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Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Março de 2012
Carlos Mario Nascimento Alvarez
201 f. ; 30 cm
Inclui bibliografia
CDD: 800
Resumo
Palavras-Chave
Nietzsche, Filosofia; Filósofo-Artista; Andarilho; Zaratustra; Filosofia;
Arte; Música; Pulsão.
Abstract
thought through formulations arising from his own body. Thus, emotions,
physicality, moods, drives and power are elements that give consistency to a
thought that dared to distance itself from the western metaphysical tradition and
fit in a new insignia: the postulation of the philosopher-artist.
Keywords
Nietzsche; Philosophy; Philosopher-Artist; Wanderer; Zarathoustra; Art;
Music; Pulsion.
Sumário
Introdução 13
Bibliografia 199
As obras de Nietzsche citadas nesta tese seguirão por base a edição crítica das
obras de Nietzsche (Kritische Studienausgabe) publicadas por Giorgio Colli e
Mazzino Montinari, (KSA) em 15 volumes, editada por de Gruyter, Berlin/New
York 1967 (segunda edição revista em 1988).
[DS] David Strauss der Bekenner und der Schriftsteller (David Strauss, o
confessor e o escritor)
[HL] Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben (Da utilidade e
desvantagem da história para a vida)
Sófocles)
propriedade cuja característica foi a de existir fora de si. Se algo existe fora de si,
então esta existência ocupa múltiplos lugares.
Ocorre que o pensamento de Nietzsche não é um vetor que vai de um
ponto a outro, mas uma pletora de elementos que se alinham (e se desalinham)
com o exercício do pensar. Essa é a potência do seu pensamento. Ele não
investiga, constata; não especula, afirma, e, sobretudo, não deduz, experimenta. O
pensamento de Nietzsche é exercício de um devir cuja corporalidade não se
identifica com os domínios de um corpo individualizado, mas que fez de si um
exercício de expansão de maneira tal que todos os corpos, entre o micro e o
macro, em qualquer nível que se apresentem, podem transferir-se, transmutar-se e
transfundir-se de maneira a configurarem-se outros corpos. Daí a peculiaridade de
seu pensamento: dialoga-se com a política, a história, a arte, a ciência. Tudo são
corpos. O pensamento de Nietzsche é, nesse sentido, um corpo que interage com
outros corpos e os recria. Esse pensar tem por mecanismo a ação de criar e
destruir corpos em um exercício inesgotável. É dessa forma que ele existe. É
dessa forma que ele faz filosofia.
Trata-se de um estado de desprendimento que permite a alguém figurar-se
nos planos difusos que estão aí, sem que isso se restrinja a ser sinal de
excentricidade, megalomania ou qualquer adjetivação cuja semântica aluda à
loucura. Se existem em Nietzsche, essas dimensões figuram como valências em
14
A recusa em habitar um corpo ditado pela moral, pelas leis da cultura, foi a
recusa a sucumbir diante dos exercícios de subjugação que são infringidos pelos
homens que servem a causas religiosas. Em Nietzsche, religioso é tudo aquilo que
age por catequese e que, por conseguinte, submete a pulsão e o corpo ao domínio
implacável da história. O religioso é o que se pretende no lugar da verdade: a
Ciência e a Filosofia são típicas religiões que induzem à fé através da doutrina,
criando, desta feita, um lugar inequívoco para a verdade. No entanto, essa verdade
oriunda do religioso é marcada pela supressão do corpo como potência e pelo
oferecimento do dogma como elemento de ligação entre os corpos.
Para poder superar as falácias e miragens próprias à pretensiosa ação da
doença chamada “eu”, tanto no nível mais próximo quanto nos níveis históricos,
Nietzsche teve que se haver com a arte. A arte, tomada em seu sentido mais
depurado, ou seja, como dispositivo criador das formas de vida, é a resultante que
possibilita ao homem aceder a um nível de compreensão das coisas de maneira tal
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que se passa a habitar uma atmosfera além das oposições valorativas (bem e mal,
por exemplo).
A arte, como dispositivo capaz de reconfigurar os corpos, é aonde chega o
exercício do pensamento de Nietzsche. Ao longo da vida, sua batalha não foi
outra senão pensar as condições de afirmação da arte. Fundamental é ressaltar que
ele não fez isso através da construção de nenhuma nova escola, doutrina, sistema
ou pedagogia. A arte e o pensamento sobre a arte — o que, em Nietzsche, é a
mesma coisa — foram estabelecidos através de toda sorte de experimentações. O
pensamento de Nietzsche quer sua existência a despeito de sua utilidade. Ele quer-
se como potência em expansão, no lugar mesmo em que a arte está situada: um
lugar extremo, de altitude máxima, de difícil acesso, à prova de ataques dos
vorazes saqueadores da vida. O pensamento de Nietzsche concebeu-se afinado ao
dispositivo da arte uma vez que sua existência justifica-se na imanência do estar
aí, própria daquilo que existe em fluxo, desprovido de intuito, causa,
determinação, meios e fins.
Esta tese tenta forjar um caminho possível para o entendimento da peculiar
relação que se estabeleceu entre o pensamento de Nietzsche e a arte. Arte e
pensamento, em Nietzsche, estão mutuamente implicados e são partes
simetricamente opostas de um corpo. A filosofia de Nietzsche opera no registro da
16
1
“O filósofo-artista. Concepção superior da arte. Poderia o homem se situar assim tão longe dos
outros homens quando ele os quer modelar? (- exercícios preliminares: 1. O que modela a si
mesmo, o eremita; 2. O artista até hoje, como o pequeno arrematador de uma matéria)”. WP 795.
17
começará a dizer sim à vida e, sobretudo, pensar na crítica aos valores e a moral.
O Capítulo 3, Musicalidade em Nietzsche, trata especificamente do tema
da música na vida e obra do filósofo. Sabe-se que ele foi um exímio improvisador
ao piano, além de ter composto em torno de sessenta peças musicais. Muitas
dessas obras são belas composições (às vezes, perturbadoras, como não poderia
deixar de ser!) e mostram o trabalho intenso de um compositor comprometido
com seu ofício. Nietzsche era um amante da música e conhecia muito bem teoria
musical. Era capaz de compor de forma genuína e de problematizar questões
complexas nessa arte. Ele se dedicou à prática da música e estudou, de forma
disciplinada, na infância, adolescência e início da vida adulta. Aqui são abordados
quatro pontos específicos: os improvisos, as composições, a querela em torno de
sua composição musical Manfred Meditation e a dimensão fisiológica de seu
pensamento musical. Esses elementos são todos importantes na medida em que
apontam para a construção do estilo em Nietzsche e nos ajudam a entender as
dimensões artísticas do seu pensamento.
O Capítulo 4, A arte de Zaratustra: do flerte com o ponto abismal ao
canto como morada do corpo, apresenta Zaratustra como a criação musical por
excelência na obra de Nietzsche. Zaratustra, discípulo de Dioniso e, ele próprio
andarilho, é um duplo de Nietzsche — um personagem mítico, meio-bufão, meio-
18
extremo júbilo. Zaratustra, ao flertar com o ponto abismal, acede à arte como
dispositivo fundamental para a restauração do mundo e de todas as coisas, com
base em novos valores. Na música e na dança, Zaratustra encontra a extensão de si
mesmo: ele é a música e a dança.
No último capítulo desta tese, Conclusões: Nietzsche, o filósofo-artista,
apresentam-se, de forma decantada, vinte idéias que apontam para as constatações
resultantes do trabalho aqui apresentado. Buscou-se afinar os argumentos
trabalhados ao longo dos quatro capítulos desta tese, com o intuito de dar clareza,
transparência e materialização aos elementos que apontam para as consequências
do estudo realizado nesta tese. Essas conclusões estão problematizando o tema da
arte em Nietzsche de maneira a poder substancializar aquilo que foi interesse e
ambição em nossa pesquisa: Nietzsche e a experiência do filósofo-artista.
Capítulo 1
Nietzsche e a Experiência do Vivido
Quando redige seu Ecce Homo, Nietzsche situa a sua grande preocupação:
é preciso dirigir-se ao leitor numa última tentativa — a de elucidar, dentro do
possível, as especificidades e motivações que animaram o seu percurso. Ecce
Homo é uma tentativa de estabelecer um testemunho muito particular sobre uma
obra que foi toda concebida como a experiência [erfahrung] de um filósofo sobre
suas vivências [erlebnisse]4. Esse fato leva Nietzsche a se pronunciar, nesse livro
de fechamento, a respeito de suas motivações e razões. Aqui, sobrepõem-se os
planos biográficos, históricos, filosóficos, artísticos e científicos. Ecce Homo foi
concebido para assinar o conjunto de sua obra e dar-lhe uma intenção de percurso.
Trata-se de um ato de cuidado, de zelo consigo próprio e com uma obra que seria,
cada vez mais, lida em amplas dimensões.
2
Em 1888, menos de um ano antes de sofrer o colapso que o levaria a um estado de
demenciamento sem volta, Nietzsche escreve Ecce Homo - Como alguém se torna o que é. Trata-
se de sua autobiografia. Esse texto assume, neste primeiro capítulo, importância fundamental para
o desdobramento dos argumentos apresentados ao longo de toda a tese. Grande parte das ideias
sustentadas neste capítulo deriva de uma análise criteriosa desse importante texto que se tornou,
aqui, referência principal. O testemunho de Nietzsche não deixa equívoco: sua filosofia se
constituiu como uma resposta às afecções e suas relações com as diversas estratificações da forma
de pensamento — desde o mais intimista ao metafísico. Em outras palavras, Ecce Homo é o
testemunho derradeiro da experiência de como Nietzsche subverteu, à sua maneira, a metafísica e
formulou a experiência do filósofo-artista. Esta tese terá como propósito desenvolver essa ideia às
últimas consequências.
3
EH Porque escrevo tão bons livros 1, KSA 6, p.298-301
4
As vivências situam-se no plano daquilo que é indizível, e as experiências são os meios através
dos quais se pode dizer a respeito das vivências.
20
No caso dos ditos “efeitos de ilusão”, tal como mencionado acima, trata-se
de algo inevitável: sabe-se que um escrito, sobretudo um certo tipo de filosofia,
tende a despertar o universo imaginário e cai no gosto do leitor comum se for
capaz de provocá-lo a pensar e incitá-lo a tornar-se receptivo a tudo aquilo que
pode se apresentar como deflagador de interesse. Em outras palavras, um texto
dessa ordem é capaz de ser de forte apelo, a ponto de induzir o leitor a ser tomado
por um interesse visceral em compartilhar as múltiplas ideias, imagens e
intensidades que do texto emanam, de maneira a pensar a si próprio através do
exercício da leitura.
Pois bem, essa primeira dimensão é aquela mais propensa a despertar
paixões, induzir a reações, introjeções e formações de opinião pessoal. No caso de
Nietzsche, seus leitores se deixam envolver pelo manancial de argumentos,
deslocamentos e figurações que seu texto provoca. Esse nível de relação com o
texto desperta em seus leitores as mais variadas formas de interação. Pode-se
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5
Faz-se alusão aqui, principalmente àqueles leitores que se utilizam de recortes do texto
nietzschiano com o intuito de referendar posições políticas, ou seja, a todo tipo de uso ideológico a
que a obra parece se prestar.
6
Nunca é demais lembrar o uso perverso que fizeram os nazistas da obra de Nietzsche.
7
Quanto a isso, vale lembrar que Zaratustra, quando desce da montanha após dez anos de exílio
voluntário, de início, se dispõe a anunciar as boas novas à multidão. Trata-se de apresentar o além-
do-homem, aquele que deveria superar o homem e instaurar uma nova era. Zaratustra não foi
compreendido e obteve como resposta gargalhadas de desprezo e escárnio. Em seguida, concluiu
que não devia falar para a multidão, pois ela odeia aquele que enuncia verdades inauditas.
Resolveu que seguiria em frente não como pregador de rebanho, mas como aquele que cantaria
para poucos. Poucos privilegiados: “Entoarei meu cântico aos solitários; aos que se retiraram
sozinhos ou aos pares para a solidão; e a quem quer que tenha ainda ouvidos para as coisas
inauditas, confranger-lhes-ei o coração com minha aventura” (Za prólogo, KSA 4, p.27).
8
Máximas e aforismos não se confundem. Enquanto a máxima condensa uma verdade através de
uma sentença contundente e enxuta, o aforismo expande o sentido ao mostrar-se um pensamento
complexo e agenciador de outros aforismos O aforismo tem por característica abrir o campo dos
sentidos e remeter o leitor a um exercício de investigação. Portanto, diferente das máximas, que
restringem o sentido a um universo fechado em si, ou seja, próximas de uma verdade acabada, os
aforismos implicam instaurar a suspeita e recusar o dogma.
9
JGB 237.
10
Trata-se da sessão 237, intitulada “Máximas de mulher”. Aqui, Nietzsche se utilizou do recurso
da paródia para reescrever provérbios alemães sobre as mulheres.
22
direto com situações cruciais, elementares, decisivas que lhe obrigam a realizar
deslocamentos quanto às suas certezas... O texto de Nietzsche tem o raro
refinamento de tocar o inaudito das maneiras mais variadas, de forma a lançar o
leitor no inusitado de si próprio. Trata-se, em última instância, da possibilidade de
uma comunicação entre vivências.
Sob essa perspectiva, cabe ao leitor inventar seu próprio Nietzsche, tomá-
lo como lhe convém, servir-se de suas palavras e ideias sempre expostas à flor da
pele, sempre em tom afirmativo ou contundente. Surgem múltiplos Nietzsches,
tantos quanto seus leitores. O processo é o de fantasiar ou mesmo criar uma
textualidade que nasceria supostamente “respaldada” pelas palavras do filósofo.
Ou seja, nessa perspectiva, Nietzsche é tomado como uma referência inspiradora,
sem que, necessariamente, o leitor esteja em condições de penetrar nas dimensões
mais substanciais do pensamento do autor de A gaia ciência. Em geral, o texto
afirmativo –– rico em figuras, tipos, composto por analogias e paródias –– tende a
exercer forte sedução sobre os leitores comuns, sobretudo aqueles que estão em
11
O caminho que tomou Nietzsche para construir seu pensamento deu margem a dotar sua
filosofia de certas aparências que emitem signos próximos aos mais diferentes campos de
conhecimento. Em Nietzsche, música, filologia, ciências naturais, poesia e política têm estatutos
de arte; por isso se desprendem de seus vícios de pertencimento originais, tornando suas valências
móveis e comunicáveis entre si. O produto resultante desse movimento é constituir uma filosofia
externa a si própria ou, ao menos, capaz de dispensar sua fixidez a seu patrimônio milenar (o
exuberante edifício da metafísica) e redesenhar-se sob a égide de outras alianças.
23
busca de anuência para suas convicções ou eco para suas intuições. O texto de
Nietzsche, por ter essas características, aparenta, em princípio, ser portador de
uma forma “convidativa” que possa atender às questões e desejos do leitor
comum.
Deleuze é um dos autores em Filosofia que insistiram na ideia de que o
texto filosófico é polissêmico e abriga uma infinidade de interesses, leitores e
relações de leitura. Ele admitia que um texto de Spinoza pudesse ser lido em
diversos registros, sendo um deles, por exemplo, o de ser tomado como música.
Ou seja, o filósofo francês afirma que não é preciso ser filósofo ou estar
aparelhado com as ferramentas próprias ao mundo interno da Filosofia para que
uma leitura de um texto escrito por um filósofo possa produzir efeitos de
compreensão. Aliás, em Deleuze, trata-se menos de compreensão do que da
possibilitação de encontros que evoquem sensações, estados de espírito, emoções.
A partir daí, produzem-se efeitos. Quanto mais leitores heterogêneos um texto
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puder abrigar, maior deverá ser seu poder de alcance no tocante àquilo a que se
propõe. Isto é, uma obra filosófica não será grandiosa se for hermética, mas, ao
contrário, se os signos que emitir forem capazes de ampliar o espectro de interesse
dos leitores e envolvê-los em torno de movimentos, e não de causas ou
determinações específicas. Deleuze lê Nietzsche também dessa forma; ele admite
uma série de entradas e saídas no texto e, exatamente por isso, reconhece neste
autor algo de magnânimo:
Tem uma coisa que me reconforta muito. Acho que há várias leituras de uma
mesma coisa e acredito piamente que não é preciso ser filósofo para ler filosofia.
A filosofia é suscetível, ou melhor, precisa de duas leituras ao mesmo tempo. É
absolutamente necessário que haja uma leitura não-filosófica da filosofia, senão
não haveria beleza na filosofia. Ou seja, não-especialistas lêem filosofia e a
leitura não- filosófica da filosofia não carece de nada, possui sua suficiência. É
simplesmente uma leitura. Isso talvez não valha para todos os filósofos. Vejo com
dificuldade uma leitura nã0-filosófica de Kant, por exemplo. Mas um camponês
pode ler Spinoza. Não me parece impossível que um comerciante leia Spinoza.12
12
G. DELEUZE, Abecedário, inédito. Transcrição livre.
24
Nietzsche.
Nietzsche é um autor cujo texto reflete seu pensamento in loco. Ele se dá
ao leitor de maneira tal que tudo se passa na esperança de que seu texto seja
impactante. Para isso, não mede esforços: escreve pensando nos leitores, busca
expressão, busca a forma de maneira tal que o que escreve seja acolhido com
proporcional intensidade ao que sente. Nietzsche não é um escritor de esboços, de
reflexões; cada aforismo tem o valor de uma pequena obra de arte. Há, sem
dúvida, um pensador-escritor muito atento às estratégias necessárias para gerar
efeitos em seus leitores. É difícil supor que ele escrevia intuitivamente ou sem
pretensões de atingir um público.
Ao escrever, Nietzsche é um estrategista –– ele visa à clareza, ao impacto
do que afirma; nada é feito sem cuidado, sem um propósito criterioso. A partir
disso, percebe-se que sua preocupação é a de chegar próximo dos leitores. Ele
intuía formas de escrita que pudessem atrair as pessoas, pois trazia em sua forma
de pensar o desejo de ser escutado. Isso aponta para uma sensibilidade empática
junto ao público uma vez que não se pode desconsiderar a expectativa que ele
manifestava de que as pessoas pudessem compartilhar de suas intenções.
13
O Capítulo 4 desta tese está inteiramente dedicado a pensar a figura de Zaratustra dentro da
dimensão da criação artística.
25
como um panfletário da causa wagneriana, estaria livre para lapidar seu discurso
da maneira que melhor lhe conviesse. De qualquer forma, panfletário ou não, com
ou sem Wagner, o estilo sempre foi uma preocupação para Nietzsche. Com isso,
quer-se chamar a atenção para o fato de que sua escrita, preocupada com a
recepção do público, ou com a formação de um grupo específico de leitores,
ousou erguer-se a partir de critérios estéticos onde a clareza, a concisão e a
sensibilidade da escrita eram aspectos tão importantes quanto aquilo que se queria
dizer. Afirmar isso é chamar a atenção, desde o início, para o fato de que uma
postura inegavelmente artística era o que animava a escrita do filósofo.
Na conversa com o amigo, também escritor, ele vai além dessa dica e, na
sequência da carta, faz uma crítica ao estilo que Fuchs imprime a seus escritos de
até então. Trata-se aqui, como o próprio filósofo denominou, de propiciar uma
“epístola didática” sobre o estilo literário a seguir. Entre as recomendações de
Nietzsche, estavam dicas como: 1) não escrever frases muito longas, além do
conveniente, de modo a não exaurir o leitor; 2) não escrever sobre arte de maneira
ostensivamente erudita (pois, segundo sua percepção e a de outros amigos
leitores, Fuchs abusava de termos e conceitos científicos em língua estrangeira);
3) era preciso dar força e ênfase aos pontos essenciais (argumentos principais)
14
FNC, Vol.III, 729.
26
uma vez que Fuchs parecia se perder em ideias secundárias e, mesmo, não
trabalhar suficientemente as mais importantes; 4) o segredo dos bons escritores
estaria no fato de jamais escreverem de forma aguda e sutil.
Nietzsche busca o chamado “grande estilo”: o texto deve ser claro, ter seu
próprio ritmo cadenciado, repleto de dinâmicas que ditam o andamento da leitura.
O leitor cavalga por entre as palavras. Tudo se constitui a partir da lógica entre
fluxo e refluxo. Sem dúvida, uma escrita passional:
Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do estilo. Comunicar
um estado, uma tensão interna de pathos por meio de signos, incluído o tempo
destes signos –– eis o sentido de todo estilo; e considerando que a multiplicidade
de estados interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades
de estilo –– a mais multifária arte do estilo de que um homem já dispôs.15
15
EH Por que escrevo tão bons livros 4, KSA 6, p. 304.
16
Ibid.
27
17
Za Do caminho do criador, KSA 4, p. 80.
28
18
Walter Kaufmann, em Nietzsche – philosopher, psychologist and anticrhist, obra que se tornou
referência para os pesquisadores de Nietzsche, sustenta que a aparente facilidade com que se
podem ler os aforismos, sobretudo em sua independência, esconde, na verdade, o real problema:
por não ser uma obra sistematizada e repleta de referências, considerações e achados estabelecidos
de forma pulverizada, o pensamento de Nietzsche oferece as maiores dificuldades por conta dos
efeitos “dispersivos” que poderiam suscitar seus, muitas vezes, contraditórios aforismos. Segundo
Kaufmann, o estilo de escrita nietzschiano deve ser chamado de “monadológico” por cristalizar a
tendência de cada aforismo ser autossuficiente e, ainda assim, iluminar a compreensão de quase
todos os outros aforismos. Ainda, segundo Kaufmann, o leitor se vê “confrontado com um
universo pluralístico no qual cada aforismo é, ele próprio, um macrocosmo” (KAUFMANN, 2005,
p.73). No entanto, queremos crer que é esse justamente o argumento que corrobora nossa ideia de
29
qual também fazia parte, Nietzsche seguiu em frente, retirando de seu caminho
todas as peças que pudessem atravancar seu movimento. O texto de Nietzsche é
movimento; ele procura espaço. A inquietude dele é a condição para seguir seu
rumo.
O amor ao pensamento e a certeza de sua potência fazem com que o que
ele escreve tenha o dom de ressignificar os problemas concernentes à verdade.
Esse tom de revelação afirmativa, que acaricia e entusiasma o leitor –– esse é
nosso argumento ––, é, ele próprio, um dos marcos da experiência nietzschiana.
Nietzsche precisa do leitor como testemunha, como cúmplice e, certamente, como
companheiro de empreitada. Sua escrita compulsória e compulsiva se direciona a
alguém que deva compreendê-lo incondicionalmente, o que, para tal, é preciso um
esforço de grandes proporções. Esse, ao menos, é o tom dado por ele em Ecce
Homo.
É justamente nesse ponto que há a suspeita de que o leitor, em geral, não
tem estofo para ter acesso aos estratos mais altos do pensamento propriamente
apresentado por ele. Sua sensação de que não é bem assimilado ou de que é mal
compreendido é constante.
que há vários níveis de leitura em Nietzsche, todos eles, a princípio, passíveis de serem legítimos
independentemente do que produzam como efeito.
30
Nietzsche relata essa angústia, por assim dizer, em sua autobiografia, não
deixando dúvidas acerca do fato de que, ao final de sua vida, a despeito de todas
as estratégias e esforços, ele era um autor cujos escritos estariam para sempre
fadados à polissemia e, portanto, à multiplicidade de entendimentos e, também,
inevitavelmente, de equívocos. Aqui, é evidente o fato de que o suposto não
hermetismo dos aforismos, assim como seu caráter excessivamente fragmentário,
poderia oferecer riscos quanto a uma possível percepção de totalidade da obra ––
quanto mais acessível, mais passível de ser apropriada.
Sua intuição estava certa. Não era, contudo, uma intuição desprovida de
fundamentos: Nietzsche sabia bem sobre a particularidade daquilo que deixava
como obra. Mesmo que não houvesse, à época, mais do que alguns contáveis
leitores que o seguiam, era de esperar que, com o tempo, suas pretensões como
pensador-escritor ganhassem, finalmente, algum tipo de interesse e
reconhecimento. Ele sabia exatamente o alcance daquilo que deixava como
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legado.
O impacto do estilo dos escritos nietzschianos, somado ao que há de
perturbador e provocador em suas ideias, permitiu-lhe (e ainda tem sido assim)
tornar-se um filósofo além da própria Filosofia. Nietzsche dotou o campo
filosófico de potências múltiplas que o obrigaram a ser reconsiderado pela maioria
dos que vieram depois dele. Ele inventou uma filosofia dentro da própria Filosofia
cuja força reside na força do estilo. Filosofia e arte se irmanam no estilo que
Nietzsche buscou. Ele inaugurou e deu testemunhos do que seria um novo tipo de
filósofo: o filósofo-artista.
mais: trata-se da esfera que faz com que tenha que coincidir, necessariamente,
trabalho de leitura e experiência do vivido. Aqui, o leitor que quiser aceder a essa
dimensão terá que envolver-se com o texto de Nietzsche em uma perspectiva que
lhe permita reconhecer e mesmo permitir-se vivenciar, a partir de seu próprio
corpo e potências afetivas, algo que encontre ressonâncias na experiência de
Nietzsche. Para tal, dois elementos importantes estão em jogo: 1) estar atento às
valências e potências que animaram as construções da filosofia nietzschiana de tal
maneira que o leitor consiga, aí, entregar-se a um processo de mobilização de suas
próprias afecções19; 2) o leitor deve credenciar-se a romper com as resistências
que o tornam alguém aprisionado em estratificações impostas por injunções de
submissão provenientes da própria cultura. Ou seja, deve permitir-se livrar-se de
certos efeitos de recalque talhados por seu processo de engajamento em arranjos
disciplinares (crenças e práticas impostas pelos órgãos repressores), de maneira a
aquiescer a uma certa posição cética quanto às intenções dos valores. Isso seria,
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Em última instância, ninguém pode escutar mais das coisas, livros incluídos, do
que aquilo que já sabe. Não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a
partir da vivência. Imaginemos um caso extremo: que um livro fale de vivências
situadas completamente além de uma possibilidade de uma experiência frequente
ou mesmo rara – que seja a primeira linguagem para uma nova série de
19
O termo afecções, aqui, é tomado desde a filosofia de Baruch Spinoza a partir de seu livro Ética
Demonstrada Segundo a Ordem Geométrica. Spinoza distingue afeto de afecções, sendo que os
primeiros se caracterizam por ser “potências não representacionais que implicam variações
continuadas da força de existir” e as afecções que se caracterizam por aquilo que se produz a partir
do encontro de dois ou mais corpos. A afecção é aquilo que funda uma forma de um corpo existir
(isto é, funda sua natureza) a partir da possibilidade que ele tem de reagir diante das trocas com
outro(s) corpo(s). As afecções não existem a priori como repertório histórico de sentimentos ou
qualidades reativas; surgem no inédito e inespecífico que resulta do encontro de duas ou mais
corporeidades. Dessa forma, as afecções apontam para um certo tipo de conhecimento (diferente
do conhecimento histórico) que o próprio corpo pode ter de si a partir daquilo que lhe afeta diante
do outro corpo. Ou seja, Spinoza entende o psíquico como fundando-se a partir dos encontros, e
não dado previamente. Nessa perspectiva, Nietzsche é espinozista uma vez que, em sua filosofia,
alguém só pode “tornar-se o que é” a partir do movimento de suas afecções surgidas das misturas
com outros corpos. Isso nos leva a ter, tanto em Spinoza quanto em Nietzsche, uma filosofia da
potência e das formações afetivas no lugar do clássico pensamento metafísico que se divide
sempre entre dois planos que se comunicam, mas não se afetam: planos das ideias e dos sentidos.
