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Carlos Mario Alvarez

Nietzsche e a experiência do filósofo-artista


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812813/CB

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Letras do Departamento de Letras da PUC-Rio como parte
dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em
Letras.

Orientadora: Profa. Eliana Lúcia Madureira Yunes Garcia

Rio de Janeiro
Março de 2012
Carlos Mario Nascimento Alvarez

"Nietzsche e a experiência do filósofo-artista”

Defesa de Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Doutor pelo programa de Pós-Graduação
em Letras do Departamento de Letras do Centro de Teologia e
Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.

Profa. Eliana Lúcia Madureira Yunes Garcia


Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812813/CB

Profº. Karl Erik Schollhammer


Departamento de Letras – PUC-Rio

Profº. Érico Braga Barbosa Lima


Departamento de Letras – PUC-Rio

Profº. Aluisio Pereira de Menezes


FACHA

Profº. Chaim Samuel Katz


SPPF-RJ

Profa. Denise Berruezo Portinari


Coordenadora Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 30 de março de 2012.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade,
do autor e da orientadora.

Carlos Mario Alvarez

Carlos Mario Alvarez é Psicanalista.


Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ,
onde defendeu a dissertação “Um estudo sobre a transferência na
obra de Sándor Ferenczi”.
Professor Convidado na Université Sorbonne Paris 2.
Professor Pesquisador visitante na Universidade Rutgers
2010/2011
(NJ, EUA) e curador do Projeto "Psicanálise Descolada"
Mora no Rio de Janeiro, com consultório no Leblon e
consultório Virtual.

Alvarez, Carlos Mario


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812813/CB

Nietzsche e a experiência do filósofo-artista / Carlos


Mario Alvarez; orientador: Eliana Lúcia Madureira Yunes
Garcia – 2012.

201 f. ; 30 cm

Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do


Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2012.

Inclui bibliografia

1. Letras – Teses. 2. Nietzsche. 3. Filosofia. 4.


Filósofo-artista. 5. Andarilho. 6. Zaratustra. 7. Arte. 8.
Música. 9. Pulsão. I. Garcia, Eliana Lúcia Madureira Yunes.
II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Letras. III. Título.

CDD: 800
Resumo

Alvarez, Carlos Mario; Garcia, Eliana Lúcia Madureira Yunes


(Orientadora). Nietzsche e a experiência do filósofo-artista. Rio de
Janeiro, 2012. 201p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Nietzsche e a Experiência do Filósofo-Artista aborda o pensamento do


filósofo alemão de maneira a evidenciar que sua obra poderá ser bem
compreendida ao se levar em conta o que o próprio Nietzsche postulou como
experiência (erfahrung) do vivido (Erlebnis). Através da apresentação,
problematização e análise de seu estilo (aforismos, poesias, ditirambos, músicas e
tipologia) e de aspectos pertinentes à sua forma peculiar de afirmar a experiência
humana, mostra-se como Nietzsche construiu seu pensamento através de
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formulações advindas desde seu próprio corpo. Dessa forma, afetos,


corporeidades, estados de humor, pulsões e potências são elementos que deram
consistência a um pensamento que ousou distanciar-se da tradição ocidental
metafísica e inserir-se sob uma nova insígnia: a postulação do filósofo-artista.

Palavras-Chave
Nietzsche, Filosofia; Filósofo-Artista; Andarilho; Zaratustra; Filosofia;
Arte; Música; Pulsão.
Abstract

Alvarez, Carlos Mario; Garcia, Eliana Lúcia Madureira Yunes (Advisor).


Nietzsche and the Experience of the Philosofer-Artist. Rio de Janeiro,
2012, 201p. PhD Thesis – Departamento de Letras, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Nietzsche and the experience of the philosopher-artist addresses the


thought of the german philosopher in order to show that his work can be better
understood if one considers what Nietzsche postulated as the experience
(erfahrung) of the lived (Erlebnis). Through analysis of his style (aphorisms,
poetry, dithyrambs, music and typology) and aspects relevant to his particular
form of affirming the human experience, it is shown how Nietzsche built his
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thought through formulations arising from his own body. Thus, emotions,
physicality, moods, drives and power are elements that give consistency to a
thought that dared to distance itself from the western metaphysical tradition and
fit in a new insignia: the postulation of the philosopher-artist.

Keywords
Nietzsche; Philosophy; Philosopher-Artist; Wanderer; Zarathoustra; Art;
Music; Pulsion.
Sumário

Introdução 13

Capítulo 1. Nietzsche e a experiência do vivido 19


Cumplicidade de uma escrita, especificidade de um pensamento:
relações entre Nietzsche e seus leitores 19
A experiência do vivido ou de como as afecções engendram a filosofia
de Nietzsche 30
Extemporaneidade: presentificações do vivido e condição para a escrita 47

Capítulo 2. O Andarilho de Nietzsche 52


Pensamento em movimento 52
Aquele que atingiu, apenas parcialmente, uma liberdade pela razão não
poderá sentir-se na Terra, senão como um andarilho 55
A grande liberação 64
As coisas mais próximas 73
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Nobreza e honra somente no lazer e na guerra: assim falava a voz dos


antigos 85
O andarilho e a trilha do filósofo-artista 93

Capítulo 3. Os estados musicais em Nietzsche 98


Temas e motivos: variações em eterno retorno na música de Nietzsche 98
Nietzsche e a arte de improvisar ao piano 102
A experiência do compositor Nietzsche 107
Manfred Maditation: uma antiabertura ao estilo de Nietzsche 118
A música na fisiologia de Nietzsche ou o eterno retorno de Dioniso 133

Capítulo 4. A arte de Zaratustra: do flerte com o ponto abismal ao


canto como morada do corpo 146
Zaratustra e o flerte com o ponto abismal 146
Duas afecções de Zaratustra: o ditirambo e a dança 171

Conclusões: Nietzsche, o filósofo-artista 187

Bibliografia 199
As obras de Nietzsche citadas nesta tese seguirão por base a edição crítica das
obras de Nietzsche (Kritische Studienausgabe) publicadas por Giorgio Colli e
Mazzino Montinari, (KSA) em 15 volumes, editada por de Gruyter, Berlin/New
York 1967 (segunda edição revista em 1988).

Para cotejamento com a KSA, utilizamos a tradução brasileira das obras


completas publicadas pela Editora Companhia das Letras, feitas por Paulo Cesar
de Souza, à exceção de O nascimento da tragédia, que foi traduzida por J.
Guinsburg, e Crepúsculo dos ídolos. Salvo contrário (quando será indicado), as
traduções serão mantidas como a editora as publicou.

A obra publicada postumamente sob o nome de “Vontade de Poder(Potência)”


não consta desta forma organizada nas KSA. Desta forma, optamos por citá-la em
sua versão traduzida e editada por Walter Kaufman sob o título de “Will to
Power”, Vintage Books, 1967. Quando citada nesta tese, aparece sob a abreviatura
WP.

Para a correspondência de Nietzsche, utilizamos a “Friedrich Nietzsche


Correspondência” (FNC), em 6 volumes, traduzida por Marco Parmegianni e
ditada por Luis Enrique de Santiago Guervós, publicada pela Editorial Trotta, em
2010, Espanha.
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As obras serão citadas obedecendo ao seguinte padrão:

a) em se tratando de uma obra publicada, indicar-se-á, primeiramente a sigla,


seguida do nome da parte da obra (com numeração em algarismos romanos, caso
haja), o número do aforismo em algarismos arábicos, volume e página da KSA;

b) no caso de a citação ser de fragmentos póstumos, seguirá, em primeiro lugar, o


número do volume da KSA, seguido do número do fragmento e do número da
página em algarismos arábicos;

c) no caso de citações da correspondência, será utilizada a sigla FNC, seguida do


Volume em algarismo romano e o número da carta.
As obras de Nietzsche serão citadas no original (KSA), seguindo a seguinte
correlação entre as abreviaturas:

[GT] Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)

[UB] Unzeitgemässe Betrachtungen (Considerações extemporâneas)

[DS] David Strauss der Bekenner und der Schriftsteller (David Strauss, o
confessor e o escritor)

[HL] Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben (Da utilidade e
desvantagem da história para a vida)

[SE] Schopenhauer als Erzieher (Schopenhauer como educador)

[WB] Richard Wagner in Bayreuth (Richard Wagner em Bayreuth)

[GMD] Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)

[ETS] Einleitung in die Tragödie des Sophokles (Introdução à tragédia de


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Sófocles)

[ST] Socrates und die Tragoedie (Sócrates e a tragédia)

[DW] Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca de mundo)

[GG] Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento


trágico)

[UZ] Ursprung und Ziel der Tragoedie (Origem e finalidade da tragédia)

[SGT] Sokrates und die griechische Tragoedie (Sócrates e a tragédia grega)

[BA] Ueber die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de nossas


instituições de ensino)

[CV] Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern (Cinco prefácios para


cinco livros não escritos)

[NJ] Ein Neujahrswort an den Herausgeber der Wochenschrift « Im neuen Reich »


(Uma palavra de ano novo ao editor do semanário „no novo Reich“

[PHG] Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na idade


trágica dos gregos)

[WL] Ueber Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e


mentira no sentido extramoral)

[MD] Mahnruf an die Deutschen (Exortação aos alemães)


[MA I] Menschliches, Allzumenschliches I (Humano, demasiado humano I)

[MA II] Menschliches, Allzumenschliches II (Humano, demasiado humano II)

[VM] Vermischte Meinungen und Sprüche (Miscelânea de opiniões e sentenças)

[WS] Der Wanderer und sein Schatten (O andarilho e sua sombra)

[M] Morgenröthe (Aurora)

[IM] Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)

[FW] Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência)

[FWS] « Scherz, List und Rache » Brincadeira, astúcia e vingança)

[FWP] Lieder des Prinzen Vogelfrei (Canções do príncipe Vogelfrei)

[Za] Also sprach Zarathustra (Assim falou Zaratustra)

[JGB] Jenseits von Gut und Böse (Além de Bem e Mal)


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[GM] Zur Genealogie der Moral (Para a genealogia da moral)

[WA] Der Fall Wagner (O caso Wagner)

[GD] Götzen Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos)

[NW] Nietzsche contra Wagner (Nietzsche contra Wagner)

[EH] Ecce homo (Ecce homo)

[AC] Der Antichrist (O Anticristo)

[DD] Dionysos Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)


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Extratos de uma Defesa de Doutorado. – “Qual é a


tarefa de todo ensino mais elevado?”. – Tornar o
homem uma máquina. – “Qual o meio para tanto? –
Ele precisa aprender a entediar-se. – “Como se
alcança um tal estágio? “ – Através do conceito de
dever. – “Quem é seu modelo em relação a isto? “- o
filólogo: ele ensina a enfronhar-se. – “Quem é o
homem perfeito?”- O funcionário público. – “Que
filosofia fornece a fórmula mais elevada para o
funcionário público? “ – A filosofia kantiana: o
funcionário público enquanto coisa-em-si
transformado em juiz do funcionário público enquanto
fenômeno.”

Nietzsche, F. O crepúsculo dos ídolos.


(GD, KSA, 6 , p.129)
Introdução

Quando está escrevendo um aforismo, Nietzsche está pensando sobre si.


No entanto, esse pensar sobre si não é uma reflexão pessoal ou a manifestação de
um interior — significa que o pensamento do qual se dá testemunho já é uma
realidade que se projeta para além de si. Com isso, o que se pensa não é uma
elaboração de um estado particular de si, mas um criar a si através do pensamento.
Portanto, o pensamento de Nietzsche é marcado por um extravio na sua origem.
Ele não afirma nem busca uma singularidade, muito menos uma individualidade.
Ele não é uma formulação que vem de dentro para fora. Ele diz de um vir-a-ser
cuja materialidade se pulverizou com o advento do próprio pensamento. Há que
dar notícia de uma inversão de peso: o pensamento, por ser freneticamente
nômade, destituiu o homem Nietzsche de uma consciência de si e dotou-o de uma
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propriedade cuja característica foi a de existir fora de si. Se algo existe fora de si,
então esta existência ocupa múltiplos lugares.
Ocorre que o pensamento de Nietzsche não é um vetor que vai de um
ponto a outro, mas uma pletora de elementos que se alinham (e se desalinham)
com o exercício do pensar. Essa é a potência do seu pensamento. Ele não
investiga, constata; não especula, afirma, e, sobretudo, não deduz, experimenta. O
pensamento de Nietzsche é exercício de um devir cuja corporalidade não se
identifica com os domínios de um corpo individualizado, mas que fez de si um
exercício de expansão de maneira tal que todos os corpos, entre o micro e o
macro, em qualquer nível que se apresentem, podem transferir-se, transmutar-se e
transfundir-se de maneira a configurarem-se outros corpos. Daí a peculiaridade de
seu pensamento: dialoga-se com a política, a história, a arte, a ciência. Tudo são
corpos. O pensamento de Nietzsche é, nesse sentido, um corpo que interage com
outros corpos e os recria. Esse pensar tem por mecanismo a ação de criar e
destruir corpos em um exercício inesgotável. É dessa forma que ele existe. É
dessa forma que ele faz filosofia.
Trata-se de um estado de desprendimento que permite a alguém figurar-se
nos planos difusos que estão aí, sem que isso se restrinja a ser sinal de
excentricidade, megalomania ou qualquer adjetivação cuja semântica aluda à
loucura. Se existem em Nietzsche, essas dimensões figuram como valências em
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deslocamento, mas nunca como fixações de um estado patológico. Não há estado


psicopatológico porque Nietzsche não é um ser que sofre de sua excentricidade;
ao contrário, sua peculiaridade foi afirmá-la como transvaloração, portanto, como
constructo.
A invenção da máquina de pensar de Nietzsche, que é fruto de algo
impossível de se apreender sob qualquer domínio psicológico — e os que fizeram
ou fizerem vão sempre se equivocar quanto ao “diagnóstico” —, dotou seu
pensamento de uma velocidade tal que o estilo que daí se depreende torna-se o
elemento que institui o plano da realidade no filósofo. Esse plano, é necessário
frisar, atesta uma continuada transformação psíquica em Nietzsche. Tal
transformação, segundo ele próprio testemunhou das mais diversas formas, foi
sempre no sentido expansivo e lhe permitiu a superação dos mais extremos tipos e
graus de sofrimentos psíquicos.
Nietzsche é, antes de tudo, o estilo em si. Essa façanha — a de configurar
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o corpo como um estilo e, a partir daí, estabelecer uma forma idiossincrática de


estar aí —, ele a conquistou à custa de suas vivências; não por gosto, mas por
dom. Ser o estilo significa ser o próprio aforismo, ser o ditirambo, ser a música,
ser a dança..., o estilo é o próprio “em si” de Nietzsche. Tornar-se um estilo
significa implicar a existência através dos mecanismos que fundam o próprio
estilo. Significa também evadir-se, catapultar-se em cada movimento. O
pensamento e a escrita, assim como a composição musical e a prática do piano,
por exemplo, não são exatamente meios de expressão, mas, sim, funções
fisiológicas que passam a ser realizadas como exercício de vida.
Respira-se através da invenção do estilo. É o próprio corpo que encontrou
suas formas de ser através das formas do estilo. A corporalidade significa a
capacidade de um corpo se criar no encontro com outros. No caso de Nietzsche, o
acontecer do seu pensamento foi sendo possível através da instalação de um
dispositivo que o habilitou a reverberar junto com os corpos que encontrava.
Corpos, em Nietzsche, se configuram e se arranjam através de harmonizações e
ritmos musicais. A música, aqui, tomou as vezes do corpo e lhe permitiu
expandir-se de maneira tal que suas composições, assim como os ditirambos de
Zaratustra, tornaram-se o estilo de uma filosofia, ou, o que dá no mesmo, o estilo
como potência do vivido.
15

A recusa em habitar um corpo ditado pela moral, pelas leis da cultura, foi a
recusa a sucumbir diante dos exercícios de subjugação que são infringidos pelos
homens que servem a causas religiosas. Em Nietzsche, religioso é tudo aquilo que
age por catequese e que, por conseguinte, submete a pulsão e o corpo ao domínio
implacável da história. O religioso é o que se pretende no lugar da verdade: a
Ciência e a Filosofia são típicas religiões que induzem à fé através da doutrina,
criando, desta feita, um lugar inequívoco para a verdade. No entanto, essa verdade
oriunda do religioso é marcada pela supressão do corpo como potência e pelo
oferecimento do dogma como elemento de ligação entre os corpos.
Para poder superar as falácias e miragens próprias à pretensiosa ação da
doença chamada “eu”, tanto no nível mais próximo quanto nos níveis históricos,
Nietzsche teve que se haver com a arte. A arte, tomada em seu sentido mais
depurado, ou seja, como dispositivo criador das formas de vida, é a resultante que
possibilita ao homem aceder a um nível de compreensão das coisas de maneira tal
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que se passa a habitar uma atmosfera além das oposições valorativas (bem e mal,
por exemplo).
A arte, como dispositivo capaz de reconfigurar os corpos, é aonde chega o
exercício do pensamento de Nietzsche. Ao longo da vida, sua batalha não foi
outra senão pensar as condições de afirmação da arte. Fundamental é ressaltar que
ele não fez isso através da construção de nenhuma nova escola, doutrina, sistema
ou pedagogia. A arte e o pensamento sobre a arte — o que, em Nietzsche, é a
mesma coisa — foram estabelecidos através de toda sorte de experimentações. O
pensamento de Nietzsche quer sua existência a despeito de sua utilidade. Ele quer-
se como potência em expansão, no lugar mesmo em que a arte está situada: um
lugar extremo, de altitude máxima, de difícil acesso, à prova de ataques dos
vorazes saqueadores da vida. O pensamento de Nietzsche concebeu-se afinado ao
dispositivo da arte uma vez que sua existência justifica-se na imanência do estar
aí, própria daquilo que existe em fluxo, desprovido de intuito, causa,
determinação, meios e fins.
Esta tese tenta forjar um caminho possível para o entendimento da peculiar
relação que se estabeleceu entre o pensamento de Nietzsche e a arte. Arte e
pensamento, em Nietzsche, estão mutuamente implicados e são partes
simetricamente opostas de um corpo. A filosofia de Nietzsche opera no registro da
16

arte e, ao mesmo tempo, a promove ao lugar de pensamento — não qualquer


pensamento, mas aquele extremado, o pensamento abismal, ensinado por
Zaratustra em sua doutrina do eterno retorno: uma doutrina que só pode ser o
avesso de todas as outras doutrinas!
Os esforços, aqui, são envidados na tentativa de mostrar como Nietzsche
se constituiu — ele mesmo — como esse filósofo-artista, tal qual nomeado
precisamente no aforismo 7951 de A vontade de potência.
Embora Nietzsche não tenha desenvolvido essa designação de forma
detalhada nesse aforismo, tampouco tenha definido expressamente o que entendia
por filósofo-artista, toda a sua obra dá explícitos sinais de que o filósofo-artista é
também o “filósofo do porvir” ou, ainda, um filósofo extemporâneo cuja
característica maior é poder pensar em níveis extremos em que, como já dissemos,
o pensamento se iguala à própria arte. O filósofo-artista — concepção superior da
arte — é aquele que está em condições de criar novos valores, portanto, de legislar
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através de sua experiência, de sua criação. Entretanto, entenda-se aqui “legislar”


como equivalente de existir por si, de forma a tornar seus atos e gestos genuínos e
implicados no todo. O filósofo-artista legisla não a humanidade, mas a potência de
seu pensamento. Em Nietzsche, porém, esse pensamento, desde o momento em
que está para além dos domínios do individual, é próprio das parcialidades que
habitam o todo. Pensamento esse que se quer sempre em expansão, alinhado com
o princípio nietzschiano da vontade de potência.
No Capítulo 1, Nietzsche e a experiência do vivido, procura-se dar voz aos
argumentos de Nietzsche a respeito do que ele marcou claramente a partir dos
novos prefácios para suas obras (escritos a partir de 1886) e, sobretudo, a partir do
contundente testemunho dado em Ecce Homo, ou seja, que sua filosofia deveria
ser entendida como resultante de suas vivências, que seus escritos são frutos de
experiências que visam orquestrar essas vivências. Nessa perspectiva, abordou-se
a questão do estilo em Nietzsche, suas relações com seus leitores, suas
preocupações com as formas com que seria lido e recebido e, também, suas
idiossincrasias quanto à forma de conceber-se, a si próprio, como extemporâneo.

1
“O filósofo-artista. Concepção superior da arte. Poderia o homem se situar assim tão longe dos
outros homens quando ele os quer modelar? (- exercícios preliminares: 1. O que modela a si
mesmo, o eremita; 2. O artista até hoje, como o pequeno arrematador de uma matéria)”. WP 795.
17

No Capítulo 2, O andarilho de Nietzsche, trabalha-se a partir da criação


tipológica de Nietzsche nomeada por ele de “Andarilho”. Surgido no aforismo
638 de Humano, demasiado humano, o andarilho é a materialização do pathos
vivido pelo próprio Nietzsche: um pensador cujo movimento, o deslocamento
continuado, permite a ele experimentar a leveza e o fluxo de um vir-a-ser capaz de
restituir ao corpo a potência e o fluxo de vida roubados pela ação da cultura.
Nietzsche cria a “filosofia de antes do meio-dia” e os “espíritos livres”. Todos
esses elementos falam de uma superação de si de maneira tal que se torna possível
alcançar um tipo de experiência capaz de reconciliar o homem com as “coisas
mais próximas da vida”. Nesta fase, Nietzsche está vivendo em solidão,
refazendo-se de sua traumática ruptura com Wagner e os wagnerianos. Ele se
aproxima de Koselitz (Peter Gast), seu ex-aluno, maestro, com quem
compartilhará muitos momentos difíceis nos seus períodos de convalescença, e,
com ele, sonhará a reedição de um Jardim de Epicuro. O andarilho será aquele que
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começará a dizer sim à vida e, sobretudo, pensar na crítica aos valores e a moral.
O Capítulo 3, Musicalidade em Nietzsche, trata especificamente do tema
da música na vida e obra do filósofo. Sabe-se que ele foi um exímio improvisador
ao piano, além de ter composto em torno de sessenta peças musicais. Muitas
dessas obras são belas composições (às vezes, perturbadoras, como não poderia
deixar de ser!) e mostram o trabalho intenso de um compositor comprometido
com seu ofício. Nietzsche era um amante da música e conhecia muito bem teoria
musical. Era capaz de compor de forma genuína e de problematizar questões
complexas nessa arte. Ele se dedicou à prática da música e estudou, de forma
disciplinada, na infância, adolescência e início da vida adulta. Aqui são abordados
quatro pontos específicos: os improvisos, as composições, a querela em torno de
sua composição musical Manfred Meditation e a dimensão fisiológica de seu
pensamento musical. Esses elementos são todos importantes na medida em que
apontam para a construção do estilo em Nietzsche e nos ajudam a entender as
dimensões artísticas do seu pensamento.
O Capítulo 4, A arte de Zaratustra: do flerte com o ponto abismal ao
canto como morada do corpo, apresenta Zaratustra como a criação musical por
excelência na obra de Nietzsche. Zaratustra, discípulo de Dioniso e, ele próprio
andarilho, é um duplo de Nietzsche — um personagem mítico, meio-bufão, meio-
18

profeta, totalmente anti-herói, irreverente, brincalhão e apaixonado pela vida.


Zaratustra, através de sua saga, narrada em quatro atos, vive, no flerte com o
pensamento abismal, a sua mais forte e significativa experiência: estar nu diante
do abismo, desejar com ele integrar-se de maneira tal que experimente a
suspensão do tempo e a transvaloração de todas as valências e valores. O flerte
com o ponto abismal significa tangenciar o marco zero do portal e instituir o
instante como a única temporalidade possível para a superação de todas as marcas,
vícios e vínculos (o término da história tal como narrativa aprisionadora do
tempo). O nojo experimentado por Zaratustra no momento da evocação do eterno
retorno, contudo, o faz refrear e dar meia-volta. Ele é obrigado a retornar
(eternamente) uma vez que descobre não ser possível permanecer no abismo para
sempre. Porém o retorno de Zaratustra ao mundo dos homens — porque ele
descobriu o segredo do pensamento abismal — torna-o mais forte e instaura sua
capacidade de dizer “Sim!” à vida e, a partir de então, experimentar momentos de
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extremo júbilo. Zaratustra, ao flertar com o ponto abismal, acede à arte como
dispositivo fundamental para a restauração do mundo e de todas as coisas, com
base em novos valores. Na música e na dança, Zaratustra encontra a extensão de si
mesmo: ele é a música e a dança.
No último capítulo desta tese, Conclusões: Nietzsche, o filósofo-artista,
apresentam-se, de forma decantada, vinte idéias que apontam para as constatações
resultantes do trabalho aqui apresentado. Buscou-se afinar os argumentos
trabalhados ao longo dos quatro capítulos desta tese, com o intuito de dar clareza,
transparência e materialização aos elementos que apontam para as consequências
do estudo realizado nesta tese. Essas conclusões estão problematizando o tema da
arte em Nietzsche de maneira a poder substancializar aquilo que foi interesse e
ambição em nossa pesquisa: Nietzsche e a experiência do filósofo-artista.
Capítulo 1
Nietzsche e a Experiência do Vivido

Cumplicidade de uma escrita, especificidade de um pensamento:


relações entre Nietzsche e seus leitores

Em uma importante e marcante passagem do livro Ecce Homo – como


alguém se torna o que é2, temos um testemunho de Nietzsche muito particular
sobre o efeito que despertam seus livros naqueles que se dispõem a debruçar-se
sobre eles: há, por parte do filósofo, a constatação de que seus escritos beiram
uma certa fronteira entre: 1) os efeitos de ilusão que podem provocar (do fascínio
ao ódio); 2) a impossibilidade de que a experiência efetiva do autor possa ser
assimilada e compreendida tal como ele a viveu3.
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Quando redige seu Ecce Homo, Nietzsche situa a sua grande preocupação:
é preciso dirigir-se ao leitor numa última tentativa — a de elucidar, dentro do
possível, as especificidades e motivações que animaram o seu percurso. Ecce
Homo é uma tentativa de estabelecer um testemunho muito particular sobre uma
obra que foi toda concebida como a experiência [erfahrung] de um filósofo sobre
suas vivências [erlebnisse]4. Esse fato leva Nietzsche a se pronunciar, nesse livro
de fechamento, a respeito de suas motivações e razões. Aqui, sobrepõem-se os
planos biográficos, históricos, filosóficos, artísticos e científicos. Ecce Homo foi
concebido para assinar o conjunto de sua obra e dar-lhe uma intenção de percurso.
Trata-se de um ato de cuidado, de zelo consigo próprio e com uma obra que seria,
cada vez mais, lida em amplas dimensões.
2
Em 1888, menos de um ano antes de sofrer o colapso que o levaria a um estado de
demenciamento sem volta, Nietzsche escreve Ecce Homo - Como alguém se torna o que é. Trata-
se de sua autobiografia. Esse texto assume, neste primeiro capítulo, importância fundamental para
o desdobramento dos argumentos apresentados ao longo de toda a tese. Grande parte das ideias
sustentadas neste capítulo deriva de uma análise criteriosa desse importante texto que se tornou,
aqui, referência principal. O testemunho de Nietzsche não deixa equívoco: sua filosofia se
constituiu como uma resposta às afecções e suas relações com as diversas estratificações da forma
de pensamento — desde o mais intimista ao metafísico. Em outras palavras, Ecce Homo é o
testemunho derradeiro da experiência de como Nietzsche subverteu, à sua maneira, a metafísica e
formulou a experiência do filósofo-artista. Esta tese terá como propósito desenvolver essa ideia às
últimas consequências.
3
EH Porque escrevo tão bons livros 1, KSA 6, p.298-301
4
As vivências situam-se no plano daquilo que é indizível, e as experiências são os meios através
dos quais se pode dizer a respeito das vivências.
20

No caso dos ditos “efeitos de ilusão”, tal como mencionado acima, trata-se
de algo inevitável: sabe-se que um escrito, sobretudo um certo tipo de filosofia,
tende a despertar o universo imaginário e cai no gosto do leitor comum se for
capaz de provocá-lo a pensar e incitá-lo a tornar-se receptivo a tudo aquilo que
pode se apresentar como deflagador de interesse. Em outras palavras, um texto
dessa ordem é capaz de ser de forte apelo, a ponto de induzir o leitor a ser tomado
por um interesse visceral em compartilhar as múltiplas ideias, imagens e
intensidades que do texto emanam, de maneira a pensar a si próprio através do
exercício da leitura.
Pois bem, essa primeira dimensão é aquela mais propensa a despertar
paixões, induzir a reações, introjeções e formações de opinião pessoal. No caso de
Nietzsche, seus leitores se deixam envolver pelo manancial de argumentos,
deslocamentos e figurações que seu texto provoca. Esse nível de relação com o
texto desperta em seus leitores as mais variadas formas de interação. Pode-se
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gostar ou não, aceitá-lo ou não; pode-se, ainda, considerá-lo inspirador ou de


natureza duvidosa. O fato é que o interesse do leitor por Nietzsche não é gratuito:
ele foi tomado por algo que possivelmente não é de fácil discernimento, mas que
o convida a seguir além. Em outras palavras, o leitor de Nietzsche é capturado por
uma dimensão de intensidade própria ao movimento do filósofo. Trata-se, aí, de
indicar o surgimento de um estreito nível de cumplicidade que se forma entre o
leitor, a obra e o escritor.
Em todo o caso, esse nível de aproximação que o leitor pode ter com o
texto é visto pelo próprio Nietzsche como algo distante e mesmo aquém do que
pode, de fato, ser o alcance de suas formulações. Ou seja, interessar-se e mesmo
deixar-se tomar pelo afã de segui-lo ou decifrá-lo não são garantia de
compreendê-lo. Ao contrário, vínculos dessa ordem podem significar justamente o
oposto: uma espécie de impossibilitador de leitura.
É preciso reconhecer que o texto do autor de Zaratustra tem como
característica ser rico em proposições e trazer sempre algo de insidioso sobre
questões que abrangem um amplo espectro da experiência humana — muitas
vezes, de forma enigmática e fronteiriça. Por isso mesmo, deixa inúmeras franjas
e bordas por onde o leitor, seja ele quem for, pode se infiltrar e tecer suas mais
21

variadas impressões. Esse fato é inevitável e se traduz em preocupação do próprio


Nietzsche quando fala sobre os tipos de leitores que se interessam por sua obra5.
Nesse nível, estamos ainda lidando com perspectivas. Trata-se de um nível
que se presta aos mais variados tipos de interesse e desdobramentos. É evidente,
pois, o uso indiscriminado que se faz daquilo que se julga ser “nietzschiano”, e os
oportunismos dos mais variados encontram nos escritos do autor de Zaratustra a
interlocução exata de que necessitam6.
O que Nietzsche escreve tem, a despeito do alcance proposto por ele, uma
capacidade não desprezível de interessar o grande público. O fascínio que sua
escrita emana é uma evidência, haja vista, em várias passagens da obra, existir,
indiscutivelmente, uma tendência ao discurso em tons proféticos e apocalípticos
— como se o leitor fosse uma massa pronta a ser conduzida. Mesmo que ele
perceba a inoperância e o equívoco desse procedimento, seu texto não abandona
essa faceta penetrante de uma fala cuja enunciação tem tons de verdade e
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superação de limites7. Aqui, é possível fazer referência ao grande contingente de


máximas8 encontradas ao longo de sua obra. Por exemplo, em Além do Bem e do
mal9, encontra-se uma sequência de máximas10 que soam irônicas e agressivas a
respeito das mulheres. Alguns leitores, por exemplo, podem tomar isso como
acusações misóginas, e muitos podem ver aí um verdadeiro elogio transgressivo
ao feminino; ou seja, esse tipo de escrita suscita posições inflamadas de repulsa ou

5
Faz-se alusão aqui, principalmente àqueles leitores que se utilizam de recortes do texto
nietzschiano com o intuito de referendar posições políticas, ou seja, a todo tipo de uso ideológico a
que a obra parece se prestar.
6
Nunca é demais lembrar o uso perverso que fizeram os nazistas da obra de Nietzsche.
7
Quanto a isso, vale lembrar que Zaratustra, quando desce da montanha após dez anos de exílio
voluntário, de início, se dispõe a anunciar as boas novas à multidão. Trata-se de apresentar o além-
do-homem, aquele que deveria superar o homem e instaurar uma nova era. Zaratustra não foi
compreendido e obteve como resposta gargalhadas de desprezo e escárnio. Em seguida, concluiu
que não devia falar para a multidão, pois ela odeia aquele que enuncia verdades inauditas.
Resolveu que seguiria em frente não como pregador de rebanho, mas como aquele que cantaria
para poucos. Poucos privilegiados: “Entoarei meu cântico aos solitários; aos que se retiraram
sozinhos ou aos pares para a solidão; e a quem quer que tenha ainda ouvidos para as coisas
inauditas, confranger-lhes-ei o coração com minha aventura” (Za prólogo, KSA 4, p.27).
8
Máximas e aforismos não se confundem. Enquanto a máxima condensa uma verdade através de
uma sentença contundente e enxuta, o aforismo expande o sentido ao mostrar-se um pensamento
complexo e agenciador de outros aforismos O aforismo tem por característica abrir o campo dos
sentidos e remeter o leitor a um exercício de investigação. Portanto, diferente das máximas, que
restringem o sentido a um universo fechado em si, ou seja, próximas de uma verdade acabada, os
aforismos implicam instaurar a suspeita e recusar o dogma.
9
JGB 237.
10
Trata-se da sessão 237, intitulada “Máximas de mulher”. Aqui, Nietzsche se utilizou do recurso
da paródia para reescrever provérbios alemães sobre as mulheres.
22

veneração. O texto de Nietzsche é cheio desse tipo de peculiaridade, o que,


certamente, atrai muitos leitores. Aqui há, claramente, uma interseção entre o
literário, o filosófico e o popular11.
Nesse nível, parece ser inegável que o texto de Nietzsche gera um
mimetismo capaz de aguçar as percepções do leitor comum, um leitor que não é
iniciado em filosofia, mas que se vê convidado a avançar pelas veredas dos
escritos nietzschianos, como se estivesse lendo algo que fosse escrito diretamente
para ele. É como se, ao abrir um texto –– seja um fragmento, seja uma máxima,
seja um aforismo, seja um ditirambo de Zaratustra ––, o leitor estivesse
imediatamente sendo remetido a algo que fala no seu íntimo de forma
absolutamente rascante, afirmativa. Essa curiosa “magia” que emana de textos
como os de Nietzsche –– dando a eles, muitas vezes, um caráter místico ou
mesmo oracular –– revela um talento por parte do autor em romper as resistências
que operam em favor do sentido, fazendo com que o leitor se perceba em contato
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direto com situações cruciais, elementares, decisivas que lhe obrigam a realizar
deslocamentos quanto às suas certezas... O texto de Nietzsche tem o raro
refinamento de tocar o inaudito das maneiras mais variadas, de forma a lançar o
leitor no inusitado de si próprio. Trata-se, em última instância, da possibilidade de
uma comunicação entre vivências.
Sob essa perspectiva, cabe ao leitor inventar seu próprio Nietzsche, tomá-
lo como lhe convém, servir-se de suas palavras e ideias sempre expostas à flor da
pele, sempre em tom afirmativo ou contundente. Surgem múltiplos Nietzsches,
tantos quanto seus leitores. O processo é o de fantasiar ou mesmo criar uma
textualidade que nasceria supostamente “respaldada” pelas palavras do filósofo.
Ou seja, nessa perspectiva, Nietzsche é tomado como uma referência inspiradora,
sem que, necessariamente, o leitor esteja em condições de penetrar nas dimensões
mais substanciais do pensamento do autor de A gaia ciência. Em geral, o texto
afirmativo –– rico em figuras, tipos, composto por analogias e paródias –– tende a
exercer forte sedução sobre os leitores comuns, sobretudo aqueles que estão em

11
O caminho que tomou Nietzsche para construir seu pensamento deu margem a dotar sua
filosofia de certas aparências que emitem signos próximos aos mais diferentes campos de
conhecimento. Em Nietzsche, música, filologia, ciências naturais, poesia e política têm estatutos
de arte; por isso se desprendem de seus vícios de pertencimento originais, tornando suas valências
móveis e comunicáveis entre si. O produto resultante desse movimento é constituir uma filosofia
externa a si própria ou, ao menos, capaz de dispensar sua fixidez a seu patrimônio milenar (o
exuberante edifício da metafísica) e redesenhar-se sob a égide de outras alianças.
23

busca de anuência para suas convicções ou eco para suas intuições. O texto de
Nietzsche, por ter essas características, aparenta, em princípio, ser portador de
uma forma “convidativa” que possa atender às questões e desejos do leitor
comum.
Deleuze é um dos autores em Filosofia que insistiram na ideia de que o
texto filosófico é polissêmico e abriga uma infinidade de interesses, leitores e
relações de leitura. Ele admitia que um texto de Spinoza pudesse ser lido em
diversos registros, sendo um deles, por exemplo, o de ser tomado como música.
Ou seja, o filósofo francês afirma que não é preciso ser filósofo ou estar
aparelhado com as ferramentas próprias ao mundo interno da Filosofia para que
uma leitura de um texto escrito por um filósofo possa produzir efeitos de
compreensão. Aliás, em Deleuze, trata-se menos de compreensão do que da
possibilitação de encontros que evoquem sensações, estados de espírito, emoções.
A partir daí, produzem-se efeitos. Quanto mais leitores heterogêneos um texto
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puder abrigar, maior deverá ser seu poder de alcance no tocante àquilo a que se
propõe. Isto é, uma obra filosófica não será grandiosa se for hermética, mas, ao
contrário, se os signos que emitir forem capazes de ampliar o espectro de interesse
dos leitores e envolvê-los em torno de movimentos, e não de causas ou
determinações específicas. Deleuze lê Nietzsche também dessa forma; ele admite
uma série de entradas e saídas no texto e, exatamente por isso, reconhece neste
autor algo de magnânimo:

Tem uma coisa que me reconforta muito. Acho que há várias leituras de uma
mesma coisa e acredito piamente que não é preciso ser filósofo para ler filosofia.
A filosofia é suscetível, ou melhor, precisa de duas leituras ao mesmo tempo. É
absolutamente necessário que haja uma leitura não-filosófica da filosofia, senão
não haveria beleza na filosofia. Ou seja, não-especialistas lêem filosofia e a
leitura não- filosófica da filosofia não carece de nada, possui sua suficiência. É
simplesmente uma leitura. Isso talvez não valha para todos os filósofos. Vejo com
dificuldade uma leitura nã0-filosófica de Kant, por exemplo. Mas um camponês
pode ler Spinoza. Não me parece impossível que um comerciante leia Spinoza.12

Ou seja, se considerarmos a posição de Deleuze, então esse primeiro nível


de discussão acerca dos textos de Nietzsche (o que neles há de literário, poético e
musical, e que, por isso mesmo, dota-os de características miméticas) é
extremamente essencial para que a obra ganhe uma consistência da ordem da

12
G. DELEUZE, Abecedário, inédito. Transcrição livre.
24

abrangência e, sobretudo, da exploração e expansão do pensamento. Se a filosofia,


de fato, “precisa de dois níveis de leitura”, sendo que um deles diz respeito às
leituras feitas pelos “não iniciados”, então é porque, realmente, ela se faz além do
próprio campo de pertencimento que supostamente a classifica e a contém. A
filosofia só pode existir se provocar e abarcar fluxos distintos de leitores; aqui, a
metafísica é só um tipo de formalização da filosofia. Essas formalizações ou, se
preferirmos, modos de leitura, não se excluem nem se aniquilam –– existem em
planos de compatibilidade ou incompatibilidade. Spinoza e Nietzsche permitem a
Deleuze afirmar que a filosofia está na ordem da quebra dos seus próprios
alicerces e que a construção de novas trilhas de pensamento, ou seja, a própria
confecção e revalidação de conceitos, é ofício do filósofo. No caso de Nietzsche,
ele é mestre em fabricar conceitos, em redimensioná-los e em retorcê-los.
Zaratustra13 –– este conceito-personagem, esta caricatura do próprio filósofo –– é,
sem dúvida, um elemento que traduz bem a especificidade do pensamento de
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Nietzsche.
Nietzsche é um autor cujo texto reflete seu pensamento in loco. Ele se dá
ao leitor de maneira tal que tudo se passa na esperança de que seu texto seja
impactante. Para isso, não mede esforços: escreve pensando nos leitores, busca
expressão, busca a forma de maneira tal que o que escreve seja acolhido com
proporcional intensidade ao que sente. Nietzsche não é um escritor de esboços, de
reflexões; cada aforismo tem o valor de uma pequena obra de arte. Há, sem
dúvida, um pensador-escritor muito atento às estratégias necessárias para gerar
efeitos em seus leitores. É difícil supor que ele escrevia intuitivamente ou sem
pretensões de atingir um público.
Ao escrever, Nietzsche é um estrategista –– ele visa à clareza, ao impacto
do que afirma; nada é feito sem cuidado, sem um propósito criterioso. A partir
disso, percebe-se que sua preocupação é a de chegar próximo dos leitores. Ele
intuía formas de escrita que pudessem atrair as pessoas, pois trazia em sua forma
de pensar o desejo de ser escutado. Isso aponta para uma sensibilidade empática
junto ao público uma vez que não se pode desconsiderar a expectativa que ele
manifestava de que as pessoas pudessem compartilhar de suas intenções.

13
O Capítulo 4 desta tese está inteiramente dedicado a pensar a figura de Zaratustra dentro da
dimensão da criação artística.
25

A esse respeito é válido trazer, à guisa de ilustração, a curiosa e mesmo


engraçada carta que Nietzsche escreve a seu amigo Carl Fuchs em julho de 1878.
Nessa época, Fuchs havia, assim como Nietzsche, decidido romper com Wagner e
escrever contra o compositor; portanto, tornava-se um importante aliado. Nessa
carta, o filósofo dá ao amigo a seguinte dica, de forma explícita: “Use de escrita
aforismática, da forma mais concisa e com a expressão mais precisa. Umas
quinhentas proposições e observações suas, a quintessência de sua experiência ––
isso lhe dará um nome e uma posição.”14 Como não reparar aí a intenção clara e
bem definida sobre a estratégia que adotou o próprio Nietzsche na maioria de seus
escritos? Essa carta flagra o momento em que o filósofo havia depurado para si
um estilo de escrita que ele julgava habilitá-lo para figurar na Europa como
escritor reconhecido e cujo caráter das ideias pudesse ser o grande possibilitador
de alcance junto ao grande público. Vê-se que a ambição de Nietzsche ganhava
novas colorações estéticas. Agora que ele havia se livrado do fardo de funcionar
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como um panfletário da causa wagneriana, estaria livre para lapidar seu discurso
da maneira que melhor lhe conviesse. De qualquer forma, panfletário ou não, com
ou sem Wagner, o estilo sempre foi uma preocupação para Nietzsche. Com isso,
quer-se chamar a atenção para o fato de que sua escrita, preocupada com a
recepção do público, ou com a formação de um grupo específico de leitores,
ousou erguer-se a partir de critérios estéticos onde a clareza, a concisão e a
sensibilidade da escrita eram aspectos tão importantes quanto aquilo que se queria
dizer. Afirmar isso é chamar a atenção, desde o início, para o fato de que uma
postura inegavelmente artística era o que animava a escrita do filósofo.
Na conversa com o amigo, também escritor, ele vai além dessa dica e, na
sequência da carta, faz uma crítica ao estilo que Fuchs imprime a seus escritos de
até então. Trata-se aqui, como o próprio filósofo denominou, de propiciar uma
“epístola didática” sobre o estilo literário a seguir. Entre as recomendações de
Nietzsche, estavam dicas como: 1) não escrever frases muito longas, além do
conveniente, de modo a não exaurir o leitor; 2) não escrever sobre arte de maneira
ostensivamente erudita (pois, segundo sua percepção e a de outros amigos
leitores, Fuchs abusava de termos e conceitos científicos em língua estrangeira);
3) era preciso dar força e ênfase aos pontos essenciais (argumentos principais)

14
FNC, Vol.III, 729.
26

uma vez que Fuchs parecia se perder em ideias secundárias e, mesmo, não
trabalhar suficientemente as mais importantes; 4) o segredo dos bons escritores
estaria no fato de jamais escreverem de forma aguda e sutil.
Nietzsche busca o chamado “grande estilo”: o texto deve ser claro, ter seu
próprio ritmo cadenciado, repleto de dinâmicas que ditam o andamento da leitura.
O leitor cavalga por entre as palavras. Tudo se constitui a partir da lógica entre
fluxo e refluxo. Sem dúvida, uma escrita passional:

Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do estilo. Comunicar
um estado, uma tensão interna de pathos por meio de signos, incluído o tempo
destes signos –– eis o sentido de todo estilo; e considerando que a multiplicidade
de estados interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades
de estilo –– a mais multifária arte do estilo de que um homem já dispôs.15

O “grande estilo” defendido e desdobrado por Nietzsche permite,


exatamente, essa superposição de formas de expressão e a ampliação dos recursos
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de retórica. Trata-se de uma escrita polimorfa, onde música, teatro, máximas,


aforismos, ditirambos, frases de efeito e recursos linguísticos se combinam de
maneira tal que a resultante é a criação de um estilo altaneiro, capaz de condensar
em si todos os princípios da escrita: “Bom é todo estilo que realmente comunica
um estado interior, que não se equivoca nos signos, nos gestos –– todas as leis do
período são arte dos gestos. Nisso meu instinto é infalível.”16
Portanto, fica evidente que Nietzsche, através da busca do “grande estilo”,
tem em alta conta o leitor a quem se endereça. Há muito, ele já havia rompido
com os cânones acadêmicos da época, e não era sem muita polêmica que havia
ignorado as observações e críticas de alguns colegas da Basileia. Aqui, trata-se de
perceber que as roupagens de um promissor filólogo alemão começavam a
escamar, dando lugar a um pensador que se aproximava cada vez mais das
questões pertinentes à Filosofia. Contudo, em Nietzsche, deve-se entender
Filosofia como potência de pensar, como sítio de experimentações de onde não se
sabe, a priori, a que tipo de condição se pode chegar. Então, a Filosofia que lhe
interessa pensar é menos a da história de uma filosofia do que aquela que pode
criar condições para o avanço do pensamento. Interessam mais os pensadores e

15
EH Por que escrevo tão bons livros 4, KSA 6, p. 304.
16
Ibid.
27

seus pensamentos do que propriamente o locus político que sustenta as causas


filosóficas na história.
Por conseguinte, a filosofia de Nietzsche é alimentada pela Biologia, pela
Fisiologia, pela Teologia e por qualquer outra forma de conhecimento que por
ventura venha a cruzar aquilo que nele são elementos de pensamento. Importa o
fluxo do pensamento e a gravidade ou relevância daquilo que se torna causa ou
questão. Nesse sentido, não se pode dizer que ele deixou de ser um filólogo para
tornar-se um filósofo, mas, sim, que encontrou, na combinação entre esses
saberes, a condição que o caracterizou até o fim de sua vida: um filósofo-híbrido.
Dentro desse espectro, a preocupação com o leitor deveria permitir-lhe
uma certa liberdade para compor seu estilo. Isso valia não só para a forma de
pensar como também para a de escrever. O trabalho do escritor Nietzsche deveria
primar pela objetividade e transparência nos argumentos; seu vocabulário era
próximo da linguagem informal, cotidiana. Ele escrevia como se estivesse
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pensando em voz alta ou mesmo conversando ao pé do ouvido com um amigo


muito íntimo. Com isso, visava escrever para um público sem características
específicas, ou seja, ele queria atingir uma gama de leitores, assim como Sêneca,
Pascal, Montagne ou o próprio Schopenhauer, pensadores que também se valeram
da escrita contundente e, em muitos casos, aforismática.
Zaratustra não se furta a dar testemunho desse tipo de trabalho. E é neste
apelo que o leitor se entusiasma, respira e se enche de fé:

Eu caminho entre os homens como entre fragmentos


do futuro que contemplo. Pois
nisso consiste todo o meu Criar e Buscar: eu
componho e junto em um o que é o fragmento
enigma e medonho acaso.
Pois como suportaria eu ser homem, não fosse o
homem também criador, decifrador de enigmas e
redentor do acaso?17

Caminhar entre os homens significa estar próximo de suas questões. Na


busca de decifrar os problemas que anseia por responder, utiliza-se de um método
cuja “técnica” é unir fragmentos que sugerem “medonho acaso”. Na esteira
daquilo que identifica como ato de “Criar e Buscar”, é que Nietzsche penetra de

17
Za Do caminho do criador, KSA 4, p. 80.
28

forma contundente no imaginário do leitor comum, ávido por elementos que o


remetam à sua própria luta. Nessa perspectiva, percebe-se um maciço processo de
identificação do leitor com os tipos de argumentos que animam, por exemplo, os
discursos de Zaratustra.
É como se Nietzsche estivesse sempre emanando signos de “alta-tensão” e
projetando-os contundente e sutilmente nos braços do leitor. Esse é seu modus
operandi, sua forma de instituir o pensamento. Trata-se de um pensar denso, mas
curiosamente movido por um forte apelo –– isso, justamente porque os elementos
que resultam dessas incursões são muito próximos dos interesses da pulsão
epistemológica (aquela que nos induz a desejar o conhecimento de forma
interminável). Ao mesmo tempo, a escrita de Nietzsche, por ser criativa (esta que
só poderia, segundo Zaratustra, ser escrita pela criança em que se transmutou o
camelo-leão), transforma o que é denso em palatável.
Em um agir talvez alquímico, o filósofo parece estar sempre deslocando o
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centro de gravidade de elementos pesados com a finalidade de, quase que


ludicamente, torná-los bolhas de sabão: leves, mas contundentes; sutis, mas não
efêmeros. Em contrapartida, o impacto desse deslocamento se faz repousar em
reangulações de pensamentos e novas articulações que dão ao leitor –– mesmo o
menos iniciado –– a sensação de que a experiência do pensar é a de avançar por
lugares inéditos, até então improváveis, de forma a permitir um exercício quase
que narcótico de lucidez. A leitura torna-se, ao menos à primeira vista, um
exercício possível. O leitor se sente respeitado e honrado; afinal, ele foi convidado
a participar de discussões que refletem os mais complexos interesses da
humanidade!
Nietzsche, em um exercício de seu estilo, brinda o mais singelo leitor ao
reluzir, por exemplo, um sistema filosófico em um aforismo18. O pensamento é

18
Walter Kaufmann, em Nietzsche – philosopher, psychologist and anticrhist, obra que se tornou
referência para os pesquisadores de Nietzsche, sustenta que a aparente facilidade com que se
podem ler os aforismos, sobretudo em sua independência, esconde, na verdade, o real problema:
por não ser uma obra sistematizada e repleta de referências, considerações e achados estabelecidos
de forma pulverizada, o pensamento de Nietzsche oferece as maiores dificuldades por conta dos
efeitos “dispersivos” que poderiam suscitar seus, muitas vezes, contraditórios aforismos. Segundo
Kaufmann, o estilo de escrita nietzschiano deve ser chamado de “monadológico” por cristalizar a
tendência de cada aforismo ser autossuficiente e, ainda assim, iluminar a compreensão de quase
todos os outros aforismos. Ainda, segundo Kaufmann, o leitor se vê “confrontado com um
universo pluralístico no qual cada aforismo é, ele próprio, um macrocosmo” (KAUFMANN, 2005,
p.73). No entanto, queremos crer que é esse justamente o argumento que corrobora nossa ideia de
29

apresentado in loco, como se estivesse ali, exposto, sem mediações, sem


contornos, sem digressões. Trata-se de uma peculiaridade em Nietzsche: afirmar
sem hesitar, sentenciar sem rodeios. Impossível não reparar o que o texto provoca:
um desejo no leitor de prosseguir em trilhas que o conduzam a desvendar
verdades sobre si e o mundo à sua volta, tal qual fez o escritor.
Nietzsche permite –– sobretudo aos leigos –– a sensação de que o
pensamento é acessível e de que, mais do que isso, é algo de espontâneo, natural.
Não é, portanto, o leitor que tem de ser iniciado em Filosofia para ter acesso a seu
pensamento filosófico; antes, porém, a sua filosofia é que se recria para poder
tangenciar os elementos que estão fora do alcance do edifício teórico da própria
Filosofia. Importante lembrar que os textos de Nietzsche incomodaram os
filólogos clássicos e os filósofos uma vez que ambos os grupos –– salvo
importantes exceções –– não podiam legitimar a escrita nietzschiana. Com isso,
ao invés de inibir-se e bater em retirada a serviço dos cânones da academia da
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qual também fazia parte, Nietzsche seguiu em frente, retirando de seu caminho
todas as peças que pudessem atravancar seu movimento. O texto de Nietzsche é
movimento; ele procura espaço. A inquietude dele é a condição para seguir seu
rumo.
O amor ao pensamento e a certeza de sua potência fazem com que o que
ele escreve tenha o dom de ressignificar os problemas concernentes à verdade.
Esse tom de revelação afirmativa, que acaricia e entusiasma o leitor –– esse é
nosso argumento ––, é, ele próprio, um dos marcos da experiência nietzschiana.
Nietzsche precisa do leitor como testemunha, como cúmplice e, certamente, como
companheiro de empreitada. Sua escrita compulsória e compulsiva se direciona a
alguém que deva compreendê-lo incondicionalmente, o que, para tal, é preciso um
esforço de grandes proporções. Esse, ao menos, é o tom dado por ele em Ecce
Homo.
É justamente nesse ponto que há a suspeita de que o leitor, em geral, não
tem estofo para ter acesso aos estratos mais altos do pensamento propriamente
apresentado por ele. Sua sensação de que não é bem assimilado ou de que é mal
compreendido é constante.

que há vários níveis de leitura em Nietzsche, todos eles, a princípio, passíveis de serem legítimos
independentemente do que produzam como efeito.
30

Nietzsche relata essa angústia, por assim dizer, em sua autobiografia, não
deixando dúvidas acerca do fato de que, ao final de sua vida, a despeito de todas
as estratégias e esforços, ele era um autor cujos escritos estariam para sempre
fadados à polissemia e, portanto, à multiplicidade de entendimentos e, também,
inevitavelmente, de equívocos. Aqui, é evidente o fato de que o suposto não
hermetismo dos aforismos, assim como seu caráter excessivamente fragmentário,
poderia oferecer riscos quanto a uma possível percepção de totalidade da obra ––
quanto mais acessível, mais passível de ser apropriada.
Sua intuição estava certa. Não era, contudo, uma intuição desprovida de
fundamentos: Nietzsche sabia bem sobre a particularidade daquilo que deixava
como obra. Mesmo que não houvesse, à época, mais do que alguns contáveis
leitores que o seguiam, era de esperar que, com o tempo, suas pretensões como
pensador-escritor ganhassem, finalmente, algum tipo de interesse e
reconhecimento. Ele sabia exatamente o alcance daquilo que deixava como
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legado.
O impacto do estilo dos escritos nietzschianos, somado ao que há de
perturbador e provocador em suas ideias, permitiu-lhe (e ainda tem sido assim)
tornar-se um filósofo além da própria Filosofia. Nietzsche dotou o campo
filosófico de potências múltiplas que o obrigaram a ser reconsiderado pela maioria
dos que vieram depois dele. Ele inventou uma filosofia dentro da própria Filosofia
cuja força reside na força do estilo. Filosofia e arte se irmanam no estilo que
Nietzsche buscou. Ele inaugurou e deu testemunhos do que seria um novo tipo de
filósofo: o filósofo-artista.

A experiência do vivido ou de como as afecções engendram a


filosofia de Nietzsche

Depois que discorremos sobre o estilo em Nietzsche e suas valências


miméticas, é possível então salientar uma segunda dimensão que emana dos textos
do filósofo alemão. Ela requererá do leitor não somente que renuncie a
permanecer exclusivamente no primeiro nível de relação com o texto, isto é, o da
mimesis, da fascinação, da empatia, como também exigirá dele um empenho a
31

mais: trata-se da esfera que faz com que tenha que coincidir, necessariamente,
trabalho de leitura e experiência do vivido. Aqui, o leitor que quiser aceder a essa
dimensão terá que envolver-se com o texto de Nietzsche em uma perspectiva que
lhe permita reconhecer e mesmo permitir-se vivenciar, a partir de seu próprio
corpo e potências afetivas, algo que encontre ressonâncias na experiência de
Nietzsche. Para tal, dois elementos importantes estão em jogo: 1) estar atento às
valências e potências que animaram as construções da filosofia nietzschiana de tal
maneira que o leitor consiga, aí, entregar-se a um processo de mobilização de suas
próprias afecções19; 2) o leitor deve credenciar-se a romper com as resistências
que o tornam alguém aprisionado em estratificações impostas por injunções de
submissão provenientes da própria cultura. Ou seja, deve permitir-se livrar-se de
certos efeitos de recalque talhados por seu processo de engajamento em arranjos
disciplinares (crenças e práticas impostas pelos órgãos repressores), de maneira a
aquiescer a uma certa posição cética quanto às intenções dos valores. Isso seria,
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portanto, chegar a níveis de desprendimento próximos aos que Nietzsche chegou.


