quais defendem que essas noções surgiram
nas camadas iniciais do pensamento de Zoroastro, Shaked conclui que um núcleo em avestan foi
reformulado para atender às predileções medievais. Desse modo, ele implicitamente rejeita a su-
gestão de Philippe Gignoux e outros de que a maior parte desse material data do século VII d.C.
em diante, quando os zoroastrianos tiveram que racionalizar a conquista árabe-muçulmana do Irã e
o início do declínio do zoroastrismo. Segundo ele, a escatologia zoroastriana tinha, claramente,
suas raízes na prédica do próprio Zoroastro. A crença na vida após a morte era uma firme convic-
ção na Era Sassânida, como demonstram as inscrições do sacerdote Kirdir (p. 35-36 e Apêndice
A), bem como a visão atribuída a Arday Wiraz (p. 34, 36) e a confissão de fé (p. 32-33). Quanto ao
gênero apocalíptico, entretanto, escatologia não pressupõe necessariamente o apocalipse. O desen-
volvimento do gênero no Irã ganhou um impulso inicial com a invasão de Alexandre (século IV
a.C.), mas pode ter se desenvolvido à forma plena somente após a invasão árabe, quando a turbu-
lência sócio-política passou a ser vista como precursora para a salvação universal. Shaked ainda
observa que “a literatura pálavi do Período Sassânida tardio e início do Período Muçulmano é pra-
ticamente obcecada pelas as descrições das visões do futuro” (p. 46). Essas eram, então, necessá-
rias para satisfazer os anseios dos zoroastrianos.
208
Cf. HULTGÅRD, Anders. Mythe et histoire dans l’Iran ancient: étude de quelques thèmes dans
le Bahman Yašt. In : WIDENGREN, Geo; HULTGÅRD, Anders; PHILONENKO, Marc (Ed.).
Apocalyptique iranienne et dualism qoumrânien, p. 63-162; aqui p. 80; WIDENGREN, Geo.
Leitende Ideen und Quellen der iranischen Apokalyptik. In: HELLHOLM, D. (Ed.). Apocalyptic-
ism in the Mediterranean World and the Near East, p. 77-162; aqui p. 153-154.
174

idade das tradições escatológico-apocalípticas do Irã antigo até as obras em pálavi


do IX e X séculos d.C. Esses outros argumentos se baseiam nas evidências citadas
acima, agrupadas em duas categorias: as tradições iranianas contidas no Avesta
antigo que aparecem na literatura tardia e as informações preservadas por autores
greco-romanos.209
Para o relacionamento entre persas e judeus, torna-se também importante a
análise específica dos influxos culturais a partir do exílio judaico na Babilônia do
VI século a.C.

3.3.2. As interações político-culturais no chamado Judaísmo do Se-


gundo Templo

O exílio babilônico foi um evento que provocou, sem dúvida, muitas trans-
formações na maneira de pensar dos judeus durante o chamado Período do Segun-
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do Templo (final do exílio, em cerca de 540 a.C., até o advento Jesus Cristo). As-
sim, após uma crise político-religiosa iniciada na Babilônia, os judeus tiveram que
rever os pontos essenciais de sua religião e cosmovisão. Entre os que mais intera-
giram com os judeus nestas mudanças estão, sem dúvida, os persas.
Alguns estudiosos afirmam que os efeitos da influência da cultura persa no
judaísmo não se fizeram sentir durante o domínio persa na Palestina, e sim somen-
te mais tarde, no Período Helenístico.210 Entretanto, as influências persas podem
ser percebidas já no Dêutero-Isaías.211 Tanto a doutrina de Zoroastro quanto o Isa-
ías do V século a.C. revelam uma aversão comum à reverência de imagens sagra-
das.
De fato, quando os persas liderados por Ciro II (559-530 a.C.) dominaram
a Babilônia em 538 a.C., a Arábia, a Síria, Judá e, posteriormente, o Egito e a
Grécia sofreram um processo de revolução cultural e religiosa. 212 Os reis aquemê-
nidas Dario I (522-486 a.C.), Xerxes I (486-465 a.C.) e Artaxerxes II (404-359

209
No caso do presente trabalho, consideramos estes (especialmente o último) os principais argu-
mentos para a antiguidade das tradições iranianas, inclusive a tradição concernente à ressurreição
dos mortos.
210
Cf., por exemplo, SHAKED, Shaul. Iranian Influence on Judaism: First Century B.C.E. to
Second Century C.E. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Per-
sian Period, p. 308-325; aqui p. 309.
211
Cf. ZAEHNER, R. C. The Dawn and Twilight of Zoroastrianism, p. 57-58; SMITH, Morton. II
Isaiah and the Persians. JAOS 83.4 (1963), p. 415-421.
212
Cf. o relato histórico das conquistas com ampla e variada bibliografia em DONNER, Herbert.
História de Israel e dos povos vizinhos, p. 443-458. v. 2.
175

a.C.), sucessores de Ciro, deixaram inscrições que revelariam a adoção do zoroas-


trismo como religião oficial do Império.213
A questão da adoção ou não da religião de Zoroastro por parte dos reis a-
quemênidas foi (e ainda é) bastante debatida.214 Yarshater acredita que “esta ques-
tão encontrou uma resposta totalmente satisfatória e estou inclinado a acreditar
que a tradição zoroastriana se desenvolveu e tomou forma antes da ascensão de
Ciro, de modo que o advento dos aquemênidas não foi refletido nela e nem influ-
enciou aquela tradição”.215 Por outro lado, Boyce afirma que “toda a dinastia a-
quemênida foi, de fato, zoroastriana”.216 A tendência da crítica atual é aceitar a
adoção do zoroastrismo pelos reis aquemênidas, mesmo que divindades de outras
crenças pudessem ser também adoradas.
Essa adoção do zoroastrismo pelos reis aquemênidas já no IV século a.C.
por razões político-ideológicas vai acompanhar a expansão do Império Persa
quando das conquistas em seu período áureo, ou seja, nos séculos que se segui-
ram.217
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De fato, pode-se constatar que a dominação persa no Oriente Médio levou


a toda essa região influências da religião persa-iraniana, como o dualismo bem e
mal associado a uma crença em um Deus Supremo e a uma conduta austera na vi-

213
ZAEHNER, R. C. Op. cit. p. 156-161. Wiesehöfer recentemente chegou à conclusão de que a
questão deve permanecer em aberto: apesar de reconhecer o forte contato dos reis aquemênidas
com a religião de Zoroastro, ele acredita que outras divindades e crenças eram adotadas concomi-
tantemente (cf. WIESEHÖFER, Josef. Ancient Persia, p. 99-101).
214
Cf. NIGOSIAN, S. A. The Religions in Achaemenid Persia. Studies in Religion 4 (1975), p.
378-386; SCHWARTZ, M. The Religion of Achaemenian Iran. In: GERSHEVITCH, I. (Ed.).
CHI: The Median and Achaemenian Periods, p. 664-697. v. 2; BOYCE, M. Persian Religion in the
Achemenid Age. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.). Op. cit. p. 279-307.
215
YARSHATER, E. Iranian National History. In: CHI: The Seleucid, Parthian and Sasanian Pe-
riods, p. 359-477. v. 3.1; aqui p. 439. Dentre outros estudiosos que rejeitam ou duvidam de que os
reis aquemênidas adotaram a religião de Zoroastro encontram-se E. Benveniste, M. Dandamayev,
J. Duchesne-Guillemin, G. Gnoli, A. V. W. Jackson, M. Mole e Geo Widengren. À exceção deste
último e de E. Yarshater, os demais são muito antigos.
216
BOYCE, Mary. A History of Zoroastrianism: Under the Achaemenians, p. xi. Dentre outros
estudiosos que afirmam serem os reis aquemênidas zoroastrianos, além de Mary Boyce, encon-
tram-se Albert T. Olmstead, Igor Diakonov, Ilya Gershevitch, John Hinnells, James Moulton e
Norman Cohn. Desta feita, à exceção de Olmstead, todos são estudiosos recentes.
217
Nigosian afirma que “é, obviamente, do conhecimento comum que o povo judeu entrou em es-
treito contato com o zoroastrismo durante seu exílio na Babilônia no sexto século a.C. Esse período
de contato judaico-persa (em particular do sexto ao quarto século a.C.) foi, em muitos aspectos,
decisivo para o desenvolvimento posterior do Judaísmo. Ao passo que existe uma abundância de
literatura judaica datando do sexto século a.C. em diante (por exemplo, os tardios do Antigo Tes-
tamento, a literatura apócrifa e a seita do Mar Morto), a literatura iraniana do mesmo período é,
infelizmente, de pouca monta. Assim, alguns estudiosos argumentaram que o contato judaico-persa
do sexto ao quarto século a.C. não deve ser postulado como fator contribuinte para o desenvolvi-
mento paralelo das ideias no Judaísmo. Antes, a explicação pode ser mostrada pelo desenvolvi-
mento de certas tendências inerentes aos escritos bíblicos anteriores” (cf. NIGOSIAN, S. A. The
Zoroastrian Faith: Tradition and Modern Research, p. 96).
176

da cotidiana (puritanismo). Em relação a esse puritanismo, é possível, inclusive,


que a purificação dos judeus apregoada por Esdras tenha se dado a partir da Pér-
sia.218 O fato é que os cativos de Judá somente conseguiram voltar para a Palestina
sob uma mudança político-religiosa impressa pelos persas em toda aquela região.
Ao que parece, os povos dominados receberam a política pacifista persa
com bons olhos:219 os babilônios receberam a Ciro II como o “Pastor de Mardu-
que”; os egípcios o aceitaram como a “Encarnação de Hórus”, e os judeus o rece-
beram como o “Messias de Iahweh”. Daí a influência persa presente no Dêutero-
Isaías:
Assim diz Iahweh ao seu ungido, a Ciro que tomei pela destra, a fim de subjugar
a ele nações e desarmar reis, a fim de abrir portas diante dele, a fim de que os por-
tões não sejam fechados. Eu mesmo irei na tua frente e aplainarei lugares monta-
nhosos, arrebentarei as portas de bronze, despedaçarei as barras de ferro e dar-te-
ei tesouros ocultos e riquezas escondidas, a fim de que saibas que eu sou Iahweh,
aquele que te chama pelo teu nome, o Deus de Israel (Is 45,1-3).

Este texto é um oráculo real de entronização. É interessante notar que Ciro


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II recebe o título de “Ungido de Iahweh”, título esse reservado aos reis de Israel e
que se tornou o título do Messias-rei e salvador esperado. O paradoxo é que o títu-
lo é concedido a um soberano estrangeiro, que não conhece Iahweh (“Embora não
me conheças, eu te cinjo”, Is 45,5b). O mesmo oráculo aparece no “Cilindro de
Ciro”, texto redigido por sacerdotes da Babilônia, no qual Bel, Nabu e Marduque,
que não são deuses persas, favorecem Ciro; esse último deus, Marduque, profere o
nome de Ciro e o chama para dominar toda a Terra.220
Parece óbvio que o rei persa também viu com bons olhos a crença dos ju-
deus no VI século a.C., pois estes o receberam em sua cultura sem questionar sua
procedência. Parece também que o autor bíblico se adapta à nova geopolítica que
estava se estabelecendo, assimilando o pensamento persa de forma consciente.
O fato é que, durante o exílio, os judeus tiveram que rever sua concepção

218
Idem. Persian Religion in the Achemenid Age. In: Op. cit. p. 299. Essa autora apresenta tam-
bém a semelhança e possível influência da antiga narrativa da criação zoroastriana presente nos Y.
44,7 e 51,7 na narrativa sacerdotal da criação (mais recente que a javista) presente em Gn 1,1-2,4a,
a qual difere em muito da narrativa javista de Gn 2,4b-3,24. Tanto no Avesta quanto no Gênesis é
o espírito da divindade que é associado à criatividade e está presente no ato da Criação (Ibidem, p.
300). No entanto, apesar das semelhanças apontadas pela autora, há muitas diferenças fundamen-
tais, as quais fogem ao escopo deste trabalho.
219
Conforme já assinalado supra, os reis persas adotaram uma política de tolerância para com os
povos dominados, evitando a subjugação violenta que os assírios e babilônios haviam adotado.
Pode ser que os reis persas tenham justamente aprendido pelo exemplo desses impérios anteriores
e adotado postura contrária.
220
Cf. o texto do Cilindro de Ciro em DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos,
p. 444-445. v. 2.
177

de adoração a Iahweh, uma vez que não tinham mais o Templo e os sacrifícios de
animais, fundamentos que, até então, tinham estado no centro de sua adoração di-
vina. O motivo teológico da Sião inexpugnável, da proteção de Iahweh (a divinda-
de como o protetor tribal, podendo evitar que os judeus fossem conquistados ou
exilados) teve de ser revisto. A situação propiciou, então, a possibilidade e a con-
veniência da assimilação de influências persas.
Conforme assinalado acima, a crença em uma vida no pós-morte, por e-
xemplo, é de grande proeminência nos ensinos dos Gathas, a parte mais antiga do
Avesta. As ideias persas de vida no pós-morte com céu e inferno, de um julgamen-
to a ser realizado em um dia final, com o aniquilamento dos maus e uma felicidade
eterna para os justos, salvos em companhia de Ahura Mazda, 221 são em muito di-
ferentes das concepções escatológicas dos outros povos antigos, incluindo os isra-
elitas do Período do Primeiro Templo. Assim, os judeus teriam assimilado essas e
outras ideias tidas como “apocalípticas”,222 as quais foram agregadas de forma de-
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finitiva na teologia do Judaísmo do Segundo Templo.


A noção da ressurreição com o sentido de volta a esta vida narrada em Is
26,19 (mesmo em referência à nação como um todo) pode também ter advindo
desse encontro com a cultura persa, dado o fato de todo este trecho do livro (Is 24-
27) ser tardio, conforme já assinalado supra. Em todas as Escrituras Hebraicas,
esta é a referência mais antiga a essa crença.
Após o domínio persa, surge o Império Macedônio, iniciando o Período
Helenístico, marcado pelas conquistas de Alexandre, o Grande (336-323 a.C.),
com sua política de dominação, e a de seus sucessores.223 Seu propósito era unifi-
car as civilizações Oriental e Ocidental através da cultura grega, sendo ele um dos
principais propagadores dela. 224 O próprio nome “helenismo” é comumente apli-
cado à cultura e civilização gregas, ao conjunto de ideias e costumes que caracte-
rizaram o mundo habitado, desde Alexandre até os tempos do Império Romano,

221
Cf. BOYCE, M. Persian Religion in the Achemenid Age. In: DAVIES, W. D.; FINKELSTEIN,
L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Persian Period, p. 279-307; aqui p. 300.
222
Cf. as noções escatológicas persas que teriam influenciado a apocalíptica judaica em SOARES,
Dionísio O. As influências persas no chamado judaísmo pós-exílico. Theós 5.2 (2009), p. 1-24;
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 19, e em SHAKED, Shaul.
Iranian Influence on Judaism: First Century B.C.E. to Second Century C.E. In: DAVIES, W. D.;
FINKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Persian Period, p. 308-325; aqui p. 314. Entre
essas noções está a ideia da ressurreição individual, possivelmente também corporal, seguida de
julgamento.
223
Sobre as fontes desse importante período para o nosso estudo, cf. WALBANK, F. W. Sources
for the Period. In: WALBANK, F. W. et al. (Ed.). CAH: The Hellenistic World, p. 1-22. v. 7.1.
224
RUSSELL, D. S. Apocalyptic: Ancient and Modern, p. 7.
178

ou seja, a partir do IV século a.C. até a Era Cristã. Barreiras de todos os tipos fo-
ram sendo superadas (política, nacional e cultural), fazendo com que povos de
ambientes totalmente diferentes fossem inseridos numa cultura que confrontou
poderosamente suas crenças e instituições tradicionalmente estabelecidas.225
As grandes unidades políticas caracterizaram esse período, diferentemente,
por exemplo, da época clássica: o poder não estava mais centrado na pólis, mas
sim nos grandes impérios, com estrutura de poder em escala mundial. 226 Segundo
Momigliano, a época helenística assistiu pela primeira vez à confrontação da cul-
tura grega com as culturas de quatro outras civilizações: romanos, celtas, judeus e
iranianos (persas).227 A religião iraniana sofreu um forte amálgama nessa época:
“Em consequência da conquista de Alexandre, as manifestações religiosas irania-
nas foram quase que completamente submersas sob a onda do Helenismo”.228 No
caso dos judeus, os principais contatos se dão com a cultura persa-helênica.
Esses contatos não foram sempre pacíficos. As conquistas de Alexandre
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provocaram conflitos com a cultura judaica na Palestina, fato que caracterizou o


chamado período intertestamentário: “Entre os anos 170 a.C. e 70 d.C., o naciona-
lismo judeu teve intervalos nos quais sua ação mais importante consistiu em resis-
tir às investidas do helenismo”.229 Esse nacionalismo foi motivado tanto por pre-
tensões políticas quanto por ideais religiosos; muitos judeus acreditavam estar,
dessa forma, trilhando um caminho que levaria os homens ao Reino de Iahweh,
cuja vinda inauguraria uma nova era sob o domínio desse reino.
Por outro lado, o culto helênico era mais oriental que propriamente heleni-
zado, um culto “muito outro do que o culto grego, no qual Baal-samin era equipa-
rado a Zeus; Alat, a Atena; Dusara, a Dioniso. Esta fusão do helenismo com o ori-

225
Collins afirma que “o período que se seguiu à ascensão da Pérsia foi um dos mais agitados em
toda a história do Oriente Próximo. Em especial as conquistas de Alexandre tiveram um profundo
impacto sobre as civilizações orientais. O impacto incluiu uma circulação de ideias sem preceden-
tes entre os vários povos, mas sobretudo as condições de vida nas áreas conquistadas foram trans-
formadas e, como resultado, houve uma transformação de atitudes que foram muito além da influ-
ência literária em motivos e padrões. Dificilmente poderíamos esperar que o judaísmo, quer em sua
terra natal ou na diáspora, não fosse afetado por essa agitação” (cf. COLLINS, J. J. Jewish Apoca-
lyptic against Its Hellenistic Near Eastern Environment. BASOR 220 (1975), p. 27-36; aqui p. 27;
republicado em Seers, Sybils and Sages in Hellenistic-Roman Judaism, p. 59-74).
226
VOEGELIN, Eric. History of Political Ideas: Hellenism, Rome and Early Christianity, p. 120.
227
MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da helenização: a interação cultural das civilizações gre-
ga, romana, céltica e persa, p. 10.
228
DUCHESNE-GUILLEMIN, J. Zoroastrian Religion: Iranian Religion under the Seleucids and
Arsacids. In: YARSHATER, Ehsan (Ed.). CHI: The Seleucid, Parthian and Sasanian Periods, p.
866-908. v. 3.2; aqui p. 866.
229
RUSSELL, D. S. El Período Intertestamentario, p. 9.
179

entalismo era característica da política da Macedônia”. 230 Em toda a extensão do


Império Macedônio, “em parte alguma a religião grega logrou impor-se aos velhos
cultos orientais, e o Zeus político oficial identificou-se com frequência com o Ha-
dad sírio e o Bel (Baal) mesopotâmico”.231 Segundo Heródoto, os próprios gregos,
num período mais antigo, já haviam recebido influência estrangeira: “Quase todos
os nomes dos deuses passaram do Egito para a Grécia. Não resta dúvida de que
eles nos vieram dos bárbaros. As perquirições que realizei em torno de suas ori-
gens convenceram-me de que assim foi”. 232
Assim, a influência helênica representa, no fundo, um grande intercâmbio
envolvendo as crenças de muitas religiões orientais antigas, ou seja, sob essa su-
perfície helênica as religiões antigas da Babilônia e da Pérsia continuavam exer-
cendo forte influência. No processo de conquista levado a efeito por Alexandre
muita crenças e costumes foram sendo incorporados. Por outro lado, a “mera mis-
tura de populações não produziu por si só o sincretismo religioso. As verdadeiras
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causas foram espirituais e psicológicas, enraizadas por um lado na posição domi-


nante dos gregos, (...) e por outro no fascínio natural da mente grega por tudo o
que fosse desconhecido e exótico”.233 As condições existenciais favoreceram o
encontro das tradições (inclusive religiosas) e seus inúmeros e diferentes desdo-
bramentos. Os ensinos do zoroastrismo, nessa época, contêm a adaptação de dou-
trinas babilônicas.234 Assim sendo, certamente muitos judeus estavam em contato
com o pensamento e a cultura persa-babilônica presente na palestina, além do con-
tato com a cultura helênica em si mesma.
Outra forma de contato se deu pelo fato de que desde o cativeiro na Babi-
lônia os judeus já haviam vivido ao lado dos persas na Mesopotâmia. Assim:
De vez em quando aqueles judeus babilônicos voltavam à Palestina trazendo com
eles os aspectos do pensamento persa que mais lhes simpatizavam, principalmen-
te os que não eram incompatíveis necessariamente com sua religião hebreia. Sem
dúvida, muitos eram atraídos para a Palestina no tempo dos Macabeus e seus su-
235
cessores, quando um forte estado judeu estava em processo de formação.

230
ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica: um estudo da literatura apocalípti-
ca judaica e cristã de Daniel ao Apocalipse, p. 49.
231
PETIT, Paul. A civilização helenística, p. 50.
232
Cf. HERÓDOTO. História, II.50.
233
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento, p. 168. v. 1.
234
M. Dandamayev afirma: “Como os milhares de textos cuneiformes religiosos, astronômicos,
matemáticos e literários revelam, a antiga cultura babilônica continuou a florescer e desenvolver-se
ao longo da época pérsia” (cf. DANDAMAYEV, M. Babylonian in the Persian Age. In: DAVIES,
W. D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: Introduction: The Persian Period, p. 326-342. v. 1; aqui p.
337).
235
RUSSELL, D. S. Op. cit. p. 18.
180

O movimento apocalíptico se torna o único fator relevante no cenário reli-


gioso de Israel nesse período.236 Dessa forma, a influência da cultura persa-
babilônica se fará sentir nos escritos apocalípticos judaicos desse período. Um dos
usos mais comum do apocalipsismo nesse período se deu na concepção de histó-
ria. Segundo Noth:
O apocalipsismo adotou inicialmente toda espécie de material sobre eras e reinos
mundiais a cursar na sua época, talvez também todo tipo de material de símbolos
referentes a fenômenos e poderes históricos. Entretanto, esvaziou esse material,
privando-o de seu conteúdo original e de seu peso próprio, ao utilizá-lo apenas
237
para ilustrar o colorido e a inconstância da história do mundo.

Segundo Collins, tanto os apocalipses históricos quanto os transcendentais


possuem paralelos com escritos persas. No caso das visões de sonho simbólico,
elas podem “ser vistas como uma adaptação dos sonhos simbólicos que são atesta-
dos por todo o Oriente Próximo”.238 Como assinalado acima, no Bahman Yasht
Zaratustra tem uma visão simbólica de uma árvore com quatro ramos, os quais são
interpretados como períodos futuros da história humana. Dessa forma, a influência
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da interpretação de sonhos do Oriente Próximo e a possibilidade de fontes persas


na literatura apocalíptica judaica devem ser admitidas, o que não deixa de revelar,
em qualquer caso, a considerável criatividade dos escritos apocalípticos judaicos.
Neste caso, verifica-se uma “moldura” comum no antigo Oriente Próximo,
desde a Suméria do terceiro milênio até o Egito ptolemaico, da Mesopotâmia em
direção ao Oeste, até a Grécia. A moldura consiste numa introdução acerca do so-
nhador, o local e outras circunstâncias importantes do sonho; após o conteúdo da
visão, há uma parte final da moldura, a qual, além de descrever o final do sonho,
frequentemente inclui uma seção que diz respeito à reação do sonhador, ou ao
cumprimento real da predição ou promessa apregoada no sonho.
O mesmo ocorre no caso de sonhos do tipo transcendentais, somente in-
cluindo, após as circunstâncias do sonho, a ascensão ou descida do visionário e, ao
final, o seu retorno ao lugar de origem. Vale ressaltar que a moldura não é com-
pleta em todos os casos.
De fato, Collins tem razão ao mencionar paralelos antigos. O sonho com
viagem ao mundo dos mortos, por exemplo, é atestado já no caso de Enkidu, do

236
KOESTER, Helmut. Op. cit. p. 232. Esse movimento desempenharia papel decisivo também na
formação do cristianismo primitivo.
237
NOTH, Martin. Das Geschichtsverständnis der alttestamentlichen Apokaliptik. In: Gesammelte
Studien zum Alten Testament, p. 248-274; aqui p. 274.
238
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 7.
181

poema épico Gilgamesh.239 Há exemplos também fora de relatos em sonhos. Entre


os próprios babilônios há as descidas da deusa Ishtar ao mundo dos mortos,240 e
entre os sumérios as descidas da deusa Inana.241 Entre os gregos e romanos há as
descidas ao Hades em Homero (Odisseia, XI) e Virgílio (Eneida, VI).242 No NT,
Cristo desce ao mundo dos mortos (1Pd 3,18-20). O melhor exemplo se dá justa-
mente entre os persa, no livro de Arday Wiraz Namag, um “apocalipse desenvol-
vido”, conforme já citado neste trabalho.
Em relação ao conteúdo das revelações, também há paralelos antigos. As
predições escatológicas, por exemplo, são já encontradas em Is 24-27. Outros e-
xemplos são os presságios e agouros (comuns nas predições escatológicas), en-
contrados, por exemplo, no L. Jub 23,25, do II século a.C. (“as cabeças das crian-
ças serão brancas com cabelos grisalhos”), 243 com paralelo em Hesíodo, nos Erga,
181: “quando nascerem já em sua plenitude, com fontes encanecidas”. 244 O gênero
apocalíptico compartilha, ainda, algumas características e motivos com os pseudo-
epígrafos, os Manuscritos de Qumran e com os Oráculos Sibilinos,245 os quais,
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levando-se em consideração tais semelhanças, também podem ser designados co-


mo literatura apocalíptica.
Além da convergência de tradições religiosas, outro fator que certamente
contribuiu para determinada homogeneidade no Período Helenístico é o linguísti-
co. A partir do Império Persa, o aramaico começa a ganhar proeminência, sendo
inclusive a língua oficial do governo.246 A adoção do aramaico pelos governantes
aquemênidas foi uma escolha prática e natural, já que essa língua estava já em uso
em toda a parte ocidental do império, talvez até na Média.247
O aramaico é uma língua bastante antiga; no entanto, no período assírio

239
Cf. PRITCHARD, J. B. (Ed.). ANET, p. 72-99.
240
Ibidem, p. 106-109.
241
Ibidem, p. 52-57.
242
Cf. o relato da ida de Ulisses às portas do Hades, na forma narrativa, em HOMERO. A Odissei-
a. Tradução Fernando C. de A. Gomes, p. 121-134, e o relato narrativo da ida de Enéias em VIR-
GÍLIO. Eneida. Tradução David J. Júnior, p. 94-111. Retornaremos a esse tema (incluindo todos
esses casos) neste trabalho.
243
Relata texto do L. Jub 23,25: “As cabeças das crianças serão brancas com cabelos grisalhos, a
criança de três semanas parecerá um ancião de cem anos, e sua estatura será aniquilada por tribula-
ção e opressão” (cf. CHARLES, R. H. (Ed.). APOT, p. 49. v. 2).
244
Tradução própria de eu\t= a#n geinovmenoi poliokrovtaφoi televqwsin (cf. o texto na edição
crítica de WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p. 103).
245
Cf. esse relato em COLLINS, J. J. Sibylline Oracles. In: CHARLESWORTH, J. H. (Ed.). OTP,
p. 317-472. v. 1.
246
RUSSELL, D. S. El Período Intertestamentario, p. 17.
247
GREENFIELD, J. C. Aramaic in the Achaemenian Empire. In: GERSHEVITCH, Ilya (Ed.).
CHI: The Median and Achaemenian Periods, p. 698-713. v. 2; aqui p. 707.
182

surgiu, ao lado de variações dialetais, uma forma literária padrão do aramaico,


chamada de aramaico oficial (ou real), a qual se difundiu bastante no Império
Persa.248 A administração imperial precisava de uma língua administrativa e di-
plomática única, embora, na medida do possível, houvesse respeito pelas diversas
línguas nacionais:
Em todo o Oriente Próximo, incluindo o Egito, já desde o séc. 7 a.C. o aramaico
se disseminara; embora dificilmente tenha suprimido as línguas e os dialetos nati-
vos em qualquer lugar, colocou-se sobre, abaixo ou ao lado deles e era falado ou,
pelo menos, compreendido em quase todos os lugares. Os persas se aproveitaram
dessa circunstância, elevando o aramaico à categoria de língua oficial do Estado.
Por isso, fala-se da época do “aramaico imperial”, que, apesar de sua subdivisão
em diversos dialetos locais, constituía um fermento de unidade do Oriente Anti-
249
go.

Esse predomínio continuou até o Período Helenístico, quando o aramaico


começou a dividir espaço com o grego (a partir de Alexandre), alcançando este o
mesmo status daquele, sendo o grego para o Império Macedônio o que o aramaico
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já havia sido anteriormente para o Império Persa. Assim, no mundo helenístico


como um todo, tanto o grego (koiné) quanto o aramaico eram consideradas as duas
“grandes línguas comerciais”.250
O uso e significado da LXX para o judaísmo helenístico também deve ser
levado em conta. Ela acabou se tornando um dos fatores mais significativos para a
helenização de Israel, tornando-se conhecida também universalmente.251
Com tudo isso, era inevitável, portanto, que o judaísmo mantivesse livre de
influências seu antigo conceito de vida após a morte. Duas ideias principais norte-
arão o pensamento judaico: o conceito grego da imortalidade da alma de forma
bem estabelecida252 e a ideia da ressurreição corporal advinda, muito provavel-
mente, da literatura persa, ou seja, do zoroastrismo.
As principais obras da literatura judaica do período intertestamentário que
expressam a temática da ressurreição individual são 1 Enoque e Daniel, os quais

248
Para uma descrição minuciosa da história da língua aramaica e seus dialetos, cf. JEFFERY,
Arthur. Aramaic. In: BUTTRICK, G. A. (Ed.). IBD, p. 185-190. v. 1.
249
DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos, p. 447. v. 2.
250
PETIT, Paul. A civilização helenística, p. 16; cf. também BARR, J. Hebrew, Aramaic and
Greek in the Hellenistic Age. In: DAVIES, W. D.; FINSKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: The Hellenis-
tic Age, p. 79-114.
251
Sobre essa questão, cf. CLARK, Timothy. Translational Practice and Purpose: The Septuagint
in the Hellenistic Period. In: Jewish Education in the Hellenistic Period and the Old Testament.
SVTQ 54.3-4 (2010), p. 281-301; aqui p. 295-301.
252
Cf. GLASSON, T. Francis. Resurrection and Re-incarnation. In: Greek Influence in Jewish
Eschatology: With Special Reference to the Apocalypses and Pseudepigraphs, p. 26-32.
183

representam o gênero apocalíptico já em sua forma bastante amadurecida. Antes


desse período, os judeus possuíam uma noção diferente de vida no pós-morte.
Seus vizinhos no período do Judaísmo do Primeiro Templo também tinham visões
próprias acerca do tema, mas nenhum deles possuía uma noção semelhante a dos
persas e dos judeus do pós-exílio.
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4. Daniel e a ressurreição a partir do Oriente antigo

4.1. A fenomenologia do pós-morte no Oriente antigo, na Grécia ar-


caica e helenística

Os antigos egípcios fornecem a mais antiga evidência da ideia de julga-


mento para o ser humano no pós-morte. Isso não se deve ao fato de ser a mais an-
tiga sociedade letrada surgida às margens do Nilo; outros tão antigos quanto os
egípcios ou mais mantiveram alguma forma de expressividade escrita, mas não
desenvolveram a ideia. Ao contrário, os egípcios não só desenvolveram a ideia
como também atingiram um grau de elaboração sobre o tema muito maior do que
qualquer outro povo do mundo antigo. Mesmo os egípcios do Período Neolítico
(antes de 3000 a.C.) já enterravam seus mortos com bens na sepultura, sugerindo
assim uma continuação da vida do falecido no pós-morte.1
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Sua visão sobre o pós-morte pode ser considerada, até certo ponto, bastante
otimista. Prova disso é que todos os esforços funerários buscavam melhores cir-
cunstâncias para o prolongamento da vida no além. 2 Este é um dos aspectos mais
documentados da religião egípcia. 3 Apesar de as crenças em outra vida no pós-
morte variarem muito ao longo da história egípcia,4 é possível traçar a linha geral
do pensamento egípcio acerca do tema. Chegavam a imaginar que, no além, a pes-
soa poderia atingir um estado de transcendência e gozar de felicidades até maiores
do que as obtidas em vida. De qualquer forma, a eudaimonía era buscada não so-
mente para a vida terrena, mas também para a futura (os egípcios não faziam a di-
visão dualista comum nas culturas ocidentais entre mundo natural e mundo sobre-
natural).
Eles possuíam uma antropologia complexa no que diz respeito ao corpo;
no que se refere ao cadáver, postulavam três conceitos distintos: Ka, Ba e Akh.

1
Seguimos aqui a cronologia proposta por CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito antigo, p. 13.
2
Cf. especialmente o Livro dos Mortos, capítulo 110 (cf. a tradução em MILDE, H. Ancient Egyp-
tian Beliefs Concerning Death. In: BREMER, J.M.; VAN DEN HOUT, Th.P.J.; PETERS, R.
(Ed.). Hidden Futures: Death and Immortality in Ancient Egypt, Anatolia, the Classical, Biblical
and Arabic-Islamic World, p. 15).
3
Além do Livro dos Mortos, o tema é tratado nos Textos das Pirâmides, nos Textos dos Sarcófa-
gos, nos Guias do Além nas suas várias versões (cf. COELHO, Ilda Sobral. O imaginário do além.
In: RAMOS, J.A.; ARAÚJO, L.M.; SANTOS, A.R. (Org.). Percursos do Oriente Antigo: estudos
de homenagem ao Professor Doutor José Nunes Carreira na sua jubilação acadêmica, p. 121-137;
aqui p. 126).
4
Cf. SPENCER, A. J. The Egyptian Afterlife. In: Death in Ancient Egypt, p. 139-164.
185

Dessas três entidades, Ka era uma espécie de duplicata da pessoa viva, mantendo
estreito relacionamento com o cadáver, sendo às vezes comparável ao conceito
ocidental de “espírito”. Assim, a conservação do cadáver era de suma importância,
pois com a sua decomposição a entidade Ka também se decomporia com ele; ao
contrário, enquanto o corpo se conservasse a entidade também se conservaria. Daí
a importância dos ritos e da inumação: “O espírito se conservará enquanto existir
seu suporte físico. Essa preocupação com a subsistência faz com que a inumação
segundo os ritos seja preferível à existência terrestre, mesmo confortável”.5
Como uma garantia a mais, um desenho ou estátua representando o morto
era colocado na sepultura para substituição do corpo no caso de sua destruição
(como se o Ka identificasse a pessoa que estivera naquela sepultura). Dessa forma,
o corpo poderia até ser perdido, pois haveria como “substituí-lo” por algum obje-
to. Observa-se então que a preservação do nome da pessoa, ou seja, de sua identi-
ficação era mais importante que a preservação do corpo; trata-se de uma imortali-
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dade pela memória. Além disso, para se manter o Ka vivo, eram oferecidos ali-
mentos, roupas e outros utensílios que possibilitassem a sua existência. O Ka po-
deria residir no túmulo ou no além.
Além dessa entidade, o Ba poderia visitar o túmulo. Essa era a entidade
que enfrentava a perigosa viagem do morto pelo Mundo Inferior até o julgamento
no além. A princípio, somente o Faraó era considerado como possuidor de Ba,
mas a partir do Primeiro Período Intermediário (2134 a.C.) outras pessoas também
passaram a ser consideradas possuidoras dessa entidade. Se considerado inocente
após o julgamento, o Ba se tornava então, de fato, uma entidade transcendente, um
Akh,6 o qual residia na casa do deus Osíris, a Duat. Esse julgamento se baseava em
três condições: o comportamento do indivíduo durante sua vida terrestre, a aquisi-
ção em vida de bens suficientes para serem usados na Duat (daí os bens serem en-
terrados com o indivíduo), e a execução dos ritos funerais de forma correta pelo
sacerdote (a purificação, mumificação e inumação, ou seja, o enterro). Cumprindo
esses requisitos, poderia ser garantido ao morto ter contribuído para a manutenção
de ma’at (princípio de ordem sobre o qual se sustentava todo o sistema egípcio,
semelhante ao asha zoroastriano; sua principal manifestação era a justiça, sendo o

5
Cf. ELIADE, M.; COULIANO, I. P. Dicionário das religiões, p. 143. Outra ideia, variante, é que
com a perda do corpo o morto ficaria andando errante, sem rumo ou local de estabelecimento.
6
Essa palavra tinha a conotação de “luz, eternidade e esplendor, ilustrando novamente como mui-
tos aspectos da religião egípcia foram afetados pelo imaginário solar” (SEGAL, Alan F. Life After
Death: A History of the Afterlife in Western Religion, p. 45).
186

Faraó considerado sua personificação; posteriormente, surgiu uma deusa chamada


Ma’at, que acabou sendo considerada anterior à criação do mundo).7 Como, a
princípio, somente o Faraó era possuidor de Ba, a imortalidade era prerrogativa
apenas dele; mais tarde, passa a ser também de seus assessores diretos; em segui-
da, houve uma espécie de “democratização da imortalidade”, alcançando a nobre-
za em geral e também pessoas de outros níveis sociais. 8
Os Textos das Pirâmides apontam para a existência do que pode ter sido
uma tradição relativa a um julgamento no pós-morte que resultou dos cultos mor-
tuários em honra de Osíris. Esse julgamento está intimamente associado com Osí-
ris, o governante dos mortos. Assim, com o passar do tempo, cada pessoa que ti-
nha sido enterrada de acordo com os ritos funerários de Osíris estaria, presumi-
velmente, justificada quando comparecesse perante o tribunal do deus no pós-
morte. Essa ideia se originou da lenda de Osíris, pois, depois de sua ressurreição, a
causa de Osíris contra seu assassino (Set) foi julgada perante o tribunal dos deuses
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em Heliópolis, tendo como resultado a justificação de Osíris e a condenação de


Set. Essas associações são importantes, pois sugerem que a lenda de Osíris já es-
tava exercendo uma influência formativa sobre a ideia de um julgamento no pós-
morte. O ritual mortuário de Osíris foi modelado tomando por base a história do
deus. Todo o processo de embalsamento era um ritual a partir daquilo que se acre-
ditava ter sido feito originalmente para preservar o corpo de Osíris da decomposi-
ção física, tornando assim possível para ele usufruir da outra vida.
Nesses ritos mortuários relativos ao rei falecido, este era tão intimamente
assimilado a Osíris que o próprio nome “Osíris” era acrescentado ao nome do rei.
Dessa forma, pensava-se que já que o rei estava com Osíris em sua morte estaria
também em sua volta para a outra vida, e assim também compartilharia o mesmo
pós-morte do deus. Em outras palavras, é provável que o ritual mortuário nos
moldes de Osíris, através da lenda que constituiu a sua lógica, tornou possível um
modelo padrão para a outrora vaga crença de que, após a morte, o homem poderia

7
Essa palavra tinha um campo semântico amplo, mas bem definido e relacionado. Sua ideia essen-
cial é “verdade”, “ordem”, “justiça”, “direito”: “Nos hieróglifos seu sinal determinante era um ob-
jeto semelhante a uma talhadeira; a identificação do sinal é incerta, mas parece expressar a ideia de
retidão” (BRANDON, C.S.F. The Judgment of the Dead: An Historical and Comparative Study of
the Idea of a Post-Mortem Judgement in the Major Religions, p. 11). Cf. as atribuições de ma’at
em COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come: The Ancient Roots of Apocalyptic Faith, p.
9-16.
8
FINNESTAD, R. B. The Pharaoh and the “Democratization” of the Post-mortem Life. In: EN-
GLUND, Gertie (Ed.). The Religion of the Ancient Egyptians: Cognitive Structures and Popular
Expressions. Proceedings of Symposia in Uppsala and Bergen, 1987 and 1988, p. 89-93.
187

ser acusado de más ações realizadas quando em vida. Osíris passa a representar o
drama da própria existência humana, destinada a morrer, mas podendo triunfar
sobre a morte em alguma outra espécie de vida.
Por outro lado, os sacerdotes de Osíris, responsáveis pelas técnicas de em-
balsamento, acabavam tendo, na esfera sagrada, prerrogativas maiores que o Fara-
ó. Com o aumento da clientela de pessoas que poderiam se tornar imortais, ou se-
ja, que tinham recursos suficientes para pagar aos sacerdotes pelos rituais de imor-
talização (aquisição do estado de Akh), faz-se uso da ideia do julgamento no Mun-
do Inferior; sua função parece clara: evitar a banalização pela aquisição do estado
de imortalidade entre as pessoas não relacionadas à realeza, pois apenas o Faraó
era, de fato, filho da divindade. Assim, não bastava mais apenas ter os recursos
para a aquisição da imortalidade, mas também passar pela aprovação de um tribu-
nal presidido por Osíris, considerado o deus responsável pela vida no Mundo Infe-
rior.
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O fato é que, ao longo da história egípcia, “a sobrevivência depois da mor-


te foi objeto de visões divergentes que se foram superpondo sem eliminação mú-
tua”.9 O morto era entendido ora renascendo na própria tumba (daí necessitando
de oferendas de comida e bebida), ora navegando na barca solar (a qual o condu-
zia pelo mundo dos mortos até o tribunal de Osíris),10 ora no tribunal sendo julga-
do pelo deus. Entretanto, no que tange à ressurreição, se não fosse condenado, o
morto poderia “viver para sempre num ‘outro mundo’ governado por aquele deus,
o qual de fato recordava muito o próprio Egito”.11 No caso de condenação, o mor-
to simplesmente deixava de existir, estado descrito pela palavra mut, um cadá-
ver.12
Portanto, não há registro, na história religiosa do Egito, da sistematização
da ideia de uma ressurreição corporal na qual o morto retorne ao mesmo mundo
em que vivera, ou a esferas diferentes com destinos eternos diferentes (um para os

9
CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito antigo, p. 91.
10
O morto poderia empreender uma viagem até o tribunal de Osíris, acompanhado pelo deus Anú-
bis, representado pelo chacal. Os deuses egípcios podiam ser representados zoomorficamente: ha-
via um “elo” entre a característica do animal e o deus representado por ele (no caso de Anúbis, ele
“acompanha” o morto na viagem, assim como os canídeos são reconhecidos universalmente como
“companheiros” dos homens). A representação de Anúbis no caixão (imagens do chacal) revelaria
a presença do deus no momento do julgamento do morto diante de Osíris, levando-o a refletir sobre
suas ações em vida (havia uma balança com uma pena (reconhecida como Ma’at) em um dos lados
e o coração do morto no outro).
11
Ibidem.
12
SEGAL, Alan F. Loc. cit.
188

bons e outro para os maus), após ser submetido a um julgamento final coletivo.
Já os sumérios e semitas (acádios, assírios e babilônios), a exemplo dos
antigos egípcios, também possuíam suas concepções acerca da vida além túmulo,
expressas pelo gênero literário que chamaríamos modernamente de mito.13
O ser humano fora moldado a partir do barro por Marduk e recebeu um
fôlego de vida, um napištu (espécie de “sopro da vida”); entretanto, o homem po-
deria conter também outro componente, o zaqiqu, associado ao sonho, pois pode-
ria voar quando o corpo estava adormecido. No mito acadiano de Atrahasis14 (a
forma mais antiga, paleobabilônica, é Atramhasis, “o excelente em sabedoria”),15
nome de seu protagonista, chamado também de Utnapishtim, herói do dilúvio, a-
parece um terceiro elemento na composição do ser humano, o eṭmmu, espécie de
“espírito” na Mesopotâmia.16 Não se sabe ao certo o que acontecia aos dois pri-
meiros elementos, mas é certo que o eṭmmu, por ocasião da morte, passava ao
Mundo Inferior, ao passo que o corpo permanecia na Terra.
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Em várias narrativas aparece a temática: a história de Adapa mostra como


ele, sacerdote-rei de Eridu (cidade mais antiga da Babilônia), o sacerdote preferi-
do pelo deus Enki (ou Ea), recusou a chance de imortalidade quando esta lhe foi
oferecida por An (deus das alturas).17
O poema épico do Rei Etana, de Kish, relata que esse, protagonista, sobe

13
Segundo W. Piazza, existem oito definições “mais representativas” para mito, cada qual enfati-
zando um ponto de vista abordado por determinada ciência (cf. PIAZZA, W. Introdução à fenome-
nologia religiosa, p. 205-233). Para ele a definição de Mircea Eliade oferece a melhor descrição
para o que seja um mito: “O mito é uma ‘história exemplar’ que tem por fim estabelecer normas
para o procedimento humano” (ELIADE, M. Apud PIAZZA, W. Op. cit. p. 206.). O mito então
seria uma história exemplar que emprega símbolos; seu objetivo não seria ensinar como são as
coisas, pois estas já são do senso comum, e nem criar uma ideologia, mas apenas orientar a condu-
ta humana. Essa orientação teria por finalidade “o homem no seu procedimento com respeito aos
deuses, aos outros homens, às coisas que o cercam. Por isso, embora o mito se apresente como uma
‘história’ colocada nos primórdios da criação, ele não tem em vista o passado, mas o presente,
dando a este um sentido primordial para encarecer o seu significado para a vida humana” (PIAZ-
ZA, W. Op. cit. p. 208). Assim sendo, “o mito não passa de um gênero literário, no qual o símbolo
é empregado com sentido transcendente” (Ibidem, p. 216). É com essa perspectiva que o termo é
entendido neste trabalho.
14
Uma tradução antiga e em grande parte ultrapassada, mas clássica, é a de LAMBERT, W. G.;
MILLARD, A. R. Atra-Hasis: The Babylonian Story of the Flood (1969). Uma tradução mais re-
cente, revisada, é a de DALLEY, Stephanie. Myths from Mesopotamia: Creation, the Flood, Gil-
gamesh, and Others (2000).
15
Cf. CARREIRA, José Nunes. Literaturas da Mesopotâmia, p. 99.
16
De acordo com Segal, “eṭmmu é a palavra padrão para espectro na Mesopotâmia. Neste caso, no
entanto, o texto não indica que temos um espírito divino ou uma alma imortal. Em vez disso, ele
parece quase implicar o contrário; o homem que passa a possuir eṭmmu deve morrer. Quando o
homem morre, o eṭmmu ocupa residência subterrânea, enquanto o esemtu ou o pagru (duas pala-
vras significando “cadáver”) repousa na terra” (SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 73).
17
Cf. o relato em IZRE’EL, Shlomo. Adapa and the South Wind: Language Has the Power of Life
and Death, p. 9-46.
189

ao mundo das alturas à procura de uma planta que curaria sua esterilidade (a pro-
genitura era, na Mesopotâmia, uma forma de conquistar a imortalidade).18 Essa
planta pertencia à deusa Inanna (Ishtar em Acádio).19 O personagem passa por
muitas vicissitudes até alcançar o seu objetivo. Quanto a esta deusa, o relato de
sua descida ao mundo dos mortos revela que nem mesmo alguns deuses poderiam
escapar da morte, embora pudessem ser trazidos de volta à vida.20
Um dos relatos mais famosos, o Épico de Gilgamesh, é considerado a obra-
prima da literatura suméria. Seu material mais antigo é datado em cerca de 3000
a.C.,21 e sua forma completa é, provavelmente, da primeira metade do período ba-
bilônico, com o acréscimo da narrativa do dilúvio de Atrahasis. 22 O poema narra
as aventuras do Rei Gilgamesh, soberano da cidade de Uruk. Ao perder seu me-
lhor amigo (chamado Enkidu), o qual adoece e morre em doze dias, Gilgamesh
fica profundamente abatido e começa a refletir sobre a futilidade da fama de herói
diante dos homens, já que nada se pode fazer ante à enfermidade e à morte. Assim,
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resolve buscar a imortalidade indo ao encontro de Utnapishtim (Atrahasis, o Lon-


gevo), único que havia conseguido dos deuses a imortalidade, após ter sobrevivido
ao dilúvio.
Após uma série de percalços, o herói encontra o Longevo e este revela a
ele como conseguiu a imortalidade e também o segredo do rejuvenescimento: uma
planta espinhosa sob as águas. Gilgamesh alcança a planta e, desconfiado, decide
primeiramente testá-la com os idosos de Uruk. Entretanto, durante a viagem, uma
serpente saída das águas furta-lhe a planta e a devora. Logo em seguida, a serpente
muda de pele e submerge. O herói retorna então triste, mais velho e sem a sua
planta. Como se vê, a narrativa revela a busca ansiosa e voraz pela imortalidade,
busca esta que termina sem sucesso. A certa altura, o mito mostra ainda que, ao

18
Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit., p. 76. Cf. a história de Etana em PRITCHARD, J. B. (Ed.). ANET,
p. 52-57.
19
Considera-se que a deusa que os sumérios conheciam por Inana era a mesma Ishtar acádia (cf.
COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 41). Sabe-se que ambas compartilhavam a
dupla natureza de serem deusas guerreiras e do amor, ou seja, da fecundidade, no panteão mesopo-
tâmico: “O caráter guerreiro de Ishtar é particularmente predominante na Assíria a partir do déci-
mo-primeiro século a.C. quando ela é associada com o próprio deus nacional, Ashur (...) Seu cará-
ter guerreiro e de fertilidade é claramente indicado pela sua associação ao deus da fertilidade, Min,
e ao deus feroz Reseph, o qual matou milhares de homens através de guerra e epidemia” (GRAY,
John. Near Eastern Mythology: Mesopotamia, Syria, Palestine, p. 23).
20
Cf. o relato em PRITCHARD, J. B. (Ed.). Op. cit. p. 114-118.
21
Cf. FOSTER, B. R. The Epic of Gilgamesh: A New Translation, Analogues, Criticism, p. xiii.
22
Cf. ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan P. Dicionário das religiões, p. 234. Cf. as diversas
versões do poema em ABUSCH, Tzvi. The Development and Meaning of the Epic of Gilgamesh:
An Interpretative Essay. JAOS 121.4 (2001), p. 614-622.
190

contrário dos egípcios, os mesopotâmios não possuíam uma perspectiva de bem-


aventuranças após a morte; a humanidade fora criada para trabalhar no lugar dos
deuses e não deveriam esperar pela imortalidade.23
O local para onde os mortos se dirigem é chamado de “Casa da Escuri-
dão”.24 Esse lugar é uma espécie de cidade dos mortos, a qual, para ser alcançada
pelos eṭmmu, estes precisariam empreender uma viagem para aquele mundo, o
qual tinha no seu comando um rei, Nergal, e uma rainha, Ereshkigal. 25 Semelhan-
temente aos egípcios, nesse lugar havia uma espécie de “casa”, chamada de “Casa
do Pó”. Também semelhantemente aos egípcios, o bem-estar dos mortos depende-
ria da generosidade dos vivos, os quais deveriam oferecer mensalmente água e
pão. Havia um “culto dos mortos”, permitindo uma interação entre mortos e vivos
na qual aqueles trariam benefícios à sociedade dos vivos, como a chuva, proteção
contra feitiços mágicos e aumento do rebanho.26 Por outro lado, sendo “mal trata-
dos”, os mortos poderiam se tornar fantasmas vingativos e malfeitores.
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De qualquer forma, segundo o Épico de Gilgamesh, nenhuma recompensa


aguarda aquele que partiu, não havendo, inclusive, a possibilidade de ressurrei-
ção.27 Mas os mortos continuavam a existir; como no caso dos egípcios, a aniqui-
lação completa era inconcebível também para os mesopotâmios.28
Com relação à Canaã, as escavações em Ras Shamra (Síria) trouxeram à