Tanto para Nietzsche quanto para Spinoza, trata-se mais do vir-a-ser do que o ser. Por isso, as
potências afetivas desempenham um importante papel na percepção de si e, por conseguinte, na
construção do pensamento.
32
experiências. Neste caso nada se ouvirá, com a ilusão acústica de que onde nada
se ouve nada existe... esta é em definitivo minha vivência. 20
também, necessariamente, que fazer com que os processos se rebatam por longos
períodos até que níveis de elaboração arregimentem novas grandezas, novas áreas
de ocupação. Viver e dizer dessa vivência. Há que dispor a atravessar o deserto, a
subir alturas, a navegar em alto-mar.
Se é mais elaborado, esse nível de experiência, no entanto, não é
impossível –– nisso acreditou o próprio Nietzsche –– e requer uma capacidade
extrema de envolvimento do leitor. O texto de Nietzsche é testemunha de um
processo contínuo de como o pensamento é transformador e, da mesma forma, de
como a experiência –– atravessada pelas afecções –– engendra o pensar. A aposta
de Nietzsche é que haverá um tempo21 em que as pessoas poderão tomá-la no
rigor daquilo que ele sustenta, que conseguirão transpassar suas crenças
fundamentais (o que é da ordem moral) e lograrão êxito em mergulhar em um
esforço de superação de si mesmas. Essa, no fundo, é sua aposta para uma nova
cultura, e é nessa aposta que se insere a proposta anunciada por Zaratustra quanto
ao devir além-do-homem.
Com Nietzsche, trata-se sobretudo de se reportar ao plano do vivido. Esse
plano está diretamente implicado com o estatuto da própria escrita nietzschiana: as
problematizações partem de uma concepção muito particular das potências do
20
EH Por que escrevo tão bons livros, KSA 6, p.300.
21
Na próxima sessão, trataremos da questão do “extemporâneo” em Nietzsche.
33
corpo e de suas afecções. Todavia não se trata, em absoluto, de supor que isso dê
ao texto deste autor contornos de pronunciamentos e elaborações em torno do
subjetivo.
Heidegger, um importante leitor de Nietzsche no século XX, tem posição
esclarecedora quanto a essa questão: o “falar de si”, em Nietzsche, não pode ser
simploriamente explicado como uma necessidade narcísica de “autoconsideração”
ou “autoexposição”, o que a classificaria como eminentemente subjetiva. Ele vê,
nesses atos, uma condição necessária ao que chamou de “tarefa pensante e
momento histórico” de Nietzsche. Ou seja, Nietzsche assumiu, desde cedo, a
missão de pensar o que Heidegger chama de “a realidade propriamente dita”.
Nisso está implícito que qualquer “noção narcísica” é somente a superfície de uma
dimensão muito mais abrangente que implica, para Heidegger, o pensamento do
“ente na totalidade”. Ou seja, Heidegger sustenta que Nietzsche foi o último dos
metafísicos porque reverteu o platonismo (a submissão imposta pela clivagem das
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ideias), mas, ainda assim, conseguiu situar suas questões dentro de categorias
filosóficas. No caso de Nietzsche, o pensamento “sobre si” é mais uma
formalização de uma categoria metafísica do que um relato psicológico ou
subjetivo.
Ainda, para Heidegger, os elementos acerca de si, em Nietzsche,
localizados, por exemplo, em seus relatos em diários pessoais, são momentos de
difícil exercício de pensamento metafísico. Heidegger acompanha a ideia
afirmada pelo próprio Nietzsche de que este seria um pensador do “grande estilo”
e não teria feito outra coisa senão afirmar isso. Nas palavras do próprio
Heidegger:
22
HEIDEGGER, 2007, Vol. I p. 202.
34
mapear de forma criteriosa23 (mesmo que não sigamos seus critérios) os níveis de
problematização das questões que importaram a Nietzsche na construção de seu
pensamento, de forma a afirmar a existência de um estilo, portanto, afastá-lo de
um universo exclusivamente subjetivo.
A escrita de Nietzsche não é passível de ser lida exclusivamente em seu
sentido confessional, mas, sim, em diversos planos que vão do particular ao mais
abstrato da experiência. Se há algo a compreender dessa segunda dimensão a que
se faz alusão aqui, é que Nietzsche logrou êxito em olhar para a cultura e suas
formações a partir de sua própria corporalidade. Isso, sempre de maneira a voltar a
essa instância e manter-se fiel a ela sem deixar que seu pensamento se perdesse
nos encadeamentos oriundos das representações investidas pelas típicas formações
ideais elaboradas em nome da civilização. Dito de outra maneira, o que faz marcar
o texto nietzschiano é exatamente essa não aderência da formulação de seu
pensamento às formas de institucionalização do conhecimento tão necessárias aos
movimentos instituintes.
23
A importância da leitura de Heidegger também se deve ao fato de que ele, através da força de
seus argumentos, entre as décadas de 30 e 50 no século XX, mostrou que Nietzsche foi um
pensador de alta relevância dentro da Filosofia, e não o contrário, como parecia se caracterizar à
época: lembremo-nos de que havia, até então, uma forte tendência a descaracterizar a obra de
Nietzsche como sendo produto de autoria de um louco ou de um excêntrico e delirante poeta
romântico.
35
sua autobiografia; por isso, a necessidade de timbrar Ecce Homo da maneira mais
enfática e singular. Ecce Homo: uma espécie de afirmação última, marcada pelo
colapso iminente.
Nesse nível, que é o próprio nível da experiência do homem Nietzsche,
estamos em uma dimensão cuja sintonia é de extrema fragilidade, e os alicerces se
constituem de maneira a não estar facilmente discerníveis e disponíveis. O vivido
em Nietzsche e aquilo do qual ele dá testemunho não se confundem com o
subjetivo. Evidentemente que há um plano localizável de subjetividade em
Nietzsche (que fascina uma gama de leitores de todos os espectros, tal como
apresentamos na sessão anterior); mas ele se desfaz tão logo se perceba que o
lugar onde Nietzsche se coloca não permite uma leitura colada a um modelo
24
Aqui, Heidegger não acompanha Nietzsche. Ele tenta servir-se dele, adaptá-lo, formatá-lo a
seus interesses, esses sim, em torno de uma sistematização. Exemplo: o quadripartido [terra, céu,
deuses e mortais] heideggeriano, ao estabelecer as condições previamente dadas acerca da
“mundanidade do mundo”, é, decerto, uma tentativa de abolir a relação binária sujeito/objeto, mas,
ainda assim, inventa uma estrutura cardinal onde os elementos ali estão sob uma perspectiva
ontológica, o que significa dizer que Heidegger pressupõe uma existência para cada um dos
elementos na estrutura. Ora, o pensamento de Nietzsche não poderia se compatibilizar com essa
construção uma vez que as valências das potências, em sua concepção fisiológica do poder, são
tidas como reflexos inéditos e impossíveis de ser mapeados previamente, já que dependeriam dos
arranjos e das afecções nos encontros entre corpos. Não há subjetividade em Nietzsche, e também
não há sujeitos. E, quando isso há, já é exercício retórico de uma certa reedição da leitura
metafísica, potencializada, sobretudo a partir de Descartes e o advento da modernidade. Ou seja,
só há sujeito em Nietzsche para os que menosprezam a experiência do vivido.
36
chamado a que Nietzsche não consegue se furtar tampouco permite que a ele se
furte. A escrita lhe serve, mas não para combater o dionisíaco, e sim para lhe
confirmar a continuidade dessa experiência. Nesse sentido, Nietzsche não
exorciza nada; ao contrário, eterniza seu pacto com o dionisíaco, inventando um
novo tipo de filosofar através da escrita.
O curioso é que, nesse gesto de lutar pela própria sobrevivência, num
processo que não esconde seu caráter reativo, Nietzsche quase que, por acaso,
acaba por redesenhar lugares possíveis de um porvir da cultura através dos
estratos de seus mais distintos exercícios de pensamento. Aqui, o vivido se
desdobra em escrita, e esta se faz artística como consequência imediata do tipo de
afecção que a anima: não é de outra coisa que Nietzsche fala, senão de suas
formas de ser afetado e embevecido pelo amplo espectro das questões que lhe
interessam:
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Meus escritos dão trabalho – espero que isso não seja uma objeção contra
eles!...Para se compreender a linguagem mais concisa jamais falada por um
filósofo – e além disso a mais pobre em clichês, a mais viva, a mais artística –, é
preciso seguir o procedimento oposto ao que normalmente pede a literatura
filosófica. Esta é preciso condensar, de outro modo estraga-se o estômago; - a
mim é preciso diluir, tornar líquido, acrescentar água: de outro modo, estraga-se o
estômago. – O silêncio é em mim tão instintivo como nos senhores filósofos a
garrulice. Eu sou breve: meus leitores mesmos devem se fazer extensos,
volumosos, para trazer à tona e juntar tudo o que foi por mim pensado, e pensado
até o fundo. – há, por outro lado, pressupostos para aqui se ‘compreender’, à
altura dos quais estão poucos e raros: é preciso saber por um problema no seu
justo lugar, isto é, em relação com os problemas a ele atinentes – e para isso é
preciso ter ao alcance a topografia dos recantos e áreas difíceis de ciências
inteiras, e sobretudo da própria filosofia. – Afinal falo apenas do vivido, não
somente do ‘pensado’; a oposição pensamento/vida não existe em mim. Minha
‘teoria’ cresce de minha ‘prática’ – oh de uma prática nada inócua, nada
anódina!... 25
Em Ecce Homo, Nietzsche alerta seus leitores para o fato de uma suposta
“inacessibilidade” que emana de seus escritos (para aqueles que o leem além do
subjetivo) justificar-se, porque os que dele assim se aproximam o fazem pela via
da apropriação, seja ela política, seja conceitual, mas, sempre, com o vício da
compulsão à subjetivação. Tudo aquilo que ele se viu impelido a fazer foi se
entregar à experiência da escrita, movido por um continuado movimento de
25
EH Por que escrevo tão bons livros 3 (n36), KSA 6, p.305.
38
Tomar em mãos um livro meu parece-me uma das mais raras distinções que
alguém se pode conceder –– suponho mesmo que tire as sandálias para fazê-lo,
ou as botas... Quando em certa ocasião o Dr. Henrich von Stein queixou-se
honestamente de não entender palavra do meu Zaratustra, disse-lhe que era
natural haver compreendido seis frases dele, ou seja: Tê-las vivido, elevaria
alguém a um nível bem superior ao que “homens modernos” poderiam atingir.26
26
EH por que escrevo tão bons livros1,KSA 6, p.298.
39
bélico onde importa e faz guerra não com totalidades, mas com elementos.
Batalhas e armistícios são possíveis com os mesmos interlocutores. Nenhum tipo
que se apresente em seu caminho como forte é passível de ser desprezível; ao
contrário, o filósofo precisa deles, certamente para ter suas potências em
movimento, vinculando-se e também se desvinculando: Nietzsche contra Sócrates,
Nietzsche contra Schopenhauer, Nietzsche contra Wagner, Nietzsche contra os
filólogos... Mas também Nietzsche com Sócrates, Schopenhauer, Wagner e
outros. Dessa série de movimentos ondulares, cíclicos e destitutivos, depreende-se
um texto cujas características exercem fascínio e repulsa.
Pierre Klossowski trabalha a ideia de que Nietzsche empreende uma luta
contra a cultura em nome de uma “cultura dos afetos”27. O autor constrói
importantes argumentos, mostrando que a experiência de Nietzsche é notadamente
marcada pelo afetivo e que uma de suas tarefas é justamente a de denunciar os
embustes da consciência e suas consecutivas investidas contra si própria, o que
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27
Cf KLOSSOWSKY, 2000, p.34.
40
alguém “corporal”. Ele conclui: “(...) ser corporal não significa que um apêndice
corpo está desde o princípio co-inserido em nosso si próprio, e, com efeito, de um
modo tal que ele permeia a nós mesmos em seu estar em tal ou tal estado”28. Por
sua vez, o sentimento não é interioridade, “mas é aquele modo de ser fundamental
de nosso ser-aí (dasein) por força do qual e de acordo com o qual já sempre somos
alçados para além de nós mesmos em direção ao ente na totalidade, ao ente que
nos diz ou não respeito de um modo ou de outro”. E é justamente nesse “além”
que Heidegger situa o que chama de “tonalidade afetiva”, a qual seria aquilo que
levaria o ser a buscar afinar-se, sempre na exterioridade, no encontro com outras
tonalidades afetivas que se implicariam em referências e remetências continuadas
e inesgotáveis: “a tonalidade afetiva é, precisamente, o modo de ser fundamental
como nós nos encontramos fora de nós mesmos. No entanto é assim que somos
essencial e constantemente”29.
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******
Como se vê, por onde Nietzsche foi, ou seja, pelos mapeamentos possíveis
causados por suas afecções, é possível e provável que o leitor responda também
com afecções. Porém, a diferença reside no fato de que não basta se deixar afetar;
é preciso aceitar o convite por onde a dor e a alegria (duas fortes polaridades do
afeto em Nietzsche que se intercambiam) se fizeram presentes para o filósofo e,
com isso, aceitá-lo como mestre. Há aqui um explícito convite –– embora
anunciado com todos os riscos –– para que o leitor se permita aprender com a
experiência de Zaratustra, estando ele próprio disposto a ir, à sua maneira, por
onde o “profeta” foi.
Aqui, Nietzsche e Zaratustra são mestres, são iniciados. Inequivocamente,
há aí uma afirmação de um pathos como inaugurador de uma nova cadeia de
elementos ou de uma nova era a ser anunciada e vivida:
28
HEIDEGGER, 2007, Vol I p. 91.
29
Ibid, p. 92.
41
sou o anunciador do raio, eu sou uma pesada gota caída da nuvem, mas este raio é
o Além-do-homem.30
Zaratustra traz o júbilo de uma experiência franca com o vivido. Para tal,
foi preciso que se retirasse às alturas31 e que lá permanecesse intocável e isento de
qualquer olhar. As alturas, lugar que alude ao intangível, mas, também, ao
indiferenciado, permitem a supressão do humano e o afloramento de potências do
devir. Nesse caso, estar nas alturas é estar bancando o que seria, a princípio,
insuportável; é permanecer vivo onde os signos que predominam (sobretudo
durante a noite) são os de ameaça de morte. Habitar as alturas com Zaratustra é
testemunhar sua dor, respeitá-la e ver como ele a desejou e a dobrou apenas
porque sua aposta no perecimento da metafísica e da própria bestialidade do
sentido é mais forte do que a ameaça de sua própria deterioração.
Zaratustra é aquele que permaneceu reticente às constantes revoluções de
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seu tempo, não se abalando ou se interessando por suas promessas. Ele não se
deixou enganar pela tirania do homem sobre si próprio e sua renitente ação de
subjugamento da experiência do vivido. Zaratustra é um visionário porque
conseguiu ver que, além do corpo, não há nada, a não ser os rebatimentos deste
sobre si próprio. Os corpos se subdividem ou se supermultiplicam; mas não há
nada além das corporeidades –– nem objeto nem sujeito; nem dentro nem fora.
Por insistir em potencializar suas afecções e delas desejar extrair ainda esse
corpo32 como seu maior triunfo, o “profeta” superou a si próprio e ascendeu a um
30
Za prólogo 3, KSA 4, p.14-16.
31
No caso de Zaratustra, esse habitar as alturas também faz alusão à superioridade que ele
conquistou e ao gosto pelo aristocrático. Como se sabe, o Zaratustra de Nietzsche é também uma
paródia a Jesus Cristo. Só que, diferentemente deste, Zaratustra ama os fortes e almeja os ver cada
vez mais fortes. Em Zaratustra, não há a promessa de redenção cristã, e sim a pura afirmação da
potência de vida. Há que levar em conta também a frequência com que Nietzsche mencionava seu
gosto pelas caminhadas e, sobretudo, por alcançar grandes alturas em suas andanças. Trata-se de
uma imagem recorrente ao longo de sua vida e se configura como uma modalidade de falar do
vivido.
31 Ainda aqui, acompanhamos Heidegger sobre a questão do “estado corporal”, ou, como
preferimos, da corporeidade e suas afecções: “O estado corporal oscila em tudo isso, nos alça ao
mesmo tempo para além de nós mesmos ou deixa o homem preso e embotado em si mesmo. Não
somos inicialmente viventes e temos então, além disso, ainda um aparato denominado corpo. Ao
contrário, vivemos na medida em que conquistamos um corpo. Essa conquista de um corpo é algo
essencialmente diverso de um estar apenas de posse de um organismo. A maior parte das coisas
que conhecemos nas ciências naturais sobre o corpo e sobre a conquista de um corpo são
constatações nas quais o corpo é, antes de mais nada, transformado em corpo físico por meio de
falsa interpretação. Na medida em que se faz isso, é possível descobrir muitas coisas. No entanto,
o essencial e determinante já se acha sempre fora de consideração e apreensão; e a busca
subseqüente do ‘psíquico’ pertencente ao corpo que já foi antes falsamente interpretado como
42
lugar inabitável pelo homem comum. Zaratustra venceu a cultura e disso quis dar
seu testemunho.
Zaratustra é Nietzsche e Nietzsche é Zaratustra. Não é somente como mito
que Zaratustra deve ser lido, mas também como duplo de Nietzsche. Quando
chega a fazer um inventário de sua experiência em Ecce Homo, já não há mais
diferença, nem mesmo necessidade de se lançar mão de recursos como ficção ou
mito. A superação desses registros faz Nietzsche afirmar que seu destino é mesmo
ter nascido póstumo, pois quais seriam os homens capazes de entender essa
“nova” metafísica cujos valores não estão sob a égide do instituído, mas, antes,
residem nos movimentos de destituição? Se o destino dos homens é criar mitos
para neles verem projetados seus ideais e, da mesma forma, a partir deles,
inspirarem-se e estratificarem seus laços culturais, como então seria possível
admitir uma “metafísica” que se pusesse não no lugar de pensar o mito, mas sim
no de renegar qualquer lugar à representação como causa?
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corpo físico já desconheceu este estado de coisas” (HEIDEGGER, 2007,p.92). Essa questão da
“falsa interpretação” é uma observação nietzschiana. A tendência do platonismo e o discurso
científico em fixar a corporeidade em nome do organismo alijaram, em muito, as potencialidades
das afecções. A crença na alma, no espírito, no bem e mal, segundo denunciou Nietzsche,
sentenciou a dependência do homem aos idealismos de toda sorte e levaram junto as possibilidades
dele de circunscrever a sua experiência a partir do fluxo de suas afecções, ou seja, de dar ao
mundo o sentido de seu corpo, e não o contrário. Nietzsche, em defesa da corporeidade, levou às
últimas consequências o seu pensamento sempre nessa perspectiva do que aqui designamos com a
expressão “experiência do vivido”.
33 Esse argumento está desenvolvido ao longo dos capítulos e encontra sua hipótese defendida no
capítulo final desta tese.
43
Por isso, o Nietzsche maduro não ousa mais pensar com as categorias das
quais se valeu para inaugurar seu pensamento quando da época de O nascimento
da tragédia: Schopenhauer, Wagner e Kant não passam de “decadentes” que não
fizeram outra coisa senão reeditar fac-símiles do mesmo, com a pretensão de
inaugurar recortes e apoderar-se da cultura sob a sistematização do pensamento
desde a transcendência. Esses pensadores trazem em comum a divisão do mundo
em polos que se opõem e fundam verdades perfeitas e inatingíveis.
As categorias de Nietzsche, por outro lado, dizem respeito às
possibilidades de afirmação do pathos que o invade e o mobiliza através de
reendereçamentos à própria cultura. Contudo, a cultura que passa a interessar a
Nietzsche é aquela que se figura no transpassar dos elementos da metafísica. No
lugar do “ser”, Nietzsche insiste no devir; no lugar do ethos, as transposições do
pathos; sob o reinado de Apolo, as intervenções de Dioniso:
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34
EH por que sou tão sábio 1, KSA 6, p. 270.
44
corpo não se definiria em uma materialidade, mas sim no jogo de forças que se
encontram. Deleuze ressalta que Nietzsche concebia as forças em suas dimensões
quantitativas e qualitativas. Quanto às primeiras, seriam intensidades que se
apresentam e se afetam de maneira a produzir novas intensidades. Aí está a ideia
de devir, fundamental em Nietzsche e Spinoza, remontando a Heráclito: o corpo é
o que devém a partir dos encontros de forças, intensidades. Sob o ponto de vista
qualitativo, seguindo a trilha de Nietzsche, Deleuze apresenta forças ativas e
forças reativas. As primeiras subjugariam as segundas e formariam hierarquias. O
corpo não seria “um campo de forças”, mas as forças submetidas a elas próprias
em seus múltiplos agenciamentos. Relações de forças produzem corpos de toda a
sorte. “O corpo é um fenômeno múltiplo, sendo composto por uma pluralidade de
forças irredutíveis, sua unidade é um fenômeno múltiplo, ‘unidade de
dominação.’”35
O vaivém entre as valências Nietzsche-Zaratustra é, em si, a própria
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35
DELEUZE, 2003, p.45.
45
Quem comigo tem afinidade pela altura do querer, experimenta nisso verdadeiros
êxtases do aprender: pois eu venho de alturas que asa nenhuma cruzou, eu
conheço abismos onde pé algum jamais se extraviou. Disseram-me que é
impossível pôr de lado um livro meu – que eu perturbo inclusive o repouso
noturno... Não existe em absoluto espécie mais orgulhosa e refinada de livros –
eles alcançam aqui e ali o mais elevado que se pode alcançar na terra, o cinismo;
é preciso conquistá-los com os dedos mais ternos, e com os punhos mais bravos.36
36
EH por que sou tão sábio 1, KSA 6, p. 270.
46
A dor lhe foi imposta desde cedo, e não houve, sequer, possibilidade de
escolha. E, se aqui se apresenta a ideia de alergia como resistência, é para se ter a
justa medida daquilo que era para Nietzsche a concepção de uma aspiração
estética: a exata tradução da dor em armamento bélico contra aquilo que a incitara
previamente. Tal qual um antídoto contra a degradação (se é possível falar de
estética em Nietzsche), esta é, antes de qualquer coisa, a simples enunciação do
vivido como aquilo que deve justificar qualquer ato. Somente a partir dos
movimentos, das ações e das expurgações emanadas por esse corpo, ou seja,
somente a partir de um talhar das afecções, é que se pode chegar a um estilo.
Entende-se por que sua obra chama a atenção de tantos diferentes leitores
em tantas distintas épocas. Está-se diante de um autor que conseguiu enunciar
estilos e formas de materialização da linguagem em que os “estados interiores”
estão o tempo todo funcionando como leitmotiv e, assim, dialogando
insistentemente com o ethos. Nesse sentido, Nietzsche mesmo localiza a potência
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de seus escritos no fato de que lhe foi possível, talvez por mero esforço
espontâneo de sobrevivência, regular a tensão entre pathos e ethos de maneira
muito peculiar e inequívoca.
A se levar a sério o que diz Nietzsche em Ecce Homo sobre seus livros,
está-se aceitando o fato de que ele logrou êxito –– ainda que de forma não
planejada –– em restaurar a experiência da escrita em níveis completamente
inéditos, tornando-se o que julgamos ser correto denominar, junto com o próprio
Nietzsche, de filósofo-artista.
Esse filósofo-artista é, sem dúvida, um híbrido. Não haveria outra forma
de entendê-lo senão pelo fato de que filosofar, em Nietzsche, não é o mesmo que
construir um sistema ou justificar um pensamento, mas sim criar estilo de
linguagem estabelecendo uma tensão própria daquilo que insiste por dentro. Fazer
reverberar no fora aquilo que insiste por dentro, de maneira que, ao se enunciar
um aforismo ou entoar um ditirambo, esteja-se no ponto de confundir as
experiências do dentro e do fora, para criar “estados”, “temporalidades” ou
“lugares” que inaugurem relações imponderadas. Lembremo-nos: estamos aqui no
registro da experiência, mas com a marca daquilo que queremos como vivido.
Trata-se de inspiração; inspiração essa que se realiza na afirmação de
temporalidades. Há algo da ordem de uma revelação, sendo que esta não fala de
47
escrita
É impossível para o homem dionisíaco não entender uma sugestão qualquer, ele
não desconsidera nenhum sinal dos afetos, ele tem no grau mais elevado o
instinto intelectivo e divinatório, assim como possui no grau mais elevado a arte
da comunicação. Ele se insere em cada pele e em cada afeto: ele transforma-se
constantemente37.
37
GD 10, KSA 6, p.117-118.
49
parte constituinte de seu estilo. E o que é importante se fazer notar é que essa
postura –– a de ser um destruidor da moral –– é, sem dúvida, uma tarefa de
proporções hercúleas, o que exige um esforço e dispêndio de energia sobre-
humano. No entanto, em Nietzsche, lembremos sempre, “dispêndio de energia” é
potência, e as potências, em seu pensamento, se articulam, se somam, se irmanam
e geram mais potência. No caso de Nietzsche, é a força da experiência rebatida
sobre ela própria –– na solidão da dor e da alegria –– que o torna cada vez mais
forte ainda. Diante de todos os seus embates, não há lugar para o “infortúnio”.
Tudo é afirmado de maneira inconteste.
Reconhecendo em suas experiências –– sempre viscerais –– a força de
uma vida afirmativa capaz de aceitar tudo o que lhe acontece e acomete de forma
38
Esse universo imagético da aparência cria os contornos da subjetividade, mas, ao mesmo tempo,
aliena o homem de suas experiências mais primevas, o que, para Nietzsche, nesse momento,
falariam de uma ampliação do campo da experiência humana. Apolo, ao dar formas através da
fecundação de luz, estaria subjugando as forças da natureza ao universo dos homens. Eis, porém,
que aparece Dioniso em seu carro coberto de flores e grinaldas, entoando os sons da mais gutural
alegria, mimetizando e convencendo os homens a dar-lhe passagem e a segui-lo. Ao realizar esse
ato, Dioniso apresenta suas armas e destrona o trabalho apolíneo de contensão e conformidade,
arregaçando as costuras do belo e impondo o estado geral da embriaguez capaz de revelar a
compaixão dos homens por algo que se fazia até então inaudito: o desejo de aceder ao “uno –
primordial”, ao lugar de uma conciliação e gozo pleno cujas manifestações não são outras senão as
de alegria e júbilo. A ideia do encontro com o “uno - primordial” apresentada em O Nascimento da
tragédia é ainda fortemente influenciada pela metafísica de Schopenhauer.
39
EH por que sou um destino 2, KSA 6, p. 366.
50
a dizer Sim a tudo infinitamente, Nietzsche aprendeu, ele próprio, que a superação
está exatamente no encontro das forças, e não em sua negação. Tratar a doença
como força que quer aparecer e declamar foi para ele o caminho de sua cura.
Desejar que as coisas retornem mais uma vez e sempre, como elas são, como
devem ser, sem qualquer julgamento, foi para ele a chave de sua filosofia40.
Para o destruidor da moral, não há lugar para o arrependimento nem para o
ressentimento. Essas armadilhas pseudoafeccionais são obra de um trabalho de
catequese e ascese do qual Nietzsche se quer reconhecer como o primeiro e maior
denunciador.