Não significaria, em absoluto, reproduzir a experiência do filósofo, mas ser
atingido, em certo sentido, por aquilo que o atingiu:

Em última instância, ninguém pode escutar mais das coisas, livros incluídos, do
que aquilo que já sabe. Não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a
partir da vivência. Imaginemos um caso extremo: que um livro fale de vivências
situadas completamente além de uma possibilidade de uma experiência frequente
ou mesmo rara – que seja a primeira linguagem para uma nova série de

19
O termo afecções, aqui, é tomado desde a filosofia de Baruch Spinoza a partir de seu livro Ética
Demonstrada Segundo a Ordem Geométrica. Spinoza distingue afeto de afecções, sendo que os
primeiros se caracterizam por ser “potências não representacionais que implicam variações
continuadas da força de existir” e as afecções que se caracterizam por aquilo que se produz a partir
do encontro de dois ou mais corpos. A afecção é aquilo que funda uma forma de um corpo existir
(isto é, funda sua natureza) a partir da possibilidade que ele tem de reagir diante das trocas com
outro(s) corpo(s). As afecções não existem a priori como repertório histórico de sentimentos ou
qualidades reativas; surgem no inédito e inespecífico que resulta do encontro de duas ou mais
corporeidades. Dessa forma, as afecções apontam para um certo tipo de conhecimento (diferente
do conhecimento histórico) que o próprio corpo pode ter de si a partir daquilo que lhe afeta diante
do outro corpo. Ou seja, Spinoza entende o psíquico como fundando-se a partir dos encontros, e
não dado previamente. Nessa perspectiva, Nietzsche é espinozista uma vez que, em sua filosofia,
alguém só pode “tornar-se o que é” a partir do movimento de suas afecções surgidas das misturas
com outros corpos. Isso nos leva a ter, tanto em Spinoza quanto em Nietzsche, uma filosofia da
potência e das formações afetivas no lugar do clássico pensamento metafísico que se divide
sempre entre dois planos que se comunicam, mas não se afetam: planos das ideias e dos sentidos.
Tanto para Nietzsche quanto para Spinoza, trata-se mais do vir-a-ser do que o ser. Por isso, as
potências afetivas desempenham um importante papel na percepção de si e, por conseguinte, na
construção do pensamento.
32

experiências. Neste caso nada se ouvirá, com a ilusão acústica de que onde nada
se ouve nada existe... esta é em definitivo minha vivência. 20

De acordo com esse testemunho de Nietzsche, não se pode ouvir, isto é,


sensibilizar-se com aquilo para o qual não se tem lastro através das vivências.
Alguém vai até onde há chão. Caminha-se, em geral, na segurança e conforto do
próprio solo que abriga os pés. As resistências funcionam como cercas que
garantem que alguém não ouse burlar a paz dos sentidos previamente concebidos
a partir de determinados ethos. A princípio, alguém só é sensível àquilo que lhe é
autorizado. Gosta-se de uma música porque o gostar está avalizado por um ou
uns. Há aqueles que, contudo, ousam pular, saltar, e até mesmo voar. Esse registro
de quebra de padrões requer, necessariamente, uma disposição para a vivência. A
vivência abre caminhos através do poder invasor e invasivo das afecções. Há
necessariamente que estar disposto a ir além e a constituir trilhas inusitadas. Há,
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também, necessariamente, que fazer com que os processos se rebatam por longos
períodos até que níveis de elaboração arregimentem novas grandezas, novas áreas
de ocupação. Viver e dizer dessa vivência. Há que dispor a atravessar o deserto, a
subir alturas, a navegar em alto-mar.
Se é mais elaborado, esse nível de experiência, no entanto, não é
impossível –– nisso acreditou o próprio Nietzsche –– e requer uma capacidade
extrema de envolvimento do leitor. O texto de Nietzsche é testemunha de um
processo contínuo de como o pensamento é transformador e, da mesma forma, de
como a experiência –– atravessada pelas afecções –– engendra o pensar. A aposta
de Nietzsche é que haverá um tempo21 em que as pessoas poderão tomá-la no
rigor daquilo que ele sustenta, que conseguirão transpassar suas crenças
fundamentais (o que é da ordem moral) e lograrão êxito em mergulhar em um
esforço de superação de si mesmas. Essa, no fundo, é sua aposta para uma nova
cultura, e é nessa aposta que se insere a proposta anunciada por Zaratustra quanto
ao devir além-do-homem.
Com Nietzsche, trata-se sobretudo de se reportar ao plano do vivido. Esse
plano está diretamente implicado com o estatuto da própria escrita nietzschiana: as
problematizações partem de uma concepção muito particular das potências do

20
EH Por que escrevo tão bons livros, KSA 6, p.300.
21
Na próxima sessão, trataremos da questão do “extemporâneo” em Nietzsche.
33

corpo e de suas afecções. Todavia não se trata, em absoluto, de supor que isso dê
ao texto deste autor contornos de pronunciamentos e elaborações em torno do
subjetivo.
Heidegger, um importante leitor de Nietzsche no século XX, tem posição
esclarecedora quanto a essa questão: o “falar de si”, em Nietzsche, não pode ser
simploriamente explicado como uma necessidade narcísica de “autoconsideração”
ou “autoexposição”, o que a classificaria como eminentemente subjetiva. Ele vê,
nesses atos, uma condição necessária ao que chamou de “tarefa pensante e
momento histórico” de Nietzsche. Ou seja, Nietzsche assumiu, desde cedo, a
missão de pensar o que Heidegger chama de “a realidade propriamente dita”.
Nisso está implícito que qualquer “noção narcísica” é somente a superfície de uma
dimensão muito mais abrangente que implica, para Heidegger, o pensamento do
“ente na totalidade”. Ou seja, Heidegger sustenta que Nietzsche foi o último dos
metafísicos porque reverteu o platonismo (a submissão imposta pela clivagem das
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ideias), mas, ainda assim, conseguiu situar suas questões dentro de categorias
filosóficas. No caso de Nietzsche, o pensamento “sobre si” é mais uma
formalização de uma categoria metafísica do que um relato psicológico ou
subjetivo.
Ainda, para Heidegger, os elementos acerca de si, em Nietzsche,
localizados, por exemplo, em seus relatos em diários pessoais, são momentos de
difícil exercício de pensamento metafísico. Heidegger acompanha a ideia
afirmada pelo próprio Nietzsche de que este seria um pensador do “grande estilo”
e não teria feito outra coisa senão afirmar isso. Nas palavras do próprio
Heidegger:

Em uma época de decadência, de falsificação de tudo, do mero funcionamento da


máquina de negócios em tudo, essa missão consiste em tornar visível, por meio
da própria história, que o pensamento do grande estilo é um agir autêntico, e, com
efeito, em sua figura maximamente poderosa, ainda que maximamente
silenciosa.22

A autenticidade de Nietzsche interessa, em comum, a Heidegger e a


Deleuze. Aliás, essa parece ser uma característica ressaltada pelos seus leitores
críticos em geral. Nietzsche, no pensamento da imanência (como quer Deleuze) e
na exasperada busca pelo grande estilo (como reforça Heidegger), torna-se um

22
HEIDEGGER, 2007, Vol. I p. 202.
34

autor cujas ideias reivindicam estatuto de honestidade para com o pensamento. O


que pode sugerir plano de individualidade, autobiografia ou subjetividade não é
outra coisa senão uma descaracterização da noção de verdade comumente
associada a parâmetros de verificação no cruzamento entre Filosofia e Ciência. No
entanto, a questão é que justamente o critério de Nietzsche é subverter a Filosofia
clássica através da elaboração das formações do corpo em sua multiplicidade.
Deleuze e Heidegger, de formas diferentes, sustentam que a grande questão em
Nietzsche é a da filosofia em sua relação com a potência do pensamento e, por
conseguinte, com a capacidade de emanar signos que se aproximem da criação de
novas formas (Heidegger) e fluxos (Deleuze). Em outras palavras, Nietzsche, de
fato, teria sido capaz de, através de suas experiências, tangenciar a arte e pensá-la
através de sua filosofia.
Se trazemos Heidegger aqui, é para reconhecê-lo como um dos
importantes leitores de Nietzsche no século XX, um pensador que foi capaz de
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mapear de forma criteriosa23 (mesmo que não sigamos seus critérios) os níveis de
problematização das questões que importaram a Nietzsche na construção de seu
pensamento, de forma a afirmar a existência de um estilo, portanto, afastá-lo de
um universo exclusivamente subjetivo.
A escrita de Nietzsche não é passível de ser lida exclusivamente em seu
sentido confessional, mas, sim, em diversos planos que vão do particular ao mais
abstrato da experiência. Se há algo a compreender dessa segunda dimensão a que
se faz alusão aqui, é que Nietzsche logrou êxito em olhar para a cultura e suas
formações a partir de sua própria corporalidade. Isso, sempre de maneira a voltar a
essa instância e manter-se fiel a ela sem deixar que seu pensamento se perdesse
nos encadeamentos oriundos das representações investidas pelas típicas formações
ideais elaboradas em nome da civilização. Dito de outra maneira, o que faz marcar
o texto nietzschiano é exatamente essa não aderência da formulação de seu
pensamento às formas de institucionalização do conhecimento tão necessárias aos
movimentos instituintes.

23
A importância da leitura de Heidegger também se deve ao fato de que ele, através da força de
seus argumentos, entre as décadas de 30 e 50 no século XX, mostrou que Nietzsche foi um
pensador de alta relevância dentro da Filosofia, e não o contrário, como parecia se caracterizar à
época: lembremo-nos de que havia, até então, uma forte tendência a descaracterizar a obra de
Nietzsche como sendo produto de autoria de um louco ou de um excêntrico e delirante poeta
romântico.
35

No entanto, a leitura que Heidegger faz de Nietzsche quer-nos parecer por


demais tendenciosa uma vez que ela serve aos propósitos de leitura do autor de
Ser e Tempo para justificar seu projeto filosófico, e não está comprometida com
aquilo que Nietzsche queria como marca radical de constituição de sua filosofia:
um conhecimento fundamentado não na razão ou sistematização conceitual, mas,
antes de tudo, uma filosofia elaborada a partir do vivido24.
Ao ignorar o vivido em Nietzsche, ou pelo menos tentar cercá-lo de
categorias metafísicas, Heidegger reinstaura em seu discurso aquilo que Nietzsche
havia tentado afastar em seu pensamento: a primazia do sentido sobre o corpo ou,
ainda, a pretensão inequívoca de a rede conceitual incluir o corpo, e não o inverso.
Aqui, Heidegger se apropria de Nietzsche para dar-lhe um destino cujo interesse
responde a seus anseios na história da metafísica. Isto porque, para este último, as
potências do corpo decidem sobre o sentido, a cada lance de dados, a cada trama.
Era quanto a prováveis leituras doutrinárias de sua obra que Nietzsche alertava em
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sua autobiografia; por isso, a necessidade de timbrar Ecce Homo da maneira mais
enfática e singular. Ecce Homo: uma espécie de afirmação última, marcada pelo
colapso iminente.
Nesse nível, que é o próprio nível da experiência do homem Nietzsche,
estamos em uma dimensão cuja sintonia é de extrema fragilidade, e os alicerces se
constituem de maneira a não estar facilmente discerníveis e disponíveis. O vivido
em Nietzsche e aquilo do qual ele dá testemunho não se confundem com o
subjetivo. Evidentemente que há um plano localizável de subjetividade em
Nietzsche (que fascina uma gama de leitores de todos os espectros, tal como
apresentamos na sessão anterior); mas ele se desfaz tão logo se perceba que o
lugar onde Nietzsche se coloca não permite uma leitura colada a um modelo

24
Aqui, Heidegger não acompanha Nietzsche. Ele tenta servir-se dele, adaptá-lo, formatá-lo a
seus interesses, esses sim, em torno de uma sistematização. Exemplo: o quadripartido [terra, céu,
deuses e mortais] heideggeriano, ao estabelecer as condições previamente dadas acerca da
“mundanidade do mundo”, é, decerto, uma tentativa de abolir a relação binária sujeito/objeto, mas,
ainda assim, inventa uma estrutura cardinal onde os elementos ali estão sob uma perspectiva
ontológica, o que significa dizer que Heidegger pressupõe uma existência para cada um dos
elementos na estrutura. Ora, o pensamento de Nietzsche não poderia se compatibilizar com essa
construção uma vez que as valências das potências, em sua concepção fisiológica do poder, são
tidas como reflexos inéditos e impossíveis de ser mapeados previamente, já que dependeriam dos
arranjos e das afecções nos encontros entre corpos. Não há subjetividade em Nietzsche, e também
não há sujeitos. E, quando isso há, já é exercício retórico de uma certa reedição da leitura
metafísica, potencializada, sobretudo a partir de Descartes e o advento da modernidade. Ou seja,
só há sujeito em Nietzsche para os que menosprezam a experiência do vivido.
36

anteriormente mapeado de pensamento. Ou seja, não é fácil classificar Nietzsche


de acordo com parâmetros previamente concebidos.
Se, de fato, há algo a se validar nessa segunda dimensão que se apresenta
aqui, é justamente que Nietzsche não está falando de si, que ele não se interessa
pela constituição de lugares sintônicos por onde se poderia pensar um “eu” ou um
conjunto de “nós”, mas que se utiliza do vivido para provocar e, aí sim, dar
testemunho de uma experiência que pensa o vivido pela via da corporeidade.
Aqui, a figura de Dioniso funciona como dispositivo instaurador de estados que
fazem surgir novas corporeidades.
O interesse de Nietzsche por Dioniso remonta à época em que escreveu O
nascimento da tragédia, portanto está posto desde o princípio de seu pensamento.
Em Dioniso, a força que opera é a da irrupção. Essa divindade provoca uma
espécie de transe capaz de desabrigar o homem de sua própria existência,
abalando os alicerces por onde ele se constitui. A ação dionísica tem efeitos
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narcotizantes e opera o “esquecimento de si”, fazendo com que o homem se veja


ausente de si e desapropriado de suas particularidades. Dioniso age no sentido de
interromper os limites estabelecidos por Apolo, sendo que seus efeitos ocasionam
a pulverização de fluxos de potência. Há, portanto, a interrupção da força apolínea
do principium individuationis, e Nietzsche atenta para o “desaparecimento do
subjetivo”. Trata-se de uma espécie de pilhagem exercida pelas potências
dionisíacas que agiriam em nome do que ele denomina por “Humano-Geral” ou
“Natural-Universal”; isto é, essas categorias que sustentam o dionisíaco falam da
potência primeva da natureza, essa sim, soberana e irredutível. Dioniso seria
então, nesse sentido, a imposição da natureza sobre a dimensão humana.
Com Dioniso encarnado, o homem se sente como um deus e vive a
experiência de ser membro de “uma comunidade ideal mais elevada”. Para o
Nietzsche dessa época, o homem tomado por Dioniso é extasiado e, ao invés de
artista, torna-se ele próprio a obra de arte.
Se entendermos o dionisíaco como potência do extático, como incitação ao
esmorecimento das suturas impostas pela cultura ao corpo, então temos que, em
Nietzsche, a escrita referenda o próprio gesto de aliança com aquilo que prolifera
como excesso e se apresenta como recurso inexorável de sobrevivência. Ser
tomado pelo dionisíaco está longe de ser uma alegoria. Trata-se mesmo de um
37

chamado a que Nietzsche não consegue se furtar tampouco permite que a ele se
furte. A escrita lhe serve, mas não para combater o dionisíaco, e sim para lhe
confirmar a continuidade dessa experiência. Nesse sentido, Nietzsche não
exorciza nada; ao contrário, eterniza seu pacto com o dionisíaco, inventando um
novo tipo de filosofar através da escrita.
O curioso é que, nesse gesto de lutar pela própria sobrevivência, num
processo que não esconde seu caráter reativo, Nietzsche quase que, por acaso,
acaba por redesenhar lugares possíveis de um porvir da cultura através dos
estratos de seus mais distintos exercícios de pensamento. Aqui, o vivido se
desdobra em escrita, e esta se faz artística como consequência imediata do tipo de
afecção que a anima: não é de outra coisa que Nietzsche fala, senão de suas
formas de ser afetado e embevecido pelo amplo espectro das questões que lhe
interessam:
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Meus escritos dão trabalho – espero que isso não seja uma objeção contra
eles!...Para se compreender a linguagem mais concisa jamais falada por um
filósofo – e além disso a mais pobre em clichês, a mais viva, a mais artística –, é
preciso seguir o procedimento oposto ao que normalmente pede a literatura
filosófica. Esta é preciso condensar, de outro modo estraga-se o estômago; - a
mim é preciso diluir, tornar líquido, acrescentar água: de outro modo, estraga-se o
estômago. – O silêncio é em mim tão instintivo como nos senhores filósofos a
garrulice. Eu sou breve: meus leitores mesmos devem se fazer extensos,
volumosos, para trazer à tona e juntar tudo o que foi por mim pensado, e pensado
até o fundo. – há, por outro lado, pressupostos para aqui se ‘compreender’, à
altura dos quais estão poucos e raros: é preciso saber por um problema no seu
justo lugar, isto é, em relação com os problemas a ele atinentes – e para isso é
preciso ter ao alcance a topografia dos recantos e áreas difíceis de ciências
inteiras, e sobretudo da própria filosofia. – Afinal falo apenas do vivido, não
somente do ‘pensado’; a oposição pensamento/vida não existe em mim. Minha
‘teoria’ cresce de minha ‘prática’ – oh de uma prática nada inócua, nada
anódina!... 25

Em Ecce Homo, Nietzsche alerta seus leitores para o fato de uma suposta
“inacessibilidade” que emana de seus escritos (para aqueles que o leem além do
subjetivo) justificar-se, porque os que dele assim se aproximam o fazem pela via
da apropriação, seja ela política, seja conceitual, mas, sempre, com o vício da
compulsão à subjetivação. Tudo aquilo que ele se viu impelido a fazer foi se
entregar à experiência da escrita, movido por um continuado movimento de

25
EH Por que escrevo tão bons livros 3 (n36), KSA 6, p.305.
38

desligamento entre as evidências do conhecimento instituído e as solidificações


dos estratos de verdade. Desprover-se de tudo o que lhe parecesse impedir o
pensamento, destituir-se do peso imposto pelas ordenações da cultura e, ainda
assim, pensar a experiência humana desde sua “inumanidade” e mesmo arriscar
indicar elementos de superação dessa própria cultura são atos que se tornam
inteligíveis na categoria do que ele próprio designa por vivido.
É nesse sentido que, ao rever seu percurso, ele avisa ao leitor:

Tomar em mãos um livro meu parece-me uma das mais raras distinções que
alguém se pode conceder –– suponho mesmo que tire as sandálias para fazê-lo,
ou as botas... Quando em certa ocasião o Dr. Henrich von Stein queixou-se
honestamente de não entender palavra do meu Zaratustra, disse-lhe que era
natural haver compreendido seis frases dele, ou seja: Tê-las vivido, elevaria
alguém a um nível bem superior ao que “homens modernos” poderiam atingir.26

A coisa se dá como se, no lugar de cada elemento que se vê ligado a um


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sistema ou a um tipo de crença, ele apresentasse uma objeção corpórea em que a


resultante é sempre uma filosofia descaracterizada e aberta. Filosofar com o corpo
significa que está em jogo uma escrita completamente inédita e capaz de instaurar
circuitos cujas insistências incidem sobre a própria leitura que esse corpo afetado
é capaz de fazer daquilo que, em outro lugar, se constituiu como metafísico.
Entretanto, é justamente pelo fato de esse corpo afetado estar submetido às
mesmas leis que constituem qualquer corpo ou qualquer potência, e, ainda, por
esse corpo ser afetado também pelos signos que fazem questão à filosofia, que a
produção nietzschiana não pode ser caracterizada de autorreferenciada. Nietzsche
não inventa uma nova filosofia –– inventa uma nova forma de transitá-la. O corpo
de Nietzsche não é subjetivo: desdobra-se em distintos níveis ou dimensões
fisiológicas. O corpo em Nietzsche são os corpos em afetação. O corpo é micro e
macro ao mesmo tempo. Suas fronteiras são franjas que tocam outras franjas.
Trata-se de um corpo em expansão, o próprio cosmos, por assim dizer.
Sua filosofia é um campo de forças cujos elementos se apresentam sempre
em forma de batalhas; aqui, a batalha pela sobrevivência da espécie ou da
superação de uma época é a mesma pela sua sobrevivência particular. Nietzsche é

26
EH por que escrevo tão bons livros1,KSA 6, p.298.
39

bélico onde importa e faz guerra não com totalidades, mas com elementos.
Batalhas e armistícios são possíveis com os mesmos interlocutores. Nenhum tipo
que se apresente em seu caminho como forte é passível de ser desprezível; ao
contrário, o filósofo precisa deles, certamente para ter suas potências em
movimento, vinculando-se e também se desvinculando: Nietzsche contra Sócrates,
Nietzsche contra Schopenhauer, Nietzsche contra Wagner, Nietzsche contra os
filólogos... Mas também Nietzsche com Sócrates, Schopenhauer, Wagner e
outros. Dessa série de movimentos ondulares, cíclicos e destitutivos, depreende-se
um texto cujas características exercem fascínio e repulsa.
Pierre Klossowski trabalha a ideia de que Nietzsche empreende uma luta
contra a cultura em nome de uma “cultura dos afetos”27. O autor constrói
importantes argumentos, mostrando que a experiência de Nietzsche é notadamente
marcada pelo afetivo e que uma de suas tarefas é justamente a de denunciar os
embustes da consciência e suas consecutivas investidas contra si própria, o que
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causou, invariavelmente, uma culpabilidade intrínseca à humanidade (ou seja, a


cultura é, sobretudo, sempre culpada e culpabilizadora). Ainda para Klossowski, o
esforço de Nietzsche, a afirmação de uma “cultura dos afetos só será possível
depois de uma desarticulação progressiva das subestruturas que foram elaboradas
a partir da linguagem”. Klossowski mostra que Nietzsche se esforça por denunciar
e aniquilar a consciência servil, oriunda da vitória da moral do fraco (do escravo),
e impor, a partir do que denomina, por sua idiossincrasia, a “soberania da emoção
incomunicável”.
Contra a cultura, Nietzsche interpela seu corpo; mais do que isso, contra a
cultura, Nietzsche oferece a experiência de seu corpo a partir das afecções que daí
derivam. Isso é um tipo de destino que não se escolhe –– aceita-se ou não. No
caso de Nietzsche, ele não só o aceitou como também buscou potencializar esses
agenciamentos ao máximo, tornando possível a transformação radical com que
atacou e vislumbrou a cultura.
Heidegger é um dos que pensaram essas dimensões de corpo,
corporeidade, afetos em Nietzsche. Para ele, corpo não se confunde com
organismo, tampouco se pode entender corpo como um compartimento isolado e
diferenciado do sentimento. A capacidade de sentir é exatamente o que torna

27
Cf KLOSSOWSKY, 2000, p.34.
40

alguém “corporal”. Ele conclui: “(...) ser corporal não significa que um apêndice
corpo está desde o princípio co-inserido em nosso si próprio, e, com efeito, de um
modo tal que ele permeia a nós mesmos em seu estar em tal ou tal estado”28. Por
sua vez, o sentimento não é interioridade, “mas é aquele modo de ser fundamental
de nosso ser-aí (dasein) por força do qual e de acordo com o qual já sempre somos
alçados para além de nós mesmos em direção ao ente na totalidade, ao ente que
nos diz ou não respeito de um modo ou de outro”. E é justamente nesse “além”
que Heidegger situa o que chama de “tonalidade afetiva”, a qual seria aquilo que
levaria o ser a buscar afinar-se, sempre na exterioridade, no encontro com outras
tonalidades afetivas que se implicariam em referências e remetências continuadas
e inesgotáveis: “a tonalidade afetiva é, precisamente, o modo de ser fundamental
como nós nos encontramos fora de nós mesmos. No entanto é assim que somos
essencial e constantemente”29.
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******

Como se vê, por onde Nietzsche foi, ou seja, pelos mapeamentos possíveis
causados por suas afecções, é possível e provável que o leitor responda também
com afecções. Porém, a diferença reside no fato de que não basta se deixar afetar;
é preciso aceitar o convite por onde a dor e a alegria (duas fortes polaridades do
afeto em Nietzsche que se intercambiam) se fizeram presentes para o filósofo e,
com isso, aceitá-lo como mestre. Há aqui um explícito convite –– embora
anunciado com todos os riscos –– para que o leitor se permita aprender com a
experiência de Zaratustra, estando ele próprio disposto a ir, à sua maneira, por
onde o “profeta” foi.
Aqui, Nietzsche e Zaratustra são mestres, são iniciados. Inequivocamente,
há aí uma afirmação de um pathos como inaugurador de uma nova cadeia de
elementos ou de uma nova era a ser anunciada e vivida:

Eu vos anuncio o além-do-homem. O homem só existe para ser superado. Que


fizestes para o superar? (...) O Além-do-homem é o sentido da terra. Que a vossa
vontade diga: possa o Além-do-homem tornar-se o sentido da terra. (...) Vede: eu

28
HEIDEGGER, 2007, Vol I p. 91.
29
Ibid, p. 92.
41

sou o anunciador do raio, eu sou uma pesada gota caída da nuvem, mas este raio é
o Além-do-homem.30

Zaratustra traz o júbilo de uma experiência franca com o vivido. Para tal,
foi preciso que se retirasse às alturas31 e que lá permanecesse intocável e isento de
qualquer olhar. As alturas, lugar que alude ao intangível, mas, também, ao
indiferenciado, permitem a supressão do humano e o afloramento de potências do
devir. Nesse caso, estar nas alturas é estar bancando o que seria, a princípio,
insuportável; é permanecer vivo onde os signos que predominam (sobretudo
durante a noite) são os de ameaça de morte. Habitar as alturas com Zaratustra é
testemunhar sua dor, respeitá-la e ver como ele a desejou e a dobrou apenas
porque sua aposta no perecimento da metafísica e da própria bestialidade do
sentido é mais forte do que a ameaça de sua própria deterioração.
Zaratustra é aquele que permaneceu reticente às constantes revoluções de
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seu tempo, não se abalando ou se interessando por suas promessas. Ele não se
deixou enganar pela tirania do homem sobre si próprio e sua renitente ação de
subjugamento da experiência do vivido. Zaratustra é um visionário porque
conseguiu ver que, além do corpo, não há nada, a não ser os rebatimentos deste
sobre si próprio. Os corpos se subdividem ou se supermultiplicam; mas não há
nada além das corporeidades –– nem objeto nem sujeito; nem dentro nem fora.
Por insistir em potencializar suas afecções e delas desejar extrair ainda esse
corpo32 como seu maior triunfo, o “profeta” superou a si próprio e ascendeu a um

30
Za prólogo 3, KSA 4, p.14-16.
31
No caso de Zaratustra, esse habitar as alturas também faz alusão à superioridade que ele
conquistou e ao gosto pelo aristocrático. Como se sabe, o Zaratustra de Nietzsche é também uma
paródia a Jesus Cristo. Só que, diferentemente deste, Zaratustra ama os fortes e almeja os ver cada
vez mais fortes. Em Zaratustra, não há a promessa de redenção cristã, e sim a pura afirmação da
potência de vida. Há que levar em conta também a frequência com que Nietzsche mencionava seu
gosto pelas caminhadas e, sobretudo, por alcançar grandes alturas em suas andanças. Trata-se de
uma imagem recorrente ao longo de sua vida e se configura como uma modalidade de falar do
vivido.
31 Ainda aqui, acompanhamos Heidegger sobre a questão do “estado corporal”, ou, como
preferimos, da corporeidade e suas afecções: “O estado corporal oscila em tudo isso, nos alça ao
mesmo tempo para além de nós mesmos ou deixa o homem preso e embotado em si mesmo. Não
somos inicialmente viventes e temos então, além disso, ainda um aparato denominado corpo. Ao
contrário, vivemos na medida em que conquistamos um corpo. Essa conquista de um corpo é algo
essencialmente diverso de um estar apenas de posse de um organismo. A maior parte das coisas
que conhecemos nas ciências naturais sobre o corpo e sobre a conquista de um corpo são
constatações nas quais o corpo é, antes de mais nada, transformado em corpo físico por meio de
falsa interpretação. Na medida em que se faz isso, é possível descobrir muitas coisas. No entanto,
o essencial e determinante já se acha sempre fora de consideração e apreensão; e a busca
subseqüente do ‘psíquico’ pertencente ao corpo que já foi antes falsamente interpretado como
42

lugar inabitável pelo homem comum. Zaratustra venceu a cultura e disso quis dar
seu testemunho.
Zaratustra é Nietzsche e Nietzsche é Zaratustra. Não é somente como mito
que Zaratustra deve ser lido, mas também como duplo de Nietzsche. Quando
chega a fazer um inventário de sua experiência em Ecce Homo, já não há mais
diferença, nem mesmo necessidade de se lançar mão de recursos como ficção ou
mito. A superação desses registros faz Nietzsche afirmar que seu destino é mesmo
ter nascido póstumo, pois quais seriam os homens capazes de entender essa
“nova” metafísica cujos valores não estão sob a égide do instituído, mas, antes,
residem nos movimentos de destituição? Se o destino dos homens é criar mitos
para neles verem projetados seus ideais e, da mesma forma, a partir deles,
inspirarem-se e estratificarem seus laços culturais, como então seria possível
admitir uma “metafísica” que se pusesse não no lugar de pensar o mito, mas sim
no de renegar qualquer lugar à representação como causa?
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Não coube a Nietzsche reinventar uma metafísica ou mesmo superá-la;


coube-lhe, sim, a difícil tarefa de transgredi-la e, ainda assim, permanecer
habitando entre os filósofos. Nesse ato, tornou-se mais que filósofo e deu luz a
uma obra que se potencializou a partir de si própria.
Nietzsche não se interessa pela metafísica em sua formalidade, como
tivesse que dar continuidade a um pensamento; no lugar dela, põe o impacto de
sua escrita. Sua experiência como filósofo incide, de forma ostensiva, sob a
perspectiva da criação de uma obra cuja valência encontra seus melhores signos
na arte. Não é que ele deixe de ser filósofo para tornar-se artista, mas, sim, que
sua filosofia é pensada sob os contornos do fazer artístico. Quanto a isso, a sua
vida toda é inequívoca: a arte, sobretudo através da música e da escrita poética,
animou desde sempre suas vias de expressão33.

corpo físico já desconheceu este estado de coisas” (HEIDEGGER, 2007,p.92). Essa questão da
“falsa interpretação” é uma observação nietzschiana. A tendência do platonismo e o discurso
científico em fixar a corporeidade em nome do organismo alijaram, em muito, as potencialidades
das afecções. A crença na alma, no espírito, no bem e mal, segundo denunciou Nietzsche,
sentenciou a dependência do homem aos idealismos de toda sorte e levaram junto as possibilidades
dele de circunscrever a sua experiência a partir do fluxo de suas afecções, ou seja, de dar ao
mundo o sentido de seu corpo, e não o contrário. Nietzsche, em defesa da corporeidade, levou às
últimas consequências o seu pensamento sempre nessa perspectiva do que aqui designamos com a
expressão “experiência do vivido”.
33 Esse argumento está desenvolvido ao longo dos capítulos e encontra sua hipótese defendida no
capítulo final desta tese.
43

Por isso, o Nietzsche maduro não ousa mais pensar com as categorias das
quais se valeu para inaugurar seu pensamento quando da época de O nascimento
da tragédia: Schopenhauer, Wagner e Kant não passam de “decadentes” que não
fizeram outra coisa senão reeditar fac-símiles do mesmo, com a pretensão de
inaugurar recortes e apoderar-se da cultura sob a sistematização do pensamento
desde a transcendência. Esses pensadores trazem em comum a divisão do mundo
em polos que se opõem e fundam verdades perfeitas e inatingíveis.
As categorias de Nietzsche, por outro lado, dizem respeito às
possibilidades de afirmação do pathos que o invade e o mobiliza através de
reendereçamentos à própria cultura. Contudo, a cultura que passa a interessar a
Nietzsche é aquela que se figura no transpassar dos elementos da metafísica. No
lugar do “ser”, Nietzsche insiste no devir; no lugar do ethos, as transposições do
pathos; sob o reinado de Apolo, as intervenções de Dioniso:
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Há quanto tempo já venho tentando demonstrar para mim mesmo a perfeita


inocência do devir! E que caminhos singulares já não percorri fazendo isto! Em
primeiro lugar, me parecia que a solução correta era decretar: “a existência, sendo
alguma coisa do gênero da arte, não está de forma alguma sob jurisdição da
moral: melhor dizendo, a moral pertence ao domínio do fenômeno (...).34

Zaratustra é um dos devires de Nietzsche, assim como Dioniso também o é


–– eis por que sua filosofia transborda e comunica-se com outras formas de
afirmação de experiência. A arte é causa e, também, consequência direta.
Zaratustra encarna o vivido de Nietzsche e, ao mesmo tempo, torna Nietzsche
capaz de seguir encontrando experiências desse vivido, que é o devir em fluxo,
continuidade –– menos uma dinâmica dialética do que a aparição e desaparição de
afecções materializadas em tipos ou campos de pertencimento. Zaratustra é um
tipo capaz de provocar e imantar, e Dioniso pertence a um campo de forças que
remonta aos primórdios da cultura. Ambos estendem a existência de Nietzsche e
funcionam como reinstalações do filósofo. Na voz de Zaratustra, está Nietzsche, e,
em Nietzsche, apresentam-se os campos de força de onde devêm novas versões de
Zaratustra.
Foi Deleuze quem insistiu na compreensão de que em Nietzsche, seguindo
uma linhagem desde Spinoza, o corpo seria constituído por relações de forças. O

34
EH por que sou tão sábio 1, KSA 6, p. 270.
44

corpo não se definiria em uma materialidade, mas sim no jogo de forças que se
encontram. Deleuze ressalta que Nietzsche concebia as forças em suas dimensões
quantitativas e qualitativas. Quanto às primeiras, seriam intensidades que se
apresentam e se afetam de maneira a produzir novas intensidades. Aí está a ideia
de devir, fundamental em Nietzsche e Spinoza, remontando a Heráclito: o corpo é
o que devém a partir dos encontros de forças, intensidades. Sob o ponto de vista
qualitativo, seguindo a trilha de Nietzsche, Deleuze apresenta forças ativas e
forças reativas. As primeiras subjugariam as segundas e formariam hierarquias. O
corpo não seria “um campo de forças”, mas as forças submetidas a elas próprias
em seus múltiplos agenciamentos. Relações de forças produzem corpos de toda a
sorte. “O corpo é um fenômeno múltiplo, sendo composto por uma pluralidade de
forças irredutíveis, sua unidade é um fenômeno múltiplo, ‘unidade de
dominação.’”35
O vaivém entre as valências Nietzsche-Zaratustra é, em si, a própria
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atualização do que há de dionisíaco nessa experiência. Nessa perspectiva, o escrito


de Nietzsche não teria como deixar de ser atravessado pelos signos da dor, uma
vez que não se criam essas equivalências impunemente, nem se vive a incitá-las
sem que disso se depreenda algo de autêntico, concreto, real.
Sob tal perspectiva, a escrita de Nietzsche é gestual –– ela duplica seus
movimentos, repete suas contorções e faz reverberar suas insurgências. A
resultante é uma desconfiguração total de tudo que queira manter-se onde está e,
ao mesmo tempo, uma glorificação da dor enquanto experiência afetiva, mas,
também, da mesma forma, dos afetos per si: a dor como condição do pensar,
como elemento detonador de ligações capazes de resolver enigmas; o pensamento
vivido da dor como elemento trágico sob o qual se deve insistir. Aqui, dor não é
concebida como martírio ou punição. O filósofo-artista descobre que afirmar a dor
ao máximo, reconhecê-la e potencializá-la permitem que ela encontre pontos de
inflexão e se transmute em alegria de viver. Eis aí uma forma da transmutação
anunciada por Zaratustra.
Nietzsche diz que, para poder ser lido, é preciso que o leitor saiba, assim
como ele, reconhecer a dor como bênção. Não é a dor que mata, mas a fuga que
dela se faz pela via da negação. Também não se trata de masoquismo, de

35
DELEUZE, 2003, p.45.
45

veneração ao sofrimento. Trata-se, no entanto, de recusar as saídas cínicas


dedicadas a arrefecer o que é humano. Para Nietzsche, somente a afirmação das
afecções é que permite “verdadeiros êxtases do aprender”:

Quem comigo tem afinidade pela altura do querer, experimenta nisso verdadeiros
êxtases do aprender: pois eu venho de alturas que asa nenhuma cruzou, eu
conheço abismos onde pé algum jamais se extraviou. Disseram-me que é
impossível pôr de lado um livro meu – que eu perturbo inclusive o repouso
noturno... Não existe em absoluto espécie mais orgulhosa e refinada de livros –
eles alcançam aqui e ali o mais elevado que se pode alcançar na terra, o cinismo;
é preciso conquistá-los com os dedos mais ternos, e com os punhos mais bravos.36

Em outras palavras, é como se Nietzsche dissesse ao seu leitor: “Veja...


para ler-me, é preciso ir com o corpo e suas afecções onde eu estive, ou seja, onde
se é impossível fazer do exercício da dor uma aposta ou um argumento contra a
lamúria. Uma vez lá, é preciso ainda amar a arte de afrontar o que há de mais
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refinado e ao mesmo tempo perverso na terra: o cinismo. Cinismo que insistirá em


fazê-lo joguete de qualquer coisa, menos de dar-lhe o direito de se dirigir pelas
afecções que o interpelam.”
Esse cinismo de que Nietzsche fala e que é a própria resistência encarnada
de seus detratores –– ou maus leitores –– é também o cinismo da metafísica ou de
qualquer sistema de pensamento que queira arrogar para si a propriedade
magnânima de ditar os signos e valores de uma cultura. Ou seja, contra este tipo
de cinismo, Nietzsche oferece seus livros e, para seus leitores, o convite de
mergulhar em seu estilo e com ele dialogar.
Por não conseguir ser cínico e também por ser alérgico a qualquer tipo de
inseminação conceitual, foi que Nietzsche encontrou, na sua dor, uma aliada. Pois
o que poderia haver de mais genuíno e menos cínico senão a dor que o assaltava e
o obrigava a dar resposta? Entre padecer com a decadência da cultura, com a falta
de querer ostentada pelos movimentos emburrecedores –– posturas daqueles que
cedo denunciou sob a égide de “filisteus da cultura” –– e escutar o próprio
padecimento como eco de resistência, mil vezes, para Nietzsche, apoderar-se deste
último, que não é senão um aparente canhestro recurso. Trata-se, a partir daí, de
fazer dele insumo vital para a resposta ao cinismo.

36
EH por que sou tão sábio 1, KSA 6, p. 270.
46

A dor lhe foi imposta desde cedo, e não houve, sequer, possibilidade de
escolha. E, se aqui se apresenta a ideia de alergia como resistência, é para se ter a
justa medida daquilo que era para Nietzsche a concepção de uma aspiração
estética: a exata tradução da dor em armamento bélico contra aquilo que a incitara
previamente. Tal qual um antídoto contra a degradação (se é possível falar de
estética em Nietzsche), esta é, antes de qualquer coisa, a simples enunciação do
vivido como aquilo que deve justificar qualquer ato. Somente a partir dos
movimentos, das ações e das expurgações emanadas por esse corpo, ou seja,
somente a partir de um talhar das afecções, é que se pode chegar a um estilo.
Entende-se por que sua obra chama a atenção de tantos diferentes leitores
em tantas distintas épocas. Está-se diante de um autor que conseguiu enunciar
estilos e formas de materialização da linguagem em que os “estados interiores”
estão o tempo todo funcionando como leitmotiv e, assim, dialogando
insistentemente com o ethos. Nesse sentido, Nietzsche mesmo localiza a potência
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de seus escritos no fato de que lhe foi possível, talvez por mero esforço
espontâneo de sobrevivência, regular a tensão entre pathos e ethos de maneira
muito peculiar e inequívoca.
A se levar a sério o que diz Nietzsche em Ecce Homo sobre seus livros,
está-se aceitando o fato de que ele logrou êxito –– ainda que de forma não
planejada –– em restaurar a experiência da escrita em níveis completamente
inéditos, tornando-se o que julgamos ser correto denominar, junto com o próprio
Nietzsche, de filósofo-artista.
Esse filósofo-artista é, sem dúvida, um híbrido. Não haveria outra forma
de entendê-lo senão pelo fato de que filosofar, em Nietzsche, não é o mesmo que
construir um sistema ou justificar um pensamento, mas sim criar estilo de
linguagem estabelecendo uma tensão própria daquilo que insiste por dentro. Fazer
reverberar no fora aquilo que insiste por dentro, de maneira que, ao se enunciar
um aforismo ou entoar um ditirambo, esteja-se no ponto de confundir as
experiências do dentro e do fora, para criar “estados”, “temporalidades” ou
“lugares” que inaugurem relações imponderadas. Lembremo-nos: estamos aqui no
registro da experiência, mas com a marca daquilo que queremos como vivido.
Trata-se de inspiração; inspiração essa que se realiza na afirmação de
temporalidades. Há algo da ordem de uma revelação, sendo que esta não fala de
47

uma transcendência, mas tão-somente rebate fluxos e fluidos, promovendo


aparição/desaparição/nova aparição de estados afetivos, pathos. Estados de alma
em que as coisas aparecem, tornam-se potências, presentificam-se e tomam a
cena. Está-se nos estados de aparição, de presença, de invocação: “Ouve-se, não
se procura; toma-se, não se pergunta quem dá”, diz ele... Trata-se de uma
experiência extática onde a condição e, ao mesmo tempo, a resultante sejam uma
espécie de “um completo estar fora de si”. Esse é o depoimento de um Nietzsche
já em fase de balanço de sua vida, em momentos áureos próximos ao apagar de
seu ofício de escrita. Ou seja, o autor faz questão de deixar como testemunho
aquilo que caracteriza o valor de seus achados: a experiência máxima do vivido
levada às últimas consequências.

Extemporaneidade: presentificações do vivido e condição para a


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escrita

Para encontrar o vivido, Nietzsche precisou sempre trabalhar com a


categoria do extemporâneo. E o que é o extemporâneo dentro da perspectiva
nietzschiana? Ele faz inserir sobre a realidade, sobre a veracidade dos fatos, um
corte, uma espécie de interrupção inexorável que transfere a formulação das
questões, e dentre elas o próprio pensamento de si, para uma temporalidade outra.
Trata-se de um recurso: para se pensar o agora, é preciso pensar também o “fora
daqui”, o “fora de si”... Não há uma substituição de tempos, não há uma regressão
histórica propriamente, mas sim a superposição das temporalidades de maneira tal
que o tempo se torne um contínuo.
A extemporaneidade de Nietzsche é uma refutação da história e da ideia de
que o homem se temporaliza através dos acontecimentos. A história, para o
filósofo, apreende o tempo, dá a ele o peso de uma valoração que engessa a
dinâmica na qual poderiam estar em jogo os fluxos do humano. Quando Nietzsche
se interessa pelos gregos, é evidente, não o faz por um interesse histórico –– faz
resgatar justamente o que nos gregos era signo de extemporaneidade: Dioniso e
seus rituais de eclosão do tempo.
48

Em uma passagem do aforismo 10 de “Incursões de um extemporâneo”,


capítulo de O crepúsculo dos ídolos, ele reafirma seu pacto com Dioniso e o
presentifica justamente na articulação entre tempo-afeto-transformação. Dioniso
inspira uma reversibilidade do tempo porque o funde com o que é próprio do afeto
e, com isso, dispõe-se a lidar com o mundo como se fosse ele próprio um
dispositivo de eterno devir. Na instância dionisíaca, tudo se torna extemporâneo, e
as valências impulsionam a elevação, a exaltação e, sobretudo, a transfiguração:

É impossível para o homem dionisíaco não entender uma sugestão qualquer, ele
não desconsidera nenhum sinal dos afetos, ele tem no grau mais elevado o
instinto intelectivo e divinatório, assim como possui no grau mais elevado a arte
da comunicação. Ele se insere em cada pele e em cada afeto: ele transforma-se
constantemente37.

A temporalidade trazida por Dioniso não é outra senão a do agora, do


presente, do instantâneo. Essa temporalidade só é possível porque a afecção em
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jogo é a da alegria e a da celebração da experiência do estar fora de si, logo, fora


do tempo. Nessa perspectiva, para que o vivido se presentifique, é preciso que se
faça eclodir a estagnação imposta pelo próprio tempo. A divisão cronológica
estabelece cânones para que o homem se conceba sempre formatado à lógica do
antes/depois, tornando-o escravo de si mesmo e servo de uma alteridade absoluta
que se torna implacável ao escrever as vidas sob a égide do imperativo categórico.
O tempo precisa se fazer transitório, inapreensível, superposto, para que os
lodos da cultura, os ranços dos pensamentos instituídos possam sofrer algum tipo
de descentramento, possam ser remexidos, tal como a poeira do fundo do mar se
movimenta quando da ação de um elemento externo. Esse “elemento externo” ou
extemporâneo é o próprio Nietzsche que, sentindo-se um peixe fora d’água, não se
identificando e tampouco se adequando aos ditames da cultura, é capaz de refutar,
um por um, os argumentos que velam por causas arregimentadas. Aqui, Nietzsche
é um incansável removedor de fundos e não se deixa parar. A transitoriedade do
tempo, sua desestabilização e sua superposição são elementos que permitem ao
filósofo um continuado exercício de resgate do inaudito ou de tudo aquilo que está
para ser dito.

37
GD 10, KSA 6, p.117-118.
49

Trata-se de um trabalho de destruição. Não é possível deixar pedra sobre


pedra, não é possível abandonar o posto de vigia crítico da humanidade. Pois, tal
qual erva daninha, a moral e suas mazelas crescem compulsivamente, uma vez
que o “homem bom” necessita delas para apaziguar-se. Destruir para poder
reverter, para transpassar o amálgama apolíneo que teima em fazer das formas as
estruturas irrefutáveis da verdade38 –– verdade essa, obstinadamente perseguida
pelos servos de Deus, pelos amantes dos ideais, pelos crentes, otimistas e
pacificadores de toda sorte. Nietzsche diz Não a tudo isso para, ao mesmo tempo,
conseguir dizer Sim à vida:

Eu conheço o prazer de destruir em um grau conforme a minha força para destruir


– em ambos obedeço à minha natureza dionisíaca, que não sabe separar o dizer
Sim do fazer Não. Eu sou o primeiro imoralista: e com isso sou o destruidor par
excellence.39

Sua forma de destruir a moral, via extemporaneidade, é inegavelmente


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parte constituinte de seu estilo. E o que é importante se fazer notar é que essa
postura –– a de ser um destruidor da moral –– é, sem dúvida, uma tarefa de
proporções hercúleas, o que exige um esforço e dispêndio de energia sobre-
humano. No entanto, em Nietzsche, lembremos sempre, “dispêndio de energia” é
potência, e as potências, em seu pensamento, se articulam, se somam, se irmanam
e geram mais potência. No caso de Nietzsche, é a força da experiência rebatida
sobre ela própria –– na solidão da dor e da alegria –– que o torna cada vez mais
forte ainda. Diante de todos os seus embates, não há lugar para o “infortúnio”.
Tudo é afirmado de maneira inconteste.
Reconhecendo em suas experiências –– sempre viscerais –– a força de
uma vida afirmativa capaz de aceitar tudo o que lhe acontece e acomete de forma

38
Esse universo imagético da aparência cria os contornos da subjetividade, mas, ao mesmo tempo,
aliena o homem de suas experiências mais primevas, o que, para Nietzsche, nesse momento,
falariam de uma ampliação do campo da experiência humana. Apolo, ao dar formas através da
fecundação de luz, estaria subjugando as forças da natureza ao universo dos homens. Eis, porém,
que aparece Dioniso em seu carro coberto de flores e grinaldas, entoando os sons da mais gutural
alegria, mimetizando e convencendo os homens a dar-lhe passagem e a segui-lo. Ao realizar esse
ato, Dioniso apresenta suas armas e destrona o trabalho apolíneo de contensão e conformidade,
arregaçando as costuras do belo e impondo o estado geral da embriaguez capaz de revelar a
compaixão dos homens por algo que se fazia até então inaudito: o desejo de aceder ao “uno –
primordial”, ao lugar de uma conciliação e gozo pleno cujas manifestações não são outras senão as
de alegria e júbilo. A ideia do encontro com o “uno - primordial” apresentada em O Nascimento da
tragédia é ainda fortemente influenciada pela metafísica de Schopenhauer.
39
EH por que sou um destino 2, KSA 6, p. 366.
50

a dizer Sim a tudo infinitamente, Nietzsche aprendeu, ele próprio, que a superação
está exatamente no encontro das forças, e não em sua negação. Tratar a doença
como força que quer aparecer e declamar foi para ele o caminho de sua cura.
Desejar que as coisas retornem mais uma vez e sempre, como elas são, como
devem ser, sem qualquer julgamento, foi para ele a chave de sua filosofia40.
Para o destruidor da moral, não há lugar para o arrependimento nem para o
ressentimento. Essas armadilhas pseudoafeccionais são obra de um trabalho de
catequese e ascese do qual Nietzsche se quer reconhecer como o primeiro e maior
denunciador.
Seu desejo de denunciar é incansável, ininterrupto. Contudo, também o
desejo de anunciar se faz igualmente presente: primeiro ele anuncia a Dioniso;
depois, Dioniso transmuta-se em Zaratustra; por último, é o próprio Nietzsche
quem assume o papel do anunciador na figura do imoralista.
Pois bem, é difícil não notar que essa postura que faz do pathos um locus
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de luta intermitente, que destitui a veracidade semântica do ethos, faz de


Nietzsche um escritor ácido, rascante, sarcástico, irônico e, sobretudo,
provocador. A determinação com que enfrenta seus opositores (quase todos os
interlocutores de que se valeu) e a persistência com que constrói seus argumentos
dão-lhe a particularidade de se constituir como pensador da afirmação.
Nietzsche julga-se um pioneiro, aquele que inaugurou uma fase, e, tal
como Jesus Cristo, terá, um dia, feito a divisão do mundo em antes e depois dele.
Aqui, Nietzsche não é só sarcástico: sua paródia é também a constatação de que o
seu vivido foi longe demais, tocou em lugares nunca dantes penetrados e que, por
conta dessa radical idiossincrasia, a experiência da vida se reorganizará em torno
de seu achado. Delírio megalômano? Surto de onipotência narcísica? Defesa
paranoica? Ora, essas categorias de nada valem aqui. Tampouco serviriam as
acusações de leviandade, obsessão demoníaca ou herética. A ousadia da afirmação
nietzschiana foi exatamente a de mostrar a inoperância desses atributos e
adjetivações oriundos de posturas instituídas, cuja finalidade sempre foi a negação
da vida. No plano da arte, a psicopatologia reduz-se a um penduricalho. A arte é,
por si própria, o dispositivo de retorção, de retoque e perversão dos elementos. A
arte é o princípio da hecatombe instaurado na perspectiva dos objetos. Se há arte,

40
Retomaremos a doutrina do eterno no Capítulo 4 desta tese.
51

não há tempo, não há objetos, tampouco sujeitos. A arte se assimila à vida e a


incorpora (ou vice-versa) porque ela própria afirma um recorte valorativo. A arte é
uma autorização do corpo a tornar-se outra coisa e, ainda assim, continuar
operando sentido de corporeidade. Pois bem, o que Nietzsche mostra, ao longo de
seu percurso, é que apenas a arte consegue sustentar a dimensão de propulsora de
novos códigos. A arte reescreve o real. Sua tarefa é mesclar as modalidades até
confundi-las e descaracterizá-las. Arte, nesse sentido, não poderá ser espetáculo;
antes de qualquer coisa, será ausência de termos, de motivo, de desejo. Portanto, a
arte é, sobretudo com Nietzsche, um recurso de estilo para tecer a própria vida.
A experiência de Nietzsche quer sustentar-se por si própria; logo, sua
escrita é artística na medida em que, da mesma forma, inventa a si própria. Como
não ver aí a excentricidade da aposta desse autor? Como não reconhecer a
franqueza com que ele se prestou a olhar para a vida e a originalidade que gerou
ao trançar filosofia e arte com as malhas afetivas? A vida de Nietzsche é a arte em
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estado de fluxo. Pode-se aceitar isso ou não. De qualquer forma, para refutá-la,
será preciso invalidar sua experiência e desdizer suas intenções. Nosso sentido
aqui é justamente o oposto.
Capítulo 2
O Andarilho de Nietzsche

Pensamento em movimento

Até este ponto, vimos que a trajetória do pensamento de Nietzsche


confunde-se com sua vida e que dificilmente será compreendida caso não se leve
em conta essa dimensão. Não se trata necessariamente de vincular biografia e
pensamento, mas sim de compreender que o pensamento do filósofo constituiu-se
através da fabricação de novas corporeidades, fazendo de seu corpo e sua dor um
polo de convergência e divergência entre os signos das mais diversas formas de
construção do pensamento na cultura.
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Por esse motivo, a filosofia de Nietzsche não pode ser concebida sem
considerar sua dimensão de sobrevivência fisiológica, assim como os elementos de
que se cercou para estabelecer seu processo de “superação de si mesmo”. Na
realidade, sua filosofia é fruto de uma luta muito singular na qual o pensamento se
estabelece como antídoto para um tipo muito particular de sofrimento. Insistamos:
as resultantes do pensamento de Nietzsche caminham na direção da formulação de
um plano de sobrevivência.
É preciso que isso seja dito de partida, pois não há gratuidade nem mesmo
desperdício naquilo que é escrito; tampouco ele polemiza, desafia, nega ou se põe
contra alguma coisa pela via partidária. A forma de melhor perceber o seu gesto é a
de equiparar sua escrita ao movimento respiratório: o ar vai e vem e, com isso, o
organismo estabelece suas condições de existência. Sem esse movimento
fundamental, não há o resto.
Para Nietzsche, pensar é, no sentido mais concreto que esse termo possa ter,
a condição para manter-se vivo; ou, se preferirmos, a vida é o que se passa entre a
experimentação e a elaboração para, em seguida, numa espécie de movimento
contínuo, reexperimentar e, se preciso for, reelaborar. A característica a se observar
no seu pensamento é justamente a de que ele é marcado por múltiplas instâncias que
podem abarcar desde as sensações mais sensíveis (como a capacidade de perceber
53

um determinado ar de uma determinada condição climática em uma determinada


faixa geográfica, e daí derivarem pensamentos capazes de engendrar sua filosofia)
até as mais variadas e complexas observações sobre temas cuja semântica interessa
ao campo do conhecimento (Arte, Religião, Política, Música, dentre outros).
Falando de si ou da cultura, em qualquer nível, é sobre as marcas daquilo que
aparece como elaboração do corpo e suas afecções que se constroem seus aforismos
e poesias.
Por onde caminha, o pensamento de Nietzsche estabelece trilhas e inventa,
por assim dizer, uma nova cartografia que dá a ele a característica de ser sempre
uma exploração. Tem-se a impressão de que cada aforismo é uma tentativa de
elaborar uma passagem onde se possa conquistar um pedaço de terra e, com ele,
avançar mais um pouco na trilha que só pode ser conhecida enquanto é concebida.
O pensamento de Nietzsche é, pois, itinerante e não se pode decidi-lo até que uma
constelação de aforismos configure um determinado desenho de onde se possa
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derivar uma ideia ou um conjunto delas, para depois, em um outro momento, a teia
ser desfeita e refeita.
Nesse movimento realizado pela sucessão de aforismos, está-se a tatear.
Talvez a imagem de um homem privado de sua visão –– tentando, pelos seus
próprios sentidos, conhecer as coisas e, através deles, seguir seu inequívoco instinto
de ir adiante –– possa dizer um pouco do trabalho que coube a Nietzsche no seu
filosofar. Não é à toa que a escolha da escrita aforismática lhe surgiu com mais
intensidade a partir do momento em que seu estado de saúde o impedia de enxergar
satisfatoriamente, pois, como é sabido, desde 1876, sofria de uma cegueira parcial
que o obrigava a fazer longos repousos e a recorrer a amigos que pudessem ler e,
mesmo, escrever para ele.
Dessa feita, os aforismos, por serem textos mais concisos e de instantânea
resolução, estavam em consonância com a sua capacidade de lidar com o problema.
Ademais, o caráter decisivo, às vezes axiomático ou enigmático dos aforismos,
traduzia bem o que havia de poético nas ideias que o assaltavam. É de imaginar que
o ato de dissertar o que deveria ser escrito por um outro não deixava de passar por
um processo marcado pela dramaticidade do próprio ato. Ou seja, esses aforismos
eram, possivelmente, declamados e traziam em si a coloração afetiva dos estados
54

intensos que marcavam suas descobertas, traduzidas por um continuado processo de


elaboração através do que era vivido e sentido.
Por isso, o pensar de Nietzsche é movimento, movimentação. A dinâmica
que faz operar sulcos e envelopamentos na instalação do pensamento nietzschiano é
o próprio pensamento em si. Daí a resposta à pergunta “onde leva o pensamento de
Nietzsche?” poder, inequivocadamente, ser a seguinte: “Leva sempre ao próprio
pensamento”. No entanto, dizer isso não significa supor que as ideias se
autorreferenciem ou se percam em um exercício de digressão ou formalização de
alguma categoria extrínseca. A peculiaridade desse movimento está em ele
encontrar sua força na ressonância de sua própria sonoridade ou, se quisermos ser
mais estritos, de sua consistência.
No seu Zaratustra, é que Nietzsche consegue ser decisivo a respeito do que
lhe toca: “O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode
amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso”41. Nessa afirmação, ele aponta
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para o que predomina no fazer de seu percurso: a dimensão da pulsão42, entendida


como força constante, ditando o ritmo de seu trajeto. Não há, necessariamente, um
alvo específico a se atingir, nem destino de chegada; diferentemente, o que se tem é
o que se apresenta então como exigência de pensamento. Antes o fluxo e o fluir do
do que a obsessão pela causa e sua consequência, ou pelo discernimento e estudo do
objeto e objetivo.
Se Zaratustra se apresenta como aquele que ama os que vivem na direção do
declínio e desprezam as grandes causas, é para dizer que o sentido da experiência
41
Za prólogo 4, KSA 4, p.16-17.
42
Aqui, o termo em alemão é trieb, que aporta a semântica do impulso, do movimento, da tendência
à ação e ao próprio instinto. Foi através de Freud, posteriormente, portanto, a Nietzsche, que se
tentou circunscrever a pulsão como conceito fundamental (Grundbegriff). Segundo Freud, a pulsão
(trieb) se definiria por ser um movimento cuja fonte se originaria no soma e cuja intensão seria a sua
imediata descarga psíquica, de forma tal que seu acontecimento seja compatível ao de um fluxo
imediato capaz de levar o movimento até a sua extinção. A pulsão seria, para Freud, um conceito-
limite situado entre o psíquico e o somático. Tomada como uma exigência de trabalho, caracterizar-
se-ia por ser dotada de pressão, força constante e antiobjetalidade . Isso significa dizer que a pulsão é
abstrata, que não comporta nível algum de representabilidade e que visa, essencialmente, à descarga
como alvo ou meta. Toda pulsão, no entanto, segundo mostra a psicanálise, tende a se ligar com
algum(s) objeto(s) ou cadeia deles. Trata-se, neste caso, da sexualização da pulsão cuja qualidade é a
de ligar-se em múltiplas cadeias de representação. O que não é da ordem da ligação permanece sem
representação e resta como pulsão em seu estado mais radical, isto é, mais abstrato. À pulsão em
estado bruto, isto é, sem conexão representacional, Freud denominou de “pulsão de morte”, que é
apenas um princípio segundo o qual toda a tendência da força constante não é outra senão a de
dissipar-se. A “pulsão de morte” pode ser entendida como a pulsão por excelência e a sexualidade
como a forma pela qual o homem se humaniza.
55

(que caberá ao além-do-homem) é o de acontecer na travessia de um lado ao outro,


de uma metade a outra, ou seja, o movimento de transpassar e deslocar de maneira
tal que seja essa a própria destinação.