23
Na Tabuleta X, a Epopeia de Gilgamesh registra: “Gilgamesh, para quê você anda errante? A
vida eterna que você está procurando não a encontrará. Quando os deuses criaram os homens, esta-
beleceram a morte para a humanidade e retiveram para si mesmos a vida eterna. Quanto a você,
Gilgamesh, deixe que o seu estômago seja saciado, seja sempre feliz, dia e noite. Faça de cada dia
um deleite, toque música e dance dia e noite. Suas roupas devem ser imaculadas, sua cabeça deve
ser lavada, você deve banhar-se em água, contemple orgulhosamente a criança que está segurando
a sua mão, deixe sua companheira regozijar-se em seus lombos. Essa é, então, a ocupação da hu-
manidade” (cf. FOSTER, B. R. Op. cit. p. 75; PRITCHARD, J. B. (Ed.). Op. cit. p. 90). É impossí-
vel não remeter à filosofia de vida expressa no livro de Ecl 9,7-10, da literatura sapiencial israelita:
“Vai, come teu pão com alegria e bebe o teu vinho com satisfação, porque Deus já aceitou tuas
obras. Que tuas vestes sejam brancas em todo tempo e nunca falte perfume na tua cabeça. Desfruta
a vida com a mulher amada em todos os dias da vida de vaidade que Deus te concede debaixo do
sol, todos os teus dias de vaidade, porque esta é a tua porção na vida e no trabalho com que te afa-
digas debaixo do sol. Tudo o que vem à mão para fazer, faze-o conforme a tua capacidade, pois, no
Sheol para onde vais, não existe obra, nem reflexão, nem conhecimento e nem sabedoria”.
24
SEGAL, A. F. Life After Death, p. 85.
25
Cf. BOTTÉRO, Jean. Le “Pays-sans-retour”. In: KAPPLER, Claude et al. Apocalypses et voya-
ges dans l’au-delà, p. 55-82.
26
SEGAL, A. F. Op. cit. p. 98.
27
Antes de morrer, Enkidu tem um sonho, o qual narra a Gilgamesh, sobre o lugar para onde será
levado no pós-morte. O sonho revela-lhe que, logo após a morte, determinada criatura serve de
guia para ele: “Segurando-me firmemente, ele me levou até a casa da escuridão, a morada do in-
ferno, para a casa de onde ninguém que entra sai, na estrada que não tem caminho de volta, para a
casa cujos habitantes são privados de luz, onde o pó é o seu alimento e a argila o seu sustento” (cf.
FOSTER, B. R. Op. cit. p. 58; também PRITCHARD, J. B. (Ed.). Op. cit. p. 87).
28
Cf. COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 56.
191

tona a antiga cidade de Ugarit, maior representante da civilização cananeia. O seu


panteão tinha El (o deus supremo, transcendente, mas afastado dos assuntos hu-
manos),29 Baal (o mais importante dos deuses, associado à agricultura, à chuva e,
consequentemente, à fertilidade, inclusive a dos rebanhos), Asherá (esposa de El,
com atributos marinhos, conhecida no AT também como Astarte ou Rainha do
Céu), Anat (irmã ou esposa de Baal, deusa da guerra e do amor, adorada também
na Mesopotâmia e no Egito),30 e Mot (deus da seca e, consequentemente, da mor-
te).31
Dentre as diversas narrativas mitológicas, uma das mais difundidas é aque-
la em que Mot desafia Baal para um combate (o que, em verdade, ocorria frequen-
temente); no combate, Baal aceita um convite de Mot e desce ao Mundo Inferior,
morrendo lá. Anat sepulta seu esposo e vai ao encontro de Mot e o mata, tritura-o
e espalha os seus pedaços pelos campos para servir de alimento aos pássaros. Pos-
teriormente, Baal ressuscita; em algumas versões, sua esposa encontra seu corpo e
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o ressuscita; em outras, Baal ressuscita sozinho, reencontra Mot, vence sua luta e
retorna ao seu reino. A ressurreição de Baal está, de alguma forma, associada às
estações férteis para a agricultura, pois durante o tempo em que permanece sem
vida, há um período de sete anos de seca e carestia; após Baal ser trazido de volta
à vida, senta no trono de Mot e assegura a reanimação vegetal durante outros sete
anos. Assim, a luta entre Baal e Mot simboliza o combate entre a vida e a morte; o
que é colocado em risco é a própria sobrevivência do mundo dos vivos. A morte e
ressurreição de Baal remete à morte e ressurreição da natureza; as forças desta se-
riam reativadas por meio de rituais praticados pelos adoradores.32
Essa ressurreição do deus não implica que os humanos possam fazer a
mesma coisa; ao contrário, quando morriam, os cananeus pensavam que seu ele-

29
Interessante observar que El é um nome pelo qual YHWH também é designado no AT, como
Elôhîm, El Elyôn (“o Deus altíssimo”), El Shaddai (“o Deus forte”) e El Shalom (“o Deus da paz”),
dentre outros. Cogita-se que antes de receber adoração por parte de Israel Iahweh era o deus cana-
neu da metalurgia, equivalente de Ptah no Egito (sobre isso cf. AMZALLAG, Nissim. Yahweh,
the Canaanite God of Metallurgy? JSOT 33.4 (2009), p. 387-404).
30
Cf. COHN, N. Op. cit. p. 126.
31
Para um panorama da religião cananeia e bibliografia, cf. ELIADE, M.; COULIANO, I. P. Di-
cionário das religiões, p. 87-90.
32
Segundo Ramos, “o Baal ugarítico é uma divindade que é sempre afirmada como hierarquica-
mente secundária e dependente: o Senhor e rei de tudo é dependente desse tudo e anda comprome-
tido com os exercícios de hierarquização com que, em esforço de compreensão, se tenta esquema-
tizar e formular a realidade” (RAMOS, José A. Martins. Baal, o que é um Deus? Cadmo 10 (2000),
p. 197-223; aqui p. 207).
192

mento vital, o npš (conceito semelhante ao nefesh hebraico),33 deixava o corpo e


continuava a viver no reino de Mot, de forma precária, à semelhança do pensa-
mento mesopotâmico. Também à semelhança dos mesopotâmios, não há evidên-
cias de recompensas ou julgamento no pós-morte; o máximo que poderia aconte-
cer era que, através de algumas celebrações ritualísticas por parte dos vivos, a si-
tuação dos mortos fosse de alguma forma melhorada no Mundo Inferior, mas não
se sabe como se dava essa melhora.
O fato de a imortalidade não estar acessível aos homens transparece na his-
tória de Aqhat;34 este, quando se recusou a entregar o arco e as flechas que rece-
beu do pai para Anat em troca da imortalidade, parecia perceber que a deusa esta-
va oferecendo algo que não poderia realmente conceder; sua resposta à deusa foi
clara: “Não minta para mim (...) eu vou morrer como todos morrem, eu também
certamente deverei morrer”.35 Em verdade, o máximo que a deusa poderia ofere-
cer-lhe era a exaltação em algum festival ritualístico por parte dos vivos,36 a e-
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xemplo do que acontecia a Baal. Dessa forma, o máximo que poderia acontecer a
Aqhat nesses rituais era seu espírito ser invocado no Mundo dos Mortos e aparecer
no banquete, mas não o próprio Aqhat ressuscitado. De acordo com Johnston, o

33
Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 113.
34
A narrativa conta a história de Aqhat, o qual seria filho de Dan’el e sua esposa Danaty. Estes
haviam implorado a El e a Baal por um filho. Quando Dan’el e sua esposa foram visitados pelos
Kotharat (divindades responsáveis pela concepção e nascimento), ofereceram-lhes banquetes que
duraram seis dias; em troca, essas divindades garantiram descendência a Dan’el e sua esposa, o que
veio a se concretizar no nascimento de Aqhat. Quando este era já crescido, Dan’el recebeu do deus
Kothar wa-Khasis um arco e flechas como gratidão pelo banquete que lhe ofereceu. Dan’el transfe-
riu, então, o presente para seu filho, juntamente com uma benção. Mas Anat, a deusa da guerra,
queria a arma que Aqhat recebera do pai e tentou negociá-la, primeiramente oferecendo riquezas e,
posteriormente, a imortalidade. Aqhat recusou e, por isso, a deusa recebeu permissão de El para
puni-lo; entretanto, a punição foi exagerada, pois Yatpan (o mensageiro divino que deveria apenas
ferir Aqhat), acabou se excedendo e causando a morte de Aqhat (cf. o relato em PRITCHARD, J.
B. (Ed.). ANET, p. 149-155, e o comentário em SEGAL, A. F. Life After Death, p. 111-113).
35
O diálogo entre a deusa Anat e Aqhat foi o seguinte: “Então disse a Virgem Anat: ‘Peça por vi-
da, ó Herói Aqhat. Peça por vida e eu a darei a ti, peça pela imortalidade, e eu a concederei a ti. Eu
te farei somar os anos com Baal, com os filhos de El tu deverás somar os meses. E Baal, quando
ele dá a vida, dá um banquete, dá uma festa para a vida doada e se oferece a ele drinque, cantando
e salmodiando por causa dele, fazendo uma serenata suave para ele: assim eu dou vida ao Herói
Aqhat’. Mas Aqhat, o Herói, respondeu-lhe: ‘Não minta para mim, ó Virgem; pois para um Herói a
sua mentira é repugnante. Vida mais extensa — como pode um mortal consegui-la? Como pode
um mortal alcançar uma vida permanente? Verniz será derramado [sobre] minha cabeça, gesso
sobre minha cuca; e eu vou morrer como todos morrem, eu também certamente deverei morrer’”
(cf. PRITCHARD, J. B. Op. cit. p. 151). Observa-se que a “vida” ou “imortalidade que a deusa
oferece a Aqhat é, de fato, a lembrança nos festivais e banquetes oferecidos pelos vivos, com cân-
ticos e salmos, sendo Aqhat o cabeça do banquete (a exemplo de Baal), podendo ter, assim, sua
memória lembrada no seio da família e da sociedade. Trata-se, portando, de uma imortalidade ape-
nas no âmbito da lembrança, a imortalidade pela memória presente também entre os egípcios, con-
forme assinalado acima.
36
SEGAL, Alan F. Loc. cit.
193

“retorno à vida” de Baal tem referência às celebrações anuais em honra do deus


(possivelmente os rituais de Ano Novo).37 Assim sendo, o máximo que um canani-
ta poderia alcançar seria essa lembrança nos festivais ritualísticos costumeiros.
A melhora na condição dos mortos propiciada pelas oferendas em festivais
conforme citado acima pode ser verificada em alguns textos ugaríticos que mos-
tram Baal (às vezes Dan’el) convidando alguns “mortos melhorados” ou especiais
(os que eram lembrados no mais importante ritual de memória cananeu, o marziḥ)
para o seu palácio, um lugar santo.38 Nesses casos específicos, pode se pensar no
embrião de algum tipo de recompensa, mas não em forma de ressurreição.
Com a chegada dos “povos do mar” à região, a economia e as cidades ca-
naneias entraram em declínio. Entretanto, “a visão de mundo cananeia sobreviveu
e influenciou profundamente um povo que só então estava adquirindo uma identi-
dade: os israelitas”.39
No que tange à questão do pós-morte entre os gregos, sua tradição remonta
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a tempo muito anterior ao Período Helenístico, período de fusão com a cultura


persa. Já Homero (século X ou IX a.C.) e, principalmente, Hesíodo (século VIII
a.C.) tratam do tema em suas obras.
O historiador Heródoto, em cerca de 450 a.C., já afirmava que foram Ho-
mero e Hesíodo que instituíram os deuses para os gregos, ou seja, os fundadores
da teologia grega.40 Entretanto, com relação à datação, esse cálculo colocaria os
dois poetas no IX século a.C., época muito retroativa para Hesíodo, cuja métrica e
linguajar revelam ser ele posterior a Homero, sendo a este, inclusive, tributário.41
Segundo a obra de Homero, a morte é companheira constante dos heróis na
Ilíada; esses mortais parecem não temê-la. Enfrentá-la com galhardia, exercendo

37
JOHNSTON, Philip S. Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament, p. 140. Ainda
segundo este autor, as evidências linguísticas no relato apresentadas por alguns autores para defen-
der a ressurreição literal do deus não se sustentam (Ibidem).
38
Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 115-118.
39
COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 121.
40
Assim relata o historiógrafo grego no Livro II, 53: “Durante muito tempo ignorou-se a origem de
cada deus, sua forma e natureza, e se todos eles sempre existiram. Homero e Hesíodo, que viveram
quatrocentos anos antes de mim, foram os primeiros a descrever em versos a teogonia, a aludir aos
sobrenomes dos deuses, ao seu culto e funções e a traçar-lhes o retrato. Os outros poetas, que se diz
tê-los precedido, não existiram, em minha opinião, senão depois deles. Sobre o que acabo de rela-
tar, uma parte colhi com as sacerdotisas de Dodona; mas no que concerne a Hesíodo e Homero, os
dois grandes poetas a que acima faço referência, nada mais faço do que emitir minha própria opini-
ão”.
41
Entre os eruditos modernos, o consenso é que Hesíodo teria vivido no VIII ou VII século a.C.
Sobre Hesíodo no VIII século, cf. WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p. 30; sobre a possibili-
dade de Hesíodo no VII século, cf. MAZON, Paul. Hésiode: théogonie, les travaux et les jours, le
bouclier, p. XIV.
194

sua vontade individual, garantia-lhes a vitória e, consequentemente o reconheci-


mento do grupo social, caso sobrevivessem. No entanto, se perecessem bravamen-
te, os heróis homéricos adentravam os Campos Elíseos e eram lembrados para
sempre (é o tema da imortalidade pela lembrança, nos mesmos moldes dos cana-
neus, conforme exemplificado na história de Aqhat mencionada acima, presente
também entre os egípcios). Observa-se que nem mesmo os grandes heróis podem
evitar a mortalidade.
Uma vez estando no Mundo dos Mortos, não há a possibilidade de volta.
Quando Príamo vai ao acampamento dos aqueus solicitar a Aquiles o corpo de seu
filho Heitor, que Aquiles, após matá-lo, para lá havia arrastado, o herói aqueu, re-
lutante, se recusa a entregá-lo. Príamo queria dar um funeral digno ao filho e, após
muita insistência, consegue levá-lo. Em determinado momento, Aquiles chega a
dizer ao Rei de Troia: “Nada consegues chorando teu filho com tantos encômios;
não ressuscita, e, além disso, outro mal poderias causar-te”.42
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Já na Odisseia, os heróis são encontrados no Hades, o Mundo dos Mortos,


quando Ulisses, ainda vivo, necessita contemplar os domínios daquele lugar para
buscar na sabedoria dos mortos a garantia de um roteiro seguro para o seu regresso
a Ítaca. A chegada ao Hades se dava através de uma viagem marítima, tema co-
mum também na poesia lírica de Píndaro (V século a.C.).43 Entretanto, ao contrá-
rio da Epopeia de Gilgamesh, a Odisseia não tem como tema central a imortalida-
de; esta “é usada somente como uma maneira para sublinhar os verdadeiros temas:
heroísmo e fama”. 44
No Canto X, o poeta narra que, durante sua viagem de volta à terra natal,
Ulisses e seus companheiros aportam na Ilha de Ajaia, onde vivia a deusa Circe.
Após uma série de desventuras, o herói consegue escapar das artimanhas da deusa,
e esta ainda lhe orienta sobre o que deveria fazer para chegar à sua pátria são e
salvo. Ulisses deveria ir ao Hades consultar o mago tebano Tirésias, o qual, em

42
HOMERO. Ilíada XXIV, 550-551. (cf. a tradução em versos de Carlos A. Nunes, p. 374).
43
O tema da viagem marítima para abordar as margens do além é tradicional na literatura grega.
Essa tradição procede da Odisseia homérica. Entretanto, o tema não é restrito à tradição literária
grega: “Esse tipo de imagens é, igualmente, habitual em outras literaturas, como a dos Egípcios e a
dos Sumérios, por exemplo, sem falar nas civilizações pré-helênicas do Egeu, nas quais o culto da
barca das almas parece ter sido uma constante nas representações artísticas mais antigas. Não seri-
a, pois, mera coincidência, estabelecer um paralelo entre o Livro dos Mortos dos Egípcios – em
que, a par das múltiplas e apavorantes peripécias por que têm de passar as almas no além, também
é descrito um país de eterna felicidade – e a Ilha dos Bem-Aventurados Hiperbóreos, povo mítico,
eternamente jovem e feliz, a que o poeta [Píndaro] se refere, em mais de uma oportunidade” (cf.
HORTA, Guida N. B. Parreiras. A luz da Hélade: ensaios literários, p. 106; grifo da autora).
44
SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 213.
195

vida, era cego. Essa viagem ao Hades é narrada no Canto XI.45


No Hades, Ulisses encontra vários mortos conhecidos, inclusive Aquiles, o
herói da Ilíada (o qual, na conversa com Ulisses, reclama de sua inatividade no
Hades), Elpenor, o primeiro que vem ao encontro de Ulisses, recém chegado ao
Hades (o mais jovem companheiro do herói que, antes de sair da ilha da deusa,
caiu do telhado após acordar assustado),46 sua própria mãe e o mago Tirésias. Inte-
ressante observar que sua mãe, mesmo no Hades, dá a Ulisses notícias do cotidia-
no atual de sua casa em Ítaca. Ulisses tenta por três vezes abraçá-la, mas não con-
segue: os mortos são como espectros, fantasmas, infelizes pela ausência de seus
corpos. No caso de Hércules, um semideus, o narrador afirma que seu espectro
está no Hades, mas “ele próprio se encontra com os deuses imortais”. Ao encon-
trar Tirésias, este faz previsões sobre a viagem de Ulisses e inclusive sobre como
ele encontrará sua casa e família; observa-se, assim, que mesmo no Hades ele po-
de, esporadicamente, exercer o ofício profético que exercia quando em vida.47
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Juntamente com a Ilíada e a Odisseia, de Homero, a Teogonia e Os Traba-


lhos e os dias (conhecido em grego como Erga, “Obras”, ou “Trabalhos”) de He-
síodo são as obras mais importantes do Período Arcaico (período que vai desde as
primeiras criações literárias (Homero e Hesíodo) até o fim das guerras medo-
pérsicas, em 448 a.C.).
Na Teogonia, Hesíodo trata da questão do surgimento e da luta dos deuses
45
Cf. o relato da ida de Ulisses às portas do Hades, na forma narrativa, em HOMERO. A Odisseia.
Tradução de Fernando C. de A. Gomes, p. 121-134.
46
Elpenor inclusive reclama o fato de não ter sido ainda enterrado e nem lamentado (pela falta de
tempo de Ulisses e seus companheiros); ele faz uma ameaça: caso Ulisses não cumpra os rituais
funerários, ele lhe lançará “a vingança de Zeus”. Tal assertiva se assemelha com as crenças no po-
der dos mortos entre os egípcios, mesopotâmicos e cananeus, citadas acima, de efetuar juízo sobre
os vivos caso não fossem reverenciados.
47
O conhecimento do futuro, possibilitando ao morto fazer previsões, lembra o episódio do Rei
Saul e a pitonisa de Endor narrado em 1Sm 28,3-25 (esse episódio será analisado adiante). Na lite-
ratura romana antiga, há uma versão dessa descida de um herói épico ao Mundo dos Mortos, já
citada neste trabalho: trata-se de Eneias (Eneida, Canto VI), personagem de Virgílio (I século
a.C.); o herói Eneias, chegando à ilha de Cumas, faz consulta à Sibila e obtém revelações sobre os
futuros percalços que terá de enfrentar. Ele consegue permissão para ir ao Mundo dos Mortos e lá
toma conhecimento de que as almas habitam determinadas regiões de acordo com o que fizeram
quando em vida, sendo julgadas pelo tribunal de Minos. À semelhança do que ocorreu com Ulis-
ses, um dos primeiros que Eneias encontra no Hades é um piloto de sua nau, Palinuro, que tinha
morrido pouco antes, o qual, como também o personagem da Odisseia, roga a Eneias para que o
enterre o mais rápido possível. Num lugar reservado aos bem-aventurados (o “Amplo Elísio”), o
herói encontra seu pai, Anquises, e tenta agarrá-lo por três vezes (como Ulisses fizera com sua
mãe), mas não consegue, pois as almas no Hades são como sombras; seu pai é uma imagem seme-
lhante ao vento. Anquises lhe mostra então as almas que aguardavam o momento de reencarnar,
almas estas de vários heróis do povo romano. Antes de Eneias ir embora, seu pai faz-lhe previsões
sobre o futuro do herói, mostrando, assim, que os mortos no Hades também podem fazer previsões
na literatura clássica romana (cf. o relato narrativo em VIRGÍLIO. Eneida. Tradução David J. Jú-
nior, p. 94-111).
196

da mitologia pré-homérica; já nos Erga (poema com mais de 800 versos hexâme-
tros) o enfoque é bem diferente: Hesíodo trata de temas mais terrenos, especial-
mente da questão da justiça.48 Dentro dessa temática, o poeta narra o mito das cin-
co raças (v. 106 a 201 do poema). Trata-se da história das diversas raças de ho-
mens que apareceram e desapareceram sucessivamente, numa ordem aparente de
decadência progressiva e regular. Elas são nomeadas por metais e assemelhadas a
eles, do mais precioso ao de menor valor, do superior ao inferior: primeiro o ouro,
depois a prata, o bronze e, por último, o ferro. Esta última é a da época em que
vive o poeta e seus contemporâneos, considerada a pior da história humana (daí
simbolizada pelo metal de menor valor), o que revela seu pessimismo em relação à
sua própria época. Quebrando essa sequência metálica, entre a Raça de Bronze e a
de Ferro, Hesíodo insere a Raça dos Heróis.
Os homens da Raça de Ouro (a mais próxima dos deuses imortais), da Ra-
ça de Prata, da Raça de Bronze e da Raça de Heróis continuam a existir no pós-
morte: os da Raça de Ouro se tornam “gênios”, “guardiões dos homens mortais”;49
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já os homens da Raça de Prata, menos valorosos, ao morrer também se tornam


“bem-aventurados”, numa escala menor que os da raça anterior;50 os homens da
terceira raça, simbolizada pelo bronze, continuam em decadência no pós-morte:
vão para o Hades, o mundo dos mortos;51 a quarta raça, a dos Heróis (imediata-
mente anterior à Raça de Ferro, em que vive o poeta), rompe com a decadente de-
gradação: são valorosos, dignos, heróis de guerra e, no pós-morte, adquirem posi-
ção superior às raças anteriores.52 Certamente aqui essa inserção (pois quebra a

48
Cf. BARRON, J. P.; EASTERLING, P. E. Hesiod. In: EASTERLING, P. E.; KNOX, B.M.W.
(Ed.). CHCL: Greek Literature, p. 92-105. v. 1; aqui especialmente p. 94-96.
49
Nos Erga, v. 121-126, o texto registra: “Mas quando então a esta raça a terra envolveu inteira-
mente, eles são, por determinação do Deus poderoso, gênios corajosos, epictônios, guardiões dos
homens mortais, os quais certamente estão vigiando julgamentos e obras funestas, revestidos de ar,
vão e vêm sem cessar, por todo o lado, sobre a terra, doadores de riquezas; e este foi seu privilégio
real” (tradução nossa a partir do texto estabelecido por WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p.
100-101).
50
Cf. os v. 140-142: “Mas depois que também a esta raça a terra envolveu inteiramente, eles são
chamados hipoctônios, bem-aventurados mortais, segundos, mas, em todo caso, a honra também os
acompanha” (Ibidem, p. 101).
51
Cf. os v. 152-155: “E eles, por suas próprias mãos tendo sucumbido, foram para a úmida morada
do gelado Hades, anônimos; a morte, certamente, sendo eles terríveis, envolveu-os negra; deixaram
a luz brilhante do sol” (Ibidem, p. 102). Interessante notar que sua condição de “anônimos” é pecu-
liar ao lugar a eles destinado no pós-morte, o Hades (mundo dos espectros, das sombras, ou seres
desprovidos de essência).
52
Cf. os v. 161-173: “E a estes tanto a guerra má quanto o grito de guerra espantoso, a uns sob
Tebas de Sete Portas, na terra Cadmeia, aniquilaram combatendo por causa dos rebanhos de Édipo,
e a outros, carregados para além do grande abismo do mar, para Troia levaram por causa de Helena
de belo cabelo, ali onde certamente aos quais termo de morte envolveu, e à parte dos humanos
dando-lhes sustento e morada, Zeus Cronida pai estabeleceu nos confins da terra, e (são) estes que
197

linha decadente das raças) se deve ao conhecimento que Hesíodo tinha acerca dos
heróis gregos, os quais ele coloca como tendo vivido imediatamente antes de sua
época. A última raça, a de Ferro (a mais decadente em termos de distância dos
deuses, devido à violência, desrespeito e maldade), é a única a que o poeta não
narra o pós-morte, certamente porque retrata a sua geração, os seus ouvintes, vivos
ainda. 53
Segundo o poema, os homens tiveram a mesma origem dos deuses, sendo
que somente a estes foi reservada a imortalidade (à semelhança de mesopotâmicos
e cananeus já mencionados). O vocábulo homóthen (da mesma fonte, origem,54 ou
do mesmo ponto de partida)55 indica que os ánthrôpoi (homens, como raça huma-
na) têm, segundo West, o mesmo modo de vida dos theói (deuses);56 no entanto,
da mesma “origem” não significa que deuses e homens pertenciam à mesma famí-
lia: “Os deuses criaram os homens, não no sentido de tê-los engendrado, mas no
de tê-los produzido ou fabricado (poieîn)”.57
Quando criados, os homens tinham thymós58 despreocupada (Erga, 112); o
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mesmo termo designa depois a situação no pós-morte da raça de heróis na Ilha dos
Bem-aventurados (o oposto do Hades), junto ao Oceano profundo (v. 171).59 A
exemplo da Mesopotâmia, nem mesmo os heróis escapam ao destino da morte im-
posto por Zeus, apesar de sua condição post mortem ser diferente, como mostra o
relato desse verso.
Os homens da Raça de Ouro são classificados no pós-morte como gênios
epictônios (Erga, v. 122-123), os da Raça de Prata como gênios hipoctônios (v.
141), e os da Raça de Bronze como anônimos (v. 154). O termo daímôn (no plural
gênios, agentes divinos, v. 122) é usado na poesia grega como sinônimo para

habitam tendo coração tranquilo, na Ilha dos Bem-aventurados, junto ao Oceano profundo: heróis
afortunados, aos quais doce fruto três vezes ao ano florescendo produz a terra fecunda” (Ibidem, p.
102-103). Essa “Ilha dos Bem-aventurados” equivale ao “Campos Elíseos” de Homero (cf. a Odis-
seia IV, 561ss). Apesar de o Olimpo ser a residência dos deuses, essa “ilha” é bastante frequentada
por eles (cf. WEST, M. L. Op. cit. p. 193).
53
Poderia se pensar que essa raça, contemporânea a Hesíodo, não teria vivência no pós-morte de-
vido à sua maldade; entretanto, o poema não revela isso.
54
Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 1224.
55
Cf. BAILLY, Anatole. AB, p. 1375.
56
WEST, M. L. Op. cit. p. 178. O verso 112 confirma, para a Raça de Ouro: “como deuses viviam,
tendo vida despreocupada”.
57
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos, p. 115.
58
Esse vocábulo, muito comum em Homero, pode ter vários sentidos, como “alma” (no sentido de
“princípio da vida”), “vida”, “coração” (como sede dos sentimentos e do pensamento), e “mente”
(cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 810 e BAILLY, A. Op. cit. p. 948).
59
Oceano, personificado, é o deus do Mar, filho de Urano e Gaia, personagem que aparece em
outra obra de Hesíodo, mais antiga, a Teogonia (v. 126-133). A situação humana na Raça de Ouro
evoca o mito do primitivo estado paradisíaco da humanidade.
198

“deuses”, mas sempre no singular, expressando o sentido de agentes divinos res-


ponsáveis pela sorte dos homens, individualmente; Hesíodo aplica o termo no plu-
ral a toda uma raça. Havia uma tendência a honrar os homens ilustres após sua
morte devido à crença de que eles ainda possuíam poder para prescrever o bem ou
o mal para a comunidade, ou seja, seriam dáimones60 (a exemplo, como visto aci-
ma, de mesopotâmicos e cananeus). Somente muito posteriormente o termo adqui-
riu o sentido de “mau espírito”, “demônio”. Relacionado aos dáimones, o adjetivo
epichthónioi (habitantes da terra, v. 123) é de uso frequente em Homero como
epíteto para os homens, mas designando também espécies de “deuses inferiores”,
seres situados entre os deuses e os heróis.61 Em Hesíodo, designa “as almas dos
homens de raça de ouro, os quais atuam como divindades tutelares e frequentam a
terra”,62 ou “deuses que residem sobre a terra”.63
Vernant afirma que o termo está em oposição a hypochthónioi do v. 141
(embaixo da terra, subterrâneos),64 o qual indica o destino da Raça de Prata, esta-
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belecendo o paralelo entre as diferentes situações post mortem das duas primeiras
raças.65 O destino dos homens da Raça de Prata lembra o mesmo destino dos Ti-
tãs, depois de derrotados por Zeus, na Teogonia (v. 717-721).66
Assim, ao descrever os homens da Raça de Prata como hipoctônios e bem-
aventurados, Hesíodo está certamente identificando esses homens com alguns
mortos respeitados como poderosos ou perigosos (mortos especiais, como os reve-
renciados no marziḥ cananeu); eles, entretanto, não saem do mundo subterrâneo,
não têm identidade, não são lendários (por isso Hesíodo não os identificou com a
quarta raça, a dos Heróis). Existiam numerosos túmulos antigos tratados com ve-
neração supersticiosa pelo povo sem que se saiba a quem pertenciam. Para Ver-
nant, entretanto, a natureza e o tipo de autoridade dada a esses homens da segunda
raça não é fácil de ser definida: “A única certeza que se tem em relação a essa ca-
tegoria de defuntos ‘venerados’ pelos homens é que ‘eles são chamados mákares,
Bem-aventurados’”.67 É somente isso que o texto admite, com certeza, acerca do
destino deles: sua contraposição ao destino dos homens da Raça de Ouro.

60
WEST, M. L. Op. cit. p. 182.
61
Cf. BAILLY, A. Op. cit. p. 425.
62
Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 366 e 673.
63
Cf. BAILLY, A. Op. cit. p. 788.
64
Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 1902.
65
VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit. p. 33-34.
66
Cf. TORRANO, Jaa. Teogonia: a origem dos deuses, p. 145.
67
VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit. p. 122.
199

Já o adjetivo nónymnoi (anônimos), com o qual a Raça de Bronze é desig-


nada no Hades, pode ter o sentido de “sem glória”. 68
No caso de todas as raças (menos a de Ferro, que não passou, ou seja, não
morreu ainda), vê-se que a morte não significa o aniquilamento total da existência;
sua existência no além, entretanto, se dá em diferentes situações e lugares. Assim,
percebe-se uma clara referência da continuação da existência no pós-morte para as
quatro primeiras raças, justamente as que já viveram sobre a Terra; além disso,
essa condição no além é, de certa forma, pautada na conduta ético-religiosa de ca-
da raça durante sua vida sobre a Terra.
Na literatura grega em geral, os heróis, devido à sua condição privilegiada
no além, serão vistos por muitos escritores como conquistadores da imortalidade.
Esse tema pertinente aos heróis será inclusive uma das motivações para o culto em
honra deles. 69 Entretanto, eles não são capazes de voltar à vida terrestre, reencar-
nando em seu corpo anterior, ou mesmo qualquer outra forma de corpo; o máximo
que se podia era manter a imagem do corpo físico no além. 70
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Para os gregos de uma forma geral, o homem possuía, além do corpo, uma
psychê. Esse termo “em Homero e Hesíodo é a vida ou o que dela subsiste”;71 o
sentido de “alma” surge em Xenófanes, referente a Pitágoras, e em Anacreonte,
sendo este sentido usado posteriormente por Platão no Fedro.72 No entanto, em
algumas ocasiões psychê é usado como sinônimo do termo thymós homérico (cita-
do acima), e era justamente a psychê que ia para o Hades;73 portanto, era o que
sobrevivia após a morte, passando a designar a parte não-material do homem. A
concepção dessa parte não-material, oposta ao corpo, surge em Heráclito. Obser-
va-se assim a modificação semântica do termo como reflexo da evolução do pen-
samento grego, desde Homero até o século V a.C.74
Por fim, interessante observar que nos Erga se percebe também o dualismo
entre Bem e Mal já expresso por Zoroastro nos Gathas, conforme assinalado aci-
ma. No primeiro relato dos Erga (v. 11-41), Hesíodo narra a existência da dúplice

68
Cf. BAILLY, A. Op. cit. p. 1338.
69
Para um tratamento abrangente do tema, cf. NAGY, Gregory. Poetic Visions of Immortality for
the Hero. In: The Best of the Achaeans: Concepts of the Hero in Archaic Greek Poetry, p. 174-210.
70
SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 212.
71
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica, p. 248.
72
Ibidem, p. 249.
73
O Mundo dos Mortos, nos escritos homéricos, “é simplesmente o lugar para onde a alma (psy-
chê) vai quando seu corpo morre” (SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 211).
74
Cf. BREMMER, Jan N. The Soul of the Living. In: The Early Greek Concept of the Soul, p. 13-
69; aqui especialmente p. 66-69.
200

Luta ( !Eri),75 uma boa e outra má, as quais explicam a existência da ambiguida-
de de índole que Hesíodo observa nos seres humanos. No mito das cinco raças, o
estado presente da humanidade é descrito como sendo a mistura de bem e mal, o
mesmo tema da dúplice Éris (na Idade do Ouro, os homens não precisam do traba-
lho para se alimentar: não têm necessidade da boa Éris, a que incentiva o trabalho,
a honestidade, a justiça; já na última Raça, a do Ferro, eles estão entregues à má
Éris).
Nesta narrativa, a das raças, Hesíodo acentua o dualismo da dúplice Éris
em outro par de opostos: Díke e Hýbris (“Justiça” e “Excesso”),76 pois é a temáti-
ca da justiça que aparece como objetivo central desse relato. Na Raça de Ferro,
época em que vive o poeta, há os dois tipos de existência humana, totalmente o-
postos, um comportando Díke e Hýbris, e o outro apenas Hýbris. Em verdade, He-
síodo vive num mundo em que o bem e o mal estão mesclados e se equilibrando,77
o que lembra a “época atual de mistura” na escatologia zoroastriana.
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No Período Helenístico, a temática do pós-morte entre os gregos é bastante


influenciada pelas ideias do Orfismo e as noções platônicas, influência essa que se
fará sentir também entre os judeus.
O orfismo aparece já no Período Arcaico, mas suas ideias são desenvolvi-
das e difundidas de fato a partir do III século a.C. Sua doutrina da transmigração
das almas, seus conceitos de mundo subterrâneo e a ideia de castigo no pós-morte
exerceram grande influência no mundo helenístico, inclusive em Platão. Essa vida

75
Segundo Anatole Bailly, a palavra e!ri significa “querela à mão armada”, “luta”, “combate”,
“discórdia”, “contestação”, “rivalidade” (cf. BAILLY, A. AB, p. 805). No texto hesiódico, ela apa-
rece personificada, !Eri (Erga, 11, 16, 17 passim), a qual pode ser traduzida por “Discórdia”:
trata-se da Filha da Noite (Nuvx) da Teogonia, 225. Entretanto, nos Erga aparece uma novidade: ao
lado dessa !Eri má, existe a boa !Eri, irmã mais velha, que deve ser louvada (Erga, 12), pois é
proveitosa ao homem.
76
A tradição consagrou o significado de u@bri em português como sendo “desmedida”, “violên-
cia”. De fato, ela pode significar “violência libertina, suscitada pelo orgulho da força ou pela pai-
xão”; “insolência”; “ultraje”; “homem arrogante, autoritário, violento”; “lascívia, concupiscência”,
neste último caso em oposição à swrosuvnh, que é a “temperança”, a “prudência” (cf. LIDDELL,
H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 1741 e 1841). Assim, em uma definição mais abrangente, u@bri designa
a ultrapassagem de um limite. Entretanto, tal limite varia de acordo com os valores em que se está
inserido: em Homero (Ilíada II, 158 e 203), o limite é a ai*dwv (“sentimento moral de reverência”;
“respeito”; “temor da ignomínia” (cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 36); na Atenas clás-
sica, o limite é a swrosuvnh, qualidade de quem segue a justa medida (daí as traduções como
“desmedida” ou “excesso”). Em Hesíodo, o limite á a própria Divkh, a qual aparece associada ao
ideal de justa medida. “Desmedida” ou “Violência” parecem refletir apenas parcialmente o sentido
original hesiódico; dessa forma, “Excesso” certamente se coloca como uma tradução mais adequa-
da.
77
Cf. Erga, 179: “Mas, apesar disso, entre eles [os homens da Raça de Ferro] bens (e) desgraças
estarão misturados” (texto grego em WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p. 103).
201

no além era entendida, de certa forma, como uma existência “corporal”, uma re-
composição plena da vida humana. Os ensinamentos do orfismo, bem como dos
neopitagóricos posteriormente, “serviram como catalisadores para formar e ex-
pandir a crença na imortalidade”.78
No caso de Platão, ele acreditava que a verdadeira realidade consiste no
chamado Mundo das Ideias (ou Formas, ou Universais). O mundo verdadeiro é
imutável e não está sujeito aos sentidos físicos, devendo ser buscado por meio da
razão e da intuição. O mundo físico consiste apenas numa imitação do Mundo das
Ideias; todas as coisas existentes no mundo físico não passam de aparências, ima-
gens das Ideias: são os particulares. Platão defendia, portanto, um dualismo entre
os Universais (Ideias) e os particulares: aqueles são eternos, imutáveis, infinitos;
estes são, por contrapartida, terrenos, materiais, finitos. Esse dualismo teria sido
criado pelo Demiurgo (artífice), entidade que, tomando como modelos os Univer-
sais, criou o mundo físico, sendo este apenas sombra do verdadeiro mundo; por-
tanto, imperfeito.79
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O verdadeiro conhecimento só é possível através da contemplação do


mundo das Ideias; não se chega a esse conhecimento através do mundo físico.
Nesse dualismo, o filósofo estabelece dois tipos de conhecimento: a opinião (dó-
xa) e, em oposição a esta, o conhecimento propriamente dito (epistémê).80 A dóxa
consta da Imaginação (imagens, aparências, conhecimento através dos sentidos,
sem qualquer investigação) e da Percepção dos sentidos (que dá origem a crenças,
tanto parciais quanto equivocadas, como os particulares). A Imaginação e a Per-
cepção dos sentidos são a forma mais básica e menos confiável do conhecimento.
Já a epistémê consta dos processos lógicos e matemáticos (entidades ou
ideias matemáticas e semiabstratas são conhecidas dessa maneira) e da razão e in-
tuição (as Ideias são conhecidas dessa maneira). Esse é o nível mais avançado de
conhecimento; nesse ponto, cessam as imitações e a alma passa a conhecer dire-
tamente as Ideias. No entanto, isso só é completamente possível quando a alma
deixar o corpo físico, pois este, com seus sentidos, limita o acesso ao verdadeiro
conhecimento. Já a alma, eterna e derivada dos Universais, possui esse conheci-
78
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento, p. 166. v. 1.
79
Platão desenvolve seu conceito de Ideia (usando as palavras eîdos e idéa) especialmente no Fé-
don, considerado um dos diálogos de Platão já bem experiente, maduro (cf. o texto grego na edição
de Les Belles Lettres: Platon; oeuvres complètes. Tomo IV – 1ª parte: Phédon, com a tradução
portuguesa em CIVITA, Victor (Ed.). Fédon. In: Diálogos, Platão, p. 55-126. Os pensadores).
80
O conhecimento em si mesmo também é definido em Platão pelo termo gnôsis, quando em opo-
sição a ágnoia, ou seja, ignorância (cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 355).
202

mento em si mesma. Enquanto estiver no corpo, resta ao homem relembrar aquilo


que já conhece no subconsciente, pois sendo a alma derivada do Mundo das Ideias
ela já o contemplou antes do nascimento terreno. Esse relembrar, tirar do esque-
cimento (anámnêsis), trazer de volta para a memória pode se dar pela busca do
conhecimento genuíno, com a ajuda da dialética e da contemplação. Esse aspecto
da pré-existência da alma e sua recordação é chamado de Teoria da Reminiscên-
cia. Por essa teoria Platão teve que inferir a imortalidade da alma, como também a
teoria da transmigração dela.
Entre o Mundo das Ideias e o dos particulares há a barreira da mortalidade;
isso explica por que os homens não podem tomar posse, de maneira definitiva, das
Ideias. Observa-se, assim, que a partir de sua cosmologia dualista Platão pensa
uma antropologia humana também dualista: o corpo é mortal (pertence aos parti-
culares), ao passo que a alma é eterna, ou melhor, infinita, pois não somente as-
cende ao Mundo das Ideias após a morte, como também já esteve lá antes de en-
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carnar no corpo material.


A influência platônica associada a outras escolas filosóficas gregas não
permitiu que os gregos acreditassem numa ressurreição corporal. Já na Época do
NT, o livro de Atos registra um discurso de Paulo aos gregos em Atenas no qual,
quando o apóstolo se referiu à temática do Cristo ressuscitado, os ouvintes, em sua
maioria, “começaram a zombar” ou simplesmente se retiraram (At 17,32-34). O
sermão do apóstolo obteve pouco êxito.
Na tradição tardia essa concepção não se alterou. Luciano de Samosata,
por exemplo, viveu aproximadamente entre 125-190 d.C.81 Sua obra considerada
mais célebre é o Diálogo dos mortos. 82 Ela tem como tema a chegada das pessoas
ao mundo dos mortos. Luciano trata de muitas questões morais e religiosas de seu
tempo, com muitas sátiras acerca da futilidade das atividades humanas. Ele conse-
gue provocar o riso em situações aparentemente trágicas ou de coisas que, para o
povo, eram consideradas sagradas. Sua preocupação não é fazer com que o povo
acredite numa “vida além da morte”, mas conduzi-lo à reflexão acerca da situação
social, moral e cultural vivida naquela época. Assim, a disparidade social é alvo da
81
Luciano de Samosata era sírio; sua língua de origem, portanto, não era a grega, mas a siríaca.
Apesar disso, foi considerado pela crítica moderna como o “mais ático” dos escritores de seu tem-
po, pelo bom uso que fazia desse já antigo dialeto. Sobre o contexto de Luciano, sua época e obra,
cf. LESKY, Albin. O florescimento da Segunda Sofística. In: História da literatura grega, p. 866-
883, especialmente p. 874-880.
82
Cf. texto grego com tradução, notas e comentários em LUCIANO. Diálogo dos mortos. Tradu-
ção e notas Maria Celeste C. Dezotti (1996).
203

crítica de costumes feita por ele;83 pode-se dizer que ele tem como objetivo, mais
do que reformar, a intenção de denunciar.
No desequilíbrio das classes sociais, Luciano enfatiza que o prazer do rico
só é completo se existir o pobre para admirar e desejar a sua riqueza. É somente
no Hades que ambos desfrutarão das mesmas coisas, pois lá terão igualdade de
honra, não havendo ninguém melhor que o outro. A diferença estará no que cada
um viveu na Terra: os ricos e poderosos sofrerão pela ausência daquilo que desfru-
tavam quando em vida.
O Hades serve, então, de castigo para os ricos e orgulhosos, os quais não se
importavam com nada mais que prazeres, luxo e cobiça. Tinham um grande pavor
da morte pela incerteza de saber se continuariam a gozar os mesmos privilégios,
ao passo que os pobres e desafortunados nada tinham a perder com a morte. Por
isso, estes entravam no Hades sem nenhuma preocupação com o que viria a ser
aquele lugar. Luciano então coloca em dúvida os valores da sociedade de seu tem-
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po. Sua crítica leva a uma reflexão sobre a efemeridade das coisas do mundo, tan-
to físico quanto metafísico.
Dessa forma, a morte é utilizada por Luciano como o momento da inversão
das duas situações: os ricos alegres passam a mortos pesarosos, e os pobres opri-
midos passam a espectros leves, sem nenhum peso das coisas que possam prendê-
los à vida. Até mesmo o trabalho, que os ricos desconheciam em vida, eles rece-
bem como castigo, fato que revela a crítica de Luciano a essa postura. O Hades é
utilizado para criticar a ordem vigente.
Um grande herói que aparece entre os mortos no Hades de Luciano é Aqui-
les, o qual, apesar de ser filho de Peleu com a deusa Tétis, tem o mesmo destino
dos mortais. Não há dúvida de que Luciano espelhou-se na experiência de Ulisses
na Odisséia, em que este desce ao Hades e encontra vários amigos e inimigos co-
mo espectros. Na Ilíada, Aquiles prefere ter uma vida curta com uma morte nobre
a ter uma vida longa mas sem reconhecimento; no Hades de Luciano, o Aquiles
encontrado é justamente o contrário desse excesso de nobreza e valentia, desejan-
do ser desconhecido a ter que estar entre os mortos. É através da figura de Aquiles
acabrunhado que Luciano faz sua crítica a Homero e sua suposta nobreza, por e-
xaltar o homem a estatura de um deus quando ele é um simples mortal, cheio de

83
O gênero dessa obra de Luciano ficou conhecido justamente por esta expressão: crítica de cos-
tumes.
204

medo e incertezas.
Vê-se então que, entre os autores gregos em geral, não ocorre a idéia de
ressurreição individual. A primeira e rara evidência do tema, conforme citações de
Plutarco e Diógenes Laércio assinaladas supra, está em um historiador chamado
Teopompo de Chios, na Jônia, da mesma época de Platão; ele cita a ressurreição
corporal atribuindo-a aos ensinos de Zoroastro. De acordo com uma biografia já
da época bizantina, Teopompo nasceu em 378 e faleceu em 320 a.C. Foi aluno de
Isócrates de Atenas, estudou retórica e parece ter sido um exímio orador em sua
época. Sua obra é predominantemente de caráter histórico. O problema da citação
de Teopompo é que seus trabalhos não foram preservados na forma original. Atu-
almente se contam 370 fragmentos atribuídos às suas obras.84 Além de Plutarco e
Diógenes, ele é citado por muitos historiadores e autores, sendo o próprio Dióge-
nes e Aenas de Gaza (este bastante tardio) os mais conhecidos na atribuição explí-
cita a Teopompo da crença na ressurreição do indivíduo.
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De qualquer forma, observa-se que, quase de uma maneira geral, os gregos


aceitavam a imortalidade da alma, mas rejeitavam a ideia da ressurreição corporal.

4.2. A vida no pós-morte durante o Judaísmo antigo

O AT não especula acerca da origem da vida; ela é conhecida, vem de I-


ahweh. O que era crucial em Israel era a relação real e absoluta da vida com Iah-
weh; ele é o Senhor da vida (Jó 12,10).85 Além disso, “a vida não é individualiza-
da no Antigo Testamento. Ela é dada por Deus em comunidade”. 86 Já a morte
também é vista como o fim normal, natural da vida na Terra, comum a todas as
pessoas.87 Morrer significava simplesmente, então, o fim para o viver.88 Entretan-
to, já durante a época conhecida pela pesquisa moderna como Judaísmo do Pri-
meiro Templo (cerca de 960-587 a.C.), os israelitas também tinham uma determi-
nada expectativa na vida após a morte, pelo menos na não-aniquilação total do né-
fesh humano, a exemplo dos outros povos antigos acima citados. Certos Salmos,
84
Para a problemática da historicidade e antiguidade de Teopompo e sua obra, cf. FLOWER, Mi-
chael A. Theopompus of Chios: History and Rhetoric in the Fourth Century B.C., p. 11-25.
85
VON RAD, Gerhard. Life and Death in the O.T. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT, p. 844. v. 2.
86
RIDENHOUR, T. E. Immortality and Resurrection in the Old Testament. Dialog 15.2 (1976), p.
104-109; aqui p. 104.
87
Cf., por exemplo, Gn 15,15; 35,19; Js 23,14; Jz 8,32; 1Rs 2,2; 1Cr 29,28, Jó 5,26; 30,23; 42,17;
Sl 39,13. Para um aprofundamento de vida e morte na antropologia do AT, cf. WOLFF, Hans Wal-
ter. Vida e morte. In: Antropologia do Antigo Testamento, p. 161-187.
88
Cf., por exemplo, 2Sm 14,14; Jó 14,7-12; Sl 88,11-13; Is 38,18.
205

por exemplo, apontam a expressão de uma esperança de que a morte não pode ser
a resposta final se Iahweh é, de fato, fiel às suas promessas da aliança com seu po-
vo (cf. Sl 16, 49 e 73). A princípio, essa vida no pós-morte se dava num Mundo
dos Mortos quase sempre denominado pela palavra hebraica Sheol.89
Nessa compreensão de vida após a morte, esta representava o fim das rela-
ções, tanto pessoais quanto das relações com a divindade. O morto estava fora do
âmbito da ação de Iahweh. 90 Textos como Sl 88,10-12 deixam claro o que signifi-
cava para os mortos terem suas relações com Iahweh cortadas por morarem no
Sheol.91 Normalmente, o Sheol era o lugar comum para toda e qualquer pessoa, do
qual não se podia fugir e para além do qual nada deveria ser esperado, e a ida para
o Sheol não permitia mais retorno (ideia semelhante à expressa por outros povos
já descritos acima).
De qualquer forma, nesse período do judaísmo antigo a noção da existência
após a morte é vaga e abstrata (por exemplo, no Sheol o homem continua a existir,
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mas às vezes parece estar inconsciente). Aparentemente, há certo desinteresse pelo


tema, possivelmente pelo fato de haver uma antipatia dos israelitas pelos cultos
estrangeiros (incluindo os que invocavam ou procuravam aplacar a ira dos mortos)
com o intuito de desacreditar os seus deuses. Assim, era inviável se pensar em um
reino dos mortos com deuses específicos, nos moldes de Osíris ou Anúbis (Egito),
Nergal e Ershkigal (Mesopotâmia) ou de Mot (em Canaã), pois tal expectativa po-
deria abrir a possibilidade da veneração de espectros ou espíritos dos mortos, o
que os escritos sagrados proibiam terminantemente.92
Entretanto, o episódio narrado em 1Sm 28,3-25, em que o Rei Saul consul-
ta uma feiticeira na cidade de Endor, revela que, embora proibidos, os ritos de ne-
cromancia eram praticados em Israel. 93 O conhecimento e a prática de tal ativida-
de certamente inspirou as prescrições legais acerca dos mortos: eles não podiam

89
Numa compreensão mais tardia (no Judaísmo do Segundo Templo), outra vertente da vida no
pós-morte será desenvolvida como forma de resolver a questão, justamente o tema deste trabalho: a
ideia da ressurreição (cf. ROWLEY, H. H. The Future Life in the Thought of the Old Testament.
CgQ 33 (1955), p. 116-132). Ressaltamos que para as palavras hebraicas já estabelecidas no verná-
culo português optamos por adotar a grafia corrente (uma “transliteração aportuguesada”). Quando
ao estudo semântico do termo Sheol, cf. adiante.
90
WOLFF, Hans Walter. Vida e morte. In: Op. cit. p. 170-171.
91
O Sl 88, 11-13 relata: “Realizas maravilhas pelos mortos? As sombras se levantam para te lou-
var? Falam do teu amor nas sepulturas, da tua fidelidade no lugar da perdição? Conhecem tuas
maravilhas na treva, e tua justiça na terra do esquecimento?”.
92
Cf. Lv 19,26.31; 20,6.27; Dt 18,9-14; 1Sm 28,7-10.
93
Blenkinsopp argumenta que esses cultos estavam presentes no antigo Israel e foram deliberada-
mente erradicados posteriormente (cf. BLENKINSOPP, Joseph. Deuteronomy and the Politics of
Post-Mortem Existence. VT 45.1 (1995), p. 1-16). Cf. também 2Rs 21,6; Is 8,19.
206

ajudar nem ser ajudados pelos vivos, não deveriam ser cultuados e as consultas
mediúnicas deveriam ser punidas com apedrejamento. A frequência dessa proibi-
ção parece revelar, na verdade, sua pouca eficácia. Embora haja essa proibição
legal frequente a esse culto, o Pentateuco não registra sinais dele, o que tem levan-
tado algumas hipóteses, como, por exemplo, a ideia de que a menção a esses cul-
tos teria sido retirada da Escritura. Questões também foram levantadas, como em
que momento esses cultos teriam sido banidos dentre os israelitas, se teria sido
antes de os livros serem editados, por qual motivo e, ainda, se em algum momento
teria havido em Israel a prática autorizada desses cultos e ritos nos moldes daque-
les encontrados nas redondezas. 94 Para Segal:
A Bíblia inteira pode ter sido editada cuidadosamente, de modo a afastar-se de
qualquer referência à vida e à morte, de acordo com o seu viés editorial. Entretan-
to, ela é uma literatura nacional acumulada a partir de uma variedade de locais e
sob o controle de um editor que, evidentemente, pensou que algumas tradições
eram demasiadamente sagradas para serem omitidas, mesmo se elas fossem es-
candalosas. Assim, vamos encontrar muitos indícios de uma crença em cultos aos
ancestrais, bem como em uma vida após a morte, sob a suspeita de um trabalho
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95
editorial neles.