Seu desejo de denunciar é incansável, ininterrupto. Contudo, também o
desejo de anunciar se faz igualmente presente: primeiro ele anuncia a Dioniso;
depois, Dioniso transmuta-se em Zaratustra; por último, é o próprio Nietzsche
quem assume o papel do anunciador na figura do imoralista.
Pois bem, é difícil não notar que essa postura que faz do pathos um locus
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40
Retomaremos a doutrina do eterno no Capítulo 4 desta tese.
51
estado de fluxo. Pode-se aceitar isso ou não. De qualquer forma, para refutá-la,
será preciso invalidar sua experiência e desdizer suas intenções. Nosso sentido
aqui é justamente o oposto.
Capítulo 2
O Andarilho de Nietzsche
Pensamento em movimento
Por esse motivo, a filosofia de Nietzsche não pode ser concebida sem
considerar sua dimensão de sobrevivência fisiológica, assim como os elementos de
que se cercou para estabelecer seu processo de “superação de si mesmo”. Na
realidade, sua filosofia é fruto de uma luta muito singular na qual o pensamento se
estabelece como antídoto para um tipo muito particular de sofrimento. Insistamos:
as resultantes do pensamento de Nietzsche caminham na direção da formulação de
um plano de sobrevivência.
É preciso que isso seja dito de partida, pois não há gratuidade nem mesmo
desperdício naquilo que é escrito; tampouco ele polemiza, desafia, nega ou se põe
contra alguma coisa pela via partidária. A forma de melhor perceber o seu gesto é a
de equiparar sua escrita ao movimento respiratório: o ar vai e vem e, com isso, o
organismo estabelece suas condições de existência. Sem esse movimento
fundamental, não há o resto.
Para Nietzsche, pensar é, no sentido mais concreto que esse termo possa ter,
a condição para manter-se vivo; ou, se preferirmos, a vida é o que se passa entre a
experimentação e a elaboração para, em seguida, numa espécie de movimento
contínuo, reexperimentar e, se preciso for, reelaborar. A característica a se observar
no seu pensamento é justamente a de que ele é marcado por múltiplas instâncias que
podem abarcar desde as sensações mais sensíveis (como a capacidade de perceber
53
derivar uma ideia ou um conjunto delas, para depois, em um outro momento, a teia
ser desfeita e refeita.
Nesse movimento realizado pela sucessão de aforismos, está-se a tatear.
Talvez a imagem de um homem privado de sua visão –– tentando, pelos seus
próprios sentidos, conhecer as coisas e, através deles, seguir seu inequívoco instinto
de ir adiante –– possa dizer um pouco do trabalho que coube a Nietzsche no seu
filosofar. Não é à toa que a escolha da escrita aforismática lhe surgiu com mais
intensidade a partir do momento em que seu estado de saúde o impedia de enxergar
satisfatoriamente, pois, como é sabido, desde 1876, sofria de uma cegueira parcial
que o obrigava a fazer longos repousos e a recorrer a amigos que pudessem ler e,
mesmo, escrever para ele.
Dessa feita, os aforismos, por serem textos mais concisos e de instantânea
resolução, estavam em consonância com a sua capacidade de lidar com o problema.
Ademais, o caráter decisivo, às vezes axiomático ou enigmático dos aforismos,
traduzia bem o que havia de poético nas ideias que o assaltavam. É de imaginar que
o ato de dissertar o que deveria ser escrito por um outro não deixava de passar por
um processo marcado pela dramaticidade do próprio ato. Ou seja, esses aforismos
eram, possivelmente, declamados e traziam em si a coloração afetiva dos estados
54
Aquele que atingiu apenas parcialmente uma liberdade pela razão não
poderá sentir-se na Terra, senão como um andarilho43
43
Como parte de nossa pesquisa, foi realizado, durante nossa permanência nos Estados Unidos
(Universidade Rutgers-NJ), um curta-metragem com o título The Wanderer. Texto de F. Nietzsche
(aforismo 638 de Humano, demasiado humano). Para assistir ao filme:
http://www.youtube.com/watch?v=yuUPDWMHUDk&feature=related
44
O Nascimento da Tragédia é um grande esforço que tenta dar resposta à seguinte questão: é
possível desprender-se uma estética da arte? À ocasião, influenciado pelo projeto de Wagner, pela
filosofia de Kant e o livro de Schopenhauer O mundo como vontade e representação, a resposta
tendia a ser “sim”. A pergunta não era necessariamente “o que é a arte”, mas sim como seria possível
caminhar para a concepção de uma arte que estivesse nos fundamentos da experiência humana,
naquilo que poderia se dizer ser da ordem de um inexorável fundamental, algo que emanasse de um
lugar irredutível e mesmo inabalável. Evidentemente, conforme já dito, Nietzsche, nesse momento,
estava construindo suas ideias a partir de suas leituras entusiasmadas do texto de Schopenhauer onde
se encontra, com todas as letras, propostas sobre a metafísica do artista e da música. Em Humano...,
ele reverte essa posição, mas segue no afã de pensar as relações entre arte e estética. Somente a partir
de Zaratustra, é que Nietzsche consegue dar à arte um estatuto de elevação sem que esta se configue
como dialética. Conforme veremos, ao longo desta tese, a arte em Nietzsche se aproximará da ideia
de um dispositivo diferenciador do todo, capaz de transformar toda e qualquer experiência. A arte
será tomada em sua dimensão fisiológica e estará pensada como o estágio mais depurado da vontade
de potência. Ver, em especial, o Capítulo 4 e as conclusões aforismáticas.
56
nenhum tipo de crença são posturas que permitem a alguém desfazer-se de suas
coordenadas preestabelecidas.
Para esse caminhante, a condição de partida é ser acossado por um tipo de
inquietação que não cessa de apresentar-se como insistência. Trata-se de uma
condição de total inquietude, de inconformidade e de ímpeto para o além de si
próprio.
Nietzsche soube bem, desde cedo, sobretudo depois de seu rompimento com
Wagner e o wagnerismo, situar o lugar de onde ele pensa e existe: em uma palavra,
sua postura não é outra senão a de um filósofo da suspeita. No prólogo de
Humano..., escrito posteriormente à sua primeira edição, em 1886, portanto, em um
período final da obra, ele situa desta maneira sua posição de suspeita:
De fato, eu mesmo não acredito que alguém, alguma vez, tenha olhado para o
mundo com mais profunda suspeita, e não apenas como eventual advogado do
Diabo, mas também falando teologicamente, como inimigo e acusador de Deus; e
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massas, tarefa hercúlea, ingrata, para não dizer, impossível. O quinhão que coube a
Nietzsche, a causa que abraçou não é outra senão aquela que busca deixar vacante o
lugar da verdade, seja lá que formas de encarnação ela pretenda assumir: Deus,
Diabo, Ciência e as formações simbólicas de uma forma geral em seus mais
diferentes níveis e estratificações.
Ao dito jocoso popular “Quem não morre não vê Deus”, Nietzsche parece
propor “Quem não mata Deus não vê o que acontece por aqui”. No entanto, dizer
isso é declarar guerra contra quase tudo e quase todos, pois precisar-se-ia ser muito
ingênuo para acreditar que o Deus de que fala Nietzsche seja a figura de um senhor
bonzinho que zela pela humanidade na distância e abstração dos céus. Não. O Deus
de que fala Nietzsche é o lugar que cabe sempre à verdade e suas formas de instituir
as valorações simbólicas que regem as regras, ritos e crenças das formações
humanas. Por isso, a luta travada por Nietzsche é, em última instância, um desafio à
sustentação de qualquer lugar, instância que se proponha a ocupar o lugar da
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viram atingidos em suas mais arraigadas crenças e posições pelo avançar das
movimentações do pensamento nietzschiano.
E o ímpeto que move o seu pensamento é o da suspeita, se este é seu
princípio e, se a partir daí, tudo deve ser levado às últimas consequências, então é
de prever que o chão possa ruir, que a casa possa balançar e que o entorno possa se
esfarelar em um piscar de olhos. Alguém que ataca será atacado inevitavelmente.
Por isso, a postura da suspeita também vale para uma certa atenção ao que o próprio
Nietzsche chamava de autoconservação. Ele percebeu, desde cedo, que tudo em si e
acerca de si era de tonalidades frágeis (mas não fracas!) e, portanto, passíveis de se
desfazer. Um franco atirador, um insistente e inquieto guerreador não pode
descuidar de si e deve estar sempre em posição de vigilância. Ataque e defesa se
constituíram em um dos pares de oposição mais elementares na forma com que
Nietzsche constituiu seu pathos de existência.
Como ficar sem se importunar? Sem ser importunado? Como suportar a
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46
MA I 638, KSA 2, p.362-363.
60
Sem dúvida esse homem conhecerá noites ruins, em que estará cansado e
encontrará fechado o portão da cidade que lhe deveria oferecer repouso; além disso,
talvez o deserto, como no Oriente, chegue até o portão, animais de rapina uivem ao
longe e também perto, um vento forte se levante, bandidos lhe roubem os animais
de carga.47
47
Ibid.
61
uma compensação para os amigos que faltam”48. Ou seja, a solidão de quem tem a
suspeita como princípio é, ao mesmo tempo, a condição e a consequência para que
o pensamento estabeleça seu alcance. Na ausência de pares, na constatação da fuga
dos interlocutores que não podem seguir os passos do andarilho, Nietzsche se vê
levado a criar seus novos “confrades”49, que serão figuras muitas vezes tomadas de
empréstimo da natureza, da mitologia e de sua própria capacidade figurativa. Esse
processo em que o andarilho cria cenários e engendra personagens advém, em parte,
de um flerte com franjas de ordem delirante e, sem dúvida, justifica-se pelo pleno
vigor de suas faculdades literárias. A impossibilidade de se fazer uma aliança com
possíveis interlocutores o obriga a fabricar sua própria realidade.
A solidão de Nietzsche não é, portanto, patológica, mas, diferentemente,
uma condição. Ela lhe é bem-vinda. Reduzi-la a uma dimensão de doença reativa é
não entender a lógica que faz operar o movimento de seu pensamento. A solidão de
Nietzsche se dá porque, por onde ele caminha, onde ele habita, não há elementos
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que se tornem compatíveis com o andamento exigido pela marcha e que possam
suportar (salvo raras exceções) as valências insaturadas e não balanceadas de sua
aposta. É por isso que Nietzsche se sabia, desde sempre, um autor para todos (no
futuro) e para ninguém (no presente). É por isso que ele se reconheceu como um
autor póstumo, um extemporâneo, cujas pegadas só poderiam encontrar
companheiros no porvir.
Além de andarilho e espírito livre, Nietzsche se configurou como eremita.
Por isso mesmo, suas referências são, em grande parte, oriundas da compreensão e
estabelecimento de uma convivência com os elementos com os quais é possível a
interlocução nessas condições: o sol, o vento, as alturas, os lugares, o clima, a
paisagem... É a partir dos signos naturais, da cadência cosmológica dos elementos
que esse eremita é capaz de estabelecer suas referências. A redenção para esse
espírito livre, para esse andarilho inconteste há de vir de uma espécie de comunhão
com esses elementos que não podem ser tão facilmente falsificados. Mas, como a
marcha é errante, como os animais predadores não arrefecem, o andarilho é
impactado pela incidência de mais decepção, mais hostilidade e, por conseguinte,
48
MA I prólogo 2, KSA 2, p.15.
49
Zaratustra encontrará seus confrades nos animais que o seguem nas alturas. Eles serão seus únicos
companheiros.
63
mais dor e sujeira quando percebe que não necessariamente será a nova aurora que
lhe trará algum tipo de redenção, pois o advento do sol, que supostamente ilumina e
aquece os laços, não traz necessariamente a garantia de que o andarilho encontrará
finalmente um lugar de repouso e acolhimento.
A hostilidade o faz sofrer, mas não perecer; ao contrário, dentro dessa lógica
de um pensamento de suspeita, a incidência de elementos e posturas hostis funciona
como centelha para a obstinada travessia.
É que esse sol traz nele a própria “divindade da ira”, ou seja, o astro reflete e
reforça o peso da excomunhão que é imposta ao andarilho-eremita pelos habitantes
da cidade estranha. Tudo isso muito nefasto, a ponto de “o dia ser quase pior que a
noite”.
Contudo, Nietzsche quer crer que a insistência traz em si o antídoto para
toda sensação de privação e frustração. Somente a insistência é capaz de fazer com
que as imagens se transfigurem e a insistência sob a postura da suspeita, capaz de
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casa na montanha, na floresta, na solidão, e que, como ele, em sua maneira ora
feliz, ora meditativa, são andarilhos e filósofos.50
A Grande Liberação
variação a 180 graus (e assim por diante...) é o que faz com que nada, doravante,
seja passível de ser previsto ou representado de imediato. É o fim do pré-conceito
como limite para a estruturação de qualquer princípio ou lei.
Essa circunstância, dirá Nietzsche, levará o andarilho inexoravelmente à
sensação de que algo se lhe desprendeu de forma maciça, que sua existência está
por um fio e que as sensações podem variar, de um tempo para outro, da mais
intensa alegria ao mais invasivo horror.
Tal virada ou transvaloração de que fala Nietzsche não é nada que se possa
obter com o fastidioso exercício pedagógico das faculdades mentais ou a partir de
qualquer processo de condicionamento intelectual proveniente de um esforço
concentrado. Ao contrário, a condição é a de desprendimento, de visada de algo que
só se pode atingir flertando-se com o risco. Todavia, o atingimento desse “cume
final” só pode mesmo aludir a um feito onde a única certeza que resta (uma vez que
tudo ficou para trás) é a de que não se pode regressar quando se experimentou a
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nova configuração.
A sensação de morte é presentificada no medo da finitude iminente. Mas
que medo, se foi exatamente isso que o andarilho previu para si, ou seja, uma
desarticulação de sua vida e de seu entorno tal como tudo era? A sensação de morte,
evidentemente, não é outra coisa senão a vontade de nunca mais vincular-se ao
humano mundo dos valores universais. Dirá o andarilho que é “Melhor morrer do
que viver aqui”. Vê-se que está ele absolutamente inebriado e, como frisa
Nietzsche, “seduzido” por uma voz imperiosa que lhe sussurra ao pé do ouvido,
chamando-o para todo tipo de usufruto doravante desbloqueado:
Um súbito horror e suspeita daquilo que amava, um clarão de desprezo pelo que
chamava “dever”, um rebelde, arbitrário, vulcânico anseio de viagem, de exílio,
afastamento, esfriamento, enregelamento, sobriedade, um ódio ao amor, talvez um
gesto e olhar profanador para trás, para onde até então amava e adorava, talvez um
rubor de vergonha pelo que acabava de fazer, e ao mesmo tempo uma alegria por
fazê-lo, um ébrio, íntimo, alegre tremor, no qual se revela uma vitória – uma
vitória? Sobre o quê? Sobre quem? Enigmática, plena de questões, questionável,
mas a primeira vitória: - tais coisas, ruins e penosas pertencem à história da grande
liberação51.
51
MA I prólogo 3, KSA 2, p.16.
67
para sempre qualquer ilusão de que a vida pode ser dominada mesmo em termos de
estratagemas. Se há hipóteses, elas devem ser medidas exclusivamente como
exercício da dúvida. Tanto que ele afirma: “Quanta doença não se exprime nos
selvagens experimentos e excentricidades com que o liberado, o desprendido,
procura demonstrar seu domínio pelas coisas!”52. Isso porque esse espírito livre terá
perdido a exata medida do que é permitido ou interditado. Sua selvageria o
convidará a se exercitar em investidas nem sempre salutares ou mesmo coerentes
com a suposta alegria –– porque o regime em que se entrou é o das combinações
das afecções: o tempero das instâncias que permitiriam o “bom-senso” ou a
“sensatez” está perdido. Isso quer dizer que a quebra do decoro diante da cultura
pode levar o andarilho a se estatelar em seu próprio voo, sua alegria pode se
superinvestir de si própria e alcançar contornos de euforia ou qualquer coisa que
sugira desproporcionalidade ou mesmo excesso. Inegavelmente, entrou-se numa
seara em que a velocidade frenética da variação dos signos permite designá-la sob a
rubrica da loucura.
Lembremo-nos de que ao andarilho importa o fluxo, e não o objeto. É
comparável, porque não dizer, a um voo cego, uma espécie de imprevisível
52
Ibid, p.17.
68
Não é possível revirar todos os valores? E o Bem, não seria Mal? E Deus apenas
uma invenção e finura do Demônio? Seria tudo falso, afinal? E se todos somos
enganados, por isso mesmo não somos também enganadores? Não temos de ser
também enganadores? – tais pensamentos o conduzem e seduzem (o andarilho),
sempre mais além, sempre mais à parte. A solidão o cerca e o abraça, sempre mais
69
interessado na salvação dos homens é uma farsa na qual os homens foram levados a
depositar todos os seus esforços (sobretudo, desde a tradição judeu-cristã) para
manter e sustentar o que há de lendário nessa história. A força da verdade portada
pelo dogma é compatível com o esforço para mantê-lo resistente às quebras de sua
sustentação. O proibido é tão-somente uma força que se ergue em torno dos
interesses conservadores de uma determinada configuração do poder. Da mesma
forma, o sagrado é uma farsa que se constrói e se mantém para que as interdições
operem com eficácia de maneira a conter os movimentos dissidentes ou revoltosos.
Se é possível dizer isso com Nietzsche, então é possível também concluir que a
farsa é algo da ordem do humano e que, sem ela, teria sido impossível, até aqui,
erguer e manter as civilizações. Toda cultura é fruto de um pacto farsante e toda
história, segundo o filósofo, uma sucessão de erros contabilizados segundo os
interesses das forças imperativas.
Daí Nietzsche supor que não se podem dividir as coisas de forma bipolar
estanque e manter a crença no que pudesse haver de “genético” ou “biológico”
quando se trata de decidir sobre o “bem” e o “mal”. Se esse é o recurso da religião
(como também da Política, da História e da Ciência), ou seja, dividir para reinar,
benzendo o que é interno e maldizendo o que é externo e dando a isso um caráter de
53
Ibid.
70
realidade natural, eterna e imutável, então caberá a uma postura de suspeita a tarefa
de implodir e explodir esses opostos de maneira a fazer transfundirem-se os polos,
para que a chamada força vital não se subjugue diante da pequenez que impõem a
ela os interesses dogmáticos. Nesse sentido é que Nietzsche denuncia serem os
enganados os mesmos que os enganadores e vice-versa.
Enganados ou enganadores seriam encarnações do mesmo, travestidos
apenas de valências supostamente opostas e, no conjunto, estariam a serviço da
subjugação da potência do corpo. Nietzsche dirá que “a crença no corpo é mais
fundamental que a crença na alma”54, tentando denunciar a morte do corpo ––
portanto, da vida –– através da eleição da alma como superior.
Em sua trajetória, o andarilho tornou-se sensível ao fato de que uma forma
possível de transpor a farsa é deixar que o corpo, liberto das suas codificações
dogmáticas, encontre as forças plásticas, curativas, reconstrutoras, restauradoras de
maneira tal que essas experiências constituam para ele novos códigos de
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54
WP 491.
71
a fantasia de que a terra prometida possa ser alcançada desde que se sigam os
passos corretos.
No entanto, justamente se a postura da suspeita é capaz de resistir como
sendo causa do movimento, então o andarilho se permitirá “o acesso a modos de
pensar numerosos e contrários”55 de maneira tal que esteja ele em condições de não
se deixar levar pelo caráter inebriante das musas que hão de cruzar seu caminho.
Esse espírito livre, segundo Nietzsche, será capaz de lançar mão de seu
estado de convalescença para nele exercitar suas forças de recuperação e
restabelecimento, e nelas encontrar sua força maior e mestria. Isso porque a postura
do andarilho é passível de se ver diante da superexposição aos mais diversos
ataques, e ele só perdurará se encontrar uma política de enfrentamento desses
ataques sem que sucumba definitivamente. Convalescer é preciso; afinal, toda a
euforia suscitada precisa de um arrefecimento. Convalescer significa estar em
potência de transmutação. Como não nos lembrarmos, aqui, de Gregor Samsa? O
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homem que acordou transformado em um inseto e que, da noite para o dia, viu seu
mundo revirar. Sua metamorfose de caixeiro-viajante em inseto não o incomoda
nem é questionada por ele; ao contrário, aceita-a e a reconhece como
estranhamento, talvez, inexorável. O problema está da porta para fora: o pai, a mãe,
a irmã, todos na sala de jantar, esperando por aquele que, até então, lhes provia o
suporte. Kafka também entendeu o que se destina ao andarilho: o ônus da própria
metamorfose, a incompatibilidade desde a reviravolta. Gregor Samsa,
diferentemente do andarilho, não pode convalescer. O peso de suas asas e a gosma
de seu corpo ainda lhe tomariam tempo para aliar-se como potência de ação. Não
houve tempo para reação. A cultura roubou-lhe a chance da extradição de sua cena
mater. O inseto perturbou por demais a ordem. A irmã já não mais o reconhecia. Ele
virou. Da noite para o dia. De força impulsora a força estranha. Diferente do
andarilho, teve que suportar as reprovações e retaliações da cultura: morto pelos
próprios pais, morto pela própria família. Aqui, Kafka filia-se ao andarilho de
Nietzsche. A diferença, talvez, seja que Nietzsche salva seu andarilho do extermínio
sumário, dando-lhe a chance de convalescer. É preciso a doença para que as coisas
se solidifiquem fora do lugar de origem; no entanto — ensinará Nietzsche —, a
55
MA I prólogo 4, KSA 2, p. 17-18.
72
Assim se vive, não mais nos grilhões de amor e ódio, sem Sim, sem Não,
voluntariamente próximo, voluntariamente longe, de preferência escapando,
evitando, esvoaçando, outra vez além, novamente para o alto; esse homem é
exigente, mal acostumado, como todo aquele que viu abaixo de si uma
multiplicidade imensa – torna-se o exato oposto dos que se ocupam de coisas que
não lhes dizem respeito. De fato, ao espírito livre dizem respeito, de ora em diante,
somente coisas – e quantas coisas – que não mais o preocupam...57
Por ter logrado êxito em ocupar o lugar desse “terceiro termo”, o andarilho,
então, estará apto a se livrar das armadilhas que viciam as posições de amor e ódio.
Dizer sim ou dizer não para algum tipo de demanda de julgamento pode estar fora
56
Ibid.
57
Ibid.
73
de seus interesses ou, mesmo, alcance. Sua postura, por assumir uma posição de
serenidade ou mesmo isenção, é capaz de recusar envolver-se em querelas que
exigiriam dela adotar uma outra, do tipo “contra” ou “a favor”. Justamente por ter
percebido o engodo que reside nessas rivalizações, o andarilho passou a evitar toda
e qualquer política partidária, esquivando-se, esgrimando, desvencilhando-se, de
maneira tal que somente o indispensável possa interessar. Essas ações apontam para
uma espécie de capacidade de alguém abster-se da obrigação de ter que se envolver
em determinados embates que em nada lhe dizem respeito. Por isso, Nietzsche faz
alusão a uma espécie de possibilidade de arrefecimento ou despreocupação. Isso
porque, a partir da transvaloração (entendida sempre como movimento de báscula
entre as polaridades), o andarilho livrou-se do peso que lhe coube desde sempre,
sem que ele tivesse tido capacidade de percebê-lo e recusá-lo.
É importante frisar que essa posição assumida em nada se confunde com o
desinteresse ou a apatia; ao contrário, o interesse passa a se dar de forma mais
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criteriosa e autêntica. Só as coisas que lhe dizem respeito farão questão. Afinal de
contas, por que alguém deve supor que tudo lhe seja passível de interesse? A
renúncia ao peso das coisas ou à excessiva carga de “nada” que elas trazem é da
ordem de um olhar sóbrio a respeito do que pode um corpo.
A constatação de Nietzsche é que esse corpo, uma vez liberto do peso dos
signos que exigiam dele fidelidade e devoção, estará apto a retomar sua relação com
as coisas de maneira totalmente nova. Ou seja, uma vez que a transmutação dos
valores é atingida e, diga-se de passagem, incorporada como uma espécie de
dispositivo de leitura dos fenômenos e absorvida como movimento articulador desse
corpo liberado, o que passa a fazer questão são as chamadas “coisas mais
próximas”.
Contudo, que coisas próximas seriam essas? Ora, justamente aquelas que
emanam do corpo e com ele podem estabelecer uma linguagem mais direta e menos
atravessada por elementos outros. Estamos aqui referidos aos planos das sensações,
74
das percepções e de tudo aquilo que é capaz de afetar esse corpo: a relação que se
passa a ter, por exemplo, com a alimentação, a moradia, a luz, a noite... Nietzsche
se fascina com a possibilidade de se sentir de forma mais aguçada o calor, de se
poder distinguir a linguagem dos ventos que passam e comunicam-se com o
andarilho. Da mesma forma, a percepção das cores se transforma graças à função de
um outro tipo de propriedade e capacidade do olhar que agora se vê desimpedido de
reconhecer o que possa haver de “mais dourado” em uma determinada configuração
de objetos:
Essas coisas vizinhas e próximas: como lhe parecem mudadas! De que magia e
plumagem se revestiram! Ele olha agradecido para trás – agradecido a suas
andanças, a sua dureza e alienação de si, a seus olhares distantes e vôos de pássaro
em frias alturas. Como foi bom não ter ficado ‘em casa’, ‘sob seu teto’, como um
delicado e embotado inútil! Ele estava fora de si: não há dúvida. Somente agora vê
a si mesmo – e que surpresas não encontra!58
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A magia de que fala Nietzsche com relação ao sentir intenso e renovado das
coisas mais próximas é compreensível na medida em que, agora, o andarilho, livre
do fardo do peso das coisas “magnânimas”, é capaz de obter uma torção no ângulo
em que concebe a importância das coisas. O que pode estar mais próximo de
alguém do que a sua capacidade de sentir? Pois é essa capacidade que a cultura
rouba do homem ao convertê-lo e forçá-lo a aderir a seus sistemas de signos e
crenças e lógicas de funcionamento. Trata-se mesmo de uma prática de apropriação
do bem maior (corpo) em troca da obrigação de pertencimento. A lucidez do
andarilho é perceber que é preciso tornar-se doente ou quase insano para que algo
de saudável se estabeleça.
Ousa-se romper os limites. O processo, dirá Nietzsche, é visceral; daí a
doença como ponto de passagem, como condição última de ruptura. Não que o
andarilho queira tornar-se enfermo, mas a condição parece ser a única possível para
instaurar-se a virada. Ou seja, a doença acaba por ser bem-vinda na medida em que
ela é sinal de uma desconfiguração radical, uma escamação rigorosa que põe o
andarilho em uma espécie de prova fatal. A questão se apresenta de forma binária:
ou morre ou vive! E, se a vida retornar em resposta à resiliência do andarilho, então
temos uma vida agora transposta para uma outra dimensão.
58
MA I prólogo 5, KSA 2, p.19.
75
Nietzsche parece encarar o desafio como uma luta entre Davi e Golias — o
pequeno corpo diante do desafio de viver sem a sombra do grande corpo.