Aquele que atingiu apenas parcialmente uma liberdade pela razão não
poderá sentir-se na Terra, senão como um andarilho43

Quando escreve Humano, demasiado humano – um livro para espíritos


livres, o filósofo passa por uma reformulação de questões apresentadas no seu livro
de estreia, O nascimento da tragédia. Se, no primeiro livro, ele entendia a arte como
elemento de superação e redenção para uma nova cultura emergente, concebendo-a
como as resultantes das imbricações entre as potências apolíneas e dionisíacas44, em
Humano..., sua intenção é livrar-se da metafísica schopenhaueriana e, por
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conseguinte, do idealismo encarnado pela música de Wagner. Assim, ele visa a


encontrar, numa certa concepção de ciência, uma espécie de isenção ótima em que
poderia, de fato, surgir algo que estivesse numa perspectiva de acesso à verdade.
Esta última, no entanto, estaria ligada a um processo de investigação científica, na
qual a experiência legitimaria os achados e daria credibilidade a eles.

43
Como parte de nossa pesquisa, foi realizado, durante nossa permanência nos Estados Unidos
(Universidade Rutgers-NJ), um curta-metragem com o título The Wanderer. Texto de F. Nietzsche
(aforismo 638 de Humano, demasiado humano). Para assistir ao filme:
http://www.youtube.com/watch?v=yuUPDWMHUDk&feature=related
44
O Nascimento da Tragédia é um grande esforço que tenta dar resposta à seguinte questão: é
possível desprender-se uma estética da arte? À ocasião, influenciado pelo projeto de Wagner, pela
filosofia de Kant e o livro de Schopenhauer O mundo como vontade e representação, a resposta
tendia a ser “sim”. A pergunta não era necessariamente “o que é a arte”, mas sim como seria possível
caminhar para a concepção de uma arte que estivesse nos fundamentos da experiência humana,
naquilo que poderia se dizer ser da ordem de um inexorável fundamental, algo que emanasse de um
lugar irredutível e mesmo inabalável. Evidentemente, conforme já dito, Nietzsche, nesse momento,
estava construindo suas ideias a partir de suas leituras entusiasmadas do texto de Schopenhauer onde
se encontra, com todas as letras, propostas sobre a metafísica do artista e da música. Em Humano...,
ele reverte essa posição, mas segue no afã de pensar as relações entre arte e estética. Somente a partir
de Zaratustra, é que Nietzsche consegue dar à arte um estatuto de elevação sem que esta se configue
como dialética. Conforme veremos, ao longo desta tese, a arte em Nietzsche se aproximará da ideia
de um dispositivo diferenciador do todo, capaz de transformar toda e qualquer experiência. A arte
será tomada em sua dimensão fisiológica e estará pensada como o estágio mais depurado da vontade
de potência. Ver, em especial, o Capítulo 4 e as conclusões aforismáticas.
56

Embora o flerte com a ciência e o deslocamento da importância da arte


tenham um lugar efêmero no pensamento de Nietzsche, esse livro é carregado de
elaborações importantes que, efetivamente, pareciam apontar para uma espécie de
reconhecimento do discurso lógico e racional pela via da emancipação do “homem
científico” que seria uma espécie de continuação aprimorada do que, antes,
respaldado pela “metafísica do artista”, podia-se chamar de “homem artístico”.
Aqui, o que era dado pela experiência da arte como prova de que “a vida é boa” e
de que o envolvimento e regozijo com a natureza seriam sinais de plenitude para o
homem, agora é conjugado com a ideia de que a aquisição do conhecimento deveria
se impor como elemento fundamental a ser alcançado rumo a uma ascensão da
experiência.
Na tipologia nietzschiana, temos, desde o aforismo 638 de Humano
demasiado humano, a introdução da figura do andarilho [Das Wanderer]. Esse
aforismo é o último do livro e funciona como uma espécie de marca a respeito do
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próprio percurso do filósofo naquele momento.


Quem é o andarilho? Pois bem, é aquele que tomou como causa o seu
próprio exercício de andar. O andarilho está interessado em se deslocar, em se
movimentar continuamente, sem necessariamente ter um objetivo em mente. Trata-
se de uma disposição para o ato exploratório de passar pelos lugares sem neles
pretender fixar-se.
O que faz mover o andarilho? A vontade de ir além, de conhecer, a partir da
experiência do seu próprio deslocamento. Não se trata, por exemplo, de confundi-lo
com o viajante, pois este, de antemão, tem um destino concreto a atingir. O viajante
sabe aonde quer chegar e planeja seu itinerário e as condições ideais de sua estada.
Diferentemente, o andarilho de Nietzsche dispensa os planos, as estratégias e as
metas, de maneira que seu compromisso seja exclusivamente com a evolução (ou
involução) de seus passos.
Diferenciando-se de toda crença nas formas preconcebidas ou
preestabelecidas de conhecer, o andarilho é aquele que decidiu que o conhecimento
só é possível a partir da experiência que conjuga um constante reordenamento das
dimensões de tempo e espaço. Não se tornar fixo nem linear e não se apegar a
57

nenhum tipo de crença são posturas que permitem a alguém desfazer-se de suas
coordenadas preestabelecidas.
Para esse caminhante, a condição de partida é ser acossado por um tipo de
inquietação que não cessa de apresentar-se como insistência. Trata-se de uma
condição de total inquietude, de inconformidade e de ímpeto para o além de si
próprio.
Nietzsche soube bem, desde cedo, sobretudo depois de seu rompimento com
Wagner e o wagnerismo, situar o lugar de onde ele pensa e existe: em uma palavra,
sua postura não é outra senão a de um filósofo da suspeita. No prólogo de
Humano..., escrito posteriormente à sua primeira edição, em 1886, portanto, em um
período final da obra, ele situa desta maneira sua posição de suspeita:

De fato, eu mesmo não acredito que alguém, alguma vez, tenha olhado para o
mundo com mais profunda suspeita, e não apenas como eventual advogado do
Diabo, mas também falando teologicamente, como inimigo e acusador de Deus; e
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quem advinha ao menos em parte as consequências de toda profunda suspeita, os


calafrios e angústias do isolamento, a que toda incondicional diferença do olhar
condena quem dela sofre, compreenderá também com que freqüência, para me
recuperar de mim, como para esquecer-me temporariamente, procurei abrigo em
algum lugar – Em alguma adoração, alguma inimizade, leviandade, cientificidade
ou estupidez; e também porque, onde não encontrei o que precisava, tive que obtê-
lo à força de artifício, de falsificá-lo e criá-lo poeticamente para mim (- que outra
coisa fizeram sempre os poetas? Para que serve toda a arte que há no mundo?). 45

A passagem supracitada é de extrema lucidez para com a lógica de seu


percurso. O princípio que anima sua investigação é notadamente marcado por uma
inquietante e incessante suspeita. Mas de que natureza? Uma suspeita que se
instaura a partir de uma recusa a supor que possa haver qualquer sistema de
pensamento que seja isento de uma apropriação humana, demasiado humana, ou
seja, de que, em nome de um Deus, de uma causa imperativa, não esteja sempre no
cerne de sua motivação uma lógica de interesse humano mesmo que travestida de
toda pretensão transcendente ou científica que, como se torna claro até o fim de sua
obra, em última instância, trata-se sempre de articulações motivadas pela vontade
de potência.
Desafiar Deus, situá-lo como humano em sua essência, é ferir a humanidade
que se quer ligada pelo transcendental. É comprar inimigos e tornar-se hostil às
45
MA I prólogo 1, KSA 2, p.13-14.
58

massas, tarefa hercúlea, ingrata, para não dizer, impossível. O quinhão que coube a
Nietzsche, a causa que abraçou não é outra senão aquela que busca deixar vacante o
lugar da verdade, seja lá que formas de encarnação ela pretenda assumir: Deus,
Diabo, Ciência e as formações simbólicas de uma forma geral em seus mais
diferentes níveis e estratificações.
Ao dito jocoso popular “Quem não morre não vê Deus”, Nietzsche parece
propor “Quem não mata Deus não vê o que acontece por aqui”. No entanto, dizer
isso é declarar guerra contra quase tudo e quase todos, pois precisar-se-ia ser muito
ingênuo para acreditar que o Deus de que fala Nietzsche seja a figura de um senhor
bonzinho que zela pela humanidade na distância e abstração dos céus. Não. O Deus
de que fala Nietzsche é o lugar que cabe sempre à verdade e suas formas de instituir
as valorações simbólicas que regem as regras, ritos e crenças das formações
humanas. Por isso, a luta travada por Nietzsche é, em última instância, um desafio à
sustentação de qualquer lugar, instância que se proponha a ocupar o lugar da
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verdade, ou seja, o lugar de onde partem as constelações que instauram os sistemas


que legislam as relações entre os homens.
Não se pode desafiar Deus (ou o lugar da verdade) impunemente. Não se sai
ileso dessa batalha. A história da humanidade mostra bem o suplício dos hereges ou
daqueles que ousaram destituir os valores e pontos de sustentação de qualquer
credo. A perseguição, a exclusão e a violência (quase sempre levando ao
extermínio) tornaram-se lugar comum. A guerra santa e não santa, as posturas de
ódio e rechaço perfazem a maioria dos desenlaces que experimentaram as
civilizações. Portanto, é de supor que não seja possível não ser violentamente
atacado e perseguido quando se tem por princípio a suspeita no nível em que a teve
Nietzsche: a suspeita como método de investigação, como postura estética e,
portanto, como modo de vida.
A partir do momento em que se descobre um investigador dos princípios
morais, um desarticulador das fraudulentas premissas em nome da consolidação
valorativa, Nietzsche se descobre também alvo de ataque dos mais diferentes e
variados interesses –– ataques internos (toda a sorte de inconformidades vindas do
corpo e parte da carga de suas graves patologias derivam daí) e ataques externos,
manifestados impiedosamente por todos aqueles que direta ou fortuitamente se
59

viram atingidos em suas mais arraigadas crenças e posições pelo avançar das
movimentações do pensamento nietzschiano.
E o ímpeto que move o seu pensamento é o da suspeita, se este é seu
princípio e, se a partir daí, tudo deve ser levado às últimas consequências, então é
de prever que o chão possa ruir, que a casa possa balançar e que o entorno possa se
esfarelar em um piscar de olhos. Alguém que ataca será atacado inevitavelmente.
Por isso, a postura da suspeita também vale para uma certa atenção ao que o próprio
Nietzsche chamava de autoconservação. Ele percebeu, desde cedo, que tudo em si e
acerca de si era de tonalidades frágeis (mas não fracas!) e, portanto, passíveis de se
desfazer. Um franco atirador, um insistente e inquieto guerreador não pode
descuidar de si e deve estar sempre em posição de vigilância. Ataque e defesa se
constituíram em um dos pares de oposição mais elementares na forma com que
Nietzsche constituiu seu pathos de existência.
Como ficar sem se importunar? Sem ser importunado? Como suportar a
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permanência em lugares que se configuram insalubres, insustentáveis, ou, como ele


gostava de nominar, “decadentes”? A consequência imediata da postura por ele
assumida é a de ter que se viabilizar enquanto andarilho.
O Nietzsche andarilho assim não se constituiu por desejo ou “estilo de
vida”, senão, exclusivamente, pela necessidade de sobrevivência.
Andar para não parar. Se o lugar é de vacância, se Deus está morto de fato,
se os homens e sua cultura são decadentes, então qual é o lugar para esse filósofo?
O lugar torna-se sempre aquele onde não se está: vacância como condição. Daí sua
afirmação, em tom de confissão, de que as consequências são da ordem de
“calafrios e angústia do isolamento, a que toda incondicional diferença do olhar
condena quem dela sofre (...)”. O horror na forma de sofrimento físico, fisiológico e
a constatação de que as consequências desse tipo de pensar “pesado” levam à
constante obrigação de encontrar abrigos tornam Nietzsche um homem nômade. No
início do aforismo 638, ele sentencia: “Aquele que em alguma medida alcançou
uma liberdade de razão não pode se sentir senão um andarilho sobre a Terra(...).”46
Ou seja, aquele que aprendeu a suspeitar através de um certo exercício de
liberdade do pensamento não tem outra escolha senão tornar-se um nômade, na

46
MA I 638, KSA 2, p.362-363.
60

medida em que o próprio ofício de pensar exige esse constante


ocupamento/desocupamento dos lugares. Seguir e não necessariamente continuar;
insistir tal qual a pulsão exige, e obter como resultante a condição de errante. A
dimensão do olhar lhe é vital ainda que sua visão lhe falhe de forma continuada.
Um olhar vigilante que não permite ao seu coração fixar-se em algum tipo de causa
ou organização, por supor que nada merece ser levado a rigor suficientemente para
operar como objeto de estancamento do movimento.
Aqui, a alegria vem da constante e inefável mudança. A alegria vem pela
própria passagem. Se o radical Trans tem em Nietzsche um lugar, é sempre pela via
da transformação, da transposição, da transfiguração, da transportação, da
transvaloração em detrimento da transcendência. Todo o movimento de Nietzsche é
transformador de si e permanece na esfera do devir. Portanto, transfere-se de si para
si, ou melhor, transmuta-se invariavelmente em devir. Não há outra coisa senão
deslocamento do mesmo. No entanto, esse deslocamento transforma o mesmo,
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diferencia-o. De toda maneira, o movimento é sempre imanente, não busca


complementaridade ou filiação em alguma alteridade.
Por não ter endereço fixo, o andarilho é um inventor de novas moradas:

Sem dúvida esse homem conhecerá noites ruins, em que estará cansado e
encontrará fechado o portão da cidade que lhe deveria oferecer repouso; além disso,
talvez o deserto, como no Oriente, chegue até o portão, animais de rapina uivem ao
longe e também perto, um vento forte se levante, bandidos lhe roubem os animais
de carga.47

Essas imagens, no aforismo 638, um dos mais belos e poéticos aforismos de


Nietzsche, retornarão em Zaratustra de forma mais contundente e pormenorizada.
Nietzsche se reporta às mais variadas formas de representação do infortúnio que
atravessa o andarilho. Noites maldormidas, portões fechados, cidade hostil, aridez
do deserto, animais de rapina, vento forte... Imagens que traduzem a hostilidade de
que fala ele quando situa o preço pago por seu corpo nessa tarefa a que ele parece
jamais ter interesse em renunciar.
O mais curioso é que Nietzsche tinha clareza de que a posição de suspeita
não só lhe criava resistências e ataques vindos de diferentes lugares, como também

47
Ibid.
61

era imprescindível que ela se atualizasse em distintas figurações, em múltiplos


signos e imagens –– a ponto de ele próprio afirmar que muitas dessas formas
ameaçadoras foram criadas ou engendradas por pura necessidade. O inimigo
deveria estar sempre presente e ser concebido como uma ameaça iminente para que
a máquina da suspeita pudesse seguir seu intuito. O processo de criação do inimigo
se dava através de adorações que se convertiam em verdadeiros desafetos, amizades
revertidas, dizeres perdidos no impossível portado pela linguagem, desmistificações
seguidas de novas mistificações e consequentes desmistificações. Sempre as
polaridades, sempre as ambivalências e as querelas que importavam a
transfiguração dos elementos em questão. É preciso idealizar, artificializar,
falsificar para manter-se vivo, para manter-se em marcha.
Nessa perspectiva, Wagner e Schopenhauer lhe foram ficções ou
falsificações necessárias. Caminhar junto a eles, dar as mãos, enclausurar-se em
causas e projetos, fazer o coração acreditar que algo ali havia de inequívoco –– a
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saber, um objeto de amor incondicional e a consequente sensação de pertencimento


a uma causa, a um princípio ––, tudo isso era condição necessária para que o
pensamento se estabelecesse e depois se restabelecesse modificado.
Não fosse ele um andarilho, estaria tomado pelo desejo de Wagner e
seduzido incondicionalmente pela ambição totalitária do compositor de O anel dos
nibelungos. Wagner precisou ser, primeiro, concebido e convertido em um gênio,
para depois reverter-se em um “enganador de massas”. Esse processo de reversão
da idealização alcançou níveis diversos em sua trajetória e constituiu-se uma
espécie de modus operandi de sua filosofia. Criar para denunciar, falsear para
revelar, amar para odiar... É porque em Nietzsche operou a lógica da suspeita, uma
espécie de dispositivo analítico não serenável, que ele pôde retroagir e desfazer-se
dos equívocos que ele próprio engendrava.
O andarilho é contemporâneo do que ele criou sob a designação de
“espíritos livres”. Quem são esses? Segundo a justificativa que ele mesmo oferece
no prefácio à Humano..., os ditos “espíritos livres” não são outra coisa senão os
elementos destinados a lhe fazer companhia. São os “espíritos livres” que como
“valentes confrades fantasmas, com os quais proseamos e rimos, quando disso
temos vontade, e que mandamos para o inferno, quando se tornam entediantes ––
62

uma compensação para os amigos que faltam”48. Ou seja, a solidão de quem tem a
suspeita como princípio é, ao mesmo tempo, a condição e a consequência para que
o pensamento estabeleça seu alcance. Na ausência de pares, na constatação da fuga
dos interlocutores que não podem seguir os passos do andarilho, Nietzsche se vê
levado a criar seus novos “confrades”49, que serão figuras muitas vezes tomadas de
empréstimo da natureza, da mitologia e de sua própria capacidade figurativa. Esse
processo em que o andarilho cria cenários e engendra personagens advém, em parte,
de um flerte com franjas de ordem delirante e, sem dúvida, justifica-se pelo pleno
vigor de suas faculdades literárias. A impossibilidade de se fazer uma aliança com
possíveis interlocutores o obriga a fabricar sua própria realidade.
A solidão de Nietzsche não é, portanto, patológica, mas, diferentemente,
uma condição. Ela lhe é bem-vinda. Reduzi-la a uma dimensão de doença reativa é
não entender a lógica que faz operar o movimento de seu pensamento. A solidão de
Nietzsche se dá porque, por onde ele caminha, onde ele habita, não há elementos
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que se tornem compatíveis com o andamento exigido pela marcha e que possam
suportar (salvo raras exceções) as valências insaturadas e não balanceadas de sua
aposta. É por isso que Nietzsche se sabia, desde sempre, um autor para todos (no
futuro) e para ninguém (no presente). É por isso que ele se reconheceu como um
autor póstumo, um extemporâneo, cujas pegadas só poderiam encontrar
companheiros no porvir.
Além de andarilho e espírito livre, Nietzsche se configurou como eremita.
Por isso mesmo, suas referências são, em grande parte, oriundas da compreensão e
estabelecimento de uma convivência com os elementos com os quais é possível a
interlocução nessas condições: o sol, o vento, as alturas, os lugares, o clima, a
paisagem... É a partir dos signos naturais, da cadência cosmológica dos elementos
que esse eremita é capaz de estabelecer suas referências. A redenção para esse
espírito livre, para esse andarilho inconteste há de vir de uma espécie de comunhão
com esses elementos que não podem ser tão facilmente falsificados. Mas, como a
marcha é errante, como os animais predadores não arrefecem, o andarilho é
impactado pela incidência de mais decepção, mais hostilidade e, por conseguinte,

48
MA I prólogo 2, KSA 2, p.15.
49
Zaratustra encontrará seus confrades nos animais que o seguem nas alturas. Eles serão seus únicos
companheiros.
63

mais dor e sujeira quando percebe que não necessariamente será a nova aurora que
lhe trará algum tipo de redenção, pois o advento do sol, que supostamente ilumina e
aquece os laços, não traz necessariamente a garantia de que o andarilho encontrará
finalmente um lugar de repouso e acolhimento.
A hostilidade o faz sofrer, mas não perecer; ao contrário, dentro dessa lógica
de um pensamento de suspeita, a incidência de elementos e posturas hostis funciona
como centelha para a obstinada travessia.
É que esse sol traz nele a própria “divindade da ira”, ou seja, o astro reflete e
reforça o peso da excomunhão que é imposta ao andarilho-eremita pelos habitantes
da cidade estranha. Tudo isso muito nefasto, a ponto de “o dia ser quase pior que a
noite”.
Contudo, Nietzsche quer crer que a insistência traz em si o antídoto para
toda sensação de privação e frustração. Somente a insistência é capaz de fazer com
que as imagens se transfigurem e a insistência sob a postura da suspeita, capaz de
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indeferir o próprio movimento devastador que as hostilidades –– mútuas, diga-se de


passagem –– pareceriam impor como consequência inconteste. Aqui vale a
distinção que Nietzsche faz entre os fracos e os fortes. Nesse sentido, a força é o
insistir na direção da própria suspeita e a fraqueza, o aderir ao movimento de
consolidação de valores.
Suportar, resistir, persistir. O andarilho não tem outra escolha, pois ama a
vida em sua incondicional existência. O que poderia ser lido como manifestação de
inconformidade ou mesmo inapropriação comportamental é justamente o que
Nietzsche entende como força. Não se trata de entender o sofrimento como
provação ou privação, mas de admiti-lo como aliado na difícil tarefa de permanecer
sem perecer.
Isso porque haverá o tempo da virada, o tempo da afirmação da luta pela
própria resistência ao tempo e aos elementos normativos da cultura. Portanto, o
andarilho experimentará:

(...) como recompensa, as venturosas manhãs de outras paragens e outros dias,


quando já no alvorecer [o andarilho] verá, na neblina dos montes, os bandos de
musas passarem dançando ao seu lado, quando mais tarde, no equilíbrio de sua
alma matutina, em quieto passeio entre as árvores, das copas e das folhagens lhe
cairão somente coisas boas e claras, presentes daqueles espíritos livres que estão em
64

casa na montanha, na floresta, na solidão, e que, como ele, em sua maneira ora
feliz, ora meditativa, são andarilhos e filósofos.50

Vê-se que as manhãs de júbilo estão postas em “outras paragens”, pois é


bem esta a ideia de Nietzsche: a possibilidade do momento de recompensa repousa
sempre à distância, quase que como uma miragem e, como tal, estando sujeita ao
esvanecimento. Aqui a recorrência às figuras românticas das musas que emergem
da neblina e dançam para o andarilho aponta para a dimensão quase que utópica
deste momento em que coisas boas cairão por sobre o caminho do andarilho como
fruto do encontro entre ele e os espíritos livres. Miragem? Não importa. O fato é
que a cena é poética e as imagens indicam que, para Nietzsche, “ser filósofo” e “ser
andarilho” são, neste momento, uma condição para o outro. Ou seja, não há
filosofar sem a condição de tornar-se andarilho.
A chamada “Filosofia da Manhã” é aquela que acontece no período entre as
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badaladas do décimo e décimo segundo toques do sino, isto é, quando o dia


caminha rumo ao meio-dia, horário mítico na filosofia de Nietzsche que será
identificado ao ponto de transvaloração. Ponto de suspensão atingido por uma
espécie de clímax da suspeita. Suspeita que leva a crer que é somente em um
determinado instante que será possível experimentar a transfiguração dos elementos
de maneira a restituir ao dia sua condição de luminosidade e brilho.

A Grande Liberação

A suspeita que motiva a movimentação do andarilho é a mesma que irá


suscitar uma possibilidade de “grande liberação” quando ele atingir finalmente o
ponto em que será capaz de despir-se de suas vestes valorativas. Essa expressão foi
cunhada por Nietzsche em 1886, portanto, como já foi dito, é oriunda da fase final
de seu pensamento. Mesmo que Nietzsche já não seja mais um idealista e que, justo
ao contrário, tenha se tornado um crítico implacável das posturas ilusórias e
românticas, ele ainda é capaz de formular um lugar de chegada, uma espécie de
éden às avessas, onde o andarilho seria capaz de habitar na forma de um triunfo.
50
MA I 638, KSA 2, p. 363.
65

Afinal, de que fala essa “grande liberação”? Fala justamente da


possibilidade daqueles que se viram constituídos pelos mais altos valores e práticas
–– tais como as obrigações e deveres, as reverências ao sagrado, a reserva e gratidão
ao que é venerado, aos santuários de adoração –– se virem libertos da obediência
compulsória a qual foram submetidos em seus percursos de educação e, por fim,
desatados de suas “colunas e cantos”. Isso lhes permitiria caminhar, pela primeira
vez, livres de todo o peso que tiveram que suportar sem saber ao certo o porquê e
também sem poder dimensionar suas consequências até então.
A persistência do andarilho e a sustentação de sua postura de suspeita
triunfarão no momento em que tudo parecia perdido ou, ao menos, suas forças
estariam exauridas, e trarão, de súbito, a sensação de loucura –– pois a dissolvência
de todas as amarras, dos laços que estabeleciam as obrigações em questão e a
quebra de todos os paradigmas e suas valorações arremessam o andarilho para um
lugar que sugere uma não existência ou, ao menos, um lugar de onde não se obtém
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nada, senão o silêncio e a sensação de desconectividade com todo o passado.


Atordoado, perplexo e ao mesmo tempo balançado por suas novas afecções,
o andarilho, que atingiu a “grande liberação”, agora é capaz de ser tomado por
ímpetos e impulsos que o agitam e o tornam interessado por tudo o que se apresenta
como novidade e, sob a forma de curiosidade, ele se mantém ávido por aproveitar
cada segundo dessa espécie de nova existência que lhe toma de assalto.
Ele agora está sob uma certa ordem de suspensão em que nada lhe confirma
o que ele é, em que nada lhe garante a certeza de seu porvir já que aqueles valores
que o representavam no mundo não mais lá estão para assegurar sua identidade ou
suas vinculações idealistas. Livre, finalmente, ao menos por alguns instantes, mas
talvez por toda a eternidade, é hora de regozijar-se com os movimentos de seu
próprio corpo, com o encontro de seus pés na terra e com a pletora de sabores que
lhe trazem os novos ventos que sopram de forma indeterminada.
Tudo mudou. Colapso? Sim, mas como poderia ser diferente já que a
disposição de tudo suspeitar, de tudo transpor ou transfigurar estava destinada a
justamente lhe impor uma nova configuração do real? É de supor, naturalmente, que
esse estado de “grande liberação” traga em si toda a inquietação de uma vida que
passa a se encontrar já em outro lugar, porém ainda aqui na Terra. Essa torção, essa
66

variação a 180 graus (e assim por diante...) é o que faz com que nada, doravante,
seja passível de ser previsto ou representado de imediato. É o fim do pré-conceito
como limite para a estruturação de qualquer princípio ou lei.
Essa circunstância, dirá Nietzsche, levará o andarilho inexoravelmente à
sensação de que algo se lhe desprendeu de forma maciça, que sua existência está
por um fio e que as sensações podem variar, de um tempo para outro, da mais
intensa alegria ao mais invasivo horror.
Tal virada ou transvaloração de que fala Nietzsche não é nada que se possa
obter com o fastidioso exercício pedagógico das faculdades mentais ou a partir de
qualquer processo de condicionamento intelectual proveniente de um esforço
concentrado. Ao contrário, a condição é a de desprendimento, de visada de algo que
só se pode atingir flertando-se com o risco. Todavia, o atingimento desse “cume
final” só pode mesmo aludir a um feito onde a única certeza que resta (uma vez que
tudo ficou para trás) é a de que não se pode regressar quando se experimentou a
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nova configuração.
A sensação de morte é presentificada no medo da finitude iminente. Mas
que medo, se foi exatamente isso que o andarilho previu para si, ou seja, uma
desarticulação de sua vida e de seu entorno tal como tudo era? A sensação de morte,
evidentemente, não é outra coisa senão a vontade de nunca mais vincular-se ao
humano mundo dos valores universais. Dirá o andarilho que é “Melhor morrer do
que viver aqui”. Vê-se que está ele absolutamente inebriado e, como frisa
Nietzsche, “seduzido” por uma voz imperiosa que lhe sussurra ao pé do ouvido,
chamando-o para todo tipo de usufruto doravante desbloqueado:

Um súbito horror e suspeita daquilo que amava, um clarão de desprezo pelo que
chamava “dever”, um rebelde, arbitrário, vulcânico anseio de viagem, de exílio,
afastamento, esfriamento, enregelamento, sobriedade, um ódio ao amor, talvez um
gesto e olhar profanador para trás, para onde até então amava e adorava, talvez um
rubor de vergonha pelo que acabava de fazer, e ao mesmo tempo uma alegria por
fazê-lo, um ébrio, íntimo, alegre tremor, no qual se revela uma vitória – uma
vitória? Sobre o quê? Sobre quem? Enigmática, plena de questões, questionável,
mas a primeira vitória: - tais coisas, ruins e penosas pertencem à história da grande
liberação51.

51
MA I prólogo 3, KSA 2, p.16.
67

Trata-se de uma reviravolta, de uma transposição de elementos, de uma


transferência de valências. Uma vitória? Sim, sem dúvida. Sobre o quê? Sobre o
peso de todas as forças que lhe impunham um consentimento automático e
compulsório acerca de como deveria ser a vida e seus valores. Uma vitória de um
movimento que se quis incerto em relação ao seu objetivo, no entanto certo em
relação ao seu sentido: a desistência de tudo que seja a negação da vida, de tudo o
que transforme a ação em fardo. Uma vitória do movimento sobre a estagnação e,
sobretudo, do corpo sobre si próprio. O grande liberto é o corpo que, doravante,
sentirá o peso das coisas (leves ou pesadas), e não o peso como um fardo. O corpo
finalmente se livrará de sua postura defensiva e, impulsionado pela ausência de
amparos, lançará seus ímpetos nos quatro cantos da Terra. A resistência que fazia o
corpo permanecer atado a corpos que o submetiam a seus princípios é finalmente
diluída e transformada em força expansiva.
Contudo, insistirá Nietzsche, uma vez “liberto”, o andarilho haverá perdido
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para sempre qualquer ilusão de que a vida pode ser dominada mesmo em termos de
estratagemas. Se há hipóteses, elas devem ser medidas exclusivamente como
exercício da dúvida. Tanto que ele afirma: “Quanta doença não se exprime nos
selvagens experimentos e excentricidades com que o liberado, o desprendido,
procura demonstrar seu domínio pelas coisas!”52. Isso porque esse espírito livre terá
perdido a exata medida do que é permitido ou interditado. Sua selvageria o
convidará a se exercitar em investidas nem sempre salutares ou mesmo coerentes
com a suposta alegria –– porque o regime em que se entrou é o das combinações
das afecções: o tempero das instâncias que permitiriam o “bom-senso” ou a
“sensatez” está perdido. Isso quer dizer que a quebra do decoro diante da cultura
pode levar o andarilho a se estatelar em seu próprio voo, sua alegria pode se
superinvestir de si própria e alcançar contornos de euforia ou qualquer coisa que
sugira desproporcionalidade ou mesmo excesso. Inegavelmente, entrou-se numa
seara em que a velocidade frenética da variação dos signos permite designá-la sob a
rubrica da loucura.
Lembremo-nos de que ao andarilho importa o fluxo, e não o objeto. É
comparável, porque não dizer, a um voo cego, uma espécie de imprevisível

52
Ibid, p.17.
68

disponibilidade para fazer-se ecoar no infinito. Nesse sentido, o andarilho tenta se


alinhar à pulsão em sua mais extrema forma –– a de puro fluxo, de força contínua,
trabalho de si sobre si própria. Devir pulsão: eufemismo necessário para se aludir a
um estado de existência cujo modelo de funcionamento é o da vontade de expansão.
Estar sob a égide da “grande liberação” é estar pendurado por um ponto na
dimensão abismal. Nada se decide, tudo é possível de reversão e de destituição. O
proibido de antes torna-se agora um convite ao experimento; o nefasto de outrora
reverte sua valência e se veste de benevolência. Nada permanece onde estava
porque as preocupações com as coisas dão lugar a uma espécie de fascinação por
seus mistérios. Nesse sentido, tudo pode se tornar misterioso uma vez que se logrou
êxito em quebrar as valências e os códigos legisladores. Há sarcasmo, há
possivelmente crueldade e tons de perversidade, pois aquilo que seria contido pelos
freios da lei valorativa é agora apenas mais um elemento na rede de afecções.
Entretanto, se há um sarcasmo ou um devir perverso, eles serão efeito de
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júbilo. Como não há objetalidade em jogo, o que se sente não é endereçado a


ninguém: somente à dimensão explosiva dos afetos. O andarilho, ao emular a
própria pulsão, dispensou a disputa pessoal pelo espaço da convivência e se
pulverizou no éter como uma luz, um feixe incandescente cuja passagem não
implica desafiar ninguém, mas, sim, afirmar o próprio movimento. A política aqui é
a de existir a despeito do esfacelamento e, também, em razão do alcance da própria
sideração.
Aprende-se, assim, a ter a vida como um jogo –– um jogo de movimentação
em que os objetos ganham suas nominações e significações a partir do desdobrar da
partida. As perguntas proliferam e se formulam sem inibição alguma. Perguntar não
mais é interditado e responder tampouco é algo que se pode ter como certo. A
angústia assola o andarilho, e as suas possibilidades de reluzi-la são pequenas uma
vez que isso é parte do próprio jogo de transvaloração:

Não é possível revirar todos os valores? E o Bem, não seria Mal? E Deus apenas
uma invenção e finura do Demônio? Seria tudo falso, afinal? E se todos somos
enganados, por isso mesmo não somos também enganadores? Não temos de ser
também enganadores? – tais pensamentos o conduzem e seduzem (o andarilho),
sempre mais além, sempre mais à parte. A solidão o cerca e o abraça, sempre mais
69

ameaçadora, asfixiante, opressiva, terrível deusa e mater saeva cupidinum


[selvagem mãe das paixões] – mas quem sabe hoje o que é solidão?53

A grande questão trazida por Nietzsche é exatamente esta: será possível


verter e reverter os valores de forma tal que os opostos percam suas valências e se
indiferenciem quanto às qualidades que representam? Ou, dito de outra forma, é
possível bascular entre um ponto e seu oposto de maneira tal que esse exercício
traga em si a prova de que toda e qualquer valoração será sempre fruto de uma
ordenação hierárquica formada diante de acordos e contingências, e não
previamente fixada em parâmetros dogmáticos religiosos ou mesmo científicos?
Dessa forma, a postura da suspeita leva à postulação de que nada se originou
filiado a uma determinada raiz, mas, sim, que as coisas se consolidam pelo jogo de
forças onde pesam os idiossincráticos interesses dessas hierarquias. Isso quer dizer
que a postulação de um Deus monoteísta bom, onipotente e criador da natureza e
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interessado na salvação dos homens é uma farsa na qual os homens foram levados a
depositar todos os seus esforços (sobretudo, desde a tradição judeu-cristã) para
manter e sustentar o que há de lendário nessa história. A força da verdade portada
pelo dogma é compatível com o esforço para mantê-lo resistente às quebras de sua
sustentação. O proibido é tão-somente uma força que se ergue em torno dos
interesses conservadores de uma determinada configuração do poder. Da mesma
forma, o sagrado é uma farsa que se constrói e se mantém para que as interdições
operem com eficácia de maneira a conter os movimentos dissidentes ou revoltosos.
Se é possível dizer isso com Nietzsche, então é possível também concluir que a
farsa é algo da ordem do humano e que, sem ela, teria sido impossível, até aqui,
erguer e manter as civilizações. Toda cultura é fruto de um pacto farsante e toda
história, segundo o filósofo, uma sucessão de erros contabilizados segundo os
interesses das forças imperativas.
Daí Nietzsche supor que não se podem dividir as coisas de forma bipolar
estanque e manter a crença no que pudesse haver de “genético” ou “biológico”
quando se trata de decidir sobre o “bem” e o “mal”. Se esse é o recurso da religião
(como também da Política, da História e da Ciência), ou seja, dividir para reinar,
benzendo o que é interno e maldizendo o que é externo e dando a isso um caráter de
53
Ibid.
70

realidade natural, eterna e imutável, então caberá a uma postura de suspeita a tarefa
de implodir e explodir esses opostos de maneira a fazer transfundirem-se os polos,
para que a chamada força vital não se subjugue diante da pequenez que impõem a
ela os interesses dogmáticos. Nesse sentido é que Nietzsche denuncia serem os
enganados os mesmos que os enganadores e vice-versa.
Enganados ou enganadores seriam encarnações do mesmo, travestidos
apenas de valências supostamente opostas e, no conjunto, estariam a serviço da
subjugação da potência do corpo. Nietzsche dirá que “a crença no corpo é mais
fundamental que a crença na alma”54, tentando denunciar a morte do corpo ––
portanto, da vida –– através da eleição da alma como superior.
Em sua trajetória, o andarilho tornou-se sensível ao fato de que uma forma
possível de transpor a farsa é deixar que o corpo, liberto das suas codificações
dogmáticas, encontre as forças plásticas, curativas, reconstrutoras, restauradoras de
maneira tal que essas experiências constituam para ele novos códigos de
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entendimento e decifração da vida, mesmo que isso o arremesse à condição hostil


da solidão.
Portanto, não comungar da farsa é isolar-se em um tipo de solidão; daí o
projeto de Nietzsche beirar o impossível e ser, ele próprio, um flerte com a loucura.
O andarilho resolveu abraçar essa solidão como única condição possível para seguir
sua trajetória. A argumentação de Nietzsche é em favor da potência da dissolvência
dos eventos e da recusa em se levar a sério a fixidez dos elementos, como se
houvesse uma origem verdadeira dos valores.
A trajetória do andarilho é constituída por uma série de provações. Isto
porque uma compulsiva força gregária é constante e se apresenta maciçamente
quase sempre de forma sedutora, impelindo o homem a buscar filiação: um vacilo
do andarilho, um deslize, um descuido, e ele pode ser contaminado de maneira tal
que sua postura de suspeita ceda aos encantos de uma paixão. Nesse caso, o que
seria apaixonar-se senão acreditar na polarização semântica de qualquer objeto ou
de qualquer princípio e, a partir disso, estar-se disposto a amar e a odiar pela causa?
A paixão é da ordem da certeza. Mas certeza de quê? De que algo exista e
represente algum tipo de causa, de concretude, de essência e que, como tal, sustente

54
WP 491.
71

a fantasia de que a terra prometida possa ser alcançada desde que se sigam os
passos corretos.
No entanto, justamente se a postura da suspeita é capaz de resistir como
sendo causa do movimento, então o andarilho se permitirá “o acesso a modos de
pensar numerosos e contrários”55 de maneira tal que esteja ele em condições de não
se deixar levar pelo caráter inebriante das musas que hão de cruzar seu caminho.
Esse espírito livre, segundo Nietzsche, será capaz de lançar mão de seu
estado de convalescença para nele exercitar suas forças de recuperação e
restabelecimento, e nelas encontrar sua força maior e mestria. Isso porque a postura
do andarilho é passível de se ver diante da superexposição aos mais diversos
ataques, e ele só perdurará se encontrar uma política de enfrentamento desses
ataques sem que sucumba definitivamente. Convalescer é preciso; afinal, toda a
euforia suscitada precisa de um arrefecimento. Convalescer significa estar em
potência de transmutação. Como não nos lembrarmos, aqui, de Gregor Samsa? O
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homem que acordou transformado em um inseto e que, da noite para o dia, viu seu
mundo revirar. Sua metamorfose de caixeiro-viajante em inseto não o incomoda
nem é questionada por ele; ao contrário, aceita-a e a reconhece como
estranhamento, talvez, inexorável. O problema está da porta para fora: o pai, a mãe,
a irmã, todos na sala de jantar, esperando por aquele que, até então, lhes provia o
suporte. Kafka também entendeu o que se destina ao andarilho: o ônus da própria
metamorfose, a incompatibilidade desde a reviravolta. Gregor Samsa,
diferentemente do andarilho, não pode convalescer. O peso de suas asas e a gosma
de seu corpo ainda lhe tomariam tempo para aliar-se como potência de ação. Não
houve tempo para reação. A cultura roubou-lhe a chance da extradição de sua cena
mater. O inseto perturbou por demais a ordem. A irmã já não mais o reconhecia. Ele
virou. Da noite para o dia. De força impulsora a força estranha. Diferente do
andarilho, teve que suportar as reprovações e retaliações da cultura: morto pelos
próprios pais, morto pela própria família. Aqui, Kafka filia-se ao andarilho de
Nietzsche. A diferença, talvez, seja que Nietzsche salva seu andarilho do extermínio
sumário, dando-lhe a chance de convalescer. É preciso a doença para que as coisas
se solidifiquem fora do lugar de origem; no entanto — ensinará Nietzsche —, a

55
MA I prólogo 4, KSA 2, p. 17-18.
72

doença deve ser experimentada na solidão. Se o andarilho permitir, ou der o azar de


Gregor Samsa, o próprio amigo será o primeiro traidor, pois as pessoas, em geral,
não reconhecem as outras quando elas se transformam. Isso as incomoda demais.
Não se está preparado para tolerar o corpo reduzido à sua própria reviravolta.
Segundo o próprio andarilho, porém, há uma intrínseca convicção de que é
possível atingir um certo estado intermediário depois de muitos ensaios de tentativa
e erro. Após convalescer, é possível restituir algum tipo de existência possível,
talvez, agora, nem tanto ao mar, nem tanto à terra — um estado que pode se
equiparar a uma condição descrita por Nietzsche da seguinte forma: “Uma pálida,
refinada felicidade de luz e sol que lhe é peculiar, uma sensação de liberdade de
pássaro, de horizonte e altivez de pássaro, um terceiro termo, no qual curiosidade e
suave desprezo se uniram.”56
O que é esse terceiro termo senão a posição de se estar ancorado além do
bem e do mal? Esse lugar terceiro, quebra da dimensão de bipolaridade, é o que
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permite o transpassar das afecções em detrimento da arbitrariedade dos valores.


Esse terceiro termo, que aqui não tem nada de sintético, portanto, não se constitui
em movimento dialético: é o termo de isenção, de alteração do percurso vetorial dos
sentidos. É o triunfo do andarilho diante de seu embate contra as forças decadentes
(como dissemos, o andarilho é bem-sucedido onde o personagem kafkiano
fracassou!). Ele estabelece uma via de codificação que assume a característica de
não mais dividir de forma decisiva os polos de oposição, e, sim, pô-los sob suspeita:

Assim se vive, não mais nos grilhões de amor e ódio, sem Sim, sem Não,
voluntariamente próximo, voluntariamente longe, de preferência escapando,
evitando, esvoaçando, outra vez além, novamente para o alto; esse homem é
exigente, mal acostumado, como todo aquele que viu abaixo de si uma
multiplicidade imensa – torna-se o exato oposto dos que se ocupam de coisas que
não lhes dizem respeito. De fato, ao espírito livre dizem respeito, de ora em diante,
somente coisas – e quantas coisas – que não mais o preocupam...57

Por ter logrado êxito em ocupar o lugar desse “terceiro termo”, o andarilho,
então, estará apto a se livrar das armadilhas que viciam as posições de amor e ódio.
Dizer sim ou dizer não para algum tipo de demanda de julgamento pode estar fora

56
Ibid.
57
Ibid.
73

de seus interesses ou, mesmo, alcance. Sua postura, por assumir uma posição de
serenidade ou mesmo isenção, é capaz de recusar envolver-se em querelas que
exigiriam dela adotar uma outra, do tipo “contra” ou “a favor”. Justamente por ter
percebido o engodo que reside nessas rivalizações, o andarilho passou a evitar toda
e qualquer política partidária, esquivando-se, esgrimando, desvencilhando-se, de
maneira tal que somente o indispensável possa interessar. Essas ações apontam para
uma espécie de capacidade de alguém abster-se da obrigação de ter que se envolver
em determinados embates que em nada lhe dizem respeito. Por isso, Nietzsche faz
alusão a uma espécie de possibilidade de arrefecimento ou despreocupação. Isso
porque, a partir da transvaloração (entendida sempre como movimento de báscula
entre as polaridades), o andarilho livrou-se do peso que lhe coube desde sempre,
sem que ele tivesse tido capacidade de percebê-lo e recusá-lo.
É importante frisar que essa posição assumida em nada se confunde com o
desinteresse ou a apatia; ao contrário, o interesse passa a se dar de forma mais
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criteriosa e autêntica. Só as coisas que lhe dizem respeito farão questão. Afinal de
contas, por que alguém deve supor que tudo lhe seja passível de interesse? A
renúncia ao peso das coisas ou à excessiva carga de “nada” que elas trazem é da
ordem de um olhar sóbrio a respeito do que pode um corpo.

As coisas mais próximas

A constatação de Nietzsche é que esse corpo, uma vez liberto do peso dos
signos que exigiam dele fidelidade e devoção, estará apto a retomar sua relação com
as coisas de maneira totalmente nova. Ou seja, uma vez que a transmutação dos
valores é atingida e, diga-se de passagem, incorporada como uma espécie de
dispositivo de leitura dos fenômenos e absorvida como movimento articulador desse
corpo liberado, o que passa a fazer questão são as chamadas “coisas mais
próximas”.
Contudo, que coisas próximas seriam essas? Ora, justamente aquelas que
emanam do corpo e com ele podem estabelecer uma linguagem mais direta e menos
atravessada por elementos outros. Estamos aqui referidos aos planos das sensações,
74

das percepções e de tudo aquilo que é capaz de afetar esse corpo: a relação que se
passa a ter, por exemplo, com a alimentação, a moradia, a luz, a noite... Nietzsche
se fascina com a possibilidade de se sentir de forma mais aguçada o calor, de se
poder distinguir a linguagem dos ventos que passam e comunicam-se com o
andarilho. Da mesma forma, a percepção das cores se transforma graças à função de
um outro tipo de propriedade e capacidade do olhar que agora se vê desimpedido de
reconhecer o que possa haver de “mais dourado” em uma determinada configuração
de objetos:

Essas coisas vizinhas e próximas: como lhe parecem mudadas! De que magia e
plumagem se revestiram! Ele olha agradecido para trás – agradecido a suas
andanças, a sua dureza e alienação de si, a seus olhares distantes e vôos de pássaro
em frias alturas. Como foi bom não ter ficado ‘em casa’, ‘sob seu teto’, como um
delicado e embotado inútil! Ele estava fora de si: não há dúvida. Somente agora vê
a si mesmo – e que surpresas não encontra!58
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A magia de que fala Nietzsche com relação ao sentir intenso e renovado das
coisas mais próximas é compreensível na medida em que, agora, o andarilho, livre
do fardo do peso das coisas “magnânimas”, é capaz de obter uma torção no ângulo
em que concebe a importância das coisas. O que pode estar mais próximo de
alguém do que a sua capacidade de sentir? Pois é essa capacidade que a cultura
rouba do homem ao convertê-lo e forçá-lo a aderir a seus sistemas de signos e
crenças e lógicas de funcionamento. Trata-se mesmo de uma prática de apropriação
do bem maior (corpo) em troca da obrigação de pertencimento. A lucidez do
andarilho é perceber que é preciso tornar-se doente ou quase insano para que algo
de saudável se estabeleça.
Ousa-se romper os limites. O processo, dirá Nietzsche, é visceral; daí a
doença como ponto de passagem, como condição última de ruptura. Não que o
andarilho queira tornar-se enfermo, mas a condição parece ser a única possível para
instaurar-se a virada. Ou seja, a doença acaba por ser bem-vinda na medida em que
ela é sinal de uma desconfiguração radical, uma escamação rigorosa que põe o
andarilho em uma espécie de prova fatal. A questão se apresenta de forma binária:
ou morre ou vive! E, se a vida retornar em resposta à resiliência do andarilho, então
temos uma vida agora transposta para uma outra dimensão.
58
MA I prólogo 5, KSA 2, p.19.
75

Nietzsche parece encarar o desafio como uma luta entre Davi e Golias — o
pequeno corpo diante do desafio de viver sem a sombra do grande corpo.
Desde que recebe um nome, uma filiação e responde por uma origem e um
sistema de crenças e, sobretudo, quando se vê engajado em algum movimento
social, o homem é saqueado compulsoriamente de suas faculdades de mediar de
forma mais direta com as coisas mais próximas. A vida coletiva tem aqui seu
aspecto mais violento: toda a dimensão do experimentar e codificar é interditada a
ela e permutada pelas faculdades de aprender, aceitar e obedecer. A disciplina que o
andarilho se obriga a seguir é aquela de deseducar-se segundo os padrões
normativos e idealistas (relativos ao grande corpo), para reinventar-se reeducando-
se através dos movimentos de suas próprias experimentações (o novo corpo).
Quem seria esse “delicado e embotado inútil” de que fala Nietzsche? Seria
algo próximo do que ele tipificou nos discursos de Zaratustra na figura do camelo.
Quem é o camelo? Justamente aquele que lança a seguinte pergunta como princípio
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de seu desejo: “O que há de mais pesado, ó heróis, para que eu o tome sobre mim e
minha força se alegre?(...).”59. Sua alegria, pois, é exatamente carregar o fardo mais
pesado e poder servir como suporte de carga para os interesses alheios. Quanto mais
pesado e, portanto, mais sacrificante, mais recompensado se sente o camelo porque
julga que sua potência é exatamente a de assumir as responsabilidades em suas
costas. O camelo é obediente e cumpre as normas de maneira tal que se refestela
com a sensação de sofrer em nome de alguma causa que o gratificará no futuro. Ele
não se apodera de si, conhece resumidamente os desenhos de suas afecções, e suas
relações com as coisas mais próximas lhe são estranhas, pois ele aceita ignorá-las de
bom grado. O desejo do camelo é tão-somente o desejo de servir. E tudo, em troca
do reconhecimento de seu mestre ou superior. Dirá Nietzsche que alguém nessas
condições não é capaz de duvidar, de questionar e, muito menos, de criar.
Embotado, portanto, o tipo camelo tem por destino ligar-se àqueles que não o
reconhecem em sua singularidade (até mesmo porque ele é o primeiro a não
reconhecê-la) e prontificar-se a sofrer as maiores humilhações que lhe são sempre
motivo de muito orgulho. Habitar sob as condições mais adversas e conviver com as
companhias mais sórdidas lhe causam prazer porque ele se julga merecedor de

59
Za das três metamorfoses, KSA 4, p. 29.
76

concentrar em si tudo que possa existir de problemático para os outros — uma vez
que sua constituição fisiológica parece estar habituada à função de atender. Tem
satisfação em servir a seus senhores e amar de forma cega aqueles que, sem o
admitir de maneira explícita, o desprezam pelas costas. Para o camelo, o motivo de
júbilo é servir-se como depositário do dejeto alheio, pois, só assim, ele parece
reconhecer sua importância.
Apego ao dejeto: isso mobiliza as massas, que se apaixonam por todo tipo
de excremento. Basta que se façam pequenos exercícios de maquiagem, que se
pintem os contornos e que se produzam condições de brilho, e o excremento vira, de
pronto, objeto de desejo. Ambição das massas: desejar carregar o excremento da
humanidade como prêmio e dele regozijar-se. Fazê-lo moeda de troca, prêmio por
comportamento... Nietzsche sugerirá que as pessoas se interessam justamente por
aquilo que, em princípio, em nada lhes diz respeito. Isso só pode parecer estranho a
quem nunca ousou variar a angulação do olhar sobre si próprio. Não, porém, ao
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andarilho: ele não despreza os homens, mas sim o que esses homens prezam.
Assim, o espírito livre, ao operar sua transmutação, conseguiu inverter
qualquer identificação à figura do camelo e passou a saber o que lhe interessa: o
filosofar através daquilo que lhe parece mais natural, mais imediato e, por isso, mais
relevante de fato. Ao espírito livre, incomoda-lhe a dor nas costas. Ele não se
servirá de desculpas, analgésicos ou supressão do sentir — recusar-se-á a vender
suas costas em nome de qualquer exterioridade. O dinheiro ou as costas? O
andarilho dirá: “As costas!”. Aos usurpadores do corpo, Nietzsche dirá algo como:
“Saia do caminho e me deixe seguir!”
A constatação é muito clara: os sacerdotes, professores, médicos e pastores
(“os filisteus da cultura”, como designa o próprio Nietzsche) criaram mecanismos
de afastamento do homem das coisas que lhe são mais próximas, dando a elas um
caráter desprezível e associando-as a preocupações mesquinhas e pecaminosas. Eles
elevam suas causas à condição de sagradas e desdenham de qualquer força que não
lhes empreste apoio.
Para Nietzsche, abandonar as coisas mais próximas gera como consequência
imediata uma atmosfera de “constantes agressões às mais simples leis do corpo e do
espírito”, de forma a deixar o homem em posição de constrangimento quanto a si
77

próprio e dependente do jugo dos decadentes. É como se o homem fosse educado,


desde cedo, a alijar-se de seus interesses mais lúdicos e tivesse que se desvincular
de sua faceta simples para carregar sobre as costas, tal qual o camelo, o peso e
responsabilidade de coisas, tais como “a salvação da alma, o serviço do Estado, a
promoção da ciência ou reputação e propriedades, como meios de prestar serviço à
humanidade (...).”60
Michel Foucault, em sua conferência “Nietzsche, a genealogia e a história”,
nos apresenta ideias que confirmam as constatações do filósofo alemão e mostram
como o seu método, o da Genealogia, constituiu-se em oposição à perspectiva
histórica. Segundo ele, Nietzsche aponta para o fato de que há uma linha estreita
entre corpo e história cujos embates, tensões e agenciamentos estão remetidos a
jogos de forças. Nesse sentido, a história, através de suas marcas sucessivas no
corpo, teria como consequência a ruína desse corpo.
Segundo Foucault, o corpo seria o lugar da proveniência de vida e morte, de
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fraqueza e força, sanção e erro... Em resumo: do corpo, criam-se os vetores da


verdade. Acontece que o corpo não habita sozinho: ele esbarra, afeta e é afetado por
outros corpos, tanto internos quanto externos a si próprio. Um conjunto de corpos
gera formações outras que se desprendem da dimensão mais presente do corpo e,
dando movimento ao processo civilizatório, criam diversos tipos de estratificações
de valores. É aí que nascem os conceitos e toda a potência da linguagem de produzir
equívocos e alienações. Entre esses conceitos, encontram-se os planos da
metafísica, a ideia de liberdade e os padrões de crenças e comportamentos gerados
pela prática ascética.
A Genealogia, ensina Foucault, através do estudo das morais, dos ideais da
vida ascética, dos conceitos metafísicos, permite elucidar as tramas criadas e
instituídas ao longo da história com intuito de estabelecer políticas de dominação.
Trata-se, portanto, de um método investigativo que põe às claras a história das
histórias, por assim dizer. Como resultante, a Genealogia faz aparecer essas
diferentes interpretações valorativas ao longo da história, como “acontecimentos no
teatro do procedimento”.