Pode ser que, a partir do momento em que a tradição do “Iahweh sozinho”


impôs-se às demais (século VII a.C.),96 os ritos de necromancia teriam sido bani-
dos do antigo Israel por serem considerados ofensivos à fé javista, pois esta partia
do princípio de que tais ritos remetiam à veneração de outros deuses. O movimen-
to deuteronomista apregoava a fidelidade exclusiva a Iahweh, o Deus que libertou
o povo do Egito. Entretanto, na prática popular persistia uma tendência claramente
sincretista. O extenso reinado de Manassés (698-643 a.C.), com sua sujeição à As-
síria, foi longânimo com o sincretismo religioso, oficialmente tolerado.
Assim sendo, além da adoração oficial a Iahweh, praticava-se adoração nos
lugares altos, onde deuses cananeus eram adorados, especialmente Baal e sua con-
sorte Asherá, cuja imagem foi, inclusive, colocada dentro do Templo (2Rs 21,7).97

94
Cf. DOUGLAS, Mary. No Cult of the Dead. Leviticus As Literature, p. 98-104.
95
SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 131. Para este autor, o erro de Saul, ou seja, a necromancia,
foi retroagido pelos escribas da corte com o intuito de explicar sua fracassada campanha militar
diante dos filisteus como sendo fruto da punição divina (Ibidem).
96
Sabe-se que o Rei Josias (640 – 609 a.C.) reformulou a religião em Israel, estabelecendo o Ja-
vismo puro e inaugurando a tradição do “Iahweh sozinho” (Cf. COHN, N. Cosmos, Chaos, and the
World to Come, p. 141-151).
97
Manassés era simpatizante também às divindades astrais assírias. O deuteronomista denuncia o
rei porque “reconstruiu os lugares altos que Ezequias, seu pai, havia destruído, ergueu altares a
Baal, fabricou um poste sagrado, como havia feito Acabe, rei de Israel, e prostrou-se diante de todo
o exército do céu e lhe prestou culto. Construiu altares no Templo de Iahweh, do qual Iahweh dis-
sera: ‘É em Jerusalém que colocarei meu Nome’. Edificou altares para todo o exército do céu nos
207

Essa deusa era a mesma deusa assírio-babilônica Ishtar (Inana), conhecida na Pa-
lestina e arredores como Astarte, chamada também de Rainha do Céu, que chegou
a ser considerada consorte, além de Baal, também de Iahweh.98 Sua adoração
constituía uma devoção muito popular (Jr 7,18; 19,3), como revelam suas 822 es-
tatuetas encontradas em Judá, mais de 400 somente em Jerusalém.99 Além disso, é
bastante plausível que tenham existido vários santuários de Iahweh por todo o Is-
rael.100
Por ocasião da migração dos israelitas para Canaã, parece que os cananeus
foram, pelo menos em parte, submetidos aos hebreus pelo sistema de corveia (não
foram totalmente expulsos, cf. Jz 1,28). Pode ser que, por esse tempo, Iahweh pas-
sou a ser identificado com o El cananeu, celebrado como criador da Terra e pai
dos deuses.
Também o livro do profeta Oseias (apesar de conter inserções posteriores,
estas partilhavam as tradições e convicções do profeta do VIII século a.C.) revela
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uma religião politeísta praticada pelo povo em geral e pela elite religiosa, o que
aborrecia profundamente a Iahweh. 101
O fato é que essas questões postuladas acima não são fáceis de ser total-
mente respondidas, em parte devido a certa escassez literária relativa ao tema à
época do Judaísmo do Primeiro Templo, especialmente no que se refere a textos
paralelos ao TM.

dois pátios do Templo de Iahweh” (2Rs 21,3-5). Tais símbolos de Baal e Asherá só foram retirados
do Templo pela reforma religiosa de Josias, o qual ordenou “que retirassem do santuário de Iahweh
todos os objetos de culto que tinham sido feitos para Baal, para Aserá e para todo o exército do
céu; queimou-os fora de Jerusalém...” (2Rs 23,4); Josias também “destituiu os falsos sacerdotes
que os reis de Judá haviam estabelecido e que ofereciam sacrifícios nos lugares altos, nas cidades
de Judá e nos arredores de Jerusalém, e os que ofereciam sacrifícios a Baal, ao sol, à lua, às conste-
lações e a todo o exército do céu” (2Rs 23,4), bem como “demoliu a morada dos prostitutos sagra-
dos, que estavam no Templo de Iahweh, onde as mulheres teciam véus para Aserá” (2Rs 23,7).
Ezequiel também denuncia cultos idolátricos no Templo, com oferecimento de incenso em honra
de Asherá e com lamentações de mulheres em honra do deus da vegetação, sumério e assírio, Ta-
muz (Ez 8,5-16).
98
Essa associação como consorte de Iahweh na religiosidade popular teria sido eliminada da Escri-
tura Hebraica pela reforma deuteronomista.
99
Cf. GARMUS, Ludovico. Tolerância e intolerância em Jeremias. In: Tolerância e intolerância
religiosa. EstBib 109 (2011), p. 9-18; aqui p. 17.
100
Cf. DONNER, H. História de Israel e dos povos vizinhos, p. 172. v. 1.
101
Relata o livro do profeta: “Nos cimos das montanhas oferecem sacrifícios, e sobre as colinas
queimam incenso, debaixo do carvalho, do choupo e do terebinto, pois a sua sombra é boa. Por isso
as vossas filhas se prostituem e as vossas noras cometem adultério” (4,13 — trata-se da prostitui-
ção idolátrica); “Quando Efraim multiplicou os altares, eles só lhe serviram para pecar” (8,11);
“Eles sacrificavam aos baais e queimavam incenso aos ídolos” (11,2b); “E agora continuam pe-
cando: eles constroem para si uma imagem de metal fundido” (13,2a); “Mas eu sou Iahweh teu
Deus, desde a terra do Egito. Não deves reconhecer outro Deus além de mim, não há salvador que
não seja eu” (13,4).
208

Como a morte representava o fim dos relacionamentos, inclusive com a


divindade, é provável também uma resistência à ideia de que os mortos pudessem
existir de alguma forma fora do governo de Iahweh, podendo até manter um rela-
cionamento entre si (ou com os vivos) à revelia da divindade israelita, assumindo
status de semideuses, o que evidenciaria a existência de um panteão nos moldes
estrangeiros citados supra. De qualquer forma, não havia ideia de julgamento no
Sheol.
No caso de Saul e a pitonisa de Endor, Samuel aparece, quando invocado
pela mulher, como uma espécie de semideus, podendo até relatar a Saul o futuro
deste, a exemplo do caso de Tirésias e Ulisses na Odisseia. Assim, “os mortos, ou
pelo menos alguns deles, estão dotados de um poder que escapa aos humanos, co-
nhecem o futuro”.102 A própria pitonisa não reconhece a imagem de Samuel como
a de um fantasma, mas como a de um ser divino, um “elohim que subia da terra”
(1Sm 28,13); Samuel estava subindo do Sheol. O termo elohim era usado em refe-
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rência à divindade, e pode ser que alguns israelitas o interpretassem como sendo
designação de seus próprios ancestrais na Terra, fazendo-lhe súplicas e, através
destes, adorando seu Deus.103
Se, de fato, a religião popular possuía alguma expectativa de vida após a
morte de uma forma mais intensa que a registrada nos textos, parece haver pouca
razão para acreditar que fosse algo mais benéfico que as expectativas cananeias da
existência no pós-morte.104 Não há nenhuma evidência de que os judeus antigos
entendiam néfesh como “alma imortal” como entendeu a tradição judaica posteri-
or, bem como, por conseguinte, a tradição cristã; o néfesh descreve a identidade da
pessoa, mas não implica uma sobrevivência no pós-morte com algum tipo de re-
compensa. Em muitas ocasiões o termo é traduzido simplesmente como “vida”; no
Gênesis, a alma vivente é um “ser animado”, em oposição ao que não tem vida,
sendo aplicado não somente aos seres humanos, mas também aos animais. 105
Essa palavra apresenta, de fato, uma gama de significados ampla ao longo
das Escrituras Hebraicas, permitindo um leque de traduções: garganta, pescoço,

102
MARTIN-ACHARD, Robert. Da morte à ressurreição segundo o Antigo Testamento, p. 51.
Segundo este autor, “a esta tradição faz menção, sem dúvida, Isaías quando convida ironicamente
seus contemporâneos infiéis a invocar os seus deuses (isto é os seus mortos), uma vez que recusam
crer em Yahweh – Is 8,19” (Ibidem).
103
SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 131.
104
Ibidem, p. 143.
105
Em Gn 2,7a, Iahweh soprou [] nas narinas do homem o fôlego [ ] de vida, e o homem
passou a ser criatura [] vivente.
209

anelo, alma, vida, pessoa e a tradução por um pronome reflexivo (a expressão mi-
nha néfesh frequentemente equivale a eu próprio, mim mesmo).106 Por exemplo,
em 1Rs 17,22 a néfesh (respiração, vida) de um menino retorna e ele revive; em
Dt 12,23 néfesh está relacionada à proibição da ingestão de sangue (“Sê firme,
contudo, para não comeres o sangue, porque o sangue é a vida. Portanto, não co-
mas a vida com a carne”), relevando certa equivalência entre vida e sangue; outras
vezes sua relação se dá com garganta (Is 5,14; Hab 2,5), com apetite relacionado
à comida (Dt 23,25; Sl 78,18; Pr 12,10; Os 9,4) e relacionado ao apetite volitivo,
desejo, vontade (Ex 15,9; 1Sm 2,35; Sl 27,12; Pr 13,2). Algumas vezes néfesh se
apresenta como sujeito do verbo  (desejar, ansiar), não se relacionando a ne-
nhum tipo de apetite ou desejo em si mesmos, mas à dona do apetite, a própria
“alma”: “E o que a sua alma desejar [], isso mesmo faz” (Jó 23,13b).
Outras vezes pode indicar o impulso sexual: “Jumenta selvagem, acostumada ao
deserto, no ardor de seu cio [] fareja o vento; quem freará a sua pai-
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xão?” (Jr 2,24a).107


É bastante reconhecido também que os hebreus normalmente não faziam
distinção entre corpo e alma; geralmente, a antropologia semítica pensava o ser
humano como sendo uma unidade: não tinha uma “alma”, mas era uma alma, um
corpo juntamente com sua néfesh; esta poderia ser mais bem entendida, atualmen-
te, como a própria pessoa, ou personalidade, e não simplesmente criatura vivente,
ou sopro de vida (rûaḥ),108 pois o uso do termo pelos judeus antigos não apresenta
relação com o tema da imortalidade ou ressurreição corporal.
Outro termo que poderia causar dúvidas é o próprio rûaḥ, normalmente
traduzido por “espírito”. Sua ideia básica tem a ver com “ar em movimento”, des-
de a respiração (Gn 7,15.22; Sl 104,29; Is 42,5; Ez 37,5) até a ventania em uma

106
Cf. o estudo pormenorizado, com exemplos de cada caso, em WOLF, H. W. Antropologia do
Antigo Testamento, p. 33-56.
107
Cf. WALTKE, Bruce K. néfesh. In: HARRIS, R. L. (Org.). DITAT, p. 981-983. Para este autor,
“o significado original e concreto da palavra foi provavelmente respirar” (p. 982). Claus Wester-
mann sugere que uma boa tradução da palavra seria a designação genérica de indivíduos, as pesso-
as, usando-se também os pronomes pessoais (cf. sua abordagem em JENNI, Ernst; WESTER-
MANN, Claus. DTMAT, p. 71-95. v. 2). De qualquer forma, como a própria natureza da existência
envolve impulsos, apetites, desejos e vontades, néfesh denotaria a vida do indivíduo nesse leque
mais amplo, e não a noção abstrata de vida separada do corpo existencial.
108
Há quem pense em certo dualismo no pensamento hebraico antigo; cf. PAYNE, J. Barton. rûaḥ.
In: HARRIS, R. L. (Org.). Op. cit. p. 1407-1409. Deve-se, entretanto, ter cautela ao se atribuir ca-
tegorias do pensamento moderno ao pensamento dos judeus antigos: por exemplo, ao se estabele-
cer a analogia entre néfesh e personalidade, deve-se ter em mente que tal paralelo serve apenas
para situar o uso da palavra antiga em seu contexto, sem cometer anacronismos.
210

tempestade (Gn 8,1; Ex 15,10; Hab 1,11).109 Entretanto, sua conotação varia den-
tro da Bíblia Hebraica, permitindo, a exemplo de néfesh, uma variada gama de
significações (vento, respiração, força vital, espírito (s), temperamento, força de
vontade).110 Aparece ligado à própria atividade humana (Jz 15,19; 1Sm 30,12); em
última instância, o rûaḥ de toda a humanidade se encontra nas mãos de Iahweh (Jó
12,10; Is 42,5); liga-se à própria consciência humana (Sl 32,2; Pr 16,32; Is 26,9;
Dn 5,20) e pode retornar a Iahweh quando da morte do corpo (Jó 34,14; Ecl 12,7).
Neste último caso, interessante notar que a néfesh também podia se ausen-
tar do corpo (Gn 35,18; 1Rs 17,22; Sl 86,13). Assim, pode-se pensar no fato de
que, ao deixar o corpo, tanto néfesh quanto rûaḥ poderiam existir separadamente
dele. Isso corrobora para o fato de a existência humana continuar no pós-morte, de
alguma forma, em um Mundo dos Mortos, com consciência e percepção.
Observa-se que o pensamento sobre o tema não se mostra unificado ao
longo da Bíblia Hebraica. Levando-se em conta o contexto histórico-cultural em
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que os judeus antigos estavam inseridos, no qual os povos vizinhos davam valor
igual ou até maior ao Mundo dos Mortos em relação aos vivos, conforme assina-
lado acima, é plausível pensar que houve, em determinado momento do judaísmo
pré-exílico, influência direta ou indireta desses povos mais antigos no pensamento
israelita acerca do tema, apesar de tal fato possuir difícil atestação.
No universo cósmico dos judeus antigos, havia três “reinos” distintos: um
superior, um intermediário, e um inferior.111 Essa compreensão era compartilhada
por outros povos antigos. O reino superior era o lugar do sol, da lua, dos astros, e
da divindade, a qual não está sujeita à morte; nenhum mortal poderia ir até esse
reino (há somente duas exceções na tradição vétero-testamentária: Enoque e Elias,
o que será tratado adiante). O reino intermediário, que a narrativa da criação no
Gênesis denomina “Terra”, era visto como um disco plano em cujas extremidades
estavam as águas do caos ameaçador, contidas pela palavra de Iahweh; era nesse
espaço que os seres humanos deveriam permanecer, juntamente com todas as ou-
tras criaturas vivas; ao contrário do reino superior, a morte estava presente na rea-
lidade deste reino. Já o terceiro reino era o inferior, abaixo da Terra, destinado aos
109
Cf. todas as ocorrências em BROWN, F. (Ed.). Op. cit. p. 924-926.
110
Cf. o estudo em WOLF, H. W. Op. cit. p. 67-77. A partir desses matizes básicos, outras conota-
ções lhe são atribuídas: o termo tem a conotação de vitalidade em 1Rs 10,5, coragem em Js 2,11;
5,1, valor em Lm 4,20, vacuidade em Jr 5,13; Jó 7,7; Is 41,29, emoções de agressividade em Is
25,4 e ira em Jz 8,3 (cf. PAYNE, J. Barton. Op. cit. p. 1407 — apesar de alguns sentidos dados por
este autor ao termo não corresponderem aos textos que ele cita).
111
Cf. NELIS, J. Infernos. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 729.
211

mortos (o Sheol).
Esse reino inferior é compreendido de maneira diversificada ao longo da
Bíblia hebraica. O Sheol é apresentado como um lugar escuro e desordenado (Jó
10,20-22), um lugar de silêncio (Sl 94,17; 115,17) e como uma cidade com por-
tões (Jó 38,17 e, expressamente, em Is 38,10).112 Em geral, era o lugar para onde
os mortos desciam e permaneciam em estado letárgico, inativo, incapazes de lou-
var ou invocar Iahweh (pois este está ausente), sendo partilhado coletivamente.
O AT geralmente não enxerga o poder de Iahweh estendido até o Sheol.
Entretanto, há exceções a essa visão geral;113 existem textos que afirmam enfati-
camente que o Sheol pode ser alcançado pela presença de Iahweh (Jó 26,6; Sl
139,7ss; Am 9,2).114 Estes textos contradizem a noção de que Iahweh não se faz
presente no Mundo dos Mortos. Além disso, em muitos textos Iahweh aparece
como Deus dos vivos e dos mortos, do mundo presente e do futuro. Essa noção da
presença de Iahweh no Mundo dos Mortos parece ser uma formulação contra a
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noção da existência de outro deus dominador do Sheol, conforme as concepções


dos outros povos assinaladas acima. Assim, Iahweh é um Deus poderoso capaz de
exercer esse poder também no Sheol.
Em alguns textos, também há a ideia de que os mortos conservavam algum
tipo de consciência no Sheol (Jó 14,22; Sl 6,5). Muitos estudiosos associam o ter-
mo ao verbo cognato (“perguntar”, “inquirir”).115 Neste caso, o Sheol seria o
lugar em que os mortos são interrogados e julgados; para isso eles precisariam es-
tar conscientes de seus atos em vida.
Segundo L. Harris, o termo Sheol aparece quase sempre em gêneros literá-
rios mais poéticos, podendo ser sinônimo de(termo que possui o sentido de
sepultura, empregado 71 vezes no AT), havendo apenas oito exceções (as quais,
entretanto, o autor não cita).116 No entanto, ao contrário dessa atestação, o que se

112
Cf. a tabela com as nuanças semânticas da palavra e as respectivas citações textuais em
JOHNSTON, P. S. Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament, p. 80: extremidade
do cosmos; mundo de baixo (dos mortos: englobando local de aprisionamento e simplesmente lo-
cal de existência no pós-morte); uso do termo personificado; local de onde se deseja libertação ou
que se quer evitar; e local do destino de todos, quer justos ou ímpios.
113
VON RAD, G. Life and Death in the O.T. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT, p. 847, nota 109. v. 2.
114
No caso de Jó 26,6 é possível que a palavra hebraica Abaddôn, usada muitas vezes como sinô-
nimo de Sheol e que algumas Bíblias em português traduzem por Perdição (cf. por exemplo a BJ),
seja reminiscência de uma antiga divindade do Mundo dos Mortos.
115
Cf., por exemplo, BROWN, Francis (Ed.). HELOT, p. 982, onde é citada a possibilidade do
sentido de “lugar para indagação” ao termo Sheol.
116
Cf. shâ’al. In: HARRIS, R. L. (Org.). DITAT, p. 1501-1505; aqui p. 1503. Além disso, esse
autor, em sua definição de Sheol, estabelece um dualismo anacrônico cristão entre corpo e alma e
212

vê é o uso bastante difundido em toda a Escritura Hebraica.


No livro de Ezequiel, por exemplo, há uma sequência de palavras para
mencionar o local destinado ao ser humano no pós-morte e, especificamente, ao
cadáver: as nações inimigas de Israel são vencidas e precipitadas no Sheol (Ez
31,15-17); elas são lançadas também no  (“túmulo”, “sepultura”) e na 
(“sepultura”, “cova”), ambas com o mesmo sentido, em contraposição aos guerrei-
ros valorosos que estão no Sheol (Ez 32,19-27); no  (“poço”, “cova”, junto
com Sheol e como sinônimo deste, Ez 31,14-17); no em contraposição ao

Sheol (destinado aos mais valorosos, Ez 32,18.23-25.29-30); e na 


(“terra profunda”, como sinônimo de Sheol, Ez 31,14.16.18; 32,18.24).
Em Is 14,3-23 o autor relata que a grandeza do rei da Babilônia foi precipi-
tada no Sheol (v. 11) e o próprio rei também foi precipitado lá (v. 15), depois no
 (“cova”, v. 19) e será lançado para fora do (“sepultura”, v. 19) e

da(“sepultura”, de novo ambas com o mesmo sentido, v. 20). Jó 24,19-20


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relata vermes que se fartam com aqueles que estão no Sheol; entretanto, no con-
texto o autor está discutindo a questão intrigante de que ímpios e justos têm o
mesmo destino, independentemente dos seus atos em vida, pois ao morrer jazem
no mesmo pó e têm os vermes por coberta (21,7-34).117 Segundo Eichrodt:
A sobrevivência do defunto depende, em certa medida, da sorte de seu cadáver.
Isso é algo surpreendente quando associado com a crença num Sheol distante e
suas imagens sumárias; mas o fato imediatamente é compreendido, se o que ori-
ginalmente se considerou como mansão do morto foi o sepulcro. De fato, a ideia
do Sheol aparece combinada com outra que vê no sepulcro a morada do morto, e
também, segundo todas as aparências, esta é mais antiga. Não só se chama à tum-
ba ‘morada do morto’ (Is 22,16), mas grande valor é atribuído ao ato de ser enter-
118
rado ao lado dos membros de sua família (2Sm 17,23; 19,38; Gn 47,30; 50,25).

entre retribuição aos maus e recompensa aos bons ao entender que “os textos estudados apresentam
o quadro de um túmulo típico na Palestina: escuro, cheio de pó, com ossos misturados (...). As al-
mas de todos os homens não vão para um único lugar. Mas todas as pessoas vão para a sepultura”
(p. 1505). Parece que o autor acaba lendo os textos do AT sob a óptica do NT, fazendo uma leitura
anacrônica daqueles textos, ignorando, assim, o contato dos antigos judeus com a cultura e as cren-
ças dos povos vizinhos. Além da sepultura como tal, é evidente também a designação pelo termo
Sheol de uma espécie de “mundo dos mortos” ou “mundo inferior”, em algumas ocasiões apresen-
tando as pessoas em estado de consciência. A relação com sepulcro, última morada do ser humano,
se deu nas origens da formação do pensamento acerca do Sheol (cf. NELIS, J. Infernos. In: VAN
DEN BORN, A. (Ed.). Loc. cit.).
117
Em conformidade com a tradição judaica, a ideia de destino comum para todos os mortos pare-
ce ter sido de difícil compreensão também para a Igreja Cristã Primitiva, a qual acabou entendendo
o Sheol dividido em compartimentos, nos quais os santos das Escrituras Hebraicas ocupavam um
lugar superior, de onde o Cristo os teria resgatado na sua ressurreição (cf. 1Pd 3,18-20; Ef 4,9-10).
118
EICHRODT, Walther. O mundo inferior. In: Teologia do Antigo Testamento, p. 667-683; aqui
p. 669.
213

O fato de ter o corpo lançado fora da sepultura, ou comido pelos vermes


(deixado de existir) pode significar o fim da própria existência do indivíduo no
além.
Vale ressaltar que outro termo designado para o local do pós-morte no pré-
exílio, em escala muito menor que o termo Sheol, é “Vale de Hinon” (em grego,
Geena), o qual está associado a um local geográfico específico (Js 15,8; 18,16).
No entanto, também nele não existe a conotação de uma existência futura; ao con-
trário, aparentemente era um local de despejo de lixo, o qual também ficou conhe-
cido como um lugar condenável pela adoração idolátrica que ali se praticava,
quando inclusive crianças eram sacrificadas pelo fogo (2Rs 23,10; 2Cr 28,3; 33,6;
Jr 7,31; 32,35).119 Somente no Período Helenístico o lugar será símbolo de local
de tormento,120 e o NT o usará como metáfora para o Hades.
Dado o exposto, fica claro que não existe a noção, ao menos no período do
Primeiro Templo, de céu ou inferno, de ressurreição com julgamento final e pos-
terior punição para os maus e recompensa para os justos.121 No Período Pré-
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exílico o destino dos mortos era normalmente designado pela palavra Sheol, quer
fossem eles considerados bons ou maus. A morte colocaria todos sob o mesmo
status.122
Quanto ao Sheol como lugar, mesmo que haja algumas variantes, o ponto
comum parece ser a compreensão dele como um Mundo Inferior, a exemplo dos
povos vizinhos, guardando as respectivas especificidades. Segundo Martin-
Achard, “o mundo dos mortos, o Sheol dos hebreus, é totalmente comparável ao
Hades dos gregos, e ao Aralu dos assírios-babilônios”.123
Já no pós-exílico, dados os influxos político-culturais com outros povos, as
ideias da escatologia judaica sofrem modificações consideráveis, especialmente às
relativas ao pós-morte.

119
HALLOTE, Rachel S. The Biblical Origins of Hell and the Devil. In: Death, Burial, and After-
life in the Biblical World, p. 123-135; aqui p. 126. Esta autora sugere que a designação desse lugar
às vezes pode ser traduzida como Vale do Grito Estridente (Ibidem). Além disso, ela afirma que o
Sheol, na Bíblia Hebraica, era um lugar físico, situado justamente embaixo da terra de Israel (Ibi-
dem, p. 128).
120
Cf. SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 135.
121
Às vezes parece se entender que o Sheol trazia algum tipo de punição aos injustos, ao passo que
os justos apenas o visualizariam em tempos de aflição e desgraça (essa é a opinião de JOHNSTON,
Philip S. Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament, p. 81-82). Entretanto, se há
alguma ideia de punição no Judaísmo do Primeiro Templo, essa seria simplesmente o corte das
relações interpessoais e do contato com Iahweh, assinados supra.
122
Cf. TABOR, James. The Future. In: SMITH, Morton; HOFFMANN, R. Joseph (Ed.). What the
Bible Really Says, p. 33-51; aqui p. 35.
123
MARTIN-ACHARD, Robert. Da morte à ressurreição segundo o Antigo Testamento, p. 54.
214

4.3. A ressurreição nos textos do AT e nos apocalípticos judaicos

Vários textos das Escrituras Hebraicas, tanto os concernentes ao período


mais antigo da história de Israel quanto os do Judaísmo do Segundo Templo, pare-
cem revelar uma possível crença na ressurreição dos mortos. O mesmo ocorre com
os apocalípticos judaicos extracanônicos do período intertestamentário. Entretan-
to, um exame mais auspicioso revela que há nuanças de significado mostrando
uma mudança na compreensão do tema, a exemplo do que ocorreu com a ideia do
pós-morte. A ideia da possível volta do indivíduo à vida corporal “só muito tarde
se incorporou nas esperanças bíblicas de salvação, apesar do fato de Israel ter tido
sempre a convicção de que o homem continua a existir depois da morte”.124 A
crença na ressurreição é encontrada especialmente na literatura apocalíptica, tendo
surgido em resposta a experiências de perseguição e martírio. A forma do corpo
ressuscitado é uma questão controversa, sendo que, em alguns casos, tratava-se de
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um corpo modificado.
É certo que as Escrituras Hebraicas, desde o seu início, conheceram a pro-
blemática da fragilidade e fugacidade da existência; entretanto, essa questão não
foi resolvida pela supressão do “corpo”, e somente muito tardiamente se recorreu
à fórmula da “libertação da alma” pela divisão da natureza humana. Assim, a ideia
da ressurreição não se desenvolveu a partir de um impulso abstrato do saber ou de
intuição, mas sim pela contínua meditação e experiência existencial. Nisto, com
certeza, se deram os influxos com outras concepções, estrangeiras.
A partir da ideia de que Iahweh possuía poder também sobre o Sheol (con-
forme destacado acima), surgiu a crença de que ele não somente faz o homem
descer ao Mundo dos Mortos, mas pode também retirá-lo de lá. Assim, entende-se
que Iahweh tem poder para arrancar os seus da garra da morte. No entanto, os tex-
tos que apontam nessa direção merecem um exame mais acurado.
Em Dt 32,39 e 1Sm 2,6,125 essa ideia não supõe uma ressurreição corporal
como fundamento, mas sim a cura de uma doença grave (como em Is 38,9-20; Sl
71,20)126 ou a salvação em uma situação perigosa (Sl 9,14; 30,4; 88,7; 107,17-

124
NELIS, J. Ressurreição. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 1302-1308; aqui p. 1302.
125
Dt 32,39 registra: “E agora, vede bem: eu, sou eu, e fora de mim não há outro Deus! Sou eu que
mato e faço reviver, sou eu que firo e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra)”; 1Sm 2,6:
“É Iahweh quem faz morrer e viver, faz descer ao Sheol e dele subir”.
126
Em Is 38,9-20 há o registro de um cântico atribuído ao Rei Ezequias em que o eu-lírico honra a
Iahweh por tê-lo curado; já o Sl 71,20 registra: “Fizeste-me ver tantas angústias e males, tu volta-
215

22),127 situações que, na concepção de vida israelita, equivalia a um desfalecer das


forças vitais, ou seja, um descer ao Mundo dos Mortos.128 Nos Sl 30,4 e 88,7 a
“reanimação”, nessas locuções, “não é ressurreição, mas como hipérbole é idênti-
ca a ‘conservar a vida’, ‘não morrer’”.129 Além disso, sabe-se que os Salmos refle-
tem, muitas vezes, a condição de opressão ou antítese ante a um inimigo: por ve-
zes um ímpio, uma situação adversa, ou a morte.
Outros Salmos onde a ideia da ressurreição poderia ser subentendida são o
Sl 16,10 e o 17,15. Em 16,10, a fórmula “não deixar a alma no Sheol” não é sufi-
cientemente clara para se deduzir a ideia da ressurreição corporal; em Sl 17,15, a
expressão “despertar” não é associada à ideia de ressurreição. O que se pode afir-
mar é que no Saltério há uma crescente confiança na comunhão com Iahweh, a
qual pode levar a vencer a morte.
No livro da Sabedoria (16,13),130 o autor parece ter tomado a fórmula de
1Sm 2,6 em sentido restrito. Esse livro nunca menciona explicitamente a ressur-
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reição, mas parece supô-la pela imortalidade da alma. De qualquer forma, deve-se
ressaltar que esse livro não faz parte da Escritura Hebraica (seu original é em gre-
go). Trata-se de uma obra tardia (I século a.C., livro mais recente do AT cristão),
revelando influência helenística (platônica).131
Os textos de 1Rs 17,17-24, 2Rs 4,18-37; 13,20-21 mostram que a ressur-
reição de um morto antes de seu sepultamento (ou decomposição), ou seja, antes
de descer definitivamente ao Sheol era possível. Essas narrativas refletem a con-
vicção do poder de Iahweh sobre a morte e o Mundo dos Mortos (citado acima),
poder esse revelado através de milagres efetivados por seus profetas Elias e Eli-
seu. Além disso, elas não são entendidas ainda como narrativas de ressurreição,
pois mostram somente a volta à vida terrena sem incluírem, em si mesmas, a ideia

rás para dar-me vida, voltarás para tirar-me dos abismos da terra”.
127
Sl 9,14 registra: “Piedade, Iahweh! Vê minha aflição! Levanta-me das portas da morte”; Sl
30,4: Iahweh, tiraste minha vida do Sheol, tu me reavivaste dentre os que descem à cova”; Sl 88,7:
“Puseste-me no fundo da cova, em meio a trevas nos abismos”; Sl 107,18-20: “Rejeitavam qual-
quer alimento e já batiam às portas da morte. E gritaram a Iahweh na sua aflição: ele os livrou de
suas angústias. Enviou sua palavra para curá-los, e da cova arrancar a sua vida”.
128
NELIS, J. Ressurreição. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). Op. cit. p. 1303.
129
SCHILLING, O. Ressurreição. In: BAUER, J. B. DTB, p. 971-982. v. 2; aqui p. 973.
130
“Porque tu tens poder sobre a vida e a morte, fazes descer às portas do Hades e de lá subir”.
131
Cf. COLLINS, J. J. The Root of Immortality: Death in the Context of Jewish Wisdom. HTR
71.3-4 (1978), p. 177-192; o mesmo se pode dizer da obra Sabedoria de Salomão: “Tanto Sirácida
quanto Sabedoria de Salomão tentam resolver o problema da morte por alguma concepção de vida
transcendente – uma vida que não pode ser medida em termos biológicos ou temporal e que, por-
tanto, está em um nível diferente da vida que é negada pela morte” (Ibidem, p. 192); republicado
em Seers, Sybils and Sages in Hellenistic-Roman Judaism, p. 351-367.
216

de mudança definitiva do estado humano das pessoas envolvidas (elas continuam


sendo mortais). O máximo que se pode é considerar “esses fatos como elos inter-
mediários para o desenvolvimento da ideia de ressurreição, sobretudo como con-
cretização da ideia do poder de Javé sobre vida e morte”.132
Outra ideia que poderia implicar a ressurreição era que a volta à vida seria
uma retribuição a uma fé justa, pela correta observância da lei divina (Am 5,4.14),
sendo essa retribuição esperada durante a vida na Terra. Na literatura sapiencial,
os livros de Jó e Eclesiastes revelam uma decepção pela constatação de que nem
sempre a retribuição na vida terrestre condiz com a conduta do indivíduo; o mes-
mo ocorre em muitos Salmos. Assim, a justiça de Deus precisou ser considerada a
partir das esperanças da nação de Israel, as quais desejavam uma manifestação da
glória e do reino de Iahweh para extermínio de todo o mal e sofrimento. Dessa
maneira, a volta à vida dos justos da nação seria garantida, a fim de receberem a
recompensa pelas suas boas obras. Com o fim da certeza em um julgamento corre-
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to sobre a impiedade e o mal na vida terrestre, iniciou-se, então, a esperança de


que tal julgamento teria efeito através de uma salvação escatológica.
Em Os 6,1-3 é bastante evidente a influência do mito cuja descida anual de
uma divindade ao Mundo dos Mortos e sua subsequente ressurreição eram cele-
bradas cultualmente como personificação vital da natureza.133 Trata-se de referên-
cias a mitos de divindades antigas que morrem e ressuscitam, como Osíris (no
Egito), Adônis e Tamuz (na Mesopotâmia) e Baal (cananeu); entretanto, os verbos
“reviver” e “levantar” no v. 2 estão empregados em conjunto com a locução “de-
pois de três dias... no terceiro dia” (como em Am 1,3: “por três crimes de Damas-
co, e por quatro”), designando um breve lapso de tempo (expressões de cunho sa-
piencial): a salvação e a cura virão rapidamente.134
A partir de Tertuliano (início do III século d.C.), a tradição cristã aplicou
esse texto de Oseias à ressurreição de Cristo, mas o NT nunca o utilizou. Assim,
“a expressão ‘levantar ao terceiro dia’ não é prova da existência da ideia de ressur-
reição no Antigo Testamento nem, por conseguinte, da ressurreição de Cristo ao

132
SCHILLING, O. Loc. cit.
133
Os 6,1-3 registra: “Vinde, retornemos a Iahweh. Porque ele despedaçou, ele nos curará; ele fe-
riu, ele nos ligará a ferida. Depois de dois dias nos fará reviver, no terceiro dia nos levantará, e nós
viveremos em sua presença. Conheçamos, corramos atrás do conhecer a Iahweh; certa, como a
aurora, é sua vinda, ele virá a nós como a chuva, como o aguaceiro que ensopa a terra”.
134
O uso dessa expressão aqui poderia levar a pensar em uma redação posterior, a exemplo da con-
clusão sapiencial em 14,10. Entretanto, a argumentação e o consenso geral não favorecem essa
suposição.
217

terceiro dia”. 135


De qualquer forma, é possível que o profeta conhecesse esses mitos estran-
geiros acerca de ressurreição, tendo deles recebido alguma influência. Especial-
mente o terceiro verso revela como o povo estava influenciado pelas ideias da re-
ligião cananeia.136 A comparação de Iahweh com a aurora e a chuva (elementos da
natureza) remete a uma correlação de Iahweh com Baal. A preocupação do povo
com o cultivo da terra remete à necessidade da chuva. Apesar de todo apelo e apa-
rente comoção, não há, explicitamente, indicação de que o povo estivesse se vol-
tando com sinceridade para Iahweh, percebendo sua diferença em relação aos ba-
als. Daí a necessidade de “conhecer e perseguir o conhecimento de Iahweh” (v. 3).
O texto de Oseias é o único na Escritura Hebraica em que a associação de
morte-retorno à vida com o misticismo da natureza é efetuada; em Jó 14,1-12, por
exemplo, essa analogia é rejeitada. Para o autor de Jó, a volta do Sheol é apenas
fruto do desejo e da imaginação do ser humano (Jó 7,9-21; 10,20-22; 14,18-20;
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16,22).
Por fim, em relação à ressurreição, o “reviver” e o “levantar” em Os 6,2
revelam, na verdade, o quanto o povo estava distante de Iahweh. Antes de se tratar
de uma ressurreição, esses verbos, relacionados ao v. 1, possuem não uma pers-
pectiva de morte, mas sim de enfermidade; o povo não estava morto, mas ferido,
necessitando de cura.137 Não há qualquer referência à ressurreição individual: essa
canção cultual refere-se antes à restauração da nação, a qual estava ferida. 138
Os 13,14 discorre sobre a morte e o Sheol como personificações de pode-
res que ameaçam sobrepujar Israel.139 Este é um verso muito difícil de fazer senti-
do, devido a problemas textuais envolvidos na tentativa de alcançar tanto a coe-
rência interna para o verso em si quanto para permitir-lhe um significado compatí-
135
SCHILLING, O. Loc. cit.
136
Cf. WOLFF, H. W. Hosea: A Commentary on the Book of the Prophet Hosea, p. 119; MAYS,
James L. Hosea: A Commentary, p. 96.
137
WOLFF, H. W. Op. cit. p. 117.
138
Ibidem, p. 116-118; cf. também MAYS, James L. Op. cit. p. 93-96; ROWLEY, H. H. The Fu-
ture Life in the Old Testament. CgQ 33 (1955), p. 116-132; aqui p. 123. Para uma posição contrá-
ria acerca dessa passagem, cf. ANDERSEN, Francis I.; FREEDMAN, David N. Hosea: A New
Translation with Introduction and Commentary, p. 420-421; esses autores argumentam que é pres-
suposta aqui uma crença na ressurreição pessoal e física, e que esta teria sido adaptada para aplica-
ção metafórica na nação como um todo. Hasel também postula que se trata de uma ressurreição
física, não-metafórica, mas desconsidera o problema textual do verso 19 (cf. HASEL, Gerhard F.
Resurrection in the Theology of Old Testament Apocalyptic. ZAW 92.2 (1980), p. 267-284, aqui p.
275).
139
Os 13,14 relata: “Deveria eu livrá-los do poder do Sheol? Deveria eu resgatá-los da morte? On-
de estão, ó morte, as tuas calamidades? Onde está, ó Sheol, o teu flagelo? A compaixão se esconde
de meus olhos”.
218

vel com o contexto global. A despeito disso, considera-se o verso uma advertên-
cia; o poder da morte e do Sheol são proclamados como estando sob a direção de
Iahweh; não se trata de uma ressurreição dos mortos.140
Outro texto controverso em relação à ideia de ressurreição é o de Ez 37. A
visão relatada pelo profeta em 37,1-14 retrata a restauração nacional de Israel co-
mo uma ressurreição do sepulcro, numa alusão clara ao cativeiro babilônico (v.
11). À pergunta de Iahweh ao profeta sobre a possibilidade de os ossos secos vol-
tarem a viver é respondida com bastante prudência, resposta essa equivalente a um
“não sei” (“Senhor Iahweh, tu o sabes”, v. 3), o que mostra que a ressurreição não
fazia parte ainda de sua escatologia.
Fica claro, pelo contexto, que se trata de uma visão cuja mensagem remete
à volta à vida em termos de libertação do exílio para vida com Iahweh, tipificada
num ressurgir de toda a nação para a adoração ao Deus de Israel. Não se dá na vi-
são do profeta informação sobre ressurreição dos mortos: “a questão aqui é o povo
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de Deus e sua ressurreição da morte causada por seu pecado. (...) Deus promete
que ele ainda está a trabalhar nele e despertá-lo para a vida do mesmo modo que já
fizera uma vez no início, de acordo com Gênesis 2,7, formando o corpo como seu
Criador e soprando o fôlego da vida no corpo morto”.141 Não se trata, pois, de uma
ressurreição individual ou volta à vida corporal a partir do Mundo dos Mortos.
Além disso, logo em seguida (v. 24-25) Iahweh faz a promessa de que
“Davi, o meu servo, será o seu príncipe para sempre”, e que Deus concluirá com o
povo uma “aliança de paz, a qual será uma aliança eterna”. Segundo Collins, “em
Ezequiel 34 e 37, nas previsões de um futuro governante, o termo ‘príncipe’ de-
signa claramente uma posição de rei e refere-se a um membro da linhagem davídi-
ca, admitindo-se que Ezequiel a imaginou como uma monarquia corrigida pelo
castigo, podada de grande parte das ideologias reais tradicionais”. 142
G. A. Cooke compartilha a opinião de Collins; segundo ele, o trecho de
Ezequiel reafirma o ideal característico dos profetas de Israel: a espera de “uma
era de paz sob o reinado de um governante justo”.143 As sepulturas em 37,12-13
são uma metáfora para a condição do povo exilado, pois os ossos se encontram
num campo de batalha, e não em um cemitério. Para Cooke, esse texto não impli-

140
Cf. WOLFF, H. W. Op. cit. p. 228; MAYS, James L. Op. cit. p. 182-183.
141
ZIMMERLI, Walther. Man and His Hope in the Old Testament, p. 119.
142
COLLINS, J. J. The Scepter and the Star: The Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other An-
cient Literature, p. 27.
143
COOKE, G. A. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Ezekiel, p. 400.
219

ca uma ressurreição de fato;144 além disso, o linguajar do profeta pode ter influen-
ciado os textos de Jó 14,11-14 e 19,25. O mesmo afirma Zimmerli: indubitavel-
mente, o texto de Ez 37,1-14 não se refere a uma ressurreição individual, mas tra-
ta-se de duas imagens (a reanimação de ossos de mortos insepultos e a abertura de
sepulcros com a condução dos que lá se encontram a uma nova vida) que expres-
sam a restauração do Israel politicamente derrotado.145
O consenso geral é de que se trata, de fato, de uma simbologia para descre-
ver a situação do povo: “os ossos significam o povo na ‘morte’ do Exílio e a revi-
viscência deve ser compreendida como promessa de volta à pátria”.146
Em Is 26,19147 (dentro do trecho mais conhecido como Apocalipse de Isaí-
as, Is 24-27, tardio), o escritor registra uma ressurreição coletiva. Entretanto, com-
parando com 26,11-14,148 o v. 19 parece sugerir uma ressurreição individual, hipó-
tese que seria corroborada por 26,15,149 o qual pede o aumento do povo, ao que a
ressurreição dos indivíduos parece ser a solução.
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Nelis, por exemplo, afirma que “verdade é, entretanto, que a formulação de


Is 26,19, bem como a de Ez, poderia sugerir a ressurreição individual”;150 Schil-
ling adverte que o anúncio de 25,8 (“Iahweh dos Exércitos fez desaparecer a morte
para sempre”), assim como “todo o contexto designam mais claramente uma res-
surreição real”.151
No entanto, Is 25,8, onde o profeta afirma que Iahweh faz desaparecer a
morte, enxugando as lágrimas do povo e removendo todo o opróbrio, está inserido
na perícope do banquete escatológico (o que é reconhecido pelo próprio Schil-
ling). Essas imagens fazem parte do quadro tradicional dos tempos messiânicos,
com a salvação escatológica que viria ao povo de Israel, descrita especialmente no
Trito-Isaías. Em suma, a situação descrita em Is 26,16-18 é semelhante à de Ez 37.

144
Ibidem.
145
ZIMMERLI, Walther. Ezekiel: A Commentary on the Book of the Prophet Ezekiel, p. 264. v. 2.
146
SCHILLING, O. Ressurreição. In: BAUER, J.B. DTB, p. 971-982. v. 2; aqui p. 973.
147
“Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres ressurgirão. Despertai e cantai, vós os que
habitais o pó, porque o teu orvalho será orvalho luminoso, e a terra dará à luz sombras”.
148
Is 26,11-14 registra: “Iahweh, tua mão está levantada, mas eles não a veem! Eles verão o teu
zelo pelo teu povo e se confundirão; sim, o fogo preparado para teus adversários os consumirá.
Iahweh, tu nos asseguras a paz; na verdade, todas as nossas obras tu as realizas para nós. Ó Iah-
weh, nosso Deus, ao teu lado tivemos outros senhores, mas, apegados a ti, só ao teu nome invoca-
mos. Os mortos não reviverão, as sombras não ressurgirão, porque tu as visitaste e as exterminaste,
tu destruíste toda a sua memória”.
149
“Expandiste a nossa nação, Iahweh, expandiste a nossa nação e te cobriste de glória. Alargaste
todas as fronteiras da terra”.
150
NELIS, J. Ressurreição. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 1302-1308; aqui p. 1305.
151
SCHILLING, O. Ressurreição. In: Op. cit. p. 974. v. 2.
220

Trata-se, portanto, mais de uma restauração nacional, messiânica, do que de uma


ressurreição individual, corporal. 152
Em Jó 19,25-26 o personagem atesta sua esperança num go’el que “no fim
se levantará sobre o pó”, quando também ele, Jó, “fora de sua carne verá a Deus”.
Entretanto, o próprio Jó considera ser impossível alguém voltar do Sheol (7,9;
10,21; 14,7-22; 16,22). Convencido da proximidade de sua morte (23,13-17;
30,16-23), o personagem tem esperança de que Iahweh irá reabilitar publicamente
seu bom nome. Como os versos de 19,25-26 possuem dificuldade exegética de
todo tipo, não se sabe se a restauração esperada pelo personagem “no fim” se refe-
re a um futuro escatológico ou a uma restauração ainda na vida terrestre, o que,
dado a conjuntura do livro, é muito mais provável. O “levantar sobre o pó” de
19,25b tem, assim, uma conotação mais jurídica, de estabelecimento da justiça ao
fim do processo (em 19,25a o personagem assevera que “eu sei que meu defensor
[go’el] está vivo”). O trecho de 19,25-27 é o grito de Jó por uma justificação da
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parte de Iahweh. Em seu sofrimento, ele espera confiantemente ser inocentado. O


texto declara a sua esperança por saúde e prosperidade, e não a ressurreição.153
Para Russell, os textos de Jó e Salmos não possibilitam deduzir uma crença
em uma vida no pós-morte na presença de Deus. Essa conclusão só pode ser dedu-
zida, nas Escrituras Hebraicas, “em dois textos apocalípticos que datam do perío-
do pós-exílico tardio, Isaías 24-27 e Daniel 12”. 154 Porteus compartilha essa opini-
ão: comentando os primeiros versos do capítulo 12 de Daniel, ele afirma serem
uma “notável predição de uma ressurreição, dos quais [versos] o único e verdadei-
ro paralelo no Antigo Testamento há de ser encontrado em outra passagem tardia
(Is 26,19)”.155

152
Existe ainda a forte possibilidade de Is 26,19 ser uma interpolação tardia; cf. KAISER, Otto.
Isaiah 13-39: A Commentary, p. 218; PLÖGER, Otto. Theocracy and Eschatology, p. 66-68. H. H.
Rowley afirma que Is 26,19 se refere ao renascimento da nação, bem como Ez 37,1-14; o contexto
da seção como um todo (26,1-19) parece apoiar essa interpretação (cf. ROWLEY, H. H. The Futu-
re Life in the Old Testament. CgQ 33 (1955), p. 116-132; aqui p. 125).
153
Para um breve relato acerca do tema da morte no livro de Jó, cf. MATHEWSON, Dan. A Brief
History of the Interpretation of Death in Job. In: Death and Survival in the Book of Job, p. 14-20.
Mathewson adiante concluiu que no livro de Jó “conforme seus discursos avançam, Jó lentamente
abandona sua convicção de que se encontra vida no Sheol, conforme 10,18-22, ao mesmo tempo
em que ele deseja ainda que tivesse nascido morto; ele não vê esperança para a [existência da] vida
no túmulo” (Ibidem, p. 96).
154
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 356.
155
PORTEOUS, N. W. Daniel: A Commentary, p. 170. Rachel Hallote conclui que “as referências
à ressurreição na Bíblia Hebraica demonstram que a ressurreição não era uma parte importante no
sistema de crença israelita. Mesmo o que parece ser um exemplo claro não está de fato absoluta-
mente claro” (cf. HALLOTE, R. S. Resurrection and Lack of Death in the Bible. In: Death, Burial,
and Afterlife in the Biblical World, p. 136-149; aqui p. 139). A autora cita em seguida exemplos do
221

De fato, os livros apocalípticos judaicos intertestamentários e do I século


d.C. apresentam uma considerável diversidade de ideias sobre a ressurreição. Em
muitos casos, a antiga concepção israelita de Sheol como um lugar onde todos os
seres humanos terão alguma espécie de existência é, podemos dizer, aperfeiçoada.
No L. Jub 23,31a o corpo é privado do estado de felicidade reservado para a al-
ma.156 Em 4Mc 18,17, o autor cita Ez 37, mas não fica clara a sua interpretação
desse texto; já em 18,19 ele repete Dt 32,39, mas também sem acrescentar nenhum
dado interpretativo.157 Em O. Sal 3,8 o autor reserva a imortalidade somente aos
que se achegarem a Iahweh.158 Outros não-canônicos relatam a ressurreição dos
justos ou de determinadas pessoas individualmente (T. Jud 25,1; 1En 91,10; Sl Sal
3,11-12).159 Outros incluem justos e ímpios numa ressurreição universal (Ap Sy
Br, ou 2Br 50,2-4);160 a fórmula de ressurreição “para a glória e para a desonra” é
encontrada no T. Bj 10,8a.161
Nos textos de Qumran, não se menciona claramente a ressurreição. Entre-
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tanto, pode-se entender algumas expressões encontradas nos Hodayot (coletânea


de hinos escritos, talvez, pelo Mestre da Justiça) como expressão de alguma noção
acerca da ressurreição dos justos: “o despertar dos filhos da verdade” que “descan-
sam no pó” (1QH 6,29-34) e “a exaltação dos mortos do pó dos vermes” (1QH
11,12); já acerca dos ímpios se afirma que “não mais existirão” (1QH 6,30).162
Em Dn 12,1-3, há indiscutivelmente a referência a uma ressurreição pesso-

Ciclo de Eliseu (2Rs).