Desde que recebe um nome, uma filiação e responde por uma origem e um
sistema de crenças e, sobretudo, quando se vê engajado em algum movimento
social, o homem é saqueado compulsoriamente de suas faculdades de mediar de
forma mais direta com as coisas mais próximas. A vida coletiva tem aqui seu
aspecto mais violento: toda a dimensão do experimentar e codificar é interditada a
ela e permutada pelas faculdades de aprender, aceitar e obedecer. A disciplina que o
andarilho se obriga a seguir é aquela de deseducar-se segundo os padrões
normativos e idealistas (relativos ao grande corpo), para reinventar-se reeducando-
se através dos movimentos de suas próprias experimentações (o novo corpo).
Quem seria esse “delicado e embotado inútil” de que fala Nietzsche? Seria
algo próximo do que ele tipificou nos discursos de Zaratustra na figura do camelo.
Quem é o camelo? Justamente aquele que lança a seguinte pergunta como princípio
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de seu desejo: “O que há de mais pesado, ó heróis, para que eu o tome sobre mim e
minha força se alegre?(...).”59. Sua alegria, pois, é exatamente carregar o fardo mais
pesado e poder servir como suporte de carga para os interesses alheios. Quanto mais
pesado e, portanto, mais sacrificante, mais recompensado se sente o camelo porque
julga que sua potência é exatamente a de assumir as responsabilidades em suas
costas. O camelo é obediente e cumpre as normas de maneira tal que se refestela
com a sensação de sofrer em nome de alguma causa que o gratificará no futuro. Ele
não se apodera de si, conhece resumidamente os desenhos de suas afecções, e suas
relações com as coisas mais próximas lhe são estranhas, pois ele aceita ignorá-las de
bom grado. O desejo do camelo é tão-somente o desejo de servir. E tudo, em troca
do reconhecimento de seu mestre ou superior. Dirá Nietzsche que alguém nessas
condições não é capaz de duvidar, de questionar e, muito menos, de criar.
Embotado, portanto, o tipo camelo tem por destino ligar-se àqueles que não o
reconhecem em sua singularidade (até mesmo porque ele é o primeiro a não
reconhecê-la) e prontificar-se a sofrer as maiores humilhações que lhe são sempre
motivo de muito orgulho. Habitar sob as condições mais adversas e conviver com as
companhias mais sórdidas lhe causam prazer porque ele se julga merecedor de
59
Za das três metamorfoses, KSA 4, p. 29.
76
concentrar em si tudo que possa existir de problemático para os outros — uma vez
que sua constituição fisiológica parece estar habituada à função de atender. Tem
satisfação em servir a seus senhores e amar de forma cega aqueles que, sem o
admitir de maneira explícita, o desprezam pelas costas. Para o camelo, o motivo de
júbilo é servir-se como depositário do dejeto alheio, pois, só assim, ele parece
reconhecer sua importância.
Apego ao dejeto: isso mobiliza as massas, que se apaixonam por todo tipo
de excremento. Basta que se façam pequenos exercícios de maquiagem, que se
pintem os contornos e que se produzam condições de brilho, e o excremento vira, de
pronto, objeto de desejo. Ambição das massas: desejar carregar o excremento da
humanidade como prêmio e dele regozijar-se. Fazê-lo moeda de troca, prêmio por
comportamento... Nietzsche sugerirá que as pessoas se interessam justamente por
aquilo que, em princípio, em nada lhes diz respeito. Isso só pode parecer estranho a
quem nunca ousou variar a angulação do olhar sobre si próprio. Não, porém, ao
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andarilho: ele não despreza os homens, mas sim o que esses homens prezam.
Assim, o espírito livre, ao operar sua transmutação, conseguiu inverter
qualquer identificação à figura do camelo e passou a saber o que lhe interessa: o
filosofar através daquilo que lhe parece mais natural, mais imediato e, por isso, mais
relevante de fato. Ao espírito livre, incomoda-lhe a dor nas costas. Ele não se
servirá de desculpas, analgésicos ou supressão do sentir — recusar-se-á a vender
suas costas em nome de qualquer exterioridade. O dinheiro ou as costas? O
andarilho dirá: “As costas!”. Aos usurpadores do corpo, Nietzsche dirá algo como:
“Saia do caminho e me deixe seguir!”
A constatação é muito clara: os sacerdotes, professores, médicos e pastores
(“os filisteus da cultura”, como designa o próprio Nietzsche) criaram mecanismos
de afastamento do homem das coisas que lhe são mais próximas, dando a elas um
caráter desprezível e associando-as a preocupações mesquinhas e pecaminosas. Eles
elevam suas causas à condição de sagradas e desdenham de qualquer força que não
lhes empreste apoio.
Para Nietzsche, abandonar as coisas mais próximas gera como consequência
imediata uma atmosfera de “constantes agressões às mais simples leis do corpo e do
espírito”, de forma a deixar o homem em posição de constrangimento quanto a si
77
60
MA II 6, KSA 2, p.542.
78
61
FOUCAULT, 2003, p. 27.
80
conceber a ideia de que não são as virtudes que devem assenhorear-se do andarilho,
mas o contrário. Sua lucidez lhe permitira estabelecer que, junto de qualquer
enunciado valorativo, há sempre uma perspectiva em jogo. Determinar prós e
contras como opostos seria apenas uma forma de conter o potencial de reflexão. Há
que ter domínio quanto à percepção dessas polaridades e, só então, decidir pelo
sentido.
Em carta a Mathilde Maier, datada de 15 de julho de 1878, Nietzsche se
declarava aliviado por ter-se decidido a abandonar o universo de caráter religioso e
megalômano de Wagner, onde reinavam a “superexcitação e a glorificação do
excesso”. Conforme ele constatava, era justamente essa atmosfera assombrosamente
hipócrita que o havia tornado mais doente e desviado do curso de sua criatividade e
talento. Agora, ele se via na montanha e valorizava a geografia e o clima (as coisas
mais próximas, portanto). Sentia-se, mais do que nunca, retomando o espírito dos
gregos, no qual o que importava era a busca da sabedoria, e não a veneração ao
sábio. O que havia incomodado Nietzsche com relação a Wagner era algo da ordem
de este ter feito de Bayreuth um verdadeiro santuário de adoração em causa própria.
62
MA II prólogo 2, KSA 2, p.371.
83
63
Cf JM Rist, 1964.
64
MA II 192, KSA 2, p. 638.
84
ao amigo, datada de 5 de abril daquele ano, Nietzsche cria a sigla TGS, onde se
condensaria a tríade de seus desejos: Tranquilidade, Grandeza e Sol. Koselitz lhe
havia proposto o lago Maggiore como localidade possível, e Nietzsche havia sido
tomado de emoção pela ideia.
Como se percebe, Nietzsche trocava a ambição pela restrição, a magnitude
pela simplicidade, o idealismo pela potência do corpo e Wagner por Koselitz. A
amizade tornava-se o valor a ser cultivado. Em julho, escreve à mãe, solicitando-lhe
que alugasse para ele um quarto na velha torre de Zwinger, onde ele poderia
cultivar hortaliças67. Em 21 de julho, em outra carta à mãe, comenta:
65
FNC, Vol. III, c 799.
66
FNC, Vol. III, c 826.
67
FNC, Vol. III, c 863.
68
FNC, Vol. III, c 867.
85
espécie de praga que tomava conta do novo mundo e que, por contaminação,
acabaria chegando à velha Europa — era o que chamou de “vício do trabalho”. Ou
seja, ele estava sensível e tecia severas críticas à prática de incentivo e louvor ao
trabalho disseminada através dos movimentos de industrialização compatíveis com
os vividos a partir da metade do século XIX.
Maldita sina do homem comum que é levado a aderir, mimeticamente, às
tramas trilhadas pela civilização de maneira a sentir-se parte do todo. Maldita essa
sina de ser camelo, de ter que abandonar as peculiaridades do próprio corpo e
percurso, para ter de enfileirar-se junto ao mais grotesco nível de apelo a que podem
endereçar-se os homens: o da necessidade.
Quanto à Nietzsche, sua inequívoca lucidez analítica e seu apurado faro para
perceber o dom dos homens de dizer não à vida em nome de tolas crenças, tudo isso
o levava a classificar como “selvageria” o movimento que passava a fazer do
trabalho uma prática capaz de “enaltecer” os homens diante de si próprios. Isso
porque o trabalho industrial passava a ser motivo de orgulho e possibilitador das
69
Um segundo curta-metragem foi realizado em New York, cujo argumento é o aforismo 329 de A
gaia ciência, intitulado “Lazer e ócio”. Para assistir ao filme:
http://www.youtube.com/watch?v=zF_whkjxz5U&list=UUA5cjEmPO64ktuuXGgY3XSA&index=2
&feature=plcp
86
formas de engajamento das pessoas com as novas constelações de laços sociais que
se estabeleciam à época.
O trabalho torna-se passaporte para uma nova forma de existência coletiva
promissora; agora, o homem comum estava sendo requisitado para ocupar o lugar
antes destinado aos escravos. Curiosamente, uma euforia contagiava a massa, que
passou a ansiar, de forma contundente, por oportunidades de trabalho — pois,
quanto mais se ampliavam as técnicas e condições de produção, mais se expandiam
as demandas por mão de obra e as consequentes seduções para torná-la palatável.
Dessa forma, crescia desenfreadamente essa moderna modalidade de vínculo entre
os homens que levava à expansão as relações de uso e troca. Enquanto os escravos
se escondiam e se envergonhavam do trabalho, por sabê-lo nada nobre, o “último
homem” era capaz de dele se orgulhar como se, agora, em nome do progresso, fosse
necessário sacrificar-se sem nenhum tipo de questionamento.
Aqui, vê-se a força do capitalismo que, através de seus movimentos de
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criação e perpetuação de suas cadeias, prima por seduzir os homens de maneira tal
que suas instâncias reflexivas sobre “as coisas próximas” passam a ser ignoradas ou
mesmo atravessadas sempre por insígnias protéticas capazes de — em um
movimento inesgotável — reinventar as formas de relação e gozo dos homens com
seus prazeres. O capitalismo apresenta-se como uma implacável e eufórica máquina
de produção de corpos. Neocorpos. Em outras palavras, o capital produz prazer
customizado e acoplado às ferramentas e produtos que interessam a ele.
Entende-se por que Deus está morto: Ele deu lugar às máquinas de produção
do capital que, embaladas pela euforia do casamento entre ciência e técnica, não
deixam dúvidas de que o fascínio outrora representado pelos mistérios das
divindades ou mesmo os dogmas aceitos e cultuados em nome de um Deus sóbrio
como causa última foi agora substituído pela própria potência do homem-máquina
em colocar-se no lugar do Criador.
O homem engendrado pelas injunções místicas do capital caminha, nesse
sentido, para sacrificar a própria vida na condição de engrenagem de força cujo fim
último é tornar complexo aquilo que se produz. O capitalismo como a arte de
produzir o excesso, o inútil e o dispensável de maneira tal que, por desdobramentos
de sua própria voracidade, faça com que os homens não só se vejam impedidos de
87
“queremos trabalho!”.
Assim, haveria, desde então, uma “freneticidade do trabalho” capaz de
tornar o homem um trabalhador contumaz, uma espécie de devoto da ocupação,
invertendo os valores de práticas e costumes. Agora, o refinado ato de repousar
causava vergonha, e a dedicação à ancestral meditação passava a ser motivo
deflagrador de remorso. Mais uma vez, Nietzsche chama a atenção para o renitente
movimento que atua na direção de fazer do homem um ser acossado pela própria
força: inversão de valores ou renúncia de potência de ação. Ao menos, sob a
perspectiva de Nietzsche.
O problema desse tipo de trabalho, inserido no que ele denominou de
“cultura industrial”, é que ele promovia uma massificação do pensamento e dos
costumes de maneira tal que os trabalhadores — espécie de novo exército decadente
— passavam a afirmar o interesse em “fazer qualquer coisa” em detrimento de fazer
“uma específica coisa”. Ou seja, ocupa-se o lugar do empregado, onde não se
domina, de maneira a permitir que, em sendo dominado, possa-se usufruir algo que
lhe é oferecido, mas não, necessariamente, desejado. Malditos homens, aqui
dobrados em nome dessa nova deidade, o capital, que, ao que parece, pode
70
Frase colhida da música “Sampa”, de Caetano Veloso.
88
Reflete-se com o relógio na mão da mesma forma como se almoça: com os olhos
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fixos no pregão da bolsa. Vive-se como alguém que temesse deixar escapar alguma
coisa.
(...) Pois a vida, à procura de lucro, força o espírito incessantemente a se estender
até o esgotamento numa dissimulação constante com a intenção de enganar ou
prevenir. A verdadeira virtude, agora, consiste em fazer alguma coisa mais
rapidamente do que o outro71.
71
FW 329, KSA 3, p. 556.
89
72
KSA 11, 38 [12], p. 610-611.
92
destino de dialogar com suas afecções uma vez que, fora disso, o resto serão
colorações ou desbotamentos de algo que não lhe dirá respeito senão como
simulacro.
Força e forças. Uno e múltiplo. Por todas as partes, jogos de forças.
Cruzamentos, armações, composições formações... idas e vindas, retornos, curvas,
fluxos e refluxos. Das mais simples às mais complexas, fixas, móveis, em
contradição consigo próprias, ou não. Portanto, como é improvável que haja o
caminho estreito que levará ao juízo final ou à verdade eterna! Da mesma forma, é
pouco possível acreditar que haja progresso no trabalho sem prever o seu retrocesso
ou regresso. Todo movimento constitutivo aceita, incondicionalmente, o seu revés
— isso está previsto na lógica nietzschiana das forças.
“Mar de forças”, dirá Nietzsche, “que se precipita e se inunda a si mesmo,
eternamente mutável, eternamente de ressaca(...)”73. Não há saciedade, não há
descanso, e, sim, continuada movimentação. Ele postulará ser esse o mundo
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73
Ibid.
93
denunciava a postura dos homens que viviam atordoados por suas intermináveis
tarefas: estes, por excesso de acumulação da própria vida — uma vez que se
orientavam para o futuro —, acabavam por dissipá-la através de seus vícios
ocupacionais:
Fazem seus projetos para longo tempo, porém esse adiamento é prejudicial para a
vida, já que nos tira o dia a dia, rouba o presente, comprometendo o futuro. A
expectativa é o maior impedimento para viver: leva-nos para o amanhã e faz com
que se perca o presente74.
Para Sêneca, assim como para o autor de A gaia ciência, o ócio e o lazer são
nobres. A compulsão ao trabalho é vil e indicadora de que vida e morte são mal
equacionadas por esses homens. Pelo fato de estarem cegos diante do devir, pelo
fato de amarrarem suas expectativas no ideal do porvir, não usufruem o único
tempo: o agora. O que Nietzsche chamou de espíritos-livres, Sêneca denominou
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sábios:
Assim a vida do sábio se estende por muito tempo, ele não tem os mesmos limites
que os outros, é o único que não depende das leis do gênero humano, todos os
séculos o servem como a um deus. Algo se perde no passado? Ele recupera com a
memória. Está no agora? Ele desfruta. Há de vir com o futuro? Ele antecede. A
união de todos os tempos em um só momento faz com que sua vida seja longa75.
O jardim de Epicuro, que tanto inspirou Nietzsche e Peter Gast, pode ser
entendido como um ateliê, zona de corte, refúgio de debandados e, também, como
praça de resistência, elo entre amigos; por fim, um jardim contra a barbárie. Ou uma
política do pensamento contra a fetichização do então tão aclamado e glorificado
progresso. Da mesma forma, a preocupação de Sêneca em testemunhar em favor de
um tipo de vida em detrimento de outra, em que, por exemplo, a amizade ganha
estatuto de valor superior e o olhar analítico se estabelece como estratégia contra a
degradação do corpo, esta visão que intui a necessidade de um estado de serenidade
a ser evocado, tudo isso, caminha na direção de uma existência que se quer em
sintonia com os elementos que mais contemplam do que julgam. Sêneca não
pregava, tampouco Epicuro e Nietzsche. O que esses filósofos tangenciaram através
de suas vivências foi a percepção de que pode haver motivos suficientes para que o
homem, sobretudo o homem “comum”, “mediano”, por uma questão de desaviso,
de ignorância ou mesmo falta de sensibilidade, abdique de uma postura de usufruto
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da terra em nome de algo que não tenha nenhuma implicação com o fruir dos
corpos. Talvez se possa depurar uma pergunta axiomática que represente o ponto de
interseção entre esses filósofos: “Por que vender o corpo?”
Nessa perspectiva, esses filósofos também têm em comum o fato de serem,
eles próprios, barreiras humanas, forças de contenção. Na contramão dos gestos e
movimentos que tentam tomar dos homens seu devir-infantil e perenizá-los como
camelos ou, quem sabe, seduzir alguns a assumir as propriedades do leão, os
filósofos aqui em questão se aproximaram das coisas próximas, do universo mais
imediato no qual um homem pode se inserir. O jardim de Epicuro, os mares de
Sêneca, as alturas das montanhas de Nietzsche: a intuição inequívoca de que há uma
alquimia a celebrar diante dos elementos mais fundamentais do cosmos. A natureza,
que é a natureza das forças, dos corpos, do que há.
No caso específico de Nietzsche, objeto de nossa pesquisa, afirmamos que
sua forma de transvalorar foi através da invenção do filósofo-artista. Ele foi esse
filósofo-artista; o primeiro e único talvez. As experiências de Nietzsche e a
consolidação de sua trajetória apontam para o fato de que tanto a arte quanto a
filosofia constituem campos heterogêneos e permitem o exercício de diferenças e
rompimentos de maneira a provocar o surgimento de formações híbridas.
95
armaduras impostas pelos ideais ascéticos. Talvez seja essa uma forma de enunciar
essa filosofia que, segundo Heidegger, reverteu o platonismo. Essa experiência
inaugurada por Nietzsche e cultuada por muitos que se seguiram, decreta a “ruína
moral do intelecto” tal qual assinalou Klossowski, e abre a possibilidade de se
desmistificar o real para, em seguida, investi-lo de potências do falso –– a base para
a criação artística76.
Por isso, interessam-nos aqui os prólogos (os que foram escritos a
posteriori, os rascunhos, as anotações, as composições musicais e tudo aquilo que
não foi publicado). Sabemos hoje que o volume de material denominado de
“escritos póstumos” é três vezes maior do que o que foi publicado “oficialmente”.
Esse material reúne a intimidade de Nietzsche e aponta para esse fazer filosófico do
vivido em seus detalhes.
Para depurar essa experiência do filósofo-artista, é preciso estar nos lugares
onde a sua linguagem se constituiu. É preciso se aproximar do que há de artístico
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O que se pode dizer sobre a música em Nietzsche? Certamente, que ela tem
múltiplas valências e alcança um lugar privilegiado no contexto de sua obra
exatamente por essa peculiaridade. Essas múltiplas valências devem ser percebidas
em suas idiossincrasias, isto é, tomadas desde aquilo que são em si (por ex.: estudar
ao piano, tocar piano a quatro mãos, cantar, compor, escrever etc.), e, também, em
suas implicações coletivas (criticar Parsifal, respondendo com Zaratustra, elogiar
Carmen através da oposição norte/sul, participar e depois criticar o projeto de
Bayreuth, amar e odiar Wagner, compor com Peter Gast um novo arranjo para o
Hino à vida). Com isso, percebe-se que é possível destacar uma gama diversa de
incidências que a música oferece na experiência de Nietzsche, de tal maneira que
seu pensamento deva ser escutado, ele próprio, como música. Ou seja, ao se levar
em conta toda a multiplicidade de encontros e resultantes que derivam do interesse
de Nietzsche pela música, apreende-se que a música esteve, ela própria, sustentando
o campo de vivências e experiências desse filósofo-músico.
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de maneira tal que o flerte com o ponto abismal trazido pelo pensamento do eterno
retorno seja, ele próprio, musical?
Vê-se que é possível abrir diferentes frentes de indagação no tocante ao tema
da música. Se apresentamos essas questões — cuja marca é falar do vivido musical
em Nietzsche a partir de diferentes angulações —, é porque acreditamos que, dessa
forma, nos é possível deslocar o centro do interesse do estabelecimento de uma
teoria da música em Nietzsche para reconfigurar a questão, entendendo-a como
“movimentos musicais” em seu pensamento.
O leitor, aqui, perceberá que nosso interesse converge muito mais para a
genealogia da música na obra de Nietzsche do que, propriamente, para uma análise
histórica da música que o filósofo produziu. Ou seja, nossa intenção é ler a música
de Nietzsche sob a ótica e os princípios que regeram as análises do próprio
Nietzsche acerca da cultura.
Portanto, a partir de agora, o que se seguirá é uma abordagem multifacetada
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das cadeias melódicas, fazer surtir um mais além da origem. Com isso, a
improvisação não nega o tema, porém o transforma ao consagrar ao inesperado dos
atos a tutela de recodificar a origem temática.
Não é à toa que Nietzsche era capaz de ficar por horas e horas improvisando.
Vê-se que, desde muito cedo, a música lhe mostrou o caminho da expressão e a
valorização do pathos sobre o ethos. Não é possível improvisar sem contar com a
intenção do desprendimento — isso porque só se improvisa ao tornar-se cúmplice
do risco, da vontade de dizer o mesmo de forma alterada. Ou de envergá-lo até que
ele se diferencie de si, mas, ainda assim, permaneça o mesmo. Nisso, improvisar é
instituir linguagem, é recriar os códigos de maneira tal que se possa estar no jogo
das aparências de forma absolutamente imanente. Não se improvisa,
necessariamente, para compor uma nova ordem, e , sim, para esticar uma forma até
torná-la outra coisa a partir dela própria. Isto é, ao improvisar-se, redime-se a forma
de sua própria justeza ao reenviá-la aos seus avessos, aos seus desmembramentos.
O Nietzsche improvisador ao piano tornou-se o Nietzsche pensador.
Improvisar e pensar — dois movimentos similares quanto ao que tange o
transgressivo. A obra de Nietzsche é composta por aquilo que foi estabelecido (seus
textos publicados), mas é, também, constituída por uma extensa gama de
104
Nesse sentido, a distinção entre obra publicada e obra póstuma deve se fazer
apagar. O que há em Nietzsche são estudos e ensaios no sentido propriamente
musical, ou seja, versões que poderiam ter sido publicadas no lugar das ditas
“oficiais” e que não o foram por questões de adequação. Como distinguir o que era
um pensamento de suporte ao que foi efetivamente publicado daquilo que teria sido
um pensamento “superado” ou descartado? Nietzsche preservou seus documentos
porque sua forma de pensar admitia a diversificação dos extratos dos pensamentos.
As franjas, os contornos e as inversões não contestam nem invalidam o pensamento,
no entanto fazem dele algo abrangente, polimórfico. Não se trata de escrever a
verdade, mas sobre ela. Portanto, a báscula entre o recalcado e o seu retorno, ou
seja, neste caso, entre o que não foi publicado e o que foi escolhido para ser
conhecido, é mais importante do que a polarização do pensamento. Aqui, o
recalcado não pode ser entendido como o preterido, como o que foi desqualificado,
e, sim, como outra versão, que, por razões das mais diversas (conveniências
múltiplas, por que, não?), ficou nos bastidores. Todavia, o trabalho do autor deve
ser mais bem compreendido se tomado como um todo fragmentado onde as partes
representam constructos, elementos de ligação, partículas inervadoras. O recalcado
e suas versões são imantações do mesmo, de um acontecimento maior, do esforço
105
79
Evocamos aqui o termo introduzido por G. Deleuze e F. Guatarri em O anti-édipo.
107
as duas são designações distintas do mesmo. A vida é música e o erro é não viver.
Pode-se viver a vida sem, efetivamente, vivê-la? Sim, e a isso Nietzsche chama de
“decadência”. Optar pela idealização oriunda da fetichização de uma semântica é
dar destino em palavras ao que opera como pluralidade. É negar o corpo e
arregimentar valores em nome da vida. Aqueles que ignoram a vida como música
(a música fisiológica, não a música teatral-representacional, como ele a criticou em
Wagner) são os que erigem causas e nelas acreditam como direção inequívoca,
como se a vida tivesse que obedecer a um caminho estreito, uma linha reta que vai
de A para B. Ou seja, os decadentes assassinam a música na sua dimensão mais
primitiva, errática, porque lhes urge a necessidade de atribuir um telos à vida. Para
Nietzsche, esse é o maior equívoco já que a vida não se justifica nem remete a
algum caminho predeterminado. Há algo de caótico na dispersão do som que
interessa ao filósofo.
Sigamos em frente com o que há de fisiológico na música segundo
Nietzsche: habitar um corpo é habitar ritmos. Não escutá-los, tapar os sentidos para
as percepções, é o mesmo que negar a vida na sua origem. Nietzsche quer ler a
civilização como sintoma, como recorte moral e mostra que, para o exercício do
crime, assassina-se a música. Novamente, aqui, cabe o recurso que sempre foi caro
110
neófito no instante imediato que lhe subtrai a cena nirvânica e o impele a viver. “Ou
vives ou torna-te nada!” Eis a voz silenciosa, que nunca enuncia tal injunção, mas
que se acopla ao vivente de maneira a empurrá-lo junto à encruzilhada que o obriga
a aceitar a vida. Em Nietzsche, a injunção acima ainda permite um desdobramento,
este, muito mais decisivo: “ou vives a música, ou torna-te um decadente de si
próprio!”.
O que é o ritmo? Para Nietzsche, é sempre o ritmo do corpo. O ritmo das
pulsações sanguíneas, o compasso do bater do coração, o tempo do metabolismo, o
compasso da respiração, o andamento dos passos, e assim por diante. Uma vez vivo,
uma vez incitado a trilhar uma saga na amplitude da existência, então sempre
musical. Não há exterioridade tampouco interioridade quanto ao som. Ele é veículo,
combustível, insumo, matéria prima. O som é, antes de tudo, orgânico; suas
valências imperam de maneira tal que fazem engendrar a linguagem. A música,
sequenciamento do som e seus derivados, já é a linguagem, a experiência
organizada mesmo que de forma incipiente.
Na hierarquia do pensamento fisiológico de Nietzsche, a palavra já é indício
de indecência, de vulgarização, de decadência. Quando a palavra se faz engendrar, é
por roubo ao que é musical. Ela emula o som, toma o lugar dele, opera
111
religioso”.
À época, Nietzsche trabalhava em sua Einleitung (uma introdução ao
oratório de Natal) que preparava o clima para o nascimento de Cristo. Trata-se de
uma bela composição introdutória cuja maior característica é dotar o piano de
características sóbrias, objetivas, cristalinas. O rigor da forma, possibilitando a
simplicidade e a imediatez de impressões, deveria ser capaz de dar à música um
caráter mais elevado, mais religioso segundo a própria concepção de Nietzsche. A
preocupação de Nietzsche era conceber o oratório com menos partes, mas estas
sendo mais longas, dando à peça um caráter de unidade. Tal técnica poderia ampliar
o alcance do oratório para os leigos, e, definitivamente, mostraria a superioridade
deste em relação à ópera.
O oratório deve ser mais sentido do que compreendido, dirá Nietzsche. Para
ele, caberia sempre o recurso musical da fuga, uma vez que ela é capaz de
sensibilizar mesmo aqueles que não têm cultura musical. Essa fuga deve ser,
contudo, rápida e potente, sem que o tempo mude bruscamente, para não se tornar
desarmonioso.
80
WP 810.
112
O que importa é a música poder manter sempre a sua marca do sagrado, que
ela se afirme como marca do divino.