60
MA II 6, KSA 2, p.542.
78

Com Nietzsche, mostra-nos Foucault, temos que o devir da humanidade não


é outra coisa senão uma série de sucessões de interpretações violentas surgidas de
corpos estratificados e organizadores que dobram forças e rearticulam as inervações
de comando e obediência, de maneira a submeter outros corpos. Por exemplo, a
sucessão de revoluções ao longo da história ou, de outro lado, as disputas
sangrentas entre povos são, em última instância, rearticulações das relações de
poder de maneira tal que, a partir de cada vencedor, seja estabelecida uma nova
ordem moral e uma nova história passa a ser contada. Nesse sentido, a história da
humanidade não é outra senão a constante transitação das forças entre elas
(estabelecendo-se várias políticas de dominação e hierarquias), de maneira que esse
processo siga indefinidamente. Não há equilíbrio, não há paz, não há desinteresse
nem gratuidade. Os corpos se antropofagizam, mas, também, se multiplicam. O
embate pode ser minorado ou atenuado e, até mesmo, postergado; entretanto, há de
acontecer impreterivelmente.
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Foucault, portanto, acompanha a sutileza da percepção de Nietzsche a


respeito das coisas próximas. Elas afetam na base. Ignorá-las seria supor que não
haveria importância nas escolhas mais simples e supostamente banais do cotidiano,
pois é fato que seria um erro supor que a história das patologias ou mesmo das
alegrias do corpo pudessem ser lidas somente sob o ponto de vista fisiológico com
destinos e destinações marcadas. Trata-se de entender que, ao estarem submetendo
e se submetendo aos mais distintos encontros, misturando-se e hibridizando-se, os
corpos se constituem nos vários estratos que os implicam — dentro e fora.
Portanto, dirá Foucault, o corpo do homem e suas histórias são descontínuos
e não abrigam a coerência dos complexos de ideias “tão bem compreendido” pelos
historiadores. Não há constância nem previsibilidade nos eventos. Aqui podemos
falar que a experiência humana abriga a inexorável determinação do indeterminado.
Dessa forma, esse corpo será sempre um corpo flutuante, projetado e reprojetado
fora do limite de qualquer recorte anatômico ou psicológico, logo, fora dos alcances
dos recortes semantizadores dos registros de significação (ou se preferirmos, de
valoração).
O corpo, seja ele qual for (da criança, do adulto, do velho ou do andrógino),
também corpo animal, uni ou pluricelular, ou tudo que for corporativo, é sempre
79

corpo constituído por uma incomensurável pletora de articulações de outros corpos.


Só assim se poderá falar em uma história. O corpo, dessa forma, Foucault o dirá, “é
formado por uma série de regimes que o constroem; ele é destroçado por regimes de
trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por venenos — alimentos ou valores,
hábitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria as resistências”.61
Então, se seguirmos o que pensa Nietzsche sobre seu próprio corpo, se
levarmos em conta o que ele depura sobre os homens a partir de sua própria
experiência, teremos que o resultado do afastamento do homem das coisas mais
próximas nada mais é do que o adoecer em seu sentido tanto amplo quanto restrito:
não saber decidir sobre aquilo que faz bem ou mal ao corpo, sobre aquilo que possa
ser excessivo ou não, prazeroso ou desprazeroso, supérfluo ou fundamental e, mais
do que isso, próprio ou estranho às suas mais particulares afinidades e preferências.
Trata-se de uma renúncia ao diálogo com os ritmos do corpo de maneira tal que
tudo leve a crer que este é secundário ao espírito.
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Tentemos acompanhar o que sucedia a Nietzsche naquelas circunstâncias:


há tempos, ele estava gravemente enfermo, em condições de sofrimento intenso e
continuado, submetido a uma série de ataques internos que variavam da incessante
enxaqueca, passando pelas mais cruéis dispepsias e sofrendo gravemente da visão.
Seu estado era de difícil diagnóstico, e não havia terapêutica (fosse ela
medicamentosa ou não) que desse conta de tamanho horror. Esse estado havia se
tornado aparentemente crônico e teria se acentuado com o período que coincidiu
com o início do doloroso e complicado rompimento com Wagner.
Sem dúvida, Nietzsche havia feito uma grande virada. Inicialmente, ele se
reconhecia como um entusiasta da causa wagneriana e tinha nisso um grande ideal
pelo qual escrevia e militava, assim como se via embalado pelo pensamento
pessimista-romântico próprio à metafísica de Schopenhauer. Agora, após o episódio
de Bayreuth, todo aquele entusiasmo e devoção se revertera em sentimento de nojo
e traição. Wagner e Schopenhauer passavam da condição de idolatrados à de
abomináveis enganadores.
Pois bem, Nietzsche levou alguns anos para perceber que a causa
wagneriana era por demais ideológica, hipócrita e “falsificada”. Evidentemente, a

61
FOUCAULT, 2003, p. 27.
80

acolhida glamourosa que recebeu de Wagner, Cosima e dos principais wagnerianos


da Alemanha em Tribschen seduziu-o extraordinariamente. O jovem Nietzsche,
então, teve a impressão de que realmente estava em curso a criação de uma nova
cultura germânica onde a música genial de Wagner faria renascer o melhor da época
trágica do helenos. Afinal, ele próprio havia contribuído para isso, com a publicação
de O nascimento da Tragédia e de suas Comunicações extemporâneas. Por muitos
anos, Nietzsche ainda ficou entorpecido pelo ambiente que cercava Wagner e sua
corte, o que resultou em uma adesão cega, própria de um discípulo que venera o
mestre e a ele dedica sua vida.
Wagner tinha Nietzsche como um possível porta-voz de sua ambição. Era
claro o lugar que lhe seria designado, sobretudo depois da fundação de Bayreuth:
ser uma espécie de emissário intelectual da boa nova, uma espécie de adido cultural
da era wagneriana. No entanto, o faro de Nietzsche não se equivocou em definitivo:
Bayreuth, com toda a sua atmosfera espetacular e política, lhe soou mal.
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Assombrou-se ao constatar a decadência no movimento que ele próprio ajudara a


propagar. Wagner e os wagnerianos estavam fundando, aos olhos de Nietzsche, não
uma nova música, mas, sim, uma nova religião — tudo era muito afetado, muito
histriônico, autopromomovido. Nietzsche passou a entender o projeto da grande
cidade da música como uma espécie de grande feira do teatro dramático. Ali, as
coisas eram megalômanas, e o nacionalismo que imperava lhe causava
desconfiança. Por isso, caiu em si e decidiu-se pelo mais honesto, porém, mais
difícil: dar meia-volta, retirar-se e seguir um caminho que lhe parecesse autêntico.
Assim, Nietzsche abriu-se cada vez mais para se conceber como filósofo.
Sua filosofia nasce e renasce sempre através daquilo que ele filtra a partir de suas
percepções e inclinações. Tudo em seu corpo reverbera e lhe comunica. Há uma
espécie de ponte direta entre Nietzsche e sua corporeidade, de maneira tal que aí se
funda uma máquina de avaliar, criticar, selecionar...
O impacto do rompimento com Wagner e seu movimento repercutiu
diretamente no corpo de Nietzsche, abalou sua saúde, tornando-a caótica até o fim
da sua vida. Alternaram-se situações de sofrimentos físicos mais ou menos
toleráveis, marcados por raros e breves períodos de saúde exemplar e, sobretudo,
81

entre a doença e a saúde, extensos intervalos que ele denominava “períodos de


convalescença”.
Era como se o mundo de Nietzsche tivesse desmoronado, e só a ele coubesse
a chance de se reerguer. A partir de 1875, sua filosofia se redireciona, norteada pela
necessidade de responder ao fracasso como romântico e idealista. Como poderia ele
ter se equivocado de forma tão contundente? Que resposta seria possível dar ao
poderoso Wagner?
O estranhamento e afastamento de Wagner que culminou no processo de
estruturação de seu pathos filosófico foi o que aconteceu no momento em que
Nietzsche se recusara terminantemente a repetir a “burrice” do camelo. Não, ele não
seria esse animal de carga fadado a dizer “não!” à vida (pois isso era o que Wagner
lhe “pedia” em troca de sua devoção e dedicação ao movimento). Buscaria o
diametralmente oposto: a leveza do corpo e sua capacidade de formular uma
filosofia afirmativa na qual sua potência pudesse emergir como a grande causa.
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Dessa feita, nenhuma outra atitude coube a Nietzsche; apenas retirou-se,


saiu de cena e encontrou alento no próprio isolamento. A virulência com que sentia
o impacto da decisão perturbava sua cabeça, e o peso dessa descontinuidade era de
natureza traumática. Uma reversão tão decisiva como essa não pode acontecer sem
que o psíquico se obrigue a reformular seus alicerces. Nietzsche precisou desdizer
aquilo que ele havia afirmado em todos os seus escritos panfletários wagnerianos e
encontrou em sua “doutrina da saúde” o caminho para a construção de linhas de
fuga.
E do que trataria essa “doutrina da saúde”, que não fosse a construção de
uma filosofia muito particular em que a metafísica e seus conceitos dariam lugar
àquilo que ele próprio chamou de “doutrina da vontade”?
Isolado, estranhamente doente e sofrido, mas acometido por impactante
lucidez e vontade de vida, Nietzshe teve seu devir lagarto e aceitou o destino que
lhe cabia: mudar de pele, transmutar-se naquilo que julgava ser o que ele deveria se
tornar.
Ele anunciava sua cruzada: contra tudo que se materializasse como
falsificação em nome da verdade, contra tudo que lhe parecesse degradar à sua
concepção de vida expansiva e, nesse sentido, sua própria saúde. Nietzsche se
82

tornara doente de si próprio, daí a dificuldade de diagnósticos e terapêuticas. Por


conseguinte, também se elegera o único “médico” ou “psicólogo” capaz de mapear
o caminho de sua “cura espiritual”, como ele próprio ressaltou no prólogo de O
andarilho e sua sombra. Acompanhemos suas palavras, torneadas de uma
inequívoca sensibilidade e franqueza quanto à sua condição:

Continuação e reiteração, ao mesmo tempo, de uma cura espiritual, ou seja, do


tratamento anti-romântico que meu próprio instinto, permanecendo sadio, inventara
e prescrevera para mim, contra um adoecimento temporário da mais perigosa forma
de romantismo. 62

Em Ecce Homo, Nietzsche sentenciou que o idealismo fora a sua radical


insensatez e que essa doença havia-lhe permitido aceder à razão. No fim da vida, ele
se orgulhava de não ter sido alcançado pelo veneno de sentimentos, tais como
remorso e pecaminosidade. A razão em detrimento do ideal romântico o fez
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conceber a ideia de que não são as virtudes que devem assenhorear-se do andarilho,
mas o contrário. Sua lucidez lhe permitira estabelecer que, junto de qualquer
enunciado valorativo, há sempre uma perspectiva em jogo. Determinar prós e
contras como opostos seria apenas uma forma de conter o potencial de reflexão. Há
que ter domínio quanto à percepção dessas polaridades e, só então, decidir pelo
sentido.
Em carta a Mathilde Maier, datada de 15 de julho de 1878, Nietzsche se
declarava aliviado por ter-se decidido a abandonar o universo de caráter religioso e
megalômano de Wagner, onde reinavam a “superexcitação e a glorificação do
excesso”. Conforme ele constatava, era justamente essa atmosfera assombrosamente
hipócrita que o havia tornado mais doente e desviado do curso de sua criatividade e
talento. Agora, ele se via na montanha e valorizava a geografia e o clima (as coisas
mais próximas, portanto). Sentia-se, mais do que nunca, retomando o espírito dos
gregos, no qual o que importava era a busca da sabedoria, e não a veneração ao
sábio. O que havia incomodado Nietzsche com relação a Wagner era algo da ordem
de este ter feito de Bayreuth um verdadeiro santuário de adoração em causa própria.

62
MA II prólogo 2, KSA 2, p.371.
83

Com a opção pelo isolamento e o silêncio, Nietzsche estava confiante em constituir-


se como o que ele mesmo cunhou sob a denominação de “filósofo da vida”.
Este é o momento em que Nietzsche se aproxima e dialoga com Epicuro. O
interesse pelo simples e a condição de integração e contemplação com os elementos
naturais, aliados a uma recusa em ceder aos excessos de toda sorte, e uma
inestimável abertura para o convívio com os poucos mas estimados amigos
pareciam ser traços que Nietzsche cultivava em comum com o sábio grego.
Nietzsche o tinha como um “mitigador de almas da antiguidade tardia”, cuja postura
era de não entrar nos méritos mais espinhosos das discussões teóricas sobre os
temas que apavoram o homem comum, mas, sim, dar a ele a chance de se
tranquilizar a partir da compreensão de determinados axiomas.
Epicuro organizava essas intervenções através do que denominou de
tetraphármakon63. Tratava-se de quatro axiomas fundamentais destinados a
simplificar a lógica de uma compreensão dos fenômenos relativos à vida e à morte,
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de maneira tal que tivessem a capacidade de apaziguar o espírito dos angustiados.


São eles: 1) Não se deve temer ou se preocupar com os deuses porque eles não se
interessam pela vida dos homens; 2) Não se deve temer a morte, pois simplesmente
não há uma vez que ninguém poderá experimentá-la; 3) O prazer é aquilo de fácil
obtenção, do contrário não pode ser tomado como prazer; 4) A dor é sempre
suportável.
Em seu jardim, interessado em minimizar as dores existenciais dos homens,
Epicuro recebia seus amigos para longos passeios e conversas, que deveriam ser
simples e prazerosas.
O breve aforismo 192 de O andarilho e sua sombra encerra, de forma
sucinta, o que percebia Nietzsche de Epicuro:

O Filósofo da opulência – um pequeno jardim, figos, porções de queijo e três ou


quatro bons amigos – esta foi a opulência de Epicuro.64

Nietzsche tomava Epicuro como inspiração, chegando ao ponto de encontrar


alento para seu doloroso estado de saúde nos princípios axiomáticos do filósofo

63
Cf JM Rist, 1964.
64
MA II 192, KSA 2, p. 638.
84

grego. Em carta a Heinrich Koselitz (Peter Gast), datada de 22 de janeiro de 1879,


ele reportava o amigo maestro à sua saúde e à conseguinte forma que encontrava
para minimizar seus impactos: “Minha saúde está terrível — com muitas dores
como antes, porém minha vida está muito mais restrita e solitária. Vivo como um
autêntico santo, mas com a mentalidade do completamente proscrito Epicuro —
muita tranquilidade de ânimo e paciência, contemplando a vida, a despeito de tudo,
com alegria.”65
Em 26 de março do mesmo ano, agora de Genebra, ele escrevia ao mesmo
Koselitz com o intuito de ter o amigo próximo, à moda do filósofo grego. Os dois
fundariam um novo Jardim de Epicuro. Bastava que, juntos, chegassem a escolher
um local que reunisse as características ideais: “Onde poderíamos restaurar o
Jardim de Epicuro?”66. Os dois se unem e se empolgam com a perspectiva, e
sucedem as cartas que planejam a empreitada. Aquela união, segundo aspirava
Nietzsche, levá-los-ia a atingir um “outro nível moral e espiritual” de vida. Em carta
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ao amigo, datada de 5 de abril daquele ano, Nietzsche cria a sigla TGS, onde se
condensaria a tríade de seus desejos: Tranquilidade, Grandeza e Sol. Koselitz lhe
havia proposto o lago Maggiore como localidade possível, e Nietzsche havia sido
tomado de emoção pela ideia.
Como se percebe, Nietzsche trocava a ambição pela restrição, a magnitude
pela simplicidade, o idealismo pela potência do corpo e Wagner por Koselitz. A
amizade tornava-se o valor a ser cultivado. Em julho, escreve à mãe, solicitando-lhe
que alugasse para ele um quarto na velha torre de Zwinger, onde ele poderia
cultivar hortaliças67. Em 21 de julho, em outra carta à mãe, comenta:

O cultivo de hortaliças atende por completo aos meus desejos e é também um


futuro ‘estilo de vida’ nada indigno. Você sabe que tendo a um gênero de vida
simples e natural, estou cada vez mais persuadido de que não há outro remédio para
minha saúde. Um autêntico trabalho que leva tempo e causa fadiga sem cansar a
mente me é necessário. Afinal, meu pai não acreditava que eu viesse a ser
jardineiro um dia?68.

65
FNC, Vol. III, c 799.
66
FNC, Vol. III, c 826.
67
FNC, Vol. III, c 863.
68
FNC, Vol. III, c 867.
85

Nobreza e honra somente no lazer e na guerra: assim falava a voz dos


antigos69

A ideia de tornar-se um jardineiro e cultivar hortaliças parecia-lhe própria e


inteiramente compatível com seu trabalho como filósofo, uma vez que seu intuito
era desprender-se de toda forma de aprisionamento que pudesse sugerir sacrifícios
em nome de algum tipo de propósito que não fosse aquele que buscava como
convicção: expandir-se psiquicamente de tal forma que seu pensamento levasse a
uma continuada forma de superação de si próprio. Nada que não sugerisse essa
direção valeria a pena ou lhe seria possível. Ele estava convicto e imbuído da ideia
de que nenhuma outra causa — senão a de levar seu inaudito pensamento a lugares
extremos — justificaria seus esforços.
A vida do jardineiro-pensador, uma forma de devir espírito-livre, certamente
era um caminho alternativo e mesmo distante do que Nietzsche considerava uma
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espécie de praga que tomava conta do novo mundo e que, por contaminação,
acabaria chegando à velha Europa — era o que chamou de “vício do trabalho”. Ou
seja, ele estava sensível e tecia severas críticas à prática de incentivo e louvor ao
trabalho disseminada através dos movimentos de industrialização compatíveis com
os vividos a partir da metade do século XIX.
Maldita sina do homem comum que é levado a aderir, mimeticamente, às
tramas trilhadas pela civilização de maneira a sentir-se parte do todo. Maldita essa
sina de ser camelo, de ter que abandonar as peculiaridades do próprio corpo e
percurso, para ter de enfileirar-se junto ao mais grotesco nível de apelo a que podem
endereçar-se os homens: o da necessidade.
Quanto à Nietzsche, sua inequívoca lucidez analítica e seu apurado faro para
perceber o dom dos homens de dizer não à vida em nome de tolas crenças, tudo isso
o levava a classificar como “selvageria” o movimento que passava a fazer do
trabalho uma prática capaz de “enaltecer” os homens diante de si próprios. Isso
porque o trabalho industrial passava a ser motivo de orgulho e possibilitador das

69
Um segundo curta-metragem foi realizado em New York, cujo argumento é o aforismo 329 de A
gaia ciência, intitulado “Lazer e ócio”. Para assistir ao filme:
http://www.youtube.com/watch?v=zF_whkjxz5U&list=UUA5cjEmPO64ktuuXGgY3XSA&index=2
&feature=plcp
86

formas de engajamento das pessoas com as novas constelações de laços sociais que
se estabeleciam à época.
O trabalho torna-se passaporte para uma nova forma de existência coletiva
promissora; agora, o homem comum estava sendo requisitado para ocupar o lugar
antes destinado aos escravos. Curiosamente, uma euforia contagiava a massa, que
passou a ansiar, de forma contundente, por oportunidades de trabalho — pois,
quanto mais se ampliavam as técnicas e condições de produção, mais se expandiam
as demandas por mão de obra e as consequentes seduções para torná-la palatável.
Dessa forma, crescia desenfreadamente essa moderna modalidade de vínculo entre
os homens que levava à expansão as relações de uso e troca. Enquanto os escravos
se escondiam e se envergonhavam do trabalho, por sabê-lo nada nobre, o “último
homem” era capaz de dele se orgulhar como se, agora, em nome do progresso, fosse
necessário sacrificar-se sem nenhum tipo de questionamento.
Aqui, vê-se a força do capitalismo que, através de seus movimentos de
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criação e perpetuação de suas cadeias, prima por seduzir os homens de maneira tal
que suas instâncias reflexivas sobre “as coisas próximas” passam a ser ignoradas ou
mesmo atravessadas sempre por insígnias protéticas capazes de — em um
movimento inesgotável — reinventar as formas de relação e gozo dos homens com
seus prazeres. O capitalismo apresenta-se como uma implacável e eufórica máquina
de produção de corpos. Neocorpos. Em outras palavras, o capital produz prazer
customizado e acoplado às ferramentas e produtos que interessam a ele.
Entende-se por que Deus está morto: Ele deu lugar às máquinas de produção
do capital que, embaladas pela euforia do casamento entre ciência e técnica, não
deixam dúvidas de que o fascínio outrora representado pelos mistérios das
divindades ou mesmo os dogmas aceitos e cultuados em nome de um Deus sóbrio
como causa última foi agora substituído pela própria potência do homem-máquina
em colocar-se no lugar do Criador.
O homem engendrado pelas injunções místicas do capital caminha, nesse
sentido, para sacrificar a própria vida na condição de engrenagem de força cujo fim
último é tornar complexo aquilo que se produz. O capitalismo como a arte de
produzir o excesso, o inútil e o dispensável de maneira tal que, por desdobramentos
de sua própria voracidade, faça com que os homens não só se vejam impedidos de
87

não se engajar nos movimentos de produção, como também se tornem fiéis


propagadores desse modelo que “ergue e destrói coisas belas”70. A moeda corrente,
forte ou fraca, é a nova hóstia. Os juros são o dízimo que se paga ou se recebe em
nome da confiança no ser superior capaz de multiplicar ou dividir o capital. O
milagre do capital é bíblico: ele multiplica os peixes e os pães, assim como tudo que
existe e que tenha valor comercial. Permite, por conseguinte, a multiplicação das
bocas, das mãos, das famílias... O capital é a renovação da fé e pede devoção.
O novo escravo, este trabalhador moderno, agora remunerado, não mais é
prisioneiro de um senhor, mas sim de um sistema. A articulação do ideal da
liberdade e igualdade em tons cada vez mais publicitários facilita as adesões em
massa. Os novos escravos passam a vender muito barato o seu maior bem: a força
do corpo. Mais que isso, tornam-se adictos, ansiando sempre pelo porvir mais rico e
gratificante. A fé que remove montanhas e constrói os novos sonhos tende a fazer
ressoar em uníssono o novo desejo enunciado através da ávida boca das massas:
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“queremos trabalho!”.
Assim, haveria, desde então, uma “freneticidade do trabalho” capaz de
tornar o homem um trabalhador contumaz, uma espécie de devoto da ocupação,
invertendo os valores de práticas e costumes. Agora, o refinado ato de repousar
causava vergonha, e a dedicação à ancestral meditação passava a ser motivo
deflagrador de remorso. Mais uma vez, Nietzsche chama a atenção para o renitente
movimento que atua na direção de fazer do homem um ser acossado pela própria
força: inversão de valores ou renúncia de potência de ação. Ao menos, sob a
perspectiva de Nietzsche.
O problema desse tipo de trabalho, inserido no que ele denominou de
“cultura industrial”, é que ele promovia uma massificação do pensamento e dos
costumes de maneira tal que os trabalhadores — espécie de novo exército decadente
— passavam a afirmar o interesse em “fazer qualquer coisa” em detrimento de fazer
“uma específica coisa”. Ou seja, ocupa-se o lugar do empregado, onde não se
domina, de maneira a permitir que, em sendo dominado, possa-se usufruir algo que
lhe é oferecido, mas não, necessariamente, desejado. Malditos homens, aqui
dobrados em nome dessa nova deidade, o capital, que, ao que parece, pode

70
Frase colhida da música “Sampa”, de Caetano Veloso.
88

flexibilizar-se e redimensionar-se como nenhum outro Deus outrora foi capaz. A


excelência do capital é poder significar qualquer coisa, engendrar uma infinidade de
demandas e sustentar os sonhos em ritmo alucinante. O capital, assim como o Deus
de outrora, é onipresente e onipotente.
A força do argumento de Nietzsche destina-se a mostrar que, em nome da
necessidade, mas também a partir de uma falta de critérios, o homem é levado a
abrir mão da potência de alegrar-se com o corpo, para fazer desse corpo potência de
esvaziamento. Aqui, o esforço obsedante — encarnado nas práticas submissas de
uma legião de operários prontos a servir ao exército mais decadente (apelidados por
ele de “magnatas da indústria”) — faz com que o tempo ganhe a dimensão de
opressor, e o que antes era tido como momento de deleite passe a significar “perda
de tempo”:

Reflete-se com o relógio na mão da mesma forma como se almoça: com os olhos
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fixos no pregão da bolsa. Vive-se como alguém que temesse deixar escapar alguma
coisa.
(...) Pois a vida, à procura de lucro, força o espírito incessantemente a se estender
até o esgotamento numa dissimulação constante com a intenção de enganar ou
prevenir. A verdadeira virtude, agora, consiste em fazer alguma coisa mais
rapidamente do que o outro71.

Esgotar-se no ofício de prevenir-se de si próprio, recusar-se constantemente


a especular sobre qualquer coisa que lhe diga respeito (do corpo à cosmologia, do
lúdico ao folclórico) para jogar o jogo da realização de si através da aniquilação do
outro. Assim, as regras do jogo asseguram que, a partir desse tipo de dinâmica de
trabalho, a vertente pulsional destrutiva do homem será reinscrita mesmo que o
trabalho ofereça a produção como garantia irrevogável.
Isso porque este mundo, frenético em suas dinâmicas de ocupação,
exploração e explosão, reedita a ideia de que homini lupos homini. Trabalha-se para
erguer, mas, também, para destruir. Trabalha-se para o outro, faz-se o que deve ser
feito, realizam-se as obrigações e, com isso, exime-se de qualquer responsabilidade
outra que não seja a de atender a uma força maior. Afinal, o homem comum já
havia aprendido a lição de ser temente a Deus, de não tomá-lo como objeto de

71
FW 329, KSA 3, p. 556.
89

suspeita, de não desafiá-lo. Deus, agora reencarnado na figura da indústria, espera


que os homens bons possam acolher o seu chamado e corresponder à sua altura.
Destrói-se o corpo, mas salva-se a nova alma: a potência de consumo.
Nietzsche pode, aqui, ser considerado um anticapitalista romântico. Isso
quer dizer que ele se torna, de certa forma, um descrente quanto à euforia suscitada
pelos elementos prometidos pelo capital (desenvolvimento, progresso, autonomia,
individualidade libertária) e vê, em uma certa cena perdida no passado (Grécia pré-
socrática), o lugar do qual se deveria erguer um contraponto. Trata-se, aqui, da ideia
de cultura (bildung) tal como os gregos a experimentavam, isto é, uma concepção
de cultura como formação ampla do homem através de uma concepção de educação
cujos elementos significavam a articulação entre os mitos, a literatura, os saberes
sobre o corpo e a técnica de maneira tal que não houvesse indissociação entre a
vivência da formação, o ato de inserir-se na cultura e a própria cultura.
Ou seja, nesse sentido, para os gregos, todo homem de cultura já estaria,
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através de sua própria formação, engajado na totalidade. Diferentemente, o


capitalismo, ao apropriar-se de todas as formas de separação entre o homem e os
meios de produção, isto é, ao inventar um novo conceito de trabalho que prevê a
dissociação entre a vida do trabalhador e aquilo que ele produz, introduz uma noção
de organização social que impede a unificação da cultura em torno de ideais mais
elevados ou nobres. Aqui, Nietzsche tem a cultura (bildung) grega como elemento
de oposição às engrenagens do mundo moderno.
Estarrecido com a capacidade que o homem moderno comum tem de tornar-
se desprezador de momentos outrora valorizados pelos nobres, Nietzsche se dava
conta dos efeitos devastadores do que chamou de “má consciência”. Ou seja, o peso
da culpa e autoacusação que recai sobre aqueles que, em meio a uma ordem que
sugere adesão compulsória à força de trabalho, são levados a exilar-se de suas
coisas mais próximas, para oferecer sua força de trabalho como recurso para, em
última instância, esquivarem-se de si próprios.
Somos levados a crer que, para o filósofo, sob o ponto de vista de sua
percepção estética da vida, nada poderia haver de pior e ultrajante do que essa
forma de legitimar o “desprezo de si”. O homem, dirá Nietzsche — este ser gregário
— está fadado a renunciar às práticas nobres, tais como a conversação, a cortesia e
90

as cerimônias, para ocupar-se de elementos que o poriam sempre alerta e


funcionando de acordo com uma espécie de compulsão: a de produzir a própria
decadência.
É inegável que Nietzsche esteja fazendo esse tipo de crítica em nome de sua
preferência pelos modos aristocráticos de engajamento. No entanto, se ele se
interessa em denunciar o fato de os homens estarem vendendo sua força de trabalho
de forma pueril, isso não significa que seu pensamento vá na direção de esperar que
um dia os trabalhadores tomem consciência e façam a revolução. Ao contrário,
Nietzsche sabe que, sejam quais forem as configurações, haverá sempre arranjos de
forças que se organizarão de formas hierárquicas de maneira a configurar elementos
dominantes e dominados. A democracia, o comunismo, o socialismo e qualquer
utopia não lhe causavam boa impressão. Tudo o que significasse aglomeração,
agremiação, pertencimento apontava para baixas estratificações da força criativa do
homem. Entretanto, tinha clara a percepção de que as forças se articulam e se
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compõem nos mais variados e distintos níveis, tanto quantitativos quanto


qualitativos. Porém, como filósofo, Nietzsche está apto a dizer algo do tipo: “Oh!
Como são tolos estes que abandonam o corpo e vendem sua capacidade de alegrar-
se da forma mais barata possível”.
Lembremo-nos de que Zaratustra anuncia o além-do-homem como promessa
de que o homem tem algo a ascender. Fica claro, contudo, que a passagem não é a
de um portão aberto para o rebanho cruzar, mas, sim, um instante específico em que
pode alguém lá chegar, ou não.
Há que tomar cuidado para que não se imagine haver uma proposta em
Nietzsche para o aperfeiçoamento do rebanho. Por exemplo, seria um equívoco
supor que ele teria a expectativa de que a humanidade, um dia, fosse capaz de
evoluir a ponto de atingir uma suposta maturidade ou uma forma de emancipação
que garantisse aos homens livre acesso às experiências das quais testemunha
Zaratustra. Não. Nietzsche não se propõe a outra coisa a não ser pensar e dar
testemunho de sua trajetória. O fato de ele eleger seus próprios ideais, por exemplo,
a “superação de si mesmo” em lugar de uma expectativa de melhoria da
“humanidade”, não significa que ele acreditasse que um dia todos chegariam onde
Zaratustra ousou transitar.
91

Aqui, Nietzsche se reconhece sucessor de pensadores que se mantiveram


aquém ou além da crença eufórica na salvação do destino do homem através do
trabalho. Heráclito, Epicuro Spinoza são pensadores que, cada um à sua maneira e
época, refutaram caminhos de unificação do espírito em nome de uma grandeza
coletiva. Já Rousseau e Lutero imprimiram grandes esforços para fazer do homem
uma engrenagem necessária à construção de uma coletividade sustentada por
valores orientados em nome de uma humanidade mais sublime.
Em um aforismo datado de abril/junho de 1885, ele chegou a dizer que não
seria mesmo desejável que a humanidade convergisse para um caminho altaneiro e
reencontrasse a “terra prometida”. Sem dúvida, esse não é o discurso de Nietzsche.
Como pensador da multiplicidade, apostava em que o homem estaria sempre fadado
a existir enquanto pluralidade de engajamentos e que todos estariam fadados aos
mais distintos destinos.
Há lugar para tudo. As experiências se comunicam e não se excluem.
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O andarilho, contudo, não trabalha para produzir um produto — sua


produção é seu próprio devir. Ele é o próprio transformador e consumidor de seus
insumos; daí desprezar as ambições mais hediondas que o capital pode querer
sugerir comprar. O capital do andarilho são suas afecções, suas formas de reagir ao
que o assalta. O andarilho avança em sua marcha não por necessidade, mas por
convicção de que não há outro motivo em que se engajar, senão o de sua constante
reformulação de si.
Por que, então, o andarilho Nietzsche se desinteressa por qualquer sistema
de crenças ou utopia? Porque, para ele, o mundo é pura força, monstruosamente
investido por essa força; para ele, não há nada, só a insistência dessa força, que, por
ela própria, não tem finalidade, não tem princípios. Essa força — que não se
extermina, impossível de se esgotar ou ser consumida — é renovada a cada instante,
sempre de forma transformada, como uma totalidade, uma “economia sem gastos e
nem perdas”72.
Essa força, rodeada por nada, indo a lugar algum, vindo de lugar nenhum e
cujo compromisso único é o de expandir-se (e continuar se expandindo mais e mais,
sem fim), é a razão de o andarilho ter-se tornado um cético. Nada lhe rouba o

72
KSA 11, 38 [12], p. 610-611.
92

destino de dialogar com suas afecções uma vez que, fora disso, o resto serão
colorações ou desbotamentos de algo que não lhe dirá respeito senão como
simulacro.
Força e forças. Uno e múltiplo. Por todas as partes, jogos de forças.
Cruzamentos, armações, composições formações... idas e vindas, retornos, curvas,
fluxos e refluxos. Das mais simples às mais complexas, fixas, móveis, em
contradição consigo próprias, ou não. Portanto, como é improvável que haja o
caminho estreito que levará ao juízo final ou à verdade eterna! Da mesma forma, é
pouco possível acreditar que haja progresso no trabalho sem prever o seu retrocesso
ou regresso. Todo movimento constitutivo aceita, incondicionalmente, o seu revés
— isso está previsto na lógica nietzschiana das forças.
“Mar de forças”, dirá Nietzsche, “que se precipita e se inunda a si mesmo,
eternamente mutável, eternamente de ressaca(...)”73. Não há saciedade, não há
descanso, e, sim, continuada movimentação. Ele postulará ser esse o mundo
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dionisíaco, mundo de eterna autocriação e eterna autodestruição, seu mundo de


“Além de bem e mal”.
Nesse sentido, o problema apresentado pelo autor de Zaratustra tem
implicações temporais. Quando ele diz “reflete-se com o relógio na mão”, é para
dizer que o pensamento do homem moderno agora é devedor do futuro. A diferença
é que esse futuro é imediato, mas, ainda assim, nunca chega. A expectativa em
torno do pregão da bolsa é significativa: o destino do investidor ou do operário está
ligado à condição do mercado, mas um mercado absolutamente virtualizado, onde o
homem comum pode pouco. Ele trabalha para o mercado e sente-se animado pelo
que há de vir. Promessas. A inesgotabilidade do tempo é vivida na exterioridade do
corpo, que, esvaziado, torna-se uma armadura anestesiada destinada a movimentar a
máquina — máquina sempre orientada para o futuro.
Muito antes de Nietzsche, mas não sem o seu conhecimento, havia filósofos,
como Sêneca, cujo compromisso estava em pensar a disponibilidade do corpo e os
engajamentos quanto ao tempo. Em seu Sobre a Brevidade da Vida, faz uma
contundente articulação entre os efeitos de práticas imbuídas por paixão e vício cuja
resultante não é o desprezo pela vida. Sêneca foi pensador de valores do corpo e

73
Ibid.
93

denunciava a postura dos homens que viviam atordoados por suas intermináveis
tarefas: estes, por excesso de acumulação da própria vida — uma vez que se
orientavam para o futuro —, acabavam por dissipá-la através de seus vícios
ocupacionais:

Fazem seus projetos para longo tempo, porém esse adiamento é prejudicial para a
vida, já que nos tira o dia a dia, rouba o presente, comprometendo o futuro. A
expectativa é o maior impedimento para viver: leva-nos para o amanhã e faz com
que se perca o presente74.

Para Sêneca, assim como para o autor de A gaia ciência, o ócio e o lazer são
nobres. A compulsão ao trabalho é vil e indicadora de que vida e morte são mal
equacionadas por esses homens. Pelo fato de estarem cegos diante do devir, pelo
fato de amarrarem suas expectativas no ideal do porvir, não usufruem o único
tempo: o agora. O que Nietzsche chamou de espíritos-livres, Sêneca denominou
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sábios:

Assim a vida do sábio se estende por muito tempo, ele não tem os mesmos limites
que os outros, é o único que não depende das leis do gênero humano, todos os
séculos o servem como a um deus. Algo se perde no passado? Ele recupera com a
memória. Está no agora? Ele desfruta. Há de vir com o futuro? Ele antecede. A
união de todos os tempos em um só momento faz com que sua vida seja longa75.

O andarilho e a trilha do filósofo-artista

Sêneca, Epicuro e Nietzsche: aqui, esses pensadores se irmanam, mesmo


que cada um à sua época e estilo, na perspectiva de trazer à tona a dimensão lúdica
da vida, de uma certa gratuidade junto aos estados de alegria que podem se oferecer
aos homens. A sensação do equívoco, do desperdício e da falta de percepção das
potências de si leva a um afastamento da vivência junto ao corpo e dos elementos
fundamentais que cercam a natureza. Esses três filósofos, cada um à sua maneira,
esforçaram-se por se desgarrar de seus rebanhos e liderar seus bandos de maneira
tal que algum tipo de resistência pudesse ser afirmada junto ao fluxo da barbárie
coletiva.
74
SÊNECA, 2008, p.46.
75
Ibid.
94

O jardim de Epicuro, que tanto inspirou Nietzsche e Peter Gast, pode ser
entendido como um ateliê, zona de corte, refúgio de debandados e, também, como
praça de resistência, elo entre amigos; por fim, um jardim contra a barbárie. Ou uma
política do pensamento contra a fetichização do então tão aclamado e glorificado
progresso. Da mesma forma, a preocupação de Sêneca em testemunhar em favor de
um tipo de vida em detrimento de outra, em que, por exemplo, a amizade ganha
estatuto de valor superior e o olhar analítico se estabelece como estratégia contra a
degradação do corpo, esta visão que intui a necessidade de um estado de serenidade
a ser evocado, tudo isso, caminha na direção de uma existência que se quer em
sintonia com os elementos que mais contemplam do que julgam. Sêneca não
pregava, tampouco Epicuro e Nietzsche. O que esses filósofos tangenciaram através
de suas vivências foi a percepção de que pode haver motivos suficientes para que o
homem, sobretudo o homem “comum”, “mediano”, por uma questão de desaviso,
de ignorância ou mesmo falta de sensibilidade, abdique de uma postura de usufruto
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da terra em nome de algo que não tenha nenhuma implicação com o fruir dos
corpos. Talvez se possa depurar uma pergunta axiomática que represente o ponto de
interseção entre esses filósofos: “Por que vender o corpo?”
Nessa perspectiva, esses filósofos também têm em comum o fato de serem,
eles próprios, barreiras humanas, forças de contenção. Na contramão dos gestos e
movimentos que tentam tomar dos homens seu devir-infantil e perenizá-los como
camelos ou, quem sabe, seduzir alguns a assumir as propriedades do leão, os
filósofos aqui em questão se aproximaram das coisas próximas, do universo mais
imediato no qual um homem pode se inserir. O jardim de Epicuro, os mares de
Sêneca, as alturas das montanhas de Nietzsche: a intuição inequívoca de que há uma
alquimia a celebrar diante dos elementos mais fundamentais do cosmos. A natureza,
que é a natureza das forças, dos corpos, do que há.
No caso específico de Nietzsche, objeto de nossa pesquisa, afirmamos que
sua forma de transvalorar foi através da invenção do filósofo-artista. Ele foi esse
filósofo-artista; o primeiro e único talvez. As experiências de Nietzsche e a
consolidação de sua trajetória apontam para o fato de que tanto a arte quanto a
filosofia constituem campos heterogêneos e permitem o exercício de diferenças e
rompimentos de maneira a provocar o surgimento de formações híbridas.
95

Sabe-se que a experiência do filósofo-artista, em Nietzsche, é idiossincrática


e fica circunscrita e identificada a seu percurso. Não temos como reproduzi-la nem
recomendá-la como modelo. Podemos tangenciá-la, torná-la possível de ser
mapeada, visível... Podemos inspirar-nos com ela e tomá-la como uma referência.
A partir dessa tese, apresentam-se ideias e hipóteses que evidenciam os
movimentos de potência que permitiram a experiência singular desse homem na
direção do que cunhamos –– através da boca do próprio Nietzsche –– de vivido.
Problematizar questões em torno dessa fascinante experiência nos coloca,
queremos crer, em condições não de repeti-la ou reproduzi-la, mas de reencontrá-la
enquanto potência do pensamento. Cremos ser possível estar próximo ao que ele
inventou e testemunhou para que imprimamos, à nossa maneira, algo que ao menos
possa tangenciar esse lugar que Zaratustra, talvez como visionário, como elemento
de pura potência, esteve próximo de habitar. Qual era, senão essa, a esperança do
próprio Zaratustra ao anunciar o além-do-homem?
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Ouvir Zaratustra, o andarilho, entendê-lo como artista –– eis o nosso intuito.


E, também, tornar-nos sensíveis ao seu périplo, à sua fascinação, ao seu horror e à
sua graça; reparar os sons provenientes das suas desinibidas gargalhadas diante dos
desafios na terra habitada pelos homens e animais. Dançar com Zaratustra, ousar
acompanhar um filosofar –– artístico. Corpo em movimento, corpo em ação. A arte
como expressão do desprendimento, como validação da reinvenção das formas de
troca entre os seres humanos/inumanos.
Na trilha do filósofo-artista, desfilam todos os elementos que desafiam a
metafísica: a escrita poética, a autobiografia, a vasta correspondência, a música, os
ditirambos, os transbordamentos dionisíacos, o corpo, as afecções e a própria
resultante disso: a experiência. Esta última, como no jogo de forças já anunciado, só
faz reverberar a si própria neste eterno retorno do mesmo, emanando signos que vão
do fascínio à transvaloração.
O filósofo-artista escreveu com seu sangue e publicou com seu corpo,
apagando os contornos e as delimitações dos objetos. Já não se poderia mais, aqui,
falar de uma filosofia que não fosse artística, assim como “um deus que não
soubesse dançar”. Nesse ethos nietzschiano que, como já dissemos, é afirmado
pelas insurgências do pathos afirmativo, já não há mais espaço para a crença nas
96

armaduras impostas pelos ideais ascéticos. Talvez seja essa uma forma de enunciar
essa filosofia que, segundo Heidegger, reverteu o platonismo. Essa experiência
inaugurada por Nietzsche e cultuada por muitos que se seguiram, decreta a “ruína
moral do intelecto” tal qual assinalou Klossowski, e abre a possibilidade de se
desmistificar o real para, em seguida, investi-lo de potências do falso –– a base para
a criação artística76.
Por isso, interessam-nos aqui os prólogos (os que foram escritos a
posteriori, os rascunhos, as anotações, as composições musicais e tudo aquilo que
não foi publicado). Sabemos hoje que o volume de material denominado de
“escritos póstumos” é três vezes maior do que o que foi publicado “oficialmente”.
Esse material reúne a intimidade de Nietzsche e aponta para esse fazer filosófico do
vivido em seus detalhes.
Para depurar essa experiência do filósofo-artista, é preciso estar nos lugares
onde a sua linguagem se constituiu. É preciso se aproximar do que há de artístico
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em Nietzsche e trabalhar essa instância como elemento potencializador do


pensamento do vivido.
Nesse sentido, chamamos a atenção para as composições musicais desse
filósofo-artista e sua experiência com a música...
Nietzsche compõe como pensa e pensa compondo. Seu ouvido musical,
desenvolvido desde sempre, é o mesmo que escuta e decodifica suas impressões
tanto no campo da filosofia quanto no da política. Seu ouvido, poderíamos arriscar
dizer, é uma produção de seu corpo e, metonimicamente, assume as vias de um
órgão independente. Se levarmos essa afirmação ao extremo, chegaremos a dizer
que, em Nietzsche, a musicalidade é a linguagem princeps e, ao mesmo tempo, a
grande produtora de sentido. Filosofar e fazer música, para ele, se tornam práticas
que se imbricam e se fundem em um exercício estético singular. A singularidade,
76
Acompanhemos esse raciocínio de Pierre Klossowski. Sua intuição sobre o desmistificar e voltar a
mistificar (papel da arte) nos parece extremamente bem-sucedida. Entender o que está proposto aqui
por Klossowski nos permitirá entender ao que há de potente no argumento nietzschiano acerca da
arte: “O que vemos atuar aqui é uma noção positiva do falso, base da criação artística, estendida a
todos os problemas levantados pela existência. A mistificação, segundo Nietzsche, não é apenas o
modo de agir do potentado – é o fundo da existência. Desmistificar, até então, pertencia à ação
inconfessável do sábio. Desmistificar, porém, para melhor mistificar, não mais para enganar, mas
para favorecer as forças obscuras naquilo que elas têm de criador, de fecundo, torna-se a prática, não
mais do filósofo, mas do psicólogo, particularmente de Nietzsche, no seu esforço para superar o
infortúnio em que a desmistificação científica, ao arruinar os valores, teria precipitado a humanidade
ocidental. (KLOSSOWSKY, 2000, p. 154)
97

aqui, encontra seu sentido no fato de que a música nietzschiana é absolutamente


autoral e intransferível.
A música de Nietzsche é o tema do próximo capítulo.
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Capítulo 3
Os estados musicais em Nietzsche

Temas e motivos: variações em eterno retorno na música de Nietzsche

A música e sua semântica atravessaram os interesses de Nietzsche ao longo


de toda a sua vida. Poucas coisas lhe foram tão ou mais presentes do que a música.
A partir de suas relações com ela, ele construiu sua corporeidade e, portanto, seu
pensamento. Nesse caso, pode-se perceber que a música esteve ali como um
elemento inapreensível, como algo fugidio e embaraçoso ao mesmo tempo que
incitante, desafiador e vitalizante.
Não é possível, portanto, estabelecer um fio único condutor sobre o
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pensamento de Nietzsche a respeito da música. Toda tentativa de reconstruir um


percurso linear nesse plano ou de fazer aparecer uma lógica que pudesse esclarecer
o “desenvolvimento” de seu pensamento musical será falha, parcial, quando não,
ingênua. Ou seja, traçar uma história da música em Nietzsche é um esforço
incoerente com a própria trajetória do compositor de Nachklang einer
Silvesternacht (Ecos de uma noite de ano novo).
Os acadêmicos sistematizadores77 (sempre eles!) há muito tempo, e de
diferenciadas formas, tentam estabelecer uma espécie de traçado coerente que
pudesse caracterizar os desdobramentos lógicos do pensamento de Nietzsche sobre
a música78 –– como se fosse possível pensar uma coerência de “fio a pavio” a
respeito do que disse o autor de Assim falava Zaratustra sobre o tema. Essa
coerência não há. Sobretudo nesse terreno, Nietzsche exerce sua maior prerrogativa:
a de pensar através da reversão dos polos valorativos, das perspectivas. As
oscilações, variações e retornos compõem muito da dinâmica que caracteriza o
pensamento de Nietzsche, não só sob a perspectiva temática da música como
também em âmbitos gerais. Para compreender o alcance do que está aqui afirmado,
77
Vejamos o que escreve Nietzsche sobre o assunto em uma máxima de Crepúsculo dos Ídolos:
“Desconfio de todos os sistematizadores e me afasto de seus caminhos. A vontade de sistema é uma
falta de integridade.” (GD 26, KSA, p. 63)
78
Aqui não se pode deixar de assinalar o caráter vicioso que existe nos acadêmicos de plantão
quando tentam, a todo o custo, transformar uma experiência em objeto do conhecimento.
99

é necessário entender que a música não é um elemento agregado ou somado ao


todo; antes de tudo, ela é o elemento articulador da experiência. Não se pode
avançar em Nietzsche, se não se der à música a condição de fundadora e
possibilitadora do pensamento.
É preciso insistir na ideia de que seu pensamento se dá em movimentos, há
uma pletora de ritmos e harmonias que se quebram com a entrada de outros; daí ser
possível encontrar afirmações contraditórias ou mesmo incoerentes. Do mesmo
modo que uma música sofre variações, que ela é entrecortada pela dinâmica, seu
pensamento sobre o tema obedece a essas mesmas características. Aquilo que move
também é aquilo que estanca. O que pode ser afirmado em um contexto, em uma
época ou em um registro, pode ser negado quando outras dimensões se fazem
apresentar. Por exemplo: Nietzsche é romântico ou um crítico do romantismo? Essa
pergunta é tipicamente uma cilada; não pode haver resposta exata. Muito menos,
deve-se crer que Nietzsche, em algum momento de sua vida/obra, transitou de
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forma dialética –– isto é, de forma a superar a diferença através da negação ––


quanto ao romantismo. Portanto, ele pensou com e contra o romantismo. Não há
como destacar, compartimentar –– em nome de qualquer interesse metodológico ou
pedagógico –– o que em Nietzsche se constituiu como afirmação fundada na
ambivalência.
Música, em Nietzsche são afecções. As afecções, são musicais, obedecem à
fisiologia do som, do ritmo e da melodia. Por isso, trata-se de um registro de
transitoriedade e nunca de representabilidade. As afecções não tem classificações,
não se adéquam ao regime do tempo cronológico e não de excluem mutuamente. O
registro das afecções é inclusivo e faz rebater a diferença por ela própria. A música
de Nietzsche - que não é outro nome para o seu pensamento - não será nesta tese
escutada dentro de uma seqüência monocórdica mas na dissonância das
harmonizações.
É preciso dizer que não há uma estética definitiva da música em Nietzsche e
que tampouco existe uma posição única sobre as manifestações relativas à música
por parte do filósofo. Também não há, como se pode encontrar em Schopenhauer,
uma metafísica da música, por um motivo muito específico: a música em Nietzsche
nunca foi um conceito metafísico.
100

O que se pode dizer sobre a música em Nietzsche? Certamente, que ela tem
múltiplas valências e alcança um lugar privilegiado no contexto de sua obra
exatamente por essa peculiaridade. Essas múltiplas valências devem ser percebidas
em suas idiossincrasias, isto é, tomadas desde aquilo que são em si (por ex.: estudar
ao piano, tocar piano a quatro mãos, cantar, compor, escrever etc.), e, também, em
suas implicações coletivas (criticar Parsifal, respondendo com Zaratustra, elogiar
Carmen através da oposição norte/sul, participar e depois criticar o projeto de
Bayreuth, amar e odiar Wagner, compor com Peter Gast um novo arranjo para o
Hino à vida). Com isso, percebe-se que é possível destacar uma gama diversa de
incidências que a música oferece na experiência de Nietzsche, de tal maneira que
seu pensamento deva ser escutado, ele próprio, como música. Ou seja, ao se levar
em conta toda a multiplicidade de encontros e resultantes que derivam do interesse
de Nietzsche pela música, apreende-se que a música esteve, ela própria, sustentando
o campo de vivências e experiências desse filósofo-músico.
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Eis aí o sentido do que existe de fisiológico em Nietzsche.


Entramos agora no campo daquilo que é específico nesse pensador: para
acompanhar a sua experiência, é preciso validar sua vivência como filósofo-músico.
Então, é necessário realizar um movimento de abertura do significante música e
operar uma transfiguração de seu sentido. Para tal, tem-se, ainda, que lançar
perguntas da seguinte ordem: que implicações pode haver para um filósofo quando
se é um exímio improvisador ao piano, como foi no seu caso? O que dizer das suas
composições e que músico ele foi? Que críticas e análises ele conseguiu tecer a
respeito da música, sabendo-se que isso teve um peso e importância considerável
em sua obra escrita? Costuma-se, de pronto, dar-lhe os créditos, reconhecendo
como sua a seguinte vulgata: “A vida sem música seria um erro”. Porém, é
necessário perguntar: de que tipo de música fala Nietzsche aqui? Em que sentido a
vontade de potência e o pensamento fisiológico de Nietzsche se interessam pela
música ou, mais ainda, são constituídos por ela? O que dizer de um filósofo que
canta, dança, compõe e que se permite amar e odiar pelos signos desses atos? Como
entender que sua escrita poética e aforismática é, em si, musical? Por que Zaratustra
pregava e contemplava a vida através de ditirambos? Como a experiência do
andarilho e a do próprio Zaratustra se apropriam do que Nietzsche vive na música,
101

de maneira tal que o flerte com o ponto abismal trazido pelo pensamento do eterno
retorno seja, ele próprio, musical?
Vê-se que é possível abrir diferentes frentes de indagação no tocante ao tema
da música. Se apresentamos essas questões — cuja marca é falar do vivido musical
em Nietzsche a partir de diferentes angulações —, é porque acreditamos que, dessa
forma, nos é possível deslocar o centro do interesse do estabelecimento de uma
teoria da música em Nietzsche para reconfigurar a questão, entendendo-a como
“movimentos musicais” em seu pensamento.
O leitor, aqui, perceberá que nosso interesse converge muito mais para a
genealogia da música na obra de Nietzsche do que, propriamente, para uma análise
histórica da música que o filósofo produziu. Ou seja, nossa intenção é ler a música
de Nietzsche sob a ótica e os princípios que regeram as análises do próprio
Nietzsche acerca da cultura.
Portanto, a partir de agora, o que se seguirá é uma abordagem multifacetada
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sobre a dinâmica que articula música/vivência/experiência e pensamento em


Nietzsche, de maneira a fazer sobressair os elementos que o aproximam daquilo que
ele próprio cunhou sob a insígnia do filósofo-artista.
Para melhor conduzir a proposta anunciada, apresentam-se aqui quatro
aspectos que compõem o que chamamos de “uma semântica da música em
Nietzsche”. Eles são não classificatórios, não são cronologicamente instituídos, não
obedecem a nenhuma lógica de causa e efeito e apresentam-se como dimensões
múltiplas da experiência de Nietzsche com a música. São aspectos que devem ser
tomados como elementos marcantes no tocante à interseção entre vida/obra/arte, e
cuja análise proporcionará um entendimento específico sobre o pensamento de
Nietzsche. São eles:

1) Nietzsche e a arte de improvisar ao piano;


2) a experiência do compositor Nietzsche;
3) Manfred Maditation: uma antiabertura ao estilo de Nietzsche;
4) a música na fisiologia de Nietzsche ou o eterno retorno de Dioniso.
102

Nietzsche e a arte de improvisar ao piano

Desde muito cedo, o próprio Nietzsche buscou a educação musical. O piano,


peça nuclear nos lares das famílias alemães daquela época, esteve desde sempre no
centro dos acontecimentos em sua casa. O pai do filósofo, pastor protestante, que
morreu quando ele tinha 4 anos, deixou-lhe como “herança” o trato com a música
sacra e o interesse pelo improviso ao instrumento. Aos 9 anos, ele já tocava piano,
compunha e vivia a música como prioridade entre os seus interesses mais caros.
Mais tarde, já interno em Pforta, tornou-se um adolescente disciplinado, habituado
aos rígidos esquemas de estudo que lhe tomavam os dias de forma exaustiva. Ali,
quando queria descansar do ritmo pesado de leitura e escrita, costumava alugar
horas no piano da escola para que pudesse praticar. Sua correspondência mostra não
só o quanto ele costumava se permitir o estudo e o lazer ao piano, como também dá
testemunho de que os pedidos mais solicitados à sua mãe e à irmã eram o envio de
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partituras para que ele pudesse tocar.