156
L. Jub 23,31a: “Seus ossos repousarão na terra, mas seus espíritos terão muita alegria e saberão
que o Senhor executa seus julgamentos”.
157
4Mc 18,17: “Ele confirmava a palavra de Ezequiel: Porventura voltarão a viver esses ossos? (Ez
37,3)”; em 18,19: “Ele mata e faz viver (Dt 32,39); isto é a tua vida e o prolongamento de teus
dias”.
158
O. Sal 3,8: “Quem se unir ao imortal, tornar-se-á imortal também”.
159
T. Jud 25,1: “Depois disso, Abraão, Isaque e Jacó ressuscitarão e meus irmãos e eu seremos
chefes das tribos de Israel: Levi, o primeiro, eu no segundo lugar, José no terceiro, Benjamim no
quarto, Simeão no quinto, Issacar no sexto, e assim todos na ordem”; 1En 91,10: “Os justos levan-
tar-se-ão de seu sono, e a sabedoria levantar-se-á e lhes será dada”; Sl Sal 3,11-12: “A destruição
do pecador é irreversível; Iahweh não se lembrará dele quando visitar os justos. Tal é o lote dos
pecadores para sempre, mas os que temem o Senhor ressuscitarão para a vida eterna; e sua vida, na
luz do Senhor, nunca mais terá fim”.
160
2Br 50,2-4: “A terra restituirá certamente os mortos que agora recebe para os conservar. Não
haverá mudança na sua forma; pois do jeito como ela as recebeu, restituí-los-á. Assim como lhes
entreguei, assim os devolverá. Pois será necessário mostrar aos que viverem naquele tempo que os
mortos voltaram à vida e que aqueles que partiram voltaram. Depois que tiverem reconhecido os
que agora conhecem, o julgamento começará, e aquilo que já ouviste acontecerá”.
161
T. Bj 10,8a: “Então todos os homens ressuscitarão, alguns para a glória, outros para a desonra”.
162
Cf. COLLINS, J. J. Conceptions of Afterlife in the Dead Sea Scrolls. In: LABAHN, M.;
LANG, M. (Ed.). Lebendige Hoffnung – ewiger Tod?!: Jenseitsvorstellungen im Hellenismus,
Judentum und Christentum, p. 103-125.
222

al, tanto de justos quanto de ímpios,163 possivelmente corporal. Existe, de fato, o


consenso geral de que Dn 12 “é a única atestação clara de uma crença na ressur-
reição na Bíblia Hebraica”. 164 O livro apresenta uma transformação do antigo con-
ceito de Messias.165 No pós-exílio, o tema da restauração de Israel por um descen-
dente de Davi levou os judeus a elaborarem princípios que expressavam a espe-
rança e a expectativa na volta do ungido de Deus (um filho de Davi) que restaura-
ria o reino daquele rei. 166 Diferentemente da expectativa messiânica de um rei jus-
to da dinastia davídica, como expresso nos textos de Isaías e Ezequiel citados su-
pra, o reino messiânico em Daniel passa a ser possível graças a interferência de
uma figura misteriosa, “um como Filho de Homem” (Dn 7,13).
O termo Messias (hebraico ) adquiriu entre os judeus (e, posterior-
mente, entre os cristãos) um significado intenso, com muitas ideias concebidas
dentro da escatologia judaica. 167 Basicamente, o termo hebraico indicava alguém
que era separado por Deus para um determinado serviço. Às vezes o Messias apa-
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rece como um sábio, às vezes como um profeta; também aparece como aquele que
iria restaurar a Lei, não desfazê-la, mas transformá-la naquilo que ela deveria ser.
Paralelos com o Egito, Babilônia e Canaã podem ser observados. Quanto a salvar
o seu povo, a princípio o Messias tinha a ideia de “salvador” no sentido do papel
desempenhado por um Rei, ou seja, “salvar” era “libertar”, “tornar livre” dos ini-
migos. De qualquer forma, o papel de “Rei” é mais duradouro que o de “líder”; no
livro de Juízes, por exemplo, há uma série de líderes, de “experimentos” relacio-
nados à organização social do país. No judaísmo tardio, o adjetivo torna-se um
termo técnico e indica um título ou mesmo um nome próprio que designa uma fi-
gura escatológica geralmente associada às expectativas dos últimos dias e à che-
gada do Reino de Deus.168
Assim, no judaísmo pós-exílico, especialmente no Período Helenístico, o
163
Cf. TABOR, James. The Future. In: SMITH, M.; HOFFMANN, R. J. (Ed.). What the Bible
Really Says, p. 33-51; aqui p. 44.
164
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 394 (grifo nosso). Consoante
a esta ideia, cf. também, dentre outros, ALONSO-SCHÖKEL, L.; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II,
p. 1338; MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 471; NICKELSBURG, G.W.E. Resurrection, Immortali-
ty, and Eternal Life in Intertestamental Judaism and Early Christianity, p. 23; PORTEOUS, N. W.
Daniel: A Commentary, p. 170; SEGAL, A. F. Life After Death, p. 263; ROWLEY, H. H. The Fu-
ture Life in the Old Testament. CgQ 33 (1955), p. 116-132; aqui p. 125.
165
COLLINS, J. J. The Transformation of Messianism in Daniel. In: The Scepter and the Star: The
Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other Ancient Literature, p. 34-38.
166
Cf. SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus, p. 44-66.
167
Cf. DE JONG, Marinus. Messianic Ideas in Later Judaism. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT, p.
509-517. v. 9.
168
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 304.
223

termo sofreu um desenvolvimento que o distancia do sentido preconizado pelos


antigos profetas.169 Esse desenvolvimento se deu por influências de concepções
escatológicas bem diferentes do messianismo “original” do AT, adquirindo traços
distintos no período conhecido como intertestamentário, certamente pelo contato
dos judeus com a concepção dualista presente no zoroastrismo (a presente era má
em contraposição à boa era vindoura). Segundo Emanuel Bouzon:
A perspectiva de um Reino de Deus escatológico e de um prêmio após a morte
não faz parte da escatologia veterotestamentária pré-exílica. As novas concepções
escatológicas começam a partir do livro de Daniel, cuja composição data, prova-
velmente, da primeira metade do século II a.C., e de livros deuterocanônicos, co-
170
mo o livro da Sabedoria.

Em Daniel, esse Filho do Homem possui um papel de Messias escatológi-


co e é identificado com um sumo sacerdote em 9,26 e com Miguel, “o grande
Príncipe” de Israel em 12,1.171 Todos os que compartilharão o reino escatológico
são denominados de “santos do altíssimo” em Dn 7,18.27. Esses “santos do altís-
simo” são normalmente identificados em grande parte da literatura hebraica e a-
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ramaica antigas como sendo os exércitos celestiais.172 Além disso, o nome de Mi-
guel aparece em Dn 12,1 relacionado ao verbo hebraico  (“pôr-se em pé”,
“erguer-se”, “levantar-se”) o qual ocorre muitas vezes em contextos jurídicos.173
Miguel seria então o “grande anjo defensor, uma espécie de advogado que defende
o povo do anjo acusador, que na literatura bíblica e extrabíblica é identificado com
Satã (literalmente, acusador)”.174
Assim, o narrador de Daniel, a exemplo dos apocalípticos da tradição de
Enoque, foca seu olhar para além deste mundo, para o triunfo final de Miguel e
dos santos do altíssimo e, finalmente, para a ressurreição e exaltação dos justos
(12,1-3).
Alguns estudiosos acreditam que a referência às estrelas trata-se apenas de

169
Cf. YARBRO COLLINS, A.; COLLINS, J. J. Messiah and Son of God in the Hellenistic Pe-
riod. In: King and Messiah As Son of God: Divine, Human, and Angelic Messianic Figures in Bib-
lical and Related Literature, p. 48-74.
170
BOUZON, Emanuel. As raízes judaicas da escatologia neotestamentária. In: MIRANDA, Mário
de F. (Org.). A pessoa e a mensagem de Jesus, p. 97-108; aqui p. 97.
171
Nickelsburg afirma que, no judaísmo tardio, Miguel é considerado “poderoso sacerdote celesti-
al” (cf. NICKELSBURG, G.W.E. Resurrection, Immortality and Eternal Life in Intertestamental
Judaism and Early Christianity, p. 26).
172
Para uma informação detalhada da questão, com extensa bibliografia, cf. COLLINS, J. J. Dani-
el: A Commentary on the Book of Daniel, p. 313-317.
173
Cf. BROWN, F. (Ed.). HELOT, p. 763-764.
174
SCHIAVO, Luigi. Anjos e messias: messianismos judaicos e origem da Cristologia, p. 47 (grifo
do autor). Sobre isso, cf. adiante.
224

uma comparação, sem alcance mais profundo.175 Entretanto, como assinala Col-
lins, existem reflexos ao longo das Escrituras Hebraicas que revelam uma tradição
de batalha entre seres angelicais nas esferas celestiais, comum nas literaturas da
Mesopotâmia e Canaã (como, por exemplo, Is 14).176 Essa luta, apesar de se dar
nas esferas celestes, tem por objetivo inimigos terrenos. Somente no judaísmo tar-
dio esse confronto se estabelece definitivamente nas esferas celestiais, como reve-
la o livro de Daniel.
Esse retorno da ênfase nos céus como lugar da ação entre bem e mal reve-
laria uma volta à estrutura cósmica relacionada às antigas mitologias ou, mais
provavelmente, ele reflete influência do dualismo persa, influência que pode muito
bem ter se dado também em um círculo muito afeiçoado aos escritos de Daniel, ou
seja, a comunidade de Qumran (filhos da luz numa guerra contra os filhos das tre-
vas).177
O livro de Daniel, portanto, traz à luz uma reinterpretação das antigas tra-
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dições judaicas, ao lado de outros escritos apocalípticos do período intertestamen-


tário.

4.4. O livro de Daniel e a questão da ressurreição

4.4.1. Questões literárias e relativas ao contexto social

O livro de Daniel resiste a uma classificação fácil, pois contém duas for-
mas literárias (narrativa e visão), duas línguas (hebraico e aramaico), e dois pontos
de vista sobre como se deve viver sob a dominação estrangeira (em colaboração
com governantes existentes ou com hostilidade em relação a tais governantes).178
O primeiro par de dicotomias (forma literária e língua) é facilmente obser-

175
Cf., por exemplo, BENTZEN, Aage. Daniel, p. 52.
176
COLLINS, J. J. Apocalyptic Eschatology As the Transcendence of Death. In: Seers, Sybils, and
Sages in Hellenistic-Roman Judaism, p. 75-97; aqui p. 87 e 94 (publicado anteriormente em CBQ
36.1 (1974), p. 21-43). Retornaremos a esse tema adiante.
177
Cf. WINSTON, David. The Iranian Component in the Bible, Apocrypha and Qumran: A Re-
view of the Evidence. HR 5.2 (1966), p. 183-216; COLLINS, J. J. The Expectation of the End in
the Dead Sea Scrolls. In: EVANS, C. A.; FLINT, P. W. (Ed.). Eschatology, Messianism, and the
Dead Sea Scrolls, p. 74-90.
178
Cf. GOODING, David W. The Literary Structure of the Book of Daniel and Its Implications.
TynBul 32 (1981), p. 43-79. Recentemente Portier-Young, usando uma abordagem sociolingüística
não muito convincente, postulou que a estrutura bilíngue foi proposital: trata-se de uma estratégia
retórica do redator para levar seus leitores de volta à aliança javista representada pela língua he-
braica, ao passo que o aramaico representava as exigências do império (cf. PORTIER-YOUNG, A.
E. Languages of Identity and Obligation: Daniel As Bilingual Book. VT 60.1 (2010), p. 98-115).
225

vado, mas de difícil explicação. Geralmente, conforme assinalado supra, o livro é


frequentemente identificado como o melhor exemplo de literatura apocalíptica
presente na Bíblia Hebraica, devido às vigorosas visões da segunda metade do li-
vro (capítulos 7-12). O argumento principal é que a literatura apocalíptica tem ge-
ralmente uma estrutura narrativa, e Dn 1-6 forneceria a plataforma introdutória
para as visões transcendentais presentes na segunda parte.179
Há um consenso entre os estudiosos de que o gênero literário de todo o li-
vro pode ser classificado como “apocalíptico”, considerando-se que, conforme já
apresentado neste trabalho, a apocalíptica quanto mentalidade pode ser expressa
em diversas formas literárias, abrangendo, no caso da apocalíptica judaica, um es-
paço de tempo de três séculos ou mais, com muitos paralelos mais antigos. Nesse
grande período, incluem-se obras tão diversificadas que uma definição abrangendo
características específicas será válida para umas obras, mas não para todas, con-
forme já assinalado acima.
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Há consenso também na divisão em dois grandes blocos (afora os acrésci-


mos gregos), capítulos 1-6 e capítulos 7-12. O primeiro bloco traz tradições mais
antigas e várias narrativas, as quais os autores nomeiam de “relatos da corte”; já o
segundo é taxativamente caracterizado, sem dúvida, como apocalíptico, pois apre-
senta várias características desse gênero, já assinaladas neste trabalho (pseudoní-
mia, um visionário e um mediador, linguajar mítico e simbólico, profecia ex even-
tu, determinismo histórico). Independentemente da discussão referente ao gênero
da primeira parte, Collins assinala que:
Tomado como um todo, Daniel é um apocalipse, pela definição dada na discussão
desse gênero acima. Mais especificamente, ele pertence ao subgênero apocalipse
“histórico”, o qual não implica uma viagem a outro mundo, mas é caracterizado
pela profecia ex eventu da história e pela escatologia que é cósmica no intuito e
180
possui um foco político.

Assim, os capítulos 7-12 apresentam as características da apocalíptica em


forma e conteúdo, deixando pouca dúvida na classificação do gênero para esta
parte do livro, ao passo que as narrativas de Dn 1-6 sempre suscitaram dúvidas na

179
Cf. GANE, R. Genre Awareness and Interpretation of the Book of Daniel. In: MERLING, D.
(Ed.). To Understand the Scriptures: Essays in Honor of William H. Shea, p. 136-148. Esta é tam-
bém a opinião de Collins: “No contexto do livro de Daniel como um todo, as narrativas nos capítu-
los 1-6 servem como introdução para as revelações nos capítulos 7-12” (COLLINS, J. J. Daniel: A
Commentary on the Book of Daniel, p. 52).
180
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 33 (grifo do autor). A
definição a que o autor se refere é a já citada neste trabalho, cuja publicação se deu primeiramente
em Semeia 14 (1979), p. 9.
226

classificação do livro como pertencente ao gênero apocalíptico. Sendo assim, os


acadêmicos sempre debateram as razões para essas diferenças entre as duas partes
e também como interpretar as mudanças no gênero.

Os capítulos 7 a 12 constam de quatro visões que são apresentadas a Dani-


el contendo profecias: os quatro animais (capítulo 7); o bode e o carneiro (capítulo
8); oração de Daniel e as 70 semanas (capítulo 9); e a grande visão do tempo da
ira e do tempo do fim (capítulos 10-12). Essas visões apresentam datação nos rei-
nados de Baltazar, de “Dario, o medo”, e de Ciro, rei da Pérsia.
O livro como um todo possui evidentes afinidades com os apocalipses do
tipo “histórico” (seguindo a taxonomia de Collins), os quais se distinguem pelo
uso da profecia ex eventu e a revelação em forma de visão simbólica. Outros gran-
des exemplos são o Apocalipse dos Animais e o Apocalipse das Semanas em 1
Enoque e os livros de 4 Esdras e 2 Baruque. O Livro de Jubileus contém uma pro-
fecia ex eventu no capítulo 23, mas que desempenha um papel muito pequeno no
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todo do livro (essa obra, segundo Collins, seria um exemplo de “caso-limite” para
o gênero apocalíptico).181
As visões normalmente envolvem:182
1. Uma indicação das circunstâncias envolvidas;

2. A descrição da visão, introduzida por um termo como “eis”;

3. Um pedido para a interpretação, muitas vezes feito devido ao temor ocasiona-


do por ela;
4. A interpretação, geralmente fornecida por um anjo;

5. Material conclusivo, o qual pode incluir a reação do visionário, instruções ou


parênesis.
Tabela 02: Estrutura frequente das visões nos apocalipses judaicos históricos

Vários estudos recentes têm deslocado a discussão do gênero em Daniel


para novas direções. Settembrini analisa o livro especialmente sob o viés da “for-
ma de sabedoria apocalíptica”; para ele, o gênero sapiencial permeia todo o livro e
funciona como conexão entre as duas partes. Seu trabalho se concentra especial-
mente na segunda parte, os capítulos 7-12; por meio desse tipo de sabedoria, os
181
Idem. The Apocalyptic Imagination, p. 83; a confusão acerca do gênero já se reflete nos vários
títulos atribuídos a essa obra: além de Jubileus, foram usados Pequeno Gênesis e Apocalipse de
Moisés (Ibidem).
182
Idem. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 54-55.
227

sábios alcançarão seu destino final glorioso. Assim, engrandecendo a dimensão


sapiencial, esse autor considera Daniel mais literatura sapiencial do que apocalíp-
tica.183 Goldingay e Van Deventer observam que a análise literária de Daniel suge-
re possíveis caminhos de investigação sincrônica para complementar as questões
diacrônicas que ainda permanecem.184 Smith-Christopher apresenta uma análise
sociológica do livro de Daniel que identifica o livro como literatura de resistência
e proporciona uma ligação temática entre as narrativas da corte (capítulos 1-6) e as
visões (7-12), ligação essa que unifica a mensagem global do livro.185
A iniciativa de identificar os contos de Daniel como literatura de narrativas
de sucesso em uma corte real (isto é, uma espécie de manual sobre como ser reli-
giosamente fiel e ainda desfrutar o sucesso do mundo na corte do rei estrangei-
ro)186 até o reconhecimento desse material como literatura de resistência abre o
caminho para uma reconsideração de seu gênero. Essa mudança fornece uma liga-
ção temática mais adequada entre os relatos da corte na primeira parte do livro e
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também deles com a visão mais negativa dos reis e impérios retratados pelas vi-
sões da segunda parte. O artigo de Smith-Christopher mais recente analisa como
orações e sonhos são politizados nas histórias para representar os anseios dos me-
nos favorecidos e oprimidos, bem como a verdadeira natureza de poder em posse
da divindade hebraica.187
Brenner identifica o motivo literário do governante estrangeiro obtuso e
como ele funciona como um dispositivo de humor e sátira para ridicularizar o
rei.188 Em sua análise, Chia explora como em Dn 1 a recusa em aceitar os novos
nomes babilônicos e a alimentação da mesa real exemplifica resistência às preten-

183
SETTEMBRINI, Marco. Sapienza e storia in Dn 7-12, especialmente p. 67-215.
184
GOLDINGAY, J. Story, Vision, Interpretation: Literary Approaches to Daniel. In: VAN DER
WOUDE, A. S. (Ed.). The Book of Daniel in the Light of New Findings, p. 295-313; VAN DE-
VENTER, H.J.M. Struktuur en boodskap(pe) in die boek Daniël. HvTSt 59.1 (2003), p. 191-223.
185
SMITH-CHRISTOPHER, D. L. Daniel. In: KECK, Leander E. (Ed.). NIB, p. 17-152. v. 7. So-
bre o tema da resistência religiosa em Daniel, cf. também SOARES, Dionísio O. O livro de Daniel:
literatura de resistência? In: GARMUS, Ludovico (Ed.). Tolerância e intolerância religiosa. Est-
Bib 109 (2011), p. 29-42.
186
HUMPHREYS, W. Lee. Life-Style for Diaspora: A Study of the Tales of Esther and Daniel.
JBL 92.2 (1973), p. 211-223.
187
SMITH-CHRISTOPHER, D. L. Prayers and Dreams: Power and Diaspora Identities in the So-
cial Setting of the Daniel Tales. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). The Book of Daniel:
Composition and Reception, p. 266-290. v. 1.
188
BRENNER, Athalya. Who’s Afraid of Feminist Criticism? Who’s Afraid of Biblical Humor?
The Case of the Obtuse Foreign Ruler in the Hebrew Bible. In: Prophets and Daniel, p. 228-244.
228

sões imperiais de poder e controle.189 Henze desafia as suposições em geral aceitas


sobre a origem e funções das narrativas da corte e identifica o conflito como o te-
ma principal das narrativas.190 Sweeney demonstra que o objetivo político e religi-
oso de sobrepujar a dominação selêucida de Antíoco IV sobre Israel permeia todo
o livro.191 Fewell argumenta que o livro de Daniel pode ser o principal livro de
resistência contra dominação em toda a Bíblia.192 Polaski explora a forma como a
escrita em Dn 5 e 6 é usada tanto como a chave para o correto desempenho da au-
toridade imperial quanto para subverter e frustrar a autoridade do rei.193
Kirkpatrick lê Dn 1-6 pelo viés dos modelos sócio-científicos e articula
uma compreensão destas narrativas como resistência à ameaça da perda da tradi-
ção e identidade judaicas em face de uma esmagadora e opressora dominação he-
lenística.194 A resistência é expressa por meio de uma comparação contínua entre a
relação de proteção de Iahweh para com seu povo e as relações instituídas pelos
opressores estrangeiros. A comparação favorece a tradição judaica e, portanto, pa-
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rece ser um convite para a recusa das imposições imperiais estrangeiras.


Como se vê, essas análises literárias que levam em conta as narrativas de
Daniel como sendo um tipo de literatura de resistência continuam a ser um viés
bastante valorizado na crítica atual (o que, de certa forma, reforça a tese tradicio-
nal da apocalíptica quanto literatura oriunda em tempos de crise.
Quanto à datação do livro como um todo, há o consenso geral dos estudio-
sos de que, em sua forma final, Daniel é uma obra do período intertestamentário.
Foi o último a lograr entrada no conjunto das Escrituras Hebraicas, quando estas já
estavam cristalizadas, entre os Hagiógrafos, o que indicaria sua composição tardi-
a.195 O próprio redator (Dn 9,2) faz referências às “Escrituras”, dentre as quais es-
tava Jeremias, o que revela a aceitação da autoridade do cânon profético. Daniel
189
CHIA, Philip. On Reading the Subject: Postcolonial Reading of Daniel 1. In: SUGIRTHARA-
JAH, R. S. (Ed.). The Postcolonial Biblical Reader, p. 171-186 (publicado primeiramente em Ji-
anD 7 (1997), p. 17-36).
190
HENZE, Matthias. The Ideology of Rule in the Narrative Frame of Daniel (Daniel 1-6). SBLSP
38 (1999), p. 527-539; cf. também, do mesmo autor, The Narrative Frame of Daniel: A Literary
Assessment. JSJ 32.1-4 (2001), p. 5-24.
191
SWEENEY, Marvin A. The End of Eschatology in Daniel? Theological and Socio-Political
Ramifications of the Changing Contexts of Interpretation. BibInt 9.2 (2001), p. 123-140.
192
FEWELL, D. Nolan. Chapter Five: Resisting Daniel. In: The Children of Israel: Reading the
Bible for the Sake of Our Children, p. 117-130.
193
POLASKY, D. C. Mene, Mene, Tekel, Parsin: Writing and Resistance in Daniel 5 and 6. JBL
123.4 (2004), p. 649-669.
194
KIRKPATRICK, Shane. Competing for Honor: A Social Scientific Reading of Daniel 1-6, p. 4-
66; aqui especialmente p. 38.
195
Cf. KOCH, Klaus. Stages in the Canonization of the Book of Daniel. In: COLLINS, J. J.;
FLINT, P. W. (Ed.). The Book of Daniel: Composition and Reception, p. 421-446. v. 2.
229

difere dos livros proféticos, e assim não foi inserido entre eles. O fato é que, como
um todo, o livro se encaixa no período em que a literatura apocalíptica judaica de-
finitivamente se estabeleceu como gênero, ou seja, o século II a.C.
Sua composição final é tida como efetivada no Período Macabeu, com o
terminus a quo em 167 a.C. e o terminus ad quem em 164 a.C.196 O capítulo 11
fornece indicação precisa: as guerras entre os Ptolomeus e Selêucidas são narradas
em detalhes, bem como o reinado de Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), o qual
tentou estabelecer o culto e civilização helênicos no território sob sua jurisdição,
além de dedicar o Templo de Jerusalém a Zeus (2Mc 6,2). Dessa forma, o livro
relata que recaiu sobre o segundo templo a “abominação da desolação” (Dn 11,31;
12,11).197 O narrador utiliza a profecia ex eventu, uma característica do gênero a-
pocalíptico em geral: os acontecimentos de seu tempo, a época helenística, são
colocados numa visão dada ao personagem Daniel “no terceiro ano de Ciro, rei da
Pérsia” (Dn 10,1). Segundo Collins, “não há uma razão aparente, entretanto, por
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que um profeta do sexto século deveria focalizar minuciosa atenção sobre os even-
tos do segundo século”.198
Outro dado que revela que o redator do livro está distante dos relatos que
coloca na época caldeia são as imprecisões históricas: “Que o livro não pode ter
sido escrito na época exílica é provado pelo conhecimento vago do autor sobre o
período babilônico e o começo do período persa, e suas efetivas imprecisões”.199
Seu conhecimento sobre o século II é bem mais preciso do que o conhecimento do
período babilônico e persa (séculos VI e V a.C.). Baltazar é filho de Nabônides,

196
A tentativa mais recente para estabelecer a possibilidade de datação no VI século a.C. para a
composição do livro foi feita por E. C. Lucas, o qual assegura que há argumentos plausíveis tanto
para a datação no VI quanto no II século a.C., e que essa questão não afetaria a crença na inspira-
ção divina ou autoridade do livro (LUCAS, E. C. Daniel, Apollos Old Testament Commentary 20,
2002). Antes dele, Miller já havia tentado estabelecer a data do VI século para a composição de
todo o livro (cf. MILLER, S. R. Daniel, New American Commentary 18, 1994). J. G. Baldwin
também defende a época babilônica para a composição de Daniel, bem como a unidade de autoria
e composição original, partindo da ambientação babilônica proposta nos seis primeiros capítulos
do livro (BALDWIN, J. G. Daniel: An Introduction and Commentary, 1978). Entretanto, os argu-
mentos para a datação no VI século não resistem a uma análise histórico-crítica do livro. Defenso-
res da datação no VI século normalmente defendem também a historicidade factual dos persona-
gens e eventos narrados no livro, sem muito sucesso.
197
DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos, p. 507. v. 2; cf. também SOARES,
Dionísio O. O livro de Daniel: aspectos sócio-históricos de sua composição. Atualidade Teológica
29 (2008), p. 237-247.
198
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 26. Rowley sumariou a ques-
tão ao afirmar “que o livro foi escrito nos dias dos macabeus, desde há muito se afirma e continua-
rá a sê-lo no presente. Há quem defenda a data do sexto século, mas as evidências contra essa opi-
nião são esmagadoras” (cf. ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica: um estudo
da literatura apocalíptica judaica e cristã de Daniel ao Apocalipse, p. 43).
199
PORTEUS, N. W. Daniel: A Commentary, p. 20.
230

não de Nabucodonosor, e nunca teve o título de Rei; “Dario, o medo”, não é co-
nhecido pela história e, em verdade, não há lugar para ele entre o último rei cal-
deu, Nabônides, e Ciro, o Persa, o qual já havia vencido os medos quando con-
quistou o Império Babilônico.200 As datas apresentadas no livro não se harmoni-
zam entre si e nem com a história, parecendo que foram citadas sem muita preo-
cupação com a cronologia factual. Além disso, Nabucodonosor não levou para o
exílio Joaquim e nem os utensílios do Templo de Jerusalém.201
Montgomery defende diferentes épocas de composição para as histórias
compiladas no livro. Os capítulos 7 a 12 “pertencem aos primeiros anos da revolta
dos macabeus, 168-165 a.C.; as quatro visões são consideradas como sendo com-
postas uma por uma”.202 O mesmo postulam Bauer e Redditt, os quais exploram o
desenvolvimento redacional de Daniel como sendo fruto de uma série de edições
de antes e durante o período de perseguição sob Antíoco IV.203 Gammie acredita
ter havido três estágios primários no desenvolvimento do livro, com a intenção
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original modificada de acordo com as circunstâncias históricas da comunidade ju-


daica. Poderia ter havido, então, vários redatores, cada qual adaptando o material
ao seu tempo e objetivo, sendo o último deles o redator macabeu, responsável pela
última visão do livro (capítulos 10-12).204 Collins assinala que a “as histórias dos
capítulos 1 a 6 não são mais antigas que o Período Helenístico, e que as revelações
nos capítulos 7 a 12 foram escritas no Período Macabeu quando o rei sírio Antíoco
Epífanes estava perseguindo os judeus”.205
Daniel é, na verdade, uma figura antiga, personificação da sabedoria que
leva à vitória sobre o mal, bastante conhecido fora de Israel, já citado na Escritura
Hebraica em Ez 14 e 20.206 Essa figura aparece em Daniel como um judeu viven-
do no exílio babilônico. Collins vai além: afirma que o redator conheceria a figura
lendária não pela literatura estrangeira, mas pelo livro de Ezequiel.207 Já Montgo-

200
ALONSO SCHÖKEL, Luis; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 1262.
201
Cf. DONNER, Herbert. Op. cit. p. 421-432. v. 2.
202
MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 96.
203
BAUER, Dieter. Das Buch Daniel (1996); REDDITT, Paul L. Daniel: Based on the New Revi-
sed Standard Version (1999).
204
GAMMIE, J.G. The Classification, Stages of Growth, and Changing Intentions in the Book of
Daniel. JBL 95.2 (1976), p. 191-204.
205
COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 28.
206
Sobre a antiguidade da figura do personagem, cf., dentre outros, DAY, John. The Daniel of
Ugarit and Ezekiel and the Hero of the Book of Daniel. VT 30.2 (1980), p. 174-184. Para uma opi-
nião contrária à identificação dos três personagens, cf. DRESSLER, Harold H. P. The Identifica-
tion of the Ugaritic Dnil with the Daniel of Ezekiel. VT 29.2 (1979), p. 152-161.
207
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 2.
231

mery assevera que “o nome foi tirado de uma história popular judaica existente”
antes da composição final do livro no II século a.C.208 Segundo Towner:
É impossível escrever uma biografia do Daniel do livro, como se ele fosse uma
figura real da história judaica. Este Daniel é um personagem compósito, ficcional,
e as histórias sobre ele e os relatos de suas visões provavelmente se originaram
em diversas épocas e lugares. O que nos é dado, ao contrário [de uma figura real],
é um ícone da devoção judaica do II século a.C., um modelo de perseverança da
209
verdadeira firmeza da Torá.

Collins ainda afirma que “o livro de Daniel pode ser datado com relativa
precisão entre a segunda campanha de Antíoco Epífanes contra o Egito em 167
a.C. e sua morte em 164”.210
A tese da composição em vista das perseguições impostas por Antíoco IV
também é defendida por Russell, o qual acredita que a obra reflete um protesto
contra a cultura estrangeira (helenística) e um encorajamento à permanência nos
princípios da fé judaica.211 Lacocque afirma que o livro é um documento com-
prometido não com algo abstrato ou especulativo, mas antes enfrenta as questões
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da vida real acerca da perseguição, do sofrimento e do mal que tantas pessoas


também enfrentam no mundo moderno.212 Lederach enfatiza o tema universal da
resistência ao mal presente em Daniel, investiga o texto em seu contexto bíblico e
faz uma aplicação à vida da Igreja moderna. 213 Rowley assevera que é “mais fácil
dar um significado inteligível a qualquer parte do livro se o localizarmos nos dias
dos macabeus, e nada que exija uma época anterior. Isto não significa que o autor
tirou as histórias de sua própria cabeça. Significa que usou velhas histórias e tradi-
ções, e adaptou-as a seu propósito”.214
O consenso geral é de que as narrativas presentes em Dn 1-6 já tinham uma
longa e antiga tradição oral e escrita quando elas foram recolhidas e editadas no II

208
MONTGOMERY, J. A. Op. cit. p. 3.
209
TOWNER, S. W. Daniel. In: SAKENFELD, Katharine D. (Ed.). NIB, p. 13-15. v. 2; aqui p. 13.
210
COLLINS, J. J. (Ed.). Apocalypse: The Morphology of a Genre. Semeia 14 (1979), p. 30.
p. 30.
211
RUSSELL, D. S. Apocalyptic: Ancient and Modern, p. 10.
212
LACOCQUE, A. Daniel. In: PATTE, D. (Ed.). Global Bible Commentary, p. 253-261.
213
LEDERACH, Paul M. Daniel, especialmente p. 29-31.
214
ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica, p. 44. Rowley é, até hoje, o princi-
pal defensor da tese da unidade do livro em relação à autoria das narrativas da corte (capítulos 1-
6) e das visões (capítulos 7-12); cf. ROWLEY, H. H. The Unity of the Book of Daniel. HUCA 23
(1950-1951), p. 233-273. Segundo ele, “o ônus da prova recai sobre aqueles que dissecariam uma
obra. Neste caso, porém, nada que possa ser seriamente chamado de prova de composição foi pro-
duzido. Por outro lado, evidência para a unidade da obra que equivale, em sua totalidade, a uma
demonstração, está disponível” (Ibidem, p. 273). Na crítica atual, entretanto, há concordância no
que tange a uma possível unidade redacional por parte de um editor, mas não pela composição
homogênea da obra por parte de um único autor.
232

século a.C., sendo então combinadas e associadas às visões de Dn 7-12. Por outro
lado, pela época que o livro deixa transparecer com seu conteúdo e expressividade
literária, ele já não representa mais a corrente profética primitiva, mas o desenvol-
vimento do apocalipsismo, como se observa também em outras obras do período
judaico intertestamentário: “Tanto em Enoque quanto em Daniel o desenvolvi-
mento do tipo histórico de apocalipses está associado à crise do Período Macabeu
e envolve uma reapropriação extensa da tradição profética, especialmente em Da-
niel”.215
Isto posto, pode-se pressupor que o livro de Daniel em sua forma atual é o
resultado de um processo de composição que se iniciou antes do II século (talvez
no III a.C), adquirindo essa forma durante a época de Antíoco. Os capítulos 1 a 6
seriam fruto de um período mais primitivo (pelo menos os capítulos 2 a 6, se con-
siderarmos 1,1 a 2,4a, escrito em hebraico, como trecho tardio), pois contêm as
narrativas da corte, as quais seriam conhecidas pelo redator do livro de alguma
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forma (ou por composições escritas isoladas, ou por tradição oral); já os capítulos
7 a 12 (e talvez o trecho 1,1–2,4a) teriam sido acrescentados mais tarde, no domí-
nio de Antíoco IV, como aponta especialmente o capítulo 11. É justamente neste
capítulo que os maskîlîm (os “sábios”, termo aplicado a Daniel e seus companhei-
ros já no primeiro capítulo do livro) desempenham papel primordial contra a per-
seguição daquele soberano.
Os destinatários do livro, a comunidade representada pelo editor, está dire-
tamente relacionada ao seu marco social. O consenso tradicional de que os apoca-
lipses são “literatura de crise” é baseado primeiramente nos apocalipses do tipo
“histórico”, os quais apareceram a partir de grandes crises provocadas por perse-
guição sob o governo de Antíoco Epífanes e posteriormente na época da destrui-
ção de Jerusalém pelos romanos.
A diferença crucial em relação ao profetismo bíblico está justamente numa
expectativa de retribuição pessoal (recompensa ou punição) no pós-morte, embora
em muitos apocalipses isso ocorra no contexto de uma restauração do povo como
um todo. Como no profetismo, julgamento e salvação incluem a restauração do
povo judaico, mas nos apocalipses incluem também a transcendência dos limites
comuns da história para uma esfera de ação cósmica no julgamento e retribuição

215
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 71.
233

aos mortos, normalmente pela ressurreição.216 Assim, as predições escatológicas


nos apocalipses históricos normalmente seguem o padrão crise-julgamento-
salvação.
No caso de Daniel, a perseguição sobre Antíoco Epífanes forma o back-
ground da composição do livro, conforme assinalado supra.217 O estudo do marco
social retratado no livro leva, invariavelmente, ao estudo de sua função social, gê-
nero e datação. Cristofani assinala que o gênero do livro, a datação, a estrutura e o
caráter bilíngue colaboram para se precisar a situação vivencial dos possíveis arti-
culadores do livro.218 Ele assegura que qualquer análise de Daniel deve levar em
conta o seguinte: o grupo a que se refere o livro deve ser procurado em Jerusalém;
a sua existência e atuação devem estar entre os séculos III e II a.C.; o caráter com-
pósito do livro (gênero, língua, contexto histórico) parece indicar um processo de
mudança social; e o grupo teve um relacionamento tranquilo, até certo ponto, com
o poder estrangeiro durante o período anterior a Antíoco IV Epífanes.
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Apesar das constatações de Cristofani, os heróis presentes no livro, por ou-


tro lado, são situados no marco da diáspora, e suas vidas têm a função de servir
como exemplo aos que vivem em situações semelhantes. Daí ser muito provável
que as legendas da primeira parte do livro tenham surgido em terras de exílio, ofe-
recendo um “estilo de vida” para os judeus da diáspora, mostrando a eles a possi-
bilidade de participarem plenamente da vida de uma nação estrangeira, revelando
principalmente a possibilidade de prosperarem e serem fiéis ao Deus de seus pais.
Dessa forma, “o estilo de vida proposto para a diáspora, então, era de ativa parti-
cipação na vida gentílica, mas sem comprometer as exigências da tradição judai-
ca”.219

216
O Apocalipse das Semanas não menciona claramente a ressurreição, mas há uma referência
clara em 1En 93,1-10 e 91,11-17, conforme já assinalado neste trabalho.
217
Dentre as muitas obras acerca do período histórico que engloba essa época, além das já citadas,
cf. PETERS, F.E. The Harvest of Hellenism: A History of the Near East from Alexander the Great
to the Triumph of Christianity, p. 222-260; AUSTIN, M.M. The Hellenistic World from Alexander
to the Roman Conquest, p. 255-280; HENGEL, M. The Political and Social History of Palestine
from Alexander to Antiochus III (333-187 B.C.E.). In: DAVIES, W.D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.).
CHJ: The Hellenistic Age, p. 35-78. v. 2; sobre a relação entre o texto de Daniel e a sua historici-
dade, cf. COLLINS, J. J. Daniel and His Social World. Int 39.2 (1985), p. 131-143; para uma post-
ura convervadora, cf. HARDY, F. W. An Historicist Perspective on Daniel 11, p. 28-103.
218
CRISTOFANI, J. R. A expressão “Filho do Homem” em Daniel. In: NOGUEIRA, P.A.S. (Ed.).
Apocalíptica e as origens cristãs, p. 25-44; aqui p. 34.
219
COLLINS, J.J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 51. Cf. também, do mesmo
autor, The Apocalyptic Vision of the Book of Daniel, p. 55: “Há um largo consenso entre os estudi-
osos de que os relatos surgiram na Diáspora Oriental”.
234

Os relatos de Dn 1-6 têm como base histórica, então, a diáspora oriental:220


o marco histórico proposto tem como ponto de partida o Império Neobabilônico,
em que os personagens são colocados, e ponto de chegada o Império Persa, pois
Daniel fica servindo à corte até o primeiro ano do Rei Ciro, passando pelo reinado
de “Dario, o medo” (Dn 6,1). Já na segunda parte do livro o marco se estende, in-
cluindo um quarto império, o Grego (o “príncipe de Java”, a Jônia, em Dn
10,20).221
Nessa segunda parte a figura dos maskîlîm (sábios ou prudentes) toma mais
proeminência. Para Reddit as referências aos sábios ou prudentes (maskîlîm) em
Dn 11 são um reflexo dos círculos que produziram essa literatura, particularmente
em contextos cúlticos e sapienciais.222 Recentemente, ele postulou que os autores
eram um grupo de escribas que se via ameaçado pelas atitudes de Antíoco e, por
isso, compilou as narrativas com o intuito de encorajar seus leitores.223 Knibb sus-
tenta a visão de que o manticismo foi a matriz para o surgimento da literatura apo-
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calíptica; os autores de Daniel pertenciam a uma classe de escribas, mas o livro


não oferece indícios suficientes para determinar se eles pertenciam a um determi-
nado partido político ou religioso.224 Albertz argumenta que a parte aramaica de
Daniel (2,4b-7,28) tem como marco social o final do III século a.C., ao passo que
as porções hebraicas teriam se originado entre os hasîdîm do II século na Judeia.
Os hasîdîm eram escribas piedosos que se situavam socialmente entre a aristocra-
cia sacerdotal estabelecida e as classes mais baixas. Eles foram divididos em pelo
menos duas facções em relação à questão de a Revolta dos Macabeus ser justificá-
vel teologicamente ou não.225 Para Schubert, “o livro de Daniel no AT teve origem
em círculos assideus”.226
Otto Plöger afirma que o livro de Daniel apresenta o processo final da mu-
dança da escatologia profética para a apocalíptica; segundo ele, os hasîdîm repre-

220
ASURMENDI, J. M. Daniel e a apocalíptica. In: CARO, José M. Sánchez (Ed.). História, nar-
rativa e apocalíptica, p. 420-421.
221
Ibidem, p. 424-425.
222
REDDITT, P. L. Daniel 11 and the Sociohistorical Setting of the Book of Daniel. CBQ 60.3
(1998), p. 463-474.
223
Idem. The Community Behind the Book of Daniel: Challenges, Hopes, Values, and Its View of
God. PRSt 36.3 (2009), p. 321-339.
224
KNIBB, M. A. “You Are Indeed Wiser Than Daniel”: Reflections on the Character of the Book
of Daniel. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The Book of Daniel in the Light of New Findings,
p. 399-412.
225
ALBERTZ, R. The Social Setting of the Aramaic and Hebrew Book of Daniel. In: COLLINS, J.
J.; FLINT, P. W. (Ed.). The Book of Daniel: Composition and Reception, p. 171-204. v. 1.
226
SCHUBERT, Kurt. Os partidos religiosos hebraicos da época neotestamentária, p. 18.
235

sentam a atualização da antiga perspectiva profética (que cessou com o fim do


movimento profético), a qual o redator de Daniel incorporou. Essa atualização
permitiu inclusive que os escritos como o de Daniel fossem considerados inspira-
dos, nos moldes da Torá.227 Beyerle considera que o livro tenciona uma substitui-
ção do sistema social existente. Dentro do contexto apocalíptico visionário de Da-
niel, essa substituição inclui a esperança de salvação. O círculo mais provável para
a origem de Daniel seria, portanto, os maskîlîm.228
Grabbe também situa o marco social do redator do livro na época dos gre-
229
gos. O redator teria sido um indivíduo instruído que teve acesso às obras hele-
nísticas e, provavelmente, era um aristocrata, possivelmente um sacerdote. Seu
livro se estabeleceu rapidamente como um trabalho importante, sendo lido imedia-
tamente em busca de pistas acerca do futuro imediato, firmando, assim, sua traje-
tória nas mãos dos intérpretes posteriores judeus e cristãos.
Davies sugere que três símbolos podem definir o mundo social de Daniel:
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o livro, a corte e o segredo. No livro de Daniel, tudo o que é significativo é feito


por escrito, um símbolo de autoridade política e poder. Portanto, os autores do li-
vro seriam membros de uma elite privada de seu status e poder, e o simbolismo de
segredo presente em Daniel funcionaria para negar a realidade aparente dos acon-
tecimentos.230 Davies ainda investiga a identidade dos maskîlîm mencionados em
Dn 12,3 na suposição de que eles são a escola de escribas responsáveis pela pro-
dução da forma final do livro de Daniel.231 Ele conclui que os maskîlîm tinham
suas raízes na diáspora, identificados como uma elite privada de seus direitos que
era provavelmente alistada para os movimentos sectários opostos aos hasmoneus,
sendo aliados em potencial dos sacerdotes zadoquitas. As narrativas não eram des-
tinadas ao povo em geral, mas antes eram originárias de classes mais altas, refle-
tindo a preocupação desse tipo de pessoa.
Entretanto, também é importante considerar a evidência da natureza popu-
lar das narrativas na determinação da proveniência social do livro. Se ele tem, na
verdade, uma longa história de composição, como a maior parte dos estudiosos

227
PLÖGER, Otto. Theocracy and Eschatology, p. 22-25.
228
BEYERLE, S. The Book of Daniel and Its Social Setting. In: Ibidem, p. 205-228. v. 1.
229
GRABBE, L. L. A Dan(iel) for All Seasons: For Whom Was Daniel Important? In: COLLINS,
J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 229-246.
230
DAVIES, Philip R. Reading Daniel Sociologically. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). Op.
cit. p. 345-361.
231
Idem. The Scribal School of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 247-
265.
236

afirma, esse fator pode ser um indicador da popularidade do livro.232 O melhor


medidor de sua popularidade são provavelmente as muitas versões existentes dis-
poníveis atualmente.233 Assim sendo, a hipótese de elite do marco social de Daniel
por si só não justifica a grande popularidade do livro, e explicações alternativas
são possíveis. O cenário das narrativas em corte estrangeira não significa necessa-
riamente que as histórias cumpram sua finalidade unicamente (ou mesmo princi-
palmente) em círculos reais. Os contos não são simplesmente um relato factual
dos detalhes da vida na corte, mas, em vez disso, contêm exageros, como, por e-
xemplo, a fúria real excessiva (Dn 1,10; 2,5; 3,19), jantares magnificentes para mil
nobres (Dn 5,1), e aparentemente elogios efusivos e supostas conversões de reis
estrangeiros à fé judaica (Dn 2,27; 3,28-30; 4,31-34).
Henze constata que semelhantes exageros não são suscetíveis de serem o-
riginados em círculos bem familiarizados com os valores da corte.234 É bem pro-
vável que tais descrições extravagantes sejam projeções dos desejos dos desprivi-
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legiados. Assim, é possível que as histórias não tenham sido criadas pelos judeus
bem posicionados na diáspora, mas reflitam a imaginação daqueles situados bem
abaixo dos círculos sociais da corte.235 Os personagens das narrativas são retratos
exagerados que servem aos propósitos do gênero literário “relatos da corte”; os
judeus são extremamente piedosos, eloquentes e sábios, ao passo que o monarca é
um tanto estúpido, e seus assessores ardilosos e maléficos. Os contos oferecem
esperança aos judeus na diáspora, apresentando os tipos de personagens que per-
sonificam as esperanças nacionais dos judeus exilados (heróis virtuosos) e criando
situações fantásticas com personagens exagerados que apresentam a mensagem de
resistência satírica dos contos. Wills, Davies e Gruen reconhecem os impulsos po-
pulares, bem-humorados e criativos presentes no âmago dos escritos novelescos
judaicos.236

232
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 35-38.
233
HENZE, M. The Madness of King Nebuchadnezzar: The Ancient Near Eastern Origins and
Early History of Interpretation of Daniel 4, p. 19-23; KOCH, K. Stages in the Canonization of the
Book of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 421-446. v. 2; ULRICH, E.
The Text of Daniel in the Qumran Scrolls. In: Ibidem, p. 573-585, especialmente p. 581-582.
234
HENZE, Matthias. The Narrative Frame of Daniel: A Literary Assessment. JSJ 32.1-4 (2001),
p. 5-24; aqui p. 16-17.
235
CHARLESWORHT, J. H. The Social Setting and Origin of Jewish Apocalyptic Literature. In:
How Barisat Bellowed: Folklore, Humor, and Iconography in the Jewish Apocalypses and the
Apocalypse of John, p. 23-47.
236
Cf. WILLS, L. M. The Jewish Novel in the Ancient World, p. 5; DAVIES, P. R. Scribes and
Schools: The Canonization of the Hebrew Scriptures, p. 144; GRUEN, E. S. Diaspora: Jews
amidst Greeks and Romans, p. 137.
237

Davis observa que a preocupação histórica sobre a proveniência do materi-


al de Daniel em círculos profético, sapiencial ou apocalíptico diminuiu quando a
questão da possível localização social desses “movimentos” foi levantada por eru-
ditos como Wilson e Cook.237 Assim sendo, a adequação de uma correspondência
direta entre o ambiente social do texto no livro de Daniel e o mundo social efetivo
da narrativa tornou-se uma questão séria a ser discutida. O próprio Davies já havia
passado em revista as diversas sugestões para a proveniência social do material de
Daniel e demonstrado que não há consenso.238 Ele simplesmente concluiu que não
é possível saber precisamente onde esse material se originou. Essa tendência de
peneirar e expurgar as evidências sociológicas do fluxo do texto foi substituída
pelo próprio Davies naquilo que ele caracterizou num artigo mais recente como
uma “hermenêutica da suspeição”,239 a fim de discernir os interesses ideológicos
subjacentes ao texto.
Valeta argumenta que o uso imaginativo de humor e sátira nessas narrati-
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vas reflete uma manipulação criativa da realidade social da vida na corte factual
para fins de resistência ao rei e ao império, elaborando assim uma ligação temática
com os julgamentos presentes nas visões de Dn 7-12.240
Como pode ser visto, o livro de Daniel, em sua forma final, reflete o desejo
de resistência e a esperança de vitória de uma comunidade exposta num ambiente
de crise e perseguição política, religiosa e social. Resistência ao império, e não
avanço social e político, é o propósito fundamental dessas narrativas, e isso possi-
bilita o reconhecimento de um marco social mais popular para a gênese dos contos
da primeira parte do livro. A ligação entre as duas partes, pelo gênero e marco so-
cial, revela uma comunidade em crise, à espera de esperança e salvação por parte
de Iahweh. Segundo Montgomery, a análise do caráter literário do livro de Daniel
traz junto a análise de seu caráter religioso.241
A luta entre “bem” e “mal”, a presença de um personagem exemplar, inspi-

237
DAVIES, P. R. The Scribal School of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). The
Book of Daniel: Composition and Reception, p. 247-265. v. 1; aqui p. 248-250. Os textos a que
Davies se refere são WILSON, R. R. From Prophecy to Apocalyptic: Reflections on the Shape of
Israelite Religion. In: CULLEY, R. C.; OVER HOLT, T. W. (Ed.). Anthropological Perspectives
on Old Testament Prophecy. Semeia 21 (1981), p. 79-85; COOK, S. L. Prophecy & Apocalyptic-
ism: The Postexilic Social Setting, especialmente p. 19-84.
238
DAVIES, P. R. Reading Daniel Sociologically. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The Book
of Daniel in the Light of New Findings, p. 345-361; aqui p. 347.
239
Idem. The Scribal School of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 247.
240
VALETA, D. M. Court or Jester Tales? Resistance and Social Reality in Daniel 1-6. PRSt 32.3
(2005), p. 309-324.
241
MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 100-104.
238

rado por Iahweh, uma temática que incentiva a confiança e a obediência dos leito-
res em seu Deus, estão de fato presentes nos relatos da corte, sempre opondo os
personagens judeus aos personagens caldeus, e, assim, os deuses destes ao Deus
daqueles, com Iahweh sempre triunfando. Esses relatos possuem inúmeros ele-
mentos em uma exposição satírica unificada de literatura de resistência que é con-
sistente com o mundo social do livro e com a atitude de julgamento para com An-
tíoco IV Epífanes encontrada em Dn 7-12.