Sentencia assim, aos 17 anos, o jovem compositor a respeito do oratório: “É
necessário que o oratório satisfaça aos três seguintes requisitos: manter unidade e
coerência ao logo de toda a extensão, em seguida tocar profundamente o coração e,
enfim, ser sempre estritamente religioso e ser capaz de elevar a alma”81.
Elevar a alma, ou seja, transpor o estado de si ao máximo de sua
figurabilidade, pode ser aqui entendido como estabelecer uma junção possível entre
corpo e alma de maneira tal que a diferença evanesça a partir do princípio musical.
Para tal, além de tudo, o oratório deveria poder dispensar aquilo que fosse da ordem
do recitativo, isto é, a palavra deveria sucumbir ao peso da harmonia e melodia.
Dessa maneira, o oratório deveria abrigar palavras somente nos momentos
indispensáveis e, mesmo assim, nestes casos, as palavras deveriam ser “ditas ao
mesmo tempo que a música de acompanhamento”82. Nietzsche quer, assim,
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caráter prosaico, inspirado nos prazeres mais mundanos, tais como a alegria de um
dia vivido junto à natureza, a beleza do pôr do sol, ou mesmo de uma grande
caminhada na floresta83. Esses elementos, todos de caráter sentimental e de
considerável beleza cativante, eram marcados por reminiscências afetivas de um
passado perdido e saudosista e por uma expressiva inclinação ao culto tanto do
prazer quanto da dor existencial onde se alternavam intensidades de alegria e
nostálgica melancolia.
Dentre os lieder compostos por Nietzsche — que chegam a mais de 20
músicas —, destacam-se Mein Platz vor der tur e Das geth ein Bach, que,
posteriormente, foram letradas por ele com base em poesias do poeta Klaus Groth.
Em Mein Platz vor der tur (Meu lugar à frente da porta), encontramos um
Nietzsche absolutamente dentro dos parâmetros românticos, inspirado em Schubert,
transpirando emoção, tornando suas reminiscências elementos sensíveis, rumo a
uma reconstrução lúdica de um passado para sempre perdido.
A composição é de extrema delicadeza, com melodias e tonalidades bem
definidas, sem variações ou modulações expressivas. Trata-se de um lied conciso,
83
Esses elementos da natureza são versões elementares das ditas “coisas próximas”. O tema foi
amplamente trabalhado no Capítulo 2 desta tese.
114
preocupação.
A criança, desimpedida de obstáculos, desobrigada de carregar o peso do
mundo às costas, podia exercer suas pulsões exploratórias e vibrar com o livre fluir
do encontro de seu corpo com os elementos da natureza.
O segundo verso, de forma bastante contundente, apresenta o importante
papel do adulto. Vovô [Grossvater], o homem velho, sabedor dos sabores e riscos
da vida, era, justamente por isso, aquele que, à noite, voltaria ao caminho para
resgatar a criança “perdida” no lúdico atemporal de suas experiências. Vovô, com
sua generosidade e inabalável função de acompanhar o neto, dava-lhe a mão e
oferecia-lhe a segurança do caminho de volta.
A composição de Nietzsche não deixa dúvida: esse grande pai, essa espécie
de homem mítico que acompanha, que compreende, que zela, é recebido pela
criança com enorme satisfação e júbilo. Há uma espécie de cumplicidade entre
criança e adulto que garante o fluir dos movimentos. O bom encontro entre os dois
assegura o que há de romântico, o que há de elevado na gravura da música.
Diante do encontro da criança com o avô, um anseio se faz enunciar ainda
de forma tácita, uma espécie de curiosidade inefável, inscrita no desejo da criança:
um querer enxergar além da cerca, por cima... uma vontade de saber como é o
115
No último verso, a criança de então, agora uma adulta, relata: “Sim, agora eu
entendi o que meu avô dizia: o mundo além da cerca é menor que esse que eu
habitava quando criança”. Isso porque a junção dos dois mundos implica uma
percepção do trágico da vida já que o virar adulto obriga qualquer um a deixar o
caminho cercado da infância e trocá-lo pela vida sem garantias, esperança ou
redenção. A criança tornada adulta ganha o mundo, mas perde o lúdico; por isso, a
sensação de que na infância algo de magnânimo se fazia presente. O mundo adulto
impele a criança a renunciar às suas experiências mais tenras e a enfrentar o mundo
de acordo com os recortes e exigências impostos pelas convenções sociais e
culturais:
84
Texto disponível na Internet.< http://music.mansfield.edu/faculty/benjamin-moritz/nietzsche-
research/dissertation/>. Tradução livre.
116
Em Das geth ein bach (Um riacho em fluxo), Nietzsche, mais uma vez, se
serve da bela poesia de Klaus Groth. O lied segue a influência dos românticos
Schubert e Schumann, dos quais Nietzsche guardava grande apreciação e deleitava-
se em estudar e interpretar suas obras. Particularmente nessa música, pode-se
observar também influências de Chopin e do próprio Liszt.
O que impacta nesse precioso lied é a forma criativa com que Nietzsche lida
para dar graça e vitalidade às suas cadeias melódicas. Nota-se uma audaciosa
progressão harmônica, onde se percebe que o compositor tinha forte embasamento
em teoria musical, harmonizações e técnicas de improviso.
A música apresenta uma curiosa modulação, inesperada: de Si Maior (tal
como começa) para meio tom abaixo, Si Bemol Maior. Tal recurso dá à música um
tom de originalidade e mesmo de ousadia. Aqui, aquela quebra da qual vimos
falando se mostra a partir de um rompimento inesperado da tonalidade. Tudo muito
sutil, de refinado gosto e de ousadia considerável.
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85
Texto disponível na Internet. < http://music.mansfield.edu/faculty/benjamin-moritz/nietzsche-
research/dissertation/>. Tradução livre.
117
vez! Pois, assim como “a roda gira”, “corre o moinho”, bate o coração e a vida se
desdobra, também é a pulsação do próprio corpo que encontra seus argumentos nos
afetos de alegria ou tristeza. Entre eles, pulsa todo o mistério de um movimento que
não tem como ser controlado ou detido.
Com regozijo, o lied em questão anuncia o que é a descoberta maior para
esse andarilho: no interior, seja do coração, da roda, do moinho, do riacho, seja do
próprio fluir da vida, há música. E com ela, mais uma vez, a redenção tão anunciada
pelos românticos: não se está sozinho nessa constatação, nessa celebração entre
homem e natureza –– um outro alguém está na cena, acompanha os movimentos do
trovador e não o deixa só. Aqui, a redenção sob a forma de amor, amizade ou
companhia aponta para o fato de que a música é um recurso de imantação entre os
elementos dispersivos e angustiantes que se apresentam nos caminhos de cada um.
A música, de fato, é o que flui inexoravelmente, o que faz com que o riacho ganhe
sentido em seu movimento de fluxo e, também, que o próprio coração ardente
obtenha algum sentido em sua incansável jornada.
A música, para o jovem Nietzsche, é o que acontece entre o homem e a
natureza, entre o dia e a noite –– de fato, uma espécie de presença contínua, de
118
Nietzsche vive a música em sua estreita relação com a divindade. Sua forma
de lidar com ela, de concebê-la como fenômeno artístico, assim como sua vivência
como compositor e crítico, ou seja, todas essas formas de engajamento com a
música trazem como ponto comum o fato de o filósofo-músico considerá-la algo
superior, de magnitude diferenciada, elevada. A música, na perspectiva da
inspiração schopenhaueriana (O nascimento da tragédia) ou mesmo pulsional
(sobretudo, a partir de Zaratustra e a vontade de potência), tanto faz, sempre
suscitou em Nietzsche os sentimentos mais nobres; por isso, significou algo que, de
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e reaver-se com aquilo que sempre lhe escapará: o inaudível do som, que não é
outra coisa senão a divindade.
Por isso, compor para Nietzsche é (re)criar o divino, é associar-se ao pleno e
tentar sincronizar-se ao instante. Nesse sentido, é possível afirmar que suas
composições foram ensaios para anunciar aquilo que só lhe foi possível, de uma
forma mais avançada, posteriormente, com o nascimento de Zaratustra86. O trabalho
ao piano e suas habilidades como compositor e intérprete foram experiências que
abriram caminho ao texto de Zaratustra e o sustentaram. A rigor, até poder-se-ia
dizer que Nietzsche logrou êxito como filósofo onde o músico “fracassou”. Porém,
só é possível levar a sério essa assertiva, se considerarmos o “fracassou” sob o
ponto de vista das opiniões externas ao movimento, ou seja, daquilo que se julga
sobre a música de Nietzsche enquanto comparada a outras que tenham maior “valor
de mercado”.
Sob o nosso ponto de vista, ou melhor, sob o ponto de vista nietzschiano da
afirmação do instante, nem ele como músico e compositor, nem suas criações
musicais fracassaram em momento algum! Isso porque, a partir do momento em
que se compreende o tempo como sucessão do instante, eternamente, não se pode
86
Todo o Capítulo 4 desta tese é dedicado ao tema da música em Zaratustra.
120
admitir que qualquer instante seja errado. No entanto, ele deverá ser sempre errático
uma vez que sua afirmação será sempre superada pelo próximo instante.
Com Nietzsche, a música nunca para: ela retorna, eternamente.
O episódio complexo que envolve a composição chamada Manfred-
Meditation merece atenção especial no curso deste capítulo. Essa composição pode
ser entendida como um ponto central na articulação de muitos de nossos
argumentos e hipóteses delineados aqui em busca de dar vida à concepção
nietzschiana do filósofo-artista. Vários aspectos correlacionados a essa música
podem apontar para um bom entendimento da especificidade da relação da filosofia
de Nietzsche com a arte.
Em 1872, Nietzsche deu luz à composição Manfred-Meditation. Trata-se da
fase final do período de composição do filósofo; portanto, a atmosfera trazida por
essa música é bastante diferenciada da época em que ele compunha oratórios ou
lieder. Manfres-Meditation foi escrita no auge de sua relação com Wagner; por isso
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traz em si influências daquilo que entendeu da música de seu então mestre maior.
É possível que haja, parcialmente, em Manfred, uma tentativa de emulação
de algo relativo ao pensamento musical de Wagner em Tristão e Isolda — ópera
preferida de Nietzsche desde sua adolescência, quando ele se esforçava por executar
partes dela junto a um grupo seleto de amigos na época de sua escola em Pforta.
Numa ocasião posterior, quando já estava em litígio com Wagner e os wagnerianos,
ele alertou a seu amigo e músico Carl Fuchs que, ao criticar Wagner, preservasse
Tristão e Isolda de qualquer rechaço, por se tratar de uma música de qualidades
superiores. Ele próprio, até o fim da vida, a despeito de toda carga pesada de críticas
que dirigia a Wagner, fez questão de elogiar aquela obra de seu mestre que
considerava especial.
Há, portanto, a possibilidade de se dizer que as composições de Nietzsche
eram, em determinadas passagens, em determinados trechos, paródias de seus
mestres; mas isso está longe de traduzir o que é a música de Nietzsche. Sabe-se que
não há criação que não seja, ela mesma, a modificação de algo ou mesmo a ruptura
com relação a esse algo. Nietzsche, como autodidata, executava muitas peças de
seus mestres da música, e sua maneira de aprender era incorporar traços de estilos e
121
técnicas. No entanto, ele, inegavelmente, ousou criar como músico, e suas obras
apresentam um caráter autoral apesar de todas as influências e eventuais paródias.
É importante frisar também que Nietzsche via nas paródias um forte recurso
estilístico: ela recria modificando, através do humor, aquilo que deve ser superado.
Com a paródia, Nietzsche podia experimentar algo próximo de sua transvaloração
uma vez que essa modalidade de escrita inverte os valores. Indiscutivelmente, a
forma de Nietzsche pensar (e compor) o obrigava a destituir aquilo que ele antes
havia elegido e admirado. Esse movimento de vaivém, de troca de polaridades,
como já assinalado, é característica do modus operandi do pensamento
nietzschiano. Há encontros entre distintos corpos, distintas existências ou
materialidades, mas esses encontros geram novos corpos híbridos, portanto,
semelhantes ou diferentes aos anteriores. Nietzsche é um pensador que inclui, que
introjeta e, a seguir, exclui, dejeta o que lhe convém de maneira tal que ele retorce
os pensamentos até criar algo que lhe interessa sobremaneira. Seu pensamento,
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gênio no sentido romântico do termo, ele sabia ser, ele próprio, exatamente o
oposto. Ele era músico e, por muito tempo, sonhou ser um músico na integridade de
seus esforços. Entretanto, como afirmamos, a música nesse pensador articulou-se
com a escrita, e a Filosofia brotou híbrida a partir dessa alquimia. A música
compunha Nietzsche. Ela ditava o andamento de seus pensamentos e constituía-se
como elemento catalisador das suas vivências. Isso ele descobriu desde cedo: a
música engendra a linguagem e a conduz. Ela acontece em esferas altaneiras, a
manifestação depurada da divindade.
Dizer que Nietzsche era um diletante em termos musicais é um equívoco
grosseiro do qual pretendemos nos afastar. Suas habilidades e conhecimentos
musicais, apesar de restritos, apontavam para uma existência plena de um
compositor que encontrava na música sua via de expressão fundamental. Sua
música, alegará parte dos iniciados, decerto, não estará à altura dos grandes
compositores de sua época, mas, sem dúvida, esteve à altura certa para dialogar com
seu pensamento. Sua música é específica de um pathos, e isso é o que importa para
ele; no que tange a seus insucessos ou frustrações quanto ao seu desempenho como
compositor, ele pouco escreveu. Como já vimos em relação aos seus escritos
quando falamos de Ecce Homo no Capítulo 1, era de sua natureza afirmar suas
123
referenciada.
Franz Overbeck era o amigo com quem Nietzsche dividia o piano à época e
que permitia ao músico encontrar eco em suas aspirações performáticas. Sabe-se
que ambos passavam juntos horas ao piano e que costumavam se apresentar para
pequenas rodas de amigos em Pforta. Há, inegavelmente, nessa prática, efeitos de
afecções uma vez que a música só acontece quando as quatro mãos se entrosam.
Havia, sobretudo no jovem Nietzsche, essa ânsia pela colaboração mútua, pelo
trabalho de grupo, pela formação de comunidades fraternais que se uniriam pelo
amor comum ao conhecimento.
A música deveria trançar, fazer fluir, transpor e, com isso, aproximar os
corpos em nome de afinidades. Como não considerar tais elementos particulares
quando se trata de entender os distintos planos e dimensões sobrepostos no tocante
ao estilo de composição de Nietzsche?
Sob a perspectiva da música em si, Manfred é uma peça que flui livre, que
segue seu destino, do começo ao fim, sem vacilos. A harmonia confirma isto: ela é
divagante, a sucessão de acordes ao piano nunca é harmonicamente clara e muito
menos previsível. Apenas esse aspecto já pode suscitar, para muitos, a estranheza e,
mesmo, a rejeição contundente. Diferente dos lieder que apresentam uma harmonia
124
simples e previsível, Manfred é uma peça experimental que pode ser entendida
muito mais como uma busca incessante de Nietzsche pela sonoridade, pelas
combinações sonoras engendradas a partir dos lances de acordes do que pela
coerência de uma harmonia justa.
Buscar o som, garimpar — esse é o Nietzsche de Manfred. Ele caminha (de
novo o andarilho!) pelas entranhas da própria música, buscando exaurir o que possa
haver de sonoro. Aqui, temos um Nietzsche interessado nos climas, nas
materializações dos sentimentos através de seus movimentos.
Nesse ponto, Nietzsche é criteriosamente original no que faz. Manfred já dá
sinais de que o rompimento com a estética dos lieder seria definitiva. Há quem diga
que essa composição é romântica por excelência, mas é possível, com Nietzsche,
afirmar justamente o contrário. O experimentalismo de Nietzsche, as quebras de
padrões simétricos harmônicos e a ausência de ritornelos, por exemplo, apontam
para uma música que se desvinculará da cadência uniforme e bem equacionada de
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87
EH por que sou tão inteligente 4, KSA 6, p. 286.
125
afirma em Ecce Homo que “todos esses abismos [os descritos no supostamente
autobiográfico Manfred de Byron] eu os encontrei em mim — com treze anos, era
maduro para essa obra”88.
Se há um “perfeito” em Nietzsche, desde Manfred Meditation, ele está longe
da estética romântico-idealista dos alemães. Aqui ele faz explícita alusão ao que
importa tanto na vida quanto na arte: que haja “aquela malícia divina”, ou seja, que
a própria divindade seja o fator disjuntivo através do jocoso, do equívoco. É
importante reparar que Nietzsche reafirma em 1888 — portanto, ao apagar das luzes
de seu percurso como escritor — o mesmo que afirmara em seu livro de estreia, em
1872, que a divindade deveria ser concebida desde o seguinte princípio: “O deus
como inseparável do sátiro”89. Ou seja, um deus trágico capaz de brindar a vida em
qualquer circunstância, sobretudo diante da perspectiva do invariável-abismal.
O que é o deus sátiro senão o deus da hybris, cuja malícia é justamente
cantar a vida em ditirambos e levá-la, literalmente, na flauta? O deus sátiro como
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aquele que ri e goza no êxtase do caminho, na plenitude de sua forma, que ostenta
sua máxima disponibilidade para fecundar a vida através de sua exacerbada e
anunciada libido. O deus de que fala Nietzsche é aquele que se põe a dançar de
maneira que seus atos não sejam outra coisa senão a busca pelo júbilo eterno.
A música em Manfred é um passeio a quatro mãos. Um passeio arriscado e
passível de não ser agradável nem para quem escute e, talvez, nem mesmo para
quem execute. O critério não é o belo usual, não é o agradável e muito menos o
consensual. Trata-se, ao contrário, de uma afirmação desafiadora, própria de quem
diz sim aos próprios horrores. Nietzsche não quer o perfeito; ele busca a arte através
da experiência. Na época de Humano demasiado humano, ele conseguiu formalizar
essa ideia da seguinte forma: a improvisação, pura e simples, como fim em si
mesma, gera a falsa impressão de que a arte brota da gratuidade ou espontaneidade
e que o perfeito emerge como movimento mágico, nascido pronto. Segundo sua
imediata conclusão, dessa forma é que os artistas conseguem iludir a audiência,
como os mágicos que fazem pressupor que a música se origina da genialidade.
Certamente que esta crítica é dirigida a Wagner, que operava como ilusionista ao
fazer de sua música veículo para retraduzir mitos.
88
Ibid.
89
Ibid.
126
Nesse sentido, Manfred não almejará jamais a perfeição, mas justo o oposto.
O que Nietzsche busca é uma espécie de “beleza nobre”, aquela que conquista, que
convence pela genuinidade dos atos, que não parte de uma forma, mas que a cria no
processo. O processo é longo, árduo, implica uso da técnica e remete,
necessariamente, a uma criteriosa seleção de elementos que realmente estejam
implicados em um exercício de farejar, senão a melhor sonoridade, pelo menos, a
mais autêntica:
A lenta flecha da beleza – A mais nobre espécie de beleza é aquela que não arrebata
de vez, que não se vale de assaltos tempestuosos e embriagantes (uma beleza assim
desperta facilmente o nojo), mas que lentamente infiltra que levamos conosco
quase sem perceber e deparamos novamente num sonho, e que afinal, após ter
longamente ocupado um lugar modesto em nosso coração, se apodera
completamente de nós, enchendo-nos os olhos de lágrimas e o coração de ânsias –
O que ansiamos, ao ver a beleza? Ser belos: imaginamos que haveria muita
felicidade ligada a isso. – Mas isto é um erro90.
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Nietzsche não compunha para agradar, mas sim para revelar; menos para ser
belo do que para refinar sua forma de apreender os elementos que lhe tomavam de
assalto. Há um trabalho disciplinar em Manfred mostrando que a obra foi composta
milimetricamente, aos poucos, sendo que todos os seus elementos, cada nota, foi
amplamente testada e, por fim, selecionada. A escrita de Manfred, ou seja, sua
partitura, foi o próprio Nietzsche quem a concebeu. E ela é por demais detalhada,
por demais crivada de traços que constituem a mesma intensidade, a mesma
“obsessão” que Nietzsche tinha por seus escritos. Manfred pode até passar ao
ouvinte a impressão de que é uma composição livre de critérios por apresentar uma
forma distinta dos rigorosos padrões característicos do romantismo da época. Ao
contrário, porém, a música alude a uma “falsa liberdade” talvez porque o próprio
autor tenha logrado êxito em dissimular a sua labuta intelectual e técnica, de
posicionar rigorosamente nota a nota, deixando a impressão de que o que se ouve é
apenas fruto imediato de inspiração. No caso de Manfred, não o é — ela é resultado
de experimentação e busca de uma nova forma.
Mas que nova forma? A música, a essa época, já fazia surgir uma nova
geração de compositores que se viam levados, por diferentes caminhos, a arriscar
90
MA I 149, KSA 2, p. 143.
127
voos distintos de seus antepassados clássicos. Nesse sentido, Nietzsche estava a par
de movimentos que começavam a experimentar dissonâncias ousadas, que
rompessem com o tradicional tonalismo. Para tal, seria preciso conceber a lógica
harmônica diferente da dinâmica usual de “tensão” e “repouso” usualmente
garantida pelas dinâmicas impostas pelo uso de tônicas e dominantes. A resolução
dos conflitos de tensão, usualmente recorrida ao uso de acordes que implicassem
um retorno ao “estado inicial de equilíbrio” passou a ser desvirtuada por
compositores que não optavam pelo apaziguamento, mas, ao contrário, que intuíam
a necessidade de uma tensão continuada, distante do equilíbrio e mais próxima de
zonas de conflito e de desdobramento das próprias tensões. Com isso,
experimentava-se a quebra dos padrões clássicos do tonalismo e arriscava-se a
produzir uma música menos simétrica e mais errante.
Manfred está, em certa medida, dentro dessa perspectiva vanguardista. A
ausência de um tema principal e mesmo de suas variações faz dessa música um voo
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sem volta, uma fala sem repouso, um mergulho no abismal na medida em que ela
não se ajusta, não se formata nem se conforma em momento algum. Seu itinerário
alude a uma história a ser narrada. E, de fato, não podemos deixar de lembrar que se
trata de uma antiabertura, de uma resposta ou alternativa à composição de
Schumann. O fato é que Nietzsche se viu impelido a responder a Schumann
exatamente porque, segundo ele frisou, sua vivência do que está no Manfred de
Byron é muito mais imperfeita, trágica e dilacerante do que o romântico Schumann
interpretou.
Nesse sentido, a história narrada por Nietzsche não é outra senão a do pathos
que o invadiu, desde os treze anos quando passou a se identificar com os signos
vividos por Byron, sobretudo, através do personagem Manfred. Portanto, a
composição nietzschiana recusa a tentação de fazer uso de uma narrativa de
memória (vide o fato de que o tema é secundário e de que ele não retorna senão
modificado e quase sempre desvirtuado), mas, através de um movimento de
composição que visa à abstração dos elementos básicos (melodia e harmonia),
realiza um percurso onde há percalços, mal-entendidos, superposição de climas,
devastação de convenções e, por último, assolamento de intensidades.
128
Esse fato torna a música de Nietzsche pouco receptiva para ouvidos que não
se interessam ou não simpatizam com a extravagância. Ele chegou a reconhecer que
já havia escrito “músicas mais humanas, mais moderadas e mais puras”. Do jeito
em que foi concebida, ela se torna uma peça nada “amigável” e, sobretudo à
primeira escuta, pode sugerir imprecisão, imperícia e, mesmo, crime.
Crime? Sim. Ao menos esta foi a sentença dada pelo respeitado e cultuado
maestro Hans Von Büllow quando escreveu a Nietzsche para lhe dizer de suas
impressões sobre a música que Nietzsche havia lhe enviado em uma carta datada de
20 de julho de 1872. Na carta, Nietzsche de forma muito doce, amável e repleto de
reverências, dizia a Von Büllow de seu enorme agradecimento ao maestro por ele
haver-lhe aberto “o caminho para a experiência artística mais elevada de toda a
minha vida”91. Tratava-se do fato de Nietzsche e seus amigos wagnerianos terem
assistido às apresentações de Tristão regidas por Von Büllow em Munique.
Nietzsche faz alusão, na carta, ao fato de que ele não teria podido agradecer
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91
FNC, Vol. II, c 240.
129
esforços para curá-lo dizendo a verdade. Dessa forma, em caso de a música ser
deficiente, ainda arrematava Nietzsche: o maestro, em sendo franco no julgamento,
poderia poupar o talento de Nietzsche para a Filologia já que, no campo da ciência,
talvez ele pudesse se expressar de forma mais adequada.
Note-se que Nietzsche ousou de forma corajosa no envio da partitura de seu
Manfred. Sua relação com Von Büllow era cordial e mediada por Wagner. Ambos
haviam sido apresentados em Tribschen. Na ocasião da publicação de O nascimento
da tragédia, em carta datada de janeiro de 1872, Nietzsche havia anunciado o envio
de um exemplar de seu livro, apresentando-se como “um desconhecido que o
admira”92. Von Büllow não só havia lido o livro como também manifestara
impressões positivas sobre as ideias perturbadoras lançadas pelo filósofo em sua
versão sobre a origem da tragédia entre os helenos.
Pois bem, desta vez, em resposta à carta de Nietzsche, Von Büllow foi
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sincero. Além de sincero, foi enfático, duro e brutal. O maestro não mediu
nem poupou palavras. Sua resposta constituiu-se na carta mais violenta que
Nietzsche receberia em toda a sua vida. É de impressionante rechaço, e o
tom escolhido é o do descredenciamento total de Nietzsche como aspirante a
músico. Von Büllow acusou-o de cometer o estupro de Euterpe, deusa da
música. Abaixo, segue, praticamente na íntegra, o que disse Hans Von
Büllow a Nietzsche em resposta à música que o filósofo lhe enviou:
Isso é uma piada? Uma paródia da pretensa Música do Futuro? O senhor desejou
deliberadamente debochar de todas as regras tonais da harmonia, desde a mais alta
sintaxe até a mais ordinária ortografia?”. “Eu não descobri nela nem um traço de
elementos Apolíneos e Dionisíacos e, para ser franco, me fez pensar mais na
manhã após uma orgia do que na orgia em si. Se o senhor realmente tem mesmo
um desejo apaixonado de se exprimir na linguagem musical é urgente que assimile
pelo menos os elementos básicos dessa linguagem. A fantasia ainda intoxicada com
ressonâncias wagnerianas não é um bom ponto de partida para a criação. Saiba que,
em termos musicais, o produto desta sua ‘febre musical’ é o equivalente a um crime
no mundo moral, no qual a musa da Música, Euterpe, tivesse sido estuprada”. “Se o
senhor me permite um bom conselho, apenas no caso de estar falando sério com
essa ‘aberração na área da composição, então, por favor, dedique-se apenas à
música vocal, pois nesta a palavra poderá lhe auxiliar a encontrar o caminho no
agitado mar dos sons. Caso contrário, a sua música poderá vir a lhe ser ainda mais
‘horrível’ do que o senhor imagina, podendo mesmo vir a lhe ser perigosa no mais
alto nível”. “Não obstante, nessa sua ‘febre musical’, com todas as suas aberrações,
podemos notar uma mente notável, e, de certa forma, eu (Von Büllow), com minha
encenação do Tristão de Wagner, fui indiretamente culpado de ter jogado uma
92
FNC, Vol. II, c 187.
130
mente tão esclarecida como a sua, estimado Professor, em uma tão lamentável
armadilha pianística”93.