Deve-se lembrar que, àquela época, a música só podia ser executada ao vivo.
Tirante missas, saraus, festas, concertos e eventos, a música ouvida era a que se
tocava em casa; por isso, o processo de ligação das pessoas com a música se dava
de forma diferente do que se verifica hoje em dia. Em geral, as famílias
costumavam se reunir junto ao piano, como um ritual, quando cantavam e
dançavam ao som do piano que era tocado por um ou mais familiares. Dessa forma,
a relação das pessoas com a música implicava uma participação ativa, um
“executar”, de maneira tal que as composições ouvidas eram produto do que aquele
grupo informal era capaz de criar. Portanto, a formação musical era parte integrante
da educação das pessoas. Não se tratava apenas de uma relação de prazer, desfrute
ou entretenimento, mas, sobretudo, da forma de se estabelecer e manter um ethos
onde a música tinha a função de articular as relações humanas em múltiplas
instâncias.
Para Nietzsche, desde muito cedo, o piano constituiu-se como uma extensão
de seu ouvido. Escutar com os ouvidos de um teclado do piano implica ouvir
através do ato de buscar expressão. Aí, encontram-se, em uma espécie de polo
convergente, elementos tais como sensibilidade, intensidade, temporalidade. A
103

dinâmica tem por característica fazer reverberar de forma polifônica os elementos


que estão em jogo na interpretação ao piano. Aí, inaugura-se para o músico
Nietzsche uma gama de afecções que perfazem seu modo de se interessar pelas
coisas: o ouvido-teclado como órgão sensorial interessado no som e nos seus
sentidos.
Nietzsche era um exímio improvisador ao piano. O que é improvisar? Trata-
se de criar em tempo real, de instituir a música dentro do imprevisto. O improviso
admite versões híbridas de temas, de modo a torná-los plásticos, estendendo-os aos
limites da desconstrução, mas sempre permitindo que a referência originária (o tema
proposto) tenha a chance de voltar mais uma vez. Improvisa-se para testar, para ruir,
para alongar. São todas essas operações plásticas que recortam a suposta totalidade
(unidade melódica/harmônica do tema) de maneira a multifacetá-la em novas
trilhas. Improvisa-se para recriar a música onde ela não foi ainda pensada.
Improvisa-se para, num franco exercício de complacência ao desfiladeiro errático
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das cadeias melódicas, fazer surtir um mais além da origem. Com isso, a
improvisação não nega o tema, porém o transforma ao consagrar ao inesperado dos
atos a tutela de recodificar a origem temática.
Não é à toa que Nietzsche era capaz de ficar por horas e horas improvisando.
Vê-se que, desde muito cedo, a música lhe mostrou o caminho da expressão e a
valorização do pathos sobre o ethos. Não é possível improvisar sem contar com a
intenção do desprendimento — isso porque só se improvisa ao tornar-se cúmplice
do risco, da vontade de dizer o mesmo de forma alterada. Ou de envergá-lo até que
ele se diferencie de si, mas, ainda assim, permaneça o mesmo. Nisso, improvisar é
instituir linguagem, é recriar os códigos de maneira tal que se possa estar no jogo
das aparências de forma absolutamente imanente. Não se improvisa,
necessariamente, para compor uma nova ordem, e , sim, para esticar uma forma até
torná-la outra coisa a partir dela própria. Isto é, ao improvisar-se, redime-se a forma
de sua própria justeza ao reenviá-la aos seus avessos, aos seus desmembramentos.
O Nietzsche improvisador ao piano tornou-se o Nietzsche pensador.
Improvisar e pensar — dois movimentos similares quanto ao que tange o
transgressivo. A obra de Nietzsche é composta por aquilo que foi estabelecido (seus
textos publicados), mas é, também, constituída por uma extensa gama de
104

fragmentos, notas e observações. A verdade é que, com a publicação oficial desses


“fragmentos póstumos”, com a inclusão da vasta correspondência e das próprias
músicas e anotações musicais de Nietzsche, sua obra ganhou contornos amplos e
permitiu-se constituir através da tensão entre o que foi intencionalmente publicado
(autorizado) e aquilo que foi resgatado sob o ponto de vista do espólio, das reservas.
Chegou-se ao ponto em que a obra fragmentária póstuma tornou-se mais extensa do
que o material publicado sob a direção do próprio Nietzsche em vida.
Hoje em dia, não há leitura ou pesquisa que não se interessem pela obra em
sua totalidade. Como dispensar a leitura dos escritos preparatórios de A gaia
ciência, por exemplo? Como dispensar as inúmeras observações sobre a dimensão
fisiológica do pensamento da vontade de potência contida nos fragmentos
póstumos? Para o leitor interessado em Nietzsche, não pode fazer sentido
desconsiderar os elementos que cercam a obra tomada a partir das inúmeras formas
que ele encontrou para expressar seus pensamentos.
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Nesse sentido, a distinção entre obra publicada e obra póstuma deve se fazer
apagar. O que há em Nietzsche são estudos e ensaios no sentido propriamente
musical, ou seja, versões que poderiam ter sido publicadas no lugar das ditas
“oficiais” e que não o foram por questões de adequação. Como distinguir o que era
um pensamento de suporte ao que foi efetivamente publicado daquilo que teria sido
um pensamento “superado” ou descartado? Nietzsche preservou seus documentos
porque sua forma de pensar admitia a diversificação dos extratos dos pensamentos.
As franjas, os contornos e as inversões não contestam nem invalidam o pensamento,
no entanto fazem dele algo abrangente, polimórfico. Não se trata de escrever a
verdade, mas sobre ela. Portanto, a báscula entre o recalcado e o seu retorno, ou
seja, neste caso, entre o que não foi publicado e o que foi escolhido para ser
conhecido, é mais importante do que a polarização do pensamento. Aqui, o
recalcado não pode ser entendido como o preterido, como o que foi desqualificado,
e, sim, como outra versão, que, por razões das mais diversas (conveniências
múltiplas, por que, não?), ficou nos bastidores. Todavia, o trabalho do autor deve
ser mais bem compreendido se tomado como um todo fragmentado onde as partes
representam constructos, elementos de ligação, partículas inervadoras. O recalcado
e suas versões são imantações do mesmo, de um acontecimento maior, do esforço
105

de estar existindo. Para o estudioso de Nietzsche, é necessário fazer circular as


distintas angulações do que ele produziu, pensou. Bascular entre as polaridades
criadas pelo recalque, permitir reordenações entre a gama de materiais que o
filósofo deixou não é outra coisa senão admitir sua obra como um manancial de
movimentos que ecoam de acordo com o corte que neles é dado. Não se entenderá
Nietzsche se não for possível admitir seus opostos, suas variações, suas mudanças
repentinas de tonalidades, enfim, suas dinâmicas.
Não se pode dizer que Nietzsche pensou de forma unidirecional, porque sua
forma de instituir as ideias é afirmativa. Toda afirmação admite seu contrário, sua
reversão, e os argumentos se fortalecem mais pelo exercício da própria báscula do
que pela preocupação em discernir o verdadeiro do falso. Afirmar é arriscar uma
linha a partir de sua força, mas não necessariamente pressupor a aniquilação de
outras linhas (outras afirmações). Ou seja, o pensamento afirmativo opera com a
intensidade e multiplicidade das forças e não se confunde com a postura
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maniqueísta de pensamentos baseados em verdades totalitárias que se utilizam do


recalque para negar as contradições, imperfeições e amplitudes das coisas.
Nesse ponto, as versões esquecidas ou preteridas de seus aforismos, os
fragmentos “abandonados” são o próprio improviso. Aqui, a forma musical se
irmana à forma da escrita, provocando o surgimento de uma obra que deve ser lida
em seus diferentes níveis ou andares de maneira tal que estes se comuniquem e se
harmonizem (mesmo que em dissonância) entre si. Trata-se de entender que a obra
de Nietzsche, tomada em seu abrangente espectro, deve ser lida tal qual se lê uma
partitura musical. As notas musicais não se anulam umas às outras, não se
incompatibilizam no choque, nem devem ser escutadas isoladas; ao contrário,
ganham força e beleza ao se combinarem na sequência do tempo. As notas musicais
(e também as que serviram de ensaio aos textos consagrados de Nietzsche) são
afirmações destinadas a suportar as diferenças. Evidentemente, há combinações que
ferem alguns ouvidos mais do que a outros. E, também, há os que se agradam e os
que se desagradam quanto aos efeitos do mesmo som. Seguindo Nietzsche, cabem
as perguntas: “Escutar uma música de dia é o mesmo que escutá-la à noite?”; “Uma
música que se escuta sob o impacto de uma tristeza é a mesma que se escuta quando
a alegria se faz presente?”; “É possível escutar a mesma música a partir das suas
106

diferentes versões ou interpretações?”; “Uma música é, sob o nível absoluto, boa ou


má?”.
Se o Nietzsche que improvisava ao piano é o mesmo que improvisa ao
pensar, então as próprias composições musicais do filósofo devem ser tomadas
muito mais como improvisos do que como obra estabelecida. Menos por falta de
técnica musical ou competência e muito mais por estilo, ou seja, pelo fato de que
Nietzsche se interessa pelo pathos, pelos efeitos das afecções, é que suas
composições musicais devem sem compreendidas. Dessa maneira é que é possível
pensar em uma identidade da forma de compor/improvisar com o modelo criado por
Nietzsche para pensar. Aqui, novamente é preciso dizer que tanto vivência como
experiência se constituem como dimensões propulsoras de tudo o que o filósofo
formulou, independentemente se como música, ditirambo ou aforismo.
Pode-se compreender Nietzsche ao piano como uma máquina de guerra79 —
o piano como aparelho de mistura entre o sensível e o técnico, entre o afeto e o
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pensamento, entre a defesa e o ataque. Estar ao piano é estar em fluxo, munido de


uma ferramenta que faz conectar o corpo aos sons e às ideias. Uma passagem
curiosa contada pelo amigo Paul Deussen mostra como Nietzsche se valia de sua
capacidade de improvisar para falar. Em 1865, portanto, aos 21 anos de idade, o
filósofo foi a Cologne para o “Rhineland Music Festival”. Tratava-se de um festival
de música que fazia convergir músicos e amantes da música vindos de diferentes
partes da Europa. Tomado pela alegria de estar vibrando música, Nietzsche pede a
um guia informações sobre um restaurante. É então conduzido a uma instalação que
verificou, ao entrar, tratar-se, na realidade, de um cabaré onde não faltavam
prostitutas oferecidas. Nietzsche se viu em dificuldade quando aproximadamente
seis prostitutas o cercaram e o olharam de maneira tal que esperavam servi-lo
sexualmente. Essa experiência constrangedora e inóspita teria tido um desenlace
dramático não fosse a saída encontrada pelo então tímido músico. Diante de
tamanha insinuação, de olhares que lhe pareciam obrigar a um consentimento
quanto aos serviços prestados pelas moças, Nietzsche, que, até então, havia
permanecido mudo e sem reação, conseguiu ver um piano no estabelecimento e, em

79
Evocamos aqui o termo introduzido por G. Deleuze e F. Guatarri em O anti-édipo.
107

um ato de defesa, absolutamente inusitado, dirigiu-se vorazmente ao instrumento e


pôs-se a improvisar alguns acordes para fugir àquela situação.
A música o salvou de ser engolido. Sentiu-se de imediato amparado e
fortalecido pelo encontro com sua máquina de existir para onde, confessou, ter sido
impulsionado por puro instinto. A partir da música produzida nesse encontro,
recompôs-se e impôs-se de maneira tal que seu corpo, segundo suas próprias
palavras foi “descongelado”.
Esse singelo exemplo, quer-nos parecer, fala de como o piano, para
Nietzsche, era de fato o lugar de onde ele podia falar — a música produzida como
resposta, como manifestação possível para aquilo que não encontrava expressão
pela palavra. O piano se constituiu para o filósofo como campo de organização de
seus afetos e de sua forma de aplacar muito de sua angústia.
Aos seus interlocutores, àqueles que lhe desafiavam, Nietzsche respondia
com música. Ela lhe servia como elemento de integração junto a pessoas e ocasiões,
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como objeto de discussão, como ofertas em ocasiões festivas, por exemplo.


Essa música, da qual ele se apropriará cada vez mais, terá a sua marca, a sua
assinatura. A despeito de qualquer tipo de classificação acerca da qualidade do que
produziu musicalmente, Nietzsche terá sido um filósofo-compositor.

A experiência do compositor Nietzsche

Nietzsche deixou mais de sessenta peças musicais (muitas inacabadas) entre


lieder, oratórios, hinos e orquestrações. Suas composições eram efeitos imediatos
de sua prática ao piano; originavam-se de sua forte busca pela expressão e eram
fruto, na maioria das vezes, de emulações retorcidas por improvisos. Essas músicas
eram influenciadas por aqueles a quem admirava e costumava interpretar ao piano
— dentre os principais, Palestrina, Beethoven, Schubert, Schumann e o próprio
Wagner. Ele próprio escreveu e arranjou a maioria das partituras a que temos acesso
historicamente. Como já foi dito, a música, a poesia e a arte eram, naquele contexto,
elementos constituintes da complexa e densa educação a que o filósofo se submeteu
desde sua puberdade. Nesse sentido, escrever uma poesia, proferir uma palestra,
108

manter correspondência com amigos, ler, estudar uma variedade de assuntos e


disciplinas de forma sistematizada e participar de saraus e festivais, tudo isso fazia
parte de um conceito de formação do homem junto ao coletivo, onde não havia o
vício ou necessidade da especialização. Sob a perspectiva de alguém que aspirasse
ao conhecimento, todos os saberes, técnicas e práticas se articulavam de forma a
constituir posturas que permitissem uma inserção ampla e consistente no mundo.
Assim, a música de Nietzsche fez parte do seu modo de conhecer e viver a
odisseia humana.
A música que Nietzsche ouvia executando era também aquela que lhe
inspirava para arriscar suas próprias composições. O processo sempre foi ligado às
suas atividades intelectuais e refletia o modo como ele apreendia algo que estudava.
Não seria possível desmembrar o papel da música na vida de Nietzsche ou mesmo
alocá-la como simples prazer ou diletantismo. Isso porque a formação de Nietzsche
se organizava como um todo em que a incidência do artístico era o próprio leit
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motiv, o próprio catalisador do seu pensamento. Portanto, a música, na


complexidade de seus aspectos, era sempre vivida como recepção e manifestação de
ideias, formas e expressões de maneira tal que estava em sintonia com o
pensamento. Pensar era executar música ao piano e compor era efeito direto das
afecções.
O critério para aquilo que era bom esteve sempre ligado ao que lhe pudesse
alegrar, motivar, inflamar. Partia ele de um certo princípio: nada que pudesse ferir,
maltratar ou resistir deveria ser cultuado. Contudo, havia júbilo mesmo em um certo
tipo de dor saudosista que, em geral, era redimida pela própria alegria da vida. É
como se uma dimensão de sustentação corpórea em Nietzsche fosse sempre ativada
pela música que lhe invadia. Uma invasão que o obrigava a se posicionar
esteticamente em relação não só ao que seria da ordem musical ou artística, mas
também, sobretudo, ao que fosse da ordem da própria existência.
O lugar ocupado pela música foi, por assim dizer, o de uma mola mestra que
articulava todos os demais interesses. Não havia opinião, aliança, engajamento,
crítica, política ou usufruto que não passassem necessariamente por um crivo
musical, uma espécie de dispositivo capaz de regular e dar forma ao fluxo das
pulsões.
109

Exprimir-se sob uma forma específica, entregar-se ao exercício de um tipo


de recorte melódico, era a condição para que o todo pudesse fazer sentido. Se o
piano era a extensão do ouvido, o prolongamento dos dedos, o som era o
rebatimento da própria onipresença necessária do ar que se respira. Inspira-se um
certo tipo de som, expira-se o mesmo som agora já diferenciado a partir do
refinamento idiossincrático de suas paixões. A relação de Nietzsche com o compor,
o ouvir e o executar, assim como o falar, foi sempre fisiológica. O que é exatamente
o fisiológico nesse contexto? É justamente a continuação da vida, a revalidação do
compromisso de manter-se vivo possibilitado pela compatibilidade entre o que se
ouve, o que se metaboliza e o que se faz propagar a partir dos centros nervosos do
corpo. Os critérios são sempre fisiológicos uma vez que a música, em Nietzsche, é
concebida como a fonte que humaniza o corpo.
Daí o porquê de o filósofo afirmar que “sem a música, a vida seria um erro”.
Na realidade, ao ignorar-se a música, está-se a ignorar a própria vida uma vez que
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as duas são designações distintas do mesmo. A vida é música e o erro é não viver.
Pode-se viver a vida sem, efetivamente, vivê-la? Sim, e a isso Nietzsche chama de
“decadência”. Optar pela idealização oriunda da fetichização de uma semântica é
dar destino em palavras ao que opera como pluralidade. É negar o corpo e
arregimentar valores em nome da vida. Aqueles que ignoram a vida como música
(a música fisiológica, não a música teatral-representacional, como ele a criticou em
Wagner) são os que erigem causas e nelas acreditam como direção inequívoca,
como se a vida tivesse que obedecer a um caminho estreito, uma linha reta que vai
de A para B. Ou seja, os decadentes assassinam a música na sua dimensão mais
primitiva, errática, porque lhes urge a necessidade de atribuir um telos à vida. Para
Nietzsche, esse é o maior equívoco já que a vida não se justifica nem remete a
algum caminho predeterminado. Há algo de caótico na dispersão do som que
interessa ao filósofo.
Sigamos em frente com o que há de fisiológico na música segundo
Nietzsche: habitar um corpo é habitar ritmos. Não escutá-los, tapar os sentidos para
as percepções, é o mesmo que negar a vida na sua origem. Nietzsche quer ler a
civilização como sintoma, como recorte moral e mostra que, para o exercício do
crime, assassina-se a música. Novamente, aqui, cabe o recurso que sempre foi caro
110

a Nietzsche: a música e o corpo se imbricam em um pathos; já a necessidade e a


urgência da construção da razão — irmanada com a compulsão a fazer da
significação o lar da experiência humana — dizem respeito à submissão do pathos
através da construção do ethos. Não que Nietzsche proponha algum tipo de
revolução: ele acredita que é possível algum tipo de inversão. O que aconteceria se
o humano suportasse as valências do som até dobrar as rígidas injunções da
palavra? E se a música sobressaísse como código de linguagem? Que corpo habita o
homem quando ele escuta sua sonoridade e, a partir dela, codifica o resto? Decerto,
um mundo regido por música, uma estética que brinda antes o ritmo do que a
liturgia da palavra.
De onde vem o som? Do corpo — dirá Nietzsche —, do corpo provocado,
alterado, impelido. O som como primeira resposta à quebra de totalidade vivida
utopicamente por um corpo que está prestes a deixar de ser quase nascido para
tornar-se vivo. O choro inicial, o tal grito primal, a esfera rascante que introduz o
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neófito no instante imediato que lhe subtrai a cena nirvânica e o impele a viver. “Ou
vives ou torna-te nada!” Eis a voz silenciosa, que nunca enuncia tal injunção, mas
que se acopla ao vivente de maneira a empurrá-lo junto à encruzilhada que o obriga
a aceitar a vida. Em Nietzsche, a injunção acima ainda permite um desdobramento,
este, muito mais decisivo: “ou vives a música, ou torna-te um decadente de si
próprio!”.
O que é o ritmo? Para Nietzsche, é sempre o ritmo do corpo. O ritmo das
pulsações sanguíneas, o compasso do bater do coração, o tempo do metabolismo, o
compasso da respiração, o andamento dos passos, e assim por diante. Uma vez vivo,
uma vez incitado a trilhar uma saga na amplitude da existência, então sempre
musical. Não há exterioridade tampouco interioridade quanto ao som. Ele é veículo,
combustível, insumo, matéria prima. O som é, antes de tudo, orgânico; suas
valências imperam de maneira tal que fazem engendrar a linguagem. A música,
sequenciamento do som e seus derivados, já é a linguagem, a experiência
organizada mesmo que de forma incipiente.
Na hierarquia do pensamento fisiológico de Nietzsche, a palavra já é indício
de indecência, de vulgarização, de decadência. Quando a palavra se faz engendrar, é
por roubo ao que é musical. Ela emula o som, toma o lugar dele, opera
111

metonimicamente, esgarçando a malha do ruído até tornar-lhe objeto de troca. A


palavra toma a cena para diluir e tornar estúpido o que era pura potência musical.
Dirá Nietzsche: “A palavra despersonaliza: torna comum o incomum.”80
A música sempre ocupou em Nietzsche a esfera do sagrado, mesmo que ele
não tenha assim se expressado sobre ela. Sua formação musical — autodidata, é
preciso frisar — deu-se, primeiramente, sob forte influência de sua educação
religiosa. A música sacra sempre participou de sua vida, tanto que, a partir dela, o
filósofo estabeleceu suas primeiras experiências como compositor.
Em 1861, Nietzsche estava em fase de conclusão de seu oratório de Natal.
Em carta a Gustave Krug e Wilhelm Pinder, ele descreve suas opiniões sobre esse
gênero sacro. Em princípio, ele acreditava que o oratório fosse para a música sacra
o que a ópera é para a música profana. Porém, a partir de então, sua ideia seria a de
que o oratório é sempre uma música de grandiosa simplicidade, portanto uma
música que “eleva a alma”. Tudo isso sob um “ponto de vista estritamente
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religioso”.
À época, Nietzsche trabalhava em sua Einleitung (uma introdução ao
oratório de Natal) que preparava o clima para o nascimento de Cristo. Trata-se de
uma bela composição introdutória cuja maior característica é dotar o piano de
características sóbrias, objetivas, cristalinas. O rigor da forma, possibilitando a
simplicidade e a imediatez de impressões, deveria ser capaz de dar à música um
caráter mais elevado, mais religioso segundo a própria concepção de Nietzsche. A
preocupação de Nietzsche era conceber o oratório com menos partes, mas estas
sendo mais longas, dando à peça um caráter de unidade. Tal técnica poderia ampliar
o alcance do oratório para os leigos, e, definitivamente, mostraria a superioridade
deste em relação à ópera.
O oratório deve ser mais sentido do que compreendido, dirá Nietzsche. Para
ele, caberia sempre o recurso musical da fuga, uma vez que ela é capaz de
sensibilizar mesmo aqueles que não têm cultura musical. Essa fuga deve ser,
contudo, rápida e potente, sem que o tempo mude bruscamente, para não se tornar
desarmonioso.

80
WP 810.
112

O que importa é a música poder manter sempre a sua marca do sagrado, que
ela se afirme como marca do divino.
Sentencia assim, aos 17 anos, o jovem compositor a respeito do oratório: “É
necessário que o oratório satisfaça aos três seguintes requisitos: manter unidade e
coerência ao logo de toda a extensão, em seguida tocar profundamente o coração e,
enfim, ser sempre estritamente religioso e ser capaz de elevar a alma”81.
Elevar a alma, ou seja, transpor o estado de si ao máximo de sua
figurabilidade, pode ser aqui entendido como estabelecer uma junção possível entre
corpo e alma de maneira tal que a diferença evanesça a partir do princípio musical.
Para tal, além de tudo, o oratório deveria poder dispensar aquilo que fosse da ordem
do recitativo, isto é, a palavra deveria sucumbir ao peso da harmonia e melodia.
Dessa maneira, o oratório deveria abrigar palavras somente nos momentos
indispensáveis e, mesmo assim, nestes casos, as palavras deveriam ser “ditas ao
mesmo tempo que a música de acompanhamento”82. Nietzsche quer, assim,
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introduzir, na perspectiva do oratório, aquilo que é reservado a acompanhar as


partes mais dramáticas da tragédia: o melodramático.
Contra as palavras, a música melodramática; contra o que é recitado, o
inaudito. O que é divino deve ser capaz de tocar o íntimo sem palavras. A música
diviniza; já a palavra, em sua dimensão recitativa, estabelece a dimensão discursiva
e tem, portanto, o dedo do homem no lugar da voz de Deus.
Nessa época, logo após a composição do oratório (que permanecerá
inacabado, como muitas outras obras musicais de Nietzsche), dá-se a ruptura do
jovem músico com a prática religiosa. Doravante, ele se afastaria, a ponto de tornar-
se o mais enérgico crítico e contundente contestador do papel do Cristianismo na
cultura. De novo a reversão, de novo a alternância de polaridades. Nietzsche
modula, quebra, e segue adiante. O movimento da báscula eterna entre as
polaridades: isso é música em Nietzsche.
Apesar do rompimento com a prática e devoção cristãs, a concepção de que
a música deveria ser capaz de “elevar a alma” e de que as palavras são menores do
que as frases musicais seguiriam como princípios aos quais o filósofo nunca
renunciaria. Haverá sempre algo de sacro no pensamento de Nietzsche. A
81
FNC, Vol I, c 203.
82
Ibid.
113

“elevação”, termo recorrente em Zaratustra, é, por exemplo, em parte,


inegavelmente, oriundo da semântica religiosa que desde cedo o educou, formou-o
e o fascinou.
Nietzsche compôs dos 9 aos 30 anos. Nesse período, suas músicas foram,
em grande maioria, de inspiração romântica. O filósofo-músico compôs belos e
autênticos lieder que eram, tradicionalmente, canções artísticas (kunstlied), o gênero
conhecido como “poesia lírica”, muitas vezes, fruto da adaptação de poesias
românticas de autores como Goethe, Klaus Groth e Friedrich Rückert, e cujos
maiores expoentes foram Schumann e Schubert. Nietzsche encontrou no lied a
forma de expressão imediata para narrar suas vivências e compartilhar suas
experiências com a família e os amigos mais próximos. Estas vivências, à época,
eram impregnadas de idealismo e sonhos próprios a um jovem de 21 anos.
Os lieder, harmonicamente marcados por modulações simples, trazem, em
seu bojo, estruturas tonais organizadas, cuja ambiência melódica e lírica oferece
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caráter prosaico, inspirado nos prazeres mais mundanos, tais como a alegria de um
dia vivido junto à natureza, a beleza do pôr do sol, ou mesmo de uma grande
caminhada na floresta83. Esses elementos, todos de caráter sentimental e de
considerável beleza cativante, eram marcados por reminiscências afetivas de um
passado perdido e saudosista e por uma expressiva inclinação ao culto tanto do
prazer quanto da dor existencial onde se alternavam intensidades de alegria e
nostálgica melancolia.
Dentre os lieder compostos por Nietzsche — que chegam a mais de 20
músicas —, destacam-se Mein Platz vor der tur e Das geth ein Bach, que,
posteriormente, foram letradas por ele com base em poesias do poeta Klaus Groth.
Em Mein Platz vor der tur (Meu lugar à frente da porta), encontramos um
Nietzsche absolutamente dentro dos parâmetros românticos, inspirado em Schubert,
transpirando emoção, tornando suas reminiscências elementos sensíveis, rumo a
uma reconstrução lúdica de um passado para sempre perdido.
A composição é de extrema delicadeza, com melodias e tonalidades bem
definidas, sem variações ou modulações expressivas. Trata-se de um lied conciso,

83
Esses elementos da natureza são versões elementares das ditas “coisas próximas”. O tema foi
amplamente trabalhado no Capítulo 2 desta tese.
114

de curtíssima duração, inserido em um compasso quaternário e com harmonia


previsível dentro da clássica sequência tônica, dominante, subtônica, dominante.
Contudo, o que se destaca é a música como um todo, sobretudo com a
interpretação vocal aliada a um piano austero e pulsante, constituindo algo de forte
apelo melódico, de intensa presença, onde prosa e música se unificam em uma só
potência afirmativa: o infantil é presentificado a partir de uma narrativa doce,
porém de apelo dramático inequívoco. Está em jogo o adulto que se lembra da
criança que um dia já foi e dos dois mundos separados por uma cerca.
Aqui, acompanha-se, sobretudo, um Nietzsche entusiasta e saudosista que se
vale do poema de Klaus Groth para fazer alusão à sua infância lúdica, na qual havia
um caminho longo por onde um menino podia andar e descobrir os prazeres simples
e naturais de uma meninice perdida que era protegida por uma cerca. Essa cerca —
limite entre infância e vida adulta — garantia o livre fluxo das descobertas e jogos
aos quais a criança se entregava sem ter que contabilizar qualquer tipo de
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preocupação.
A criança, desimpedida de obstáculos, desobrigada de carregar o peso do
mundo às costas, podia exercer suas pulsões exploratórias e vibrar com o livre fluir
do encontro de seu corpo com os elementos da natureza.
O segundo verso, de forma bastante contundente, apresenta o importante
papel do adulto. Vovô [Grossvater], o homem velho, sabedor dos sabores e riscos
da vida, era, justamente por isso, aquele que, à noite, voltaria ao caminho para
resgatar a criança “perdida” no lúdico atemporal de suas experiências. Vovô, com
sua generosidade e inabalável função de acompanhar o neto, dava-lhe a mão e
oferecia-lhe a segurança do caminho de volta.
A composição de Nietzsche não deixa dúvida: esse grande pai, essa espécie
de homem mítico que acompanha, que compreende, que zela, é recebido pela
criança com enorme satisfação e júbilo. Há uma espécie de cumplicidade entre
criança e adulto que garante o fluir dos movimentos. O bom encontro entre os dois
assegura o que há de romântico, o que há de elevado na gravura da música.
Diante do encontro da criança com o avô, um anseio se faz enunciar ainda
de forma tácita, uma espécie de curiosidade inefável, inscrita no desejo da criança:
um querer enxergar além da cerca, por cima... uma vontade de saber como é o
115

mundo além das garantias do caminho percorrido cotidianamente. Uma legítima


vontade de saber como é o mundo desde a perspectiva do adulto. “Vovô, o que há
além deste limite? O que pode haver que apenas o senhor enxerga com sua altura e
experiência de vida? Vovô, como posso fazer para ter o seu alcance, as suas
habilidades?”
O grande pai tranquiliza o anseio da criança por descobrir o mundo além da
infância, de se tornar grande como o adulto: “Viva o momento, seja a criança que
você puder, pois, muito em breve, seu próprio corpo terá potência e ousará ganhar o
mundo.” As palavras do avô não só acolhiam a angústia como também garantiam à
criança a permanência do tempo. Não há com que se preocupar, é melhor deixar as
coisas como estão uma vez que o próprio fluxo dos dias se encarregará de
impulsionar a criança para além da cerca. E, se assim for, será bom porque a
transição se dará sob o signo da tranquilidade e, sobretudo, da aceitação imposta
pelo curso natural da vida.
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No último verso, a criança de então, agora uma adulta, relata: “Sim, agora eu
entendi o que meu avô dizia: o mundo além da cerca é menor que esse que eu
habitava quando criança”. Isso porque a junção dos dois mundos implica uma
percepção do trágico da vida já que o virar adulto obriga qualquer um a deixar o
caminho cercado da infância e trocá-lo pela vida sem garantias, esperança ou
redenção. A criança tornada adulta ganha o mundo, mas perde o lúdico; por isso, a
sensação de que na infância algo de magnânimo se fazia presente. O mundo adulto
impele a criança a renunciar às suas experiências mais tenras e a enfrentar o mundo
de acordo com os recortes e exigências impostos pelas convenções sociais e
culturais:

O caminho ao longo da nossa cerca, como era maravilhoso! Eu ia lá todas as


manhãs e ficava com grama até os joelhos e brincava até o anoitecer nas pedras e
na areia;
Vovô, de noite, me buscava e me levava para casa pela mão. Então eu queria ser
maior para poder ver por cima da cerca.
Vovô, dizia: "Não se preocupe! Você verá tudo em breve...” E assim eu fiz: Eu vi o
mundo lá fora –
não era a justa metade do que
o mundo à minha porta havia sido então!84

84
Texto disponível na Internet.< http://music.mansfield.edu/faculty/benjamin-moritz/nietzsche-
research/dissertation/>. Tradução livre.
116

Em Das geth ein bach (Um riacho em fluxo), Nietzsche, mais uma vez, se
serve da bela poesia de Klaus Groth. O lied segue a influência dos românticos
Schubert e Schumann, dos quais Nietzsche guardava grande apreciação e deleitava-
se em estudar e interpretar suas obras. Particularmente nessa música, pode-se
observar também influências de Chopin e do próprio Liszt.
O que impacta nesse precioso lied é a forma criativa com que Nietzsche lida
para dar graça e vitalidade às suas cadeias melódicas. Nota-se uma audaciosa
progressão harmônica, onde se percebe que o compositor tinha forte embasamento
em teoria musical, harmonizações e técnicas de improviso.
A música apresenta uma curiosa modulação, inesperada: de Si Maior (tal
como começa) para meio tom abaixo, Si Bemol Maior. Tal recurso dá à música um
tom de originalidade e mesmo de ousadia. Aqui, aquela quebra da qual vimos
falando se mostra a partir de um rompimento inesperado da tonalidade. Tudo muito
sutil, de refinado gosto e de ousadia considerável.
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É importante notar que a composição se utiliza do recurso de variações


dinâmicas, o que dá a ela um cadenciamento bastante aprazível. Destaca-se
também, nesse ponto, o “excesso” de fermatas que dão à peça um encanto especial,
deixando-a sempre em suspenso e fazendo com que a emoção se espalhe por entre
os espaços de pausa:

Um riacho se move ao longo do vale


Onde desembocarão suas águas, só ele sabe.
Meu coração, da mesma forma, se movimenta
Dia e noite, ele parece nunca descansar.
O riacho desacelera diante do moinho,
A roda gira lentamente.

Meu coração quase para de bater,


Queimando em expectativas.
Ele não pode repousar ao longo do caminho,
Nunca pode parar.
E enquanto eu ando ao longo da caminhada,
Ele bate assim como uma roda.
A roda, gira, corre o moinho,
E no interior, há música.
Eu viro minha cabeça, um rosto olha para fora,
Não me deixa esperar por muito tempo85.

85
Texto disponível na Internet. < http://music.mansfield.edu/faculty/benjamin-moritz/nietzsche-
research/dissertation/>. Tradução livre.
117

Trata-se de uma música imponente, afirmativa, um mergulho filosófico-


musical que permite ao compositor bradar, em alto e bom som, a constatação de que
seu corpo se irmana com a natureza — há um riacho, cuja origem e término de seu
percurso são desconhecidos, mas que corre em puro fluxo, continuamente... Da
mesma forma, dirá o poeta, o seu coração também bate sem parar, incansavelmente,
noite e dia.
O tema da angústia também é evocado com maestria. A música se articula
com a letra, e o conjunto faz transparecer uma espécie de suspensão que faz alusão
à quase morte, ao quase término de um ciclo. No entanto, apesar do desacelerar do
riacho diante do moinho e de o coração se manter reticente diante de tamanha
intensidade, o fluxo segue, a vida flui.
A vida não para, e o destino do coração é bater como o da roda é girar. Aqui,
o narrador se torna andarilho e sensível a seus próprios movimentos e ritmos. O
triunfo da música é manifesto já que ela aponta para o inexorável da vida, mais uma
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vez! Pois, assim como “a roda gira”, “corre o moinho”, bate o coração e a vida se
desdobra, também é a pulsação do próprio corpo que encontra seus argumentos nos
afetos de alegria ou tristeza. Entre eles, pulsa todo o mistério de um movimento que
não tem como ser controlado ou detido.
Com regozijo, o lied em questão anuncia o que é a descoberta maior para
esse andarilho: no interior, seja do coração, da roda, do moinho, do riacho, seja do
próprio fluir da vida, há música. E com ela, mais uma vez, a redenção tão anunciada
pelos românticos: não se está sozinho nessa constatação, nessa celebração entre
homem e natureza –– um outro alguém está na cena, acompanha os movimentos do
trovador e não o deixa só. Aqui, a redenção sob a forma de amor, amizade ou
companhia aponta para o fato de que a música é um recurso de imantação entre os
elementos dispersivos e angustiantes que se apresentam nos caminhos de cada um.
A música, de fato, é o que flui inexoravelmente, o que faz com que o riacho ganhe
sentido em seu movimento de fluxo e, também, que o próprio coração ardente
obtenha algum sentido em sua incansável jornada.
A música, para o jovem Nietzsche, é o que acontece entre o homem e a
natureza, entre o dia e a noite –– de fato, uma espécie de presença contínua, de
118

elemento alquímico fundamental para que a linguagem se apresente e constitua os


elos possíveis entre o interior e o exterior, entre o todo e o nada.

Manfred Maditation: uma antiabertura ao estilo de Nietzsche

Nietzsche vive a música em sua estreita relação com a divindade. Sua forma
de lidar com ela, de concebê-la como fenômeno artístico, assim como sua vivência
como compositor e crítico, ou seja, todas essas formas de engajamento com a
música trazem como ponto comum o fato de o filósofo-músico considerá-la algo
superior, de magnitude diferenciada, elevada. A música, na perspectiva da
inspiração schopenhaueriana (O nascimento da tragédia) ou mesmo pulsional
(sobretudo, a partir de Zaratustra e a vontade de potência), tanto faz, sempre
suscitou em Nietzsche os sentimentos mais nobres; por isso, significou algo que, de
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uma forma ou de outra, fez sempre alusão à dimensão divina.


Essa dimensão implica situar a música como um lugar de extração
ascendente, como experiência de zênite, além do limite, que opera na transfiguração
contínua do que há. Em outras palavras, a divindade é aquilo que habita o que é
potência do devir, força tomada desde sua capacidade expansiva. A divindade é o
que tangencia o ponto máximo de todo movimento e que permite a continuada
superação do próprio movimento. Portanto, a divindade é absoluta e exige sempre o
trabalho da superação como consequência única de seu existir. Como é sabido, a
ideia de superação é marca do pensar do filósofo: se o mundo é vontade de
potência, se tudo o que há busca tornar-se mais além do que é, se não há nada nem
ninguém que não busque tornar-se mais forte, então a superação é a consequência
imediata do ato de viver a partir de uma perspectiva afirmativa. Superar é dar fluxo
às próprias forças. Tudo se supera e é superado logo a seguir, mais uma vez, já que
Nietzsche pensa o próprio instante como superação do tempo. O instante é uma
sucessão do mesmo que se faz possível pelo atravessamento da temporalidade
linear. Por estar no lugar da indiferenciação, o instante supera qualquer paradoxo e
retorna sempre como divindade, afirmação extrema da exuberância do devir. Ele em
119

si, esvaziado de sentido ou direção, é ponto de chegada e partida, nunca de


permanência.
Exuberância dionisíaca, artística, pulsional. Em Nietzsche, a música é
divindade porque a divindade só pode ser musical porque esta é quem está a criar a
linguagem, o pensamento, as leis e os valores. Aqui, o deus de Nietzsche não é
humanizavel, não é o Deus do certo/errado, nem se remete aos diferentes credos que
desfilaram ao longo da história. Não se trata de um Deus transcendente, entificado
através de caracteres ideais ou idealizantes. Não. O deus de Nietzsche é a música, e
a musicalidade é a forma de humanizá-lo; por isso, Deus e homem estão próximos e
são instâncias diferenciadas dentro de um todo. O homem é o deus que se
humanizou porque teve que deixar escapar sua divindade. Em resposta a essa
humanização, o homem não teve outro jeito senão criar Deus à sua imagem e
semelhança. Contudo, a música, por não se deixar aprisionar, por ser o disparador
de cada instante, permite ao homem se desvirtuar de seu movimento humanizatório
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e reaver-se com aquilo que sempre lhe escapará: o inaudível do som, que não é
outra coisa senão a divindade.
Por isso, compor para Nietzsche é (re)criar o divino, é associar-se ao pleno e
tentar sincronizar-se ao instante. Nesse sentido, é possível afirmar que suas
composições foram ensaios para anunciar aquilo que só lhe foi possível, de uma
forma mais avançada, posteriormente, com o nascimento de Zaratustra86. O trabalho
ao piano e suas habilidades como compositor e intérprete foram experiências que
abriram caminho ao texto de Zaratustra e o sustentaram. A rigor, até poder-se-ia
dizer que Nietzsche logrou êxito como filósofo onde o músico “fracassou”. Porém,
só é possível levar a sério essa assertiva, se considerarmos o “fracassou” sob o
ponto de vista das opiniões externas ao movimento, ou seja, daquilo que se julga
sobre a música de Nietzsche enquanto comparada a outras que tenham maior “valor
de mercado”.
Sob o nosso ponto de vista, ou melhor, sob o ponto de vista nietzschiano da
afirmação do instante, nem ele como músico e compositor, nem suas criações
musicais fracassaram em momento algum! Isso porque, a partir do momento em
que se compreende o tempo como sucessão do instante, eternamente, não se pode

86
Todo o Capítulo 4 desta tese é dedicado ao tema da música em Zaratustra.
120

admitir que qualquer instante seja errado. No entanto, ele deverá ser sempre errático
uma vez que sua afirmação será sempre superada pelo próximo instante.
Com Nietzsche, a música nunca para: ela retorna, eternamente.
O episódio complexo que envolve a composição chamada Manfred-
Meditation merece atenção especial no curso deste capítulo. Essa composição pode
ser entendida como um ponto central na articulação de muitos de nossos
argumentos e hipóteses delineados aqui em busca de dar vida à concepção
nietzschiana do filósofo-artista. Vários aspectos correlacionados a essa música
podem apontar para um bom entendimento da especificidade da relação da filosofia
de Nietzsche com a arte.
Em 1872, Nietzsche deu luz à composição Manfred-Meditation. Trata-se da
fase final do período de composição do filósofo; portanto, a atmosfera trazida por
essa música é bastante diferenciada da época em que ele compunha oratórios ou
lieder. Manfres-Meditation foi escrita no auge de sua relação com Wagner; por isso
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traz em si influências daquilo que entendeu da música de seu então mestre maior.
É possível que haja, parcialmente, em Manfred, uma tentativa de emulação
de algo relativo ao pensamento musical de Wagner em Tristão e Isolda — ópera
preferida de Nietzsche desde sua adolescência, quando ele se esforçava por executar
partes dela junto a um grupo seleto de amigos na época de sua escola em Pforta.
Numa ocasião posterior, quando já estava em litígio com Wagner e os wagnerianos,
ele alertou a seu amigo e músico Carl Fuchs que, ao criticar Wagner, preservasse
Tristão e Isolda de qualquer rechaço, por se tratar de uma música de qualidades
superiores. Ele próprio, até o fim da vida, a despeito de toda carga pesada de críticas
que dirigia a Wagner, fez questão de elogiar aquela obra de seu mestre que
considerava especial.
Há, portanto, a possibilidade de se dizer que as composições de Nietzsche
eram, em determinadas passagens, em determinados trechos, paródias de seus
mestres; mas isso está longe de traduzir o que é a música de Nietzsche. Sabe-se que
não há criação que não seja, ela mesma, a modificação de algo ou mesmo a ruptura
com relação a esse algo. Nietzsche, como autodidata, executava muitas peças de
seus mestres da música, e sua maneira de aprender era incorporar traços de estilos e
121

técnicas. No entanto, ele, inegavelmente, ousou criar como músico, e suas obras
apresentam um caráter autoral apesar de todas as influências e eventuais paródias.
É importante frisar também que Nietzsche via nas paródias um forte recurso
estilístico: ela recria modificando, através do humor, aquilo que deve ser superado.
Com a paródia, Nietzsche podia experimentar algo próximo de sua transvaloração
uma vez que essa modalidade de escrita inverte os valores. Indiscutivelmente, a
forma de Nietzsche pensar (e compor) o obrigava a destituir aquilo que ele antes
havia elegido e admirado. Esse movimento de vaivém, de troca de polaridades,
como já assinalado, é característica do modus operandi do pensamento
nietzschiano. Há encontros entre distintos corpos, distintas existências ou
materialidades, mas esses encontros geram novos corpos híbridos, portanto,
semelhantes ou diferentes aos anteriores. Nietzsche é um pensador que inclui, que
introjeta e, a seguir, exclui, dejeta o que lhe convém de maneira tal que ele retorce
os pensamentos até criar algo que lhe interessa sobremaneira. Seu pensamento,
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como já dissemos anteriormente, não é, nesse sentido, dialético nem rigorosamente


metafísico — é, antes de tudo, artístico.
Há superação na invenção. Trabalha-se com sucata e modelam-se os
contornos do pensamento a partir dos artifícios de inversões, reversões, alterações
materiais e transmutações em geral. Há sempre essa báscula em Nietzsche, onde o
pensamento ganha força com a sucessão das retorsões, das degradações. Nietzsche,
em seu processo criativo, parece não se importar com as contradições, pois as
valências, em puro fluxo de ideias (alquimia do pensar) é que ditam as cores do que
é afirmado.
Se Manfred apresenta, em parte, inspiração em Wagner, ela também é o
oposto, assim como antiwagneriana, na medida em que se fez através dos recursos
muito particulares de Nietzsche ao piano. Aqui, Nietzsche nunca será Wagner nem
Wagner será Nietzsche. Estamos no registro das idiossincrasias, dos elementos
formais que compõem as inervações de cada um. Se, sob a perspectiva crítica
musical em si, a obra musical de Nietzsche é desprezível ou perecível no tempo, sob
o ponto de vista da construção do pensamento nietzschiano como um todo ela é
elemento indispensável para se entrar em sintonia com frequências do inaudível em
sua obra.
122

Furtando-se aos critérios de juízo estético — estes sempre um conjunto de


valorações circunscrito a uma época ou a uma escola, arbitrados por um núcleo que
se arroga o direito de formalizar, disseminar e regulamentar critérios de acordo com
sabe-se lá que interesses! —, a música de Nietzsche não é diferente de nenhuma
outra: dela, pode-se gostar ou não; querer ouvi-la ou não; tolerá-la ou não. No
entanto, a despeito de qualquer coisa, não se pode dizer que o que Nietzsche
compôs não seja música. Nesse ponto, as possíveis limitações técnicas que havia em
Nietzsche — em parte, por conta de sua “insuficiente” educação musical — deram
às suas composições a possibilidade de operar como verdadeiros ensaios de
rompantes de afetos ou, se preferirmos, como campo de afecções.
As limitações relativas ao alcance que Nietzsche tinha de seu conhecimento
sobre orquestração e mesmo suas restritas habilidades ao piano (segundo Wagner,
ele “toca piano muito bem para um professor universitário”) deram à Manfred uma
consistência muito particular. Se Nietzsche, à época, considerava Wagner um raro
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gênio no sentido romântico do termo, ele sabia ser, ele próprio, exatamente o
oposto. Ele era músico e, por muito tempo, sonhou ser um músico na integridade de
seus esforços. Entretanto, como afirmamos, a música nesse pensador articulou-se
com a escrita, e a Filosofia brotou híbrida a partir dessa alquimia. A música
compunha Nietzsche. Ela ditava o andamento de seus pensamentos e constituía-se
como elemento catalisador das suas vivências. Isso ele descobriu desde cedo: a
música engendra a linguagem e a conduz. Ela acontece em esferas altaneiras, a
manifestação depurada da divindade.
Dizer que Nietzsche era um diletante em termos musicais é um equívoco
grosseiro do qual pretendemos nos afastar. Suas habilidades e conhecimentos
musicais, apesar de restritos, apontavam para uma existência plena de um
compositor que encontrava na música sua via de expressão fundamental. Sua
música, alegará parte dos iniciados, decerto, não estará à altura dos grandes
compositores de sua época, mas, sem dúvida, esteve à altura certa para dialogar com
seu pensamento. Sua música é específica de um pathos, e isso é o que importa para
ele; no que tange a seus insucessos ou frustrações quanto ao seu desempenho como
compositor, ele pouco escreveu. Como já vimos em relação aos seus escritos
quando falamos de Ecce Homo no Capítulo 1, era de sua natureza afirmar suas
123

inclinações e práticas como elos indispensáveis na constituição do seu percurso.


Aqui vale dizer que o psiquismo de Nietzsche tendia a ser mais expansivo do que
restritivo e, em geral, não conhecia a inibição ou o constrangimento no tocante ao
pensamento. Seus ímpetos, sua capacidade de vibrar e expressar conduziam seus
movimentos.
Manfred foi escrita para piano a quatro mãos. Esse traço a diferencia da
maioria de suas composições e aponta para uma particularidade: Nietzsche utilizou-
se desse recurso para poder fazer com que houvesse “diálogos” entre as mãos, entre
as frases “ditas” pelos dois pianistas durante a execução. Para executar essa peça, é
necessário que haja muito entrosamento entre essas quatro mãos e que elas saibam
respeitar as especificidades desses “diálogos”. Essa característica é interessante:
pressupõe a concepção da música como encontro, combinação de mãos. Ela
necessita de cumplicidade entre os executores para que a tensão da diferença entre
as temporalidades das “respostas” melódicas aconteça de forma clara e mutuamente
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referenciada.
Franz Overbeck era o amigo com quem Nietzsche dividia o piano à época e
que permitia ao músico encontrar eco em suas aspirações performáticas. Sabe-se
que ambos passavam juntos horas ao piano e que costumavam se apresentar para
pequenas rodas de amigos em Pforta. Há, inegavelmente, nessa prática, efeitos de
afecções uma vez que a música só acontece quando as quatro mãos se entrosam.
Havia, sobretudo no jovem Nietzsche, essa ânsia pela colaboração mútua, pelo
trabalho de grupo, pela formação de comunidades fraternais que se uniriam pelo
amor comum ao conhecimento.
A música deveria trançar, fazer fluir, transpor e, com isso, aproximar os
corpos em nome de afinidades. Como não considerar tais elementos particulares
quando se trata de entender os distintos planos e dimensões sobrepostos no tocante
ao estilo de composição de Nietzsche?
Sob a perspectiva da música em si, Manfred é uma peça que flui livre, que
segue seu destino, do começo ao fim, sem vacilos. A harmonia confirma isto: ela é
divagante, a sucessão de acordes ao piano nunca é harmonicamente clara e muito
menos previsível. Apenas esse aspecto já pode suscitar, para muitos, a estranheza e,
mesmo, a rejeição contundente. Diferente dos lieder que apresentam uma harmonia
124

simples e previsível, Manfred é uma peça experimental que pode ser entendida
muito mais como uma busca incessante de Nietzsche pela sonoridade, pelas
combinações sonoras engendradas a partir dos lances de acordes do que pela
coerência de uma harmonia justa.
Buscar o som, garimpar — esse é o Nietzsche de Manfred. Ele caminha (de
novo o andarilho!) pelas entranhas da própria música, buscando exaurir o que possa
haver de sonoro. Aqui, temos um Nietzsche interessado nos climas, nas
materializações dos sentimentos através de seus movimentos.
Nesse ponto, Nietzsche é criteriosamente original no que faz. Manfred já dá
sinais de que o rompimento com a estética dos lieder seria definitiva. Há quem diga
que essa composição é romântica por excelência, mas é possível, com Nietzsche,
afirmar justamente o contrário. O experimentalismo de Nietzsche, as quebras de
padrões simétricos harmônicos e a ausência de ritornelos, por exemplo, apontam
para uma música que se desvinculará da cadência uniforme e bem equacionada de
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composições românticas, especialmente dos lieder. Nietzsche está em busca de uma


alternativa, de algo que se apresente como reversão ao romantismo.
A maior prova disso é dada pelo próprio filósofo-músico quando deixa seu
testamento autobiográfico em Ecce Homo. Ali ele esclarece que Manfred-
Meditation é uma resposta ao Manfred de Schumann. Uma resposta dada no nível
do pathos, segundo ele, onde sua descrença no romantismo alemão, repleto de
idealismo e capaz de corromper a cultura, o fazia reagir de forma enérgica a fim de
denunciar a decadência do que julgava serem movimentos de repúdio à vida. “Os
alemães são incapazes de qualquer ideia de grandeza: vide Schumann.
Expressamente por raiva contra esse saxão adocicado, compus uma antiabertura
para Manfred (...)”87.
O que poderia haver de tão adocicado na belíssima abertura de Schumann?
Ora, exatamente o fato de ela ser previsível em sua beleza, de ser tão grande em sua
forma que, a partir da ótica de Nietzsche, isso a tornaria desprezível. Lembremo-nos
de que Manfred é, originariamente, uma obra de Lord Byron, poeta inglês, escrita
entre 1816 e 1817. Nietzsche reconhece no Manfred de Byron a tortuosidade, a
errância de uma vida capaz de experimentar e lidar com o trágico. Ele próprio

87
EH por que sou tão inteligente 4, KSA 6, p. 286.
125

afirma em Ecce Homo que “todos esses abismos [os descritos no supostamente
autobiográfico Manfred de Byron] eu os encontrei em mim — com treze anos, era
maduro para essa obra”88.
Se há um “perfeito” em Nietzsche, desde Manfred Meditation, ele está longe
da estética romântico-idealista dos alemães. Aqui ele faz explícita alusão ao que
importa tanto na vida quanto na arte: que haja “aquela malícia divina”, ou seja, que
a própria divindade seja o fator disjuntivo através do jocoso, do equívoco. É
importante reparar que Nietzsche reafirma em 1888 — portanto, ao apagar das luzes
de seu percurso como escritor — o mesmo que afirmara em seu livro de estreia, em
1872, que a divindade deveria ser concebida desde o seguinte princípio: “O deus
como inseparável do sátiro”89. Ou seja, um deus trágico capaz de brindar a vida em
qualquer circunstância, sobretudo diante da perspectiva do invariável-abismal.
O que é o deus sátiro senão o deus da hybris, cuja malícia é justamente
cantar a vida em ditirambos e levá-la, literalmente, na flauta? O deus sátiro como
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aquele que ri e goza no êxtase do caminho, na plenitude de sua forma, que ostenta
sua máxima disponibilidade para fecundar a vida através de sua exacerbada e
anunciada libido. O deus de que fala Nietzsche é aquele que se põe a dançar de
maneira que seus atos não sejam outra coisa senão a busca pelo júbilo eterno.
A música em Manfred é um passeio a quatro mãos. Um passeio arriscado e
passível de não ser agradável nem para quem escute e, talvez, nem mesmo para
quem execute. O critério não é o belo usual, não é o agradável e muito menos o
consensual. Trata-se, ao contrário, de uma afirmação desafiadora, própria de quem
diz sim aos próprios horrores. Nietzsche não quer o perfeito; ele busca a arte através
da experiência. Na época de Humano demasiado humano, ele conseguiu formalizar
essa ideia da seguinte forma: a improvisação, pura e simples, como fim em si
mesma, gera a falsa impressão de que a arte brota da gratuidade ou espontaneidade
e que o perfeito emerge como movimento mágico, nascido pronto. Segundo sua
imediata conclusão, dessa forma é que os artistas conseguem iludir a audiência,
como os mágicos que fazem pressupor que a música se origina da genialidade.
Certamente que esta crítica é dirigida a Wagner, que operava como ilusionista ao
fazer de sua música veículo para retraduzir mitos.
88
Ibid.
89
Ibid.
126

Nesse sentido, Manfred não almejará jamais a perfeição, mas justo o oposto.
O que Nietzsche busca é uma espécie de “beleza nobre”, aquela que conquista, que
convence pela genuinidade dos atos, que não parte de uma forma, mas que a cria no
processo. O processo é longo, árduo, implica uso da técnica e remete,
necessariamente, a uma criteriosa seleção de elementos que realmente estejam
implicados em um exercício de farejar, senão a melhor sonoridade, pelo menos, a
mais autêntica:

A lenta flecha da beleza – A mais nobre espécie de beleza é aquela que não arrebata
de vez, que não se vale de assaltos tempestuosos e embriagantes (uma beleza assim
desperta facilmente o nojo), mas que lentamente infiltra que levamos conosco
quase sem perceber e deparamos novamente num sonho, e que afinal, após ter
longamente ocupado um lugar modesto em nosso coração, se apodera
completamente de nós, enchendo-nos os olhos de lágrimas e o coração de ânsias –
O que ansiamos, ao ver a beleza? Ser belos: imaginamos que haveria muita
felicidade ligada a isso. – Mas isto é um erro90.
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Nietzsche não compunha para agradar, mas sim para revelar; menos para ser
belo do que para refinar sua forma de apreender os elementos que lhe tomavam de
assalto. Há um trabalho disciplinar em Manfred mostrando que a obra foi composta
milimetricamente, aos poucos, sendo que todos os seus elementos, cada nota, foi
amplamente testada e, por fim, selecionada. A escrita de Manfred, ou seja, sua
partitura, foi o próprio Nietzsche quem a concebeu. E ela é por demais detalhada,
por demais crivada de traços que constituem a mesma intensidade, a mesma
“obsessão” que Nietzsche tinha por seus escritos. Manfred pode até passar ao
ouvinte a impressão de que é uma composição livre de critérios por apresentar uma
forma distinta dos rigorosos padrões característicos do romantismo da época. Ao
contrário, porém, a música alude a uma “falsa liberdade” talvez porque o próprio
autor tenha logrado êxito em dissimular a sua labuta intelectual e técnica, de
posicionar rigorosamente nota a nota, deixando a impressão de que o que se ouve é
apenas fruto imediato de inspiração. No caso de Manfred, não o é — ela é resultado
de experimentação e busca de uma nova forma.
Mas que nova forma? A música, a essa época, já fazia surgir uma nova
geração de compositores que se viam levados, por diferentes caminhos, a arriscar

90
MA I 149, KSA 2, p. 143.
127

voos distintos de seus antepassados clássicos. Nesse sentido, Nietzsche estava a par
de movimentos que começavam a experimentar dissonâncias ousadas, que
rompessem com o tradicional tonalismo. Para tal, seria preciso conceber a lógica
harmônica diferente da dinâmica usual de “tensão” e “repouso” usualmente
garantida pelas dinâmicas impostas pelo uso de tônicas e dominantes. A resolução
dos conflitos de tensão, usualmente recorrida ao uso de acordes que implicassem
um retorno ao “estado inicial de equilíbrio” passou a ser desvirtuada por
compositores que não optavam pelo apaziguamento, mas, ao contrário, que intuíam
a necessidade de uma tensão continuada, distante do equilíbrio e mais próxima de
zonas de conflito e de desdobramento das próprias tensões. Com isso,
experimentava-se a quebra dos padrões clássicos do tonalismo e arriscava-se a
produzir uma música menos simétrica e mais errante.
Manfred está, em certa medida, dentro dessa perspectiva vanguardista. A
ausência de um tema principal e mesmo de suas variações faz dessa música um voo
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sem volta, uma fala sem repouso, um mergulho no abismal na medida em que ela
não se ajusta, não se formata nem se conforma em momento algum. Seu itinerário
alude a uma história a ser narrada. E, de fato, não podemos deixar de lembrar que se
trata de uma antiabertura, de uma resposta ou alternativa à composição de
Schumann. O fato é que Nietzsche se viu impelido a responder a Schumann
exatamente porque, segundo ele frisou, sua vivência do que está no Manfred de
Byron é muito mais imperfeita, trágica e dilacerante do que o romântico Schumann
interpretou.
Nesse sentido, a história narrada por Nietzsche não é outra senão a do pathos
que o invadiu, desde os treze anos quando passou a se identificar com os signos
vividos por Byron, sobretudo, através do personagem Manfred. Portanto, a
composição nietzschiana recusa a tentação de fazer uso de uma narrativa de
memória (vide o fato de que o tema é secundário e de que ele não retorna senão
modificado e quase sempre desvirtuado), mas, através de um movimento de
composição que visa à abstração dos elementos básicos (melodia e harmonia),
realiza um percurso onde há percalços, mal-entendidos, superposição de climas,
devastação de convenções e, por último, assolamento de intensidades.
128

Esse fato torna a música de Nietzsche pouco receptiva para ouvidos que não
se interessam ou não simpatizam com a extravagância. Ele chegou a reconhecer que
já havia escrito “músicas mais humanas, mais moderadas e mais puras”. Do jeito
em que foi concebida, ela se torna uma peça nada “amigável” e, sobretudo à
primeira escuta, pode sugerir imprecisão, imperícia e, mesmo, crime.
Crime? Sim. Ao menos esta foi a sentença dada pelo respeitado e cultuado
maestro Hans Von Büllow quando escreveu a Nietzsche para lhe dizer de suas
impressões sobre a música que Nietzsche havia lhe enviado em uma carta datada de
20 de julho de 1872. Na carta, Nietzsche de forma muito doce, amável e repleto de
reverências, dizia a Von Büllow de seu enorme agradecimento ao maestro por ele
haver-lhe aberto “o caminho para a experiência artística mais elevada de toda a
minha vida”91. Tratava-se do fato de Nietzsche e seus amigos wagnerianos terem
assistido às apresentações de Tristão regidas por Von Büllow em Munique.
Nietzsche faz alusão, na carta, ao fato de que ele não teria podido agradecer
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pessoalmente ao maestro ao fim da apresentação porque foi obrigado a se retirar de


imediato tamanho era o impacto sob o qual se encontrava. Ou seja, em outras
palavras, Nietzsche fazia reverências a alguém que de fato representava muito para
a música alemã naquela época. Von Büllow era o principal regente das obras de
Wagner e era uma personalidade cultuada em boa parte da Europa.
A carta de Nietzsche representa uma tentativa de agradecimento e reparo. Na
tentativa de manifestar sua gratidão ao maestro, tomou a iniciativa de enviar-lhe
uma partitura de sua própria autoria. Isso poderia servir como manifestação
concreta de sua forte admiração por Von Büllow. Imaginava que lhe estava
retribuindo à altura, uma vez que prezava suas composições –– especialmente
aquela que continha um apelo todo especial, por se tratar de uma composição que,
de certa forma, foi influenciada pela regência de Büllow em Tristão.
Sobre seu Manfred, na carta, Nietzsche frisava que se tratava de uma música
“muito discutível” e que Von Büllow estaria livre para rir do filósofo-músico se
fosse o caso. Nietzsche ainda fazia do maestro o seu médico: suas regências seriam
capazes de curá-lo de suas mazelas e, como tal, rogava a Von Büllow que, em caso
de julgar que seu paciente escrevesse “música horrível”, então que ele não poupasse

91
FNC, Vol. II, c 240.
129

esforços para curá-lo dizendo a verdade. Dessa forma, em caso de a música ser
deficiente, ainda arrematava Nietzsche: o maestro, em sendo franco no julgamento,
poderia poupar o talento de Nietzsche para a Filologia já que, no campo da ciência,
talvez ele pudesse se expressar de forma mais adequada.
Note-se que Nietzsche ousou de forma corajosa no envio da partitura de seu
Manfred. Sua relação com Von Büllow era cordial e mediada por Wagner. Ambos
haviam sido apresentados em Tribschen. Na ocasião da publicação de O nascimento
da tragédia, em carta datada de janeiro de 1872, Nietzsche havia anunciado o envio
de um exemplar de seu livro, apresentando-se como “um desconhecido que o
admira”92. Von Büllow não só havia lido o livro como também manifestara
impressões positivas sobre as ideias perturbadoras lançadas pelo filósofo em sua
versão sobre a origem da tragédia entre os helenos.