4.4.2. A narrativa da ressurreição em Dn 12,1-3: a tradução

v. 1
E naquele tempo, em que se levan- 1a  
tará Michael,
o grande chefe, o que se levanta 1b 
sobre os filhos de seu povo,
 
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se tornará um tempo de angústia 1c


o qual não aconteceu 1d 
desde que existe nação até aquele 1e 
tempo.
E naquele tempo escapará teu po- 1f 
vo,
todo aquele encontrado escrito no 1g  
rolo.
v. 2
E muitos daqueles que dormem no 2a  
pó da terra acordarão,
uns para vida eterna, 2b 
e outros para a censura, para repul- 2c  
sa eterna.
v. 3
E aqueles que são prudentes 3a   
brilharão como o brilho do
firmamento;
e os que tornaram justos a muitos 3b 
como as estrelas, para eternidade e 
para sempre.
239

4.4.3. A crítica textual

O aparato crítico da BHS não apresenta muitos casos de variantes para o


texto em questão. Os v. 1 e 3 não apresentam qualquer questão; já o v. 2 apresenta
dois casos, sendo o primeiro mais importante, envolvendo a LXX, o texto grego
de Teodocião e a Vulgata. Nos três versos não há referência à Peshita (versão sirí-
aca surgida por volta do II século d.C., a partir do texto hebraico ou a partir da
LXX), nem a algum Targum, pois, como se sabe, não há nenhum Targum feito a
partir do texto de Daniel, 242 e nem a algum manuscrito nos textos de Qumran.

A primeira variante no v. 2 diz respeito à expressão (“pó da


terra”) em 2a. Segundo o aparato, o texto grego da LXX traz e*n tw~~/ plavtei th~ς
gh~~ς (“na largura (amplitude)243 da terra”), e o texto grego de Teodocião traz a va-
riante e*n gh~~ς cwvmati (“na trincheira (ou monte sepulcral)244 da terra”), o que, se-
gundo o aparato, indicaria uma retroversão (ato de verter à língua original o que já
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estava traduzido) ao TM (comparando-se com o acádico “bît epri”). A Vulgata


traz a mesma variante de Teodocião.

A LXX é um dos grandes testemunhos da transmissão do texto da Bíblia


Hebraica; é a primeira tradução do hebraico, feita por volta do III século a.C.,
principalmente em Alexandria, no Egito. Sua enorme importância pode ser resu-
mida em quatro pontos: além de ser um reflexo do judaísmo helenístico, releva um
conhecimento acerca do texto antes de sua estabilização; foi o texto do AT utiliza-
do nas citações do Novo (emprestando a este, então, vários conceitos cristãos); foi
o texto bíblico dos Pais da Igreja (também dos latinos através da Vetus Latina,
tradução da LXX para o latim), revelando influência no cristianismo primitivo; e,
por fim, foi útil para emendar o texto hebraico-aramaico do AT.245 As comunida-
des cristãs espalhadas pelo Império Romano, que não falavam grego ou latim, co-
nheceram o texto bíblico por meio de traduções feitas a partir do texto da LXX.
O texto dela possui, então, grande valor para a crítica textual, pois, entre
outras coisas, “reflete, em termos de importantes variantes, um número maior do

242
Cf. TOV, Emanuel. Textual Criticism of the Hebrew Bible, p. 151, e TREBOLLE BARRERA,
Julio. A Bíblia judaica e a Bíblia cristã, p. 385 e 391.
243
Cf. as nuanças de platuvς, -ei~a, -uv em LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 1413-1414;
BAILLY, A. AB, p. 1566.
244
Para as nuanças de cw~ma, -atoς cf. Ibidem, p. 2014; Ibidem, p. 2163.
245
PISANO, Stephen. Introduzione alla critica testuale dell’Antico e del Nuovo Testamento, p. 16.
240

que todas as outras traduções juntas”.246 Sua importância para a crítica textual
provém de dois aspectos presentes numa mesma versão: “seu valor crítico como
tradução de um original hebraico, às vezes divergente da tradição massorética, e
seu valor exegético como tradução, que reflete tradições de interpolação e ideias
teológicas do judaísmo helenístico”.247
De fato, a LXX possui inúmeros traços distintos em relação ao TM e a ou-
tros testemunhos textuais, com elevado grau de discordância. Pelas pesquisas rea-
lizadas até a atualidade, os originais hebraicos da LXX não eram os mesmos do
TM. Entre os manuscritos do Mar Morto foram descobertos textos hebraicos que
refletem e concordam com o texto da LXX. É provável, portanto, que a LXX te-
nha tido um texto hebraico diferente do que teve o TM.248 Em relação ao livro de
Daniel, o texto da LXX difere muito do TM.249
Já o texto de Teodocião é uma das últimas traduções gregas do judaísmo,
situada já no período cristão. Sua tradução é uma revisão da LXX: ele “não fez
uma nova tradução, mas antes uma revisão que aproxima o texto ao hebraico”.250
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Obteve grande difusão, a tal ponto que substituiu o texto original da LXX em
grande parte dos manuscritos existentes. Teodocião é situado, pela tradição, no II
século d.C.251
Assim, seu texto se tornou o texto corrente do livro de Daniel, substituindo
o texto da LXX, devido à sua superioridade:
Pode-se supor que o texto ‘teodociônico’ de Daniel constitui-se numa tradução da
forma hebraica e aramaica do livro, realizada por um judeu que levou em conta a
versão existente da LXX. Esta versão pode proceder da Síria ou Mesopotâmia
(Koch). Em todo caso não se pode considerar tal versão como uma recensão no
252
sentido estrito do termo.

A Vulgata é a tradução para o latim feita entre o final do século IV e início


do V d.C., em Belém, por Jerônimo de Estridônia (São Jerônimo), a partir do texto
hebraico, aramaico e grego. Sua importância para a exegese e para a crítica textual
é grande, pois representa um dos principais testemunhos textuais surgidos antes da
época dos massoretas. Jerônimo utilizou, então, a LXX, as versões gregas existen-

246
TOV, Emanuel. Op. cit. p. 142.
247
TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 355 (grifo do autor).
248
TOV, Emanuel. Op. cit. p. 136-138; TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 359-362.
249
TOV, Emanuel. Op. cit. p. 142.
250
PISANO, Stephen. Op. cit. p. 19.
251
TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 371.
252
Ibidem. Daí então a importância do texto de Teodocião para o livro de Daniel.
241

tes e também o texto hebraico. Este era já praticamente o texto hebraico medieval,
o TM, com poucas variantes.253

No caso em questão, é bastante plausível que Teodocião discordou da tra-


dução da LXX e tentou restabelecer o sentido hebraico da expressão, a qual, neste
caso, corresponde à presente no TM, sendo seguido neste caso pela Vulgata. Pode
ser que ele tenha tido acesso a um texto hebraico diferente do utilizado pela LXX
em sua tradução.

No segundo caso de variação apontado pelo aparato crítico da BHS, este


informa que a expressão  (“para a censura”) situada antes de  (“pa-
ra repulsa”) em 2c é uma glosa (explicação), a qual pode ser apagada. De fato,
“censura” e “repulsa” aparecem como sinônimos. Pode ser que a expressão tenha
sido utilizada, de fato, para fins de ênfase, daí sua adição.

Interessante observar que, diferentemente da edição de Alfred Rahlfs, a e-


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dição da LXX de Joseph Ziegler traz as palavras kaiv ai*scuvnhn (“e vergonha”,
referente a do TM em 2c, “para repulsa”) entre colchetes, sendo conside-
radas então secundárias:

Texto Massorético 12,2 Texto da LXX de Ziegler


  2a kaiV polloiV tw~n kaqeudovntwn e*n
tw~~/ plavtei th~ς gh~~ς a*nasthvsontai,
 2b oi& meVn ei*ς zwhVn ai*wvnion,
  2c oi& deV ei*ς o*neidismovn, oi& deV ei*ς
diasporaVn [kaiV ai*scuvnhn] ai*wvnion.
254
Tabela 03: Comparação de Dn 12,2 no TM e na LXX de Ziegler

Poderia ser, então, que essas palavras gregas representariam influência da


versão de Teodocião. Neste caso, pode-se pensar que  e não  seria
a glosa. Mas essa hipótese é menos provável, dado o fato de que o texto da LXX é
bem mais antigo que o de Teodocião.

A única diferença no texto da LXX de Ziegler para a edição de Rahlfs são


os colchetes colocados nessa expressão.

Interessante observar também que, ao passo que o TM cita em 2a “aqueles


que dormem no pó da terra”, o grego antigo apresenta uma imagem diferente: “a-

253
Cf. TOV, Emanuel. Op. cit. p. 153; TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 425.
254
O texto da LXX de Ziegler apresenta: “E muitos dos que dormem na amplitude da terra se le-
vantarão, uns para a vida eterna, outros para injúria, para a dispersão [e vergonha] eterna”.
242

queles que dormem na amplidão da terra”. A expressão grega toV plavtoς th~~ς gh~~ς
é atestada também em outros lugares: Eclo 1,3 (plavtoς gh~~ς), Hab 1,6 (taV plavth
th~ς~ gh~~ς) e em Is 8,8 (toV plavtoς th~~ς cwvraς sou).255 Em todos esses outros ca-
sos, trata-se de uma expressão que não se refere ao lugar dos mortos; ao contrário,
“a amplidão da terra” remete simplesmente a toda a Terra dos vivos. Nesse caso,
pode ser que tenha havido na interpretação grega lembrança de Is 26,19: oi& e*n th~~/
gh~~/ (“os que estão na terra”), TM:  (“que habitam o pó”). Fica clara tam-
bém, assim, a noção grega da rejeição da ideia de ressurreição, conforme já atesta-
da supra.

Na tradução grega, tanto em Dn 12,2 quanto em Is 26,19 o hebraico


foi entendido no sentido de “terra”, o que representa uma das conotações
deste mundo.256 O verbo kaqeuvdw (“deitar-se”, “dormir”, “adormecer”)257 parece
ser usado em Dn 12,2 com o mesmo sentido de “estar morto” em Sl 88,6 (kaqeuv-
donteς e*n tavφw/, “que estão deitados no sepulcro”, na LXX de Rahlfs locado
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como 87,6), mas em combinação com a frase “na amplidão da terra” pode-se pen-
sá-lo metaforicamente como uma referência ao povo na dispersão, justamente co-
mo oi& nekroiv (“os mortos”) na LXX de Is 26,19.

Essa compreensão grega do texto se coaduna bem com o restante do verso,


onde se diz que alguns se levantarão para a “vida eterna”, ao passo que outros para
a “injúria” (“vergonha”) e “dispersão (diáspora) eterna”. O grego “diáspora” é
então usado aqui como interpretação de (“repulsa”, “vergonha” em 2c).258
Esse termo, segundo Charles, é baseado no aramaico consonantal , (“dis-
persar”, no sentido de “repelir”, “afastar”, “pôr de parte”).259 A combinação das
ideias de “repulsa” e “dispersão” aparece também, por exemplo, em Jr 24,9: kaiV

255
Cf. HATCH, E.; REDPATH, H. A. A Concordance to the Septuagint: And the Other Greek
Versions of the Old Testament (Including the Apocryphal Books), p. 1141. v. 2.
256
WÄCHTER, L. . In: BOTTERWECK, G. J.; RINGGREN, H. (Ed.). ThWAT, p. 277. v. 6.
257
Já no grego épico de Homero esse verbo aparece com o sentido de “deitar-se para dormir”. O
uso metafórico é mais tardio; em Dn 12,2 seu sentido é “deitar-se para o sono da morte” (cf. LID-
DELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 852).
258
Alfrink sugere que se deva ler diaφqoravn (diaφqorav, “destruição”, “ruína”) em vez de dias-
poravn (cf. ALFRINK, B. L’idée de résurrection d’après Dan. XII, 1-2. Bib 40 (1959), p. 355-371;
aqui p. 367. Já Jeansonne acredita que a leitura diasporavn representa uma adição tardia (cf. JE-
ANSONNE, S. P. The Old Greek Translation of Daniel 7-12, p. 101), possibilidade essa já assina-
lada supra.
259
CHARLES, R. H. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel, p. 329; cf.
também BROWN, Francis (Ed.). HELOT, p. 201.
243

dwvsw au*touVς ei*ς diaskorpismoVn... kaiV e!sontai ei*ς o*neidismoVn... (“e os da-
rei para serem espalhados largamente... e serão uma injúria...”).

A ideia de “repulsa” aparece também justamente no último verso do livro


de Isaías, no discurso escatológico (Is 66,18-24, provavelmente um acréscimo a Is
40-66 ou a todo o livro); o mesmo termo é usado quando Iahweh afirma
que os cadáveres de seus inimigos e dos inimigos de Israel “serão uma repulsa
() para toda a carne” (v. 24), ou seja, para todos que os contemplarem.260

De qualquer forma, o texto grego de Dn 12,2 é marcado pelo contraste en-


tre “vida eterna”, por um lado, e “desprezo” e “vergonha eterna” pelo outro. Em
Dn 12,1 os que vão para a “vida eterna” são os que estão escritos no livro (pa~ς~ o&
laovς, o$ς a#n eu&reqh~~/ e*ggegrammevnoς e*n tw~~/ biblivw/), o que faz lembrar tam-
bém o texto da LXX em Is 4,3 (a@gioi... pavnteς oi& graφevnteς ei*ς zwhVn e*n Ie-
rousalhm, “santos... todos os escritos para a vida em Jerusalém”). Assim sendo,
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pode ser que a interpretação grega tenha pensado que os destinados à “vida eter-
na” usufruirão essa eternidade em Jerusalém (cf. Is 65,22),261 ao passo que os con-
trários estariam destinados a viver fora de Jerusalém, na dispersão. Assim sendo,
“a noção do ‘levantar-se’ em Dan 12:2 remete ao fim de um período de vida na
escuridão e, por assim dizer, na sombra da morte. A ideia subjacente de nosso tex-
to é que um julgamento ocorrerá – um julgamento entre os ‘bons’ e os ‘maus’
[dentre os próprios israelitas]”.262

Entretanto, o outro lado do paralelismo (os destinados à “repulsa eterna”),


no contexto do livro de Daniel, não corresponde ao Israel infiel, como no profe-
tismo clássico, mas sim aos opressores dos mártires, justos e fiéis dos tempos dos
macabeus. Pode-se concluir que a interpretação grega de Dn 12,2 sofreu forte in-
fluência da tradução da própria LXX em outros textos da Escritura Hebraica, es-
pecialmente dos grandes profetas. Também não se poderia pensar em ressurreição

260
Cf. EVEN-SHOSHAN, Abraham (Ed.). NCB, p. 271. Aqui a LXX interpretou   por
o@rasiς (“visualização”, “kaiV e!sontai ei*ς o@rasin pavsh/ sarkiv”, “e serão visíveis a toda car-
ne”). A BJ traduz o termo por “abominação”, a IBB por “horror”, e a NVI por “repugnância”.
261
“Já não construirão para que outro habite a sua casa, não plantarão para que outro coma o fruto,
pois a duração da vida do meu povo será como os dias de uma árvore, meus eleitos consumirão
eles mesmos o fruto do trabalho das suas mãos”.
262
VAN DER KOOIJ, Arie. Ideas about Afterlife in the Septuagint. In: LABAHN, M.; LANG, M.
(Ed.). Lebendige Hoffnung – ewiger Tod?!: Jenseitsvorstellungen im Hellenismus, Judentum und
Christentum, p. 87-102; aqui p. 101.
244

individual no texto da LXX, física ou não, seguida de julgamento com retribui-


ções, pois quanto a isso a tradição grega não aceitou a influência persa.

4.4.4. Principais aspectos linguísticos e históricos do texto

O texto traz o tema da ressurreição, conforme já citado neste trabalho, sen-


do o primeiro das Escrituras Hebraicas a citar claramente uma ressurreição indivi-
dual.
O trecho de Dn 12,1-4 traz a conclusão de toda a seção da revelação por
parte do anjo ao personagem Daniel, 263 iniciada em 10,1 (Dn 12,4 contém a de-
terminação formal do anjo para Daniel) e, dentro disso, os v. 1-3 trazem a sequên-
cia imediata à queda de Antíoco: “A derrubada do poder mundial é retratada pelo
autor como sendo acompanhada por uma época de julgamento – talvez convulsões
políticas – da qual, no entanto, os fiéis entre o povo de Deus são livres; uma res-
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surreição dos israelitas se segue; e então uma época de felicidade se inicia para os
justos”.264 Segundo Montgomery, nos apocalipses mais antigos o final do período
de um tirano ímpio implica felicidade para os justos.265 Entretanto, uma novidade
se estabelece aqui: qual a recompensa dos mártires, os que morreram em defesa da
fé no único Deus de Israel? A ressurreição individual dava uma resposta à questão,
e foi “a partir da época da guerra dos Macabeus que essa crença começou a se tor-
nar um dos poucos principais dogmas do Judaísmo”.266
A expressão  (“aquele tempo”) é recorrente na perícope em
questão (aparece em 1a, 1e, 1f). Neste caso, ela se refere ao tempo do rei invasor
de Israel e sua morte, a qual se encontra no “tempo do fim” (cf. Dn 11,40), um
tempo já predeterminado (Dn 11,27) se tornando também o tempo da intervenção
celestial decisiva. A frase é usada também com conotação escatológica em Jr
3,17,267 sendo também uma marca na profecia pós-exílica como .268

Esse “tempo do fim”, ao longo do livro de Daniel, “recebeu novos signifi-

263
PORTEOUS, N. W. Daniel: A Commentary, p. 170.
264
DRIVER, S. R. The Book of Daniel: With Introduction and Notes, p. 200.
265
MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 471. Montgomery cita como exemplos Ez 38-39 e Jl 4.
266
Ibidem.
267
“Naquele tempo, chamarão a Jerusalém: ‘Trono de Iahweh’; para ela convergirão todos os po-
vos em nome de Iahweh, em Jerusalém, e não seguirão mais a dureza de seus corações malvados”.
268
BLENKINSOPP, J. The Eschatological Reinterpretation of Prophecy. In: A History of Prophecy
in Israel, p. 226-239; aqui especialmente p. 233-237.
245

cados à luz de novas circunstâncias”.269 No epílogo (12,5-13), o fim é apontado


para além da reconsagração do Templo (pode ser que esse epílogo tenha sido a-
crescentado após a reconsagração270). Permanece incerta, por exemplo, a diferença
de número de dias entre 8,14 (mil cento e cinquenta), 12,11 (mil duzentos e no-
venta) e 12,12 (mil trezentos e trinta e cinco dias). De qualquer forma, em 12,1-3 a
ressurreição dos mortos e a exaltação dos “prudentes” (ou “sábios”) constituem
uma característica específica e distintiva, e sob o ponto de vista do editor final a
remoção da “abominação da desolação” e a restauração do culto no Templo são
pré-requisitos para o fim (o estado final de salvação é descrito de forma vaga no
capítulo 7 como sendo um reino).
Miguel, “o grande príncipe”, aparece como aquele “que se levanta sobre os
filhos de seu povo” (em 1b), como um “campeão e defensor”;271 a partir de agora,
o poder do príncipe da Grécia não é mais citado.272 O livro apresenta uma doutrina
dos príncipes das nações, isto é, os “patronos celestiais” das nações. A existência
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dessas divindades das nações (cf. Sl 82) foi assimilada pelo monoteísmo judaico
sob o esquema de uma organização imperial nos céus. O anjo protetor de Israel é
uma ideia que pode remontar a Ex 23,20;273 em Daniel, esse anjo é chamado de
Miguel (“Quem é como Deus?”), um dos arcanjos principais (Dn 10,13.21). Con-
forme já assinalado neste trabalho, o verbo (em 1a) possui aqui um sentido
judicial: o anjo de Iahweh se levanta para julgar a causa de seu povo.274 Essa in-
terpretação fornece um paralelo desse texto com Dn 7, onde a cena do clímax tem
conotação judicial e o tema do livro dos viventes também aparece.
Esse tempo que precede a ressurreição e juízo é caracterizado como um
 (“tempo de angústia”, em 1c) de tal proporção que nunca houve sobre a
Terra. A expressão parece ser emprestada de Jr 30,7, onde se diz que Israel é pou-

269
COLLINS, J. J. The Meaning of the End in the Book of Daniel. In: Seers, Sybils, and Sages in
Hellenistic-Roman Judaism, p. 157-165; aqui p. 163.
270
Grande parte dos estudiosos discorda desta tese (cf. por exemplo MONTGOMERY, J. A. ICC,
p. 474). De fato, o trecho se encaixa melhor como um epílogo ao todo do livro do que como uma
adição tardia que representasse a reconsagração já acontecida.
271
DRIVER, S. R. Loc. cit.
272
Armerding chega a afirmar que “é bem possível que o levantar de Miguel sinalizará, no céu, o
começo da época de aflição” (cf. ARMERDING, C. E. Asleep in the Dust. Bibliotheca Sacra 121,
n. 482 (1964), p. 153-158; aqui p. 154).
273
Ex 23,20: “Eis que vou enviar um anjo diante de ti para que te guarde pelo caminho e te condu-
za ao lugar que tenho preparado para ti”.
274
Cf. BROWN, F. (Ed.). HELOT, p. 763-764; KOEHLER, L.; BAUMGARTNER, W. HAL, p.
795-796. v. 1.
246

pado dele.275 A ideia aparece também em 1Mc 9,27,276 obra contemporânea ao


livro de Daniel em sua forma hebraico-aramaica final.
Em 1g, os que escapam da tribulação são descritos como todo aquele que
se encontra (“escrito no rolo”);277 em Sl 69,29, aparece a ideia de um

(“livro dos viventes”) no qual os nomes dos justos deveriam estar escri-
tos, bem como em Ex 32,32.278 A mesma imagem aparece também em 1En 47,3
(“Nesses dias, vi o Ancião sentado no seu trono glorioso e os livros dos vivos a-
bertos perante ele; todo o seu exército que mora nos céus em cima e seu conselho
estava de pé perante ele”). Esse livro dos viventes acaba possuindo valor jurídico
por ocasião do julgamento final.279
Esses descritos como “escritos no rolo” estão certamente entre os “muitos”
(, em 2a) que ressuscitam nesta ocasião. Em relação a esses “muitos”, o reda-
tor com certeza tem em mente particularmente os mártires e apóstatas que foram
proeminentes durante o reinado de Antíoco. Eles são também descritos como “os
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que dormem no pó da terra” (em 2a): essa expressão é peculiar, e ocorre somente
neste texto. Normalmente, o termo (“pó”) é usado para o túmulo, como em
“jazer no pó” em Jó 21,26; aparece também em Jó 17,16 em paralelismo a Sheol,
o mundo dos mortos.280 Collins assinala que a expressão  (“pó da ter-
ra”) é provavelmente uma leitura duplicada, combinando dois sinônimos.281 De
qualquer forma, os mortos são retratados como estando em sono; em 1En 91,10 e
92,3 a figura do sono para a morte também é utilizada.282 A afirmação em seguida
de que eles “acordarão” lembra Jó 14,12, onde o mesmo verbo (“acordar”,

275
Jr 30,7 registra: “Ai! Porque este é o grande dia! Não há outro semelhante a ele! É tempo de
angústia para Jacó, mas ele será salvo!”.
276
1Mc 9,17 registra: “Foi esta uma grande tribulação para Israel, como nunca houve desde o dia
em que não mais aparecera um profeta no meio deles”. A ideia de um tempo presente de angústia
incomparável ao que já existiu aparece também no NT em Mc 13,19 e Mt 24,21.
277
Em nossa tradução, preferimos o termo “rolo” para por entendermos que “livro” seria
anacrônico.
278
Sl 69,29: “Sejam riscados do livro da vida, e com os justos não sejam inscritos!”; Ex 32,32:
“Agora, pois se perdoasses o seu pecado... Se não, risca-me, peço-te, do livro que escreveste”.
279
No livro do Apocalipse do NT, por ocasião do julgamento final, o “livro da vida” é claramente
distinguido de um “livro de julgamento”, mas ambos são abertos e consultados para execução do
juízo (cf. Ap 20,12-15).
280
Jó 21,26 relata: “E, contudo, jazem no mesmo pó, cobrem-se ambos de vermes”; em 17,16 re-
gistra: “Descerão comigo ao Sheol, baixaremos juntos ao pó?”.
281
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 392.
282
1En 91,10: “Os justos levantar-se-ão de seu sono, e a sabedoria levantar-se-á e lhes será dada”;
92,3: “O justo levantar-se-á de seu sono e caminhará na senda da justiça, e todos seus caminhos e
viagens serão a bondade eterna e a misericórdia”.
247

“despertar”) é usado com a metáfora do sono para os que estão mortos.283


Os mortos que “acordam” são divididos em duas categorias: dos justos é
dito que “estes para uma vida eterna” (2b), expressão que ocorre somente neste
texto em todo o AT, mas é frequente nos apocalípticos judaicos fora da Escritura
Hebraica: 1En 37,4; 40,9; 58,3; 62,14; Sl Sal 3,12; 13,11; 2Mc 7,9.36; 4Mc
15,3;284 dos ímpios é dito que “e aqueles para a censura, para repulsa eterna” (2c),
o que lembra Is 66,24, onde as carcaças dos transgressores encontram-se fora de
Jerusalém.285 No caso de Isaías, os infiéis não retornam à vida para experimenta-
rem sua humilhação, e foi sugerido que o mesmo ocorreria em Dn 12,2: a constru-
ção “estes...e aqueles” (..., 2b-2c) não seria uma referência à divisão dos
“muitos” em dois grupos, mas contrastaria os “muitos” com os outros (os não que
não “acordarão”).286 Em 1En 22, são descritas cavernas onde as almas dos mortos
são guardadas, três para os ímpios e uma para os justos; no v. 13 afirma-se que
determinado grupo de ímpios não permanecerá lá mesmo por ocasião do juízo fi-
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nal, ou seja, não ressuscitarão.287 No caso de Daniel, é mais natural e provável


pensar-se em dois grupos que “acordam” e têm seus destinos contrastados, con-
forme a opinião da maior parte dos comentaristas. Daniel não elabora um lugar
para castigo dos condenados, como um Hades incandescente, mas certamente o

283
Cf. EVEN-SHOSHAN, Abraham (Ed.). NCB, p. 1017. Jó 14,12 relata: “Jaz, porém, o homem e
não pode levantar-se, os céus se gastariam antes de ele despertar ou ser acordado de seu sono”.
Esse texto revela a falta de esperança por parte do autor numa volta à vida corrente.
284
1En 37,4: “Até agora não havia sido concedido pelo Senhor dos Espíritos a sabedoria que recebi
segundo minha inteligência, de acordo com o desejo do Senhor dos Espíritos por quem recebi o
meu lote da vida eterna”; 40,9: “Respondeu-me: O primeiro é o santo Miguel, o misericordioso e
paciente; o segundo, que está encarregado de tosas as doenças e feridas dos filhos dos homens, é
Rafael; o terceiro, que está encarregado de todos os poderes, é o santo Gabriel; e o quarto, encarre-
gado da penitência que conduz à esperança para aqueles que herdarão a vida eterna, é Fanuel”;
58,3: “Os justos estarão na luz do sol e os eleitos na luz da vida eterna. Os dias de sua vida não
terão fim, os dias dos santos serão sem-número”; 62,14: “O Senhor dos Espíritos permanecerá so-
bre eles e com esse Filho de Homem morarão, comerão, se deitarão e levantarão para todo o sem-
pre”; Sl Sal 3,12: “Tal é o lote dos pecadores para sempre, mas os que temem o Senhor ressuscita-
rão para a vida eterna; e sua vida, na luz do Senhor, nunca mais terá fim”; 13,11: “Pois a vida do
justo é para sempre, mas os pecadores serão levados para a destruição, e ninguém se lembrará de-
les”; 2Mc 7,9: “Chegado já ao último alento, disse: “Tu, celerado, nos tiras desta vida presente.
Mas o Rei do mundo nos fará ressuscitar para uma vida eterna, a nós que morremos por suas leis!”;
7,36: “Nossos irmãos, agora, depois de terem suportado uma aflição momentânea por uma vida
imperecível, morreram pela aliança de Deus. Tu, porém, pelo julgamento de Deus, hás de receber
os justos castigos por tua soberba”; 4Mc 15,3: “Ela escolheu o da religião que protege (seus filhos)
para a vida eterna de acordo com a promessa de Deus”.
285
Cf. também, no NT, Mt 25,46; Jo 5,29.
286
Cf. ALFRINK, B. L’idée de résurrection d’après Dan. XII, 1-2. Bib 40 (1959), p. 355-371; aqui
p. 362-371; HARTMAN, L. F.; Di LELLA, A. A. The Book of Daniel, p. 308; LACOCQUE, A. Le
livre de Daniel, p. 243-244.
287
1En 22,13: “Outra caverna ainda foi reservada para as almas dos homens que não são justos
mas pecadores: participarão da sorte dos ímpios, mas, porque foram punidos aqui, não serão puni-
dos no dia do julgamento; tampouco ressuscitarão daqui”.
248

texto remete além de Is 66.


No v. 3 são citados os maskîlîm, ou seja, “aqueles que são prudentes” (3a),
o que remete a Dn 11,33-35 (a mesma palavra é aqui usada),288 provavelmente
homens como Matatias de 1Mc 2, líderes dedicados e perseverantes durante a per-
seguição de Antíoco.289 A ideia aparece também em 1En 104,2;290 eles receberão a
justa retribuição pelo seu trabalho e injustiça sofrida. Segundo Émile Puech, seu
papel era levar muitos ao conhecimento e, portanto, à justiça.291
Conforme já assinalado acima, há muito que o redator de Daniel foi identi-
ficado como pertencente ao grupo de homens piedosos chamados assideus (em
grego) ou hasîdîm (em hebraico). Assim sendo, os maskîlîm de Daniel seriam i-
dênticos hasîdîm. 292 No entanto, essa teoria não possui o consenso que se garante
ter ela recebido. Uma das poucas coisas que se sabe sobre os hasîdîm é que eles
eram partidários militantes de Judas Macabeu. Hengel ainda identificou os
hasîdîm de várias composições do II século a.C. como sendo os autores de toda
uma gama de textos apocalípticos.293 Collins discorda dessa posição, assegurando
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que as três passagens nos livros de Macabeus “são a única evidência segura de que
temos um grupo hassídico do Período dos Macabeus”,294 ou “a única referência
direta aos Hasidim no período macabaico”.295 Ele ainda assinala que “é duvidoso
que o autor de Daniel tenha considerado os militantes macabeus como uma ajuda,
seja ela qual for. Para ele, o objetivo do sábio era fazer os outros compreenderem

288
Dn 11,33-35 registra a função desses “sábios” e seu destino durante a perseguição de Antíoco:
“Os homens esclarecidos dentre o povo darão a compreensão a muitos; mas serão prostrados pela
espada e pelo fogo, pelo cativeiro e pela pilhagem – durante longos dias. Ao serem oprimidos, pe-
queno será o auxílio que de fato receberão; muitos, porém, pretenderão associar-se a eles por intri-
gas. Entre esses homens esclarecidos alguns serão prostrados a fim de que entre eles haja os que
sejam acrisolados, purificados e alvejados – até o tempo do Fim, porque o tempo marcado ainda
está por vir”. Conforme já assinalado neste trabalho, o termo é aplicado ao personagem Daniel e
seus três companheiros judeus já em Dn 1,4.
289
DRIVER, S. R. The Book of Daniel: With Introduction and Notes, p. 202.
290
“Sofrestes vergonha anteriormente pelos males e pelas aflições; mas agora ireis brilhar como os
luzeiros do céu e sereis vistos. As portas do céu serão abertas para vós”. Cf. também Mt 13,43a:
“Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai”.
291
Cf. PUECH, Émile. La croyance des esséniens en la vie future: immortalité, résurrection, vie
éternelle?: histoire d’une croyance dans le judaïsme ancien, p. 82. v. 1.
292
Cf., por exemplo, HENGEL, Martin. Judaism and Hellenism: Studies in Their Encounter in
Palestine during the Early Hellenistic Period, p. 175-180. v. 1; PLÖGER, Otto. Theocracy and
Eschatology, p. 22-25. Para uma defesa mais recente dessa posição, cf. LACOCQUE, A. The So-
cio-Spiritual Formative Milieu of the Daniel Apocalypse. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The
Book of Daniel in the Light of New Findings, p. 315-343.
293
HENGEL, Martin. Op. cit. p. 318-323. v. 1.
294
COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 67-69; aqui p. 68. Sobre essa
posição, cf. também DAVIES, Philip. Hasidim in the Maccabean Period. JJS 28.2 (1977), p. 127-
140, especialmente p. 131-132.
295
COLLINS, J. J. Daniel and His Social World. Int 39.2 (1985), p. 131-143; aqui p. 133.
249

e purificarem a si mesmos. A batalha poderia ser deixada para Miguel e seus an-
jos”.296
A origem dos hasîdîm está na questão da aceitação das influências do hele-
nismo por parte de alguns líderes judeus na época dos macabeus; dois partidos po-
lítico-religiosos se estabeleceram em franca oposição: um pode ser designado co-
mo o dos filo-helenos e outro o dos assideus,297 contrários à aproximação com o
helenismo. A estes últimos se aliaram o sacerdote Matatias e seus cinco filhos,
sendo o principal líder dentre estes Judas, conhecido como Macabeu (daí a deno-
minação da insurreição armada de “Guerra” ou “Revolta dos Macabeus”).298
Os assideus ou hasîdîm são citados em 1Mc 2,42; 7,12-13 e 2Mc 14,6, as-
sim como provavelmente em 1En 90,9-11. Em 1Mc 7,12 eles são citados ao lado
dos “escribas”, podendo ter identificação com estes; assim, acreditou-se que o re-
dator de Daniel, com sua ênfase na sabedoria e nos ritos sacerdotais, poderia ter
pertencido a este grupo. Verifica-se que os hasîdîm “mantiveram o sentido de so-
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frimento e de martírio como sinônimos da resistência da fé judaica contra a políti-


ca expansionista asmoneia e da sua aproximação ao helenismo. A ‘intolerância’
hassídica, na verdade, foi fator primordial responsável pela sobrevivência e a con-
servação das tradições judaicas”.299 Os hasîdîm forneceram um novo sentido reli-
gioso para enfrentar movimentos infiéis ao judaísmo no II século a.C., época do
livro de Daniel. Eles deram um “forte impulso rumo à maneira de encarar o futuro,
deslocado agora para um quadro de esperanças escatológicas dentro das quais es-
taria situada a crença messiânica, bem como a doutrina da ressurreição da car-
ne”.300
Entretanto, a referência em Dn 11,33-35, assim como em 12,3.10 é feita
aos maskîlîm (“os que são prudentes”), cuja incumbência é instruir os rabbîm
(“muitos”) para serem sábios; fica difícil associar a conhecida imagem quietista
desses maskîlîm com a dos hasîdîm apresentados como “homens valorosos de Is-
rael” e guerreiros de Judas Macabeu nos livros dos Macabeus (cf. 1Mc 2,42; 2Mc
14,6-7).-7). Uma proposta para conciliação seria considerar que eles “começaram
como quietistas (cf. 1Mc 2,29-38), mas se viram forçados a mudar de posição e
296
Idem. The Apocalyptic Imagination, p. 112.
297
SAULNIER, Christiane. A revolta dos Macabeus, p. 23.
298
Ibidem, p. 29.
299
Cf. SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus, p. 45.
300
Ibidem. No entanto, para o caso de Daniel é mais provável que a ressurreição individual não
envolva um corpo físico no qual se possa afirmar uma “ressurreição da carne” (cf. tratamento adi-
ante).
250

juntar-se à rebelião contra Antíoco em consequência da grande perseguição pro-


movida por este”.301 De fato, em 1Mc 7,13 eles estão inseridos numa comitiva que
busca a paz, sem a presença de Judas Macabeu, parecendo querer distanciar-se
deste,302 talvez satisfeitos já com as concessões feitas, entre elas a liberdade religi-
osa (cf. 1Mc 6,58-60).303 Entretanto, quando desta mudança de hostilidade para
paz Antíoco Epífanes já havia morrido.
De qualquer forma, os hasîdîm podem ser associados a pouquíssima obras
do apocalipsismo judaico, sendo Daniel uma delas. Assim, não é de todo impossí-
vel que o editor do livro de Daniel pertencesse a esse grupo, embora não haja uma
demonstração definitiva. No caso específico de Dn 12,3, Montgomery, Collins e
outros apontam a possibilidade de se associar os “prudentes” e sua exaltação a
“brilhar como as estrelas para eternidade” (3b) à tradição do Servo Sofredor em Is
53,11b e 52,13.304 De fato, em Dn 11,33 eles são responsáveis por dar compreen-
são ao povo,305 e em 12,3 são responsáveis por justificar, “tornar justos a muitos”
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(3b). As duas noções não são incompatíveis. Segundo Lacocque, os maskîlîm fa-
zem os rabbîm justos pela sua morte, ou seja, seu martírio seria propiciatório.306
Sob o ponto de vista da tradição do Servo Sofredor, entretanto, isso não seria pos-
sível. O mais plausível é considerar que eles fazem o povo justo pela sua instru-
ção, o que está mais claro no texto.
Quanto a “brilhar como o brilho [as estrelas] do firmamento” em 3a, o tex-
to parecer deixar claro a situação dos maskîlîm após a ressurreição: são associados
aos anjos.307 Essa associação aparece em Dn 8,10, onde são atacados por Antíoco,
revelando a ousadia deste em termos de malignidade.308 O tema dos santos glorifi-
cados que brilham como as estrelas no pós-morte aparece também em 1En 39,7ab;
301
RUSSELL, D. S. Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica, p. 57.
302
1Mc 7,13: “Os assideus eram os primeiros dentre os israelitas a solicitar-lhes a paz”.
303
1Mc 6,58-60: “‘Estendamos, pois, a mão direita a esta gente, fazendo as pazes com eles e com
toda a sua nação. Vamos reconhecer-lhes o direito de viverem segundo as suas leis, como antes, já
que é por causa dessas leis, que nós quisemos abolir, que eles se exasperaram e fizeram tudo isto’.
Sua proposta agradou ao rei e aos comandantes. E ele enviou aos judeus propostas de paz, que fo-
ram aceitas”.
304
MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 472; COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of
Daniel, p. 393. O texto de Is 53,11b registra: “Pelo seu conhecimento, o justo, meu Servo, justifi-
cará a muitos e levará sobre si as suas transgressões”; 52,13: “Eis que meu Servo prosperará, ele se
elevará, será exaltado, será posto nas alturas”.
305
Dn 11,33: “Os homens esclarecidos dentre o povo darão a compreensão a muitos; mas serão
prostrados pela espada e pelo fogo, pelo cativeiro e pela pilhagem – durante longos dias”.
306
LACOCQUE, A. Le livre de Daniel, p. 230.
307
COLLINS, J. J. Apocalyptic Eschatology As the Transcendence of Death. CBQ 36.1 (1974), p.
21-43; aqui p. 33-35; LACOCQUE, A. Op. cit. p. 244-245.
308
Dn 8,10: “Ele ergueu-se até contra o exército dos céus, derrubando por terra parte do exército e
das estrelas e calcando-as aos pés”. As estrelas seriam os justos sábios, servos de Iahweh.
251

104,2-4; T. Mos 10,9; 4Esd 7,97; possivelmente Sb 3,7a e, no NT, em Mt


13,43a.309 Hartman e Di Lella assinalam que pode se afirmar que os maskîlîm
“tomam parte na glória dos anjos, simbolizados pelas estrelas”.310 A associação
com anjos no pós-morte aparece também em 1En 39,5a; Ap Sy Br (2Br) 51,1-5;
possivelmente em Sb 5,5 e, no NT, em Mt 22,30 par.311 A associação com estrelas
no pós-morte era comum no Período Helênico e Romano.312 Entretanto, no caso
de Dn 12,3 não se diz que os “prudentes” se tornarão estrelas, mas que brilharão
como elas.
Como se vê, a tradição de ser elevado e brilhar como as estrelas é bastante
atestada na tradição judaica tardia. Pode-se concluir, então, que a condição no pós-
morte, pelo menos para esses mestres, não implicaria uma ressurreição corporal,
muito menos uma ressurreição nos moldes entendidos pelo judaísmo até então, ou
seja, uma ressurreição coletiva, da nação, no sentido de libertação e volta a um
estado de grandeza nacional.
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O enfoque principal em Dn 12,1-3 é a ressurreição individual como reco-


nhecimento de justiça e fidelidade desses servos de Iahweh durante sua vida terre-
na, compensando o que não ocorreu nesta e fazendo valer a perfeita justiça de I-
ahweh. Todas essas acepções relativas ao pós-morte, presentes no livro de Daniel
e no Judaísmo do Segundo Templo, fruto das interações culturais com outros po-
vos, especialmente os persas e gregos, se farão sentir também no cristianismo pri-
mitivo, como se pode depreender a partir dos textos do NT.

309
1En 39,7ab registra: “Vi sua morada debaixo das asas do Senhor dos Espíritos, todos os justos e
eleitos brilhavam perante ele como a luz do fogo”. O paralelo de 1En 104,2-4 é bastante evidente:
“Sofrestes vergonha anteriormente pelos males e pelas aflições; mas agora ireis brilhar como os
luzeiros do céu e sereis vistos. As portas do céu serão aberta para vós. Perseverai no vosso grito
por julgamento e este aparecerá. Pois a justiça será realizada pelos responsáveis (os anjos) em toda
a vossa angústia, contra todos aqueles que ajudavam os que vos espoliavam. Tende fé e não aban-
doneis vossa esperança, porque tereis uma grande alegria como os anjos do céu”. T. Mos (ou As-
sunção de Moisés) 10,9 registra: “Deus exaltar-te-á e te fixará no céu das estrelas, no local de suas
moradas”; 4Esd 7,97: “A sexta, quando lhes será mostrado como seu rosto resplandecerá como o
sol e como, doravante incorruptíveis, serão semelhantes à luz das estrelas”. No caso de Sabedoria,
o texto de 3,1-12 trata da comparação da sorte dos justos e dos ímpios; no v. 7a o texto afirma so-
bre os justos que “No tempo de sua visita resplandecerão”; se entendida essa condição da mesma
forma que em Daniel, não se aplica aqui, também, a noção de uma ressurreição corporal. O texto
de Mt 13,43a registra: “Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai”.
310
HARTMAN, L. F.; Di LELLA, Alexander A. The Book of Daniel, p. 310.
311
1En 39,5a: Lá meus olhos viram sua morada com os anjos e seu lugar de repouso com os san-
tos”; em Ap Sy Br 51,1-5, o v. 5b registra sobre os justos: “Pois os primeiros [os justos] serão
transformados e se parecerão como anjos”; Sb 5,5: “Como agora o contam entre os filhos de Deus
e partilha a sorte dos santos?” (aqui “filhos de Deus” e “santos” podem ser referências aos anjos); e
Mt 22,30: “Com efeito, na ressurreição, nem eles se casam e nem elas se dão em casamento, mas
são todos como os anjos no céu”.
312
HENGEL, Martin. Judaism and Hellenism, p. 197. v. 1.
5. Apocalíptica e Novo Testamento: a ressurreição no Cris-
tianismo primitivo e o relato de Mt 27,51b-53

5.1. As concepções do pós-morte na época de Cristo

Na virada da história para a Era Cristã havia uma concepção generalizada


entre os judeus de que o mundo estava numa situação desesperadora, com o povo
escolhido por Deus sob o governo de ímpios que ostentavam poder e zombavam
do propósito divino.1 Assim, a esperança num reino messiânico que iria inaugurar
uma nova era gloriosa sobre a Terra era compartilhada pela maioria dos judeus
fiéis às antigas promessas davídicas. Esse reino já tinha começado a ganhar um
caráter escatológico, e a vida no pós-morte passou a fazer parte definitivamente da
concepção religiosa do judaísmo.
Entretanto, essas concepções eram diversificadas, como o era o próprio ju-
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daísmo de uma forma geral. Havia tendências variadas e mesmo conflitantes. Co-
mo já assinalado supra, ainda no período chamado de judaísmo pós-exílico tardio
essas concepções haviam sido modificadas. O contato com as concepções gregas e
persas já havia se dado. Com os gregos encontra-se o conceito de imortalidade de
alma (escolas filosóficas e religiosas gregas discutiam e aperfeiçoavam aspectos
referentes a essa temática);2 com os persas, a noção de ressurreição individual, juí-
zo final e outras noções de cunho escatológico. Com os primeiros, o contato se dá
pela expansão do helenismo. Em relação aos persas, conforme já verificado, uma
hipótese provável é que o contato tenha se dado por ocasião do exílio, com a pos-
terior influência de Ciro II e seus sucessores; outra hipótese seria o contato com a
cultura persa no pós-exílio já como substrato cultural no Império Macedônio. O
fato é que antes da época persa (VI século a.C.) não se encontra evidência no Pri-
meiro Testamento de uma nova elaboração nesses conceitos a partir de influências
estrangeiras. Este intercurso com as culturas predominantes resultou em novas ex-
1
Cf. HICK, John. New Testament Views of the After-Life. In: Death and Eternal Life, p. 171-193;
aqui p. 184.
2
Cf. as expressões em conformidade com a ideia grega de imortalidade da alma em 4Esd 7,75-101
(do I século d.C.), 4Mc 9,21-22 (também do I século d.C.) e Sb 3,1-4 (mais antigo, I século a.C.).
No texto de Sb 3,4 a última palavra do verso é athanasía (imortalidade), inusitada no Primeiro
Testamento: “Aos olhos humanos pareciam cumprir uma pena [os mortos], mas sua esperança es-
tava cheia de imortalidade”. Em 8,13 ela é usada com o sentido de imortalidade pela lembrança,
tema caro às civilizações antigas, conforme assinalado neste trabalho. Em 1,4 trata-se da imortali-
dade da alma como recompensa pela justiça de Deus, semelhante ao caso da ressurreição individu-
al em Dn 12,1-3.
253

pectativas relacionadas a crenças antigas, e tais elaborações se refletiram no juda-


ísmo tardio e, posteriormente, no cristianismo.3
Em relação aos persas, podemos concluir também que as duas hipóteses a-
cima citadas não são excludentes, e uma parcela imensurável de cada uma contri-
buiu significativamente para as mudanças na escatologia judaica pós-exílica; essas
mudanças levarão a duas formas distintas de expectativas e esperanças relaciona-
das ao futuro no cristianismo primitivo: uma a que podemos chamar simbolica-
mente de histórica (esperava o estabelecimento do Reino Messiânico na era pre-
sente) e outra a que podemos chamar, também simbolicamente, de escatológica
(esperava o fim da era presente na implantação do reino e o estabelecimento de
uma nova era).
No que tange à ressurreição, o próprio NT atesta que o cristianismo primi-
tivo possuía mais de uma tradição; “as concepções são flácidas, como no judaís-
mo”.4 Hagner assevera que a disjunção entre as narrativas de ressurreição no NT é
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uma consequência lógica da dificuldade de interpretação do fato por parte dos dis-
cípulos: “Se os discípulos não estavam em condições de compreender a morte do
Messias, eles dificilmente poderiam ter entendido o sentido das afirmações sobre
sua ressurreição”.5 As Escrituras e a tradição judaica necessitam ser revistas. As
narrativas revelam a dificuldade de compreensão: no caminho de Emaús, os discí-
pulos andam com Jesus mas não o reconhecem durante um bom tempo (Lc 24,13-
35); no comissionamento que se dá em seguida (como no paralelo em Jo 20,19-
29), Jesus aparece entre os discípulos mesmo eles estando reunidos em portas fe-
chadas (Lc 24,36-49); no relato do túmulo vazio em Jo 20,11-18, Maria confunde
Jesus com o jardineiro. Segundo Nickelsburg:
A persistência no tema da súbita aparição e desaparecimento [do Jesus depois de
morto] e da falta de reconhecimento ou identificação equivocada [por parte de
seus discípulos] funciona como um fio através das histórias e sugere que, a des-
peito de sua justaposição ao relato do túmulo vazio e apesar da ênfase na corpora-
lidade em alguns casos, essas histórias são cristalizações de tradições em que a
6
forma do Cristo ressuscitado era muito mais ambígua.