93
http://www.f-nietzsche.de/musik_eng.htm#buelow. Tradução livre.
131
maioria dos compositores que, por motivos diversos, não conquistam um lugar ao
sol na disputada e viciada praia dos gênios (e não tão gênios assim!) musicais.
Se Nietzsche tomasse ao pé da letra o que seu “médico” disse de sua peça
musical, deveria, de fato, desistir da música; Nietzsche, porém, não sofria de uma
patologia que o intimidasse. Ele não tinha inibição ou nenhum tipo de inclinação a
absorver uma crítica sem elaborá-la a seu favor. A se considerar a violência da carta
de Büllow, era de presumir que os efeitos psíquicos em Nietzsche pudessem ser
devastadores. E, numa certa medida, foram. No entanto, como era de hábito, ele
respondeu com elegância a seu interlocutor e, com essa resposta, percebe-se que
tinha muito claro o tipo de importância que a sua música representava em sua vida.
Passaram-se cerca de quatro meses para que o filósofo tivesse a chance de
digerir o petardo e esboçar uma resposta. A resposta enviada em 29 de outubro de
187294 foi bem diferente do esboço (não enviado) escrito no mesmo dia. A partir do
cotejamento dos dois documentos, pode-se perceber que o que Nietzsche enviou a
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94
FNC, Vol. II, c 269.
95
FNC, Vol. II, c 268.
132
quando a música seria “séria” ou uma “caricatura” dessa seriedade, assim como lhe
seria difícil dissociar sua música de uma certa vontade de escárnio e gozação.
Dessa forma, no rascunho, diferentemente da resposta da carta, Nietzsche foi
muito mais afirmativo: disse que compôs a música em estado real de humor, ou
seja, que ela lhe foi concebida a partir de seu pathos, e que sua experiência foi a
mais prazerosa possível durante o ato de composição. Dessa forma, o filósofo-
músico deixou claro que, ao julgar sua música, o maestro lhe dava a nítida
impressão de não ter sido nada receptivo com seus estados de humor. Ou seja, em
outras palavras, que Von Büllow não estaria sendo capaz de escutar o que havia de
mais importante para Nietzsche: “o seu estado psíquico”.
Quanto a esse estado psíquico, ou seja, esse pathos inspirador e
extremamente prazeroso experimentado pelo exercício da música, Nietzsche o
qualifica com quatro específicos termos: “desprezo”, “gozo”, “exuberância” e
“sublimidade”. A partir de então, ele deixa bem clara a importância de sua música:
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“Sobre a minha música, sei apenas de uma coisa: ela permite monitorar meus
humores de maneira tal que, se estes não se tornam saciados, ao menos tornam-se
menos perigosos”96.
Na carta enviada, Nietzsche nomeia o pathos que o leva a compor desde a
infância: alegria!
De onde vinha essa alegria? Havia sempre algo de irracional, estas ondas fortes
nunca puderam olhar nem à direita, nem à esquerda, mas a alegria persistia!
Precisamente, esta música Manfred me proporcionava um sentimento tão raivoso,
ou melhor, tão sarcasticamente patético, que era um verdadeiro prazer, uma espécie
de ironia diabólica.
96
Ibid.
133
Wagner, que da mesma forma que Hans Von Büllow, à mesma época, também
passaria a manifestar, de forma irônica, e às vezes dissimulada, o quanto
desaprovava as composições de Nietzsche.
potência. A música e sua semântica passaram a figurar, cada vez mais, como
potência conceitual, como elementos de tensão capazes de engendrar novas
perspectivas e ligações na filosofia híbrida do autor de Assim falava Zaratustra.
Consideremos a questão do dionisíaco em sua obra. Sabe-se que ele
estabeleceu, desde O nascimento da tragédia, o dionisíaco como traço de ruptura
diante da ordem (forma), como elemento que instaura o êxtase através da ruptura do
princípio individuationis e cujo estado em que age, mais próximo do dizível, é o da
embriaguez.
Há em Nietzsche, desde o início, uma expectativa de que o dionisíaco possa
restaurar um elo perdido, isto é, aquele que ligava o homem à natureza. Essa ligação
–– perdida com a cristalização da cultura, ou se preferirmos, com o avançar da
técnica sobre a linguagem –– deveria restabelecer o que há de mais autêntico e mais
radical na experiência da existência: a alegria de estar vivo e a percepção exata de
que a vida não passa de um espasmo entre uma polaridade e outra, seja lá como
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essas polaridades possam ser concebidas (dia e noite, bem e mal, forte e fraco, tudo
ou nada).
A dança e a música –– elementos fundamentais na alquimia dionisíaca ––,
em ato, se irmanam e se completam de maneira tal que as diferenças se esvanecem e
a natureza retoma seu curso de modo a fazer do homem um duplo do deus sátiro,
uma reverberação, se quisermos, da potência do movimento expansivo que passa a
ser o único motivo a reinar. O homem, nessas circunstâncias, desaprenderia a andar
e a falar, ao mesmo tempo em que os animais passariam a falar uma língua que
abolisse todas as diferenças. Dioniso seria o catalisador do processo que levaria
homens, animais e natureza a se fundir em uma totalidade, o que ele havia
designado por “evangelho da harmonia universal”, de maneira tal que o “misterioso
Uno-primordial” voltasse a imperar absoluto.
Ora, sabemos que essa visão do dionisíaco, que remete ao primeiro livro
publicado por Nietzsche, é devedora das leituras que ele tinha de Schopenhauer e
que ela apresenta elementos da chamada “metapsicologia do artista” que passou a
ser modificada a partir de Humano demasiado humano. Sabemos ainda que as
categorias metafísicas de principium individuationis e Uno-primordial foram
superadas a partir do momento em que o filósofo estabeleceu, como trilha de
135
intuito, o único, é expandir-se de forma a tornar-se mais forte. Dessa forma, ela
também se torna bela e cria o belo a partir da imanência afirmativa do movimento
pulsional. A dança dos sexos, o acasalamento, sob o ponto de vista da vontade de
potência, é algo que se dá a partir da mistura de elementos que, uma vez em
confronto, acabam por criar “novos órgãos, novas habilidades, cores, formas...”97.
Princípio de “estética da fisiologia” em Nietzsche: reunião de tudo o que é
forte gera mais força e assim constitui o belo, ainda que provisoriamente.
Provisoriamente, porque o belo não é uma categoria previamente definida,
tampouco um ideal a ser atingido, mas constitui-se como uma possibilidade, um
estado transitório onde a forma resultante é apoderada, traz em si algo de
retumbante, de imperioso e, por isso, encanta.
Por oposição, a feiura é aquilo que não traz em si uma postura afirmativa, e
acaba por se apresentar como um recuo, como uma desistência ou submissão. Trata-
se de um desalinhamento, perda de tônus, fraqueza diante da vontade de nada. O
feio não coordena suas escolhas, não se esquiva nem rebate. Ele permanece em
estado de abandono, longe de suas forças que o permitiriam ter graça, imponência.
O feio é a decomposição, aquilo que não entra no jogo das forças, que empobrece,
97
WP 800.
136
tira sem nada dar em troca, exige sem cumprir. É também decadente, sem vida,
depressivo. O feio repudia o belo e se alia com o que é próprio da feiura. Nietzsche
não fala aqui de subjetividades –– é sempre preciso insistir. Não está a classificar
pessoas de acordo com suas silhuetas, seus tipos, idiossincrasias, etc. Ele fala de
forças, de composições, de engrenagens. Nunca de pessoas, e, sim, de recortes. Seu
olhar sobre o belo e o feio vaga por todos os tipos de formações, sistemas, de
maneira a identificá-los como modalidades: “Na mecânica, o que corresponde ao
feio é a falta de centro de gravidade: o feio claudica, o feio tropeça: o contrário da
divina frivolidade do dançarino.”98
Mas o que é o forte nessa angulação? Segundo Nietzsche, é tudo que é
capaz de afirmar-se pelo simples regozijo de estar em condição de devir, de ter
acesso, de tornar-se. Sob essa ótica, a força e a beleza são produtos do rebatimento
incessante do Sim sobre o Sim. Você conseguiria dizer Sim uma, duas, três, quatro
mil, 5 milhões, infinitas vezes? Entenda-se: dizer Sim como afirmação do instante,
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até que as torções se realizem. A dança, assim como a música, é fluxo do corpo, e
poder dançar é tornar-se mais forte, mais destemido e, sobretudo, Nietzsche o dirá
com todas as palavras: tornar-se indiferenciado em relação ao que há.
A dança, quando surge dos espasmos graciosos do corpo, inventa uma
maneira de estar e ser que reverbera de forma inédita. Ser o movimento, ser o que
acontece em tempo real... estar no imediato, brotar-se no agora. Despir-se, isentar-
se da obrigação imposta pela diferença dos sexos, dos idiomas, dos olhares. Dançar
como política de si, para si, com os outros. Somente uma dança desprovida de
intenção, destituída de regras, somente esse desmembramento do corpo poderá agir
em nome da “Grande Liberação” anunciada por Nietzsche.
Sexo, dança, música... o Nietzsche da pulsão, o Nietzsche da Fisiologia dirá
que há “uma espécie de embriaguez habitual na vida”100 que é própria dos artistas,
daqueles que entenderam o que é a sensualidade humana/inumana, que permite aos
elementos uma reconfiguração continuada. Contudo, artista aqui não aparece como
a classe dos artesãos, dos habilidosos homens da técnica ou dos gênios da música;
muito menos se trata da classe operária dos artistas de teatro, dos filiados a uma
classe teatral, etc. Diferentemente, em Nietzsche, aqui, artista é uma condição
100
Ibid.
138
Os estados nos quais colocamos e poetamos nas coisas uma transfiguração e uma
plenitude, até que elas reflitam a nossa própria plenitude e prazer de viver, são: a
pulsão sexual, a embriaguez, a refeição, a primavera; o triunfo sobre o inimigo; o
escárnio; o virtuosismo; a crueldade; o êxtase do sentimento religioso. Três
elementos principalmente: o impulso sexual, a embriaguez, a crueldade: todos
pertencem à mais antiga exultação do homem, todos também preponderantes no
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“artista” iniciante102.
Essa transfiguração e plenitude a que Nietzsche faz alusão é a que está sob a
égide da experiência dionisíaca. Todas as possibilidades de transfiguração são
musicais uma vez que a música, agregada à dança, é o que há de mais elementar em
sua fisiologia da pulsão. Para usufruir esses estados, para poder dançar e cantar, é
preciso o vigor do corpo, é preciso conectar-se ou habilitar o que Nietzsche designa
por “força artística originária”. Em outras palavras, não se dança cansado, não se
canta vigorosamente quando se está sóbrio ou aturdido. É preciso estar em
consonância com o todo, é preciso vibrar com, alinhar-se entre, disparar em direção
a... Para dançar, para ouvir música, para vir-a-ser música, é preciso uma
disponibilidade conectiva: a de dar e receber.
Nessa perspectiva, a beleza é o que surge no instante da experimentação. É
esse princípio que permitiria a Nietzsche responder ao maestro Hans Von Büllow de
maneira a retorcer seus argumentos reprobatórios. Se pudesse ter escrito, se tivesse
a clareza e a liberdade, ele poderia ter-lhe dito: “Mas que arrogância a sua, meu
caro maestro! Como pode julgar de maneira tão cruel algo que não lhe pertence?
101
Ibid.
102
WP 801.
139
Como pode ser afetado de maneira tão avassaladora por algo que, no máximo
poderia merecer descaso? Saiba que o senhor pode ser um excelente regente, mas
está longe de entender alguma coisa sobre a música em si. O senhor é magnânimo
regendo, mas dá provas de que também tem audição limitada. Seu ouvir é
comprometido com uma concepção muito restrita de música. O senhor parece não
compartilhar da evidência de que a música, em si, é um acontecimento múltiplo, ela
está na origem do que se pulveriza, ela é a própria pulverização. Veja que não é
preciso obedecer às “regras fundamentais de harmonia” porque elas são
simplesmente impensáveis no todo. O princípio da vida é a mutação, e a harmonia,
por isto mesmo, não nasceu pronta. Ela se desloca de acordo com os movimentos
que sofre. Minha música é experimentação e, como tal, está prevista pelos códigos
da nossa fisiologia. Acaso o senhor duvida de que a música é fisiológica? Pois eu
lhe digo que ela surge de cada junção do corpo quando se põe a se articular. A
música não pode vir de outro lugar senão das junções da natureza maior. Eu faço
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música, o senhor pode gostar ou não. Sua pretensão em qualificar o belo é tão
somente um exercício de dominação. Além de tudo, como deixar de reparar um
enorme ressentimento que o senhor carrega em si pelo fato de nem sempre o senhor
estar apto a compreender o que lhe toma de assalto? Sinto muito, meu caro, mas
aqui divergimos totalmente: para o senhor, o belo é uma categoria; para mim, ele é
o instante em que afirmo a plenitude do que me assalta.”
Não há como categorizar o belo, mas diferenciá-lo. O belo, a verdade e o
bem são enunciações esvaziadas de sentido até que ganhem lógica dentro de um
campo de forças. O belo para o rebanho é distinto do belo para o nobre. Essa é a
briga de Nietzsche. Ele não suporta o rebanho porque este renunciou a sua
fisiologia, a seu pacto com a natureza, às suas origens sátiras e, assim, deixou
Dioniso pelo crucificado. Tudo o que está em nome do louvor ao sacrifício, do
sacralizar do sofrimento e da negação da vontade, segundo Nietzsche, é sinal de
“baixo valor de conservação”.
cenários, implementando realidades. Nietzsche chega a dizer que “toda arte atua
como sugestão dos músculos e os sentidos, os quais, na origem, são ativos nos
homens artisticamente ingênuos: ela fala sempre e somente aos artistas, fala a essa
espécie de delicada comoção ao corpo.104” Por isso, toda arte funciona como um
elemento potencializador capaz de aumentar o prazer e a sensação de gozo pleno.
De acordo com o pensamento fisiológico de Nietzsche sobre a arte, o feio é
justamente aquilo que não pode ser artístico, aquilo que gera impotência, que
arrefece os estímulos, que entope a máquina, desfaz as ligações entre os elementos.
O feio é tudo aquilo que diz não, que emperra, que julga e com esse ato destrói o
espaço da experiência. O feio evoca o feio, contamina, empobrece, faz morrer. O
feio é pesado, moroso, mal-humorado. A dança, para acontecer, necessita de leveza,
sua divindade é sempre bela e essa beleza é muito menos a sua forma do que a sua
intensidade.
Assim Nietzsche queria sua música, assim ele pensava sobre seu método de
composição, assim ele aspirava fazer de sua fisiologia porta para uma compreensão
filosófica do mundo. A percepção de que a experiência da composição permite em
si comungar da embriaguez dionisíaca fez Nietzsche acreditar que suas afecções
103
WP 804.
104
WP 809.
141
105
Àquela época, ainda era possível, também, romancear as psicopatologias. Apesar de já
impregnadas de ordens classificatórias, ainda mantinham uma certa atmosfera de estranheza, de local
de refúgio, de bizarrice quase poética. Hoje, desde a espetacularização do mundo, com a fetichização
dos farmoquímicos e com a destreza que faz mapear as doenças de forma inesgotável, as
psicopatologias representam o negativo da saúde ideal e devem ser debeladas (assepsia total, ampla e
irrestrita), sem que se diferenciem suas origens, características e idiossincrasias. Com a chegada do
DSMV, a modernidade estará dando mais um passo para o que parece ser seu projeto utópico: o
acorrentamento total das afecções. Vê-se, portanto, que a briga de Nietzsche sempre foi, nesse
sentido, contra os barões da psicopatologização do mundo, que hoje estão fantasiados de doutores
tecnológicos.
142
incondicionalmente, passaria então a condenar sua música por ela conter o caráter
aniquilador do pathos, por ela ser puro teatro, fingimento, enfim, tudo o que
Wagner se esforçara por estabelecer como ideal estético de música, a tal chamada
“música do futuro”.
Um processo de retorção fez de Nietzsche um contundente antiwagneriano.
No momento em que percebe Wagner como um grande hipnotizador de massas, um
verdadeiro Cagliostro, como ele próprio afirmava, Nietzsche se dá conta de que a
música de Wagner é desvirtuada na fonte. Ela é por demais brutal, por demais
artificial. É também por demais datada, estandarte da chamada modernidade.
Em o Caso Wagner, escrito em 1888, Nietzsche sentencia:
A arte de Wagner é doente. Os problemas que ele põe no palco – todos problemas
de histéricos – , a natureza convulsiva dos seus afetos, sua sensibilidade
exacerbada, seu gosto, que exigia temperos sempre mais picantes, sua instabilidade,
que ele travestiu em princípios, e, não menos importante, a escolha de seus heróis e
heroínas, considerados como tipos psicológicos (uma galeria de doentes!)”: tudo
isso representa um quadro clínico que não deixa dúvidas. Wagner est une
névrose107.
106
WP 811.
107
WA 5, KSA 6, p. 22.
143
Uma música capaz de soar diferente, capaz de tornar estranhas até mesmo as regras
da tonalidade. Dirá ele: “Injuriemos, meus amigos, injuriemos, se de fato vemos
como sério nosso ideal, injuriemos a melodia! Nada corrompe mais certamente o
gosto! Estamos perdidos, caros amigos, se voltam a ser amadas as belas
melodias!...”109.
O pensamento musical de Nietzsche não admite que a música seja utilizada
com o propósito do entretenimento, de distração, da frivolidade do prazer —
diferentemente de Wagner, que se utiliza da música, da melodia, para ilustrar mitos,
para provocar efeitos de sentido no coração da semântica que importa transmitir da
forma mais palatável, apoteótica, convincente. Dessa forma, Wagner encarnaria
muito bem aqui o papel daquilo que conhecemos modernamente como “grande
produtor de trilha sonora”, isto é, alguém que subjuga a música, que a deforma e a
submete a seus padrões ficcionais para dar a ela endereço pictórico. Nesse caso, a
música ilustra; ela serve e não é servida. A música é usada como recurso
pedagógico, sua função é preparar os campos de recepção da mensagem: lubrifica,
conforma, conforta, agrega, alicia.
108
WA 6, KSA, p. 24.
109
Ibid.
144
pelo qual o filósofo não poderia nunca aceitar Parsifal de forma calada. Com essa
ópera, fica evidente que toda a superabundância de técnicas, a capacidade de
visualização plástica do drama através da música, a criação de êxtase através da
reverência ao bom, ao sagrado e ao justo são manobras de um mágico que deturpa a
gratuidade da música, alocando-a como recurso nobre em favor da negação do
corpo:
Wagner pode pintar, ele não emprega a música para música, ele reforça atitudes, é
poeta; afinal, recorreu, tal como fazem todos os artistas de teatro, aos ‘belos
sentimentos’ e ao ‘peito transbordante’ – com tudo isso persuadiu em seu favor as
mulheres e os carentes de formação: mas o que as mulheres e os carentes de
formação têm a ver com a música?110
110
WP 838.
145
aliados todos aqueles que se identificam com a expressão cunhada por Nietzsche
desde cedo: “os filisteus da cultura”. Ou seja, pessoas que, em carecendo de uma
percepção substancial da música — tendo acesso negado ao que há de fisiológico na
música —, contentar-se-iam em tomá-la em seu sentido mais histriônico,
espalhafatoso:
Pondere-se sobre os meios de produzir efeito, dos quais Wagner se serve com
predileção (meios que ele, em boa parte, teve que inventar): eles se assemelham, de
modo surpreendente, aos meios pelos quais o hipnotizador consegue produzir efeito
– escolha dos movimentos, das tonalidades de sua orquestra; o abominável
esquivar-se diante da lógica e da quadratura do ritmo; o traço furtivo, escorregadio,
cheio de segredos, o histerismo de sua ‘melodia infinita’111.
111
WP 839.
4
A arte de Zaratustra: do flerte com o ponto abismal
ao canto como morada do corpo
extensão do corpo de Nietzsche, uma boca que contempla, indaga, afirma, anuncia,
experimenta e conclui.
Zaratustra, por ser ficcional, por ser um misto de homem e semideus, herói
às avessas, figura inspirada em vários tipos, carrega em si a possibilidade de
permitir a Nietzsche desenvoltura e liberdades suficientes para dizer aquilo que
seria difícil através de uma textualidade que não carregasse em si algo de literário,
fantástico, sagrado e cômico. Zaratustra permite a Nietzsche acessos à
figurabilidade. Por ser um tipo múltiplo, ele mesmo portador da multiplicidade que
anuncia em sua essência, dirige o pensamento de Nietzsche a lugares antes
insondáveis.
Então, Zaratustra é quem permite a Nietzsche continuar sua filosofia uma
vez que o filósofo-artista se vale da boca do personagem — da sua criatura — para
falar de sua vivência. A invenção de Zaratustra é o artifício necessário para que o
pensamento de seu criador ganhe características dramáticas, musicais e filosóficas
dentro de uma lógica muito particular. Nietzsche esclareceu no Ecce Homo que
Zaratustra era seu duplo. A revelação de Zaratustra a respeito do ponto abismal, o
anúncio da doutrina do eterno retorno e as paixões vividas por esse “profeta” são as
vivências do próprio Nietzsche, experimentadas pelo personagem. No entanto,
112
Ou seja, desde a cristalização de seu rompimento com Wagner e os wagnerianos.
147
também o inverso pode ser afirmado como verdadeiro: é Zaratustra quem permite a
Nietzsche prosseguir em sua trajetória em busca da superação de si. Aqui,
Zaratustra é uma extensão de Nietzsche, uma ficção mais do que necessária para
que a vida do filósofo continuasse.
Zaratustra, através de seus discursos e do curso de sua odisseia, torna-se o
elo articulador entre música e fisiologia, entre genealogia e política, entre vivência e
experiência. Nietzsche dá a “dica” de como se inspirou para criar Zaratustra como
representante da “grande saúde”, dotando-o das seguintes marcas: “(...) um
descobridor e conquistador do ideal, e também um artista, um santo, um legislador,
um sábio, um erudito, um beato, um divino eremita de outrora (...)”113.
Necessário é, a partir de um testemunho textual e preciso como esse,
perceber que Zaratustra é um elemento que condensa uma importante constelação
de nuances que o torna apto a atravessar aquilo a que se propõe. Para dividir o peso
de sua descoberta, para flexibilizar sua tarefa de maneira a torná-la viável,
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Não sou, por exemplo, nenhum bicho-papão, nenhum bicho moral – sou até mesmo
uma natureza oposta à espécie de homem que até agora se venerou como virtuosa.
Cá entre nós, parece-me que isso forma parte de meu orgulho. Sou um discípulo do
filósofo Dioniso, preferiria antes ser um sátiro a ser um santo115.
Por isso, Zaratustra nasce na imanência: ele próprio, andarilho. Com ele, as
intenções dionisíacas são refundadas a partir do momento em que o herói retorcido
é um homem, um vir-a-ser cujo alvo é o além-do-homem, e cuja característica
113
EH assim falava zaratustra 2, KSA 6, p. 337-338.
114
EH por que sou tão sábio 3, KSA 6, p.. 269.
115
EH prólogo 2, KSA 6, p. 257.
148
receber, o “profeta” abraça sua saga e dela faz júbilo incessante uma vez que a
afirmação de seu pathos é o caminho para que ele se livre de todo o peso herdado
junto à humanidade. Se Zaratustra é o anunciador da vontade de potência como o
princípio das forças em expansão, seus esforços vão no sentido de emparelhar seu
corpo com esse princípio, de fazer fluir suas paixões nas sintonias em que elas se
irmanam com as forças criativas.
Essa descoberta — a de que é possível operar afirmativamente a vontade de
potência como princípio do todo —, ele a faz e refaz e, à proporção que anda,
compartilha com vários tipos que encontra no caminho. À medida que encontra
elementos, com eles interage; com alguns se alia e com outros faz guerrilha. Seus
animais, às vezes, são como candidatos à iniciação e também são elementos que
permitem ao próprio Zaratustra alcançar novos elos rumo ao limite da experiência.
Os animais são partes do Zaratustra, são duplos dele também. Contudo, os animais
não dependem de Zaratustra e muito menos são propriedade sua.
Os animais são companheiros de Zaratustra, servem-lhe de interlocução em
sua solidão abissal. Em torno dele, entendem seus motivos e compartilham de suas
descobertas. Aliás, os animais que habitam as alturas sabem também dos segredos
que envolvem a aproximação ao abismo.
150
geração de novos valores. Um valor pode se prolongar até ser substituído por outro,
porém, de qualquer forma, independentemente da qualidade, o valor é sempre valor
demandante de adesão116.
O valor, ou melhor, os conjuntos e subconjuntos de valores são famílias,
cepas e sempre constituem dinastias. O valor é excludente, agregador e também
segregador (de acordo com as conveniências) e trabalha sob a lógica da
incorporação: por isso, não há valor que não queira expandir-se e se estabelecer
através de ramificações. O valor é a vontade de potência travestida de linguagem.
Em suma, todo valor, ou sistema de valores, é imperativo e dominador. Sua função
é servir a outros valores na própria cadeia, de maneira a subjugar, cooptar, eliminar
e reforçar outros valores de acordo com seus interesses. O capitalismo, pela
especificidade com que substancializa o próprio valor como princípio, pode nos
servir de modelo para entender o que se articula, talvez, como a lógica de
funcionamento do valor por excelência. Contudo, de qualquer maneira, capitalismo,
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116
A sanguessuga (aforismo que pertence à parte IV do livro Assim falava Zaratustra), que havia
mordido dez vezes um pobre homem que jazia deitado ao chão, é ela a ação soturnamente invasiva,
do próprio valor. Nietzsche mostra o quanto os homens são dragados e tornados apáticos por valores
que lhe tomam suas forças. Ao homem paralisado pela ação da sanguessuga, Zaratustra oferece sua
caverna, local onde pode reestabelecer-se. A caverna de Zaratustra, situada no cume, assim como
seus animais, amigos e vizinhos nas alturas, são a política contra a mediocridade dos valores. O
ditirambo de Zaratustra é entoado das alturas e sua força cura os homens – aqueles que podem ouvir
– da consciência. Já a música de Wagner, nessa perspectiva, equivale à do flautista mágico que, ao
entoar sua cantiga hipnótica, convoca todos os ratos da cidade a juntar-se a seu movimento. Os ratos
fazem adesão à “música” do flautista justamente porque essa música induz à colagem, ao
esmorecimento do querer. Quanto mais ratos, mais ratos ainda. Os valores se multiplicam na medida
em que encontram mais elementos afeitos à sua forma. Desta feita, os valores assumem o lugar da
consciência e o corpo é subjugado. CQDZ (como queria demonstrar Zaratustra).
152
117
CSK, 4, p. 89.
153
Deus, anunciada por Zaratustra, abre caminhos para a movimentação dos homens,
para uma reconfiguração da experiência, sobretudo no que esta diz respeito às
potências do corpo e suas relações com a Terra. Zaratustra ama a Terra e sua
imanência, e reconhece no movimento a engrenagem fundamental para o fruir da
vida.
A partir de Zaratustra, nada é estanque, nada permanece, nada se acomoda.
Zaratustra é o próprio deslocamento tipificado: “Eu sou um andarilho e um
escalador de montanhas, disse para seu coração, e eu não gosto das planícies e, ao
que parece, não posso ficar muito tempo parado.”119
Por que Zaratustra se desloca? Como se entende sua necessidade quase
compulsória que o impele a ir ao encontro do mar? Responde-se: porque o mar é o
local de amplidão, aberto, em movimentos: as ondas, os ciclos, as marés...