Pois bem, desta vez, em resposta à carta de Nietzsche, Von Büllow foi
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sincero. Além de sincero, foi enfático, duro e brutal. O maestro não mediu
nem poupou palavras. Sua resposta constituiu-se na carta mais violenta que
Nietzsche receberia em toda a sua vida. É de impressionante rechaço, e o
tom escolhido é o do descredenciamento total de Nietzsche como aspirante a
músico. Von Büllow acusou-o de cometer o estupro de Euterpe, deusa da
música. Abaixo, segue, praticamente na íntegra, o que disse Hans Von
Büllow a Nietzsche em resposta à música que o filósofo lhe enviou:

Isso é uma piada? Uma paródia da pretensa Música do Futuro? O senhor desejou
deliberadamente debochar de todas as regras tonais da harmonia, desde a mais alta
sintaxe até a mais ordinária ortografia?”. “Eu não descobri nela nem um traço de
elementos Apolíneos e Dionisíacos e, para ser franco, me fez pensar mais na
manhã após uma orgia do que na orgia em si. Se o senhor realmente tem mesmo
um desejo apaixonado de se exprimir na linguagem musical é urgente que assimile
pelo menos os elementos básicos dessa linguagem. A fantasia ainda intoxicada com
ressonâncias wagnerianas não é um bom ponto de partida para a criação. Saiba que,
em termos musicais, o produto desta sua ‘febre musical’ é o equivalente a um crime
no mundo moral, no qual a musa da Música, Euterpe, tivesse sido estuprada”. “Se o
senhor me permite um bom conselho, apenas no caso de estar falando sério com
essa ‘aberração na área da composição, então, por favor, dedique-se apenas à
música vocal, pois nesta a palavra poderá lhe auxiliar a encontrar o caminho no
agitado mar dos sons. Caso contrário, a sua música poderá vir a lhe ser ainda mais
‘horrível’ do que o senhor imagina, podendo mesmo vir a lhe ser perigosa no mais
alto nível”. “Não obstante, nessa sua ‘febre musical’, com todas as suas aberrações,
podemos notar uma mente notável, e, de certa forma, eu (Von Büllow), com minha
encenação do Tristão de Wagner, fui indiretamente culpado de ter jogado uma

92
FNC, Vol. II, c 187.
130

mente tão esclarecida como a sua, estimado Professor, em uma tão lamentável
armadilha pianística”93.

Perceba-se que os argumentos de Von Büllow, ainda que apresentados à


queima-roupa, são todos muito pertinentes sob um certo ponto de vista. Ele
desqualifica Nietzsche em todos os aspectos de sua música por supor que o filósofo
tenha dado demonstração de total “desconhecimento” das regras musicais. Faz
alusão ao fato de ter Nietzsche desejado deliberadamente debochar de “todas as
regras tonais da harmonia”. O impacto que a música tem no regente é da ordem de
uma heresia ou mesmo de uma falta de seriedade por parte de Nietzsche quando
este último julgou ser a peça uma música propriamente dita.
Von Büllow não poderia jamais considerar a música de Nietzsche inovadora
ou de vanguarda. Não apenas porque os “ousados” recursos musicais de que se
valeu Nietzsche não poderiam ser aceitos formalmente por alguém que se sentia
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diretamente atingido em seus domínios (“como ousa afrontar um músico de minha


estirpe, Sr. filósofo?”), mas sobretudo, pelo fato de Nietzsche não merecer
consideração alguma no universo da música como compositor, pela simples razão
de que ele era apenas um “amador”, portanto, não existia simbolicamente como
alguém que pudesse ser considerado um inovador. Nesse sentido, fizesse Nietzsche
o que fizesse sob o desígnio de uma inovação ou quebra de formas, tudo soaria
como uma brincadeira de mau gosto, um tipo de equívoco imperdoável. Enfim, uma
estupidez.
Ou seja, para Von Büllow, Nietzsche não era músico nem compositor, mas,
talvez, um equivocado (um ingênuo, na melhor das hipóteses) que merecia ser
rigorosamente repreendido, tal qual uma criança que comete uma danação. Segundo
sentenciou o maestro, era melhor mesmo que Nietzsche voltasse suas atenções para
a Filologia.
De fato, Manfred Meditation só nos interessa até hoje porque se trata de uma
composição assinada por ninguém menos do que Friedrich Nietzsche.
Provavelmente, sem essa “grife”, o destino dessa e das demais obras musicais do
filósofo teria sido cair no esquecimento absoluto, como acontece com a grande

93
http://www.f-nietzsche.de/musik_eng.htm#buelow. Tradução livre.
131

maioria dos compositores que, por motivos diversos, não conquistam um lugar ao
sol na disputada e viciada praia dos gênios (e não tão gênios assim!) musicais.
Se Nietzsche tomasse ao pé da letra o que seu “médico” disse de sua peça
musical, deveria, de fato, desistir da música; Nietzsche, porém, não sofria de uma
patologia que o intimidasse. Ele não tinha inibição ou nenhum tipo de inclinação a
absorver uma crítica sem elaborá-la a seu favor. A se considerar a violência da carta
de Büllow, era de presumir que os efeitos psíquicos em Nietzsche pudessem ser
devastadores. E, numa certa medida, foram. No entanto, como era de hábito, ele
respondeu com elegância a seu interlocutor e, com essa resposta, percebe-se que
tinha muito claro o tipo de importância que a sua música representava em sua vida.
Passaram-se cerca de quatro meses para que o filósofo tivesse a chance de
digerir o petardo e esboçar uma resposta. A resposta enviada em 29 de outubro de
187294 foi bem diferente do esboço (não enviado) escrito no mesmo dia. A partir do
cotejamento dos dois documentos, pode-se perceber que o que Nietzsche enviou a
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Büllow foi um humilde pedido de desculpas e agradecimento por uma certa


“iluminação” que sua carta havia lhe proporcionado, além de uma promessa de não
repetir mais a façanha. Já o rascunho contém elementos que permitem considerar a
possibilidade de Nietzsche julgar ter sido questão de próprio estilo, portanto
proposital, o que havia sido criticado por Büllow em sua música. Onde Büllow via
“aberração”, Nietzsche via uma forma estética de expressar estados afetivos; onde o
regente via um “estupro a Euterpe”, Nietzsche vivia um estado de experiência cujas
resultantes ele estimava.
Ele afirmava, na carta-rascunho95, que estudava música como autodidata
desde sua tenra infância e que, apesar de ter perdido a disciplina da prática que o
estudo sério da música exige, sempre foi capaz de compor músicas tendo, inclusive,
escrito fugas em massa e estando apto a compor em “estilo clássico” com “certo
grau de pureza”. Ao esclarecer isso, Nietzsche também disse que costumava ser
frequentemente tomado por uma “excessiva urgência” em compor e que sua música
derivava da necessidade de ele compor como “desafio” e investido de “ironia” de
maneira tal que ele próprio, assim como Büllow, teria dificuldades em perceber

94
FNC, Vol. II, c 269.
95
FNC, Vol. II, c 268.
132

quando a música seria “séria” ou uma “caricatura” dessa seriedade, assim como lhe
seria difícil dissociar sua música de uma certa vontade de escárnio e gozação.
Dessa forma, no rascunho, diferentemente da resposta da carta, Nietzsche foi
muito mais afirmativo: disse que compôs a música em estado real de humor, ou
seja, que ela lhe foi concebida a partir de seu pathos, e que sua experiência foi a
mais prazerosa possível durante o ato de composição. Dessa forma, o filósofo-
músico deixou claro que, ao julgar sua música, o maestro lhe dava a nítida
impressão de não ter sido nada receptivo com seus estados de humor. Ou seja, em
outras palavras, que Von Büllow não estaria sendo capaz de escutar o que havia de
mais importante para Nietzsche: “o seu estado psíquico”.
Quanto a esse estado psíquico, ou seja, esse pathos inspirador e
extremamente prazeroso experimentado pelo exercício da música, Nietzsche o
qualifica com quatro específicos termos: “desprezo”, “gozo”, “exuberância” e
“sublimidade”. A partir de então, ele deixa bem clara a importância de sua música:
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“Sobre a minha música, sei apenas de uma coisa: ela permite monitorar meus
humores de maneira tal que, se estes não se tornam saciados, ao menos tornam-se
menos perigosos”96.
Na carta enviada, Nietzsche nomeia o pathos que o leva a compor desde a
infância: alegria!

De onde vinha essa alegria? Havia sempre algo de irracional, estas ondas fortes
nunca puderam olhar nem à direita, nem à esquerda, mas a alegria persistia!
Precisamente, esta música Manfred me proporcionava um sentimento tão raivoso,
ou melhor, tão sarcasticamente patético, que era um verdadeiro prazer, uma espécie
de ironia diabólica.

Nietzsche segue respondendo: a visão que ele tinha do Manfred de Byron


era a de que se tratava de um “monstro louco”. Portanto, seu Manfred de fato era
provocativo, intencionalmente irônico e, por isso mesmo, perturbador.
De qualquer forma, tanto o rascunho quanto a carta mostram postura de
agradecimento e pedido de desculpas já que Nietzsche não tinha imaginado que sua
música pudesse trazer tamanho mal-estar para um músico da qualidade de Büllow.

96
Ibid.
133

Despede-se na carta, utilizando-se da frase recorrente das crianças que costumam


ser repreendidas por suas algazarras: “Prometo que não farei de novo!”
Por fim, é preciso dizer que Nietzsche provavelmente não havia sido
ingênuo, mas sim ousado e provocador. Büllow era wagneriano e admirava a obra
deste homem acima de tudo. Talvez Nietzsche quisesse não apenas a avaliação de
um regente do quilate de Büllow, mas também testar sua capacidade de guerrilha,
de ataque aos wagnerianos: não seria, exatamente pela gozação, pelo escárnio e pela
brincadeira que o Nietzsche músico, a criança criadora de valores, havia logrado
êxito em dar função e direção à sua música?
De qualquer forma, é preciso dizer, a carta de Von Büllow deixou marcas
profundas na relação de Nietzsche com sua música. Ele não a abandonou após esse
episódio, mas seu esforço em registrar suas composições praticamente chegou ao
fim. Após Manfred, Nietzsche ainda deixou registro de umas quatro ou cinco
músicas. É também nesta época que ele inicia suas primeiras divergências com
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Wagner, que da mesma forma que Hans Von Büllow, à mesma época, também
passaria a manifestar, de forma irônica, e às vezes dissimulada, o quanto
desaprovava as composições de Nietzsche.

A música na fisiologia de Nietzsche ou o eterno retorno de Dioniso

A despeito de todas as mutações e distorções que sofreu o pensamento de


Nietzsche sobre a música ao longo de sua existência, existem determinados
elementos que certamente permaneceram constantes no tocante ao modo como ele
concebeu o que seria de fato definitivo em música. Há formas de pensar sobre a
música que se mantiveram intactas e que ganharam mais força ao longo do tempo, a
partir das elaborações de outros elementos que figuraram no pensamento do filósofo
com o passar dos anos.
Quanto mais avança o pensamento de Nietzsche, mais a música serve como
elemento de pensamento dentro da sua filosofia. A música adquiriu valências cada
vez mais próximas de questões que estavam sendo problematizadas na filosofia de
Nietzsche, como a noção de decadência, de niilismo, de eterno retorno e vontade de
134

potência. A música e sua semântica passaram a figurar, cada vez mais, como
potência conceitual, como elementos de tensão capazes de engendrar novas
perspectivas e ligações na filosofia híbrida do autor de Assim falava Zaratustra.
Consideremos a questão do dionisíaco em sua obra. Sabe-se que ele
estabeleceu, desde O nascimento da tragédia, o dionisíaco como traço de ruptura
diante da ordem (forma), como elemento que instaura o êxtase através da ruptura do
princípio individuationis e cujo estado em que age, mais próximo do dizível, é o da
embriaguez.
Há em Nietzsche, desde o início, uma expectativa de que o dionisíaco possa
restaurar um elo perdido, isto é, aquele que ligava o homem à natureza. Essa ligação
–– perdida com a cristalização da cultura, ou se preferirmos, com o avançar da
técnica sobre a linguagem –– deveria restabelecer o que há de mais autêntico e mais
radical na experiência da existência: a alegria de estar vivo e a percepção exata de
que a vida não passa de um espasmo entre uma polaridade e outra, seja lá como
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essas polaridades possam ser concebidas (dia e noite, bem e mal, forte e fraco, tudo
ou nada).
A dança e a música –– elementos fundamentais na alquimia dionisíaca ––,
em ato, se irmanam e se completam de maneira tal que as diferenças se esvanecem e
a natureza retoma seu curso de modo a fazer do homem um duplo do deus sátiro,
uma reverberação, se quisermos, da potência do movimento expansivo que passa a
ser o único motivo a reinar. O homem, nessas circunstâncias, desaprenderia a andar
e a falar, ao mesmo tempo em que os animais passariam a falar uma língua que
abolisse todas as diferenças. Dioniso seria o catalisador do processo que levaria
homens, animais e natureza a se fundir em uma totalidade, o que ele havia
designado por “evangelho da harmonia universal”, de maneira tal que o “misterioso
Uno-primordial” voltasse a imperar absoluto.
Ora, sabemos que essa visão do dionisíaco, que remete ao primeiro livro
publicado por Nietzsche, é devedora das leituras que ele tinha de Schopenhauer e
que ela apresenta elementos da chamada “metapsicologia do artista” que passou a
ser modificada a partir de Humano demasiado humano. Sabemos ainda que as
categorias metafísicas de principium individuationis e Uno-primordial foram
superadas a partir do momento em que o filósofo estabeleceu, como trilha de
135

pensamento, uma espécie de desvelamento das camadas de estratificação da moral,


lançando mão, para isso, de um método de investigação cujos princípios estavam,
em parte, orientados por um certo discurso positivista da ciência da época.
Contudo, mesmo que o “dionisíaco” tenha sido deslocado dos eixos
principais das discussões de Nietzsche por um largo período, ele esteve sempre
sustentando concepções do filósofo de maneira tal que, a partir de 1884, com a
força que ganhou o pensamento sobre a vontade de potência, Nietzsche retomou
suas considerações sobre o dionisíaco de forma que sua semântica dominou as
discussões sobre arte e música, sobretudo nos fragmentos póstumos do filósofo.
No fragmento 800 de A vontade de poder, Nietzsche retoma o tema da
embriaguez, dando a ele contornos um pouco diferentes, mas, sem dúvida,
obedecendo às mesmas direções a que ele já aludira em 1872. Agora, a embriaguez
dionisíaca é tomada como “incremento de força”, e toda a noção de embelezamento
é resultante do aumento da potência que é capaz de gerar. A vida quer fluir e seu
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intuito, o único, é expandir-se de forma a tornar-se mais forte. Dessa forma, ela
também se torna bela e cria o belo a partir da imanência afirmativa do movimento
pulsional. A dança dos sexos, o acasalamento, sob o ponto de vista da vontade de
potência, é algo que se dá a partir da mistura de elementos que, uma vez em
confronto, acabam por criar “novos órgãos, novas habilidades, cores, formas...”97.
Princípio de “estética da fisiologia” em Nietzsche: reunião de tudo o que é
forte gera mais força e assim constitui o belo, ainda que provisoriamente.
Provisoriamente, porque o belo não é uma categoria previamente definida,
tampouco um ideal a ser atingido, mas constitui-se como uma possibilidade, um
estado transitório onde a forma resultante é apoderada, traz em si algo de
retumbante, de imperioso e, por isso, encanta.
Por oposição, a feiura é aquilo que não traz em si uma postura afirmativa, e
acaba por se apresentar como um recuo, como uma desistência ou submissão. Trata-
se de um desalinhamento, perda de tônus, fraqueza diante da vontade de nada. O
feio não coordena suas escolhas, não se esquiva nem rebate. Ele permanece em
estado de abandono, longe de suas forças que o permitiriam ter graça, imponência.
O feio é a decomposição, aquilo que não entra no jogo das forças, que empobrece,

97
WP 800.
136

tira sem nada dar em troca, exige sem cumprir. É também decadente, sem vida,
depressivo. O feio repudia o belo e se alia com o que é próprio da feiura. Nietzsche
não fala aqui de subjetividades –– é sempre preciso insistir. Não está a classificar
pessoas de acordo com suas silhuetas, seus tipos, idiossincrasias, etc. Ele fala de
forças, de composições, de engrenagens. Nunca de pessoas, e, sim, de recortes. Seu
olhar sobre o belo e o feio vaga por todos os tipos de formações, sistemas, de
maneira a identificá-los como modalidades: “Na mecânica, o que corresponde ao
feio é a falta de centro de gravidade: o feio claudica, o feio tropeça: o contrário da
divina frivolidade do dançarino.”98
Mas o que é o forte nessa angulação? Segundo Nietzsche, é tudo que é
capaz de afirmar-se pelo simples regozijo de estar em condição de devir, de ter
acesso, de tornar-se. Sob essa ótica, a força e a beleza são produtos do rebatimento
incessante do Sim sobre o Sim. Você conseguiria dizer Sim uma, duas, três, quatro
mil, 5 milhões, infinitas vezes? Entenda-se: dizer Sim como afirmação do instante,
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além do julgamento, a despeito de qualquer crítica retroativa... Isso, em Nietzsche, é


a capacidade de se atingir uma espécie de “simplificação lógica”, de se conceber a
vontade de potência como causa primeva e última de toda experiência, ou seja,
como única.
É essa, pois, a dimensão sustentada pelo saber dionisíaco. A embriaguez
como “elevado sentimento de poder”, como prazer inequívoco. Consequência
primeira: alteração total das noções de espaço e tempo e redimensionamento do que
é belo e feio:

As sensações de espaço e tempo se alternam: a vista alcança enormes distâncias, e


elas se tornam perceptíveis pela primeira vez; a dilatação do olhar sobre grandes
quantidades e amplidões; o refinamento dos órgãos para a percepção de muitos
detalhes minúsculos e fugidios; a adivinhação, a força do entendimento direcionada
às ajudas mais sutis, a cada sugestão: a sensibilidade “inteligente”...99

É importante reparar que o corpo e seus prolongamentos, sob essa


perspectiva, constituem-se através do processo de apoderamento. Uma coisa é ter
olhos, outra é enxergar o que está para além do que a consciência permite. Uma
coisa é ter ouvidos, outra é ousar escutar o inaudível. A capacidade de
98
WP 809.
99
WP 800.
137

redimensionar qualquer coisa no nível das sensações, de reposicionar as malhas do


tecido corporal (seja ele em termos micro ou macro), de tornar-se elástico, tudo
isso, segundo Nietzsche, torna-se possível através da ação do dionisíaco.
A embriaguez é permitida pela desenvoltura das forças que estão em jogo.
Há molejo, traquejo e menos fixações, retenções. A embriaguez dionisíaca (que é
diferente do “porre”!) diz respeito à capacidade de fazer fluir os desejos como se
eles fossem consequências naturais dos gestos. Dioniso é forte e é belo porque, na
sua embriaguez, ele toma para si o querer e funda uma forma de estar que, em sendo
ela própria o que ele se torna, instaura sempre uma ordem dominante.
O dionisíaco rege a música, cadencia o corpo. Interpela, desconcerta, rebate
e infringe novas articulações. Dançar não é outra coisa senão reinventar os fluxos
do corpo de maneira a torná-lo menos biológico e mais fisiológico. Aqui não
importa técnica, não importa o saber sobre a dança, mas, de outra forma, importa
poder dançar. Estar apto aos gestos e aos movimentos, desejá-los e multiplicá-los
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até que as torções se realizem. A dança, assim como a música, é fluxo do corpo, e
poder dançar é tornar-se mais forte, mais destemido e, sobretudo, Nietzsche o dirá
com todas as palavras: tornar-se indiferenciado em relação ao que há.
A dança, quando surge dos espasmos graciosos do corpo, inventa uma
maneira de estar e ser que reverbera de forma inédita. Ser o movimento, ser o que
acontece em tempo real... estar no imediato, brotar-se no agora. Despir-se, isentar-
se da obrigação imposta pela diferença dos sexos, dos idiomas, dos olhares. Dançar
como política de si, para si, com os outros. Somente uma dança desprovida de
intenção, destituída de regras, somente esse desmembramento do corpo poderá agir
em nome da “Grande Liberação” anunciada por Nietzsche.
Sexo, dança, música... o Nietzsche da pulsão, o Nietzsche da Fisiologia dirá
que há “uma espécie de embriaguez habitual na vida”100 que é própria dos artistas,
daqueles que entenderam o que é a sensualidade humana/inumana, que permite aos
elementos uma reconfiguração continuada. Contudo, artista aqui não aparece como
a classe dos artesãos, dos habilidosos homens da técnica ou dos gênios da música;
muito menos se trata da classe operária dos artistas de teatro, dos filiados a uma
classe teatral, etc. Diferentemente, em Nietzsche, aqui, artista é uma condição

100
Ibid.
138

particular de vir-a-ser que se instaura na disponibilidade dos jogos de forças. Tanto


assim, que ele chega a propor “o mundo como uma obra de arte que dá à luz a si
mesma”101.
A arte como estado de exaltação e a música como formulação da beleza.
Para o filósofo, a beleza está além de toda classificação, de toda tentativa de fixação
de padrão uma vez que ela, através da dança e da música, é capaz de transpassar as
oposições. Aí está o que Nietzsche entende por poder: um fluxo continuado que não
se atém diante das rivalizações das polaridades. Nesse sentido, a música não pode
ser boa se não for tomada desde o fluxo das pulsões:

Os estados nos quais colocamos e poetamos nas coisas uma transfiguração e uma
plenitude, até que elas reflitam a nossa própria plenitude e prazer de viver, são: a
pulsão sexual, a embriaguez, a refeição, a primavera; o triunfo sobre o inimigo; o
escárnio; o virtuosismo; a crueldade; o êxtase do sentimento religioso. Três
elementos principalmente: o impulso sexual, a embriaguez, a crueldade: todos
pertencem à mais antiga exultação do homem, todos também preponderantes no
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“artista” iniciante102.

Essa transfiguração e plenitude a que Nietzsche faz alusão é a que está sob a
égide da experiência dionisíaca. Todas as possibilidades de transfiguração são
musicais uma vez que a música, agregada à dança, é o que há de mais elementar em
sua fisiologia da pulsão. Para usufruir esses estados, para poder dançar e cantar, é
preciso o vigor do corpo, é preciso conectar-se ou habilitar o que Nietzsche designa
por “força artística originária”. Em outras palavras, não se dança cansado, não se
canta vigorosamente quando se está sóbrio ou aturdido. É preciso estar em
consonância com o todo, é preciso vibrar com, alinhar-se entre, disparar em direção
a... Para dançar, para ouvir música, para vir-a-ser música, é preciso uma
disponibilidade conectiva: a de dar e receber.
Nessa perspectiva, a beleza é o que surge no instante da experimentação. É
esse princípio que permitiria a Nietzsche responder ao maestro Hans Von Büllow de
maneira a retorcer seus argumentos reprobatórios. Se pudesse ter escrito, se tivesse
a clareza e a liberdade, ele poderia ter-lhe dito: “Mas que arrogância a sua, meu
caro maestro! Como pode julgar de maneira tão cruel algo que não lhe pertence?

101
Ibid.
102
WP 801.
139

Como pode ser afetado de maneira tão avassaladora por algo que, no máximo
poderia merecer descaso? Saiba que o senhor pode ser um excelente regente, mas
está longe de entender alguma coisa sobre a música em si. O senhor é magnânimo
regendo, mas dá provas de que também tem audição limitada. Seu ouvir é
comprometido com uma concepção muito restrita de música. O senhor parece não
compartilhar da evidência de que a música, em si, é um acontecimento múltiplo, ela
está na origem do que se pulveriza, ela é a própria pulverização. Veja que não é
preciso obedecer às “regras fundamentais de harmonia” porque elas são
simplesmente impensáveis no todo. O princípio da vida é a mutação, e a harmonia,
por isto mesmo, não nasceu pronta. Ela se desloca de acordo com os movimentos
que sofre. Minha música é experimentação e, como tal, está prevista pelos códigos
da nossa fisiologia. Acaso o senhor duvida de que a música é fisiológica? Pois eu
lhe digo que ela surge de cada junção do corpo quando se põe a se articular. A
música não pode vir de outro lugar senão das junções da natureza maior. Eu faço
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música, o senhor pode gostar ou não. Sua pretensão em qualificar o belo é tão
somente um exercício de dominação. Além de tudo, como deixar de reparar um
enorme ressentimento que o senhor carrega em si pelo fato de nem sempre o senhor
estar apto a compreender o que lhe toma de assalto? Sinto muito, meu caro, mas
aqui divergimos totalmente: para o senhor, o belo é uma categoria; para mim, ele é
o instante em que afirmo a plenitude do que me assalta.”
Não há como categorizar o belo, mas diferenciá-lo. O belo, a verdade e o
bem são enunciações esvaziadas de sentido até que ganhem lógica dentro de um
campo de forças. O belo para o rebanho é distinto do belo para o nobre. Essa é a
briga de Nietzsche. Ele não suporta o rebanho porque este renunciou a sua
fisiologia, a seu pacto com a natureza, às suas origens sátiras e, assim, deixou
Dioniso pelo crucificado. Tudo o que está em nome do louvor ao sacrifício, do
sacralizar do sofrimento e da negação da vontade, segundo Nietzsche, é sinal de
“baixo valor de conservação”.

Para o surgimento do belo e do feio. O que, por instinto, nos contraria


esteticamente comprovou-se, pela experiência mais antiga do homem, como
prejudicial, perigoso e merecedor de desconfiança: o instinto estético que
subitamente se pronuncia (no asco, por exemplo) contém um juízo. Nessa medida,
o belo está incluído na categoria geral dos valores biológicos do útil, benéfico e
intensificador da vida: todavia, de modo tal que um sem-número de atrativos, que
140

só muito de longe recordam e se referem a coisas e estados úteis, dá-nos o


sentimento do belo, isto é, um acréscimo da sensação de poder (não, portanto,
meras coisas, mas antes também as sensações que acompanham tais coisas ou seus
símbolos(...)103.

Para Nietzsche, porque música e dança são movimento, elas têm a


prerrogativa de deslocar valores. A arte tem valor orgânico, sendo ela própria o que
unifica as pulsões de vida. Trata-se de uma condição que impulsiona a vida e sem
ela os atos perdem força. Nietzsche evoca o exemplo do amor. Quem está
enamorado também está em movimentações dionisíacas, sente-se embriagado, vive
verdadeiro transe. Segundo o filósofo, o estado de enamoramento permite a arte da
mentira: mente-se para si e para o outro de maneira tal que se fabrica uma ficção
permeada de signos de potência: “torna-se mais forte, mais rico, mais perfeito e, de
fato, é-se mais perfeito...”. A arte como mentira ou como mais uma mentira...
Significa dizer que ela atua como um elemento transformador de valências, criando
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cenários, implementando realidades. Nietzsche chega a dizer que “toda arte atua
como sugestão dos músculos e os sentidos, os quais, na origem, são ativos nos
homens artisticamente ingênuos: ela fala sempre e somente aos artistas, fala a essa
espécie de delicada comoção ao corpo.104” Por isso, toda arte funciona como um
elemento potencializador capaz de aumentar o prazer e a sensação de gozo pleno.
De acordo com o pensamento fisiológico de Nietzsche sobre a arte, o feio é
justamente aquilo que não pode ser artístico, aquilo que gera impotência, que
arrefece os estímulos, que entope a máquina, desfaz as ligações entre os elementos.
O feio é tudo aquilo que diz não, que emperra, que julga e com esse ato destrói o
espaço da experiência. O feio evoca o feio, contamina, empobrece, faz morrer. O
feio é pesado, moroso, mal-humorado. A dança, para acontecer, necessita de leveza,
sua divindade é sempre bela e essa beleza é muito menos a sua forma do que a sua
intensidade.
Assim Nietzsche queria sua música, assim ele pensava sobre seu método de
composição, assim ele aspirava fazer de sua fisiologia porta para uma compreensão
filosófica do mundo. A percepção de que a experiência da composição permite em
si comungar da embriaguez dionisíaca fez Nietzsche acreditar que suas afecções

103
WP 804.
104
WP 809.
141

pudessem reverberar junto ao cosmos, isto é, imaginava que muitas pessoas —


talvez uma legião! — pudessem compartilhar de sua experiência, entrando em
contato com as vibrações que emanavam de seu pathos.
Nietzsche não falava de uma estética da música propriamente dita e, muito
menos, pensava as condições de uma teoria geral da música. Ele falava de “estados
estéticos”, isto é, devires cujas reverberações pudessem inscrever-se no todo,
pudessem estabelecer conexões e, com isso, operar efeitos de beleza. Tudo isso
sendo transitório, tudo se tornando possível a partir de uma espécie de alinhamento
momentâneo dos astros, ou de formação peremptória dos corpos em afecção. Os
corpos funcionando como potências interligadas como conectores elementares para
o encadeamento de uma sonoridade única, bela por princípio. O estado estético não
é outra coisa senão o estado de embriaguez dionisíaca, o passar do carro alegórico
do sátiro que se deixa à vontade, exatamente como o dito “passar da caravana”.
Esse estado é o que permite uma comunicação fluida entre as espécies, pura
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transmissibilidade genética, mas uma genética não necessariamente presa aos


fundamentos biológicos, e sim regendo e sendo regida pelas leis cósmicas.
Um fenômeno pleno, dirá o filósofo, algo do tipo “a linguagem em suas
origens multiplicadoras”. O corpo cria, através do pathos, as dimensões por onde se
engendram os sentidos. Não é à toa que a experiência da loucura é um referencial
próximo aqui. Nietzsche suspeitava de que os modos de adoecimento
psicopatológico estivessem em total consonância com as expressões artísticas:
ambas derivam dos efeitos estéticos105. Sendo assim, que critérios as distinguem?
Como pensar em um limite? Resposta: ele existe para ser sempre testado, recortado,
revertido até ser encolhido ou expandido. Tudo é movimento na perspectiva da
fisiologia nietzschiana da arte. Se o piano é uma extensão do corpo, os órgãos do
corpo são as teclas e fabricam sonoridades: quebra total da harmonia buscada pela

105
Àquela época, ainda era possível, também, romancear as psicopatologias. Apesar de já
impregnadas de ordens classificatórias, ainda mantinham uma certa atmosfera de estranheza, de local
de refúgio, de bizarrice quase poética. Hoje, desde a espetacularização do mundo, com a fetichização
dos farmoquímicos e com a destreza que faz mapear as doenças de forma inesgotável, as
psicopatologias representam o negativo da saúde ideal e devem ser debeladas (assepsia total, ampla e
irrestrita), sem que se diferenciem suas origens, características e idiossincrasias. Com a chegada do
DSMV, a modernidade estará dando mais um passo para o que parece ser seu projeto utópico: o
acorrentamento total das afecções. Vê-se, portanto, que a briga de Nietzsche sempre foi, nesse
sentido, contra os barões da psicopatologização do mundo, que hoje estão fantasiados de doutores
tecnológicos.
142

ciência; desaparecimento total da pretensão unificadora da subjetividade e


exposição do real em carne viva. Os órgãos do corpo como elementos que disparam
sons, os aparelhos do corpo como órgãos cuja tarefa é timbrar os sentidos: “toda
movimentação interna (sentimento, pensamento, afeto) é acompanhada de
alterações vasculares, e, consequentemente, de alterações de cores, de temperatura,
de secreção; a força sugestiva da música, sua “suggestion mentale”106.
A música deverá permanecer, ao menos sob a forma de pensar de Nietzsche,
isenta de toda tentativa de apropriação que não seja a própria fisiologia. Música
boa, sob esse critério, é aquela capaz de acontecer sem a preocupação de perfazer
algum caminho previamente estabelecido. Portanto, a música boa permanece
inaudita, inapreensível e, naturalmente, não é feita para agradar; se agrada, é por
mera confluência de transientes. Aliás, nesse sentido, música para Nietzsche não
persuade como intenção, mas, antes, deve se desprender de pretensões forçosamente
dissuasórias. Aqui, por exemplo, o alvo é Wagner. Nietzsche, que antes o idolatrara
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incondicionalmente, passaria então a condenar sua música por ela conter o caráter
aniquilador do pathos, por ela ser puro teatro, fingimento, enfim, tudo o que
Wagner se esforçara por estabelecer como ideal estético de música, a tal chamada
“música do futuro”.
Um processo de retorção fez de Nietzsche um contundente antiwagneriano.
No momento em que percebe Wagner como um grande hipnotizador de massas, um
verdadeiro Cagliostro, como ele próprio afirmava, Nietzsche se dá conta de que a
música de Wagner é desvirtuada na fonte. Ela é por demais brutal, por demais
artificial. É também por demais datada, estandarte da chamada modernidade.
Em o Caso Wagner, escrito em 1888, Nietzsche sentencia:

A arte de Wagner é doente. Os problemas que ele põe no palco – todos problemas
de histéricos – , a natureza convulsiva dos seus afetos, sua sensibilidade
exacerbada, seu gosto, que exigia temperos sempre mais picantes, sua instabilidade,
que ele travestiu em princípios, e, não menos importante, a escolha de seus heróis e
heroínas, considerados como tipos psicológicos (uma galeria de doentes!)”: tudo
isso representa um quadro clínico que não deixa dúvidas. Wagner est une
névrose107.

106
WP 811.
107
WA 5, KSA 6, p. 22.
143

Haveria uma massa de neuróticos ardendo em fogo, entusiasticamente


esperançosa e desejosa de tudo aquilo que Wagner era capaz de oferecer: algo de
grandioso, magnânimo, capaz de entorpecer o desejo febril das massas de se ver
como parte de um grande movimento. Eles, os “cretinos da cultura, os pequenos
esnobes, os eternamente femininos, os de feliz digestão, em suma, o povo necessita
igualmente do elevado, do profundo, do irresistível”108.
Em oposição ao grande movimento, lembramos, Nietzsche propõe o “grande
estilo”, que, a partir de sua própria versão, baseado nos pressupostos da música
fisiológica, almeja o som antes da linguagem, impõe a natureza dos corpos e dos
fenômenos diante da necessidade de domar ou comandar. O grande estilo é, em si, o
belo, aquele que arrebata, que eleva, que faz intuir.
A música do grande estilo deverá restabelecer o caos, sua lógica faz da
melodia algo de “imoral”. Essa música, Nietzsche talvez tenha dela dado sinais
através da sua experiência, mas não apenas ele: também Handel, Bizet, Peter Gast.
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Uma música capaz de soar diferente, capaz de tornar estranhas até mesmo as regras
da tonalidade. Dirá ele: “Injuriemos, meus amigos, injuriemos, se de fato vemos
como sério nosso ideal, injuriemos a melodia! Nada corrompe mais certamente o
gosto! Estamos perdidos, caros amigos, se voltam a ser amadas as belas
melodias!...”109.
O pensamento musical de Nietzsche não admite que a música seja utilizada
com o propósito do entretenimento, de distração, da frivolidade do prazer —
diferentemente de Wagner, que se utiliza da música, da melodia, para ilustrar mitos,
para provocar efeitos de sentido no coração da semântica que importa transmitir da
forma mais palatável, apoteótica, convincente. Dessa forma, Wagner encarnaria
muito bem aqui o papel daquilo que conhecemos modernamente como “grande
produtor de trilha sonora”, isto é, alguém que subjuga a música, que a deforma e a
submete a seus padrões ficcionais para dar a ela endereço pictórico. Nesse caso, a
música ilustra; ela serve e não é servida. A música é usada como recurso
pedagógico, sua função é preparar os campos de recepção da mensagem: lubrifica,
conforma, conforta, agrega, alicia.

108
WA 6, KSA, p. 24.
109
Ibid.
144

Wagner, o grande produtor, é capaz de decifrar o desejo da massa e dar o


que ela anseia ver. Segundo Nietzsche, Wagner seria muito mais um ator do que um
músico, alguém cujo interesse estava em adornar uma retórica teatral, em
detrimento do grande estilo. Wagner erra por tornar complexo o simples, por
subverter a fisiologia da música.
Para Nietzsche, Wagner atuaria contra a fisiologia e a favor da catequese —
Wagner como o grande divulgador da liturgia, uma espécie de emissário de um
neocristianismo travestido de argumentos gregos. Por que redimir a tragédia? Por
que dar ao desenlace as roupagens de um grand finale?
A briga de Nietzsche é justamente contra os elementos que insistiam em
tornar a música um manual de procedimentos. Wagner, neste sentido, usaria de suas
qualidades técnicas e criativas para engendrar conteúdo, criar visões de mundo.
Seria, portanto, um legislador. Nietzsche acusava Wagner e os wagnerianos de
controladores da massa, de verdadeiros formadores de consciência. Daí o motivo
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pelo qual o filósofo não poderia nunca aceitar Parsifal de forma calada. Com essa
ópera, fica evidente que toda a superabundância de técnicas, a capacidade de
visualização plástica do drama através da música, a criação de êxtase através da
reverência ao bom, ao sagrado e ao justo são manobras de um mágico que deturpa a
gratuidade da música, alocando-a como recurso nobre em favor da negação do
corpo:

Wagner pode pintar, ele não emprega a música para música, ele reforça atitudes, é
poeta; afinal, recorreu, tal como fazem todos os artistas de teatro, aos ‘belos
sentimentos’ e ao ‘peito transbordante’ – com tudo isso persuadiu em seu favor as
mulheres e os carentes de formação: mas o que as mulheres e os carentes de
formação têm a ver com a música?110

O argumento de Nietzsche é que as mulheres e os fracos de formação são


figuras facilmente ludibriáveis, tapeáveis. Facilmente convencidos por arroubos
cintilantes, as mulheres e os fracos de formação são, na realidade, as pessoas
comuns, aquelas que se deixam levar pelas marolas do que soa bem, bonito, fácil. A
música de Wagner seria uma não música na medida em que se constitui pela soma
de artifícios destinados a seduzir as pessoas de “boa-fé”. Aqui, Wagner teria como

110
WP 838.
145

aliados todos aqueles que se identificam com a expressão cunhada por Nietzsche
desde cedo: “os filisteus da cultura”. Ou seja, pessoas que, em carecendo de uma
percepção substancial da música — tendo acesso negado ao que há de fisiológico na
música —, contentar-se-iam em tomá-la em seu sentido mais histriônico,
espalhafatoso:

Pondere-se sobre os meios de produzir efeito, dos quais Wagner se serve com
predileção (meios que ele, em boa parte, teve que inventar): eles se assemelham, de
modo surpreendente, aos meios pelos quais o hipnotizador consegue produzir efeito
– escolha dos movimentos, das tonalidades de sua orquestra; o abominável
esquivar-se diante da lógica e da quadratura do ritmo; o traço furtivo, escorregadio,
cheio de segredos, o histerismo de sua ‘melodia infinita’111.

Essa melodia infinita, esses golpes de cromatismos são capazes de enlaçar o


espectador e arremessá-lo a patamares estritos nos quais os níveis de reverberação
de suas sensações serão álibis para a aceitação infantil das mensagens anunciadas
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pelo grande renovador da música germânica: o triunfal, exuberante e apoteótico


Wagner — ele mesmo, o apocalíptico de novos tempos, instaurador da pacificação
dialética entre os homens. Wagner, em Parsifal, finalmente redimido e remissor,
um gigante em favor da moral, em nome de valores a serem triados, colecionados,
cultuados e transmitidos. Wagner, talvez ele, o grande “estuprador de Euterpe”; ao
menos, sob o olhar fisiológico de Nietzsche.
Contra Wagner, Nietzsche fará surgir Zaratustra. Este antiParsifal será
impaciente com a degeneração do corpo vivida e disseminada pelos filisteus da
cultura. Zaratustra afirmará a música como gratidão à vida, entoará seus hinos de
louvor não ao Deus redentor, mas ao corpo, à Terra e aos elementos decantados da
natureza. A arte de Zaratustra será a resposta contra o aprisionamento da música.
Ele buscará libertá-la através de uma arte apoteótica que não trará “plumas e
paetês”, mas sim a crueza do ditirambo: música fisiológica, canto de pássaro, voo
de águia, gratuidade no devir.
Zaratustra será a própria música: sem finalidade, sem intuito, expressão
máxima de um acometimento: fluxo da pulsão, ousadia junto ao extremo, flerte com
o ponto abismal.

111
WP 839.
4
A arte de Zaratustra: do flerte com o ponto abismal
ao canto como morada do corpo

Zaratustra e o flerte com o ponto abismal

Quem é Zaratustra? Zaratustra é um personagem, um tipo, um nome


cunhado por Nietzsche para poder apresentar os desdobramentos de seu
pensamento, desde o momento em que ele se reconhece desimpedido o bastante
para afirmar sua filosofia a partir de um pathos absolutamente idiossincrático112.
Zaratustra se materializa quando Nietzsche precisa de um elemento que conjugue
em si os diferentes níveis de problematização de sua filosofia. É também uma
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extensão do corpo de Nietzsche, uma boca que contempla, indaga, afirma, anuncia,
experimenta e conclui.
Zaratustra, por ser ficcional, por ser um misto de homem e semideus, herói
às avessas, figura inspirada em vários tipos, carrega em si a possibilidade de
permitir a Nietzsche desenvoltura e liberdades suficientes para dizer aquilo que
seria difícil através de uma textualidade que não carregasse em si algo de literário,
fantástico, sagrado e cômico. Zaratustra permite a Nietzsche acessos à
figurabilidade. Por ser um tipo múltiplo, ele mesmo portador da multiplicidade que
anuncia em sua essência, dirige o pensamento de Nietzsche a lugares antes
insondáveis.
Então, Zaratustra é quem permite a Nietzsche continuar sua filosofia uma
vez que o filósofo-artista se vale da boca do personagem — da sua criatura — para
falar de sua vivência. A invenção de Zaratustra é o artifício necessário para que o
pensamento de seu criador ganhe características dramáticas, musicais e filosóficas
dentro de uma lógica muito particular. Nietzsche esclareceu no Ecce Homo que
Zaratustra era seu duplo. A revelação de Zaratustra a respeito do ponto abismal, o
anúncio da doutrina do eterno retorno e as paixões vividas por esse “profeta” são as
vivências do próprio Nietzsche, experimentadas pelo personagem. No entanto,
112
Ou seja, desde a cristalização de seu rompimento com Wagner e os wagnerianos.
147

também o inverso pode ser afirmado como verdadeiro: é Zaratustra quem permite a
Nietzsche prosseguir em sua trajetória em busca da superação de si. Aqui,
Zaratustra é uma extensão de Nietzsche, uma ficção mais do que necessária para
que a vida do filósofo continuasse.
Zaratustra, através de seus discursos e do curso de sua odisseia, torna-se o
elo articulador entre música e fisiologia, entre genealogia e política, entre vivência e
experiência. Nietzsche dá a “dica” de como se inspirou para criar Zaratustra como
representante da “grande saúde”, dotando-o das seguintes marcas: “(...) um
descobridor e conquistador do ideal, e também um artista, um santo, um legislador,
um sábio, um erudito, um beato, um divino eremita de outrora (...)”113.
Necessário é, a partir de um testemunho textual e preciso como esse,
perceber que Zaratustra é um elemento que condensa uma importante constelação
de nuances que o torna apto a atravessar aquilo a que se propõe. Para dividir o peso
de sua descoberta, para flexibilizar sua tarefa de maneira a torná-la viável,
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Nietzsche deu luz a Zaratustra e o fez potencializar suas convicções: “Para


compreender um pouco que seja do meu Zaratustra, é necessário talvez estar em
condição semelhante à minha — com um pé além da vida...”114.
Zaratustra é, nessas condições, o sátiro que inaugura o discurso anti-heroico
de Nietzsche e permite a ele materializar sua filosofia híbrida. É também um nome
para o Dioniso modificado depois que o andarilho logrou êxito em cunhar para si
uma experiência de afirmação do todo (leia-se, da vida) a partir da afirmação de si.
Todos esses elementos (Dioniso, andarilho, Zaratustra) devem ser lidos — assim
Nietzsche o frisou em Ecce homo — como devires do próprio filósofo:

Não sou, por exemplo, nenhum bicho-papão, nenhum bicho moral – sou até mesmo
uma natureza oposta à espécie de homem que até agora se venerou como virtuosa.
Cá entre nós, parece-me que isso forma parte de meu orgulho. Sou um discípulo do
filósofo Dioniso, preferiria antes ser um sátiro a ser um santo115.

Por isso, Zaratustra nasce na imanência: ele próprio, andarilho. Com ele, as
intenções dionisíacas são refundadas a partir do momento em que o herói retorcido
é um homem, um vir-a-ser cujo alvo é o além-do-homem, e cuja característica

113
EH assim falava zaratustra 2, KSA 6, p. 337-338.
114
EH por que sou tão sábio 3, KSA 6, p.. 269.
115
EH prólogo 2, KSA 6, p. 257.
148

fundamental será a de se fazer transeunte até o ponto máximo de sustentabilidade da


corda elástica que esgarça a extensão do tempo. Aquela corda que sustenta em uma
extremidade o homem e, na outra, o abismo. O além-do-homem é a própria
elasticidade do homem levada às últimas consequências. O homem precisa se
esticar, flertar com o abismo e retornar modificado. Essa parece ser sua ousadia, sua
aposta: permitir que o além-do-homem avance como consequência da experiência
do próprio homem. O além-do-homem é o próprio homem reconfigurado a partir de
sua ponte junto ao limite de si. O homem que se desprender de sua humanidade não
encontrará o inumano como condição, porém como filiação. O além-do-homem é,
portanto, esse homem que retorna de sua inumanização (não confundir com o que se
chama de agir desumano!).
Zaratustra afirma a morte de Deus, mas oferece aos homens algo em troca: o
além-do-homem. Este também não deve ser confundido com um “aprimoramento”
do homem; ele é sua superação. É outra coisa: uma outra designação para o que ele
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intuiu e desenvolveu como vontade de potência enquanto princípio único de criação


do todo. Por isso, seu intuito é irmanar-se com aqueles que queiram fruir sua
descoberta. A descoberta é, em si, um work in progress. Por se tratar, ele próprio,
de uma idiossincrasia do vir-a-ser, Zaratustra não tem elementos pré-fabricados
nem metas. Em um crescente, as coisas vão acontecendo para ele em tempo real, ou
melhor, ele presentifica o tempo, dando-lhe caráter de realidade. Por isso, Assim
falava Zaratustra é uma obra sem começo e sem fim linearmente estabelecidos. O
que importa na trajetória do anti-herói são suas incursões, seus embates, suas
investidas junto aos homens, aos animais e aos elementos da natureza. De
Zaratustra, esse admirável psicólogo da humanidade, decifrador dos mistérios entre
o céu e a terra, recebe-se a graça de seu trabalho: oferecer-se como ser da
experiência para que, a partir de seu sofrimento e júbilo, o homem possa se inspirar.
Diferentemente do Cristo histórico — a quem ele não cessa de aludir, de
parafrasear, de parodiar —, Zaratustra não quer sua imagem fixada na cruz, como se
o sofrimento tivesse que ser exaltado como prova de sacrifício e exercício de
redenção da humanidade.
A cruz, ao cruzar das polaridades (eixo vertical, eixo horizontal), ao definir
os pontos cardeais, orientando o bem e o mal e toda a linguagem subsequente, quer
149

instaurar, através do veneno simbólico, a experiência de Cristo como marco zero,


inaugurando o sofrimento como origem, como filiação. A partir dessa versão do
mito sagrado, todo ato possível será, em última instância, uma tentativa de redenção
da afronta fundamental: um homem mítico, que morreu para salvar os outros
homens, deverá ser cultuado desde o princípio do sacrifício. A partir dele, todos os
outros se irmanarão em nome de uma promessa de reunificação que chegará, cedo
ou tarde.
Quanto a Zaratustra, não veio salvar ninguém. Sua experiência não redime,
sua missão não é agregar, tampouco sua dor deverá ser carregada pelos homens com
o peso da culpa e a obrigação do amor incondicional. Zaratustra não carrega cruz
nem tem marco de origem — sua função é em vida e itinerante. E, se parar,
Zaratustra deixa de ser quem é. Quanto a qualquer tipo de destino, sabe bem, de
antemão, que a ele nunca chegará.
Por amor aos homens, por generosidade, por entender que dar é melhor que
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receber, o “profeta” abraça sua saga e dela faz júbilo incessante uma vez que a
afirmação de seu pathos é o caminho para que ele se livre de todo o peso herdado
junto à humanidade. Se Zaratustra é o anunciador da vontade de potência como o
princípio das forças em expansão, seus esforços vão no sentido de emparelhar seu
corpo com esse princípio, de fazer fluir suas paixões nas sintonias em que elas se
irmanam com as forças criativas.
Essa descoberta — a de que é possível operar afirmativamente a vontade de
potência como princípio do todo —, ele a faz e refaz e, à proporção que anda,
compartilha com vários tipos que encontra no caminho. À medida que encontra
elementos, com eles interage; com alguns se alia e com outros faz guerrilha. Seus
animais, às vezes, são como candidatos à iniciação e também são elementos que
permitem ao próprio Zaratustra alcançar novos elos rumo ao limite da experiência.
Os animais são partes do Zaratustra, são duplos dele também. Contudo, os animais
não dependem de Zaratustra e muito menos são propriedade sua.
Os animais são companheiros de Zaratustra, servem-lhe de interlocução em
sua solidão abissal. Em torno dele, entendem seus motivos e compartilham de suas
descobertas. Aliás, os animais que habitam as alturas sabem também dos segredos
que envolvem a aproximação ao abismo.
150

Quando esteve convalescente, seus amigos animais não o abandonaram


sequer por um momento. A águia e a serpente, por exemplo, são-lhe os mais
queridos inspiradores desde que ele se decidiu por se retirar da convivência com os
homens pela primeira vez. Quando habita as alturas, é com os animais que
Zaratustra se comunica e, a partir dessa relação de fidelidade, ele se regozija e
absorve a potência de seus amigos. O diálogo, ainda que tácito, flui e torna
Zaratustra um ser entre o humano e o animal.
Zaratustra será mais bem compreendido se não for concebido como
subjetividade. Ele não é um homem com perfil, traços ou identidade. Zaratustra é
tão somente uma designação, uma composição capaz de articular uma experiência
que se propõe a transitar entre o humano e o inumano. Ele é o nome para
arregimentar todos os movimentos que visam alcançar o que Nietzsche chama de
“transvaloração de todos os valores”. Tomamos o verbo transvalorar aqui como
ultrapassamento da valoração em si. Para além da diferença dos valores, está a
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indiferença absoluta. Transvalorar significa, antes de tudo, superar a referência aos


valores e transitar, ainda que provisoriamente, na dimensão não valorativa da vida,
onde o plano de imanência reduz o ser ao puro devir do instante: vir-a-ser no além-
do-homem. Ou seja, o além-do-homem é a afirmação da própria transvaloração
experimentada.
Por valor, entende-se tudo aquilo que se estabelece como sistema de
linguagem, do mais simples ao mais complexo. É valor tudo aquilo que é efeito da
mínima diferença. A diferença não é o valor em si, mas o que afere condições para
que as trilhas valorativas se desdobrem. O valor não é outra coisa senão a
formalização de um determinado discurso com vias a cavar sulcos no real e dele
extrair consequências. Todo valor cria (e é recriado por) um ou mais ethos e, a
partir disso, estabelece as mais variadas relações, que são, na realidade, as relações
de poder.
O valor, por cristalizar movimentos de inscrição de linguagem, porta em si a
característica de se identificar como verdade. Toda valoração é estratificação de
sentidos e cria laços que variam de acordo com complexidades. É próprio do valor
se estabelecer como hierarquia e arbitrar subvalores através de sua constante
afirmação. Uma vez em curso, o valor se propaga indefinidamente, através da
151

geração de novos valores. Um valor pode se prolongar até ser substituído por outro,
porém, de qualquer forma, independentemente da qualidade, o valor é sempre valor
demandante de adesão116.
O valor, ou melhor, os conjuntos e subconjuntos de valores são famílias,
cepas e sempre constituem dinastias. O valor é excludente, agregador e também
segregador (de acordo com as conveniências) e trabalha sob a lógica da
incorporação: por isso, não há valor que não queira expandir-se e se estabelecer
através de ramificações. O valor é a vontade de potência travestida de linguagem.
Em suma, todo valor, ou sistema de valores, é imperativo e dominador. Sua função
é servir a outros valores na própria cadeia, de maneira a subjugar, cooptar, eliminar
e reforçar outros valores de acordo com seus interesses. O capitalismo, pela
especificidade com que substancializa o próprio valor como princípio, pode nos
servir de modelo para entender o que se articula, talvez, como a lógica de
funcionamento do valor por excelência. Contudo, de qualquer maneira, capitalismo,
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socialismo, democracia e anarquia, por exemplo, são formalizações discursivas dos


valores. Em suma, valores constituem a história, a política, a religiosidade, a ciência
e a arte. O valor é sempre gregário em última instância e representa-se bem pela
noção de “valor de mercado”.
A especificidade do que é próprio do transvalorar no sentido nietzschiano,
ou seja, o ultrapassar o modo valorativo da linguagem, implica jogar a experiência
ao extremo. Não há cultura sem valores, e a transvaloração não pode constituir uma
nova cultura porque, se isso acontecer, ela já não será mais transvalorativa. A
transvaloração deve ser entendida como dispositivo de torção. O extremo a que se
chega – isso a que aqui chamamos de flerte com o abismo - é um ponto único que

116
A sanguessuga (aforismo que pertence à parte IV do livro Assim falava Zaratustra), que havia
mordido dez vezes um pobre homem que jazia deitado ao chão, é ela a ação soturnamente invasiva,
do próprio valor. Nietzsche mostra o quanto os homens são dragados e tornados apáticos por valores
que lhe tomam suas forças. Ao homem paralisado pela ação da sanguessuga, Zaratustra oferece sua
caverna, local onde pode reestabelecer-se. A caverna de Zaratustra, situada no cume, assim como
seus animais, amigos e vizinhos nas alturas, são a política contra a mediocridade dos valores. O
ditirambo de Zaratustra é entoado das alturas e sua força cura os homens – aqueles que podem ouvir
– da consciência. Já a música de Wagner, nessa perspectiva, equivale à do flautista mágico que, ao
entoar sua cantiga hipnótica, convoca todos os ratos da cidade a juntar-se a seu movimento. Os ratos
fazem adesão à “música” do flautista justamente porque essa música induz à colagem, ao
esmorecimento do querer. Quanto mais ratos, mais ratos ainda. Os valores se multiplicam na medida
em que encontram mais elementos afeitos à sua forma. Desta feita, os valores assumem o lugar da
consciência e o corpo é subjugado. CQDZ (como queria demonstrar Zaratustra).
152

pode ser deflagrador de uma transformação com valor de revelação, de expansão.