3
Cf. SEGAL, Alan F. Life After Death: A History of the Afterlife in Western Religion, p. 351-353.
4
OEPKE, Albrecht. Resurrection in the NT. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT, p. 371. v. 1. O judaísmo
a que o autor se refere é o do período pós-exílico tardio.
5
HAGNER, D. Gospel, Kingdom and Resurrection in the Synoptic Gospels. In: LONGENECK-
ER, Richard N. (Ed.). Life in the Face of Death: The Resurrection Message of the New Testament,
p. 99-121; aqui p. 101.
6
NICKELSBURG, G.W.E. Ancient Judaism and Christian Origins: Diversity, Continuity, and
Transformation, p. 142. James M. Robinson tenta delinear três conjuntos de trajetórias paralelas,
relacionados entre si, os quais se estenderiam a partir de uma origem comum no cristianismo pri-
mitivo até sua conclusão no gnosticismo do II século e no cristianismo ortodoxo (ambos mais tarde
254

A própria noção de “ressurreição” nos textos do NT, como também na a-


pocalíptica judaica, não aparece relacionada somente a um evento futuro, a uma
ressurreição geral (Mt 22,28; 25,31-46; Jo 11,24; Ap 20,11-15), mas também a
uma ressurreição específica dos justos antes da ressurreição-paradigma (a que é
seguida pelo juízo final), como em Mt 27,51b-53 e Lc 14,14, justos esses que já
estão “mortos em Cristo” (1Ts 4,16). Mesmo no que se refere à ressurreição final,
ocorrem variações, e poucos textos (talvez nenhum) postulam uma simples reani-
mação de corpos mortos; as indicações são esparsas, mas a glorificação final é um
tema comum. Em Mc 12,18-27 par., por exemplo, o resultado da ressurreição é a
noção da existência judaica semelhante aos anjos, na linha da tradição de Enoque
e Daniel (cf. Dn 12,3; 1En 104,2-4; 2Br 51,1-5, textos já mencionados acima).
Nas cartas paulinas não se menciona a ressurreição dos ímpios; já as epístolas uni-
versais não mencionam qualquer ressurreição, seja de justos ou de ímpios.
Uma das mais importantes tradições presentes no NT é a do túmulo vazio,
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considerada uma tentativa de amenizar um grande problema para o cristianismo


primitivo: o fato de, concretamente, ninguém ter testemunhado a ressurreição de
Jesus, pelo menos nenhum dos escritores neotestamentários. Rudolf Bultmann,
referindo-se a Mc 16,1-8, texto que narra a primeira atestação do túmulo vazio,
efetuada pelas mulheres, afirma tratar-se de uma “legenda apologética”,7 a qual
pretende “provar a realidade da ressurreição de Jesus pelo túmulo vazio”,8 fazendo
parte de um estágio tardio das tradições pascais.
Essa tradição ajudava também a superar outro problema: a crença em fan-

divergentes nas interpretações das crenças dos primeiros cristãos): a primeira trajetória representa-
ria o desenvolvimento que se inicia com as tradições concernentes às experiências dos primeiros
discípulos acerca das aparições de Jesus após a ressurreição e terminam com, por um lado, a inter-
pretação ortodoxa dessas aparições como sendo manifestações corporais do Cristo ressuscitado e,
por outro lado, a interpretação gnóstica de resplendor incorpóreo; a segunda trajetória se daria a
partir da expectativa apocalíptica primitiva de uma ressurreição dos cristãos no final dos tempos
em um corpo luminoso e celeste comparável ao de Cristo, projetando o surgimento da doutrina
ortodoxa da ressurreição final dos cristãos no corpo carnal de cada indivíduo, por um lado, e da
doutrina gnóstica acerca da ressurreição mística e espiritual já alcançada no batismo, por outro;
finalmente, a terceira trajetória diz respeito à evolução dos ditos atribuídos a Jesus, por um lado,
culminando na incorporação ortodoxa desses ditos dentro da biografia pré-pascal de Jesus nos E-
vangelhos canônicos e, por outro, na mistificação desses ditos por meio de diálogos hermeneuti-
camente carregados do Cristo ressuscitado com os discípulos gnósticos. Robinson assevera que
nem a interpretação ortodoxa e nem a posição gnóstica representam a posição original cristã, em-
bora ambas sejam tentativas coerentes e esforços sérios de interpretação (cf. ROBINSON, James
M. Jesus from Easter to Valentinus (Or to the Apostles’ Creed). JBL 101.1 (1982), p. 5-37). Cf. a
crítica pouco consistente da posição de Robinson por CRAIG, W. Lane. From Easter to Valentinus
and the Apostles’ Creed Once More: A Critical Examination of James Robinson’s Proposed Resur-
rection Appearance Trajectories. JSNT 52 (1993), p. 19-39.
7
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition, p. 314.
8
Ibidem, p. 311.
255

tasmas e espíritos já era quase universal na cultura popular, de forma que descre-
ver Jesus simplesmente como um espírito era o mesmo que equipará-lo a um fan-
tasma. Por outro lado, pesa também o fato de que, com a predominância da dou-
trina grega acerca da imortalidade da alma, corria-se o risco de se assumir que
somente a alma imortal de Jesus teria sobrevivido à sua morte, o que significaria
dizer que sua morte fora igual a dos demais mortais.
Nos relatos de Mateus 27 e 28 aparece uma clara polêmica envolvendo a
tradição do túmulo vazio: os judeus solicitam a Pilatos que coloque guardas no
túmulo para que o corpo de Jesus não fosse roubado pelos discípulos (Mt 27,62-
66);9 posteriormente, esses judeus aparecem subornando os guardas romanos para
que estes afirmassem que o corpo do Cristo tinha sido roubado pelos próprios dis-
cípulos (Mt 28,11-15), fato que inviabilizaria a tradição do túmulo vazio como
prova cabal da ressurreição.10 Esses episódios deixam clara a existência de uma
polêmica judaico-cristã presente no Evangelho de Mateus; eles não aparecem nos
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outros Sinóticos e nem no Evangelho joanino. Devido a essa clara aversão aos hie-
rarcas de Jerusalém, o evangelista concentra o seu relato tanto quanto possível na
Galileia.11
Pela narrativa mateana, a forma de dissipar a dúvida entre os judeus que
não criam na ressurreição (dissipando também o surgimento da mesma dúvida en-
tre os cristãos) seria atribuir àquele grupo de fraudadores a culpa pela existência
dessa dúvida, ou seja, trata-se de desqualificar a possibilidade da dúvida e ratificar
a tradição do túmulo vazio (Mt 28,15). A explicitação do evangelista acerca da
presença dos guardas junto ao túmulo exclui totalmente a hipótese de furto, atribu-
indo esta ideia a uma invenção maliciosa das autoridades judaicas (Mt 28,13).12

9
Mt 27,62-66 registra: “No dia seguinte, isto é, o dia depois da preparação, reuniram-se os princi-
pais sacerdotes e os fariseus perante Pilatos, e disseram: Senhor, lembramo-nos de que aquele em-
busteiro, quando ainda vivo, afirmou: Depois de três dias ressurgirei. Manda, pois, que o sepulcro
seja guardado com segurança até o terceiro dia; para não suceder que, vindo os discípulos, o furtem
e digam ao povo: Ressurgiu dos mortos; e assim o último embuste será pior do que o primeiro.
Disse-lhes Pilatos: Tendes uma guarda; ide, tornai-o seguro, como entendeis. Foram, pois, e torna-
ram seguro o sepulcro, selando a pedra, e deixando ali a guarda”.
10
Mt 28, 11-15: “Ora, enquanto elas iam, eis que alguns da guarda foram à cidade, e contaram aos
principais sacerdotes tudo quanto havia acontecido. E congregados eles com os anciãos e tendo
consultado entre si, deram muito dinheiro aos soldados, e ordenaram-lhes que dissessem: Vieram
de noite os seus discípulos e, estando nós dormindo, furtaram-no. E, se isto chegar aos ouvidos do
governador, nós o persuadiremos, e vos livraremos de cuidado. Então eles, tendo recebido o di-
nheiro, fizeram como foram instruídos. E essa história tem-se divulgado entre os judeus até o dia
de hoje”.
11
GROSSOUW, W. Ressurreição de Jesus Cristo. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 1308-
1314; aqui p. 1312.
12
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento, p. 430.
256

Esses textos do Evangelho de Mateus “pertencem a uma fase da tradição que re-
flete uma atitude apologética dos cristãos frente às asserções dos judeus de que os
discípulos de Jesus haviam roubado seu corpo”.13
Ainda dentro dos Evangelhos, Lucas deixa claro a ressurreição corpórea de
Jesus: este não somente pede para que os discípulos toquem em seu corpo físico,
mas também pede comida e a come diante deles (Lc 24,36-43); os leitores de Lu-
cas eram, em grande parte, helênicos (negavam a ressurreição do corpo, cf. já veri-
ficado supra). Reiterando essa posição, o Evangelho de João faz questão de não
deixar dúvidas quanto à ressurreição corpórea e física de Jesus;14 a escola joanina
polemiza frequentemente com o pré-gnosticismo (ou proto-gnosticismo, depen-
dendo de como se compreenda esse fenômeno) ou docetismo. João apresenta tam-
bém uma novidade em relação à ressurreição dos fiéis na tradição sinótica: não é
Deus, mas sim o próprio Jesus, como demonstração de seu poder, que os ressusci-
tará no último dia (Jo 6,40.44).15
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Quanto aos adversários de Jesus, os Sinóticos (como também o livro de


Atos) revelam a diferença entre saduceus e fariseus acerca da ressurreição (cf. Mt
22,23-33 par.; At 23,6-10). Ao passo que os primeiros, por aceitarem somente a
Torá escrita como paradigma, rejeitavam a ressurreição, é dito que os fariseus a
admitiam, certamente não nos moldes apregoados por Cristo. Flávio Josefo teste-
munha que “eles [os fariseus] acreditam que as almas têm o poder de sobreviver à
morte e que existem recompensas e punições sob a Terra para aqueles que vive-
ram na virtude ou no vício: prisão eterna é a sorte das almas ruins, enquanto as
almas boas recebem uma passagem fácil para uma nova vida”.16 Josefo também
parece expressar sua própria opinião:
Não sabeis que aqueles que deixam a vida em conformidade com as leis da natu-
reza e pagam o empréstimo recebido de Deus, quando ele que emprestou achar
por bem cobrar, obtêm reconhecimento eterno? [Não sabeis que] Suas casas e fa-
mílias estão seguras, suas almas, imaculadas e obedientes, recebem os lugares
mais santos no Céu, de onde, na revolução dos tempos, retornarão para encontrar
17
nova habitação em corpos castos?

Essa concepção poderia representar a ressurreição como uma espécie de

13
GROSSOUW, W. Op. cit. p. 1310.
14
Jo 20,27: “Depois disse a Tomé: Chega aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos; chega a tua mão, e
mete-a no meu lado; e não mais sejas incrédulo, mas crente”.
15
Cf. SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 457. Segundo este autor, neste trecho o evangelista faz
a conexão entre a ressurreição e a eucaristia.
16
JOSEFO, Flávio. Jewish Antiquities, 18.4 (Loeb Classical Library).
17
Idem. The Jewish War, 3.374 (Loeb Classical Library).
257

reencarnação; entretanto, tal ideia não encontra recepção nos textos da Escritura
Hebraica, sendo muito improvável que Josefo pensasse nestes termos. Sua ideia
parece se alinhar mais na perspectiva apocalíptica já presente em Dn 12,1-3 com
as promessas de recompensa ou punição eterna num corpo ressuscitado, seja este
corpo físico ou não.
Alguns textos dos Evangelhos e paulinos sugerem ainda a ascensão ime-
diata do fiel após a morte,18 o que pode indicar que alguns escritores do NT esta-
vam refletindo acerca da questão do lugar onde os mortos passariam o período in-
terregno de morte e ressurreição final. Nos escritos paulinos aparece a metáfora do
sono (1Cor 15,6.18.20.51; 1Ts 4,13-18; 5,9-10), certamente retomada de Dn
12,2.19 Por vezes existe a ideia de que os mortos estão conscientes no Sheol (Ha-
des), podendo até mesmo conversar, como acontece na parábola do rico e Lázaro
em Lc 16,19-31, havendo espaços separados para justos e injustos.20 Este último
texto deixa transparecer também a ideia de que felicidade e miséria no pós-morte
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são fruto da postura em vida, ideia que já estava presente em Zoroastro e Hesíodo,
conforme verificado supra. No Apocalipse, as almas dos mártires se encontram
sob o altar do céu, lamentam seu destino injusto quando vivos sobre a Terra (Ap
6,9-11) e clamam por justiça divina, tema típico da tradição apocalíptica judaica.
Nos escritos paulinos se dá outra tendência importante com relação à res-
surreição, além das presentes nos Evangelhos; ela é expressa de forma pormenori-
zada em 1Cor 15, talvez mais antiga que a sinótica (o apóstolo afirma aos corín-
tios que “vos entreguei o que também recebi”, em 15,3a). Paulo apresenta uma
expectativa futura que, diferentemente dos evangelistas, independe da tradição do
túmulo vazio.21 Para ele, a crença num futuro pessoal para além da morte física
dita as regras para a fé cristã.22 Sua preocupação tangencia não o reino messiânico

18
Cf., por exemplo, 2Cor 5,6-10; Fp 1,12-26; 1Ts 4,14 e Lc 23,43. Neste último texto, Jesus afir-
ma ao ladrão arrependido: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso”.
19
Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 403.
20
Cf. LEHTIPUU, Outi. The Rich Man and Lazarus and Luke’s Eschatology. In: The Afterlife
Imagery in Luke’s Story of the Rich Man and Lazarus, p. 243-264.
21
Albrecht Oepke assinala que “embora Paulo aceite o túmulo vazio (1Cor 15,47-50), ele não pen-
sa no corpo do Senhor ressuscitado em termos materiais, mas sim como o sôma pneumatikón Da-
quele que é exaltado à condição de personalidade universal, em todas as coisas, e especialmente na
Igreja (Cl 1,18ss). Por outro lado, interesses apologéticos direcionaram a tradição evangélica pós-
canônica para um sentido mais material (Lc 24,39ss; At 10,41; Jo 20,25ss). Contudo, as caracterís-
ticas espirituais não estão ausentes (Jo 20,17.19.26), e talvez uma distinção deva ser feita entre o
Senhor imediatamente ressuscitado e o Senhor exaltado” (cf. OEPKE, A. e*geivrw. In: KITTEL, G.
(Ed.). TDNT, p. 333-337. v. 2; aqui p. 335.
22
“Mas se não há ressurreição de mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi
ressuscitado, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1Cor 15,13-14).
258

material, humano, mas sim o escatológico. Neste capítulo, apesar de utilizar cate-
gorias helênicas em suas descrições, o apóstolo expõe seu pensamento acerca da
ressurreição distanciando-se da ideia platônica de que o corpo estava destinado à
destruição.23 Ele afirma que o corpo sobreviverá à morte, ressuscitado em glória e
perfeição por Deus, assim como foi o corpo de Jesus. Portanto, o apóstolo ensina
não a destruição do corpo, mas sim a sua transformação, destinada não somente
aos que já morreram, mas também aos que estiverem vivos na parousía (1Cor
15,51-53; 1Ts 4,13-18).24 É possível que os que negavam a ressurreição em Corin-
to, certamente por influência helênica (mencionados pelo apóstolo em 1Cor
15,12), tinham sido rechaçados pela antropologia presente na expectativa judaica,
a qual não conhecia o dualismo corpo-alma (se o ser humano ressuscita, só pode
ser com seu corpo).25
Na antropologia paulina de 1Cor 15,35-53, tanto a vida no seu sentido mais
básico (psíquica) quanto a vida espiritual (pneumática) eram corpóreas; entretan-
to, aparece certa tensão em sua concepção de homem.26 Nos v. 44, o corpo físico
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(sw~m~ a yucikón) é o corpo natural (carne e alma), ao passo que o corpo espiritual
(sw~~ma pneumatikón) é o corpo natural transformado pelo espírito. Segundo o a-
póstolo, este corpo transformado é o corpo ressuscitado (e*geivretai). A mesma
significação está presente nos v. 51-54.27 Dessa forma, com essas expressões anta-
gônicas, o apóstolo ensina uma espécie de antes e depois da parousía.
Nessa antítese paulina, as concepções helenísticas vêm de encontro à an-
tropologia judaica; a concepção de Paulo lembra a antítese platônica mundo inte-
ligível (nou~ς~ ) e mundo sensível; entretanto, “à semelhança dos judeus alexandri-

23
Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 422-423.
24
O texto de 1Cor 15,51-53 registra: “Eis aqui vos digo um mistério: Nem todos dormiremos mas
todos seremos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trom-
beta; porque a trombeta soará, e os mortos serão ressuscitados incorruptíveis, e nós seremos trans-
formados. Porque é necessário que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade e que isto
que é mortal se revista da imortalidade” (a*qanasivan, grifo nosso). A última palavra do verso é, a
exemplo de Sb 3,4, imortalidade.
25
Cf. SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento, p. 290-291.
26
1Cor 15,44-46 registra: “Semeia-se corpo físico (sw~m~ a yucikón), é ressuscitado (e*geivretai)
corpo espiritual (sw~m~ a pneumatikón). Se há corpo físico, há também corpo espiritual. Assim
também está escrito: O primeiro homem, Adão, tornou-se alma vivente (yuchVn zw~s ~ an); o último
Adão, espírito vivificante (pneu~m~ a zw/opoiou~n
~ ). Mas não é primeiro o espiritual, senão o físico;
depois o espiritual” (grifo nosso). Observa-se que o apóstolo contrapõe os adjetivos yucikóς e
pneumatikóς e os substantivos yuch~~ e pneu~m~ a. Para Nelis, o termo pneu~m~ a em Paulo “não é si-
nônimo de imaterial, mas significa força, luz, santidade, alguma coisa proveniente do mundo do
divino”, não havendo para ele, assim, nenhuma contradição na expressão “corpo espiritual” (cf.
NELIS, J. Ressurreição. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 1302-1308; aqui p. 1307).
27
Cf. SOARES, Dionísio O. A ressurreição corporal na tradição paulina: o sôma psychikón e o
sôma pneumatikón. Atualidade Teológica 33 (2009), p. 407-417.
259

nos (Sabedoria, Fílon), Paulo substituirá ordinariamente o nou~ς~ pelo pnevw. O sen-
tido da antítese platônica está, pois, profundamente modificado, tornando-se uma
oposição de ordem filosófica, ordem religiosa”.28 Para Segal, nesse caso, Paulo
utiliza o discurso de transformação espiritual para evangelizar os gentios,29 ou
seja, o apóstolo estaria usando categorias helênicas para argumentação contra o
conceito grego de imortalidade e, a partir dessas mesmas categorias, sistematizan-
do o seu próprio conceito (evangélico-cristão). De qualquer forma, para Paulo
“não há existência sem corporeidade, de modo que a reflexão sobre a existência
pós-mortal precisa ser também uma pergunta pela corporeidade dessa existên-
cia”.30
Texto mais antigo que o de 1Cor 15 é 1Ts 4,13-18, no qual o apóstolo trata
da questão “dos que dormem” (v. 13) tendo em vista o consolo da comunidade de
Tessalônica. Baseando sua argumentação na ressurreição de Cristo como fonte e
princípio para a ressurreição também dos cristãos em geral, o apóstolo afirma que,
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por ocasião da parousía, os mortos cristãos terão prioridade na ressurreição, en-


contrando-se com Cristo nos ares. Posteriormente os vivos (entre os quais o após-
tolo se inclui) serão arrebatados e também encontrarão o Mestre nas nuvens. Não
se fala em julgamento final e nem na ressurreição dos ímpios, podendo deixar im-
plícito que estes continuarão mortos pela eternidade. O apóstolo embasa seu texto
em uma “palavra que recebeu do Senhor”, certamente pela tradição oral, visto que
não se encontra no NT o registro desse ensinamento por parte do Cristo.
Percebe-se, assim, certo “desenvolvimento” no pensamento do apóstolo
acerca da questão da ressurreição corporal no momento da parousía.31 Ambos os
textos citados acima não têm a autoria de Paulo questionada pela maioria dos es-
tudiosos. Assim, no texto mais antigo, o de 1Ts 4,13-18, o apóstolo e seus leitores
originais pensam numa volta iminente do Cristo. Paulo se considera estar vivo a-
inda no momento da parousía. Não existe ainda a preocupação com a questão da
forma do corpo ressuscitado, ou seja, o que se tem em vista é o fato da parousía
em si, a certeza de seu acontecimento num futuro próximo, e não o como ela se
dará em termos da ressurreição dos mortos. A única coisa que o apóstolo deixa
28
CERFAUX, Lucien. Cristo na Teologia de Paulo, p. 218. Para Fílon, o corpo é apenas um san-
tuário que abriga a “imagem divina”, ou seja, a “alma racional”, o qual recebe o pneu~~ma. Na con-
cepção paulina, o corpo, animado pela yuch~~, forma o “corpo vivo”, ou seja, a própria pessoa; para
que o homem seja espiritual, esse “corpo vivo” deve ser espiritualizado (Ibidem, p. 220).
29
SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 402.
30
SCHNELLE, Udo. Op. cit. p. 291 (grifo do autor).
31
Idem. Escatologia. In: A evolução do pensamento paulino, p. 41-53.
260

claro é uma espécie de hierarquia sobre quem sobe primeiro, ou seja, os mortos
serão arrebatados antes de “nós, os vivos”. Já no texto de 1Cor 15 o apóstolo trata
da questão da forma do corpo ressuscitado, afirmando que, quando a trombeta so-
ar, “os mortos serão ressuscitados incorruptíveis, e nós seremos transformados”
(1Cor 15,52b).32 Seus leitores agora são mais helenizados. A influência platônica
acerca do corpo físico e da ressurreição se faz sentir nos cristãos de Corinto. O
apóstolo usa então categorias helênicas para expressar a antropologia judaica.
Ao passo que nos Evangelhos pode-se perceber um esforço das comunida-
des cristãs primitivas em entender a transformação do reinado histórico do messi-
as, comum entre os judeus, em um reinado futuro, a preocupação do apóstolo Pau-
lo parece não tangenciar mais o reino messiânico material, humano, mas sim o
escatológico. A noção de ressurreição, vitória sobre a morte, é um dos sinais ca-
racterísticos da implantação do Reino de Deus, com sua era escatológica, e está
diretamente relacionada a ele.33 Assim, na busca pela compreensão da noção de
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ressurreição, é natural que nas comunidades cristãs primitivas sejam encontradas


relações com o helenismo platônico e com a antropologia judaica tardia.
De qualquer forma, seja uma ressurreição com ênfase mais no próprio cor-
po físico seja num corpo transformado, espiritual, o evento da ressurreição está
presente em todas as tradições que compunham a escatologia do cristianismo pri-
mitivo.34 Embora não sendo uma ideia originalmente judaica ou cristã, a ressurrei-
ção deu um caráter particular à escatologia judaica, sendo tal expectativa assimila-
da pelo cristianismo nascente. Este lhe deu novo significado a partir da experiên-
cia de ressurreição de seu fundador, o Messias cristão Jesus Cristo: “A ressurrei-
ção de Cristo dava o sinal da parousía e da ressurreição geral dos mortos. Dificil-

32
Noutro texto mais tardio ainda, também de autoria paulina não disputada, a escatologia do após-
tolo já sofreu novo “desenvolvimento”: o apóstolo já admite inclusive a possibilidade de passar
pela morte antes da parousía, afirmando que o morrer, se for o caso, “é lucro” (cf. Fl. 1,20-21). A
expectativa da volta iminente do Cristo já havia se dissipado.
33
Geza Vermes afirma que “nos Evangelhos, cura e ressurreição estão ligadas à ideia do reino de
Deus” (cf. VERMES, Geza. The Complete Dead Sea Scrolls in English, p. 412).
34
Alguns estudiosos hoje acreditam, por motivos diversos, que a narrativa da ressurreição constitui
uma metáfora, e não um evento histórico factual (cf. como representante dessa corrente CROS-
SAN, J. D. Resurrection of Jesus in Its Jewish Context. In: STEWART, Robert B. (Ed.). The Re-
surrection of Jesus: John Dominic Crossan and N. T. Wright in Dialogue, p. 46-47). Já Wright está
entre os que postulam uma ressurreição factual (cf. WRIGHT, N. T. Easter and History. In: The
Resurrection of the Son of God, p. 685-718 – Christian Origins and the Question of God, v. 3), e
Sanders entre os que reconhecem o fato, mas sem poder prová-lo: “Que os seguidores de Jesus (e
depois Paulo) tiveram experiências de ressurreição é, em meu julgamento, um fato. Qual realidade
deu levante às experiências eu não sei” (cf. SANDERS, E. P. The Historical Figure of Jesus, p.
280).
261

mente se opunham a ressurreição de Cristo e a dos outros mortos”.35 N. T. Wright


chega a definir o cristianismo primitivo em três categorias justapostas: um movi-
mento do Reino de Deus, um movimento messiânico e um movimento de ressur-
reição.36 Nesta terceira etapa, passada a esperança da concretização do reino mes-
siânico histórico, a ideia do reino escatológico se torna mais eficaz. É então que,
certamente, a influência da ressurreição na tradição paulina, conforme expressa
em 1Cor 15, se faz sentir com mais vigor.
Um aspecto digno de nota é que as ideias de ressurreição estiveram muito
presentes nas camadas populares da sociedade judaica, e o movimento de Jesus
era influente nesses redutos. A convicção acerca da ressurreição confere legitimi-
dade para aqueles que a pregam, no sentido de permitir que esses grupos se articu-
lem a partir da definição de sua identidade. Assim, a ressurreição torna-se uma
espécie de símbolo que condensa uma visão de mundo, traça limites, constrói co-
munidades, permitindo solucionar uma série de problemas, bem como levar seus
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seguidores a viver no mundo como ele de fato é, tudo isso a despeito de a ressur-
reição ser abstrata e não-demonstrável.37 Neste sentido simbólico, a ressurreição
corporal pode ser uma ideia utilizada para identificar determinados grupos.38
Além disso, a expectativa cristã reflete um desejo por vida eterna que é an-
tigo, o qual perpassa todo o NT, sempre em relação aos justos. A influência grega
pode ser percebida, especialmente no que tange a uma adaptação da perspectiva
helenística sobre o destino do homem no pós-morte: mesmo se em alguns círculos
do cristianismo primitivo se ignorasse a ideia de uma alma que sobrevive à morte,
pensava-se numa imortalizarão futura, alcançada através da ressurreição em um
corpo transformado e uma posterior ascensão aos céus, como no caso da tradição
paulina.39

35
CERFAUX, Lucien. O cristão na teologia de Paulo, p. 55.
36
Cf. WRIGHT, N. T. Christian Origins and the Resurrection of Jesus: The Resurrection of Jesus
As a Historical Problem. STR 41.2 (1998), p. 23-38.
37
SETZER, Claudia. Resurrection of the Body in Early Judaism and Early Christianity: Doctrine,
Community, and Self-Definition, p. 44-52. Neste trecho, a autora aborda a questão sob o subtítulo
“A ressurreição como símbolo e estratégia nos grupos judaicos primitivos”. Cf. também o trata-
mento do tema pela autora em Resurrection of the Dead As Symbol and Strategy. In: JAAR 69.1
(2001), p. 65-102, especialmente p. 65-66.
38
“Outras ideias que frequentemente acompanham a ressurreição é a justiça final, recompensa aos
justos e punição aos ímpios, confiança na eleição daqueles que sustentam essa crença, e a legitimi-
dade daqueles que pregam e ensinam a ressurreição. Carregando várias ideias em seu rastro, a [no-
ção de] ressurreição possui uma utilidade peculiar para grupos que estão tentando duramente se
definir” (cf. Idem. Resurrection of the Body in Early Judaism and Early Christianity: Doctrine,
Community, and Self-Definition, p. 1).
39
Cf. SEGAL, Alan F. Heavenly Ascent in Hellenistic Judaism, Early Christianity and Their Envi-
262

Essas diferentes tradições presentes no corpo do NT permitem aferir que


não havia uma ideia unívoca de como se efetuaria a ressurreição.40 Na própria es-
catologia judaica parece existir a ideia de que algumas pessoas especiais teriam
uma assunção imediata aos céus, pessoas essas que morreram em perseguição re-
ligiosa, os “mártires” (termo aqui “emprestado” do cristianismo primitivo), como
é o caso de Dn 12,1-3 verificado acima. Já em 1En 22 e 4Esd 7,75-99 recompen-
sas e castigos são reservados para os mortos já em um estado intermediário, antes
do grande juízo final, quando seus destinos seriam definitivamente selados.
Dessa forma, é razoável supor que nem todos os grupos judaicos no perío-
do imediatamente anterior à Era Cristã pensavam a mesma escatologia, muito me-
nos uma existência sombria no Sheol como destino final de todos os homens, co-
mo era entendido no Judaísmo do Primeiro Templo. Pode-se então afirmar o
mesmo sobre a escatologia cristã primitiva: não havia unicidade de pensamento,
isso em continuidade com a escatologia judaica. Pode-se pensar ainda que as
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mesmas influências persas e helênicas que se deram na escatologia judaica tardia


passaram ao cristianismo, mesmo que em menor grau, o que também não desme-
rece a contribuição de cada grupo em sua realidade existencial.
A ênfase cristã na ressurreição se dá a partir do martírio do Cristo. Nesse
sentido, não deixa de estar em continuidade com a tradição de martírio presente
em 2Mc e em Dn 12.41 Para os cristãos a ressurreição de Jesus ocorre antes do juí-
zo final, tornando-se paradigmática para a futura ressurreição dos fiéis. No NT, a
única exceção a esse quadro geral se dá em Mt 27, 51b-53.42
De fato, o grupo dos seguidores de Jesus viu na sua morte e na crença em
sua ressurreição a consumação da história: os eventos da Páscoa foram vistos co-
mo o começo da concretização dos eventos preconizados pelos profetas hebreus e,

ronment. ANRW II.23.2 (1980), p. 1333-1394.


40
Ao contrário do que postula, por exemplo, Oscar Cullmann, supondo haver uma mesma visão
acerca do pós-morte entre os judeus, estando os cristãos em continuidade com essa visão (cf. seu
clássico artigo, em sua terceira publicação, CULLMANN, Oscar. Das origens do evangelho à for-
mação da teologia cristã, p. 183-210. Cf. também a crítica a Cullmann em NICKELSBURG,
G.W.E. Resurrection, Immortality and Eternal Life in Intertestamental Judaism and Early Christi-
anity, p. 219-223).
41
Rost considera que “a doutrina teológica do 2° livro dos Macabeus mostra notáveis progressos
em relação ao Antigo Testamento e oferece linhas de contato de grande importância com o Novo
Testamento. É o primeiro a enunciar claramente uma doutrina da creatio ex nihilo [criação a partir
do nada] (7,28). Defende a ressurreição dentre os mortos, pelo menos para os justos
(7,9.14.23.29)”; cf. ROST, L. Introdução aos livros apócrifos e pseudepígrafos do Antigo Testa-
mento e aos Manuscritos de Qumran, p. 80 (cf. também NICKELSBURG, G.W.E. Resurrection:
Early Judaism and Christianity. In: FREEDMAN, David N. (Ed.). ABD, p. 684-691. v. 5).
42
Este texto será discutido adiante.
263

mais detidamente, pelos visionários apocalípticos do período intertestamentário,


sendo Jesus o Filho do Homem que retornaria para punir os ímpios e trazer vida
eterna aos justos. Assim, muitos grupos cristãos interpretaram o evento de Cristo a
partir do cenário apocalíptico descrito por Daniel.
Esse cenário influenciou bastante a tradição apocalíptica do NT. Na tradi-
ção sinótica (por exemplo, Mc 13, Mt 24 e Lc 21), Jesus faz referência à destrui-
ção do Templo de Jerusalém como sendo um dos sinais do fim da presente era,
juntamente com a presença de falsos profetas, guerras, fome, peste, perseguições e
o anúncio da mensagem cristã a todo o mundo. Todas essas características abrem
o caminho para a “abominação da desolação” prescrita em Daniel (8,13-14; 9,27;
11,31: aparentemente, algum tipo de profanação do Templo judaico, muito prova-
velmente efetuada por Antíoco IV Epífanes). Tudo isso é seguido imediatamente
pela maior tribulação já existida na história humana, o que remete a Dn 12,1-2,
conduzindo ao rompimento da ordem cósmica e ao retorno do Cristo. Jesus decla-
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ra que “não passará esta geração, até que todas essas coisas aconteçam” (Mc
13,30). Tais declarações certamente exerceram forte impacto em seus ouvintes,
expectadores das comunidades cristãs que viviam sob o domínio e perseguição
impostos pelo Império Romano.43
O cenário aparece também na tradição paulina, em 2Ts 2, onde Paulo (ou,
mais provavelmente, um de seus seguidores) afirma que o Dia do Senhor não virá
antes do governo do perverso, o qual profanará o Templo. Aparece ainda na tradi-
ção joanina: em Ap 11,1-14 o autor narra o segundo “infortúnio” de três previstos;
trata-se de três anos e meio (42 meses, v. 2) em que o Templo é profanado pelos
gentios (possivelmente, certas passagens do Apocalipse tenham sido escritas sob o
domínio de Nero, quando a perseguição aos cristãos recrudesceu). Tais referências
são exemplos de como o texto de Dn 11,31ss foi apropriado pelos grupos cristãos.
Muitos esquemas gerais da escatologia contida na Escritura Hebraica e nos
apocalípticos do período intertestamentário (inclusive a questão da ressurreição
individual dos mortos) foram atualizados pelos cristãos primitivos a partir dos a-
contecimentos históricos de sua época, englobando assim vultos políticos e movi-
mentações militares na região da Palestina, em muitos casos observando esses da-
dos à luz de Dn 11,31–12,3. Yarbro Collins afirma que “a influência de Daniel 12

43
TABOR, James. The Future. In: SMITH, M.; HOFFMANN, J. (Ed.). What the Bible Really
Says, p. 33-51; aqui p. 48-49.
264

é evidente na centralidade da noção de ressurreição no Novo Testamento. Esta


passagem contribuiu também para a noção escatológica da grande ‘tribulação’ fi-
nal e do ‘fim definitivo’”.44 Horsley especula que a própria “ascensão da literatura
apocalíptica foi a resposta criativa dos escribas da Judeia às pressões do imperia-
lismo ocidental contra o modo de vida israelita tradicional”.45
À luz da história, em 41 d.C. o Imperador Calígula aparentemente cumpriu
as predições do livro de Daniel colocando sua própria estátua no Templo judaico;
posteriormente, a terrível guerra com os romanos em 66-70 resultou na total des-
truição do Templo. Tudo isso ocorreu sem que Cristo retornasse, fato que provoca,
a partir de então, o arrefecimento desse tipo de fervor “apocalíptico”, o que pode
ser observado em 2Pd 3, considerado o último livro do NT a ser escrito (cerca de
120 d.C.): após um esquema bem geral, o autor exorta os cristãos a não perderem
a esperança da consumação do mundo e do retorno de Cristo. Sua visão de futuro
é ampliada: ele exorta que “um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos co-
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mo um dia” (3,8).
O fato de o reino escatológico sobreviver a todos esses desapontamentos
sugere que o cerne de sua crença não era composto unicamente por expectativas
apocalípticas; entretanto, não se pode negar que tais expectativas estiveram no
centro do movimento cristão primitivo. De fato, esse reino é tema fundamental da
pregação do Messias cristão presente nos Evangelhos. Em seu discurso inicial ele
já preconiza: “O tempo está cumprido, e é chegado o reino de Deus. Arrependei-
vos, e crede no evangelho” (Mc 1,15).
A presença de Jesus representava para a comunidade primitiva o começo
do reino escatológico e definitivo de Deus. Ainda dentro do NT, à parte dos Evan-
gelhos, Cristo, o Messias cristão, é reconhecido como o Filho da divindade que
encarnou para ser a ponte, o mediador para o novo reino, o paraíso, o lugar sem
morte ou angústias e sofrimentos. No entanto, vários autores consideram que essa
noção não estava presente nas primeiras comunidades que deram origem ao cristi-
anismo. Bultmann, por exemplo, acredita que a noção da origem divina de Jesus
não era conhecida de seus discípulos; surgiu somente posteriormente, no âmbito
da igreja helenística: “Ela foi inicialmente introduzida na transformação para o

44
YARBRO COLLINS, Adela. The Influence of Daniel on the New Testament. In: COLLINS, J.
J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 90-112; aqui p. 112.
45
HORSLEY, Richard A. The Kingdom of God and the Renewal of Israel: Synoptic Gospels, Je-
sus Movements, and Apocalypticism. In: COLLINS, J. J. (Ed.). The Encyclopedia of Apocalyptic-
ism, p. 303-344. v. 1; aqui p. 341.
265

helenismo, no qual a ideia de um rei ou herói gerado por uma divindade em uma
virgem era muito disseminada”;46 Cullmann também afirma que o conceito do
Cristo cristão se desenvolveu quando a noção mais particularmente judaica de
Messias começou a se desvanecer entre as comunidades helenísticas; a mudança
acompanhou a transformação do termo Cristo, passando de título a nome próprio:
“Essa evolução parece ter se produzido, em particular, sobre o solo das comunida-
des helenísticas, onde não existia um interesse messiânico, no sentido original do
termo”.47
Em outra obra, Bultmann afirma que “a ideia de um Messias, ou filho do
Homem, sofredor, morrendo e ressuscitando era desconhecida no judaísmo”.48 De
parecer semelhante, Geza Vermes afirma que “nem o sofrimento do Messias, ou
sua morte e ressurreição, parecem ter feito parte da crença do judaísmo do século
I”.49
Claro está que a comunidade cristã primitiva releu o evento Cristo à luz de
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sua fé pós-pascal. Gnilka afirma que:


À luz da fé pascal, o anúncio de Jesus foi retomado mais uma vez. À luz da fé
pascal os evangelhos foram escritos. Neles, os traços do Jesus terreno misturam-
se às cores do Cristo glorificado. É aí que reside a principal dificuldade de nossa
reconstituição histórica. Mas a comunidade estava convencida de que o Jesus ter-
50
reno, que morreu crucificado, é o mesmo Cristo ressuscitado e glorioso.

Segundo Udo Schnelle, “o cristianismo primitivo encontrou-se diante da


tarefa de elaborar tanto a continuidade aos inícios como uma releitura ligada a es-
ses problemas atuais. (...) Compete aos Evangelhos desde a perspectiva pragmáti-
ca uma função integradora e inovadora”.51 Entre esses “problemas atuais”, o au-
tor cita a morte das figuras fundadoras, a perseguição em Roma e a perda do Tem-
plo e da comunidade mais antiga.52
Joachim Jeremias afirma que, na Igreja primitiva, “os discípulos devem ter
vivenciado as aparições do ressuscitado como um acontecimento escatológico,
como a irrupção da transformação do mundo”.53 Já o próprio Bultmann afirma
que:

46
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition, p. 291 (cf. também a nota 4).
47
CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento, p. 176 (grifo do autor).
48
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, p. 61.
49
VERMES, Geza. Jesus the Jew: A Historian’s Reading of the Gospels, p. 38.
50
GNILKA, Joachim. Jesus de Nazaré: mensagem e história, p. 294.
51
SCHNELLE, Udo. A terceira transformação: redação de evangelhos como resolução inovadora
de uma crise. In: Teologia do Novo Testamento, p. 467-483; aqui p. 480 (grifo do autor).
52
Ibidem.
53
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento, p. 438.
266

A pregação de Jesus como o Messias ou o ‘Filho do homem’ permanece inteira-


mente dentro dos moldes da esperança escatológica judaica. Se Deus ressuscitou
a Jesus de Nazaré, ao mestre e profeta que os romanos crucificaram e o estabele-
ceu como o Messias, se o exaltou a ‘Filho do homem’ que virá nas nuvens do céu
para o julgamento e para trazer a salvação do reino de Deus, então a figura mítica
indefinida do Messias torna-se perfeitamente definida e concreta; o mito foi trans-
ferido para um ser humano histórico concreto e a consequência seria o crescimen-
54
to imensurável da força da esperança.

Teologicamente, podem ser identificadas quatro formas messiânicas da es-


pera pelo Messias: o messianismo profético, o régio, o sacerdotal e o apocalípti-
co.55 Este último amadurece no período intertestamentário, forjando um Messias
vencedor escatológico de um combate entre bem e mal, próprio da crise macabai-
ca, relacionado à figura do Filho do Homem, conforme Dn 7,13-14. É justamente
esse tipo de messianismo que desempenha um papel central nas origens do cristia-
nismo.
O fato é que, independentemente das transformações sofridas na tradição
pós-pascal, o judaísmo pós-exílico já concebia “a história como o campo de uma
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batalha cósmica entre Deus e seus inimigos cósmicos”,56 correspondendo, a esse


conflito celestial, a situação de guerra, opressão e morte que o povo vivia na Ter-
ra. Jesus incorpora essa imagem, o Messias guerreiro e vencedor, imagem essa
que servia como referencial para resistência aos conflitos e perseguições sofridos
pelos primeiros seguidores de Jesus, representados especialmente pela Fonte Q
(Quelle).57 O livro de Daniel provocou de vez a ruptura da escatologia apocalípti-
ca com a profética:
Não resta dúvida de que se deve buscar a origem histórica dessa ruptura no martí-
rio de muitos justos em Israel na época de Antíoco Epífanes. Estes certamente
devem participar de alguma maneira do triunfo final do povo de Deus quando
chegar o tempo de Deus estabelecer seu Reino sobre a terra. Sentiu-se que seria
uma falha se Deus não trouxesse de volta, ressuscitados, os que se mostraram
dignos de participar de seu reino. A fim de que isso possa realizar-se, a terra de-
58
verá dá-los de novo à luz.

O Reino Messiânico ou Reino do fim seria estabelecido por um mediador


de Iahweh, a exemplo do Saoshyant zoroástrico: esse mediador é o Messias cris-
tão, Jesus Cristo, judeu em sua origem, mas universal em sua obra de expansão do

54
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, p. 75 (grifo do autor).
55
Cf. FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da história: ensaio de uma cristo-
logia como história, p. 72-86.
56
SCHIAVO, Luigi. A Fonte dos Ditos de Jesus e as raízes da cristologia. In: CHEVITARESE, A.
(Org.). Jesus de Nazaré: uma outra história, p. 193-216; aqui p. 196.
57
Ibidem, p. 206.
58
RUSSELL, D. S. Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica, p. 131.
267

reino final, inaugurando o paraíso prometido aos justos, o qual também lembra o
paraíso persa.
Essa concepção pode ter existido na comunidade pré-pascal, o que faria
com que a tese de Bultmann não seja absoluta em todos os aspectos. Pelo menos
os judeus da comunidade de Qumran não tiveram suas concepções formuladas no
período pós-pascal. Entre os hinos messiânicos dessa comunidade, há pelo menos
um que afirma a existência de um herói que arvora para si uma condição divina,
sendo superior aos anjos e assentado num trono no céu:
Minha glória {é incomparável} e fora de mim ninguém é exaltado. E não vem a
mim, porque eu moro em [...], nos céus, e não há [...] Eu sou contado entre os
deuses e minha morada está na congregação santa; [...meu de]sejo não é segundo
a carne [e] tudo o que me é preciso está na glória [...o lu]gar santo. Quem foi con-
siderado desprezível por minha causa? E quem é comparável a mim em minha
glória? (...) E quem me enfrentará e manterá a comparação com meu juízo? [...]
59
Pois eu sou contado entre os deuses, e minha glória está com os filhos do rei.

Israel Knohl acredita na possibilidade de que o próprio Jesus histórico já


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tinha consciência da combinação entre a figura do Filho do Homem e a do Servo


Sofredor de Is 53:
Deveríamos considerar a possibilidade de que a descrição de Jesus como uma
combinação do ‘filho do homem’ e do ‘servo sofredor’ não ter sido uma invenção
posterior da igreja. Talvez o Jesus histórico de fato se visse dessa forma, pois uma
fusão do mesmo tipo já havia sido feita por ser predecessor, o Messias de Qu-
60
mran.

Os quatro manuscritos existentes desse hino são datados entre 50 a.C. e o


início da Era Comum, aproximadamente ao período do reinado de Herodes (37 – 4
a.C.). O teor do discurso não ocorre em qualquer outro texto de Qumran conheci-
do até o momento, o que enfraqueceria a hipótese de o personagem a quem ele se
refere ser o Mestre da Justiça. A identidade desse personagem é enigmática, como
o próprio Filho do Homem no ciclo de Daniel. Após vários anos de pesquisa, Col-
lins chegou a admitir que o protagonista do hino não era um mestre da comunida-
de, mas a figura visionária do sacerdote-Messias ou o mestre no “fim dos dias”.61
Entretanto, mais recentemente ele afirma:

59
Documento 4Q491, frg. 11, col. I. Cf. a tradução de todo o hino em GARCÍA MARTÍNEZ, Flo-
rentino. Textos de Qumran, p. 160-164; aqui p. 162.
60
KNOHL, Israel. O Messias antes de Jesus: o servo sofredor dos Manuscritos do Mar Morto, p.
38.
61
COLLINS, J. J. The Scepter and the Star: The Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other An-
cient Literature, p. 148.
268

O problema é que em nenhum outro ponto no corpus dos manuscritos encontra-


mos palavras colocadas na boca de qualquer Messias, e assim não há paralelo pa-
ra um discurso de uma figura messiânica, como o que encontramos em 4Q491.
Tampouco existe qualquer paralelo para tais afirmações por parte de outra pesso-
62
a.

Assim ele concluiu, em última análise, que o problema da identidade do


autor do hino continua sem solução.63
Dadas as características da apocalíptica judaica especialmente a partir dos
livros de Daniel, 1 Enoque e 2 Macabeus já mencionadas neste trabalho, não seria
difícil supor que não somente os judeus de Qumran, mas também muitos outros
grupos tivessem expectativas messiânicas semelhantes. O próprio NT deixa entre-
ver, nos seus textos, essa perspectiva. Assim, seria necessário supor, após o adven-
to de Cristo, um messianismo terreno e outro escatológico, ou seja, havia uma ex-
pectativa acerca do futuro que chamaríamos de histórica, mais antiga, pautada nas
tradições messiânicas mais antigas presentes nas Escrituras Hebraicas, especial-
mente no movimento profético, e outra a que chamaríamos de escatológica, pau-
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tada nos apocalípticos judaicos do Período do Segundo Templo. Duas perspectivas


de futuro distintas, existindo lado a lado, com alguma dose de tensão e competição
entre elas. A última, escatológica, foi preponderante na comunidade cristã pós-
pascal e na sistematização teológica posterior.
Pode-se constatar também que, na concepção pós-pascal sem uma compre-
ensão escatológica, o anúncio da chegada do Reino de Deus por Jesus e seus dis-
cípulos não condizia com a sua realidade existencial: Israel não estava liberto, o
Templo não havia sido reconstruído, a maldade, a injustiça, a dor e a morte ainda
estavam presentes. O estabelecimento do reino, então, só seria possível devido à
convicção de que a morte e a ressurreição de Jesus haviam desencadeado o pro-
cesso de ressurreição mencionado em Daniel, uma ressurreição necessária para a
implantação da justiça inerente a esse reino.
Destarte, o evento pascal foi visto por muitos cristãos primitivos como o
começo da realização dos eventos de Daniel: Jesus era o Filho do Homem ressur-
reto, que retornaria em breve para punir os ímpios e trazer vida eterna aos santos
(Dn 12,1-3). Tal perspectiva pode ser notada, por exemplo, na comunidade matea-
na.

62
Idem. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls, p. 147.
63
Ibidem.
269

5.2. O Evangelho de Mateus e o relato de 27,51b-53

5.2.1. Questões literárias e relativas ao contexto social

Uma das questões mais controvertidas no estudo do marco social do Evan-


gelho de Mateus é a relação da comunidade representada pelo livro e o judaísmo.
A opinião tradicional é que o Evangelho de Mateus é um texto bastante judaico,
escrito por um judeu-cristão palestinense (possivelmente em aramaico ou hebrai-
co) antes da separação entre Igreja e Sinagoga. Há quem admita que até que o au-
tor-redator não fosse judeu. Segundo M. J. Brown, “parece plausível que Mateus
era um cristão não-judeu que reverenciava a tradição judaico-cristã e que tinha a
intenção de preservá-la em seu retrato do ministério de Jesus. A pesquisa tradicio-
nal situa o lugar de composição em Antioquia da Síria, embora isso não seja cer-
to”.64
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Entretanto, há muito se levantou a hipótese, com amplo consenso, de que


Mateus não é tão antigo assim (especialmente admitindo-se a prioridade de Mar-
cos como fonte), e nem de origem palestinense. Segundo Brown:
A determinação da época de composição do Evangelho baseia-se quase que intei-
ramente sobre a datação de seu precursor, Marcos. Uma vez que Mateus usou
Marcos como uma de suas principais fontes, ele só poderia ter sido escrito após
Marcos haver sido concluído e circulado. A maioria dos estudiosos data a escrita
de Marcos por volta de 70 d.C., embora alguns argumentem que ele foi escrito
uma década antes. Como consequência, o consenso acadêmico data a escrita de
65
Mateus por volta de 80 d.C.