Zaratustra atravessa os mares, mas ele carece também da ilha, de seus amigos. Ele
sempre volta. Em suma, ele busca os elementos que lhe permitem expansão. Ele não
se fixa — nada é tão sólido ou definitivo que possa obrigá-lo a aderir. O
pensamento flui porque o pensamento é corpo. O corpo se desloca e, em se
deslocando, produz outros corpos. Zaratustra se desloca dos mares às ilhas, mas
118
Za do caminho do criador, KSA 4, p. 80.
119
Za o andarilho, KSA 4, p. 193.
154
também escala montanhas. E também as desce. Ele não tem bússola, não tem plano
de viagem, sobretudo, não tem memória. Zaratustra vai e vem.
Dirá ele sobre o caminhar que o leva ao cume:
Segue teu caminho de grandeza. Essa deve ser agora tua maior coragem: que não
haja mais nenhum caminho atrás de ti. Segue teu caminho de grandeza; aqui
ninguém te acompanhará furtivamente! Teus próprios pés apagaram o caminho
atrás de ti, e acima dele está escrito: impossibilidade120.
nesse processo.
Seu deslocamento, continuado, faz-se entre polaridades. Ele oscila como
condição de se manter em um certo equilíbrio. Não o equilíbrio que leva ao
consenso dialético, mas, sim, aquele que é habilidade inerente ao equilibrista. Não é
o equilíbrio que visa à acomodação, e, sim, à tensão. Zaratustra, assim como
Nietzsche, precisa da báscula como princípio. Sua máquina de produzir ideias, de
transformar vivência em experiência, é movimentada pela alternância entre as
polaridades. O alternador dessa máquina não permite que ela siga sem rodeios. A
máquina é regida pelo princípio interno de vai e vem. Daí o júbilo: vai e vem é
movimento, é tensão, é exercício lúdico.
Em Zaratustra, o movimento se justifica porque o destino é a vivência. Sua
movimentação pode ser frenética, pode ser imprevisível, mas será sempre afirmada
porque a planície a incomoda, e a falta de relevo, de modulações, faz seu corpo
endurecer.
Nietzsche põe na boca de Zaratustra aquilo que já havia dito através do
andarilho em 1877: “Vivencia-se apenas a si mesmo”. Contudo, vivenciar, em si, é
o que importa para que o resto possa ser dito. Aliás, Zaratustra mostrará que só se
diz o que é resto, o que é sobra; disso tenta falar a experiência. A experiência é o
120
Ibid, p. 194.
155
121
Za dos desprezadores do corpo, KSA 4, p. 39.
156
Aquilo que antes apavorava, agora seduz; o que antes paralisava, agora
tornou-se pathos de movimentação. O instante abismal, esse ponto de suspensão,
essa suspensão de todas as diferenças, de toda fragmentação, é agora tido pelo
jocoso anti-herói como o “último refúgio”, o lugar único de onde se pode olhar à
distância para todo o resto (tudo que existe) de forma isenta, sem com ele se
confundir.
Como, porém, suportar a vertigem diante dos abismos? Como suportar o
lugar da indiferenciação, o lugar que cria todos os lugares e que silencia todos os
silêncios? Como suportar essa descaracterização, esse desmembramento absoluto?
Mais ainda, como conseguir chegar a esse lugar a despeito de toda a “força da
gravidade” e de toda a lógica que o concebe como impossível?
A resposta está na báscula que faz mover o afeto: chora-se de raiva, debulha-
se em lágrimas amargas. Transita-se da dor para a alegria em uma questão de
instante. A livre fluência dos afetos, a variação entre suas valências é o que permite
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122
Za da visão e enigma, KSA 4, p. 199.
123
Ibid.
157
piedade, nem compaixão. Zaratustra não se reconciliará com o anão, porém não o
hostilizará, não o maltratará. Uma política deverá surgir: o anão há de ter seu ponto
fraco.
Sobretudo agora, quando enfrenta a mais alta de todas as subidas, aquela que
o levará ao flerte com o ponto abismal, agora, portanto, Zaratustra está mais forte
do que nunca e, decidido, impávido, contundente, destaca o ser do anão de si
próprio e toma-lhe como corpo invasivo, como indesejada presença, elemento de
baixa extração. Agora, fortalecido por sua própria experiência, amplificada nela
própria, Zaratustra é capaz de desafiar o anão numa espécie de embate decisivo:
“Anão, ou tu ou eu!”124
Não é, contudo, tarefa fácil calar a voz do anão. Estratificada, é uma voz
histórica, tomada pelos vícios da cultura que se fez à custa da inibição da potência
do corpo. O anão é a voz tirânica que faz reverberar a culpa toda vez que o homem
comum pensa em se lançar para mais além do que há. Ele ilude os desavisados que,
sem condições de diferenciá-lo de si próprios, o tomam como elemento a ser amado
e glorificado na medida em que faz as vias do conselheiro, daquele que previne, que
cuida...
124
Ibid.
158
É preciso atacar sem vacilar, sem recuar. “O inimigo mora ao lado”, vem de
dentro. Ele é a própria vontade de nada, inscrita na trajetória do corpo. É preciso
matar, e a coragem é o melhor matador, dirá Zaratustra. Ela mata em nome da vida
que quer triunfar, que não se atém diante da ameaça. Coragem que permite dizer
sim ao corpo, à vida e querer que ela venha “mais uma vez!”.
Subir, eis o movimento. Subir ao cume. Mesmo que o anão avise dos perigos
da queda, subir é um ato inexorável. Zaratustra tem um trunfo: um “ás nas mangas”
e, com ele, desafia o anão. O anão pesa contra a subida porque tem medo do risco,
do esfacelamento. Zaratustra, porém, sabe do além-do-homem. Sabe que é do cume
que se pode flertar com o abismo e que só se dobra o metal quando a temperatura
atinge níveis altos. Ele diz ao anão, de forma decisiva: “Eu ou tu! Mas eu sou o
mais forte de nós dois –– tu não conheces meu pensamento abismal! Esse, não
poderias suportar!”125
Quem, senão Zaratustra, ele próprio um nobre, um ser nascido da
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125
Ibid, p. 199.
159
instante. O portal como marco zero126 de um caminho A que retroage por toda a
eternidade e, no simétrico, oposto, o caminho B que leva ao futuro por toda a
eternidade. Dirá Zaratustra que esses caminhos, por serem eternos, chocam-se
frontalmente, mas se encontram no marco zero do portal (onde não há inscrição).
Esse marco zero é, ele mesmo, a ausência de todo sentido, portanto, de toda
valoração.
Tudo que existiu teve que ter vindo da eterna trilha do passado, assim como
tudo que existirá deverá percorrer a eterna trilha do futuro. O instante, o agora, é o
ponto de convergência entre passado e futuro e, por isso, o ponto de suspensão do
tempo. Ele é eterno e se põe, por conseguinte, a se repetir insistentemente. Esse
portal, marco zero, é o local de condensação máxima da potência. Se é possível
admiti-lo, afirmá-lo, então, pode-se transformar a valência das coisas, pode-se
afirmar e querer a vida independentemente do que aconteça. Aqui, o portal dá
acesso a um irrefreável êxtase que, por admitir que tudo é em devir, não cessa de se
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126
Repare-se que o marco zero de Zaratustra é distinto do marco zero do Cristianismo. Enquanto o
primeiro é uma referência isenta de representabilidade e possibilitadora da experiência de si, a cruz
do Cristianismo funciona como signo originário e estabelece o sofrimento como redenção e a culpa
como valor de adesão.
127
Ibid, p. 202.
128
Ibid.
160
Todo movimento, todo caminhar, todo escalar revela seu único motivo:
fundir-se com o todo abismal, ser ele mesmo parte indiferenciada do céu; voar para
dentro do céu, abolindo todo e qualquer tipo de intermediário, de obstáculo, de
129
Za antes do nascer do sol, KSA 4, p. 207.
161
mediador. E, quanto às nuvens, esses malditos seres que vivem no entre, lugar de
indefinição, que mancham o caminho, que encharcam de ódio a vida: “Tenho
aversão às nuvens passageiras, sorrateiros felinos rapaces: elas tiram de ti e de mim
o que nos é comum –– o imenso, ilimitado dizer Sim e Amém.”130
Trata-se aqui de maldizer tudo o que é meio do caminho, tudo que é “meio
isso, meio aquilo”, o que vacila, que não afirma, que busca ser suave não como
estilo, mas como cinismo ou covardia. Mais uma vez, afirma-se a integridade do
absoluto em detrimento dos vícios da linguagem, dos elementos que desvirtuam a
condição de gozo absoluto. Com a força do céu em sua totalidade, esse céu que é
abismo e luz, e que agora pode ser ele também, com essa magnitude da experiência,
Zaratustra se permite ser, assim como o céu, ele também capaz de abençoar, de
levar o seu Sim a todo lugar, a todo e qualquer abismo:
Tornei-me alguém que abençoa e diz Sim: para isso pelejei muito tempo e fui um
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lutador, de modo a um dia ter as mãos livres para abençoar. Mas eis minha bênção:
estar sobre cada coisa como seu próprio céu, seu teto abobadado, sua redoma de cor
anil, sua perene certeza: e bem-aventurado é que assim abençoa!
Tudo que há, existe, na origem, além do bem e do mal. Tudo que há é
“batizado na fonte da eternidade” e, portanto, qualquer juízo de valor, qualquer
atribuição de polaridade, ou seja, qualquer incidência da linguagem –– incluindo aí
o bem e o mal –– é lido por Zaratustra como “nuvem passageira”. Tudo que há são
compostos, desde o mais complexo ao mais simples. Compostos que se articulam,
que se retroalimentam, que se multiplicam e se dividem. Tudo que pode ser dito,
previsto, decantado, destacado, assimilado, classificado... Tudo isso é o que se
diferencia no exercício da existência. E tudo o que há, tudo que se diferencia, não é
senão circunstancial. O que há, a partir do que advém depois do marco zero –– para
cima ou para baixo, sendo positivo ou negativo ––, tudo o que se desdobra é
contingência. Os arranjos se dobram, rebatem-se, multiplicam-se, tornam-se
infinitos tal como o abismo. Nada disso, porém, é enraizado, nada que há, ensina
Zaratustra, existe como causa final. Não há nenhuma essência sob a qual se remonta
a uma origem única.
130
Ibid, p. 208.
162
apenas um instante do que existe, uma parcela qualquer do todo anunciado. Ele
próprio é obrigado a retornar, a desfazer-se desse momento de deleite máximo em
que se encontrava fusionado com o céu. Basta que chegue, mais uma vez, o nascer
do sol, a invenção do dia... E, com isso, Zaratustra está de volta ao percurso. Ele,
por ser não absoluto, é obrigado a despedir-se, a evadir-se. Zaratustra ama o céu,
flerta com o abismo, mas não pode lá estar para sempre. Agora que aprendeu o
caminho, ele vai e vem, cada vez mais altaneiro.
Essa é a grande lição de Zaratustra! Não se pode habitar o abismo, mas
pode-se ir e vir de forma que a vida seja entremeada de flertes com o abismo. Uma
vez a trilha aberta, uma vez a experiência acontecida, uma vez o medo vencido,
então, talvez, para sempre, o exercício de Zaratustra possa estabelecer-se como
prática. Quem esteve no cume, flertou com o abismo, destituiu-se, diferenciou-se,
anulou todos os signos de valoração e encetou a experiência desde o dispositivo do
marco zero –– esse pode fazer de seu exercício de subidas e descidas das montanhas
seu próprio ofício de vida. Zaratustra descobriu a senha que dá acesso a um tipo de
131
Essa ideia já estava presente desde os tempos de O nascimento da tragédia. O Uno Primordial
abrigaria a essência de tudo que existisse, através dos processos de diferenciação. No entanto, o Uno
Primordial implicava uma ideia de transcendência a qual foi tornada em imanência no discurso de
Zaratustra.
163
encontro que restitui ao corpo sua integridade e lhe redimensiona como fração de
júbilo.
A partir de sua volta ao mundo das coisas diferenciadas, sua experiência de
escalar montanhas, mergulhar nos céus e flertar com o abismo o diferencia como
homem. Porque teve a experiência do flerte com o abismal, Zaratustra sente-se
crescido, grandioso, maior, mais forte. Ele não esconde o fato de se sentir superior;
ao contrário, critica todos os que têm alma pequena, que se regulam por pequenas
virtudes e não lhe perdoam porque ele não comunga de seus valores. Zaratustra,
aquele que flertou com o abismo, retorna modificado e torna-se um estranho, um
galo entre as galinhas. Ele é atacado novamente. Desprezado, sente-se discriminado.
Sua permanência junto aos homens pequenos é de difícil manejo porque ele lhes
sugere ameaça: Zaratustra se assemelha ao louco, ao ser da esquisitice, a quem se
deve tirar do ambiente, de quem se devem esconder as crianças: “Ainda não temos
tempo para Zaratustra –– assim objetam ––, mas que importa um tempo que não
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132
Za da virtude que apequena, KSA 4, p. 212-213.
164
legislar sobre o que lhe é visível e, para isso, doutrina a felicidade e as virtudes.
Para tal, aprendeu, desde cedo, a delegar seu destino a um Deus capaz de julgá-lo e
condená-lo impreterivelmente.
O homem anda claudicando –– é trôpego, manso. Sua ambição é curta e sua
forma de agir menospreza seu potencial. Por claudicar, o homem se coloca como
um obstáculo para Zaratustra na medida em que ele lhe atrasa o caminho. O
homem, apequenado, quer seguir sua vida no curso normal de sua batida. Ele é
lento e, quando quer alguma coisa, esse querer não é autêntico tampouco ousado:
“No fundo [os homens] querem uma coisa acima de tudo: que ninguém lhes faça
mal. Assim são obsequiosos com todos e lhes fazem bem. Isso, porém, é covardia,
embora se chame virtude.”133
Segundo Zaratustra, esses homens são medíocres. São fracos no querer,
carecem de punhos fortes para resistir ao solavanco da escalada. Na realidade, não
querem a escalada por julgarem-na arriscada. Eles são mansos, domésticos.
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133
Ibid, p. 214.
134
Ibid, p. 215.
165
Os dados que são lançados uma vez são a afirmação do acaso, no sentido exato
onde o ser se afirma do devir e o uno do múltiplo. Em vão será dito que, lançados
ao acaso, os dados não produzem necessariamente a combinação vitoriosa, o doze
que cairia no lance de dados. É verdade, mas somente na medida em que o jogador
não souber, de início, afirmar o acaso. Porque assim como o uno não suprime nem
nega o múltiplo, a necessidade não suprime nem nega o acaso135.
ele próprio o tivesse escolhido. Fazer de sua escolha o lance do acaso é a sabedoria
ensinada por Zaratustra na doutrina do eterno retorno: “Desejar que tudo na tua vida
retorne uma vez mais e sempre”. Com essa dinâmica, Nietzsche faz do acaso o seu
pathos, constrói, a partir dele, os elementos que compõem o saber. O acaso é bem-
vindo na medida em que ele diz respeito à multiplicidade, à fragmentação e, com
isso, a possibilidade de transição, de movimentação. Além disso, seguindo a
doutrina do eterno retorno, é possível afirmar que o acaso ensina o que é eterno, o
que deve vir como inexorável. Não há a vontade de um Deus barbudo, destinado a
julgar os bons e os maus. O que há, entretanto, é a vontade do acaso que, soberana,
estratifica o inusitado e faz dele história de acasos e, assim, instaura a vontade dos
deuses que se divertem com os lances de seus dados.
A Terra é a grande mesa de dados onde os deuses brincam, como crianças, e,
no lúdico de suas movimentações, decidem os acontecimentos. Zaratustra joga
dados com os deuses, ri de si próprio e de sua sorte. Não importam os resultados:
ele sairá sempre vitorioso porque, a partir de seu número, ele tecerá sua sequência e,
com isso, permitirá fluxo a seu devir. Seu júbilo é estar sempre disposto a se engajar
135
DELEUZE, 2003, p. 29-30.
166
com o acaso e fazer disso sua própria toada: “Deixai vir a mim o acaso: ele é
inocente como uma criança”136.
A criança que Zaratustra já afirmou ser a última das três metamorfoses que
sofre um espírito em seu processo de reversão das polaridades traz a leveza tão
almejada e ao mesmo tempo cobiçada por ele. A Terra deverá, um dia, ser
rebatizada como “a leve” –– porque os homens sentem a vida pesada justamente
quando não aprendem a voar. Porém, se voar é impossível para o homem, como
chegar lá? Segundo o ensinamento de Zaratustra, para se tornar leve, é preciso
experimentar um vir-a-ser pássaro; só assim será possível voar. Todavia, para
tornar-se pássaro, o caminho é “aprender a amar a si mesmo” de maneira tal que
isso permita ao homem “tolerar estar consigo e não vaguear”. O que é vaguear? É
perder-se nos territórios dos outros, é confundir-se com os interesses e propriedades
alheias. Vaguear significa evadir-se de si e fazer morada no outro. Nada poderia ser
pior do que renunciar à própria vida, para viver a de outro.
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136
Za no monte das oliveiras, KSA 4, p. 221.
137
Za do espírito de gravidade, KSA 4, p. 242
167
Quem um dia quiser aprender a voar, deve primeiramente aprender a ficar de pé,
andar, correr, saltar, escalar e dançar. Não se aprende a voar voando! Com escadas
de corda aprendi a escalar muitas janelas, com pernas ágeis subi em altos mastros:
estar sobre altos mastros do conhecimento não me pareceu bem-aventurança
pequena139.
138
Ibid, p. 243.
139
Za das velhas e novas tábuas, KSA 4, p. 261.
168
tudo por esse instante, tudo por essa brecha! Zaratustra está a ponto de se
transmutar, de transvalorar todos os valores!
Eis, porém, que, neste momento exato, quando tudo estava por se resolver,
quando a sideração cósmica esteve pela medida mínima para se instaurar, eis que,
no momento decisivo que antecede à entrega total, na hora exata em que estende
sua mão para encontrar a “mão” do pensamento abismal, Zaratustra recua, é tomado
de pavor, bate em retirada e, desesperado, ainda grita: “Ah! Larga! Ah! Ah! – Nojo,
nojo, nojo...ai de mim!”142
Ele já havia dito da impossibilidade desse ato; já anunciara a ausência de
condições para a travessia decisiva, embora tenha sempre desejado esticar a corda
ao máximo!
E foi o que fez, efetivamente.
Zaratustra atingiu seu cume nesse momento, deu-se por inteiro, ousou
evocar esse fenômeno adormecido... Ele esteve inteiro para a entrega, mas não
suportou o momento exato em que tudo parecia confluir para o desenlace abismal.
Esse encontro mostrou-se impossível. Zaratustra recuou não porque quis, e sim
140
Za o convalescente, KSA 4, p. 271.
141
Ibid.
142
Ibid.
169
porque não encontrou passagem. Ele chegou bem próximo, seu corpo chegou a se
transmutar, no entanto sua condição humana prevaleceu como limite último, e ele
foi obrigado, longe de qualquer “livre-arbítrio”, a evadir-se apavorado.
Zaratustra se preparou por anos para esse momento. Preparou seus amigos,
sobretudo os mais fiéis, seus animais, companheiros e vizinhos de caverna.
Peregrinou, passou por provações, sofreu... Expandiu seus limites, testou,
argumentou e lapidou sua convicção acerca desse momento. Ele não fez outra coisa
senão se preparar para o grande encontro. Intuiu o bastante para saber o quão
extremada seria a experiência. Com o passar dos anos, seu corpo foi mudando, sua
alegria se tornando radiante, explícita.... E, quando chegou o momento, Zaratustra
evocou, gritou, abriu-se... Sentiu o calor do sol se aproximando, foi inundado por
feixes de luzes, ouviu o inaudito, viu seu corpo dar início à desconfiguração radical,
contudo a passagem decisiva não aconteceu. O recuo não foi por medo, mas por
impossibilidade.
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Por isso, dizemos que ele flertou com o ponto abismal, que ele circundou o
ponto, fez a curva e foi obrigado a retornar. Afinal, ele mesmo não havia doutrinado
a respeito do eterno retorno? Portanto, ele já sabia disso. Ele sabia que, em vida,
não se experimenta a morte e que, a despeito da excentricidade do movimento, a
despeito do impulso para o rasgo último, sempre há um dispositivo lá na ponta,
exatamente onde se situa o marco zero do portal que impele o corpo a regressar.
Esse dispositivo, não é outra coisa senão um alternador, uma chave que possui o
código de todos os elementos possíveis da existência e cujo trabalho é impulsionar
o retorno; aliás, como ensina Zaratustra, o eterno retorno. Essa é a descoberta
extrema de Zaratustra. O portal não permite que os tempos se misturem, mas ele
garante a repetição infinita do instante. Acessar o portal é possível e torna o homem
um ser mais próximo da realização do corpo. Aqui, corpo quer dizer o todo, o corpo
absoluto. Corpo que contém uma infinidade de subcorpos: corpos humanos, corpos
dos animais, corpos celestes, microcorpos etc.
Flertar com o ponto abismal, ou com o instante impossível, ou, ainda, com o
pensamento abismal, é atingir o tempo da possibilidade de reconciliação dos corpos
com o princípio da vontade de potência. O marco zero é o ponto que alinha todos os
corpos, que dá ao experimentador a chance de reverberar em uníssono. Transfusão
170
teve acesso ao portal, como também deu notícias do grande segredo deste marco
zero: a existência do dispositivo que a tudo transfigura, realinha no cosmos e
impulsiona de volta. Zaratustra buscou avidamente pelo momento de transvaloração
total, esteve lá e, como não poderia deixar de ser, retornou.
Essas vivências de Nietzsche são possíveis de ser conhecidas ao longo de
suas obras e fragmentos póstumos, mas, sobretudo, em sua longa e belíssima
correspondência. Certamente, também, através de toda a sua relação com a música.
Tudo isso nos dá testemunho de um fazer filosófico que não poupou esforços, ou
melhor, que foi pulsionalmente levado a conceber a arte de uma forma
absolutamente idiossincrática –– uma concepção de arte que se constituiu na relação
direta não com a concretude de suas obras, seus “produtos” ou intervenções, mas
que se fez a partir da ousadia de se pensarem as potências múltiplas e infinitas do
corpo. Trata-se de uma arte que, em se tornando, ela mesma, uma experiência de
tangenciamento do todo, alinhou os corpos junto ao cosmos e ousou restituir ao
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144
É importante fazer menção aos seguintes dados bibliográficos: Zaratustra surge no momento em
que Nietzsche está possuído pelo Daimon do amor. Ele não apenas havia, finalmente, rompido com
Wagner; sobretudo agora, sentia-se cada vez mais livre para empreender um movimento contra seu
ex-mestre. Ora, a despeito de qualquer elemento de discussão no plano estético-filosófico, sabe-se
que Nietzsche manteve com Wagner, até o fim, uma relação de amor e ódio. O rompimento não
exterminou a paixão, mas deu a ela novos contornos. Wagner seria para sempre um gigante com o
qual ele teria tido a honra de conviver, aprender, amar, desprezar e, por fim, digladiar. Tudo de
Nietzsche com Wagner é repleto de afetação. Os polos oscilam, são extremados. Há uma inequívoca
dimensão paternal em jogo. Nietzsche precisou, até o fim da sua vida, de Wagner como elemento
indutor de seus investimentos passionais, como quem precisa de água para viver. Tal fato fez de
Wagner muito mais do que um músico, compositor ou ex-amigo a ser criticado: o compositor de
Tristão e Isolda foi, sem dúvida, o mais potente objeto de amor de Nietzsche. Outra circunstância
importante e, sobretudo, de caráter também extremo, agudo, na experiência do filósofo foi o evento
Lou Andreas-Salomé. Ele havia se enamorado da bela e inteligente moça russa e com ela se
entregado a uma incitante experiência intelectual que, não obstante, revelou-se, para o filósofo, como
um grande amor a ser conquistado. Ele chegou a pedi-la em casamento, mas teve sua resposta
contundente em forma de uma inequívoca negativa. À ocasião, Nietzsche acabara de compor uma
nova versão para “Hino à amizade”, que passava a se chamar “Oração à vida”. Nessa nova e
compacta versão da antiga música de Nietzsche, o filósofo-músico lançou mão de um poema de
Salomé para dar voz ao que antes era melodia expressa apenas pelo piano. A seguir, a tradução livre
da poesia de Lou Salomè, musicada, por Nietzsche, à ocasião do nascimento de Zaratustra:
Sem dúvida um amigo ama seu amigo/como eu amo você, vida cheia de enigmas!/
Não importa se você me fez gritar de alegria ao invés de chorar,/ou se você me trouxe sofrimento ao
invés de prazer./Eu te amo com a sua felicidade e aflição:/e se necessário, que você me aniquile,/Eu
me tomarei fora de seus braços com a dor,/como se arranca o amigo do peito de seu amigo.
Com todas as minhas forças eu abraço você:/ Deixe que a sua chama incendeie meu espírito e, no
ardor da luta, /Encontre eu a solução para o enigma do seu ser!/
Pensar e viver por milênios,/libertar-se inteiramente dos conteúdos!/Se já não resta mais nenhuma
felicidade para você me dar, /Bom! Você ainda tem - o seu sofrimento!
173
alicerçados os conceitos e valores da maioria dos seres. Ele atua quase que por
vocação, por ímpeto –– sem dúvida, por amor, mas não um amor cristão que supõe
a aceitação da submissão de si em nome de acontecimentos superiores, não o amor
cristão que vê no enfraquecimento do corpo a condição para a ascensão. O amor de
Zaratustra é estético no sentido de que ele rompeu as amarras do juízo e
experimentou o que seria um mundo ligado pelas intensidades provenientes dos
encontros do corpo com os múltiplos corpos da natureza. O amor de Zaratustra é o
que se passa nos encontros entre as partículas, naquilo que pode ser descrito como
composição entre as diferenças. O amor, aqui, é a tradução de uma gratidão: porque
ele descobriu “o sentido da vida”, porque ele logrou êxito em apreender algo além
da ignorância que une os homens em torno de suas crenças e ideais; então, por isso,
Zaratustra é grato à vida por ela lhe ter possibilitado sua experiência radical: a
dança do corpo, o canto da vida, a vida do corpo.
O amor de Zaratustra é genuíno, de peito aberto, gratuito desde a ideia de
que a oferta o engrandece e o faz expandir ainda mais. Aprendeu ele que o
desprendimento, a descaracterização de um certo recorte do todo, a
dessubstancialização, ou seja, tudo aquilo que implica uma entrega capaz de diluir
145
WA 10, KSA 6, p. 37.
175
prestam a acompanhá-lo nas alturas? Porque são eles os que não têm memória, os
que não se recobrem de reminiscências do passado. São livres no sentido de que
tangenciam o agora com a alegria de quem acaba de chegar, não à terra prometida,
mas à única terra que há. Os animais se irmanam com a descoberta de Zaratustra: a
do eterno retorno das coisas já que eles, assim como o “profeta”, não se importam
com a lógica da sucessão do tempo, mas, somente, com a potência do que é.