Ou seja, a experiência de se tangenciar esse dispositivo de torção pode ser entendida
como a transmutação de tudo o que é valorativo em valência afetiva (afecções). Isso
quer dizer que a ousadia de flertar com o ponto abismal reverte ao homem uma
condição que lhe foi extraviada desde sua origem: a de poder arbitrar valor ao corpo
desde sua própria fisiologia. Ou melhor, de poder ser o próprio corpo o valor: “És
uma nova força e um novo direito? Um primeiro movimento? Uma roda que gira
por si mesma? Podes também obrigar estrelas a girar ao teu redor?”117.
A cultura, bem entendido, cobra de cada um, como bilhete de ingresso, a
renúncia compulsória da designação do pathos desde a potência do corpo. Isso quer
dizer que o processo de maturação biológico/humano prevê a saturação total das
valências afetivas de maneira tal que elas só possam existir se submetidas aos
trâmites estabelecidos pelos valores. Tudo que é designado pela linguagem admite o
acesso do homem ao reino da cultura, mas, ao mesmo tempo, rouba-lhe o que é
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capital: o trânsito livre ao decodificador de signos. Pois bem, esse decodificador de


signos não é outra coisa senão um dispositivo que se faz operar exclusivamente na
dimensão do flerte com o ponto abismal. Diz-se flerte porque é preciso dar bem a
ideia de que não se estaciona ali, não se arma acampamento no abismo.
Zaratustra flerta com o abismo e retorna. Ele não se joga porque se atirar no
rasgo abissal seria dar fim à vida e, portanto, seria dar fim ao que ele mais preza.
Ele não fica estagnado diante do abismo porque não é niilista. Também não retorna
impávido porque não consegue ser cínico (e nem quer) o suficiente para denegar a
realidade a ponto de “não ver o abismo”. Por fim, ele não é devedor de uma lógica
dogmática que o levaria a entender o abismo como lugar de onde vem a promessa
de uma vida melhor após o perecimento do corpo, porque não é religioso. Sua
doutrina é quase que uma doutrina aos avessos, ou melhor, sua doutrina é doutrina
do avesso. Nesses termos, Zaratustra vai ao abismo e volta como quem realiza um
circuito inexorável. Sua paixão é flertar com o abismo e disso depreender algo de
inusitado. Por isso, entende-se que, a partir de sua investida, o valor é o próprio
exercício e o tangenciamento no ponto abismal é o máximo que se pode atingir em
vida.

117
CSK, 4, p. 89.
153

Os valores são o que há de humano. A patologia humana, aprende-se com


Nietzsche, é a de criar compulsivamente valores e torná-los objeto de crenças e
práticas. O valor é patológico porque induz o homem à crença e, posteriormente, à
devoção. O vício humano, a burrice do rebanho, é crer que os valores existem como
naturais, como se fossem destinos aos quais não coubesse nada de diferente a não
ser aceitá-los como dons supremos, como verdades absolutas: “Dizes ser livre? Teu
pensamento dominante quero ouvir, e não que escapaste de um jugo. É um destes a
quem foste permitido escapar de um jugo? Há alguns que lançaram fora seu último
valor, ao lançar fora sua obrigação de servir”118.
O maior vício humano — assim nos fará crer Nietzsche — é dotar a
experiência de Deus como valorativa. Um Deus que julga, pune e segrega só pode
ser uma entidade demasiado humana, criada e corrompida pelos valores do homem.
A humanização de Deus é, para Nietzsche, o maior equívoco quanto ao
entendimento da própria incidência do que seja da ordem da divindade. A morte de
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Deus, anunciada por Zaratustra, abre caminhos para a movimentação dos homens,
para uma reconfiguração da experiência, sobretudo no que esta diz respeito às
potências do corpo e suas relações com a Terra. Zaratustra ama a Terra e sua
imanência, e reconhece no movimento a engrenagem fundamental para o fruir da
vida.
A partir de Zaratustra, nada é estanque, nada permanece, nada se acomoda.
Zaratustra é o próprio deslocamento tipificado: “Eu sou um andarilho e um
escalador de montanhas, disse para seu coração, e eu não gosto das planícies e, ao
que parece, não posso ficar muito tempo parado.”119
Por que Zaratustra se desloca? Como se entende sua necessidade quase
compulsória que o impele a ir ao encontro do mar? Responde-se: porque o mar é o
local de amplidão, aberto, em movimentos: as ondas, os ciclos, as marés...
Zaratustra atravessa os mares, mas ele carece também da ilha, de seus amigos. Ele
sempre volta. Em suma, ele busca os elementos que lhe permitem expansão. Ele não
se fixa — nada é tão sólido ou definitivo que possa obrigá-lo a aderir. O
pensamento flui porque o pensamento é corpo. O corpo se desloca e, em se
deslocando, produz outros corpos. Zaratustra se desloca dos mares às ilhas, mas
118
Za do caminho do criador, KSA 4, p. 80.
119
Za o andarilho, KSA 4, p. 193.
154

também escala montanhas. E também as desce. Ele não tem bússola, não tem plano
de viagem, sobretudo, não tem memória. Zaratustra vai e vem.
Dirá ele sobre o caminhar que o leva ao cume:

Segue teu caminho de grandeza. Essa deve ser agora tua maior coragem: que não
haja mais nenhum caminho atrás de ti. Segue teu caminho de grandeza; aqui
ninguém te acompanhará furtivamente! Teus próprios pés apagaram o caminho
atrás de ti, e acima dele está escrito: impossibilidade120.

Caminha-se, aqui, para o desprendimento. O apagar do caminho, o apagar


das trilhas e dos rastros apontam para a imaterialidade do caminho; dele, nada pode
se dizer. Não há mapas possíveis, estratégias ou metodologias que garantam a
reprodução do caminho — apagamento total da memória. Caminha-se do baixo para
o alto, dos valores moralistas ao corpo, da memória ao impossível. É esse
impossível que fascina e deixa Zaratustra perplexo. Há uma inequívoca euforia
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nesse processo.
Seu deslocamento, continuado, faz-se entre polaridades. Ele oscila como
condição de se manter em um certo equilíbrio. Não o equilíbrio que leva ao
consenso dialético, mas, sim, aquele que é habilidade inerente ao equilibrista. Não é
o equilíbrio que visa à acomodação, e, sim, à tensão. Zaratustra, assim como
Nietzsche, precisa da báscula como princípio. Sua máquina de produzir ideias, de
transformar vivência em experiência, é movimentada pela alternância entre as
polaridades. O alternador dessa máquina não permite que ela siga sem rodeios. A
máquina é regida pelo princípio interno de vai e vem. Daí o júbilo: vai e vem é
movimento, é tensão, é exercício lúdico.
Em Zaratustra, o movimento se justifica porque o destino é a vivência. Sua
movimentação pode ser frenética, pode ser imprevisível, mas será sempre afirmada
porque a planície a incomoda, e a falta de relevo, de modulações, faz seu corpo
endurecer.
Nietzsche põe na boca de Zaratustra aquilo que já havia dito através do
andarilho em 1877: “Vivencia-se apenas a si mesmo”. Contudo, vivenciar, em si, é
o que importa para que o resto possa ser dito. Aliás, Zaratustra mostrará que só se
diz o que é resto, o que é sobra; disso tenta falar a experiência. A experiência é o

120
Ibid, p. 194.
155

dispositivo que instaura a linguagem. Quando a linguagem se estratifica, iniciam os


vícios dos valores: refluxo do elástico, movimento de opressão ao corpo, perda de
tônus.
A vivência, por sua vez, pode ou não acontecer. Poderia haver destino mais
capcioso do que aquele que exclui a vivência do modus operandi de uma vida?
Portanto, certamente, Zaratustra veio ao mundo para alertar aos homens que eles
cometem o grande crime, a grande afronta, quando subjugam a vida ao abdicar da
experiência. Quanto mais se humaniza o homem, quanto mais ele se apodera das
leis de formatação (valores), menos a dimensão da vivência se manifesta e mais o
corpo se enfastia. Ele denuncia, cedo, os “desprezadores do corpo”. Os detratores da
grande razão (as leis previstas pela fisiologia do corpo segundo a vontade de
potência) desconhecem que o corpo é a “multiplicidade com um sentido, uma
guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.121” O corpo, entendido como
multiplicidade, portanto, particionado em microdeidades, é o corpo que abriga o
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saber, que pode permitir a continuidade das materializações dos corpos.


Zaratustra denuncia os que escravizam o corpo, ou seja, aqueles que o dotam
de uma função: carregar peso. O camelo é um inimigo do corpo, o anão que surge
como contrapeso em suas costas é um peso pesado contra a leveza e o fluir. São
inúmeros os desprezadores do corpo, por conseguinte, a vida. Os sacerdotes são
descritos por ele como aqueles que vivem e lucram com a destituição do corpo.
Zaratustra despreza todos os comerciantes do corpo e todos os que se seduzem pela
crença de que algo possa ser mais fundamental do que o corpo.
O anti-herói bufão poderia muito bem dizer: “O corpo, mercadoria mais
negociada. Vende-se o corpo por pouco ou quase nada, porque tudo que não é corpo
é pouco, ou quase nada”.
Zaratustra, entretanto, dá o tom: para que o corpo não pereça, é preciso que
ele ganhe livre fluxo. É preciso insistência. A fisiologia de Nietzsche é clara: é
preciso que a pulsão reverbere como as cordas da lira de Zaratustra, que ela seja
afirmada como movimento, força, ímpeto de acontecimento. Zaratustra anuncia, no
despertar de sua maior realização — o flerte com o abismal —, a “mais solitária
caminhada”, o ponto de junção entre o cume e o abismo.

121
Za dos desprezadores do corpo, KSA 4, p. 39.
156

Aquilo que antes apavorava, agora seduz; o que antes paralisava, agora
tornou-se pathos de movimentação. O instante abismal, esse ponto de suspensão,
essa suspensão de todas as diferenças, de toda fragmentação, é agora tido pelo
jocoso anti-herói como o “último refúgio”, o lugar único de onde se pode olhar à
distância para todo o resto (tudo que existe) de forma isenta, sem com ele se
confundir.
Como, porém, suportar a vertigem diante dos abismos? Como suportar o
lugar da indiferenciação, o lugar que cria todos os lugares e que silencia todos os
silêncios? Como suportar essa descaracterização, esse desmembramento absoluto?
Mais ainda, como conseguir chegar a esse lugar a despeito de toda a “força da
gravidade” e de toda a lógica que o concebe como impossível?
A resposta está na báscula que faz mover o afeto: chora-se de raiva, debulha-
se em lágrimas amargas. Transita-se da dor para a alegria em uma questão de
instante. A livre fluência dos afetos, a variação entre suas valências é o que permite
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aquecer e movimentar a frenética máquina da afirmação de si. A partir disso,


habilita-se uma dimensão de desprendimento chamada coragem — a coragem para
subir ao mais alto dos cumes, para resistir à pressão da queda sempre anunciada,
para fazer fluir a máquina que quer ir além de tudo o que existe. A partir dela, é
possível ouvir; sobretudo, ver. Indagará o bufão em Zaratustra: “O próprio ver não é
ver abismos?”122
É a coragem, diante do embate com o anão, aquele que puxa sorrateiramente
para baixo, aquele que é aleijado e, ao mesmo tempo, aleijador, e que fica
“pingando chumbo em meu ouvido, pensamentos gotas de chumbo em meu
cérebro”123. Esse anão que solidifica o medo, a ameaça de recuo, a voz da má
consciência, a retórica da covardia... Esse peso precisa ser vencido, mas ele é
sorrateiro. Quer dar a impressão de que sua existência é inexorável e sua função —
a de alertar e apavorar até lograr êxito com a fuga, a desistência do andarilho de sua
função — é obra de magnânima importância. Zaratustra mesmo o carrega. Ele sabe
do quão difícil é derrotar o peso da gravidade encarnado na figura de um
desprezível ser que o habita parasitariamente.

122
Za da visão e enigma, KSA 4, p. 199.
123
Ibid.
157

Para enfrentar o anão, Zaratustra o reconhece e o abriga. É obrigado a ceder-


lhe espaço, a oferecer-lhe interlocução. Não se livra do anão tão facilmente. É
preciso que a lógica do movimento faça com que o próprio anão se sinta
incompatível e pule fora. Teste de esforço, mas, sobretudo, teste de saúde. O anão, a
princípio, agente da náusea, nauseabundo por constituição, deverá ser, ele próprio, o
que se tornará nauseado — não por disputa de consciências, não por batalhas
dialéticas e sem concessões. O anão deverá pular fora por falta de consistência, por
inadequação. Para tal, Zaratustra precisa suportá-lo até às alturas. Levá-lo na
maciota, driblá-lo e encará-lo na hora exata em que suas armas de ataque se
tornarão desabilitadas. Há sempre isto em Zaratustra: um ponto de dobra, de
inflexão, de desmontagem. O anão pode mudar de tamanho: talvez ficar maior a
ponto de ele próprio tornar-se insustentável diante de seu signo designador. Um
anão inchado o suficiente para não ser mais anão... Um anão que se desconfigure
através da força do sentido tomado pelo movimento de Zaratustra. Não deve haver
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piedade, nem compaixão. Zaratustra não se reconciliará com o anão, porém não o
hostilizará, não o maltratará. Uma política deverá surgir: o anão há de ter seu ponto
fraco.
Sobretudo agora, quando enfrenta a mais alta de todas as subidas, aquela que
o levará ao flerte com o ponto abismal, agora, portanto, Zaratustra está mais forte
do que nunca e, decidido, impávido, contundente, destaca o ser do anão de si
próprio e toma-lhe como corpo invasivo, como indesejada presença, elemento de
baixa extração. Agora, fortalecido por sua própria experiência, amplificada nela
própria, Zaratustra é capaz de desafiar o anão numa espécie de embate decisivo:
“Anão, ou tu ou eu!”124
Não é, contudo, tarefa fácil calar a voz do anão. Estratificada, é uma voz
histórica, tomada pelos vícios da cultura que se fez à custa da inibição da potência
do corpo. O anão é a voz tirânica que faz reverberar a culpa toda vez que o homem
comum pensa em se lançar para mais além do que há. Ele ilude os desavisados que,
sem condições de diferenciá-lo de si próprios, o tomam como elemento a ser amado
e glorificado na medida em que faz as vias do conselheiro, daquele que previne, que
cuida...

124
Ibid.
158

É preciso atacar sem vacilar, sem recuar. “O inimigo mora ao lado”, vem de
dentro. Ele é a própria vontade de nada, inscrita na trajetória do corpo. É preciso
matar, e a coragem é o melhor matador, dirá Zaratustra. Ela mata em nome da vida
que quer triunfar, que não se atém diante da ameaça. Coragem que permite dizer
sim ao corpo, à vida e querer que ela venha “mais uma vez!”.
Subir, eis o movimento. Subir ao cume. Mesmo que o anão avise dos perigos
da queda, subir é um ato inexorável. Zaratustra tem um trunfo: um “ás nas mangas”
e, com ele, desafia o anão. O anão pesa contra a subida porque tem medo do risco,
do esfacelamento. Zaratustra, porém, sabe do além-do-homem. Sabe que é do cume
que se pode flertar com o abismo e que só se dobra o metal quando a temperatura
atinge níveis altos. Ele diz ao anão, de forma decisiva: “Eu ou tu! Mas eu sou o
mais forte de nós dois –– tu não conheces meu pensamento abismal! Esse, não
poderias suportar!”125
Quem, senão Zaratustra, ele próprio um nobre, um ser nascido da
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aristocracia do pensamento; quem, senão esse louco afirmador do Sim da vida,


poderia enunciar sem medo a decisão do “ou tu ou eu”? Ou seja, apenas um nobre é
capaz de assumir sua nobreza e destacar o que não é nobre de si. Visão segregadora,
hierarquizante e submetedora; segundo Nietzsche, contudo, visão que confirma a
própria genealogia da vida, que prevê as camadas de estratificação, as zonas de
elevação e refinamento. Evidentemente, dessa forma, é impossível atender ao
mandamento do “ama ao próximo como a ti mesmo”. Só é possível, dirá Nietzsche,
lograr êxito em “amar a si mesmo” para depois, como efeito de consequência poder
“amar ao próximo”. Ou seja, só se ama ao próximo se ele o torna mais forte nesse
encontro, sempre por interesse mútuo: pacto pela potência. Zaratustra não tolera a
compaixão porque ela nivela por baixo, irmana na derrota, prolifera a sensação de
injustiça.
A coragem, o ímpeto de seguir adiante, a clareza do que afirma, surte
sempre o efeito: o anão é obrigado a se deslocar, a desimpedir o caminho. Ele agora
dá a chance a Zaratustra de apresentar-lhe algo, de ser ele o condutor da boa nova. E
Zaratustra logra atingir o portal –– o portal que suspende o tempo, que inaugura o

125
Ibid, p. 199.
159

instante. O portal como marco zero126 de um caminho A que retroage por toda a
eternidade e, no simétrico, oposto, o caminho B que leva ao futuro por toda a
eternidade. Dirá Zaratustra que esses caminhos, por serem eternos, chocam-se
frontalmente, mas se encontram no marco zero do portal (onde não há inscrição).
Esse marco zero é, ele mesmo, a ausência de todo sentido, portanto, de toda
valoração.
Tudo que existiu teve que ter vindo da eterna trilha do passado, assim como
tudo que existirá deverá percorrer a eterna trilha do futuro. O instante, o agora, é o
ponto de convergência entre passado e futuro e, por isso, o ponto de suspensão do
tempo. Ele é eterno e se põe, por conseguinte, a se repetir insistentemente. Esse
portal, marco zero, é o local de condensação máxima da potência. Se é possível
admiti-lo, afirmá-lo, então, pode-se transformar a valência das coisas, pode-se
afirmar e querer a vida independentemente do que aconteça. Aqui, o portal dá
acesso a um irrefreável êxtase que, por admitir que tudo é em devir, não cessa de se
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alegrar na potência infinita do Sim que é dito eternamente.


Em nova alegoria, desta vez, através da luta entre uma negra serpente e um
jovem pastor, Zaratustra dá continuidade à sua experiência. O anão agora sumiu e,
em seu lugar, a serpente negra está a dilacerar o rosto de um jovem homem que foi
invadido por esse elemento hostil e aniquilador. Um cão uivando, no uivo mais
desesperado, leva Zaratustra a ver a cena: ele se sente impelido a agir em defesa do
pastor. Ele tenta, mas sem sucesso, arrancar a serpente de dentro do pastor. A
seguir, avisa: “Corta a cabeça, morde!”127. E, finalmente, o pastor, com suas
próprias forças, consegue decapitar a serpente e dela libertar-se. Eis que Zaratustra
se regozija ao descrever o que sucedeu quando, enfim, o homem se livrou da
serpente: “Não mais um pastor, não mais um homem –– um transformado que ria!
Jamais, na Terra, um homem riu como ele ria!”128
Livrar-se do anão por meio do duelo e livrar-se da cobra pelo ataque –– não
há como vencer sem aniquilar. Essa é uma lição de Zaratustra. A transvaloração é

126
Repare-se que o marco zero de Zaratustra é distinto do marco zero do Cristianismo. Enquanto o
primeiro é uma referência isenta de representabilidade e possibilitadora da experiência de si, a cruz
do Cristianismo funciona como signo originário e estabelece o sofrimento como redenção e a culpa
como valor de adesão.
127
Ibid, p. 202.
128
Ibid.
160

essa torção entre o dentro e o fora. O portal, através da suspensão do tempo, da


afirmação do instante como o único eterno, produz todas as possibilidades de
reversão. A cobra é víscera. Víscera de dentro ou de fora? Invasiva ou invasora?
Como lidar com uma ameaça que não se distingue, que não se posiciona? O portal,
pois, permite a lucidez absoluta e destitui a malignidade (ou benignidade) dos seres
que representam ameaça porque ele os indiferencia quanto aos valores. Entre “o
anão ou eu”, na disputa entre vida e morte, entre a cobra e o pastor (que não é senão
o próprio Zaratustra), entre todas essas ameaças, então, mil vezes a vida!, insistirá
Nietzsche. Todavia, somente a experiência do portal permite a coragem para “cortar
na própria carne”, ou para cortar na carne do outro. Se a lei diz “Não matarás”,
Zaratustra transvalora e afirma: “Tu viverás!”. Aos impedimentos da lei, aos limites
impostos ao homem, Zaratustra oferece a tenacidade, a resistência e o querer a vida
na sua tragicidade.
Inegavelmente, o portal é o marco zero e, como tal, prevê um novo início:
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começar novamente, de maneira que viva o mesmo de forma diferenciada. O gozo


pleno de Zaratustra ao lambuzar-se desse elixir inebriante que brota do seu
atravessamento do tempo pelo portal é ocasionado pela sensação de dar ao corpo a
potência máxima do sentido. Transvalorar, aqui, é incitar a experiência, antes,
subjugada à verdade do anão ou à violência indefensável da serpente negra.
Transvalorar, aqui, é tomar o lugar de Deus e fazer do corpo o legislador do porvir.
Desejoso da indiferenciação absoluta trazida pelo marco zero do portal,
Zaratustra confessa seu maior desejo: fundir-se em total comunhão com o céu, o
abismo dos abismos –– lá onde a luz nasce e se prolifera ao infinito, sendo ela
própria o abismo. Quanto ao céu, amigo adorado, dirá Zaratustra:

Somos amigos desde o começo: tristeza, horror e profundeza temos em comum;


também o sol temos em comum. Não falamos um ao outro porque sabemos coisas
de mais: silenciamo-nos, sorrimos um para o outro o que sabemos. Não é luz para o
meu fogo? Não tens a alma irmão do meu entendimento?129

Todo movimento, todo caminhar, todo escalar revela seu único motivo:
fundir-se com o todo abismal, ser ele mesmo parte indiferenciada do céu; voar para
dentro do céu, abolindo todo e qualquer tipo de intermediário, de obstáculo, de

129
Za antes do nascer do sol, KSA 4, p. 207.
161

mediador. E, quanto às nuvens, esses malditos seres que vivem no entre, lugar de
indefinição, que mancham o caminho, que encharcam de ódio a vida: “Tenho
aversão às nuvens passageiras, sorrateiros felinos rapaces: elas tiram de ti e de mim
o que nos é comum –– o imenso, ilimitado dizer Sim e Amém.”130
Trata-se aqui de maldizer tudo o que é meio do caminho, tudo que é “meio
isso, meio aquilo”, o que vacila, que não afirma, que busca ser suave não como
estilo, mas como cinismo ou covardia. Mais uma vez, afirma-se a integridade do
absoluto em detrimento dos vícios da linguagem, dos elementos que desvirtuam a
condição de gozo absoluto. Com a força do céu em sua totalidade, esse céu que é
abismo e luz, e que agora pode ser ele também, com essa magnitude da experiência,
Zaratustra se permite ser, assim como o céu, ele também capaz de abençoar, de
levar o seu Sim a todo lugar, a todo e qualquer abismo:

Tornei-me alguém que abençoa e diz Sim: para isso pelejei muito tempo e fui um
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lutador, de modo a um dia ter as mãos livres para abençoar. Mas eis minha bênção:
estar sobre cada coisa como seu próprio céu, seu teto abobadado, sua redoma de cor
anil, sua perene certeza: e bem-aventurado é que assim abençoa!

Tudo que há, existe, na origem, além do bem e do mal. Tudo que há é
“batizado na fonte da eternidade” e, portanto, qualquer juízo de valor, qualquer
atribuição de polaridade, ou seja, qualquer incidência da linguagem –– incluindo aí
o bem e o mal –– é lido por Zaratustra como “nuvem passageira”. Tudo que há são
compostos, desde o mais complexo ao mais simples. Compostos que se articulam,
que se retroalimentam, que se multiplicam e se dividem. Tudo que pode ser dito,
previsto, decantado, destacado, assimilado, classificado... Tudo isso é o que se
diferencia no exercício da existência. E tudo o que há, tudo que se diferencia, não é
senão circunstancial. O que há, a partir do que advém depois do marco zero –– para
cima ou para baixo, sendo positivo ou negativo ––, tudo o que se desdobra é
contingência. Os arranjos se dobram, rebatem-se, multiplicam-se, tornam-se
infinitos tal como o abismo. Nada disso, porém, é enraizado, nada que há, ensina
Zaratustra, existe como causa final. Não há nenhuma essência sob a qual se remonta
a uma origem única.

130
Ibid, p. 208.
162

Tudo que há se ramifica, numa tendência a se individualizar ao máximo e,


com isso, paradoxalmente, ampliar o espectro do todo. Por isso, ensinará Zaratustra,
as coisas carregam em si o princípio da sabedoria: em tudo que há, existe sabedoria.
Tudo que existe é derivado do saber absoluto e guarda em si o “gene” dessa
sabedoria absoluta. A sabedoria, então, está subdividida, “misturada a todas as
coisas”131.
E como tudo se desprende, tudo se transforma, tudo se pulveriza, também o
sonho de Zaratustra, sua ambição máxima –– a de se ver em comunhão absoluta
com o céu eterno ––, também isso é marcado por cortes, por interrupções. Como
dissemos aqui, o que é possível é o flerte, uma espécie de “bate e volta” de resvalo
no tocante à experiência de absolutização, de irmanação junto ao céu, de
indiferenciação plena diante das coisas. Como Zaratustra é também elemento da
criação –– homem ou mulher, bicho, anão, serpente, eremita, andarilho, enfim,
todos os conjuntos possíveis que contenham traços de existência ––, ele também é
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apenas um instante do que existe, uma parcela qualquer do todo anunciado. Ele
próprio é obrigado a retornar, a desfazer-se desse momento de deleite máximo em
que se encontrava fusionado com o céu. Basta que chegue, mais uma vez, o nascer
do sol, a invenção do dia... E, com isso, Zaratustra está de volta ao percurso. Ele,
por ser não absoluto, é obrigado a despedir-se, a evadir-se. Zaratustra ama o céu,
flerta com o abismo, mas não pode lá estar para sempre. Agora que aprendeu o
caminho, ele vai e vem, cada vez mais altaneiro.
Essa é a grande lição de Zaratustra! Não se pode habitar o abismo, mas
pode-se ir e vir de forma que a vida seja entremeada de flertes com o abismo. Uma
vez a trilha aberta, uma vez a experiência acontecida, uma vez o medo vencido,
então, talvez, para sempre, o exercício de Zaratustra possa estabelecer-se como
prática. Quem esteve no cume, flertou com o abismo, destituiu-se, diferenciou-se,
anulou todos os signos de valoração e encetou a experiência desde o dispositivo do
marco zero –– esse pode fazer de seu exercício de subidas e descidas das montanhas
seu próprio ofício de vida. Zaratustra descobriu a senha que dá acesso a um tipo de

131
Essa ideia já estava presente desde os tempos de O nascimento da tragédia. O Uno Primordial
abrigaria a essência de tudo que existisse, através dos processos de diferenciação. No entanto, o Uno
Primordial implicava uma ideia de transcendência a qual foi tornada em imanência no discurso de
Zaratustra.
163

encontro que restitui ao corpo sua integridade e lhe redimensiona como fração de
júbilo.
A partir de sua volta ao mundo das coisas diferenciadas, sua experiência de
escalar montanhas, mergulhar nos céus e flertar com o abismo o diferencia como
homem. Porque teve a experiência do flerte com o abismal, Zaratustra sente-se
crescido, grandioso, maior, mais forte. Ele não esconde o fato de se sentir superior;
ao contrário, critica todos os que têm alma pequena, que se regulam por pequenas
virtudes e não lhe perdoam porque ele não comunga de seus valores. Zaratustra,
aquele que flertou com o abismo, retorna modificado e torna-se um estranho, um
galo entre as galinhas. Ele é atacado novamente. Desprezado, sente-se discriminado.
Sua permanência junto aos homens pequenos é de difícil manejo porque ele lhes
sugere ameaça: Zaratustra se assemelha ao louco, ao ser da esquisitice, a quem se
deve tirar do ambiente, de quem se devem esconder as crianças: “Ainda não temos
tempo para Zaratustra –– assim objetam ––, mas que importa um tempo que não
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tem tempo para Zaratustra?”132.


São mesquinhos, são pequenos em seu querer. Tomam a vida como fardo e
louvam as próprias invenções. Fascinam-se com seus intelectos, arrogam-se o
direito da doutrina em nome de uma sapiência que encurta a musculatura. O homem
pode mais, quer crer Zaratustra. O homem pode se esticar, alongar-se, deslocar-se,
mas não o faz porque se acovarda diante do risco. Seu ritmo de louvor não interessa
a Zaratustra porque ele encontrou no céu o caminho não para um louvor, e sim para
a expansão. O céu de que fala Zaratustra, ou seja, esse abismo de luz, não é a terra
prometida, não é a morada do Deus humanizado. O céu de que fala Zaratustra é a
expansão da vida, a potencialização do homem que pode ousar ir além de si. O
homem pode se associar aos elementos do céu, adquirir suas propriedades sem que,
com isso, necessite da intervenção de um Deus atravessador que prometa, em troca
da vida e do sacrifício, redenção e acolhimento junto aos pavores e anseios trazidos
pela vida.
Para Zaratustra, o homem se acovarda quando quer o bem-estar. Deteriora-
se quando ama as pequenas virtudes e delas se aproveita para reduzir a experiência
do todo ao parcial do alcance de seus órgãos sensoriais. O homem se contenta em

132
Za da virtude que apequena, KSA 4, p. 212-213.
164

legislar sobre o que lhe é visível e, para isso, doutrina a felicidade e as virtudes.
Para tal, aprendeu, desde cedo, a delegar seu destino a um Deus capaz de julgá-lo e
condená-lo impreterivelmente.
O homem anda claudicando –– é trôpego, manso. Sua ambição é curta e sua
forma de agir menospreza seu potencial. Por claudicar, o homem se coloca como
um obstáculo para Zaratustra na medida em que ele lhe atrasa o caminho. O
homem, apequenado, quer seguir sua vida no curso normal de sua batida. Ele é
lento e, quando quer alguma coisa, esse querer não é autêntico tampouco ousado:
“No fundo [os homens] querem uma coisa acima de tudo: que ninguém lhes faça
mal. Assim são obsequiosos com todos e lhes fazem bem. Isso, porém, é covardia,
embora se chame virtude.”133
Segundo Zaratustra, esses homens são medíocres. São fracos no querer,
carecem de punhos fortes para resistir ao solavanco da escalada. Na realidade, não
querem a escalada por julgarem-na arriscada. Eles são mansos, domésticos.
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Aguardando o juízo final, abdicam de suas vontades e se põem passivos diante do


destino; portanto, são covardes. Esses são os mesmos que dão a Zaratustra o
codinome “sem-deus” porque percebem que ele se recusa a rezar e a se entregar ao
julgo de um ser superior. Ele assim procede porque não suporta que choraminguem,
que reclamem e atem as mãos diante da tão cultuada “vontade divina”. Essa
vontade, segundo o anunciador da doutrina do eterno retorno, não há senão como
cantiga de ninar entoada entre os homens que desejam se apequenar diante do
apavorante. Para Zaratustra, “rezar ao deus” só pode ser tomado desde o sentido
figurativo e significar “seguir em frente na busca da superação”. Zaratustra não só
se reconhece nessa “acusação” como também dispensa Deus e desafia: “Quem é
mais sem-deus do que eu, para que eu desfrute de seu ensinamento?”134. Ele está em
busca de outros que queiram compartilhar com ele a sabedoria que implica
dispensar o deus dos homens, a cruz como marco zero. Sua doutrina entra em
choque com o gosto das massas, ofende as classes instituídas, desafia os párias de
toda sorte e afirma a inexatidão das coisas, dos vínculos, das ações e da própria
sorte.

133
Ibid, p. 214.
134
Ibid, p. 215.
165

No lugar de Deus, Zaratustra bendiz o acaso: o acaso do lance dos dados, do


inusitado, do imprevisível, do não confabulado. Abertura, desconectividade,
quebra... O acaso é a vontade encontrando-se com outras vontades, a resultante das
valências das afecções que se apresentam nas junções de tudo que se intercecciona.
Dirá Deleuze sobre a questão do acaso e do lance de dados em Nietzsche:

Os dados que são lançados uma vez são a afirmação do acaso, no sentido exato
onde o ser se afirma do devir e o uno do múltiplo. Em vão será dito que, lançados
ao acaso, os dados não produzem necessariamente a combinação vitoriosa, o doze
que cairia no lance de dados. É verdade, mas somente na medida em que o jogador
não souber, de início, afirmar o acaso. Porque assim como o uno não suprime nem
nega o múltiplo, a necessidade não suprime nem nega o acaso135.

Ou seja, em Nietzsche, o acaso é a própria ordem a se formar. Ele é


afirmativo porque qualquer combinação que cair do jogo de dados será vitoriosa
uma vez que o jogador saberá desejar o seu destino, que o acaso lhe traz como se
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ele próprio o tivesse escolhido. Fazer de sua escolha o lance do acaso é a sabedoria
ensinada por Zaratustra na doutrina do eterno retorno: “Desejar que tudo na tua vida
retorne uma vez mais e sempre”. Com essa dinâmica, Nietzsche faz do acaso o seu
pathos, constrói, a partir dele, os elementos que compõem o saber. O acaso é bem-
vindo na medida em que ele diz respeito à multiplicidade, à fragmentação e, com
isso, a possibilidade de transição, de movimentação. Além disso, seguindo a
doutrina do eterno retorno, é possível afirmar que o acaso ensina o que é eterno, o
que deve vir como inexorável. Não há a vontade de um Deus barbudo, destinado a
julgar os bons e os maus. O que há, entretanto, é a vontade do acaso que, soberana,
estratifica o inusitado e faz dele história de acasos e, assim, instaura a vontade dos
deuses que se divertem com os lances de seus dados.
A Terra é a grande mesa de dados onde os deuses brincam, como crianças, e,
no lúdico de suas movimentações, decidem os acontecimentos. Zaratustra joga
dados com os deuses, ri de si próprio e de sua sorte. Não importam os resultados:
ele sairá sempre vitorioso porque, a partir de seu número, ele tecerá sua sequência e,
com isso, permitirá fluxo a seu devir. Seu júbilo é estar sempre disposto a se engajar

135
DELEUZE, 2003, p. 29-30.
166

com o acaso e fazer disso sua própria toada: “Deixai vir a mim o acaso: ele é
inocente como uma criança”136.
A criança que Zaratustra já afirmou ser a última das três metamorfoses que
sofre um espírito em seu processo de reversão das polaridades traz a leveza tão
almejada e ao mesmo tempo cobiçada por ele. A Terra deverá, um dia, ser
rebatizada como “a leve” –– porque os homens sentem a vida pesada justamente
quando não aprendem a voar. Porém, se voar é impossível para o homem, como
chegar lá? Segundo o ensinamento de Zaratustra, para se tornar leve, é preciso
experimentar um vir-a-ser pássaro; só assim será possível voar. Todavia, para
tornar-se pássaro, o caminho é “aprender a amar a si mesmo” de maneira tal que
isso permita ao homem “tolerar estar consigo e não vaguear”. O que é vaguear? É
perder-se nos territórios dos outros, é confundir-se com os interesses e propriedades
alheias. Vaguear significa evadir-se de si e fazer morada no outro. Nada poderia ser
pior do que renunciar à própria vida, para viver a de outro.
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A tarefa de amar a si próprio obriga o homem a interessar-se por suas


idiossincrasias e afirmá-las como potências, e não como patologias. A inveja, o
sentimento de posse, a mesquinharia dos homens do mercado, a insensatez dos
forjadores de estado de espírito, tudo isso é sinal de que a experiência de se firmar
desde si próprio passa ao largo. Dirá Zaratustra que é difícil olhar para si, “pois tudo
que é de si próprio se acha bem escondido do possuidor; de todas as cavernas de
tesouros, a própria é a última a ser escavada”137.
Aprende-se com Zaratustra que a violência já nasce no berço. A cultura
enfia, goela abaixo, os mapas de bem e mal, de maneira que as crianças têm
dificuldades de encontrar seus próprios elementos, suas formas de codificar a vida.
Aliás, benditos nessa cultura são os homens que amam o fardo, que, como o
camelo, carregam nos ombros o que não lhes pertence. É difícil carregar a si próprio
uma vez que o universo das ideias e desejos de cada um pode soar estranho, bizarro
e repugnante. O acesso ao que há de mais genuíno, ao que há de mais sensível, é
negado já que a vergonha encarrega o homem de se esconder atrás de máscaras: “O
homem é difícil de descobrir, e descobrir a si mesmo, o mais difícil de tudo; com

136
Za no monte das oliveiras, KSA 4, p. 221.
137
Za do espírito de gravidade, KSA 4, p. 242
167

frequência, o espírito mente acerca da alma. Assim dispõe o espírito de


gravidade.”138
Quem é capaz de singularizar as valências de bem e mal, de relativizá-las de
revertê-las, remodelá-las, este, segundo Zaratustra, será capaz de afirmar seu
próprio destino uma vez que, a cada lance de dados, mudam as configurações.
Habitar em paz consigo diz respeito a suportar o bem e o mal como não decididos,
como elementos intercambiáveis. Não há a verdade em si –– ela se apresenta
multifacetada de acordo com o acaso dos dados. Zaratustra se descobre autodidata
na difícil arte de aprender a voar. Chega-se a ela por transferência de experiências.
É preciso resistir, insistir, disciplinar-se a continuar de maneira tal que se aprenda a
esperar. A espera diz respeito ao quanto alguém suporta a chance de reverter suas
valências. Esperar significa aceitar a reinvenção do tempo através da experiência.
Em outras palavras, espera-se a si mesmo, espera-se em se escutando a necessidade
imposta pelo corpo no tocante aos desdobramentos necessários para que ele se
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desdobre e se reconfigure. Ensina Zaratustra:

Quem um dia quiser aprender a voar, deve primeiramente aprender a ficar de pé,
andar, correr, saltar, escalar e dançar. Não se aprende a voar voando! Com escadas
de corda aprendi a escalar muitas janelas, com pernas ágeis subi em altos mastros:
estar sobre altos mastros do conhecimento não me pareceu bem-aventurança
pequena139.

Em Zaratustra, a apoteose de seu voo é narrada no aforismo “O


convalescente”. Trata-se do momento em que Zaratustra evoca, de forma decidida e
irreversível, seu encontro com o “pensamento abismal”. Em uma espécie de grito
cancional, Zaratustra convoca a presença desse pensamento, ordenando que ele
suba, fique de pé e tome conta. Ele está pronto e decidido a ir ao encontro desse
abismo; ele quer o abismo em si... seus animais, todos, fiéis amigos, ali estão,
inquietos, preocupados e assim acompanham momento tão extremo na experiência
do “profeta”. Na condição de sem-deus, ele se entrega a um processo de transe que
o levará a atravessar a fronteira, a partir para o outro lado, a flertar com o absoluto e
girar a partir desse ponto zero, ponto de desconfiguração, de sideração junto ao

138
Ibid, p. 243.
139
Za das velhas e novas tábuas, KSA 4, p. 261.
168

absoluto: “Eu, Zaratustra, o advogado da vida, o advogado do sofrimento, o


advogado do círculo, chamo a ti meu pensamento mais abismal!”140
Depois de tanto caminhar, subir e descer montanhas, navegar, ensinar e
aprender, desafiar, destituir e retornar, tudo isso sempre com o júbilo de quem vive
para a própria experiência, para o fluir do corpo, Zaratustra sente-se muito próximo
da virada, do momento em que deixará para trás qualquer resíduo de valorização,
momento em que entregará seu corpo a uma experiência crucial, decisiva...
Zaratustra quer dar-se por inteiro, mergulhar no eterno, permanecer cosmicamente
ligado, totalmente integrado ao todo...: “Viva! Estás vindo –– eu te ouço! Meu
abismo fala, minha derradeira profundeza eu consegui trazer a luz!”141
No momento em que se abre o portal, no momento em que se transtornam
todos os ventos, em que o trovão ecoa sobre a Terra, Zaratustra escuta a presença do
ponto zero, daquilo que, a partir de agora, passará a não ter mais nome, ausência
absoluta de sons e palavras, momento derradeiro da história... É chegada a hora,
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tudo por esse instante, tudo por essa brecha! Zaratustra está a ponto de se
transmutar, de transvalorar todos os valores!
Eis, porém, que, neste momento exato, quando tudo estava por se resolver,
quando a sideração cósmica esteve pela medida mínima para se instaurar, eis que,
no momento decisivo que antecede à entrega total, na hora exata em que estende
sua mão para encontrar a “mão” do pensamento abismal, Zaratustra recua, é tomado
de pavor, bate em retirada e, desesperado, ainda grita: “Ah! Larga! Ah! Ah! – Nojo,
nojo, nojo...ai de mim!”142
Ele já havia dito da impossibilidade desse ato; já anunciara a ausência de
condições para a travessia decisiva, embora tenha sempre desejado esticar a corda
ao máximo!
E foi o que fez, efetivamente.
Zaratustra atingiu seu cume nesse momento, deu-se por inteiro, ousou
evocar esse fenômeno adormecido... Ele esteve inteiro para a entrega, mas não
suportou o momento exato em que tudo parecia confluir para o desenlace abismal.
Esse encontro mostrou-se impossível. Zaratustra recuou não porque quis, e sim

140
Za o convalescente, KSA 4, p. 271.
141
Ibid.
142
Ibid.
169

porque não encontrou passagem. Ele chegou bem próximo, seu corpo chegou a se
transmutar, no entanto sua condição humana prevaleceu como limite último, e ele
foi obrigado, longe de qualquer “livre-arbítrio”, a evadir-se apavorado.
Zaratustra se preparou por anos para esse momento. Preparou seus amigos,
sobretudo os mais fiéis, seus animais, companheiros e vizinhos de caverna.
Peregrinou, passou por provações, sofreu... Expandiu seus limites, testou,
argumentou e lapidou sua convicção acerca desse momento. Ele não fez outra coisa
senão se preparar para o grande encontro. Intuiu o bastante para saber o quão
extremada seria a experiência. Com o passar dos anos, seu corpo foi mudando, sua
alegria se tornando radiante, explícita.... E, quando chegou o momento, Zaratustra
evocou, gritou, abriu-se... Sentiu o calor do sol se aproximando, foi inundado por
feixes de luzes, ouviu o inaudito, viu seu corpo dar início à desconfiguração radical,
contudo a passagem decisiva não aconteceu. O recuo não foi por medo, mas por
impossibilidade.
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Por isso, dizemos que ele flertou com o ponto abismal, que ele circundou o
ponto, fez a curva e foi obrigado a retornar. Afinal, ele mesmo não havia doutrinado
a respeito do eterno retorno? Portanto, ele já sabia disso. Ele sabia que, em vida,
não se experimenta a morte e que, a despeito da excentricidade do movimento, a
despeito do impulso para o rasgo último, sempre há um dispositivo lá na ponta,
exatamente onde se situa o marco zero do portal que impele o corpo a regressar.
Esse dispositivo, não é outra coisa senão um alternador, uma chave que possui o
código de todos os elementos possíveis da existência e cujo trabalho é impulsionar
o retorno; aliás, como ensina Zaratustra, o eterno retorno. Essa é a descoberta
extrema de Zaratustra. O portal não permite que os tempos se misturem, mas ele
garante a repetição infinita do instante. Acessar o portal é possível e torna o homem
um ser mais próximo da realização do corpo. Aqui, corpo quer dizer o todo, o corpo
absoluto. Corpo que contém uma infinidade de subcorpos: corpos humanos, corpos
dos animais, corpos celestes, microcorpos etc.
Flertar com o ponto abismal, ou com o instante impossível, ou, ainda, com o
pensamento abismal, é atingir o tempo da possibilidade de reconciliação dos corpos
com o princípio da vontade de potência. O marco zero é o ponto que alinha todos os
corpos, que dá ao experimentador a chance de reverberar em uníssono. Transfusão
170

ampla de energias. Transposições de barreiras, rearregimentações, realocações.


Passado o instante, o instante retorna ad infinitum, mas os seres retornam
modificados. Nenhum corpo se mantém imune ao efeito da suspensão e subsequente
torção dos sentidos. Trata-se de uma experiência extrema, porém marcada pelo
eterno retorno.
O que deve ser assinalado aqui é que Nietzsche, através de Zaratustra, ousou
formalizar, sob a forma de uma “tragédia em quatro atos” ou de uma “sinfonia em
quatro movimentos”, os desdobramentos e consequências últimas da experiência
que articula o humano e o inumano de maneira a apagar essas diferenças, ainda que
através do instante.
O vivido por Zaratustra no momento em que tangencia o ponto abismal deve
ser entendido como o “grande momento” de sua obra. Nietzsche materializou,
através da ascensão e retorno de Zaratustra, aquilo que diz respeito ao
pertencimento do humano na categoria do divino. Trata-se de um território de
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especulação ao qual Nietzsche se dedicou do começo ao fim de sua vida e obra. A


experiência de suspensão [aufgehoben] já havia sido mencionada em O nascimento
da tragédia através das implicações entre as divindades Apolo e Dioniso143. A
suspensão do véu de Maia, ou seja, a suspensão de todas as individuações e o
retorno das particularidades ao Uno Primordial já haviam sido pensados por
Nietzsche à época nas trilhas de Schopenhauer e de uma certa tradição filosófica.
Depois de Dioniso, como já dissemos, veio a figura do andarilho. O
andarilho novamente reeditava a busca pelo desprendimento, pela indiferenciação,
pelo devir em sua extremidade. O andarilho, como vimos, ousou quebrar os limites
através da formalização do “espírito livre”. Ele descobriu a filosofia do “antes do
meio-dia” e experimentou as sensações mais gratificantes ao romper as barreiras
das cidades e pessoas, temporalidades e ventos que lhes negavam acesso ao
desprendimento. O andarilho já havia se apercebido da existência de estados de
júbilo onde seria possível experimentar uma renovação de si através da
transfiguração.
Zaratustra, herdeiro de Dioniso, andarilho, dançarino (tal como Nietzsche),
músico, bufão, excêntrico ser do devir, ele ousou dar um passo além e não apenas
143
Próximo ao fim deste capítulo, encontra-se oportunamente citada a passagem onde Nietzsche
emprega a palavra aufgehoben.
171

teve acesso ao portal, como também deu notícias do grande segredo deste marco
zero: a existência do dispositivo que a tudo transfigura, realinha no cosmos e
impulsiona de volta. Zaratustra buscou avidamente pelo momento de transvaloração
total, esteve lá e, como não poderia deixar de ser, retornou.
Essas vivências de Nietzsche são possíveis de ser conhecidas ao longo de
suas obras e fragmentos póstumos, mas, sobretudo, em sua longa e belíssima
correspondência. Certamente, também, através de toda a sua relação com a música.
Tudo isso nos dá testemunho de um fazer filosófico que não poupou esforços, ou
melhor, que foi pulsionalmente levado a conceber a arte de uma forma
absolutamente idiossincrática –– uma concepção de arte que se constituiu na relação
direta não com a concretude de suas obras, seus “produtos” ou intervenções, mas
que se fez a partir da ousadia de se pensarem as potências múltiplas e infinitas do
corpo. Trata-se de uma arte que, em se tornando, ela mesma, uma experiência de
tangenciamento do todo, alinhou os corpos junto ao cosmos e ousou restituir ao
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homem sua condição de ser do eterno retorno, ou simplesmente, o ser da pulsão em


seu estado mais puro, isto é, força constante, pura pressão, visando à expansão até o
gozo pleno, até sua extinção.
Para chegar à depuração dessa arte, para tangenciá-la, foi preciso um
filósofo que ousasse oferecer seu corpo como sistema de pensamento, capaz de
reverberar a pulsão em suas mais amplas e distintas potências. Somente esse
filósofo que, por destino, fosse acometido de um pathos existencial muito singular e
que, da forma mais intensa e genuína, ousasse transformá-lo em filosofia, poderia
transmutar a própria Filosofia. Nietzsche foi esse filósofo-artista.