Não se pode afirmar exatamente que Marcos já havia “sido concluído e


circulado” na versão que se conhece hoje, mas certamente em algum estágio reda-
cional ele já era conhecido pela época da redação do evangelho mateano.66
Se Mateus não era tão antigo e tradicional, o judaísmo presente no evange-
lho se explicaria então de outra forma. Ele refletiria uma polêmica “intra-muros”,

64
BROWN, Michael J. Matthew, Gospel of. In: SAKENFELD, Katharine D. (Ed.). NIB, p. 839-
852. v. 3; aqui p. 844.
65
Ibidem.
66
Cf. VIVIANO, B. T. Where Was the Gospel According to St. Matthew Written? CBQ 41.4
(1979), p. 533-546. Uma antiga mas ainda proveitosa revisão da pesquisa sobre o Evangelho de
Mateus (até 1980) é dada por STANTON, Graham. The Origin and Purpose of Matthew’s Gospel:
Matthean Scholarship from 1945 to 1980. ANRW II.25.3 (1984), p. 1889-1951. Para uma aborda-
gem mais recente da pesquisa, cf. AUNE, David E. (Ed.). The Gospel of Matthew in Current
Study: Studies in Memory of William G. Thompson (2001).
270

ou seja, dentro do próprio judaísmo.67


Opinião absolutamente contrária também foi desenvolvida, ou seja, que o
autor de Mateus é um gentio e sua comunidade não tem ligação com o judaísmo;
ela se separou dos judeus e a discussão com o judaísmo perdeu o interesse para
ela.68
A opinião moderada acabou prevalecendo: a comunidade é em sua maior
parte judeu-cristã, mas separada do judaísmo e em polêmica com ele.69 Essa opi-
nião explicaria textos importantes como, por exemplo, Mt 21,43; 27,62-66; 28,11-
15 e o capítulo 23.70 Veremos ainda que pode ser incluído neste caso também o
texto de Mt 27,51b-53.
Estudos mais recentes apontam nesta última direção: a comunidade matea-
na representa um grupo em polêmica, especialmente com o chamado judaísmo
formativo; entretanto, não há consenso quanto ao judaísmo ou cristianismo repre-
sentado por esse grupo de Mateus. J. A. Overman e A. J. Saldarini abordaram o
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evangelho mateano pelo viés sociológico, afirmando que os diversos temas pre-
sentes em Mateus eram da mesma forma importantes para os demais grupos judai-
cos de então.71 Esses autores também defendem que à época em que o evangelho

67
Cf. por exemplo DAVIES, W. D. The Setting of the Sermon on the Mount, p. 256-315; Davies
enxerga no Sermão da Montanha respostas às disposições do Concílio de Jamnia. Já Goulder afir-
ma que a comunidade de Mateus “pertence ao judaísmo e espera ser perseguida por sua heterodo-
xia” (cf. GOULDER, M. D. Midrash and Lection in Matthew, p. 152); Goulder defende uma cida-
de Fenícia, talvez Tiro (a qual estaria em estreita relação com o judaísmo de Jamnia), para local de
composição do evangelho (Ibidem, p. 149-150), como já fizera anteriormente KILPATRICK, G.
D. The Origins of the Gospel According to St. Matthew, p. 131-134. Entretanto, Schuyler Brown
assevera que “a ausência no evangelho de qualquer referência explícita à excomunhão, inclusive,
quando tal referência se encontra nos paralelos de Lucas (6,22; cf. Mt 5,11), indica uma data ante-
rior a Jamnia. É difícil admitir que Mateus tivesse podido recomendar o ensinamento dos fariseus
(23,2ss) no seu evangelho se sua comunidade se tivesse separado definitivamente do judaísmo” (cf.
BROWN, Schuyler. The Matthean Community and the Gentile Mission. NovT 22.3 (1980), p. 193-
221; aqui p. 216).
68
Cf. por exemplo Van Tilborg, que inclusive situa o Evangelho de Mateus em Alexandria, consi-
derando-o de origem gentílica e para o qual o judaísmo não é ainda problema (VAN TILBORG,
Sjef. The Jewish Leaders in Matthew, p. 169-172); R. Walker considera que, aos olhos de Mateus,
Israel é algo do passado, que desperta interesse teológico, mas não histórico (cf. WALKER, Rolf.
Die Heilsgeschichte im ersten Evangelium, 1967); para Clark há em Mateus um desprezo a Israel
tão claro que só poderia proceder de um pagão, pois nenhum judeu-cristão adotaria tal ponto de
vista (cf. CLARK, Kenneth W. The Gentile Bias in Matthew. JBL 66.2 (1947), p. 165-172).
69
Entre os estudiosos mais antigos que apontaram nesta direção, cf. STENDAHL, K. The School
of St. Matthew, and Its Use of the Old Testament, p. XIIIss; MOULE, C. F. St. Matthew’s Gospel:
Some Neglected Features. In: CROSS, F. L. (Ed.). Studia Evangelica II: Texte und
Untersuchungen zur Geschichte der Altchristlichen Literatur 87 (1964), p. 91-94.
70
Mt 21,23: “Vindo ele ao Templo, estava a ensinar, quando os chefes dos sacerdotes e os anciãos
do povo se aproximaram e perguntaram-lhe: ‘Com que autoridade fazes estas coisas? E quem te
concedeu essa autoridade?”. Os demais textos já foram ou serão discutidos neste trabalho.
71
OVERMAN, J. Andrew. Matthew’s Gospel and Formative Judaism: The Social World of the
Matthean Community (1990); SALDARINI, Anthony J. Matthew’s Christian-Jewish Community,
(1994).
271

foi escrito havia dois grupos em tensão: o judaísmo formativo e o grupo judaico de
Mateus, do qual pode se afirmar que representa o “judaísmo de Mateus”.
A teoria do judaísmo formativo foi primeiramente postulada por G. F. Mo-
ore e retomada por J. Neusner.72 A partir desses trabalhos, Overman e Saldarini
reconstituíram o ambiente do judaísmo no pós-guerra (pós 70 d.C.) e as relações
com o Evangelho de Mateus.73
O processo de uniformização do judaísmo foi um importante fator para a
integração entre os grupos que adotaram essa vertente rabínica, ao mesmo tempo
em que provocou a exclusão dos grupos que não o assumiram. Essa exclusão não
se deu com uniformidade, e nem através de um ato único e formal. Entretanto, a
crise social e religiosa exigiu um endurecimento cada vez maior nos critérios de
coesão e ortodoxia judaicas. Os judeus-cristãos certamente não partilharam do
consenso adotado pelo judaísmo nesse período, pós ano 70 d.C., o que explicaria
em grande parte a separação entre os dois grupos. Assim, os textos escritos a partir
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dessa época refletem os conflitos entre judeus-cristãos e o judaísmo formativo, e a


descrição de Jesus e sua relação com o judaísmo nos evangelhos de origem pales-
tinense, especialmente Mateus e João, refletem a postura dos grupos inseridos nes-
te ambiente.
O judaísmo formativo, então, representava um grupo que, a exemplo da
comunidade de Mateus, estava envolvido em um processo de construção social
após a destruição do Templo de Jerusalém. Depois da guerra contra os romanos,
com a destruição de Jerusalém, havia a necessidade de os judeus se reorganizarem
em vistas à nova realidade religiosa, com a ausência do Templo e sua religião ofi-
cial. A comunidade mateana era uma das opções existentes nesse processo de re-
construção; já o judaísmo formativo era um grupo mais forte, que daria origem
posteriormente ao judaísmo rabínico; era composto pelas lideranças judaicas que
se consideravam responsáveis pela reconstrução religiosa e social de Israel.
O grupo de Mateus vivia um forte conflito pela sua própria subsistência; o

72
MOORE, George F. Judaism in the First Centuries of the Christian Era: The Age of The Tan-
naim, v. 1 (1927); NEUSNER, J. From Politics to Piety: The Emergence of Pharisaic Judaism
(1972). Deve-se entender o termo, entretanto, como designação de uma tendência de predomínio
do grupo sacerdotal que representava a religião oficial, dentre os demais existentes à época, em
desenvolvimento ao que, mais tarde, pode ser denominado de “judaísmo rabínico” (II século).
73
OVERMAN, J. A. Op. cit.; SALDARINI, A. J. Op. cit. Recentemente, Howard Clarke procurou
mostrar como o texto de Mateus tem sido bem e mal interpretado ao longo dos séculos. Ele mostra
também a enorme influência do evangelho mateano sobre a cultura ocidental, ou melhor, sobre a
interpretação do cristianismo no ocidente. (Cf. CLARKE, Howard W. The Gospel of Matthew and
Its Readers: A Historical Introduction to the First Gospel, 2003).
272

judaísmo formativo ganhava espaço religioso, o que teria exercido impacto pre-
ponderante na forma e conteúdo do texto de Mateus. Dessa forma, muitas instru-
ções e práticas desenvolvidas na comunidade mateana se davam em função de
uma resposta ao que o judaísmo formativo exercia sobre os leitores implícitos do
evangelho. Assim, em última análise, a narrativa de Mateus revela não haver dis-
tinção entre judaísmo e movimento religioso de Jesus.74
As bem-aventuranças, por exemplo, seriam uma referência ao próprio gru-
po mateano, um incentivo às práticas adotadas por esse grupo, o qual vivia mo-
mentos de tensão. Muito provavelmente eles já haviam perdido o acesso à sinago-
ga local, sofriam preconceitos pela adoção de Jesus como Messias, bem como di-
ficuldades em sua vida social, com opressão econômica como consequência da
dominação romana e da guerra que havia provocado o enfraquecimento agrícola
da região; isso pode ser pressuposto em textos como Mt 6,25-34. De qualquer
forma, o grupo de Mateus se apresentava como uma alternativa ao judaísmo tradi-
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cional.
Entretanto, não se pode negar a grande probabilidade da presença de genti-
os no grupo (poderia então ser caracterizado como um grupo judaico-cristão). A
separação definitiva entre judaísmo e cristianismo somente se daria no II século.
Hagner, por exemplo, afirma que a hipótese de o grupo de Mateus ser uma comu-
nidade exclusivamente judaica não se sustenta. Há diferenças na tradição mateana
que não podem ser consideradas somente intrajudaicas. Antes, tais diferenças de-
vem ser justamente compreendidas como uma nova orientação radical na interpre-
tação da Torá, revelando o grupo de Mateus como “uma forma judaica do cristia-
nismo”.75 Senior assinala que as pesquisas sobre o contexto judaico em Mateus
normalmente desprezam a relação entre o grupo mateano e o mundo gentílico. Ele
assevera que o evangelho concede mais espaço à descrição das trocas entre o
mundo judaico e o gentílico do que o que normalmente se admite.76 Carter asseve-

74
O texto de Mt 5,17 (“Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los,
mas dar-lhes pleno cumprimento”) revelaria que a comunidade de Mateus não era cristã, mas ju-
daica. David Sim chega a afirmar que a comunidade mateana não estava preocupada com missão
entre os gentios, mas sim em manter sua identidade judaica, pois sofria perseguição em Antioquia
(cf. SIM, David C. The Matthean Community and the Gentile World. In: The Gospel of Matthew
and Christian Judaism: The History and Social Setting of the Matthean Community, p. 215-256;
Idem. The Gospel of Matthew and the Gentiles. JSNT 57 (17.3, 1995), p. 19-48).
75
HAGNER, Donald A. Matthew: Apostate, Reformer, Revolutionary? NTS 49.2 (2003), p. 193-
209; aqui p. 193.
76
SENIOR, D. Between Two Worlds: Gentile and Jewish Christians in Matthew’s Gospel. CBQ
61.1 (1999), p. 1-23.
273

ra que Mateus é uma obra formada e engajada em um contexto a partir do mundo


imperial romano.77 Segundo ele, na compreensão religiosa que o Império Romano
tinha sobre o papel do imperador e do próprio império, o imperador é apresentado
como o escolhido pelos deuses para governar; Mateus apresentaria o contraponto a
essa realidade:
Ele é considerado como o agente de sua soberania [dos deuses], presença e vonta-
de sobre a Terra, e de sua bênção que garante o bem-estar da sociedade. Significa-
tivamente, Jesus também é apresentado no Evangelho de Mateus como um agen-
te, escolhido para manifestar a soberania, a presença, a vontade divina e a bênção
para o bem-estar humano. Mas ele não é o agente de Roma. Ele é o agente de
78
Deus.

Carter considera que o interesse primordial do evangelista está na identida-


de e estilo de vida de sua audiência. A partir dessa audiência, o evangelista torna-
se um intérprete, pois era alguém que teve acesso aos acontecimentos que envol-
viam a vida do grupo de Jesus, ou seja, às suas tradições, e conta sua versão de-
las.79 Ele seria um judeu-cristão não identificado que vivia na Síria, provavelmen-
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te em Antioquia, que escreveu por volta de 80 d.C. Carter também considera o


grupo de Mateus um grupo minoritário, que enfrentava problemas com o Império
Romano e tinha experimentado recentemente uma ruptura com os judeus da sina-
goga após uma disputa; era uma comunidade marginalizada e em transição.80 Ela
conhecia as declarações de Jesus sobre ser ele um agente divino, perdoar pecados
e interpretar a vontade divina. Assim, não seria uma comunidade de gentios con-
vertidos; muito provavelmente, o grupo seria majoritariamente judeu, possivel-
mente composto de judeus helenizados.
Afora isso, Carter acredita que as discussões sobre a relação de Mateus e o
mundo gentílico em muitos casos não têm sido bem formuladas. Ele propõe, por
exemplo, que em vez de o debate se concentrar na missão aos gentios, deveria
buscar a dimensão maior de engajamento sócio-político com o mundo gentílico;
da mesma forma, a negação da natureza e identidade dos gentios em Mateus ne-
gligencia também a questão da interação mateana com o mundo gentílico do I sé-
culo, o mundo que marcou a soberania romana como elite sócio-política, econô-

77
CARTER, Warren. Matthew and Empire: Initial Explorations, p. 20-53.
78
Ibidem, p. 57. Cf. também a caracterização de Jesus como “o agente da presença salvadora de
Deus” em CARTER, Warren. Matthew: Storyteller, Interpreter, Evangelist, p. 167-185.
79
Daí o título de sua obra: Matthew: Storyteller, Interpreter, Evangelist, 2004.
80
Ibidem, p. 66-91.
274

mica e cultural da época em questão.81 O interesse de Mateus, então, se estenderia


além da simples conversão individual dos gentios, mas envolveria uma dimensão
social mais abrangente, uma preocupação com a transformação de um mundo sob
controle do Império Romano. Como se vê, a abordagem de Carter é eminentemen-
te sociológica.
Byrne e Douglas Hare também defendem o argumento de que o Evangelho
de Mateus dirige-se a uma comunidade formada tanto por judeus quanto por gen-
tios; sua missão envolveria ambos os grupos.82 Balabanski sustenta que o discurso
escatológico em Mt 24 bem como o texto de Mt 28,16-20 refletem a preocupação
do Evangelho com “a missão para as nações e o final dos tempos”.83 Já D. Hare e
D. Harrington afirmam que pavnta taV e!qnh em Mt 28,19 tem o sentido de “todas
as nações” mas sem incluir aqui a nação de Israel: e!qnh e Israel seriam duas enti-
dades distintas na história da salvação; indivíduos com herança judaica (incluindo
o próprio redator) seriam aceitos na Igreja, mas não Israel, pois na visão geral ma-
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teana acerca da história da salvação o Reino de Deus foi retirado de Israel.84 Essa
proposição foi rebatida, por exemplo, por Meier.85
Isto posto, podemos afirmar que, de um modo geral, era de se esperar a di-
ficuldade em se definir a etnia do autor mateano, bem como se o conteúdo de sua
obra se caracteriza por ser “judaico” ou “gentílico”: ela reflete a complexidade
cultural do I século d.C., o qual, conforme já apresentado neste trabalho, era um
mundo dominado pela cultura helênica mas com diversas tensões religiosas e cul-
turais convivendo lado a lado. Para os judeus, a tensão maior se dava entre juda-
ísmo e helenismo; em lugar algum, mesmo nas comunidades judaicas da diáspora,
havia a possibilidade de se passar incólume a tais tensões e influências.
A comunidade mateana, de qualquer forma (mais judaica ou gentílica), era
um grupo que buscava se distanciar das formas de vida inerentes ao império, mas
ao mesmo tempo participava das relações sociais por meio de atividade missioná-

81
Idem. Matthew and the Gentiles: Individual Conversion and/or Systemic Transformation? JSNT
26.3 (2004), p. 259-282.
82
BYRNE, Brendan. The Messiah in Whose Name “The Gentiles Will Hope” (Matt 12:21): Gen-
tile Inclusion As an Essential Element of Matthew’s Christology. ABR 50 (2002), p. 55-73; HARE,
Douglas R.A. How Jewish is the Gospel of Matthew? CBQ 62.2 (2000), p. 264-277. Cf. também a
réplica de David Sim em SIM, D. C. Matthew and the Gentiles: A Response to Brendan Byrne.
ABR 50 (2002), p. 74-79.
83
BALABANSKI, Vicky. Mission in Matthew against the Horizon of Matthew 24. NTS 54.2
(2008), p. 161-175; aqui p. 175.
84
HARE, Douglas R. A.; HARRINGTON, D. J. Make Disciples of All the Gentiles (Mt 28:19).
CBQ 37.3 (1975), p. 359-369.
85
MEIER, John P. Nations or Gentiles in Matthew 28:19? CBQ 39.1 (1977), p. 94-102.
275

ria com o intuito de implantação do Reino de Deus, vivendo assim uma ambiva-
lência social.86 Sua situação lembra, guardadas as devidas proporções, a ambiva-
lência social enfrentada pela comunidade de Daniel no período intertestamentário:
tinha que viver sob domínio estrangeiro e ao mesmo tempo se manter fiel às suas
tradições sociais e religiosas. Negar que tanto o judaísmo quanto o mundo gentíli-
co estejam presentes no Evangelho de Mateus é reducionismo.
Como um todo, o texto mateano afirma que Jesus de Nazaré é o Messias
judaico, filho de Davi, o Filho do Homem da tradição apocalíptica, o Emanuel da
tradição profética, o que cumpre as profecias das Escrituras Hebraicas. Muitos ju-
deus, especialmente seus líderes, erraram quando deixaram de reconhecer Jesus
como o Messias durante seu ministério terreno. O Reino escatológico prometido já
despontou com a vida, morte e, especialmente, com a ressurreição do Cristo.

5.2.2 O texto de Mt 27,51b-53: a tradução


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v. 51b
E a terra foi sacudida 51b kaiV h& gh~~ e*seivsqh
e as rochas foram fendidas, 51b’ kaiV ai& pevtrai e*scivsqhsan,
v. 52
e os sepulcros foram abertos, 52a kaiV taV mnhmei~a a*newv/cqhsan
e muitos corpos dos santos que 52b kaiV pollaV swvmata tw~~n kekoimh-
haviam dormido mevnwn a&givwn
se levantaram, 52c h*gevrqhsan,

v. 53
e, tendo saído dos sepulcros a- 53a kaiV e*xelqovnteς e*k tw~~n mnhmeivwn
pós a ressurreição dele, metaV thVn e!gersin au*tou~~
entraram na cidade santa 53b ei*sh~~lqon ei*ς thVn a&givan povlin
e apareceram a muitos. 53c kaiV e*neφanivsqhsan polloi~~ς.

5.2.3. A crítica textual

Segundo o aparato crítico do NTG, o único caso de variante para a crítica


textual aparece no v. 52c: a forma verbal h*gevrqhsan, aor. pass. 3ª pes. pl. de
86
Num trabalho mais antigo, Carter discute a questão do papel ambíguo exercido pelas “multi-
dões” (oi& o!cloi) que aparecem no Evangelho de Mateus: aparentemente, ora a favor de Jesus, ora
totalmente oposta a ele, o que revelaria a tensão social vivida pela comunidade (cf. CARTER, W.
The Crowds in Matthew’s Gospel. CBQ 55.1 (1993), p. 54-67).
276

e*geivrw (“levantar”, “despertar”) é substituída por h*gevrqh (3ª pes. sg.) nos códi-
ces Alexandrino (A, século V), Efraimita (C, século V), Washingtoniano (W, sé-
culo IV ou V) e no Texto Majoritário (Ï, o texto que é apoiado pelos manuscritos
que pertencem ao tipo bizantino, do século VI em diante). Por outro lado, a forma
h*gevrqhsan escolhida pelos editores está presente nos códices Sinaítico (, século

IV), Vaticano (B, século IV), Beza (D, séculos V e VI), Régio (L, século VIII),
Korideto (Q, século IX), nas famílias dos minúsculos 1 (f1, minúsculos copiados
entre os séculos XII-XIV) e 13 ( f13, copiados entre os séculos XI e XIII), no mi-
núsculo 33 (século IX), no 579 (século XIII), em outros manuscritos que divergem
do texto majoritário (al) e em Orígenes (Or, III século). Assim:

Trazem a forma h*gevrqhsan (se ‫א‬, B, D, L, Q, f1, f13, f33, 579, al e Or


levantaram)
Trazem a forma h*gevrqh (se le- A, C, W, Ï
vantou)
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Tabela 04: Variante textual em Mt 27,52 segundo Nestle-Aland

Pelas evidências externas, apesar da importância dos testemunhos que tra-


zem a forma verbal no singular (especialmente os unciais Alexandrino e Efraimi-
ta), o peso recai sobre a forma plural, pois está presente no Sinaítico e Vaticano,
os mais valiosos entre os unciais para a crítica textual do NT, além do Beza, outro
importante uncial. Entre os minúsculos, a forma plural se encontra em importantes
famílias e num dos mais importantes para a crítica: o 33, chamado de “Rei dos
Minúsculos”.87
A evidência interna poderia explicar a variante: em se tratando de sujeito
no neutro plural (pollaV swvmata, “muitos corpos”), a língua grega admite que o
verbo apareça no singular.88 Assim sendo, a concordância pode ser estabelecida
sem alterar o sentido da sentença.

5.2.4. Principais aspectos linguísticos do texto

A perícope em questão está inserida na narrativa mateana da paixão de


Cristo (Mt 26,1-27,56). Num contexto mais próximo, insere-se justamente no clí-
87
Cf. ALAND, Kurt; ALAND, Barbara. The Text of the New Testament: An Introduction to the
Critical Editions and to the Theory and Practice of Modern Textual Criticism, p. 33.
88
Cf. HORTA, G. N. B. Parreiras. Os gregos e seu idioma, p. 259-260. v. 1; FREIRE, A. Gramáti-
ca grega, p. 165; SWETNAM, James. Gramática do grego do Novo Testamento, p. 29. v. 1.
277

max dessa narrativa (27,45-56), imediatamente após a morte de Cristo na cruz. O


texto traz o relato de uma ressurreição diferente da ressurreição-paradigma (aquela
prevista para acontecer no final dos tempos, após o juízo final).
O evangelista apresenta em 26,1-5 uma introdução formal à sua narrativa
da paixão, construindo uma previsão do resultado da mesma. Já os versos de
27,55-56 sugerem um ponto final para essa narrativa, pois concluem a cena de
clímax de 27,45-56.89 Observa-se ainda que a narrativa seguinte acerca do enterro
de Jesus (Mt 27,57-66) é muito mais orientada para a narrativa da paixão do que a
do Evangelho de Marcos.
Quanto à perícope de 27,51b-53, Mateus é o único livro do NT que traz es-
se curto relato acerca do tremor de terra que abriu as sepulturas e a partir do que
“muitos corpos dos santos que haviam dormido se levantaram” (52bc) para apare-
cerem (somente após a ressurreição dele, cf. 53a) na “cidade santa” (53b). O epi-
sódio tem incomodado os intérpretes, entre outras questões, em razão do motivo
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pelo qual o evangelista decidiu inseri-lo precisamente neste ponto de seu evange-
lho. A natureza enigmática da passagem estimula o potencial especulativo de in-
terpretações que, em muitos casos, atribuem maior importância ao texto do que ele
realmente comporta. Quanto menos o evangelista se expressou, maior o espaço
para os diferentes modos de associações interpretativas.90

89
Com a adição do advérbio e*kei~~ (“ali”) em 27,55, Mateus reforça a conexão das mulheres (v. 55-
56) com a aclamação do centurião no v. 54.
90
Entre os estudos mais antigos especificamente sobre essa perícope de Mateus estão HUTTON,
D. The Resurrection of the Holy Ones (Mt 27, 51-53): A Study of the Theology of the Matthean
Passion Narrative (1970); SENIOR, D. Escatologia e soteriologia nella passione secondo Matteo:
Il significado di Mt 27,51-53. In: AA.VV. La sapienza della croce oggi: atti del Congresso
internazionale, Roma, 13-18 ottobre 1975, p. 95-105. Volume I: La sapienza della croce nella
rivelazione e nell’ecumenismo; SENIOR, D. The Death of Jesus and the Resurrection of the Holy
Ones (Mt 27:51-53). CBQ 38.3 (1976), p. 312-329; RIEBL, M. Auferstehung Jesu in der Stunde
seines Todes? Zur Botschaft von Mt 27,51b-53 (1978); AGUIRRE MONASTERIO, R. Exégesis de
Mateo, 27,51b-53: para una teología de la muerte de Jesús en el evangelio de Mateo (1980);
WENHAM, J. W. When Were the Saints Raised? A Note on the Punctuation of Matthew xxvii. 51-
3. JTS 32.1 (1981), p. 150-152; HILL, D. Matthew 27:51-53 in the Theology of the Evangelist. IBS
7.2 (1985), p. 76-87; SENIOR, D. Matthew's Special Material in the Passion Story: Implications
for the Evangelist’s Redactional Technique and Theological Perspective. ETL 63.4 (1987), p. 272-
294; WITHERUP, D.R. The Death of Jesus and the Raising of the Saints: Matthew 27:51-54 in
Context. SBLSP 26 (1987), p. 574-585. Entre os estudos mais recentes, estão WÜTHRICH, Serge.
Naître de mourir: la mort de Jésus dans l’Évangile de Matthieu (Mt 27.51-56). NTS 56.3 (2010), p.
313-325; HERZER, Jens. Auferstehung und Weltende als Rätsel? Zur Funktion und Bedeutung
von Mt 27,51b-53 im Kontext der matthäischen Jesus-Erzählung. In: BOETTRICH, C. (Ed.).
Evangelium ecclesiasticum: Matthaeus und die Gestalt der Kirche, Festschrift für Christoph
Kaehler zum 65. Geburtstag, p. 51-68 (2009); WATERS, Sr., K. L. Matthew 27:52-53 As Apoca-
lyptic Apostrophe: Temporal-Spatial Collapse in the Gospel of Matthew. JBL 122.3 (2003), p. 489-
515; TROXEL, Ronald L. Matt 27.51-4 Reconsidered: Its Role in the Passion Narrative, Meaning
and Origin. NTS 48.1 (2002), p. 30-47; SENIOR, D. Revisiting Matthew’s Special Material in the
Passion Narrative: A Dialogue with Raymond Brown. ETL 70.4 (1994), p. 417-424.
278

Partindo da premissa comum entre os estudiosos de que o relato da paixão


em Mateus tem como base principal a narrativa marcana, podemos cotejar ambos
os relatos e tentar identificar a razão de Mateus inserir o material especial neste
ponto da narrativa. Tanto em Marcos quanto em Mateus porções clímax da cena
da crucificação têm a mesma estrutura básica, ou seja, a zombaria, a morte, a rea-
ção dos soldados e a presença das mulheres (cf. Mc 15,29-41, Mt 27,39-56). Ma-
teus aceita este esquema básico de Marcos, mas em cada fase do esquema desen-
volve o material para atender a seus propósitos.
No relato de Marcos, os eventos que se seguem à morte de Jesus são o ras-
go dramático do véu do Templo e o testemunho do centurião de que “verdadeira-
mente este homem era filho de Deus” (Mc 15,38-39). Mateus expande significati-
vamente o material inserindo uma nova cadeia de eventos entre o rasgar do véu e a
reação do soldado (27,51b-53). A inclusão deste material especial parece causar
algumas reverberações nos versos imediatamente adjacentes, onde Mateus faz pa-
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ralelo com Marcos, o que mostra a importância do acréscimo do material para o


redator mateano. O v. 51 é introduzido com kaiV i*douv (“E eis”, cf. “kaiv” em Mc
15,38), o que liga os acontecimentos mais estreitamente com o momento da morte
de Jesus no v. 50; além disso, o enfático i*douv marca o desprendimento do material
especial de Mateus de sua fonte marcana.91
O evangelista usa essa expressão enfática 27 outras vezes em seu evange-
lho para ligar determinados eventos.92 A reação do centurião (v. 54) é alterada
significativamente em relação a Marcos, pois os detalhes do restante de sua con-
fissão revelam que a motivação foi modificada: em Marcos, está relacionada a
“vendo-o assim expirar...” (15,39); já em Mateus a “vendo o terremoto e as coisas
que aconteciam...” (27,54).93
Existe ainda em Mateus uma referência ao “medo” dos militares ausente
em Mc (e*φobhvqhsan sφovdra, “temeram grandemente”, Mt 27,54), e a redação
da declaração deles, que em Marcos é dada somente pelo centurião (a*lhqw~ς~ qeou~~
ui&oVς h\n ou%toς, “verdadeiramente este era filho de Deus”) é a mesma feita na
confissão dos discípulos em Mt 14,33 (mudando somente o tempo do verbo do

91
NOLLAND, John. The Gospel of Matthew: A Commentary on the Greek Text, p. 1211.
92
Cf., por exemplo, Mt 2,9; 3,16; 4,11; 7,4; 8,2; 12,10; 15,22; 17,3; 19,16; 26,51; 28,2 dentre ou-
tras ocorrências.
93
Segundo Bonnard, em Mateus o centurião “é tomado de pânico e medo por ter ofendido o deus
dos judeus”, além de presenciar os eventos cósmicos (cf. BONNARD, Pierre. L’Évangile selon
Saint Matthieu, p. 407).
279

presente para o imperfeito, pois Jesus acaba de morrer). Assim, o impulso confes-
sional de Mc 15,39 é ampliado através da reformulação das palavras do centurião
expressa na confissão fundamental dos discípulos em Mt 14,33, acrescentando o
elemento de medo para com a manifestação de poder divino (o que, aliás, é co-
mum no texto de Mateus (cf. Mt 17,6; 28,8).94
Kingsbury observa que o uso do passado h\n na confissão dos soldados a-
ponta para o fato de que a morte de Jesus na cruz marca o término de sua atividade
terrena.95 Essa tese estaria em acordo com a perspectiva de avaliação do ministério
de Cristo na narrativa mateana, pois é na cruz que o Cristo salva seu povo pagando
pelos seus pecados (Mt 26,28: “Pois este é o meu sangue, o sangue do pacto, o
qual é derramado por muitos para remissão dos pecados”).96
Em relação ao significado geral dos sinais, quase todos os estudiosos con-
cordam que a abertura dos túmulos e a ressurreição dos santos são adições cruciais
feitas por Mateus. Os outros sinais ou são preparatórios (o terremoto e a divisão
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das rochas) ou resultantes (aparecer na cidade santa, a reação dos soldados no v.


54) deste evento chave.
Em 27,53a ocorre uma sentença que revela que o relato não possui unidade
redacional (metaV thVn e!gersin au*tou~~, “após a ressurreição dele [de Jesus]”); es-
sa sentença diz respeito ao “quando” os santos ressuscitados entraram na cidade
santa. Isso provoca uma clara contradição (ou correção) entre os v. 51-52 e o v. 53
em relação ao tempo da ressurreição desses “santos”. Embora eles tenham retor-
nado à vida imediatamente após a morte de Jesus, não entraram em Jerusalém até,
pelo menos, dois dias depois, ou seja, não entram na cidade nunca antes do pri-
meiro Domingo de Páscoa.97 Além disso, o testemunho dos soldados no v. 54 ao

94
SENIOR, D. The Passion Narrative According to Matthew: A Redactional Study, p. 326-327.
95
Cf. KINGSBURY, J. D. Jesus As Story, p. 89-90.
96
David Sim discorda: para ele, o uso do passado em 27,54 implica que os militares consideram a
morte de Cristo como o fim de toda a sua história, e não de seu ministério terreno. O desconheci-
mento do Cristo por parte deles levaria a supor suas palavras como negação, e não como afirmação
da continuidade da obra do Cristo (SIM, D. C. The ‘Confession’ of the Soldiers in Mt 27:54. HeyJ
34.4 (1993), p. 401-424; aqui p. 417). Neste artigo, Sim rejeita a posição tradicional de que os sol-
dados ficaram atemorizados em vista dos sinais apocalípticos ocorridos após a morte de Cristo,
bem como a ideia de que eles representam a conversão dos gentios; para ele, “os soldados na cruz,
os quais são explicitamente identificados por Mateus como os espancadores e algozes de Jesus, são
personagens maus durante toda a narrativa da paixão. Seu reconhecimento aterrorizado de Jesus
como Filho de Deus evidencia o sentimento de culpa e de concessão de derrota em face do divino,
e prenuncia a atitude dos ímpios no dia do julgamento” (Ibidem, p. 422).
97
Brown observa que “àquela quadra Mateus de próprio punho adicionou o v. 53 (um verso visi-
velmente mais próximo do estilo próprio de Mateus) para estender o simbolismo escatológico à
Páscoa e conectá-lo à própria ressurreição de Jesus” (cf. BROWN, R. E. Extraordinary Physical
280

presenciar “os acontecimentos” (taV genovmena, entre os quais presume-se que na


narrativa de Mateus incluam os do contexto imediatamente anterior) requer que a
ressurreição dos santos tenha sido testemunhada pelo centurião e seus subordina-
dos na sexta-feira da crucificação.
Desde o estudo de Schenk acerca da narrativa marcana (onde abordou o
paralelo em Mateus) que a maior parte dos estudiosos atribuem a frase à atestação
de Mateus acerca da primazia tradicional da ressurreição de Jesus, ao mesmo tem-
po em que conecta a ressurreição diretamente à morte dele.98 Entretanto, para A-
guirre Monasterio trata-se de uma correção doutrinária introduzida por um editor
cristão antes de Mateus (e após a composição original da fonte), enquanto Riebl
considera a sentença uma antiga adição pós-mateana, mas admitindo que não há
evidências de manuscrito que dê suporte a essa posição.99 Eduard Schweizer con-
sidera a sentença uma adição tardia (ausente portanto da fonte original da períco-
pe), e Ulrich Luz chega à conclusão de que não existe uma interpretação satisfató-
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ria para a sentença.100


J. W. Wenham tenta resolver o impasse redacional reconsiderando a pon-
tuação tradicional de Mt 27,51-53. Ele sugere que um ponto final deve ser inserido
após a*new/vcqhsan (“foram abertos”, 52a), com kaiV pollaV swvmata tw~~n kekoi-
mhmevnwn a&givwn (“e muitos corpos dos santos que haviam dormido”, 52b) sendo
o sujeito de um longo parêntese por parte do evangelista, de 52b até o final da pe-
rícope.101 A leitura da perícope então seria:
Leitura da tradução do NTG Leitura variante proposta por Wenham
E a terra foi sacudida e as rochas fo- E a terra foi sacudida e as rochas foram fendi-
ram fendidas, e os sepulcros foram das, e os sepulcros foram abertos. E muitos
abertos, e muitos corpos dos santos corpos dos santos que haviam dormido se le-
que haviam dormido se levantaram, e, vantaram, e, tendo saído dos sepulcros após a
tendo saído dos sepulcros após a res- ressurreição dele, entraram na cidade santa e
surreição dele, entraram na cidade apareceram a muitos.
santa e apareceram a muitos.
Tabela 05: Proposta de leitura variante em Mt 27,51b-53

Reactions to Jesus’ Death in Matthew. In: GALVIN, J. P. (Ed.). Faith and the Future: Studies in
Christian Eschatology, p. 54-67; aqui p. 66).
98
Cf. SCHENK, Wolfgang. Der Passionsbericht nach Markus: Untersuchungen zur Überliefe-
rungsgeschichte der Passionstraditionen, p. 75; cf. também SENIOR, D. The Passion Narrative
According to Matthew, p. 316-317.
99
RIEBL, M. Auferstehung Jesu in der Stunde seines Todes? Zur Botschaft von Mt 27,51b-53, p.
55; AGUIRRE MONASTERIO, R. MONASTERIO, R. Exégesis de Mateo, 27,51b-53, p. 60-61.
100
Cf. SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Matthäus, p. 337; LUZ, Ulrich. Matthew 21-
28: A Commentary, p. 561.
101
Cf. WENHAM, J. W. When Were the Saints Raises? A Note on the Punctuation of Matthew
xxvii. 51-3. JST 32.1 (1981), p. 150-152.
281

Assim, de 52b até 53c a leitura estaria destacada de 51b-52a: a ressurreição


dos “santos” não ocorreu junto aos demais fenômenos narrados em 51b-52a (o ter-
remoto, a cisão das rochas, e a abertura dos túmulos); os túmulos foram abertos
mas os santos só foram ressuscitados dois dias depois dessa abertura, ou seja, após
a ressurreição de Jesus.
Conforme veremos adiante, toda a perícope está em forma de parataxe.102
Wenham admite que sua proposta de pontuação quebraria a parataxe de toda a se-
ção e que, se Mateus intentou que os versos fossem lidos dessa forma, a quebra
teria sido melhor no início, ou seja, introduzindo o parêntese inteiro usando a sen-
tença problemática de 53a (metaV thVn e!gersin au*tou~~ ,“após a ressurreição de-
le”): “Reconhecidamente Mateus teria se expressado com maior elegância e luci-
dez se tivesse colocado seu metaV thVn e!gersin au*tou~~ no início da frase. Mas to-
dos nós de vez em quando não começamos sentenças que ameaçam se revelar en-
ganosas e então de forma desajeitada as modificamos?”.103
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Por outro lado, em seu estudo de Mateus, Schenk opta pela leitura de
au*tou~~ em sentido adverbial em vez de pronome possessivo, como ocorre em Mt
26,36 (kaqivsate au*tou~~, “sentai-vos aqui”). Essa leitura, ele assevera, alivia um
pouco a obscuridade do atraso entre a ressurreição dos santos e a sua aparição em
Jerusalém.104
Entretanto, a tensão introduzida por essa frase advém de considerações teo-
lógicas da narrativa de Mateus, ou seja, o evangelista deseja conectar a ressurrei-
ção dos santos com a morte de Jesus e, ao mesmo tempo, assegurar a primazia da
ressurreição de Jesus. Dado o aspecto essencialmente teológico e simbólico por
parte de Mateus em toda a perícope, a questão da diferença cronológica entre a
ressurreição dos santos e sua aparição em Jerusalém não é uma preocupação do
evangelista e não precisar ser “resolvida” através de fundamentos linguísticos.
Certamente, a redação no v. 53a tem por objetivo harmonizar a estranha

102
Este termo está empregado simplesmente para expressar coordenação (em oposição à subordi-
nação ou hipotaxe), sem levar em conta a omissão de conjunções coordenativas como prescreve o
conceito básico e tradicional de parataxe. Assim, o sentido do termo neste trabalho é o da simples
“justaposição por oposição à subordinação e à coordenação” (cf. DUBOIS, Jean et al. Dicionário
de linguística, p. 456).
103
WENHAM, J. W. Op. cit. p. 151.
104
Cf. SCHENK, W. Die Sprache des Matthäus: die Text-Konstituenten in ihren makro-und
mikrostrukturellen Relationen, p. 232.
282

ideia de que os “santos” já tinham ressuscitado no dia da morte de Jesus.105 Esses


“santos” deveriam permanecer em seus túmulos até o dominho pela manhã, espe-
rando pela ressurreição de Jesus, e somente após a ressurreição dele eles poderiam
se dirigir à cidade santa. Se o evangelista admitisse que a ressurreição deles se deu
no dia da morte de Cristo, eles teriam prioridade sobre Jesus, acerca de quem a
tradição paulina anunciou como sendo a “primícia dos que adormeceram” (1Cor
15,20b), o “primogênito dentre os mortos” (Cl 1,18). Além disso, podemos afir-
mar que a sentença em 53a tomou este lugar quando o escritor viu a morte de Je-
sus a partir do evento histórico mas já direcionada para a ressurreição escatológica
do próprio Jesus e dos “santos” (possivelmente também do AT). No caso dos san-
tos, ela se faz possível através justamente da ressurreição de Jesus. Assim sendo, o
evangelista deu um significado teológico ao evento histórico. Essa significação
teológica será também um paradigma para os cristãos primitivos descritos no NT.
Linguisticamente, existem algumas nuances gramaticais nessa perícope
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que se destacam. Primeiro, há cinco verbos nos aoristo passivo: e*seivsqh (“foi sa-
cudida”, 51b), e*scivsqhsan (“foram fendidas”, 51b’), a*new/vcqhsan (“foram aber-
tos”, 52a), h*gevrqhsan (“se levantaram”, 52c) e e*neφanivsqhsan (“fizeram-se
visíveis”, “apareceram”, 53c). Além disso, imediatamente antes, ainda no v. 51,
aparece e*scivsqh (“foi rasgado”) e logo após, no v. 54 e*φobhvqhsan (“se ame-
drontaram”), perfazendo sete formas verbais. Todas expressam respostas divinas
ao acontecimento da morte de Jesus, sendo denominadas pelos estudiosos de pas-
sivo divino: por trás de cada passivo está o agente divino efetuando a ação dos
verbos. A sequência verbal também apresenta uma sequência de “efeitos” com o
intuito de apresentar a morte de Jesus como o clímax do evangelho.
Outra característica gramatical digna de nota é o uso dos antônimos
e*xelqovnteς (“tendo saído”, 53a) e ei*sh~~lqon (“entraram”, 53b) para descrever as
ações dos santos. Essa antonímia realça ainda mais a diferença radical entre os
túmulos e a cidade santa. Pela morte de Jesus, os santos foram literalmente capa-
zes de deixar a morte e entrar na vida da cidade santa.
No início da perícope, o evangelista descreve que “e a terra foi sacudida”
(kaiV h& gh~~ e*seivsqh, 51b). Como em Mt 28,2, o terremoto (seismovς) introduz um

105
Esse aparente intervalo de dois dias entre a ressurreição dos santos e sua entrada em Jerusalém
gerou também muitas especulações acerca de “onde” e “o que” esses ressuscitados teriam feito
neste espaço de tempo (cf. infra).
283

acontecimento especial e sobrenatural.106 Os terremotos em Jerusalém não eram


raros, dado que a cidade estava situada num cume sísmico. No entanto, o fato de
ter ocorrido no momento da morte de Jesus traria grande importância ao mundo
greco-romano no I século, pois os terremotos estavam relacionados às grandes cri-
ses no mundo antigo, como no caso da morte do Imperador César.107 Porém, o
mais importante para a audiência judaica de Mateus eram os eventos profetizados
por Isaías, Ezequiel, Zacarias, Amós e as predições de sabedoria advindas do visi-
onário Daniel, todas concernentes ao juízo escatológico de Deus. Sem dúvida, tais
lembranças devem ter vindo à mente e feito a comunidade mateana refletir sobre
os acontecimentos em torno da crucificação. Fica evidente que a descrição de Ma-
teus revela a morte de Jesus como um evento cósmico, com significado escatoló-
gico.
No v. 52, o evangelista informa quais as rochas que foram divididas em
51b’. Os túmulos em Israel consistiam tipicamente de uma pequena caverna, ligei-
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ramente abaixo do solo, cuja abertura era coberta com uma pedra grande em forma
de disco. O tremor de terra serviu para dividir essas rochas e abrir as tumbas. Con-
forme notado acima, é significativo que o mesmo artifício é usado pelo evangelis-
ta posteriormente: outro terremoto acompanha outra abertura de túmulo em Mt
28,2.
O termo a@gioi (“santos”, 52b) não é usado em nenhuma outra parte do E-
vangelho de Mateus com referência a pessoas. Mateus usa preferencialmente o
termo divkaioς (“justo”);108 neste caso, certamente o evangelista considera os ter-
mos sinônimos,109 e o uso de a@gioi neste caso pode revelar vocabulário não-
mateano para a perícope. Esses santos já “haviam dormido” (52b), certamente
uma metáfora para a morte.110 Seu despertar no momento em que Jesus cumpre
sua missão da chegada do Reino Escatológico lembra Dn 7,18.111
O termo swvmata (“corpos”, 52b) revela que o evangelista está se referindo
a uma ressurreição literal do corpo, certamente uma referência física neste contex-

106
Mt 28,2 registra: “E eis que houvera um grande terremoto; pois um anjo do Senhor descera do
céu e, chegando-se, removera a pedra e estava sentado sobre ela”.
107
Cf. adiante.
108
Cf. por exemplo Mt 5,45; 9,13; 10,41; 13,17.43.49; 23,29, dentre outros.
109
Cf. LUZ, Ulrich. Matthew 21-28: A Commentary, p. 567.
110
Cf. o uso de koimavw (“dormir”, “adormecer”) na LXX, com referência à morte, especialmente
no contexto da expectativa de ressurreição, em OEPKE, A. koimavw. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT,
p. 438. v. 3.
111
Dn 7,18 registra: “Os que receberão o reino são os santos do Altíssimo, e eles conservarão o
reino para sempre, de eternidade em eternidade” (grifo nosso).
284

to.112 Já o uso de pollav (“muitos”, 52b) revela que, a exemplo de Dn 12,2, não se
trata de uma ressurreição geral, e nem de todos os “santos que haviam dormido”,
mas sim daqueles que importavam para a teologia e o propósito da narrativa de
Mateus: os justos e profetas injustiçados e martirizados citados ao longo do evan-
gelho mateano.113
Em 52c, h*gevrqhsan (“se levantaram”) traz a questão do tipo de ressurrei-
ção que esses santos teriam experimentado: seria definitiva ou teriam de passar
pela morte novamente? Waters faz distinção entre ressurreição e reanimação na
Escritura:
Nas reanimações sempre há pelo menos três partes envolvidas: Deus, a pessoa
morta, e o humano através do qual Deus ressuscita os mortos... a reanimação é
sempre o despertar de um único indivíduo. Além disso, na reanimação a pessoa
reanimada acaba morrendo novamente. Na ressurreição não há três partes... ape-
nas Deus e a pessoa morta... e a pessoa morta não morre novamente... Embora te-
114
nham havido várias reanimações, só pode haver apenas uma ressurreição.

No entanto, as diferenças notadas por Waters não se encontram em lugar


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algum das Escrituras dentro de uma normatização que crie “regras para diferenci-
ação entre ressurreições e reanimações”. Em Mt 27,52 o contexto deixa claro que
a ressurreição dos santos prefigura a ressurreição escatológica; a perícope deixa
claro também que a ressurreição do próprio Jesus é a referência para a dos santos
que dormem, não sendo plausível imaginar que o evangelista fizesse distinções
dessa natureza entre elas. Deve-se ressaltar ainda que no judaísmo do I século d.C.
não havia a crença em qualquer ressurreição corporal que não fosse a ressurreição
universal no final dos tempos.
Em 53a, dentro da sentença considerada uma adição (metaV thVn e!gersin
au*tou~~), o termo e!gersiς (no sentido de “levantar-se da morte”, “ressurreição”) é
um hapax legomenon dentro não só do Evangelho de Mateus, mas também de to-
do o NT. Esse termo estranho ao evangelista reforçaria a tese de uma adição. Ele
normalmente usa a*navstasiς para “ressurreição” (cf. Mt 22,23ss), mas usa o pas-
sivo do cognato e*geivrw para a ressurreição de Jesus (cf. 16,21; 17,23; 20,19;
26,32; 27,63; 28,6), o que mostra que o significado na raiz não lhe era estranho.
Outro termo não usual para o evangelista é verbo e*mφanivzw (“aparecer”) em

112
Cf. o uso e as nuanças deste termo em SCHWEIZER, E.; BAUMGÄRTEL, A. sw~~ma. In: KIT-
TEL, G. (Ed.). Op. cit., p. 1024-1091. v. 7.
113
Cf. argumentação adiante.
114
WATERS, Kenneth L., Sr. Matthew 27:52-53 As Apocalyptic Apostrophe: Temporal-Spatial
Collapse in the Gospel of Matthew. JBL 122.3 (2003), p. 489-515; aqui p. 493.
285

53c;115 normalmente ele usa φaivnw (cf. Mt 1,20; 2,7.13.19; 13,26) ou o médio-
passivo de o&ravw (cf. 17,3; 24,30) para expressar essa noção.116 A exemplo do uso
de a@gioi citado supra, essa diferença estilística certamente se deve ao material
especial que o evangelista utiliza como fonte para a perícope.117
Em 53b se afirma que os santos ressuscitados entraram na a&givan povlin
(“cidade santa”). Embora em algumas ocasiões a literatura apocalíptica do NT usa
essa designação em referência a um lugar escatológico, paradisíaco, contraponto
da Jerusalém terrena (como no Apocalipse), nas diversas ocorrências na LXX e na
literatura intertestamentária o termo designa a Jerusalém terrestre.118 Muito prova-
velmente é essa literatura que o evangelista e seus leitores têm em mente. Além
disso, dado o contexto de Mateus, a designação deve ser entendida primeiramente
em referência à Jerusalém da época do evangelista.
Tomada como um todo, a forma abreviada da perícope atesta a sua impor-
tância dentro do contexto mateano da morte de Jesus. A “ressurreição dos santos”
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ligada à morte de Jesus marca a virada escatológica e apocalíptica na história da


salvação.119 Um dos importantes argumentos para tais leituras escatológico-
apocalípticas de Mt 27,51b-53 é a história paralela sobre a abertura do túmulo de
Jesus com a mensagem de sua ressurreição em Mt 28,1-10. De fato, o texto de Mt
28,2 é o único dentre os Evangelhos que cita a ocorrência de um “grande terremo-
to” na perícope da tradição do túmulo vazio (cf. Mc 16,1-8; Lc 24,1-12; Jo 20,1-
10).
Já faz algum tempo que Senior e Wenham chamaram a atenção para as
semelhanças entre os incidentes narrados em Mt 27,51-53 e a própria narrativa de
Mateus acerca da descoberta do túmulo vazio em 28,1-10: terremotos (27,51;
28,2a), a abertura de túmulos (27,52; 28,2b); o medo dos guardas (27,54; 28,4).120
Antes deles, Schenk também reconheceu as semelhanças aparentes de Mt 27,51b-
53 com 28,1-10, mas descartou que tenha havido uma fonte comum para ambas as

115
Segundo Liddell & Scott, a raiz e*mφan- (“aparecer”) é uma reminiscência das aparições de deu-
ses em forma corpórea e de heróis (Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 549).
116
NOLLAND, John. The Gospel of Matthew: A Commentary on the Greek Text, p. 1215.
117
Cf. adiante.
118
Cf. por exemplo Is 66,20; 1Mc 2,7; 2Mc 1,12; 3,1; 9,14 e 15,14.
119
SENIOR, D. Escatologia e soteriologia nella passione secondo Matteo: Il significado di Mt
27,51-53. In: AA.VV. La sapienza della croce oggi: atti del Congresso internazionale, Roma, 13-
18 ottobre 1975, p. 95-105; aqui p. 104. v. 1.
120
Idem. The Death of Jesus and the Resurrection of the Holy Ones (Mt 27:51-53). CBQ 38.3
(1976), p. 312-329; aqui p. 314; WENHAM, D. The Resurrection Narratives in Matthew’s Gospel.
TynBul 24 (1973), p. 21-54; aqui p. 42-46.
286

narrativas.121 De qualquer forma, em 28,2 a sepultura é aberta por um anjo, não


por um terremoto.
Embora a interpretação da perícope à luz de Mt 28 possa parecer bastante
plausível, ela levanta uma importante questão: qual seria a razão pela qual o evan-
gelista não cita o episódio de 27,51b-53 no contexto do próprio capítulo 28, ou
seja, após a ressurreição de Jesus, especialmente pelo fato de que ele ancora o epi-
sódio cronologicamente neste exato momento do tempo: “depois de sua ressurrei-
ção”?122
De qualquer forma, Schenk postula que, para o caso de Mt 27,51b-53, o
evangelista adaptou antiga tradição. Baseando-se em E. Lohmeyer,123 ele enxerga
sete frases concisas que formariam a base original da passagem:
1. kaiV h& gh~~ e*seivsqh (E a terra foi sacudida, em 51b)
2. kaiv ai& pevtrai e*scivsqhsan (E as rochas foram fendidas, em 51b’)
3. kaiV taV mnhmei~a a*newv/cqhsan (E os sepulcros foram abertos, em 52a)
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4. kaiV (taV) swvmata h*gevrqhsan (E (os) corpos se levantaram, em 52bc)


5. kaiV e*xhvlqon e*k tw~n
~ mnhmeivwn (E saíram dos sepulcros, em 53a)
6. (kaiV) ei*sh~lqon ei*ς thVn povlin ((e) Entraram na cidade, em 53b)
7. kaiV e*neφanivsqhsan polloi~~ς (E apareceram a muitos, em 53c)
Tabela 06: Frases concisas na base original de Mt 27,51b-53

As três primeiras, compostas de conjunção, artigo, substantivo e verbo,


descrevem a preparação para a ressurreição dos mortos como sendo composta por
atos de Deus (isto é, por meio do passivo divino) e são intocadas pelo redator. A
quarta, que possuía originalmente a mesma forma, foi reformulada pelo evangelis-
ta com pollaV swvmata tw~n
~ kekoimhmevnwn a&givwn (“muitos corpos dos santos
que haviam dormido”, 52b) substituindo o (taV) swvmata indeterminado do origi-
nal. Este quarto verso, um “verso de transição”, leva ao outro grupo de três frases
que descrevem os resultados do sinal da ressurreição, usando um padrão fixo, com
os próprios santos como agentes. Outra intervenção de Mateus marca a quinta fra-

121
SCHENK, Wolfgang. Der Passionsbericht nach Markus: Untersuchungen zur Überliefe-
rungsgeschichte der Passionstraditionen, p. 71-78.
122
Cf. HERZER, Jens. Auferstehung und Weltende als Rätsel? Zur Funktion und Bedeutung von
Mt 27,51b-53 im Kontext der matthäischen Jesus-Erzählung. In: BOETTRICH, C. (Ed.).
Evangelium ecclesiasticum: Matthaeus und die Gestalt der Kirche, Festschrift für Christoph
Kaehler zum 65. Geburtstag, p. 51-68; aqui p. 55.
123
LOYMEYER, Ernst. Das Evangelium des Matthäus, p. 395, n. 2. Recentemente, Davies e Alis-
son enxergaram paralelismo semelhante (cf. DAVIES, W. D.; ALLISON, D. C., Jr. ICC, p. 628. v.
3).
287

se, onde a expressão metaV thVn e!gersin au*tou~~ (“após a ressurreição dele”, 53a),
adicionada para manter a prioridade da própria ressurreição de Cristo, elimina o
kaiv conjuntivo original na sexta frase (53b) e muda a forma finita e*xhvlqon na
quinta frase (53a) para o particípio e*xelqovnteς.
O acréscimo de a&giavn antes de povllin na sexta frase (53b) seria fruto da
ação redacional do evangelista (cf. Mt 4,5), a exemplo de pollav diante de swvmata
(cf. Mt 9,10; 10,31; 13,17; 24,11) e de tw~~n kekoimhmevnwn a&givwn após esse ter-
mo (cf. Mt 28,13) na quarta frase (52b).
Dessa forma, uma série de acontecimentos são narrados sob o estilo de pa-
rataxe em Mt 27,51b-53.
Hutton também nota a forma de parataxe rítmica de toda uma série de tex-
tos apocalípticos na LXX, como Jl 2,10; 3,4 e Am 8,9-10.124 O mesmo padrão
também pode ser encontrado em passagens do Apocalipse (cf. Ap 6,12-14; 11,17-
19; 16,18-21).
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Pode-se também levar em conta o estilo próprio de Mateus. Embora ele ge-
ralmente evite parataxe, existem alguns exemplos em que ele a utiliza, precisa-
mente nos casos em que uma série de eventos ou ações está sendo descrita, exa-
tamente como nos exemplos da LXX citados supra. É essa qualidade peculiar (u-
ma série de eventos rápidos narrada de maneira ofegante) que corrobora para a
forma estereotipada de Mt 27,51b-53. Por exemplo, em Mt 7,25 um padrão idênti-
co surge na versão do redator acerca da casa construída sobre a areia:
1. kaiV katevbh h& brochv (E desceu a chuva)
2. kaiV h\lqon oi& potamoiv (E vieram os rios)

3. kaiV e!pneusan oi& a!nemoi (E sopraram os ventos)


4. kaiV prosevpesan th~/ oi*kiva/ e*keivnh/ (E se lançaram contra aquela casa)
Tabela 07: Estilo de parataxe em Mt 7,25

A parataxe aparece novamente em Mt 7,27, onde a fraseologia é repetida


de forma quase idêntica (só muda o último verbo por outro sinônimo). Em ambos
os casos, observa-se que o evangelista fez o acréscimo da parataxe quando compa-
rado ao paralelo em Lc 6,48b: plhmmuvrhς deV genomevnhς prosevrhxen o&
potamoVς th~~/ oi*kiva/ e*keivnh/ (“Uma enchente, porém, tendo ocorrido, o rio irrom-

124
HUTTON, D. The Resurrection of the Holy Ones (Mt 27, 51-53): A Study of the Theology of the
Matthean Passion Narrative, p. 102-103.
288

peu contra aquela casa”). Outros exemplos são encontrados ao longo de Mateus.125
Esses exemplos demonstram que Mateus às vezes escolhe descrever uma
série de eventos que acontecem numa sequência rápida amarrando verbos e frases
em conjuntos em forma de parataxe. Assim, a forma de parataxe presente em
27,51b-53 não é uma anomalia ao padrão redacional próprio de Mateus, ou seja, é
plausível que a redação seja do próprio evangelista, mesmo que a tenha efetuado a
partir de tradição anterior. Dessa forma, a necessidade de se detectar uma fonte
literária para 27,51b-53 torna-se menos obrigatória. O evangelista foi capaz de
exprimir em imagens apocalípticas típicas e em forma de parataxe a série empol-
gante de sinais que, segundo ele, são desencadeados por ocasião da morte de Je-
sus. O que se sobressai nessas imagens apocalípticas é justamente o sinal da res-
surreição dos santos que dormem.
Assim, quanto à estilística, podemos afirmar que o padrão redacional para
o material de 27,51b-53 é definido pela narração do primeiro evento da série: o
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rompimento do véu do Templo; o padrão foi retirado de Mc 15,38, onde ele já é


encontrado: kaiV (conjunção, “e”), toV katapevtasma tou~~ naou~~ (sujeito, “o véu do
santuário”), e*scivsqh (verbo na voz passiva, “foi rasgado”), conforme Mt 27,51a
(com acréscimo redacional de i*douv, “eis”, cf. notado supra). Mateus utiliza esse
padrão para a sua descrição do rompimento do véu do Templo em 27,51a e o man-
tém para a série de eventos que se seguem em 51b-53.
Por fim, embora relativamente poucos estudos tenham se concentrado es-
pecificamente nessa perícope, várias categorias gerais de interpretação foram de-
senvolvidas. Para alguns, o terremoto e a abertura dos túmulos devem ser entendi-
dos como um exemplo típico dos prodígios cósmicos que acompanham a morte de
um herói ou de um ser humano em parte divino, testemunhando assim a importân-
cia da vítima. Paralelos a isso podem ser encontrados na literatura grega, latina e
judaica. Uma variação sobre esse tema seria interpretar os sinais como a reação
favorável da natureza para a morte de uma divindade cósmica. Outra ideia, de cu-
nho mais cristão, seria relacionar os eventos descritos nessa passagem e sua pró-
pria gênese ao tema da “Descida ao Hades”, destacando a extensão da vitória do
Salvador pelo mito da descida ao reino dos mortos e a consequente liberação das
almas cativas ali. O texto de Mt 27,51b-53 seria, assim, melhor explicado como

125
Cf. Mt 2,11-12; 4,23-25; 9,35; 11,4-5; 15,31; 17,27; 21,33 (cf. Mc 12,1); 24,9b-12; 25,35-
39.42-44; e 27,29-31.
289

uma expressão rudimentar desse tema soteriológico.