Os animais dançam com Zaratustra, ensinam-lhe novos passos, e ele os
aprende e depois os apaga. Os passos não se inscrevem, não se recortam, não se
cristalizam –– transformam-se, transferem-se e desmaterializam-se na própria
dança. A dança de Zaratustra não é coreográfica; acontece como pura expressão do
corpo, como um atirar-se ao longe, ao éter, mas com a garantia de que a fisiologia
desse corpo salvaguardará a inocência do próprio ato. Ou seja: a dança dos animais,
que é também a de Zaratustra, é um ato cujo referencial não é outro senão o da
vontade de transfiguração. Os animais não sabem dançar, eles apenas dançam.
Aqui, a pulsão vence a técnica, a voz se afirma sobre o discurso, o ímpeto vence a
doutrina. Os animais são capazes do desprendimento já que não se lembram e,
176
talvez, nem saibam que são animais: “O animal nada sabe do seu si-mesmo,
também nada sabe do mundo.”146
Dar fluxo ao corpo, apoderar-se dele, deixá-lo ao sabor de suas próprias
engrenagens é admitir que o júbilo da existência só pode ser compatível com a
evanescência, a sideração e a desconfiguração do si no todo. A dança de Zaratustra
não quer ser vista; ele não dança para uma plateia. Sua dança é movimentação que
retorna ao próprio corpo. Nesse sentido, pode-se afirmar que os animais, por não
terem consciência do corpo, mas por se deixarem à sorte do fluir de suas máquinas,
tornam-se menos acossados pelo próprio pensamento. Os animais montam suas
máquinas em consonância com a terra e com os outros animais. O animal não se
vinga: atua por imposição de sua vontade. Sua força só é parada pela resistência que
lhe oferece um outro animal ou a própria natureza. Ou, dito de outra forma, um
animal só se atém quando encontra limites para a permanência de sua integridade.
Essa é sua máquina. Ele dispensa o pensamento e funciona como fragmento de
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146
KSA 10, 5[1] 237, p. 215.
177
não tivesse sido identificado como animal de carga? Certamente que o camelo foi,
desde sempre, complacente, conivente. “Malditos homens-camelos”, poderá dizer
Zaratustra. Por que aceitam carregar o fardo de um peso que lhes pertence a eles?
Por que não podem simplesmente bater em retirada? Por que não desenvolveram a
arte de se despir e se atirar junto ao nada?
Por que os homens-camelos se satisfazem com tamanha renúncia? Assim
agem porque não sabem dançar, mostrará Zaratustra. Não sabem chacolejar, não
sabem chacoalhar. Os homens-camelos são açoitados pelo sentimento de culpa, pois
foram levados a entender que sua fisiologia lhes indica serventia imediata,
complacência somática. São fracos. O corpo perdeu a capacidade de ditar o seu
querer –– submete-se ao querer do homem.
Maldito olhar do homem! O homem é aquele que vê em tudo a possibilidade
de constrangimento em nome de um telos –– para tudo, um fim, uma finalidade, o
vício em ter que encaixar, em ter que pressupor uma lógica de utilização. Maldito
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147
KSA 10, 5[1] 250, p. 217.
179
Como entender o privilégio dado aos animais? Suas alianças são com os
seres cuja sensibilidade e desprendimento podem fazer eco ao canto do profeta-
poeta. Aqui, Zaratustra e seus animais são uma reedição do coro dionisíaco, e a
inegável revalidação de um grandioso espírito de divindade levita sob todas as
coisas –– a Terra como parte do homem e vice-versa; o homem comungando com
Deus desde sua própria imanência. A liturgia zaratustriana não pune nem oferece
promessas: ela simplesmente entoa um cântico que se quer além de bem e mal. A
doutrina de Zaratustra é um evangelho às avessas, uma grande ópera de um só.
É válido acompanhar o entusiasmo do autor quando, em carta a Ernst
Schmeitzner, ainda então seu editor, datada de 13 de fevereiro de 1883, ele anuncia
a conclusão da primeira parte de seu Zaratustra. Naquela carta, Nietzsche estava
orgulhoso de seu feito, via no próprio anti-herói a condição de ser um livro
vendável (inclusive o livro é apresentado ao seu editor como sendo uma boa
oportunidade para melhoria das vendas dos livros de Nietzsche). O mais relevante
dessa carta, contudo, é a “classificação” da obra tanto como uma “composição
poética”, como um “quinto evangelho”:
148
KSA 10, 5[1] 238, p. 215.
180
Hoje tenho uma boa notícia a lhe dar: dei um passo decisivo – de tal maneira que
julgo ser vantajoso para você. Trata-se de um pequeno volume (de apenas cem
páginas), cujo título é “Assim Falava Zaratustra – Um livro para todos e para
ninguém”. Trata-se de uma “composição poética”, ou de um quinto ‘evangelho’, ou
talvez de algo para o qual não exista nenhuma definição: é minha obra
comparativamente mais séria e também mais alegre, e acessível a qualquer um.
Portanto estou convencido de que terá um efeito imediato – sobretudo agora que, a
julgar por indícios concretos, o interesse por mim, que sempre foi preguiçoso e
relutante, acabou por alcançar algum desenvolvimento. (...)149
alegria de estar vivo. Zaratustra foi seu grande parceiro; principalmente, foi seu
médico. Um ser cuja existência o transportou a lugares e estados de si que operaram
efeitos curativos. Nem Wagner, nem Lou Andreas-Salomé, nem Bayreuth, nem
Hans Von Bullow haviam sido tão importantes quanto Zaratustra. Uma entidade
que canta e dança e, assim, revitaliza o próprio Nietzsche só poderia ser tomada
como a verdadeira bênção.
Com ele, a música de Nietzsche se via lançada a lugares nunca dantes
alcançados. O que diriam Wagner e Von Bullow da grande tragédia em quatro atos
cuja música se apresentava sob a forma de poesia contínua? O que poderiam objetar
quanto à leveza e contundência dos ditirambos de Zaratustra?
Zaratustra fala por música, ele é inteiro um poema. Suas palavras soam
como um recital que, encontrando inspiração nos poemas clássicos da Grécia antiga
e, sobretudo nos ditirambos de filiação dionisíaca, assume a forma de uma obra
musical trágica, uma afirmação possível e, portanto, reordenadora da experiência
musical do filósofo:
149
FNC, Vol. IV, c 375.
150
Ibid.
181
Esta obra [Zaratustra] ocupa lugar à parte. Deixemos os poetas de lado: talvez
nunca se tenha feito nada a partir de uma tal profusão de energia. Meu conceito de
dionisíaco tornou-se ali ato supremo; por ele medido, todo o restante fazer humano
aparece como pobre e limitado. (...) Ele [Zaratustra] contradiz com cada palavra
esse mais afirmativo dos espíritos; nele todos os opostos se fundem numa nova
unidade151.
Nesta marcação feita pelo próprio Nietzsche, em momento final de sua obra,
na hora em que faz um balanço do que produziu, repousa um de nossos argumentos
principais nesta tese: Zaratustra como o dispositivo que instaura Nietzsche,
definitivamente, na condição de um filósofo-artista.
A arte de Zaratustra faz de seu canto sua morada. Ele canta para tirar o peso
que o camelo carrega às costas e também para renunciar ao fardo enunciado através
da voz de comando do leão. Zaratustra se aproxima da última metamorfose –– a
criança –– quando aprende a doutrina do eterno retorno e se põe a cantar sobre ela.
A vida flui como ciranda, tudo é, desde sempre. Por isso, ser criança, ser leve como
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151
EH assim falava zaratustra 6, KSA 6, p. 343.
182
guerra por onde se travaria a batalha final entre a obsessão pela forma152 (apolínea)
e o puro êxtase (dionisíaco). A penetrante força dionisíaca passava a comandar uma
verdadeira tomada das pretensões ordenadoras de Apolo. Não que estivessem um
contra o outro, não que não contribuíssem um com o outro; mas, inegavelmente,
havia algo de dionisíaco, anunciado por Nietzsche desde aquela época, que,
imperando e dominando, impondo o êxtase à forma, garantiria acesso a um novo e
elevado patamar da experiência.
Agora, Zaratustra encarna o canto do corpo, da embriaguez e da lucidez
diante da força instituinte e niveladora do homem por baixo. Zaratustra canta contra
o niilismo do homem superior, este último tendo em Wagner e seu legado um dos
maiores representantes. A partir desse ponto, finalmente Nietzsche atinge algo que
buscava desde cedo: a música como princípio, como potência de ligação, como
elemento capaz de instaurar a alegria como valor em si, a ser eternamente
experimentado. Faz-se mister reparar que O nascimento da tragédia já anunciava os
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152
Apolo, o deus da forma, segundo Nietzsche, pode ser mais bem definido desta maneira: ele leva
contornos e limites aos objetos de maneira a dar a eles uma existência plena e bela, uma capacidade
de brindar o humano com a categoria do que é aprazível e fluído desde sua forma. Com Apolo, a
experiência ganha contornos de sentido e emana signos de plenitude. Essa divindade, ao traçar os
limites, ao designar as formas, traz com ela a potência da sabedoria e do verdadeiro. A capacidade de
prover luz é seu dom inaugural, e tudo aquilo em que interfere é recriado numa perspectiva de figura
e fundo, de projeções imagéticas e de intelecção apaziguadora. Apolo é o deus da perfeição e seu
modelo, segundo enfatiza Nietzsche, é o do sonho. Esse sonho, pura potência pictórica, é o que pode
proporcionar um parcial recobrimento daquilo que Nietzsche designa por “formas fundamentais do
real”. Ou seja, com o apolíneo, estamos no campo das aparências, daquilo que se apresenta como
trabalho da divindade sobre o real, possibilitando a criação de corpos capazes de ser olhados,
admirados e contemplados. Trata-se da experiência da contemplação, ou seja, do magnânime ato de
se “deparar com”, de se “ver diante de” e de se “constituir através de”. O artista – e em Apolo
estamos diante principalmente do artista plástico, esteta das imagens e das formas – é aquele que se
comunica com a experiência da divindade tal qual um médium o faz. O artista é o meio pelo qual se
manifesta a vontade apolínea, e sua obra é o próprio sonho de Deus. Nessa perspectiva, Deus e
humanidade se fazem refletir. Nietzsche enfatiza o fato de que o homem grego precisou criar o
Olimpo para que nele se espelhasse e sua experiência ganhasse o sentido da alegria e perfeições
divinas. Nesse sentido, os deuses do Olimpo estão postos como modelo e como objetos de desejo
onde os processos de idealização da vida e da morte estão em jogo. As divindades do Olimpo
exercem menos o controle e a punição do que se valem como corpos atravessados por
pulsionalidades a serem inspiradoras e admiradas pelo homem.
183
agora, Zaratustra afirmaria a experiência do flerte com o ponto abismal como sendo
de caráter extramoral, insondável, irrepresentável, impossível de se concretizar
senão pela hegemonia do corpo sob si próprio. Contra o mito, Zaratustra apresenta o
triunfo de seu corpo; contra Wagner, Nietzsche celebra a sua dor como bálsamo,
como harmonia e melodia a serem entoados em nome da superação do fardo de
existir como camelo-leão.
É importante perceber que a saga de Zaratustra resgata muito do que já havia
entre os gregos acometidos por Dioniso. O ditirambo, o coro e o cômico são
dimensões que se mantêm vivas através do canto e dança de Zaratustra. Mais uma
vez, vale acompanhar a metamorfose Dioniso-Zaratustra, garantindo a supremacia
do dionisíaco no pensamento de Nietzsche, através do seguinte extrato de O
nascimento da tragédia:
de seres naturais, que vivem, por assim dizer indestrutíveis, por trás de toda
civilização, e que, a despeito de toda mudança de gerações e das vicissitudes da
história dos povos, permanecem perenemente os mesmos154.
O que é o coro dos seres naturais? O que é o coro dos sátiros, que vivem
indestrutíveis por trás de toda civilização? É o canto da terra, a música que há. Ela
não pode ser apagada, reescrita, subvertida... Ela apenas há. O coro dos sátiros
supera a tragédia que há, sendo ele próprio a dor e a alegria unidos pelo canto e a
dança. Os gregos sabiam disso, e isso lhes era motivo de festa.
Zaratustra, ele sim, o grego ressurgido. Através de seus ditirambos, da força
de sua música entoada em coro, recitada a despeito de qualquer circunstância, está
Zaratustra sob o sol do meio-dia a entoar odes de amor em sua lira, duplo de seu
corpo, de seus animais. Amor a tudo que é ébrio, tudo que faz dançar através de
“um perfume e aroma de eternidade, um róseo abençoado, castanho vinho-ouro de
velha felicidade, da ébria, agonizante felicidade de meia-noite, que canta: o mundo
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154
GT 7, KSA 1, p. 56.
155
Za o canto ébrio 6, KSA 4, p. 400.
185
Ele vive por si assim como por toda a humanidade: sabor de uma certa loucura,
certamente, na medida em que ter acesso a esse domínio é lidar com atmosferas
rarefeitas.
Sua dança, que não é pré-escrita nem mapeável –– mas inexorável! ––,
acontece como o próprio entoar de sua música: ela flui. Nada, absolutamente nada,
freará o júbilo de sua descoberta. Aos homens superiores, ainda por generosidade,
ele entoa antes de anunciar o sinal:
156
Za o canto ébrio, 12, KSA, p. 404.
186
pensamento junto ao eterno retorno e que gargalha dos eventos como quem extrai o
sumo dos figos, só pode ser uma filosofia marcada pela experiência. Não se chega a
ela sem o trabalho do corpo sobre o corpo e seus rebatimentos.
A arte como princípio superior de todas as coisas, a arte como dispositivo de
criação dos corpos, chave de todos os enigmas, a arte como potência que modela a
vida, os homens e o sentido das coisas –– essa arte não nasceu do corpo de
Zaratustra, mas foi compreendida por ele. Ele a ela se integrou e, a partir de então,
usufruiu-a. Ele a inseriu, com sua movimentação, no ciclo eterno de criação de
todas as coisas. Quando entoou seu ditirambos e fez da dança seu movimento mais
fundamental, Zaratustra deu mostras de que a arte é um estágio elevado (ou
depurado) do pensamento. Ela é o pensar de todo o pensamento e o agir de todas as
ações.
A assinatura de uma descoberta, de uma revelação como esta –– que é o
alcançar do exercício da arte ––, coube a Nietzsche a partir de suas idiossincrasias.
Essas idiossincrasias, que são mais que adjetivações de si, são potências do pathos,
são experiências que somente um filósofo inclinado a encontrar as dimensões mais
extremadas da arte poderia alcançar.
Nietzsche, como ele próprio designou: um filósofo-artista.
Conclusões: Nietzsche, o filósofo-artista
No máximo, um médium, um meio pelo qual algo se reproduz. O mundo não pode
se dividir entre artistas e não artistas, entre Deus e o resto, desde uma perspectiva
onde o qualitativo estivesse funcionando como critério. Nietzsche, evidentemente,
não nega a potência daqueles que se propõem a formalizar seus impulsos através de
produções idiossincráticas, tampouco nega que existam articuladores de formas ––
ele mesmo foi um deles. Não se trata de descaracterizar as composições; em sentido
amplo, aquilo que se pode chamar vulgarmente de “obra de arte”. Por fim, não se
trata de maldizer ou de não admirar as composições feitas em nome da arte; ao
contrário, existem muitas coisas passíveis de admiração ou execração. Em
Nietzsche, no entanto, essa não é a questão principal. Não se discute gosto:
discutem-se os níveis de entendimento daquilo de que se gosta ou não, ou seja, os
níveis de entendimento dos elementos que disponibilizam as estratificações e
derivações da arte.
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arte, através do “grande estilo”, alinha as polaridades das forças e, através do eterno
retorno, determina a suspensão dos valores, das ameaças e das contradições.
Exemplos: 1) quando o andarilho fala de uma superação da dor, do sofrimento e
dureza das suas andanças que tem a qualidade de transfigurar o corpo e deixar-lhe
em condição de júbilo de maneira tal que tudo flui a seu favor; 2) quando
Zaratustra, do alto da montanha, evoca o eterno retorno e experimenta o flerte com
o ponto abismal. O “grande estilo” é, portanto, o meio pelo qual a arte consegue
alinhar as diferenças e estabelecer um estado de plenitude, de fruição e fluxo do
corpo.
6) Em Nietzsche, o mundo, seja ele micro ou macro, é o que se constitui como obra
de arte. A arte não é materializável. Dispensam-se Deus e seus missionários, os
artistas de toda sorte, porque o mundo é um corpo cuja afecção, em sua forma
depurada, é expandir-se. Apesar dos esforços da cultura, das normas, procedimentos
e toda sorte de recorte ideológico, o mundo permanece o que é: “uma obra de arte
que dá luz a si mesma”. Não se pode parar o movimento. Não há força ou forças,
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investidas dos esforços dos homens, que consiga desviar, estancar ou reverter o
processo de expansão. A essa expansão, inexorável, princípio que rege todo o resto,
Nietzsche deu o nome de “vontade de potência”, que não pode ser entendida como
vontade de uma pessoa, vontade de um grupo, aspiração, desejo, etc. No máximo,
essas denominações são apenas designações, sempre parciais, de algo que esteja no
domínio da vontade de potência. Uma vontade subjetiva, uma necessidade não é a
vontade de potência em si –– no máximo, um rebatimento. A ambição desmesurada,
a inveja destrutiva, o ímpeto e os arroubos são meios de subjetivação que se
orientam junto ao princípio da vontade de potência, mas com ela não se confundem.
São emulações. Portanto, o que quer que o homem designe sob o nome de “arte”,
“objeto de arte” ou “artístico” é tão somente uma tentativa, parcial, de se apropriar
da vontade de potência.
Regozija-se por ter aprendido a dançar. Sua decência está no fato de que ele não
toma para si a pretensão de ensinar os homens a dançar. Ele não dança para os
homens –– dança para si, dança para alinhar-se junto aos movimentos dos corpos.
Zaratustra dança com os animais e com a Terra, contudo, sua postura é rara. Ele
quer gargalhar porque isso lhe traz o sentido da vida, mas não tem a pretensão de
chamar de arte sua saga e muito menos de supor que, para ele, chegar a habitar o
abismo seja possível. Não. Zaratustra (e desenvolver isso foi, em parte, o nosso
esforço nesta tese), no máximo, flerta com o abismo. Ele sabe que não pode lá
permanecer porque a vida é incompatível com a morte propriamente dita. Além
disso, Zaratustra ama a vida, e ama, dessa feita, aquilo que esse corpo pode lhe dar.
Ele tenta reverberar junto à vontade de potência, mas sabe que não conseguirá
tomá-la para si.
10) Sobre a questão do valor: quando se torna mercadoria, é sinal de que a arte
funciona para fins de utilidade, de troca, de deleite. Ora, esse destino ao que se
queira chamar de arte, que, em Nietzsche, não é outra coisa senão decadência,
pressupõe que a humanização ao extremo desse modo de produção –– a atribuição
de valor mercadológico à “arte” –– o circunscreve dentro de uma lógica econômica
cuja equação determina uma igualdade entre os termos capital e arte. Se é possível
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leiloar-se a arte, se ela adquire status de mercadoria, então significa que algo se fez
evadir nesse processo. Quando se atribui preço à arte, ela se substancializa a ponto
de se revelar como Nietzsche a sabia: apenas mais uma potência do falso. Nada a
objetar quanto à mercantilização do que quer que seja; afinal, esse processo é
também, a condição de um modus operandi de vida que tem sido soberano desde
que foi inaugurado. A questão, no entanto, é a seguinte: que diferença há entre
moedas? A resultante não será sempre um montante? Por que se contentar com a
esmola (seja ela milionária ou não) como signo do que seja artístico? Em outras
palavras, onde há mercantilização, houve apropriação do artístico. Para tal,
vulgarizou-se a arte.
14) Em Nietzsche, a arte irrompe no homem, e não o contrário; dessa feita, a arte é
a própria pulsão. Se o homem age sobre alguma coisa, essa coisa pode derivar da
arte, contudo jamais será a arte. Apolo e Dioniso: duas formulações que tentam
humanizar a pulsão. Figurabilidade e embriaguez –– elementos simétricos, razões
opostas, motivos intensos e passíveis de diálogo. Aliás, desde O nascimento da
tragédia, Nietzsche já dissera que o dionisíaco tenta abrir o homem ao além de si
mesmo, mas a vida, em seu movimento de apreensão e contenção da pulsão,
inesgotável, retorna com Apolo e obriga o homem a aderir às formas. Assim se
humaniza a arte. Nietzsche inventou o resgate da tragédia grega através da báscula
entre o apolíneo e dionisíaco porque, desde cedo, viu-se, ele próprio, função dessa
báscula. A pulsão o tomou de vento em popa: o gosto do fluxo, do vento beijando a
face. Por isso ele tinha fascínio pelo caminhar na corda de elástico; porque ela
suspende a polaridade, mas não a elimina. Andar na corda bamba é para poucos ou
para nenhum. Quem a sustenta por muito tempo? O funâmbulo, logo no prólogo, se
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esborrachou –– não aguentou a pressão. Ele se apavorou com a multidão que dele
demandava peripécias. Morreu porque foi dragado pela massa, que corrói,
corrompe, engole, fagocita. E depois dejeta. Mas Zaratustra estava lá, recém-
chegado à cidade, e tomou o funâmbulo pelas mãos. Carregou-o até dar-lhe destino
digno. Despediu-se, dizendo que não é possível a vida para mortos nem a vida na
morte. E dali seguiu em frente, ele próprio tendo introjetado o funâmbulo. A partir
de então, Zaratustra assume o gosto pela corda bamba. Ele vai tentar a experiência.
Correrá todos os riscos, e isso o fascinará porque extrairá enorme júbilo na
suspensão. Viver é equilibrar-se na ausência do bem e do mal. Toda vez que cai,
Zaratustra tenta retornar para esse local de indiferenciação. Uma vez que se
conheçam os termos de acesso, então se pode aí estar com mais frequência. Cada
flerte com o abismo é, em si, uma experimentação artística.
15) A arte engendra o amor, torna o amante mais belo, mais perfeito porque o
transfigura desde a embriaguez dionisíaca. Todo tipo de amor, na sua intensidade,
tem raízes orgânicas onde a arte se encontra como dispositivo disparador. Note-se
bem: não é que a arte seja o amor e muito menos que amar seja uma arte –– a
disponibilidade para amar é efeito de uma configuração fisiológica tonificante cujo
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dispositivo da arte habilitou. Nietzsche, nesse ponto, define a arte como estimulante
da vida. O amor é um estado alterado de si, no qual a percepção do que há em si e
em torno de si (não de deve falar de objeto de amor externalizado) é promovido
pela força potencializada, liberdade pela arte. Todo amor, mesmo sendo mentiroso,
ficcional, é potência do corpo. Os amantes, através do rebatimento de suas afecções,
criam corpos de potência, transfiguram-se, transfundem-se e se modificam.
16) Para Nietzsche, a arte é como a força superior, capaz de se opor aos estados de
conformismo e mesmo de negação da vida defendidos tanto pelo Budismo quanto
pelo Cristianismo. A arte é também o dispositivo que permite ao homem lidar com
a dimensão trágica. Em Nietzsche, a arte é a própria dimensão trágica na medida em
que opera na intensidade das sensações e permite ao conhecedor conhecer-se como
trágico, ao homem de ação, tornar-se guerreiro e ao sofredor, transfigurar seu
sofrimento. A arte é, portanto, o dispositivo que permite a Nietzsche e a Zaratustra
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17) É neste sentido, que pode-se falar de uma estética nietzschiana. Ou seja, apenas
no registro da evocação do trágico, da convivência com a ameaça da desintegração
e com o júbilo dos extremos aportados por Dioniso, é que se pode entender que haja
algo que –– não como modelo preestabelecido ou alvo a ser atingido, mas, como
suporte de repetição da experiência, dispare e potencialize o circuito do eterno
retorno. A arte, em Nietzsche, só pode ser uma estética se concebida como
dispositivo. Dispositivo que garante a báscula continuada entre as polaridades de
maneira tal que o processo de suspensão das valências se torne dominante, tal qual
o forte se impõe ao forte, provocando um efeito de indiferenciação tal que a
resultante retorne, ela própria, como resultante fisiológica: música, dança,
gargalhadas.
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transfiguração. Nada disso deve causar surpresa porque todas essas composições
(religiosas ou não, místicas ou não, filosóficas ou não) estão lidando diretamente
com questões pertinentes ao absoluto e às parcialidades, ao todo e ao nada, ao
positivo e ao negativo, ao ser e ao não ser. Em sentido amplo do termo, a metafísica
é o instrumento de reflexão e pensamento sobre as origens e os fins e, guardadas as
diferenças, tais questões sempre interessaram ao homem desde muito cedo,
independentemente de suas origens geográficas, étnicas, raciais. O pensamento
abissal, segundo se aprende com Nietzsche, é pura vontade de potência. Como tal,
ele visa expandir-se, mas encontra limites que o impelem a retornar e o obrigam a
assumir as mais diferenciadas formas. Ou seja, se a vontade de potência é o
princípio que rege o Todo, que impulsiona as diferenciações, então, a partir dela,
tudo que existe são caminhos, estratificações, linguagens, formações de
compromisso, arranjos etc., que recebem os mais distintos nomes de acordo com as
diferentes épocas, línguas, culturas e tradições. Há que se reconhecerem, portanto,
afinidades e proximidades da experiência abissal de Zaratustra com experiências de
elevação experimentadas pelos místicos. Seja o Tao, o Zen-Budismo ou a própria
experiência mística dos cristãos, é preciso ver que há planos em comum nessas
doutrinas/práticas/experiências a despeito de todas as diferenças envolvidas: trata-
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O Tao é um mar sereno de puro vazio, perlado, ilimitado, imaculado. Dele nascem
dois dragões gêmeos: o macho, o brilhante como o sol e estriado de ouro, senhor da
ação; a fêmea, radiante como a lua e entretecida de fios de prata, dada à
passividade.
que há. O Tao, escuridão dentro da própria escuridão e caminho para toda a
compreensão. O Tao é ao mesmo tempo o ser e o não ser, o nada antes de tudo e o
ser de onde tudo emana. O Tao é fluxo eterno e, nele, tudo se transforma, modifica-
se a cada instante. As mutações ocorrem como condição da vida e nela tudo se
resolve. Como não perceber semelhanças entre o flerte com o ponto abismal de
Zaratustra e a experiência mística taoísta, que visa à destituição do ego e à
libertação do espírito, para que, em se desapegando de tudo que há, retorne como
ilimitado, em consonância com o ser em sua totalidade? Tanto Zaratustra quanto o
Tao sabem do abismo, do indiferenciado e da potência que aí reside, a criação do
todo. Ambos visam, cada um à sua maneira, à seguinte experiência do homem com
o cosmos: a superação das rivalizações polares (todos os valores), das diferenças e a
experimentação de um estado de suspensão que lhes permita a imortalidade (no
caso dos taoístas) e a transvaloração de todos os valores (no caso de Nietzsche).
Zaratustra, diferente do Tao, não falará de imortalidade, mas sim de afirmação
eterna e incondicional da vida.
conceito, uma nova categoria nem uma nova postura a ser afirmada: é uma criação
artística, de um filósofo que ousou expandir-se através de suas afecções rumo ao
limite do possível, contornando o impossível. O filósofo-artista, “concepção
superior da arte”, termo cunhado pelo duplo de Zaratustra, é o nome que melhor
define a trajetória e o legado de Friedrich Nietzsche.
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SALOMÉ, L.A. Friedrich Nietzsche à travers ses oeuvres. Paris, Grasset, 1992.