No entanto, para se chegar a uma interpretação mais fundamentada e plau-
sível da perícope, deve-se observar a contribuição da crítica da fonte e, aliado a
isso, verificar a intertextualidade no contexto da obra mateana.

5.2.5. A origem do material especial de Mateus e seu significado no


contexto do Evangelho

Os estudiosos têm realizado uma série de esforços a partir da crítica da


fonte para extrair um núcleo da história, o qual Mateus pode ter recebido da tradi-
ção e inserido em sua narrativa. Os resultados desses estudos variam muito e, em
muitos casos, dificilmente podemos considerá-los plausíveis, especialmente pelo
fato de que eles não determinam a função e a importância do episódio dentro do
contexto do Evangelho de Mateus, bem como também não fornecem resposta sa-
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tisfatória para a razão por que qual Mateus teria inserido esta pequena narração
exatamente neste ponto de sua narrativa.
Segundo Senior, as hipóteses sobre a origem de Mt 27,51b-53 podem ser
resumidas nas seguintes alternativas: a) uma antiga tradição de “descida ao infer-
no” que teria emergido também em 1Pd 3,19 e nos credos primitivos; b) um frag-
mento de uma primitiva narrativa pascal anterior à tradição sinótica; c) uma tradi-
ção concernente à ressurreição de Jesus que, independentemente de Mateus, tam-
bém teria emergido no Evangelho de Pedro; d) uma tradição que Mateus extraiu,
quer direta ou indiretamente, do Evangelho de Pedro; e) um hino apocalíptico ju-
daico ou judaico-cristão, ou texto litúrgico; f) uma composição do próprio evange-
lista criada a partir do AT e de material apocalíptico judaico do período intertes-
tamentário.126 Como se vê, a maior parte dos estudos procurou a origem da adição
de Mateus em uma tradição. Nenhum deles, entretanto, levantou a hipótese da tra-
dição advir do ciclo de Daniel.
Além das hipóteses da crítica da fonte, existem paralelos tradicionais que
desempenham importante papel na interpretação da perícope, conforme citado su-
pra, presentes tanto no judaísmo primitivo quanto no mundo greco-romano (por
exemplo, Virgílio no poema Geórgica I, 466-497, o qual menciona um terremoto,

126
SENIOR, Donald. Matthew's Special Material in the Passion Story: Implications for the Evan-
gelist’s Redactional Technique and Theological Perspective. ETL 63.4 (1987), p. 272-294; aqui p.
278.
290

por ocasião da morte do Imperado César, acompanhado de trevas e destruição de


sepulturas).127 Esses paralelos foram usados para ilustrar que um leitor antigo po-
deria ser familiar a esses relatos, ou seja, não considerá-los “histórias estranhas”.
No caso de paralelos judaicos e do AT, terremotos, trevas e outros sinais
são concomitantes clássicos de teofania como sendo sinais ou de julgamento divi-
no128 ou de tempos apocalípticos.129 Paralelos da Era Cristã também foram anali-
sados. Um dos primeiros estudos a sugerir um paralelo da tradição cristã para a
análise da perícope de Mateus é o de D. Hutton.130 Ele propôs que o material es-
pecial de toda a narrativa da paixão em Mateus (incluindo assim a perícope em
questão) espelha uma tradição presente também no Evangelho de Pedro (da se-
gunda metade do século II d.C.). Existiria uma primitiva história comum de epifa-
nia de ressurreição de Jesus por trás da tradição da guarda do túmulo em Mt
27,62-66 e sua abertura em Mt 28,2-4 e no Ev Pd 10,34-42, sendo que o evange-
lista Mateus e o autor do apócrifo teriam usado a tradição de forma independen-
te.131 Hutton assevera que a incorporação parcial desse material é a chave para ex-
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plicar o material especial em Mt 27,51b-53.


O uso do material por parte do evangelista teria sido apenas parcial. Com-
parando Mateus com o Evangelho de Pedro, ele encontra os seguintes paralelos:
cenário noturno (Mt 28,2; Ev Pd 10,35a); um sinal cósmico (Mt 28,2; Ev Pd
10,35b); descida de uma figura celestial (Mt 28,2b; Ev Pd 10,36); aparecimento de
luz (Mt 28,3; Ev Pd 10,36b); e abertura do sepulcro (Mt 28,2c; Ev Pd 10,37). Se-

127
Há também uma aparição dos mortos na conquista de Alexandria pelos romanos relatada por
Dio Cássio LI: 17,5, bem como uma história semelhante em Ovídio (Metamorfoses VII, 2,205).
128
Cf. Jz 5,4; 2Sm 22,8; Sl 68,9; Is 5,25; 24,18; Jr 4,23; 8,16; Ez 38,19; T. Lev 3,9; 1En 1,3-8.
129
Cf. Zc 14,4-5; 1En 1,6; 51,4.
130
HUTTON, D. The Resurrection of the Holy Ones (Mt 27 51-53): A Study of the Theology of the
Matthean Passion Narrative , especialmente p. 161-173. Tese de Doutorado não publicada defen-
dida na Universidade de Harvard em 1970 e consultada pelo autor desta tese in loco (Harvard Di-
vinity School, em 06 de agosto de 2009).
131
O Ev Pd 10,34-42 assinala: “(34) No início da manhã, quando o sábado amanheceu, veio uma
multidão de Jerusalém e da região ao redor para ver o sepulcro que havia sido lacrado. (35) Ora, na
noite em que o dia do Senhor alvoreceu, quando os soldados, dois a dois em cada turno, estavam
de guarda, ressoou uma alta voz no céu, (36) e viram os céus abertos e dois homens de lá descem
em um grande brilho e iluminam a noite no sepulcro. (37) Aquela pedra que havia sido colocada
junto à entrada do sepulcro começou por si mesma a rolar e mover-se para o lado, e o sepulcro foi
aberto, e ambos os jovens entraram nele. (38) Quando os soldados viram isso, despertaram o centu-
rião e os anciãos – pois eles também estavam lá para ajudar na vigilância. (39) E enquanto eles
estavam relatando o que tinham visto, viram novamente três homens saírem do sepulcro, e dois
deles sustentando o outro, e uma cruz os seguindo, (40) e as cabeças dos dois alcançando o céu,
mas a daquele que era conduzido por eles pela mão atravessava os céus. (41) E eles ouviram uma
voz dos céus gritando: ‘Tu pregaste aos que dormem?’, (42) e da cruz foi ouvida a resposta:
‘Sim’”; cf. a tradução em WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God, p. 593-594 (Chris-
tian Origins and the Question of God, v. 3). O tema dessa “pregação aos que dormem” poderia ser
a ressurreição; porém, não há evidência da ressurreição deles no Evangelho de Pedro.
291

gundo Hutton, a partir de Mt 28,4 o evangelista aparentemente retorna à tradição


marcana da ida das mulheres ao sepulcro. O restante do material da suposta tradi-
ção, entretanto, teria sido utilizado pelo apócrifo de Pedro: o surgimento de duas
figuras celestiais com o Senhor ressuscitado e a cruz (Ev Pd 10,39-40) e uma voz
celestial que faz uma pergunta sobre uma proclamação “aos que dormem” (Ev Pd
10,41).
Hutton reconhece esses elementos presentes de forma truncada no material
de 27,51b-53, especificamente a ressurreição dos santos que haviam dormido. As-
sim, tanto o evangelista quanto o apócrifo teriam usado a primitiva tradição de e-
pifania de ressurreição de forma diferente: ao passo que o Evangelho de Pedro
manteve sua função como testemunho da ressurreição de Jesus, Mateus a teria di-
vidido e usado cada parte para um propósito diferente. A reação dos guardas teria
sido enxertada tanto em Mateus quanto no apócrifo a partir da tradição marcana
do túmulo vazio e usada como apologia contra a acusação de roubo do túmulo.
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Crossan vai além de Hutton: ele acredita que o Evangelho de Pedro não
somente representa uma tradição independente e anterior aos Sinóticos, mas estes
próprios (especificamente Mt 27,51b-53) extraíram material a partir daquele: a
narrativa do estremecimento da terra quando o corpo de Jesus é colocado sobre ele
(no Ev Pd 7,21) representaria uma versão mais integrada e antiga da tradição à
qual Mateus adaptou com dificuldades à sua narrativa.132
Embora aparentemente atraente, a hipótese de Mateus ter se servido da
mesma tradição presente no Evangelho de Pedro é pouco convincente. As diferen-
tes funções do material em cada relato depõem contra os paralelos estabelecidos
por Hutton. A função dos anjos no Evangelho de Pedro é, em última análise, abrir
o túmulo para a ressurreição de Jesus (Ev Pd 10,37), ao passo que em Mateus a
função do anjo é parte do esforço do evangelista para desacreditar uma explicação
contrária à da ressurreição (Mt 27,62-66). O anjo em Mateus remove a pedra de
entrada do túmulo mas Jesus já não estava lá: seu objetivo é mostrar o túmulo va-
zio às mulheres (cf. 28,2.6). Em 28,5 ele aparece como um porta-voz celestial cuja
presença e mensagem ratificam o anúncio cristão da ressurreição, desarmando a
polêmica judaica que aparentemente ainda confrontava a comunidade mateana.133

132
CROSSAN, J. D. Four Other Gospels: Shadows on the Contours of Canon, p. 141-142.
133
Cf. NEIRYNCK, F. Les femmes au tombeau: Étude de la rédaction Matthéenne. NTS 15.2
(1969), p. 168-190; aqui p. 174-175. De fato, em Mt 28,6 o anjo afirma que “ele ressuscitou, como
292

Além disso, os elementos apocalípticos que descrevem a aparição de anjo


em Mt 28,2-3 e Ev Pd 10,35-37 são parte de uma descrição tipicamente apocalíp-
tica, comum em diversos escritos.
Por fim, sabe-se que o linguajar de 28,2-4 é tipicamente mateano, e a fun-
ção especial do material aqui tem alguns paralelos no próprio evangelho: a ênfase
sobre a origem divina da mensagem do evangelho em 28,1-7 aparece também no
porta-voz celestial do Evangelho de Infância em Mt 1,20-21 e 2,13.19-20, ou no
papel da mulher de Pilatos em Mt 27,19 (a convicção da mulher acerca da inocên-
cia de Jesus é ratificada pelo fato de essa convicção ter ocorrido através de sonho,
forma comum em Mateus como meio de transmissão das mensagens divinas, con-
trastando, neste caso, com o esforço humano dos anciãos e chefes dos sacerdotes
utilizado para agitar a multidão contra Jesus em Mt 27,20).134
Assim, o paralelo entre a narrativa mateana do túmulo vazio e o relato do
Evangelho de Pedro não se sustenta; então Mt 27,51b-53 não teria origem no ma-
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terial da tradição presente no apócrifo. A citação dos “santos que haviam dormi-
do” no texto de Mateus tem um paralelo muito tênue com a tradição representada
no apócrifo de Pedro. No Ev Pd 10,41 a voz celestial proclama o Senhor ressusci-
tado como alguém que “deve ter pregado aos que dormem”; mas não há qualquer
referência à ressurreição desses ouvintes. Em Mt 27,52-53 a ressurreição dos san-
tos é o principal sinal que acompanha a morte de Jesus.
Assim, a utilização deste sinal pelo evangelista em sua narrativa da paixão
pode ser examinada de forma mais plausível a partir de uma tradição que leve em
conta a função desse material dentro da narrativa de Mateus.
Em seu comentário sobre a narrativa da paixão em Marcos (mais antigo
que o comentário de Mateus), Schenk considerou a perícope de Mateus como sen-
do um hino da apocalíptica judaica, o qual descreve a ressurreição dos mortos na
era final. Ele condensou sua análise em duas frentes: a forma de hino pode ser de-
tectada no estilo de parataxe de Mt 27,51b-53 e a origem do hino estaria enraizada
numa especulação judaica sobre o tema da ressurreição de Ez 37,1-14. Assim, ele
assinalou que uma fonte muito mais potencial para o material de Mateus em

havia dito”, uma ênfase peculiar a Mateus e em evidente contraste com o falso testemunho de Mt
27,63 (“aquele impostor, quando ainda vivo, afirmou...”).
134
Cf. SENIOR, D. The Passion Narrative According to Matthew: A Redactional Study, p. 247-
248.
293

27,51b-53 pode ser encontrada na apocalíptica judaica ou cristã.135 A expectativa


de ressurreição em conexão com a chegada da era messiânica foi uma fortíssima
corrente no judaísmo intertestamentário. O texto da visão dos ossos secos parece
ter tido uma influência particular neste tema. A famosa apresentação gráfica da
ressurreição final no afresco da Sinagoga de Dura-Europos (III século d.C.) indi-
caria a relevância desse texto até mesmo no judaísmo posterior. A confluência de
imagens desse afresco possui um impressionante paralelo com a perícope de Ma-
teus: a presença de uma figura messiânica; a localização no Monte das Oliveiras; o
terremoto; a ressurreição dos mortos; e procissão em celebração da cidade san-
ta.136 Schenk conclui que o texto de Mateus representa um estágio de desenvolvi-
mento no caminho para a imagem exuberante de Dura-Europos.
Posteriormente, em seu comentário sobre a narrativa em Mateus, Schenk
modificou sua antiga interpretação em favor de uma composição mateana da perí-
cope.137
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A tese de que a tradição representada na perícope de Mateus provém de Ez


37 é defendida também por outros estudiosos. Embora o relato de Ez 37 fosse
primeiramente uma descrição do retorno de Israel do exílio na Babilônia, já por
volta do século I d.C. o que havia começado como uma metáfora para Ezequiel
estava sendo entendido como uma predição literal. O painel representando Eze-
quiel em Dura-Europos quase sempre é o principal argumento para a comprovação
dessa crença no primeiro século.138
M. Riebl e Aguirre Monasterio se contentam com uma fonte apocalíptica
mais generalizada, inspirada por Ez 37,1-14, provavelmente escrita, e extraída a
partir de qualquer marco social, tanto judaico quanto judaico-cristão. Monasterio
prefere uma origem judaico-cristã helenística, composta em grego e provavelmen-
te num marco social “litúrgico”; Mateus teria adicionado alguns retoques redacio-

135
SCHENK, Wolfgang. Der Passionsbericht nach Markus: Untersuchungen zur Überliefe-
rungsgeschichte der Passionstraditionen, p. 74-83 (1974).
136
Para o tratamento específico desse tema, cf. WISCHNITZER-BERNSTEIN, Rachel. The Con-
ception of the Resurrection in the Ezekiel Panel of the Dura Synagogue. JBL 60.1 (1941), p. 43-55;
GRASSI, J. Ezekiel XXXVII, 1-14 and the New Testament. NTS 11.2 (1965), p. 162-164. No a-
fresco, uma figura messiânica é o agente através do qual a mão de Deus parece revigorar os ossos
secos. O cenário para a cena é o Monte das Oliveiras. Há também evidências de um terremoto (pa-
ra a reprodução do painel e uma discussão detalhada acerca de sua interpretação no judaísmo, cf.
AGUIRRE MONASTERIO, R. Exégesis de Mateo, 27,51b-53: para una teología de la muerte de
Jesús en el evangelio de Mateo, p. 72-97).
137
SCHENK, Wolfgang. Die Sprache des Matthäus: die Text-Konstituenten in ihren makro-und
mikrostrukturellen Relationen, p. 210 (1987).
138
WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God, p. 633 (Christian Origins and the Ques-
tion of God, v. 3). Cf. discussão adiante.
294

nais e cuidadosamente integrado o material à sua narrativa em sua interpretação da


morte de Jesus.139 Assim, ele admite forte evidência de elementos mateanos em
27,51-53, mas se recusa a atribuir a eles composição totalmente mateana devido à
presença de motivos apocalíptico-escatológicos tradicionais.140 Já Riebl atribui a
passagem a uma fonte não-mateana devido não ao vocabulário, mas sim ao estilo
de parataxe da passagem.141 Ela objeta que nos exemplos de parataxe em Mt
7,25.27 e 24,9b-12 o evangelista poderia também ter recorrido a uma fonte, e o
padrão sintático conjunção-sujeito-verbo passivo em 51b-53 é uma anomalia para
Mateus.142
Monasterio aponta seis pontos de contato entre a perícope mateana e o tex-
to de Ezequiel: em ambos os textos, a) é o Espírito de Deus que desencadeia, em
última instância, o processo que resulta na ressurreição dos mortos; b) a interven-
ção de Deus é acompanhada por terremoto, sinal da ação escatológica de Deus; c)
a ação divina culmina com a abertura dos túmulos e retirada dos mortos que lá es-
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tavam; d) existe um retorno a Israel (em Mateus retorno a Jerusalém, centro de


Israel); e) a ação divina tem um caráter revelador; f) os sinais de ressurreição são
relacionados a um santuário novo e mais perfeito (em Mateus a conexão com o
rompimento do véu no Templo em 27,51a; em Ezequiel o contexto mais amplo da
profecia, cf. 37,26-28).143
De fato, há diversos contatos aparentes entre a descrição de Ezequiel e o
texto de Mateus: referência a um terremoto (Ez 37,7; Mt 27,51); abertura de sepul-
turas (Ez 37,12; Mt 27,52); referência à “ressurreição” (Ez 37,12; Mt 27,52); e
entrada de santos ressuscitados na Cidade Santa/Israel (Ez 37,12; Mt 27,53). Além
da ocorrência desses elementos, um impressionante paralelo em significado pode
ser estabelecido entre as duas passagens: a visão de Ezequiel foi uma afirmação de
reivindicação de salvação para o exílio de Israel através do poder de Deus e, pos-
teriormente, o texto foi aplicado para o futuro da esperança messiânica; já em Mt
27,51b-53 a ressurreição dos santos também serve como reivindicação de esperan-
ça e como uma afirmação do poder salvífico de Deus no meio da morte, especial-
mente em vista do momento vivido pela comunidade mateana.

139
RIEBL, M. Auferstehung Jesu in der Stunde seines Todes? Zur Botschaft von Mt 27,51b-53, p.
60; AGUIRRE MONASTERIO, R. Op. cit. p. 98-108.
140
Ibidem, p. 50-52.
141
RIEBL, M. Op. cit. p. 56-57.
142
Ibidem, p. 57, n. 4.
143
AGUIRRE MONASTERIO, R. Op. cit. p. 75-76.
295

No Targum Palestinense (uma versão aramaica do AT usada nas sinago-


gas) o texto de Ezequiel foi entendido como aludindo a uma ressurreição histórica
já a partir do século I d.C.144 Segundo Carmona, tal antiguidade permite conhecer
as ideias populares acerca da ressurreição no tempo de Jesus, conforme expressas
no Targum e já nas obras do judaísmo intertestamentário.145
Embora essa tese da analogia ou influência de Ezequiel seja atraente, a
descrição dos ossos nos quais carne fresca e pele crescem é antes de tudo uma me-
táfora do renascimento de Israel, e somente a recepção farisaica tornou-a referên-
cia para a reconstituição dos mortos durante a ressurreição. Em Mateus, ao contrá-
rio, esse motivo não desempenha um papel absoluto, nem sequer alusivamente,
uma vez que ao usar sw~m~ a o evangelista simplesmente usa o termo comum para
expressar um cadáver.
Alguns estudiosos expandiram o contexto tradicional da referência a Ez 37
fazendo alusão a Zc 14,4-5,146 uma vez que essa passagem menciona a cisão do
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Monte das Oliveiras durante a chegada de Deus para o julgamento das nações i-
nimigas de Jerusalém.147 A analogia se daria também pela tradução da LXX (a úl-
tima parte do v. em Zc 14,5 registra: kaiV h@xei kuvrioς o& qeovς mou kaiV pavnteς
oi& a@gioi met’ au*tou~~, “Então virá o Senhor meu Deus, e todos os santos com e-
le”). Em contraste, Ez 37 menciona o retorno do povo somente “para a terra de
Israel” (37,12) e, assim, não explicaria de maneira satisfatória todos os motivos
presentes na perícope de Mateus 27.
Davies e Allison, por exemplo, acreditam que haja mais influência na perí-
cope de Mateus a partir de Zc 14,4-5 pela tradução da LXX do que a partir de Da-
niel ou Ezequiel. Eles argumentam que o linguajar da perícope é mateano e que
“os motivos têm os seus antecedentes no AT e não exigem uma história pré-
mateana na igreja; e a interpretação do fim de Jesus em categorias escatológicas é
congruente com a teologia do redator. Entretanto, junto com a maioria [dos co-

144
Cf. CARMONA, A. Rodríguez. La resurrección en el Targum Palestinense: aportación al vo-
cabulario y fórmulas de la resurrección en el Nuevo Testamento, p. 73.
145
Ibidem, p. 74-75.
146
Zc 14,4-5 registra: “Naquele dia, estarão os seus pés sobre o monte das Oliveiras, que está dian-
te de Jerusalém, na parte oriental. O monte das Oliveiras se rachará pela metade, e surgirá do ori-
ente para o ocidente um enorme vale. Metade do monte se desviará para o norte, e a outra para o
sul. Fugireis do vale de minhas montanhas, pois o vale das montanhas atingirá Jasol; fugireis como
fugistes por causa do terremoto nos dias de Ozias, rei de Judá. E Iahweh, meu Deus, virá, todos os
santos com ele”.
147
Segundo Ulrich Luz, havia muitos túmulos de profetas na área do Monte das Oliveiras (cf.
LUZ, Ulrich. Matthew 21-28: A Commentary, p. 562, n. 16).
296

mentaristas], nós atribuímos a passagem à tradição”.148 Eles ainda assinalam que


em Mt 27,53 “os ‘santos’, como representantes do passado judaico, adicionam seu
testemunho a Jesus, o que confirma o cristão do presente”.149 É notável que os au-
tores do comentário não relacionem a ressurreição dos “santos” presente na perí-
cope de Mateus com Dn 12, preterindo este texto a Zc 14,4-5. É sabido que o capí-
tulo 14 de Zacarias remete, antes, à salvação de Jerusalém, e não à tradição de res-
surreição individual como refletido no texto de Mt 27.
Além da referência a Ez 37 e Zc 14, outras perspectivas foram adotadas na
interpretação da perícope de Mateus. Adolf Schlatter usa a perspectiva soterioló-
gica da morte de Jesus conforme determinado por Mt 20,28. Ele vê as aparições
dos santos como o link entre a morte de Jesus e “uma primeira ressurreição”, for-
mando assim o prenúncio de uma nova era; o fenômeno liga o que Jesus predisse e
a eternidade chegada.150 Raymond Brown sugere em sua ampla discussão do texto
o caráter apocalíptico como uma ilustração do "cumprimento parcial do julgamen-
to divino".151 Para ele, a perícope é um “fragmento poético” sobre os fenômenos
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escatológicos na morte de Jesus. Brown atribui os v. 51b-52 à tradição do AT e o


v. 53 à redação mateana.152 Assim, o autor de Mateus usou em sua redação uma
tradição conhecida.153
Wolfgang Trilling considera o evento como uma “antecipação simbólica
da ressurreição de Jesus crucificado... Mateus quer dizer: A morte de Jesus ocor-
reu já na nova era de reviravolta. A vida triunfou sobre a morte já no momento da

148
DAVIES, W. D.; ALLISON, D. C., Jr. ICC, p. 629. v. 3.
149
Ibidem, p. 634.
150
SCHLATTER, Adolf. Der Evangelist Matthäus: seine Sprach, seine Ziel, seine Selbstständig-
keit. Ein Kommentar zum ersten Evangelium, p. 785. v. 2 (cf. também, do mesmo autor, Das
Evangelium nach Matthäus, p. 276-277). Segundo Schlatter, “os dias da ressurreição foram prova-
velmente vivenciados pelo círculo dos discípulos não só posteriormente, mas já desde o início,
como o sinal do dia do Senhor, como o começo da ressurreição individual” (Idem. Der Evangelist
Matthäus, p. 785. v. 2).
151
BROWN, R. The Death of the Messiah: From Gethsemane to the Grave, p. 1126. v. 2. Em con-
cordância com ele, David Sim afirma que o episódio representa uma “cena do julgamento prolépti-
co” (Cf. SIM, D. The Gospel of Matthew and Christian Judaism: The History and Social Setting of
the Matthean Community, p. 226).
152
Ibidem, p. 1137-1140. v. 2.
153
Essa tese de que todo o v. 53 seria originalmente de redação mateana parece pouco provável. É
indiscutível que a expressão “após a ressurreição dele” (53a) é contraditória aos versos que a pre-
cedem, como demonstrado supra. Entretanto, a proposição da ressurreição dos santos que haviam
dormido também presente no v. 53a (“e, tendo saído dos sepulcros”) já está presente em 52bc (“e
muitos corpos dos santos que haviam dormido se levantaram”). Portanto, muito provavelmente
essa proposição já fazia parte da antiga tradição acerca da ressurreição dos “santos” que serviu de
fonte para o evangelista, tornando a hipótese da adição do v. 53 como um todo pouco plausível. A
dúvida que se impõe é se a fonte do redator mateano foi um texto estabelecido ou uma tradição
oral. No entanto, temos elementos para propor que a tradição foi a do ciclo de Daniel, conforme
verificamos neste trabalho, certamente já fixada por escrito.
297

morte de Jesus”.154 Ele considera a perícope como sendo um fragmento da páscoa


“cristã”.155
Eduard Schweizer considera que todo o parágrafo foi composto por Ma-
156
teus. Donald Senior também acredita que o próprio evangelista construiu a pas-
sagem especial de 27,51b-53 “com base em um tema corrente no judaísmo inter-
testamentário, um fundo rico em imagens apocalípticas ̶ terremoto, divisão de
rochas, abertura de túmulos, ressurreição daqueles que dormem na morte, retorno
vitorioso para a Cidade Santa ̶ estava disponível ao redator através de textos bí-
blicos e outros textos e tradições intertestamentários”.157 Ele assinala que a passa-
gem inclui tanto linguajar claramente mateano quanto conteúdo de material apoca-
líptico (ambos os quais são compatíveis com a composição da passagem por parte
do próprio evangelista). Senior ainda aponta para o background de Ez 37, mas le-
vanta a hipótese do uso do Sl 22:
Poderíamos perguntar se a estrutura profunda dessa cena já não havia sido defini-
da pelo uso do Sl 22, com seu próprio movimento impressionante de pranto por
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justificação e confissão. A redação da cena por parte de Mateus pode ser entendi-
da como uma exploração desta estrutura... A expansão de 27,51b-53 por meio da
tradição de Ezequiel e o coro da fé por parte dos soldados ecoam a conclusão tri-
unfal do Sl 22 e até mesmo refletem a primitiva apocalíptica que parece emergir
158
na parte final do Salmo (22,28-32).

Kilpatrick afirmou que a perícope de Mateus se refere a uma primitiva tra-


dição cristã acerca da paixão que o narrador mateano incluiu em seu relato da cru-
cificação,159 sem poder se precisar a que círculo judaico ela pertenceria. Josef S-
chmid também admite que não se pode ter certeza sobre a fonte da qual o autor
mateano retirou a perícope; admite que os santos, pela menção do terremoto, po-
deriam ser os que estavam enterrados nas cercanias de Jerusalém, entendendo a
154
TRILLING, Wolfgang. Christusverkündigung in den synoptischen Evangelien: Beispiele
gattungsgemäßer Auslegung, p. 195. Cf. também, do mesmo autor, The Gospel According to St.
Matthew, p. 260-261. v. 2.
155
Neste aspecto, a mesma opinião postula Philipp Seidensticker (cf. SEINDENSTICKER, P. Die
Auferstehung Jesu in der Botschaft der Evangelisten: Ein traditionsgeschichtlicher Versuch zum
Problem der Sicherung der Osterbotschaft in der apostolischen Zeit, p. 46; na p. 147, ele afirma
que “Mt 27,51-53 contém imagens individuais do tipo galileu da tradição da Páscoa”).
156
Cf. SCHWEIZER, E. Das Evangelium nach Matthäus, p. 337.
157
SENIOR, D. The Death of Jesus and the Resurrection of the Holy Ones (Mt 27:51-53). CBQ
38.3 (1976), p. 312-329; aqui p. 321; Idem. The Passion Narrative According to Matthew: A Re-
dactional Study, p. 307-323.
158
Idem. The Death of Jesus and the Resurrection of the Holy Ones (Mt 27:51-53), p. 324. O Sl
22,28-32 registra: “Todos os confins da terra se lembrarão e voltarão a Iahweh; todas as famílias
das nações diante dele se prostrarão. Pois a Iahweh pertence a realeza: ele governa as nações. Sim,
só diante dele todos os poderosos da terra se prostrarão. Perante ele se curvarão todos os que des-
cem ao pó; e por quem não vive, mais, sua descendência o servirá e anunciará o Senhor às gera-
ções que virão, contando a sua justiça ao povo que vai nascer: eis sua obra!”.
159
KILPATRICK, Georg D. The Origins of the Gospel According to St. Matthew, p. 47.
298

“abertura dos sepulcros” como consequência desse terremoto.160 Entretanto, men-


cionando os sinais da natureza (terremotos e eclipses) como característicos da re-
velação da ira divina no AT, o autor afirma que:
Mateus acrescenta-lhes [a esses sinais] a ressurreição dos mortos como um novo
sinal escatológico (cf. Dn 12,2), de modo que, dessa maneira, a morte de Jesus se-
ria, nos Sinóticos, entendida como o início do final dos tempos. De fato, pode-se
entender bem o traço surpreendente de que “muitos corpos dos santos já mortos
ressuscitaram” supondo que, com isso, se aluda a Dn 12,2 (“muitos dos que dor-
161
mem no pó da terra despertaram”).

Joachim Jeremias também assinala que se trata de uma tradição antiga,


pois a sentença metaV thVn e!gersin au*tou~ (53a) revela um dado cronológico que
tenta resolver uma dificuldade que era sentida já na época da redação do Evange-
lho: a questão do lapso de tempo entre a morte de Jesus e a entrada dos santos em
Jerusalém,162 conforme analisado acima. A relação com a ressurreição dos santos
do AT, segundo Jeremias, também evidencia a antiguidade dessa tradição. A res-
surreição dos santos está relacionada com o início do reino messiânico, em sentido
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escatológico, ao qual se relaciona Mt 28,18b: “Foi-me dada toda a autoridade no


céu e na terra”. Segundo ele, trata-se do cumprimento de Dn 7,14, onde se afirma
que ao Filho do Homem “foi outorgado o poder, a honra e o reino, e todos os po-
vos, nações e línguas o serviram. Seu império é império eterno que jamais passará,
e seu reino jamais será destruído”.163
Ulrich Luz assinala que todo o trecho de 27,51-53 pertence a uma tradição
pré-mateana e a própria perícope, como um todo, já possuía uma tradição cristã:
De mim mesmo, eu assumo que havia uma tradição cristã que desde o princípio
foi associada com a morte de Jesus e que expandiu a narrativa de Marcos da rup-
tura do véu do templo com outras manifestações tradicionais de teofania. Seu esti-
lo — orações principais curtas — não são exatamente não-mateanas, mas uma
164
reminiscência da descrição apocalíptica de Mt 24,29.

Ele até admite certa expansão em termos de imagens do linguajar apocalíp-


tico a partir de Ez 37, mas “referências a outros textos bíblicos — Is 26,19 e Dn
12,2 foram sugeridos — dificilmente podem ser provadas, uma vez que os conta-
tos verbais são muito escassos”.165
Conforme assinalado acima, foi levantada também a hipótese de a perícope

160
SCHMID, Josef. Das Evangelium nach Matthäus, p. 370-371.
161
Ibidem, p. 367.
162
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento, p. 438-439.
163
Ibidem, p. 310.
164
LUZ, Ulrich. Matthew 21-28: A Commentary, p. 561.
165
Ibidem, p. 562.
299

estar relacionada à tradição da descida do Cristo ao Mundo dos Mortos, exercendo


lá alguma atividade, como afirma 1Pd 3,18-20, pois “ressuscitar significa então
romper os laços da morte e dos infernos (At 2,24), tendo o Cristo vitorioso con-
quistado as chaves da habitação dos mortos (Ap 1,18)”.166 J. Kuerzinger faz uma
assertiva vaga, sem esclarecer a questão, afirmando que “Mt 27,52 só indiretamen-
te está em relação com a descida de Jesus aos infernos”.167 Essa hipótese, entretan-
to, dificilmente se harmoniza com a tradição de Mt 27,51b-53; o próprio Evange-
lho de Mateus, como um todo, parece desconhecer a tradição da descida ao Hades.
Estudos mais recentes se concentram mais no papel da perícope no conjun-
to do texto de Mateus, não desprezando a crítica histórica da fonte, mas sem atri-
buir a ela demasiado valor, pois por si só ela não ilumina muito o entendimento de
Mt 27,51b-53 em seu atual contexto no evangelho.
Recentemente, Jens Herzer assinalou que a perícope deve ser primeiramen-
te compreendida em seu contexto atual levando em conta o objetivo e a mensagem
do autor mateano ao inseri-la precisamente neste ponto de seu relato da paixão.168
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Waters discorre sobre Mt 27,52-53 como sendo o mesmo tipo de profecia apoca-
líptica que é encontrada em textos do Apocalipse (como o capítulo 21 e seu con-
texto); para ele, “o Apocalipse pode fornecer uma chave hermenêutica para seções
obscuras do Mateus apocalíptico, particularmente Mt 27,52-53”.169 Em relação à
origem da narrativa, C. S. Keener, embora não entendendo a perícope como apo-
calíptica, sugere que, pelo fato de Mateus não retirar esses sinais de Marcos, “o
estilo desses versos sugerem que ele [o redator] segue uma outra fonte pré-
Mateana, a qual era ‘circulante nos meios populares’”.170
Serge Wüthrich assinala que a perícope marca uma ruptura geográfica e
temporal em relação ao que vinha sendo narrado pelo evangelista. Usando a análi-
se semiótica, ele assinala que ocorre um afastamento temporal proléptico em dire-

166
De LEEUW, V. Infernos. Descida aos. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 730-731; aqui
p. 731.
167
KUERZINGER, J. Infernos (descida aos). In: BAUER, J. B. (Ed.). DTB, p. 517-522. v. 1; aqui
p. 519. Para uma investigação sobre o desenvolvimento dessa tradição, cf. ROBINSON, J. N. Des-
cent into Hades. In: BUTTRICK, G. A. (Ed.). IDB, p. 826-828. v. 1.
168
HERZER, J. Auferstehung und Weltende als Rätsel? Zur Funktion und Bedeutung von Mt
27,51b-53 im Kontext der matthäischen Jesus-Erzählung. In: BOETTRICH, C. (Ed.). Evangelium
ecclesiasticum: Matthaeus und die Gestalt der Kirche, Festschrift für Christoph Kaehler zum 65.
Geburtstag, p. 51-68.
169
WATERS, K. L., Sr. Matthew 27:52-53 As Apocalyptic Apostrophe: Temporal-Spatial Col-
lapse in the Gospel of Matthew. JBL 122.3 (2003), p. 489-515; aqui p. 501.
170
KEENER, Craig S. A Commentary on the Gospel of Matthew, p. 685.
300

ção ao que acontece após a ressurreição de Jesus.171 Os eventos descritos sinali-


zam para a morte de Jesus como a revelação do início de uma nova era.172
John Nolland, em seu recente comentário, acredita que a sentença “os se-
pulcros foram abertos” (52a) ecoa o linguajar de Ez 37,12-13; para a sentença
“muitos corpos dos santos que haviam dormido se levantaram” (52bc), a “tradição
de Mateus provavelmente tinha apenas ‘os santos se levantaram’, com ‘os santos’
retirado de Zc 14,5 com base em uma interpretação da vinda dos santos lá [em Za-
carias] como acontecendo através da ressurreição”.173 Para o eufemismo do “so-
no” e a expressão “muitos” (52b), o evangelista muito provavelmente teria sido
influenciado por Dn 12,2.174 Mateus aplica uma “visão escatológica” a esses even-
tos.
N. T. Wright e D. Hagner estão entre os poucos que mencionam Dn 12,2
fazendo eco na perícope mateana, mas não mencionam a tradição daniélica e nem
aceitam que a perícope de Dn 12,1-3 como um todo seja a única fonte para o e-
vangelista.175 Wright aceita a influência somente da sentença “e muitos daqueles
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que dormem no pó da terra acordarão” (Dn 12,2a), e isso a partir do texto de Da-
niel na LXX. Para a perícope como um todo, ele afirma que o “ponto de partida
natural” é Ez 37,12-13, e que Is 26,19 faria eco pela sentença “os teus mortos tor-
narão a viver, os teus cadáveres ressurgirão” (Is 26,19a), ambos também a partir
da LXX. Já Hagner afirma que “o ressuscitar dos santos dos túmulos nesta passa-
gem é um fragmento de teologia estabelecido como história”;176 para o back-
ground da perícope mateana, ele assinala influência tanto do texto de Isaías quanto
de Dn 12,2, mas principalmente de Ezequiel: “Podemos, portanto, considerar a
passagem como um fragmento de apocalíptica realizada e historicizada na depen-
dência de motivos do AT encontrados em passagens como Is 26,19, Dn 12,2 e,
especialmente, Ez 37,12-14”.177
Troxel afirma que o próprio evangelista compôs a perícope com base em
1En 93,6, e seu objetivo não foi sinalizar o início de uma nova era, mas sim levar

171
WÜTHRICH, Serge. Naître de mourir: la mort de Jésus dans l’Évangile de Matthieu (Mt 27.51-
56). NTS 56.3 (2010), p. 313-325; aqui p. 319-320.
172
Ibidem, p. 320-322.
173
NOLLAND, John. The Gospel of Matthew: A Commentary on the Greek Text, p. 1214.
174
Ibidem, p. 1214-1215.
175
WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God, p. 633 (Christian Origins and the Ques-
tion of God, v. 3).
176
HAGNER, Donald A. Matthew 14-28, p. 851. v. 2 (Word Biblical Commentary, 33).
177
Ibidem.
301

à confissão do centurião em 27,54.178 A interpretação de Troxel acerca da origem


e da finalidade da composição da perícope permanece isolada, e sua argumentação
pouco convincente. Já Wofgang Wiefel assinala que, com Mt 27:51b-53, a morte
de Jesus se torna o ato central da consumação escatológica; a morte de Jesus é vis-
ta por Mateus como o começo da era da salvação.179 Num estágio bem primitivo
do cristianismo, a morte de Jesus estava fortemente ligada à ressurreição geral.180
Também recentemente, Y. S. Chae entende a perícope a partir do que ele
chama de “tradição escatológica do pastor Davi”, com a qual o redator mateano
estaria interagindo;181 segundo ele, a apresentação mateana de Jesus continua a
tradição vétero-testamentária do Rei Davi como pastor por excelência, embora
Mateus ecoe também “alguns desenvolvimentos significativos dessa tradição du-
rante o Período do Segundo Templo”,182 especialmente relativos à escatologia ju-
daica. Ele assinala que na perícope de Mt 27,51b-53 “Mateus continua a interagir”
com essa tradição, especialmente a partir de Ez 37 e Zc 14.183 Já Willibald Bösen
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entendeu na perícope uma escatologia presente na época da composição do evan-


gelho; Mateus descreve o que ele vê com o “interior” de seus olhos: no momento
da morte de Jesus a promessa escatológica da ressurreição dos santos se torna rea-
lidade. Ele ainda considera a perícope como sendo um hino “apocalíptico judai-
co”.184
Por fim, observa-se que todos os estudos acerca da origem da perícope a-
pontam na direção da busca sobre as raízes bíblicas e judaicas das imagens usadas
por Mateus. A maior parte desses estudos destaca o significado escatológico dos
sinais, em particular o sinal considerado central: a ressurreição dos mortos. A pe-
rícope faria, então, menção ao significado da morte de Jesus, e sua função dentro
do Evangelho deve ser entendida primeiramente sob este ponto de vista.
178
Cf. TROXEL, Ronald L. Matt 27.51-4 Reconsidered: Its Role in the Passion Narrative, Mean-
ing and Origin. NTS 48.1 (2002), p. 30-47. O texto de 1En 93,6 relata: “Na quarta semana, no seu
fim, haverá visões dos santos (anjos) e dos justos, e uma lei será dada para todas as gerações (Si-
nai) e um cercado será fincado para eles (conquista)”.
179
WIEFEL, Wolfgang. Das Evangelium nach Matthäus, p. 478.
180
Sob essa última perspectiva, cf. também DAVIES, W. D.; ALISSON, D. C., Jr. ICC, p. 629. v.
3, com respeito a Rm 1,4 e 1Cor 15,20, textos a partir dos quais essa interpretação seria plausível.
181
Cf. CHAE, Young S. Jesus As the Eschatological Davidic Shepherd: Studies in the Old Testa-
ment, Second Temple Judaism, and in the Gospel of Matthew, p. 328-340.
182
Ibidem, p. 5.
183
Ibidem, p. 337. No caso de Zacarias, este autor se aproxima da abordagem de Charlene McAffe
para o Evangelho de Mateus, a qual identifica traços de Zacarias juntamente com outras tradições
proféticas, o que , segundo ela, foram “combinados variadamente ou agrupados por exegetas antes
de Mateus”, os quais estariam “dentro de sua consciência bíblica” (cf. MOSS, C. McAfee. The
Zechariah Tradition and the Gospel of Matthew, p. 215).
184
BÖSEN, Willibald. Der letzte Tag des Jesus von Nazaret, p. 308.
302

A perícope é em geral considerada como parte de uma tradição pré-


mateana incorporada pelo redator do evangelho. O evangelista integrou cuidado-
samente essa perícope (seja retirada de uma fonte literária pré-existente ou somen-
te da tradição oral) em sua narrativa da paixão e em sua teologia como um todo.
Interessante notar que entre os principais estudos não se aprofunda a possi-
bilidade de a tradição de Dn 12,1-3 ser background e fonte principais da perícope.
Os únicos que admitem alguma possibilidade de parca ligação entre Dn 12 e Mt
27 são Josef Schmid, D. Hager e N. T. Wright (cf. citados supra); entretanto, suas
análises normalmente se restringem a uma única sentença de Dn 12,2, além do que
esta influência imiscui-se a outras (como Ezequiel, Isaías ou Zacarias). No entan-
to, são encontradas evidências suficientes para se propor que o texto de Dn 12,1-3
pode ser compreendido como uma fonte potencial dos motivos185 presentes na pe-
rícope mateana.
Os textos de Ez 37, Is 26 e Zc 14 tem como foco principal a restauração da
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nação. Quando se foca o tema da ressurreição, por exemplo, a referência é feita à


nação como um todo como uma ressurreição (cf. assinalado supra). Em Mt 27 está
presente a tradição de martírio que tem como consequência a ressurreição indivi-
dual com intuito de se estabelecer justiça, o que se coaduna melhor com o texto de
Dn 12 (cf. infra).
Mesmo sendo o próprio evangelista que tenha composto a perícope, ele o
faz pautado em um tema corrente no judaísmo intertestamentário, e o fato de in-
corporar essa tradição na cena da morte de Jesus faz com que esses versos se tor-
nem uma importante parte da interpretação do evangelista sobre o evento da morte
de Jesus, certamente com uma função específica ali.
Além das abordagens usuais da tradição histórica (crítica da fonte e da tra-
dição), deve-se levar em conta os diferentes aspectos da narrativa a partir também
de uma perspectiva intratextual, ou seja, dentro do contexto do Evangelho de Ma-
teus. Essa última abordagem abre novas perspectivas para melhor compreensão
tanto do significado quanto da função dessa perícope no Evangelho, bem como da
teologia pragmática (isto é, o objetivo teológico) dessa passagem dentro da histó-
ria mateana de Jesus. O texto pode ser compreendido não somente como uma res-
surreição parcial e prospectiva, como normalmente é aceito, mas também como
uma referência aos santos cujos túmulos já foram mencionados em Mt 23 e que

185
Aqui, mais uma vez, o termo é usado no sentido da motivgeschichte (“história dos motivos”).
303

entram na cidade santa como um testemunho do significado da morte de Jesus,


especialmente contra aqueles que são responsáveis por ela.
A morte de Jesus é normalmente vista como um marco escatológico e apo-
calíptico de virada na história da salvação, inaugurando, emblematicamente, a res-
surreição escatológica dos mortos. Obviamente, como o texto ressalva, “após a
ressurreição dele [Jesus]” (53a). De fato, Mateus parece interpretar a morte de Je-
sus como um momento fulcral para a história da salvação.186 De qualquer forma, a
inclusão do sinal da ressurreição dos santos como um dos resultados imediatos da
morte de Jesus revela a importância da morte de Cristo para a comunidade matea-
na como ponto de virada na história da salvação. Já na designação do nome de Je-
sus em Mt 1,21 pode-se ver não apenas uma denominação tradicional messiânica
de Jesus, mas também uma concepção cristã de que Jesus é o salvador cuja missão
é salvar o povo de seus pecados. E é a morte de Jesus que propicia a ressurreição
dos santos: esta é a característica nova e peculiar que Mateus traz para a tradição
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sinótica.

186
MEIER, J. P. Salvation-History in Matthew: In Search of a Starting Point. CBQ 37.2 (1975), p.
203-215 (para uma perspectiva diferente da visão de Mateus acerca da história da salvação, cf.
KINGSBURY, J. D. The Structure of Matthew’s Gospel and His Concept of Salvation-History.
CBQ 35.4 (1973), p. 451-474.

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