Duas afecções de Zaratustra: o ditirambo e a dança

Zaratustra surge para Nietzsche como um amadurecimento, como o avanço


de sua experiência artístico-filosófica. Ele também surge quando Nietzsche está se
restabelecendo de seu difícil e doloroso rompimento com Wagner e os wagnerianos
(certamente, dentre esses, pode-se incluir o já mencionado regente Hans Von
Büllow). Além disso, Zaratustra vem acudir Nietzsche quando de sua dor intensa
172

diante da recusa da instigante jovem Lou Andreas-Salomé em casar-se com o


filósofo. Portanto, Zaratustra se materializa no auge da solidão de Nietzsche,
quando ele mais se sente tomado por suas sensibilidades, obrigado a elaborar suas
decepções afetivo-amorosas144 .
Zaratustra representa um esforço de superação da música de Wagner. No
momento em que Nietzsche percebe que o autor de Parsifal é um grande
hipnotizador de massas, que sua música é feita com o intuito de ilustrar os mitos
nórdicos através do qual ele gostaria de afirmar sua estética e fundá-la através da
imposição de valores cristãos (redenção, louvor ao sofrimento e amor incondicional
ao pai), e no momento em que ele percebe também que o gigante Wagner não passa
de um grande ator e ilusionista, por demais doente, por demais comprometido com
a saga da história, Zaratustra aparece como aquele que inverte todo ideário de uma
política salvacionista e glorificadora e apela, ele próprio, para o que possa haver de
mais autêntico e genuíno na experiência dos homens: a potência da afirmação do
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144
É importante fazer menção aos seguintes dados bibliográficos: Zaratustra surge no momento em
que Nietzsche está possuído pelo Daimon do amor. Ele não apenas havia, finalmente, rompido com
Wagner; sobretudo agora, sentia-se cada vez mais livre para empreender um movimento contra seu
ex-mestre. Ora, a despeito de qualquer elemento de discussão no plano estético-filosófico, sabe-se
que Nietzsche manteve com Wagner, até o fim, uma relação de amor e ódio. O rompimento não
exterminou a paixão, mas deu a ela novos contornos. Wagner seria para sempre um gigante com o
qual ele teria tido a honra de conviver, aprender, amar, desprezar e, por fim, digladiar. Tudo de
Nietzsche com Wagner é repleto de afetação. Os polos oscilam, são extremados. Há uma inequívoca
dimensão paternal em jogo. Nietzsche precisou, até o fim da sua vida, de Wagner como elemento
indutor de seus investimentos passionais, como quem precisa de água para viver. Tal fato fez de
Wagner muito mais do que um músico, compositor ou ex-amigo a ser criticado: o compositor de
Tristão e Isolda foi, sem dúvida, o mais potente objeto de amor de Nietzsche. Outra circunstância
importante e, sobretudo, de caráter também extremo, agudo, na experiência do filósofo foi o evento
Lou Andreas-Salomé. Ele havia se enamorado da bela e inteligente moça russa e com ela se
entregado a uma incitante experiência intelectual que, não obstante, revelou-se, para o filósofo, como
um grande amor a ser conquistado. Ele chegou a pedi-la em casamento, mas teve sua resposta
contundente em forma de uma inequívoca negativa. À ocasião, Nietzsche acabara de compor uma
nova versão para “Hino à amizade”, que passava a se chamar “Oração à vida”. Nessa nova e
compacta versão da antiga música de Nietzsche, o filósofo-músico lançou mão de um poema de
Salomé para dar voz ao que antes era melodia expressa apenas pelo piano. A seguir, a tradução livre
da poesia de Lou Salomè, musicada, por Nietzsche, à ocasião do nascimento de Zaratustra:

Sem dúvida um amigo ama seu amigo/como eu amo você, vida cheia de enigmas!/
Não importa se você me fez gritar de alegria ao invés de chorar,/ou se você me trouxe sofrimento ao
invés de prazer./Eu te amo com a sua felicidade e aflição:/e se necessário, que você me aniquile,/Eu
me tomarei fora de seus braços com a dor,/como se arranca o amigo do peito de seu amigo.
Com todas as minhas forças eu abraço você:/ Deixe que a sua chama incendeie meu espírito e, no
ardor da luta, /Encontre eu a solução para o enigma do seu ser!/
Pensar e viver por milênios,/libertar-se inteiramente dos conteúdos!/Se já não resta mais nenhuma
felicidade para você me dar, /Bom! Você ainda tem - o seu sofrimento!
173

corpo, o extremo da superação do homem pelo devir além-do-homem, a capacidade


de o homem desejar a vida em sua dimensão trágica, ou seja, afirmando
indiscriminadamente o destino, o lance de dados, despojando-se de toda a ilusão
que faria supor a existência de um mundo ou estado sem dor, sofrimento e conflitos.
Aqui, deve-se entender que a dimensão trágica anunciada e afirmada por
Zaratustra traz, em si, como suporte, como elemento fundamental, a música –– a
música como princípio, como matéria elementar, como caminho através do qual o
homem pode afirmar sua experiência de atravessamento, de transposição diante de
si próprio. Ou seja, a música como afirmação da superação de todas as contradições
valorativas (portanto, aflitivas) e como passaporte para um estado pleno de devir
onde o canto, a dança o riso e todos os elementos de esplendor são evocados como
reações criativas e pertinentes a uma experimentação intensa e quase absoluta do
homem em comunhão com a Terra.
Todo o legado de Zaratustra, toda a sua concepção, todo o furor de sua
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experiência, incluindo aí o ápice invocado pela ousadia em flertar com o abismal,


tudo isso é musical. Quando, em Nietzsche, se fala em corpo, é necessário que se
tome esse corpo como a própria música: desde seus ritmos, sua concretude, suas
variações, valências, vozes, ouvidos... também suas saturações, transiências,
dissonâncias e, evidentemente, forças. A saga de Zaratustra nunca poderia ter sido
escrita não fosse ela um testemunho visceral do que Nietzsche entendia como
fisiologia de seu corpo. Esta, sem dúvida, se aparelhou junto ao seu recurso mais
fundamental, ao mesmo tempo enigmático e libertário: a dimensão cromática da
existência do corpo na escala das timbragens pulsionais, nas variações do si em
torno dos temas. A fisiologia do corpo, ou seja, do canto de Zaratustra, é o que
permite à filosofia de Nietzsche ganhar estatuto de arte.
Nesse sentido, a música em Zaratustra é soberana. Ele próprio é música
encarnada. Não há representação, e sim afirmação. Zaratustra canta não por prazer,
mas por intuição, por genuinidade. Mais que isso: canta por convicção. Seu canto
não é belo –– é magnânimo. Seus movimentos, sua abertura, sua honestidade junto
a si, aos homens e à Terra são recursos de libertação que ele oferece contra o peso
avassalador da cultura. Sua música não se destina a doutrinar em nome da moral
mitológica; ao contrário, denuncia a farsa das supostas mensagens destinadas ao
174

coletivo. A música de Zaratustra só pode ser considerada doutrinária se tomada


como grande paródia. A doutrina, nesse caso, é uma doutrina pelo avesso, através
do escárnio, da própria brincadeira de tomar o mundo como uma grande aventura e
os pesos que os homens carregam, um grande equívoco de que se abrirá mão: “La
gaya scienza, os pés ligeiros; engenho, fogo, graça; a grande lógica; a dança das
estrelas; a espiritualidade petulante; os tremores de luz do sul; o mar liso –
perfeição...”145
A ousadia de Zaratustra é afirmar seu pathos a despeito do que possa se
dizer disso, ou seja, independentemente das aceitações e julgamentos dos outros
com os quais ele esbarra. Ele não congrega, não busca agregar e não negocia; ele
pronuncia. Sua pronúncia é seu canto e seu canto é entoado dançando. Há os que
lhe são sensíveis (sempre seus animais!) e há os que lhes são hostis (todos os
homens superiores). Zaratustra é indiferente aos caminhos de resistência desses
tipos que com ele esbarram; indiferente porque superou a dicotomia em que estão
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alicerçados os conceitos e valores da maioria dos seres. Ele atua quase que por
vocação, por ímpeto –– sem dúvida, por amor, mas não um amor cristão que supõe
a aceitação da submissão de si em nome de acontecimentos superiores, não o amor
cristão que vê no enfraquecimento do corpo a condição para a ascensão. O amor de
Zaratustra é estético no sentido de que ele rompeu as amarras do juízo e
experimentou o que seria um mundo ligado pelas intensidades provenientes dos
encontros do corpo com os múltiplos corpos da natureza. O amor de Zaratustra é o
que se passa nos encontros entre as partículas, naquilo que pode ser descrito como
composição entre as diferenças. O amor, aqui, é a tradução de uma gratidão: porque
ele descobriu “o sentido da vida”, porque ele logrou êxito em apreender algo além
da ignorância que une os homens em torno de suas crenças e ideais; então, por isso,
Zaratustra é grato à vida por ela lhe ter possibilitado sua experiência radical: a
dança do corpo, o canto da vida, a vida do corpo.
O amor de Zaratustra é genuíno, de peito aberto, gratuito desde a ideia de
que a oferta o engrandece e o faz expandir ainda mais. Aprendeu ele que o
desprendimento, a descaracterização de um certo recorte do todo, a
dessubstancialização, ou seja, tudo aquilo que implica uma entrega capaz de diluir

145
WA 10, KSA 6, p. 37.
175

os pontos de firmamento na direção de uma imensidão abismal, tudo isso é bom na


medida em que sua “estética” é a do fluir, a do acontecer a cada instante.
Sua vontade é desfazer-se de qualquer pressuposição, de qualquer instalação
e, a partir disso, deixar-se levar, oferecer-se, doar-se: em consequência imediata,
interessa-lhe ao menos provocar os homens no tocante àquilo a que sua experiência
de elevação lhe permitiu atingir. Embora saiba que sua tour de force não oferece
garantias de sucesso (ou seja, Zaratustra não é um general nem um missionário em
causa própria), sua alegria se mantém porque somente o ato é que o faz alegre. Ou
seja, ele afirma sua gratidão aos homens e à Terra e, evidentemente, aos corpos
multifacetados (entenda-se aqui os animais, as árvores e qualquer força que se faça
articular), e isso lhe tem valor de plenitude. É como se ele ousasse implicar cada
momento de sua existência, cada experiência, em uma retomada do flerte com o
ponto abismal.
Quem são os animais? Por que estão próximos de Zaratustra? Por que eles se
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prestam a acompanhá-lo nas alturas? Porque são eles os que não têm memória, os
que não se recobrem de reminiscências do passado. São livres no sentido de que
tangenciam o agora com a alegria de quem acaba de chegar, não à terra prometida,
mas à única terra que há. Os animais se irmanam com a descoberta de Zaratustra: a
do eterno retorno das coisas já que eles, assim como o “profeta”, não se importam
com a lógica da sucessão do tempo, mas, somente, com a potência do que é.
Os animais dançam com Zaratustra, ensinam-lhe novos passos, e ele os
aprende e depois os apaga. Os passos não se inscrevem, não se recortam, não se
cristalizam –– transformam-se, transferem-se e desmaterializam-se na própria
dança. A dança de Zaratustra não é coreográfica; acontece como pura expressão do
corpo, como um atirar-se ao longe, ao éter, mas com a garantia de que a fisiologia
desse corpo salvaguardará a inocência do próprio ato. Ou seja: a dança dos animais,
que é também a de Zaratustra, é um ato cujo referencial não é outro senão o da
vontade de transfiguração. Os animais não sabem dançar, eles apenas dançam.
Aqui, a pulsão vence a técnica, a voz se afirma sobre o discurso, o ímpeto vence a
doutrina. Os animais são capazes do desprendimento já que não se lembram e,
176

talvez, nem saibam que são animais: “O animal nada sabe do seu si-mesmo,
também nada sabe do mundo.”146
Dar fluxo ao corpo, apoderar-se dele, deixá-lo ao sabor de suas próprias
engrenagens é admitir que o júbilo da existência só pode ser compatível com a
evanescência, a sideração e a desconfiguração do si no todo. A dança de Zaratustra
não quer ser vista; ele não dança para uma plateia. Sua dança é movimentação que
retorna ao próprio corpo. Nesse sentido, pode-se afirmar que os animais, por não
terem consciência do corpo, mas por se deixarem à sorte do fluir de suas máquinas,
tornam-se menos acossados pelo próprio pensamento. Os animais montam suas
máquinas em consonância com a terra e com os outros animais. O animal não se
vinga: atua por imposição de sua vontade. Sua força só é parada pela resistência que
lhe oferece um outro animal ou a própria natureza. Ou, dito de outra forma, um
animal só se atém quando encontra limites para a permanência de sua integridade.
Essa é sua máquina. Ele dispensa o pensamento e funciona como fragmento de
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máquina –– uma minimáquina dentro de outra, na sucessão ilimitada das


combinações. Um animal não é um corpo de representações nem abriga uma
identidade, não é um “ser” e, exatamente por isso, ele pode presentificar-se a cada
segundo como um “em si”. Evidentemente, está-se falando em Zaratustra, no
animal como potência de animalidade, isto é, se o homem pode se animalizar, o
animal também pode humanizar-se. No primeiro caso, trata-se das conexões em
torno do devir; no segundo caso, quando o animal é subjugado pela máquina
doméstica, trata-se de infestação da política existencialista sobre o corpo. O animal
pode existir, mas, se ele assim o fizer, estará existindo subjugado pelo homem.
Zaratustra propõe o inverso: que o homem se aniquile em sua condição patológica
de ser gregário e que se lance na experiência de desprendimento, assim como os
animais o fariam se não tivessem esbarrado com os homens. Zaratustra recusa
carregar o fardo, o peso desse tipo de consciência que subjuga o animal e o faz
trabalhador. O animal foi desvirtuado pelo homem quando este descobriu que
poderia utilizá-lo como objeto de apoio, de carga. A humanidade inventou a
domesticação e, com ela, criou os valores e a culpa. A partir disso, destituiu o corpo
de sua nobreza. Maldita sina! Maldito flerte com a palavra... Que seria do camelo se

146
KSA 10, 5[1] 237, p. 215.
177

não tivesse sido identificado como animal de carga? Certamente que o camelo foi,
desde sempre, complacente, conivente. “Malditos homens-camelos”, poderá dizer
Zaratustra. Por que aceitam carregar o fardo de um peso que lhes pertence a eles?
Por que não podem simplesmente bater em retirada? Por que não desenvolveram a
arte de se despir e se atirar junto ao nada?
Por que os homens-camelos se satisfazem com tamanha renúncia? Assim
agem porque não sabem dançar, mostrará Zaratustra. Não sabem chacolejar, não
sabem chacoalhar. Os homens-camelos são açoitados pelo sentimento de culpa, pois
foram levados a entender que sua fisiologia lhes indica serventia imediata,
complacência somática. São fracos. O corpo perdeu a capacidade de ditar o seu
querer –– submete-se ao querer do homem.
Maldito olhar do homem! O homem é aquele que vê em tudo a possibilidade
de constrangimento em nome de um telos –– para tudo, um fim, uma finalidade, o
vício em ter que encaixar, em ter que pressupor uma lógica de utilização. Maldito
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utilitarismo, elemento externo ao homem, covardia traduzida em progresso.


É difícil supor um mundo sem homens-camelos? Evidentemente, porque a
lógica imperativa é a do progresso. A vida também tem seu lado medíocre: contagia
os homens quando ordena a união das coisas indiscriminadamente.
Tudo em nome do futuro. Um mundo melhor, uma nova humanidade.
Zaratustra zomba disso tudo quando oferece aos homens o “além-do-homem”.
Tamanha é sua ousadia que os homens, tanto faz se os últimos ou os superiores,
lidam com desprezo diante de tamanha heresia. O “além-do-homem” só pode ser
entendido, como bazófia. Qual a melhor forma de impactar a burrice dos homens de
bem? Mostrando-lhes, desde um inafiançável exercício herético, que o homem deve
ser superado. Mas de que superação se trata? Não é a do progresso, certamente, nem
a da história, evidentemente. A superação anunciada pelo “além-do-homem” não é
outra senão aquela que divide o tempo e atribui valor ao presente e ao passado.
Contra isso, Zaratustra provoca: tornar-se o que se é, é superar o que se é. Nada
permanece. Não se anda para trás nem para frente; já será muito admitir-se que o
andar é imperativo. “Eu lhes anuncio o além-do-homem” significa: “Eu lhes digo
que o abandono da memória lhes tornará ‘outros homens’. Eu lhes digo: o homem é
para ser esquecido, sua história é sintoma. Deixem que a evanescência tome conta.
178

Parem de contar. Enfrentem a única tarefa possível, que é tão-somente a de dançar e


cantar”.
Esquecer-se de si, esquecer-se da singularidade como componente histórico
do todo. Às favas com toda e qualquer pretensão de subjetividade. O plural servirá
sempre como força em expansão e o singular como força em retenção. Por
enquanto, anunciar a ruptura eterna como princípio é da ordem da insanidade:
“Todos os sinais do acima-do-ser-humano aparecem como doença ou loucura no ser
humano”147. Entretanto haverá um momento, quer crer Zaratustra, em que o homem
se levantará de seu repouso sepulcral e se encarregará, ele mesmo, de soprar a
poeira do tempo. Sobressaindo ao peso da culpa do “tempo perdido”, ele terá a
chance de juntar-se aos animais. Se o “além-do-homem” vingar, então os animais
comporão um pacto em que a fisiologia vencerá a ideologia. A primeira quer fluir,
seus critérios são aqueles relativos a um alinhamento de movimentos; desde o micro
ao macro, desde a letra até a estrela. A segunda pretende regrar o mundo desde os
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princípios da incorporação. A expansão da fisiologia é em nome do corpo. A


expansão da ideologia é sempre corporativa. Como não ver aí a diferença entre o
eremita e o pastor, entre o andarilho e o rebanho?
O que garante a Zaratustra escapar do corporativismo? Mais uma vez:
esquecer. Por que insistem os homens na rememoração? Para nada, senão a
incriminação de si mesmos; para nada, senão a escravização daqueles que se
obrigam a rememorar. “Lembra-se de quando você errou? Por que você fez daquele
jeito? Não se esqueça de quem você deve ser.... Procure se lembrar de quando...
Quem fez isso com você? Em que passado ficou sua verdade? Vamos resgatá-la
pois ela irá garantir sua integridade de volta.” Essa compulsão ao enquadre, ao jogo
pictórico do bem e do mal, faz com que os homens se submetam à paixão alheia.
Não se lembra para si, mas para o outro. Recorre-se ao tesouro da memória quando
se quer entender a história como uma sucessão de atos encadeados. Zaratustra,
porém, quer propor o além-do-homem para justamente superar a memória que
retroage ou que antecipa. Viver não será jamais viver por uma causa, e sim por puro
desejo de desprendimento. Esquecer é melhor que lembrar se a ideia é fazer com
que o corpo tome posse de si e que os corpos se redobrem sobre si próprios, não em

147
KSA 10, 5[1] 250, p. 217.
179

direção a uma corporação, mas, quando muito, à fomentação de corporeidades:


“Estou repleto demais: então esqueço a mim mesmo, e todas as coisas estão em
mim, e nada mais existe que todas as coisas. Para onde me fui eu?”148
A partir de Zaratustra, o mundo não será mais tomado como “vontade e
representação”, somente como duplicações ininterruptas das aparências onde o
corpo e suas afecções ganham dimensão de autenticidade –– mas não de verdade.
A partir de Zaratustra, a verdade será desmembrada sob inúmeras tentativas de
figurabilidade onde a experiência do corpo, de sua fisiologia, portanto de sua arte, é
o que desponta como potencial elementar rumo ao desprendimento do homem com
relação a todo o peso que carrega. A aposta do filósofo, através da materialização de
sua arte, é afirmar a vida como um dom a ser elevado. Eis aí o porquê do subtítulo
do livro “Um livro para todos e para ninguém”: porque Zaratustra fala para aqueles
que o acompanham –– aqueles que se abrem ou querem se abrir, um dia, para a
dimensão da experiência tal qual Zaratustra a viveu.
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Como entender o privilégio dado aos animais? Suas alianças são com os
seres cuja sensibilidade e desprendimento podem fazer eco ao canto do profeta-
poeta. Aqui, Zaratustra e seus animais são uma reedição do coro dionisíaco, e a
inegável revalidação de um grandioso espírito de divindade levita sob todas as
coisas –– a Terra como parte do homem e vice-versa; o homem comungando com
Deus desde sua própria imanência. A liturgia zaratustriana não pune nem oferece
promessas: ela simplesmente entoa um cântico que se quer além de bem e mal. A
doutrina de Zaratustra é um evangelho às avessas, uma grande ópera de um só.
É válido acompanhar o entusiasmo do autor quando, em carta a Ernst
Schmeitzner, ainda então seu editor, datada de 13 de fevereiro de 1883, ele anuncia
a conclusão da primeira parte de seu Zaratustra. Naquela carta, Nietzsche estava
orgulhoso de seu feito, via no próprio anti-herói a condição de ser um livro
vendável (inclusive o livro é apresentado ao seu editor como sendo uma boa
oportunidade para melhoria das vendas dos livros de Nietzsche). O mais relevante
dessa carta, contudo, é a “classificação” da obra tanto como uma “composição
poética”, como um “quinto evangelho”:

148
KSA 10, 5[1] 238, p. 215.
180

Hoje tenho uma boa notícia a lhe dar: dei um passo decisivo – de tal maneira que
julgo ser vantajoso para você. Trata-se de um pequeno volume (de apenas cem
páginas), cujo título é “Assim Falava Zaratustra – Um livro para todos e para
ninguém”. Trata-se de uma “composição poética”, ou de um quinto ‘evangelho’, ou
talvez de algo para o qual não exista nenhuma definição: é minha obra
comparativamente mais séria e também mais alegre, e acessível a qualquer um.
Portanto estou convencido de que terá um efeito imediato – sobretudo agora que, a
julgar por indícios concretos, o interesse por mim, que sempre foi preguiçoso e
relutante, acabou por alcançar algum desenvolvimento. (...)149

É relevante, ainda, acompanhar uma peculiar observação que faz Nietzsche a


seu editor: “(...) Mantendo o mesmo formato e caracteres, desejo que em cada
página o texto seja marcado por uma linha negra: assim será mais digno de uma
composição poética. E também, que seja utilizado um papel mais grosso!”150.
Nietzsche estava em grande momento! Havia recuperado sua saúde, que o
fizera atravessar seus últimos dez anos com muito sofrimento. Sabia agora ter
superado o pior, e Zaratustra surgia como o renascimento de sua saúde e de sua
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alegria de estar vivo. Zaratustra foi seu grande parceiro; principalmente, foi seu
médico. Um ser cuja existência o transportou a lugares e estados de si que operaram
efeitos curativos. Nem Wagner, nem Lou Andreas-Salomé, nem Bayreuth, nem
Hans Von Bullow haviam sido tão importantes quanto Zaratustra. Uma entidade
que canta e dança e, assim, revitaliza o próprio Nietzsche só poderia ser tomada
como a verdadeira bênção.
Com ele, a música de Nietzsche se via lançada a lugares nunca dantes
alcançados. O que diriam Wagner e Von Bullow da grande tragédia em quatro atos
cuja música se apresentava sob a forma de poesia contínua? O que poderiam objetar
quanto à leveza e contundência dos ditirambos de Zaratustra?
Zaratustra fala por música, ele é inteiro um poema. Suas palavras soam
como um recital que, encontrando inspiração nos poemas clássicos da Grécia antiga
e, sobretudo nos ditirambos de filiação dionisíaca, assume a forma de uma obra
musical trágica, uma afirmação possível e, portanto, reordenadora da experiência
musical do filósofo:

149
FNC, Vol. IV, c 375.
150
Ibid.
181

Esta obra [Zaratustra] ocupa lugar à parte. Deixemos os poetas de lado: talvez
nunca se tenha feito nada a partir de uma tal profusão de energia. Meu conceito de
dionisíaco tornou-se ali ato supremo; por ele medido, todo o restante fazer humano
aparece como pobre e limitado. (...) Ele [Zaratustra] contradiz com cada palavra
esse mais afirmativo dos espíritos; nele todos os opostos se fundem numa nova
unidade151.

Nesta marcação feita pelo próprio Nietzsche, em momento final de sua obra,
na hora em que faz um balanço do que produziu, repousa um de nossos argumentos
principais nesta tese: Zaratustra como o dispositivo que instaura Nietzsche,
definitivamente, na condição de um filósofo-artista.
A arte de Zaratustra faz de seu canto sua morada. Ele canta para tirar o peso
que o camelo carrega às costas e também para renunciar ao fardo enunciado através
da voz de comando do leão. Zaratustra se aproxima da última metamorfose –– a
criança –– quando aprende a doutrina do eterno retorno e se põe a cantar sobre ela.
A vida flui como ciranda, tudo é, desde sempre. Por isso, ser criança, ser leve como
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pluma, ser autêntico e desconhecer o passado torna-se a fórmula para desfrutar a


vida como ela é: puro real, puro instante e, por isso, alegria em abundância. A partir
disso, as possibilidades se abrem e se figuram como em um caleidoscópio onírico.
Por isso, o instante é gozo, é música. Ele canta por amor a si, logo, através
de sua generosidade, canta por amor aos homens. Em Zaratustra, no entanto,
homens e animais comungam e constituem alianças de um ethos. Sua música é uma
ode à natureza e faz reviver a reverência ao sol, aos céus e à Terra de maneira que o
flerte com o ponto abismal seja entendido como o zênite do encontro das potências
da natureza onde o homem, na sua condição de corpo em devir permanente, deve
habitar com a alegria de um elemento em puro fluxo. O homem como potência do
nu, como corpo atirado ao elástico de sua capacidade de expansão. Esse homem é
música, é preciso que ele cante, dance, ria... É preciso que ele se embriague a partir
dos elementos vividos pelo Dioniso dos gregos.
Por isso, Nietzsche deixa claro, sobretudo em Ecce Homo, que Zaratustra
deu voz ao que de dionisíaco já havia sido anunciado desde O nascimento da
tragédia. Àquela época, as diferenças entre Apolo e Dioniso marcavam o campo de

151
EH assim falava zaratustra 6, KSA 6, p. 343.
182

guerra por onde se travaria a batalha final entre a obsessão pela forma152 (apolínea)
e o puro êxtase (dionisíaco). A penetrante força dionisíaca passava a comandar uma
verdadeira tomada das pretensões ordenadoras de Apolo. Não que estivessem um
contra o outro, não que não contribuíssem um com o outro; mas, inegavelmente,
havia algo de dionisíaco, anunciado por Nietzsche desde aquela época, que,
imperando e dominando, impondo o êxtase à forma, garantiria acesso a um novo e
elevado patamar da experiência.
Agora, Zaratustra encarna o canto do corpo, da embriaguez e da lucidez
diante da força instituinte e niveladora do homem por baixo. Zaratustra canta contra
o niilismo do homem superior, este último tendo em Wagner e seu legado um dos
maiores representantes. A partir desse ponto, finalmente Nietzsche atinge algo que
buscava desde cedo: a música como princípio, como potência de ligação, como
elemento capaz de instaurar a alegria como valor em si, a ser eternamente
experimentado. Faz-se mister reparar que O nascimento da tragédia já anunciava os
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termos em que o pathos de Nietzsche fazia suas escolhas:

E agora imaginemos como nesse mundo construído sobre a aparência e o


comedimento, e artificialmente represado, irrompeu o tom extático do festejo
dionisíaco em sonâncias mágicas cada vez mais fascinantes, como nestas todo o
desmesurado da natureza em prazer, dor e conhecimento, até o grito estridente,
devia tornar-se sonoro; imaginemos o que podia significar esse demoníaco cantar

152
Apolo, o deus da forma, segundo Nietzsche, pode ser mais bem definido desta maneira: ele leva
contornos e limites aos objetos de maneira a dar a eles uma existência plena e bela, uma capacidade
de brindar o humano com a categoria do que é aprazível e fluído desde sua forma. Com Apolo, a
experiência ganha contornos de sentido e emana signos de plenitude. Essa divindade, ao traçar os
limites, ao designar as formas, traz com ela a potência da sabedoria e do verdadeiro. A capacidade de
prover luz é seu dom inaugural, e tudo aquilo em que interfere é recriado numa perspectiva de figura
e fundo, de projeções imagéticas e de intelecção apaziguadora. Apolo é o deus da perfeição e seu
modelo, segundo enfatiza Nietzsche, é o do sonho. Esse sonho, pura potência pictórica, é o que pode
proporcionar um parcial recobrimento daquilo que Nietzsche designa por “formas fundamentais do
real”. Ou seja, com o apolíneo, estamos no campo das aparências, daquilo que se apresenta como
trabalho da divindade sobre o real, possibilitando a criação de corpos capazes de ser olhados,
admirados e contemplados. Trata-se da experiência da contemplação, ou seja, do magnânime ato de
se “deparar com”, de se “ver diante de” e de se “constituir através de”. O artista – e em Apolo
estamos diante principalmente do artista plástico, esteta das imagens e das formas – é aquele que se
comunica com a experiência da divindade tal qual um médium o faz. O artista é o meio pelo qual se
manifesta a vontade apolínea, e sua obra é o próprio sonho de Deus. Nessa perspectiva, Deus e
humanidade se fazem refletir. Nietzsche enfatiza o fato de que o homem grego precisou criar o
Olimpo para que nele se espelhasse e sua experiência ganhasse o sentido da alegria e perfeições
divinas. Nesse sentido, os deuses do Olimpo estão postos como modelo e como objetos de desejo
onde os processos de idealização da vida e da morte estão em jogo. As divindades do Olimpo
exercem menos o controle e a punição do que se valem como corpos atravessados por
pulsionalidades a serem inspiradoras e admiradas pelo homem.
183

do povo em face dos artistas salmodiantes de Apolo, com os fantasmais arpejos de


harpa! As musas das artes da “aparência” empalideciam diante de uma arte que em
sua embriaguez falava a verdade, a sabedoria do Sileno a bradar “Ai deles! Ai
deles!”, contra os serenojoviais olímpicos153.

É importante reparar que Zaratustra é efeito da renovação de Nietzsche em


relação a seus princípios artístico-musicais originários. Se, em um primeiro
momento, o filósofo acreditou poder encontrar na música de Wagner a conciliação
genial entre o apolíneo e o dionisíaco, fazendo do grande compositor alemão uma
espécie de novo mito, ele mesmo, da reencarnação do espírito helênico na
Alemanha moderna, agora, desde a frustração de Bayreuth e desde a renúncia de
Nietzsche a seguir como wagneriano eminente, Zaratustra nascia como a
reafirmação do pathos dionisíaco como afirmação da alegria. Se, antes, Wagner
através de seu drama musical, seria o responsável pelo acesso e promoção da
experiência mais elevada que o homem poderia ter com sua relação com a música,
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agora, Zaratustra afirmaria a experiência do flerte com o ponto abismal como sendo
de caráter extramoral, insondável, irrepresentável, impossível de se concretizar
senão pela hegemonia do corpo sob si próprio. Contra o mito, Zaratustra apresenta o
triunfo de seu corpo; contra Wagner, Nietzsche celebra a sua dor como bálsamo,
como harmonia e melodia a serem entoados em nome da superação do fardo de
existir como camelo-leão.
É importante perceber que a saga de Zaratustra resgata muito do que já havia
entre os gregos acometidos por Dioniso. O ditirambo, o coro e o cômico são
dimensões que se mantêm vivas através do canto e dança de Zaratustra. Mais uma
vez, vale acompanhar a metamorfose Dioniso-Zaratustra, garantindo a supremacia
do dionisíaco no pensamento de Nietzsche, através do seguinte extrato de O
nascimento da tragédia:

Da mesma maneira, creio eu, o homem civilizado grego sente-se suspenso


[aufgehoben] em presença do coro satírico; e o efeito mais imediato da tragédia
dionisíaca é que o Estado e a sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e
outro, dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração
da natureza. O consolo metafísico – com que, como já indiquei aqui, toda
verdadeira tragédia nos deixa – de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda
mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de
alegria, esse consolo aparece como nitidez corpórea como coro satírico, como coro
153
GT 4, KSA 1, p. 40-41.
184

de seres naturais, que vivem, por assim dizer indestrutíveis, por trás de toda
civilização, e que, a despeito de toda mudança de gerações e das vicissitudes da
história dos povos, permanecem perenemente os mesmos154.

O que é o coro dos seres naturais? O que é o coro dos sátiros, que vivem
indestrutíveis por trás de toda civilização? É o canto da terra, a música que há. Ela
não pode ser apagada, reescrita, subvertida... Ela apenas há. O coro dos sátiros
supera a tragédia que há, sendo ele próprio a dor e a alegria unidos pelo canto e a
dança. Os gregos sabiam disso, e isso lhes era motivo de festa.
Zaratustra, ele sim, o grego ressurgido. Através de seus ditirambos, da força
de sua música entoada em coro, recitada a despeito de qualquer circunstância, está
Zaratustra sob o sol do meio-dia a entoar odes de amor em sua lira, duplo de seu
corpo, de seus animais. Amor a tudo que é ébrio, tudo que faz dançar através de
“um perfume e aroma de eternidade, um róseo abençoado, castanho vinho-ouro de
velha felicidade, da ébria, agonizante felicidade de meia-noite, que canta: o mundo
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é profundo, mais profundo do que pensava o dia!”155.


O ditirambo é forma que tomam os discursos de Zaratustra. Do começo ao
fim, Zaratustra é música dionisíaca, ode à Terra, gritos de horror e alegria.
Zaratustra é coro, sua música é uníssona, é bela por ser fisiológica, por ser
rigorosamente corporal. Tudo nessa música é profundo, é denso, mas também leve e
descompromissado com o tempo. Com sua lira, Zaratustra afirma sua alegria e
devolve ao Deus com D maiúsculo, esse Deus antropomórfico, o ônus de toda dor,
sofrimento e peso da vida. Inversão dos valores. Meia-noite, hora da suspensão das
atribuições, julgamentos e classificações –– hora de começar tudo de novo, mais
uma vez...
A lira de Zaratustra é seu sino, sua sinalização da meia-noite. Embriagado,
tomado de gozo, sabedor do que há além do cume, Zaratustra está totalmente
entregue à sua própria arte, à sua própria façanha. Ele ousou compreender o enigma
dos homens através da decifração de seu próprio enigma; aliás, ele descobriu que o
enigma dos homens e o seu pertencem à mesma estirpe. Onde Zaratustra teve
acesso há a possibilidade de depuração máxima que indica que todos os homens são
um só e que um homem também é todos. Zaratustra está vivo, como nunca antes.

154
GT 7, KSA 1, p. 56.
155
Za o canto ébrio 6, KSA 4, p. 400.
185

Ele vive por si assim como por toda a humanidade: sabor de uma certa loucura,
certamente, na medida em que ter acesso a esse domínio é lidar com atmosferas
rarefeitas.
Sua dança, que não é pré-escrita nem mapeável –– mas inexorável! ––,
acontece como o próprio entoar de sua música: ela flui. Nada, absolutamente nada,
freará o júbilo de sua descoberta. Aos homens superiores, ainda por generosidade,
ele entoa antes de anunciar o sinal:

Ó homem presta a atenção!/Que diz a meia-noite profunda? /‘Eu dormia, eu dormia


-, /De um sonho profundo acordei: /O mundo é profundo, /Mais profundo do que
pensava o dia! /Profunda é sua dor - , /O prazer – mais profundo ainda que o pesar:
/A dor diz: Passa! /Mas todo prazer quer eternidade
– /quer profunda, profunda eternidade!156

Zaratustra canta o sabor da aventura que empreendeu. Quem ascende ao


prazer da experiência ascende ao poder e deseja com ele se irmanar para todo o
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sempre. Esse prazer é o desbloqueamento das senhas corporais, é efeito de um


desprendimento que restitui ao adulto a condição de criança. Como ser criança em
corpo de homem? Resposta: criando um novo corpo. Um híbrido. Como se chama a
isso, como se designa essa capacidade de reconfiguração dos corpos? Zaratustra
ensinará: Arte. A arte é o potencial poder de reinventar o tempo, a moral e as leis,
assim como tudo que se configura, tudo que compõe e é composto. A arte é o nome
que Zaratustra escolhe para chamar esse dispositivo que decide sobre todos os
sexos, filiações e doutrinas. Arte é o Deus sem barba e sem todo o fardo moral que
ele imputa à humanidade. Ela é um princípio que se invoca quando se atinge o
marco zero do portal. Essa é a transvaloração. Zaratustra canta: “Contigo casarei,
oh, eternidade!”.
Uma vez que se aprende a cantar, então para todo o sempre se canta. Uma
vez que se conhece o caminho que dá acesso ao criador de todos os caminhos, à
fonte de todas as fontes, então querer-se-á lá estar para todo o sempre –– porque é
desse lugar, dessa abertura, desse ponto abismal que se pode olhar a tudo e dizer
Sim impreterivelmente, já que nada mais se oporá ao amor incondicional aos fatos
(amor fatti). Uma vez transitando nesse lugar, uma vez obtendo o acesso mais

156
Za o canto ébrio, 12, KSA, p. 404.
186

elevado ao dispositivo que anima todas as coisas, então querer-se-á, da maneira


mais espontânea e indubitável, estar lá, senão para sempre, ao menos, sempre que
possível; porque, de fato, esse lugar permite alterar todas as valências e codificações
do corpo e dos corpos. Desse lugar se quebram e se refazem todas as ligações, todas
as composições. Ali, nada é perene, senão a própria eternidade. A eternidade ––
aquilo que retorna sempre –– se uma vez despida, uma vez desejada, será então
fonte de prazer eterno. Por isso Zaratustra quer desposar a eternidade –– porque só
ela oferece a transmutação possível da dor em prazer. Somente o eterno retorno das
coisas, esse princípio abismal, é capaz de dar acesso ao prazer eterno ao ensinar o
caminho da recodificação.
Quando ensinou aos homens o sentido do eterno retorno, ensinou-lhes,
também, que amar a eternidade, afirmar o Sim indeterminadamente, para todo o
sempre, é tornar-se parte da arte. É também tornar-se um pouco artista.
Uma filosofia que canta o júbilo da vida, que dança para o realinhamento do
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pensamento junto ao eterno retorno e que gargalha dos eventos como quem extrai o
sumo dos figos, só pode ser uma filosofia marcada pela experiência. Não se chega a
ela sem o trabalho do corpo sobre o corpo e seus rebatimentos.
A arte como princípio superior de todas as coisas, a arte como dispositivo de
criação dos corpos, chave de todos os enigmas, a arte como potência que modela a
vida, os homens e o sentido das coisas –– essa arte não nasceu do corpo de
Zaratustra, mas foi compreendida por ele. Ele a ela se integrou e, a partir de então,
usufruiu-a. Ele a inseriu, com sua movimentação, no ciclo eterno de criação de
todas as coisas. Quando entoou seu ditirambos e fez da dança seu movimento mais
fundamental, Zaratustra deu mostras de que a arte é um estágio elevado (ou
depurado) do pensamento. Ela é o pensar de todo o pensamento e o agir de todas as
ações.
A assinatura de uma descoberta, de uma revelação como esta –– que é o
alcançar do exercício da arte ––, coube a Nietzsche a partir de suas idiossincrasias.
Essas idiossincrasias, que são mais que adjetivações de si, são potências do pathos,
são experiências que somente um filósofo inclinado a encontrar as dimensões mais
extremadas da arte poderia alcançar.
Nietzsche, como ele próprio designou: um filósofo-artista.
Conclusões: Nietzsche, o filósofo-artista

1) A arte, para Nietzsche, não se confunde com nenhuma sorte de produto,


produção, efeito de instalação. Muito menos ela é possível de se confundir como
movimento político, como delimitação de campo ou proposta ética. A arte não
admite nenhum tipo de telos, nenhuma proposição apriorística e, tampouco, ela
pode ser motivo de pedagogia em qualquer nível que se pense uma transmissão. A
arte, em Nietzsche, não é a soma dos esforços de um grupo em afirmar padrões, não
se presta a educar o povo e não se destina a funcionar como indicador de
criatividade ou libertação. A arte, no nível em que o criador de Zaratustra a pensa,
também não admite classe de artistas, profissão de fé, e não depende de projetos,
iniciativas, programas de conscientização. A arte não se presta a propagar
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mensagens, a lutar por causas e a ajudar qualquer sorte de desfavorecidos. A arte,


em Nietzsche, é o inverso do que se abriga sob o signo da moral. Tudo o que é
passível de indução via esclarecimento, tudo que visa arrebanhar ou domesticar está
em condição diametralmente oposta ao que seja artístico. Também as perspectivas
religiosas e mesmo doutrinas filosóficas são, para Nietzsche, composições
decadentes, não importando em que grau situam o absoluto, a transcendência ou as
estratégias de sobrevivência. Portanto, se, em Nietzsche, toda estratificação da
moral tende a operar no registro da decadência, a arte necessariamente precisa estar
fora desse contexto. Ela é o dispositivo que escapa aos domínios do que é doutrina
ou doutrinável. A arte não se semantiza.

2) O artista não é o gênio. Nietzsche superou o romantismo e suas premissas desde


o nascimento de Zaratustra. O artista não é um ser privilegiado que consegue,
através de maestria ou ultrassensibilidade, chegar aonde os simples mortais não
chegam. O artista não é um ser cujas habilidades o transportam para um mundo
diferenciado, até mesmo porque não há transportes possíveis para algo que se
indiferencia na imanência. O artista também não é Deus nem seu enviado. Ele não
está mais próximo de qualquer revelação ou investe-se de algo especial. Para
Nietzsche, o artista é apenas um “grau preliminar”, um elemento dentro de um jogo.
188

No máximo, um médium, um meio pelo qual algo se reproduz. O mundo não pode
se dividir entre artistas e não artistas, entre Deus e o resto, desde uma perspectiva
onde o qualitativo estivesse funcionando como critério. Nietzsche, evidentemente,
não nega a potência daqueles que se propõem a formalizar seus impulsos através de
produções idiossincráticas, tampouco nega que existam articuladores de formas ––
ele mesmo foi um deles. Não se trata de descaracterizar as composições; em sentido
amplo, aquilo que se pode chamar vulgarmente de “obra de arte”. Por fim, não se
trata de maldizer ou de não admirar as composições feitas em nome da arte; ao
contrário, existem muitas coisas passíveis de admiração ou execração. Em
Nietzsche, no entanto, essa não é a questão principal. Não se discute gosto:
discutem-se os níveis de entendimento daquilo de que se gosta ou não, ou seja, os
níveis de entendimento dos elementos que disponibilizam as estratificações e
derivações da arte.
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3) Mesmo o “grande estilo”, tão valorizado e almejado por Nietzsche, não é o


equivalente da arte em si, mas uma consequência. O “grande estilo”, aquele das
formas claras, concisas, das sentenças musicais, do fluir e refluir, do grande ritmo, é
mais um meio para comunicar, para afirmar o pathos interno do que para garantir o
acontecimento da arte em si. É, no máximo, uma elevação da capacidade de
formalizar o pathos. Ele é, sim, o que Nietzsche considera de mais elevado.
Nietzsche o define como algo que se aproxima do raro e duradouro. Ele dirá que o
“grande estilo” condensa o todo no que há de mais simples (lembremos os
aforismos e suas propriedades monadológicas tal qual foi apresentado no primeiro
capítulo desta tese). Contra a banalidade, em todos os níveis de concepção e
apreensão da experiência humana, o “grande estilo”, que deriva do acesso ao prazer
e, este último, do fruir do corpo.

4) Fisiologia da arte: como consequência da elevação do prazer, o que é sinal de


elevação do estado de potência, Nietzsche fala de uma “dilatação do olhar” que
permite um afastamento e um reposicionamento das dimensões de espaço e tempo.
Com isso, a vista amplia seu espectro e novos olhares atravessam a percepção. É
todo um remapeamento das composições que se adquirem quando o corpo se torna
189

apto a transfigurar seus vícios (caminhos de recalque). Além dessa “dilatação do


olhar”, outro termo da fisiologia de Nietzsche é o “refinamento dos órgãos” que
habilita o corpo a estender sua capacidade de apreensão e interação com os
elementos que existem. A isso segue a capacidade de “adivinhação” que permite ao
corpo intuir e reagir de forma mais abrangente. Essa “adivinhação” possibilita o
surgimento de uma “sensibilidade” inteligente que aumenta a força: aumento do
tônus muscular, elasticidade nos movimentos e, como resultado, a capacidade de
dançar. Aí, nesse patamar, chegou Zaratustra. Um estado que permite uma espécie
de satisfação continuada do corpo; tudo o que vier é bom, tudo o que acontece é
alquimicamente transformado em força ativa. Nasce uma disponibilidade para o
bem-estar, para a “aventura, destemor [e] ser indiferente...”. Ou seja, o corpo vira
uma máquina de produção de bem-estar uma vez que a fisiologia entrou em
funcionamento em seu mais alto grau de elevação. Pois bem, a essa possibilitação, a
esse acesso ao estado fisiológico pleno em fluxo, a isso, Nietzsche designa arte. A
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arte, através do “grande estilo”, alinha as polaridades das forças e, através do eterno
retorno, determina a suspensão dos valores, das ameaças e das contradições.
Exemplos: 1) quando o andarilho fala de uma superação da dor, do sofrimento e
dureza das suas andanças que tem a qualidade de transfigurar o corpo e deixar-lhe
em condição de júbilo de maneira tal que tudo flui a seu favor; 2) quando
Zaratustra, do alto da montanha, evoca o eterno retorno e experimenta o flerte com
o ponto abismal. O “grande estilo” é, portanto, o meio pelo qual a arte consegue
alinhar as diferenças e estabelecer um estado de plenitude, de fruição e fluxo do
corpo.

5) Obra de arte, em Nietzsche, diz respeito ao que pode um corpo. Equivocar-se-á


quem entender corpo como recorte biológico, morada restrita de um ser vivo.
Corpo, em Nietzsche, diz respeito ao jogo de forças presentes nos mais diferentes
níveis de afirmação da vida. Os corpos se combinam e se realocam com seus
movimentos. Há corpos animados e inanimados, orgânicos ou não. Um formigueiro
é um corpo, uma árvore é um corpo, os animais de Zaratustra são um corpo (ou
vários corpos); a natureza é, em suma, a resultante dos corpos. O cosmos é um
corpo. Os corpos se alinham e se desfazem, combinam-se ou estranham-se,
190

compatibilizam-se ou destroem-se, fundem-se ou perdem-se. As movimentações


possíveis de um corpo, ou de vários corpos, os múltiplos níveis de engajamento a
que se entregam são o que propaga a vida. O corpo dispensa o artista. O artista é
uma formação demasiado humana, uma emulação de um agir que está no corpo.
Uma de suas propriedades. A arte, no sentido em que Nietzsche a afirma, dispensa
artistas assim como admiradores ou críticos. Estes são, no máximo, efeitos da arte,
mas não se confundem com ela.

6) Em Nietzsche, o mundo, seja ele micro ou macro, é o que se constitui como obra
de arte. A arte não é materializável. Dispensam-se Deus e seus missionários, os
artistas de toda sorte, porque o mundo é um corpo cuja afecção, em sua forma
depurada, é expandir-se. Apesar dos esforços da cultura, das normas, procedimentos
e toda sorte de recorte ideológico, o mundo permanece o que é: “uma obra de arte
que dá luz a si mesma”. Não se pode parar o movimento. Não há força ou forças,
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investidas dos esforços dos homens, que consiga desviar, estancar ou reverter o
processo de expansão. A essa expansão, inexorável, princípio que rege todo o resto,
Nietzsche deu o nome de “vontade de potência”, que não pode ser entendida como
vontade de uma pessoa, vontade de um grupo, aspiração, desejo, etc. No máximo,
essas denominações são apenas designações, sempre parciais, de algo que esteja no
domínio da vontade de potência. Uma vontade subjetiva, uma necessidade não é a
vontade de potência em si –– no máximo, um rebatimento. A ambição desmesurada,
a inveja destrutiva, o ímpeto e os arroubos são meios de subjetivação que se
orientam junto ao princípio da vontade de potência, mas com ela não se confundem.
São emulações. Portanto, o que quer que o homem designe sob o nome de “arte”,
“objeto de arte” ou “artístico” é tão somente uma tentativa, parcial, de se apropriar
da vontade de potência.

7) Visto dessa forma, os movimentos artísticos e o que se designa sob o nome de


“arte” são formas de entender, afirmar, desconfigurar e reposicionar o que existe.
Não há “arte” reveladora, apenas reafirmadora do que já se sabe: a impossibilidade
de habitar o abismo. Zaratustra foi um afirmador de sua arte. Contudo, isso não faz
dele um gênio nem um grande artista. Ele não é um ser iluminado, nem especial.
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Regozija-se por ter aprendido a dançar. Sua decência está no fato de que ele não
toma para si a pretensão de ensinar os homens a dançar. Ele não dança para os
homens –– dança para si, dança para alinhar-se junto aos movimentos dos corpos.
Zaratustra dança com os animais e com a Terra, contudo, sua postura é rara. Ele
quer gargalhar porque isso lhe traz o sentido da vida, mas não tem a pretensão de
chamar de arte sua saga e muito menos de supor que, para ele, chegar a habitar o
abismo seja possível. Não. Zaratustra (e desenvolver isso foi, em parte, o nosso
esforço nesta tese), no máximo, flerta com o abismo. Ele sabe que não pode lá
permanecer porque a vida é incompatível com a morte propriamente dita. Além
disso, Zaratustra ama a vida, e ama, dessa feita, aquilo que esse corpo pode lhe dar.
Ele tenta reverberar junto à vontade de potência, mas sabe que não conseguirá
tomá-la para si.

8) A levar-se a sério a música de Zaratustra, temos que concluir o seguinte: o


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homem é patologicamente atingido pela compulsão de apoderar-se do princípio da


vontade de potência de maneira a dar a ele contornos particulares. Quanto mais
avança nessa perspectiva –– e aqui a ciência e a religião se irmanam ––, mais ele
cerceia a vida, mais ele reduz a potência dos corpos. Devemos tomar os “filisteus da
cultura” não somente como sendo a gentalha –– termo muito apropriado pelo nada
politicamente correto Nietzsche! –– que fica pelas praças, aplaudindo a sua própria
mediocridade, e também, não apenas os burgueses que inventam modos de ganhar a
vida através da elevação do espírito de decadência à enésima potência. Devemos
chamar de “filisteus da cultura” todos os pretensos artistas e seus movimentos, suas
entourages, que se pretendem superiores e que ditam valores de maneira cínica,
uma vez que tomaram para si o papel do Deus que assassinaram: fazer e dizer o que
é arte.

9) Com Nietzsche, pois, aprendemos que todo esforço de apropriação da arte é a


tentativa do homem de afirmar-se como absoluto e que, portanto, é, por princípio,
falha. Nessa perspectiva, há que entender que toda designação do que seja arte é
transitória e que pode ser superada ou destituída de valor. Que se queira tomar
determinados monumentos, peças arquitetônicas, afrescos e músicas como
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patrimônio da humanidade, como expressão máxima de uma cultura, e que se


consiga perenizar muitas dessas obras, isso, no entanto, não torna essas produções
referências para nenhum tipo de ordem arbitrária capaz de decidir sobre o que seja a
arte. Da mesma forma, não há artista e nem obra de arte que sejam indispensáveis
ou que tenham feito “a” diferença no sentido mais amplo. Tomadas sob este ângulo,
as manifestações artísticas dos homens não são outra coisa senão o que Nietzsche
designou por valor.

10) Sobre a questão do valor: quando se torna mercadoria, é sinal de que a arte
funciona para fins de utilidade, de troca, de deleite. Ora, esse destino ao que se
queira chamar de arte, que, em Nietzsche, não é outra coisa senão decadência,
pressupõe que a humanização ao extremo desse modo de produção –– a atribuição
de valor mercadológico à “arte” –– o circunscreve dentro de uma lógica econômica
cuja equação determina uma igualdade entre os termos capital e arte. Se é possível
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leiloar-se a arte, se ela adquire status de mercadoria, então significa que algo se fez
evadir nesse processo. Quando se atribui preço à arte, ela se substancializa a ponto
de se revelar como Nietzsche a sabia: apenas mais uma potência do falso. Nada a
objetar quanto à mercantilização do que quer que seja; afinal, esse processo é
também, a condição de um modus operandi de vida que tem sido soberano desde
que foi inaugurado. A questão, no entanto, é a seguinte: que diferença há entre
moedas? A resultante não será sempre um montante? Por que se contentar com a
esmola (seja ela milionária ou não) como signo do que seja artístico? Em outras
palavras, onde há mercantilização, houve apropriação do artístico. Para tal,
vulgarizou-se a arte.

11) Arte, em Nietzsche, é a “vontade de potência em expansão”, expressão para


denominar a pulsão. O princípio da pulsão é agir sobre si própria. Como ela não tem
materialidade, pode expandir-se até evadir-se, desfigurar-se... Mas não se sabe se a
pulsão tem fim; provavelmente, não. O que tem fim é a vida individuada. A vida,
para manter seu interesses (manter-se existindo), tem que se defender da pulsão.
Briga de Nietzsche com os homens superiores: “Por que vocês negam a vida ao
invés de deixá-la fluir?”. Resposta: “Porque os homens, em geral, não suportam o
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desprendimento, a indiferenciação, a ausência de telos”. A grande doença: a


compulsão a dar sentido.

12) A pulsão, em Nietzsche, não é psíquica. Subjetivar a pulsão, na perspectiva


nietzschiana, dar a ela contornos de desejo, é diminuir o impacto de sua formulação.
A pulsão não conhece limite; o homem, sim. O homem é o resultado do limite, é
produto da pulsão, efeito da vida. A pulsão, contudo, não é humana; ela, em si, não
é um representante do que quer que seja e muito menos se presta a ser
representável. Ela é o princípio da expansão que visa à expansão até às últimas
consequências; portanto, é inconsequente. Sabe-se que a pulsão pode ser
tangenciada, aludida e humanizada. Nesse ponto, porém, ela já não é mais pulsão.
Zaratustra mesmo queria voar –– chegou a querer atirar-se junto ao abismo, mas
recuou por nojo. Essa foi sua afecção salvaguardora da vida. O nojo o derrubou. Ele
voltou a ser homem e, por isso, convalesceu. O nojo de Zaratustra é o que contém o
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trabalho da pulsão. É produto do sentido, obra da linguagem. A pulsão ignora o


nojo, mas é desviada quando a consciência da cultura intervém. A cultura é
antipulsional –– ela a persegue e a doutrina. Na Grécia antiga, por exemplo,
segundo Nietzsche, foi Sócrates quem iniciou o processo de doutrinação dos
domínios pulsionais. A cultura, em perseguindo a pulsão, limita o fisiológico.
Consequência: os homens adoecem.

13) O convalescer de Zaratustra é sinal de defesa: só convalesce quem recusa


adesão ao sintoma da decadência. Note-se que um batalhão de homens anseia pela
saúde máxima, pelo elixir da vida eterna. No entanto, de que sabem eles? Zaratustra
já afirmara, desde sua experiência, que o princípio que rege a vida, em si, é eterno;
mas os homens não se contentam com o fato de que tudo retorna. Eles próprios
querem retornar, desejam o elixir da permanência eterna. Zaratustra gargalha disso
e dança porque ele entendeu que sua existência é um curto-circuito, efeito de uma
dobra, talvez, do acaso. Então ele se alegra porque pode formular uma postura: ser o
que ele é. Para tal, é preciso ir e vir, bascular. O júbilo é o movimento. A
convalescença prepara para mais um voo.
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14) Em Nietzsche, a arte irrompe no homem, e não o contrário; dessa feita, a arte é
a própria pulsão. Se o homem age sobre alguma coisa, essa coisa pode derivar da
arte, contudo jamais será a arte. Apolo e Dioniso: duas formulações que tentam
humanizar a pulsão. Figurabilidade e embriaguez –– elementos simétricos, razões
opostas, motivos intensos e passíveis de diálogo. Aliás, desde O nascimento da
tragédia, Nietzsche já dissera que o dionisíaco tenta abrir o homem ao além de si
mesmo, mas a vida, em seu movimento de apreensão e contenção da pulsão,
inesgotável, retorna com Apolo e obriga o homem a aderir às formas. Assim se
humaniza a arte. Nietzsche inventou o resgate da tragédia grega através da báscula
entre o apolíneo e dionisíaco porque, desde cedo, viu-se, ele próprio, função dessa
báscula. A pulsão o tomou de vento em popa: o gosto do fluxo, do vento beijando a
face. Por isso ele tinha fascínio pelo caminhar na corda de elástico; porque ela
suspende a polaridade, mas não a elimina. Andar na corda bamba é para poucos ou
para nenhum. Quem a sustenta por muito tempo? O funâmbulo, logo no prólogo, se
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esborrachou –– não aguentou a pressão. Ele se apavorou com a multidão que dele
demandava peripécias. Morreu porque foi dragado pela massa, que corrói,
corrompe, engole, fagocita. E depois dejeta. Mas Zaratustra estava lá, recém-
chegado à cidade, e tomou o funâmbulo pelas mãos. Carregou-o até dar-lhe destino
digno. Despediu-se, dizendo que não é possível a vida para mortos nem a vida na
morte. E dali seguiu em frente, ele próprio tendo introjetado o funâmbulo. A partir
de então, Zaratustra assume o gosto pela corda bamba. Ele vai tentar a experiência.
Correrá todos os riscos, e isso o fascinará porque extrairá enorme júbilo na
suspensão. Viver é equilibrar-se na ausência do bem e do mal. Toda vez que cai,
Zaratustra tenta retornar para esse local de indiferenciação. Uma vez que se
conheçam os termos de acesso, então se pode aí estar com mais frequência. Cada
flerte com o abismo é, em si, uma experimentação artística.

15) A arte engendra o amor, torna o amante mais belo, mais perfeito porque o
transfigura desde a embriaguez dionisíaca. Todo tipo de amor, na sua intensidade,
tem raízes orgânicas onde a arte se encontra como dispositivo disparador. Note-se
bem: não é que a arte seja o amor e muito menos que amar seja uma arte –– a
disponibilidade para amar é efeito de uma configuração fisiológica tonificante cujo
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dispositivo da arte habilitou. Nietzsche, nesse ponto, define a arte como estimulante
da vida. O amor é um estado alterado de si, no qual a percepção do que há em si e
em torno de si (não de deve falar de objeto de amor externalizado) é promovido
pela força potencializada, liberdade pela arte. Todo amor, mesmo sendo mentiroso,
ficcional, é potência do corpo. Os amantes, através do rebatimento de suas afecções,
criam corpos de potência, transfiguram-se, transfundem-se e se modificam.

16) Para Nietzsche, a arte é como a força superior, capaz de se opor aos estados de
conformismo e mesmo de negação da vida defendidos tanto pelo Budismo quanto
pelo Cristianismo. A arte é também o dispositivo que permite ao homem lidar com
a dimensão trágica. Em Nietzsche, a arte é a própria dimensão trágica na medida em
que opera na intensidade das sensações e permite ao conhecedor conhecer-se como
trágico, ao homem de ação, tornar-se guerreiro e ao sofredor, transfigurar seu
sofrimento. A arte é, portanto, o dispositivo que permite a Nietzsche e a Zaratustra
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dizerem “Sim!” indefinidamente. A crença na potência do corpo elimina o pavor da


finitude, que não existe porque a arte opera sempre em valências extremas de
maneira tal que a consciência e o trabalho de construção de sentido ficam a serviço
das afecções, e não o inverso.

17) É neste sentido, que pode-se falar de uma estética nietzschiana. Ou seja, apenas
no registro da evocação do trágico, da convivência com a ameaça da desintegração
e com o júbilo dos extremos aportados por Dioniso, é que se pode entender que haja
algo que –– não como modelo preestabelecido ou alvo a ser atingido, mas, como
suporte de repetição da experiência, dispare e potencialize o circuito do eterno
retorno. A arte, em Nietzsche, só pode ser uma estética se concebida como
dispositivo. Dispositivo que garante a báscula continuada entre as polaridades de
maneira tal que o processo de suspensão das valências se torne dominante, tal qual
o forte se impõe ao forte, provocando um efeito de indiferenciação tal que a
resultante retorne, ela própria, como resultante fisiológica: música, dança,
gargalhadas.
196

18) A experiência de Zaratustra, ao evocar o eterno retorno, ao flertar com o ponto


abismal, pode se aproximar de experiências místicas narradas por diferentes
mestres, grupos ou doutrinas, sejam elas orientais ou ocidentais, antigas ou
modernas. É necessário reparar que não só Nietzsche foi, desde o início até o fim de
sua vida, tomado pela paixão religiosa (a educação familiar, o interesse precoce pela
Bíblia, as festas religiosas, os oratórios compostos e a ferrenha crítica ao
Cristianismo). Muito também do Zaratustra se configurou em torno de elementos
cuja semântica mística e religiosa estiveram presentes: Deus, divindade, corpo,
alma, transfiguração, elevação, revelação, doutrina, santo, eremita, canto, pregação,
profecia, anunciação.... A lista é muito extensa e não deve haver nenhum tipo de
estranheza quando se pensa em problematizar a experiência do flerte com o ponto
abismal de Zaratustra no campo do místico. Dizer isso não significa alegar que a
experiência de Nietzsche-Zaratustra se reduz, equipara-se ou se confunde com o
místico. Há, evidentemente, distinções na forma de compreender e experimentar a
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transfiguração. Nada disso deve causar surpresa porque todas essas composições
(religiosas ou não, místicas ou não, filosóficas ou não) estão lidando diretamente
com questões pertinentes ao absoluto e às parcialidades, ao todo e ao nada, ao
positivo e ao negativo, ao ser e ao não ser. Em sentido amplo do termo, a metafísica
é o instrumento de reflexão e pensamento sobre as origens e os fins e, guardadas as
diferenças, tais questões sempre interessaram ao homem desde muito cedo,
independentemente de suas origens geográficas, étnicas, raciais. O pensamento
abissal, segundo se aprende com Nietzsche, é pura vontade de potência. Como tal,
ele visa expandir-se, mas encontra limites que o impelem a retornar e o obrigam a
assumir as mais diferenciadas formas. Ou seja, se a vontade de potência é o
princípio que rege o Todo, que impulsiona as diferenciações, então, a partir dela,
tudo que existe são caminhos, estratificações, linguagens, formações de
compromisso, arranjos etc., que recebem os mais distintos nomes de acordo com as
diferentes épocas, línguas, culturas e tradições. Há que se reconhecerem, portanto,
afinidades e proximidades da experiência abissal de Zaratustra com experiências de
elevação experimentadas pelos místicos. Seja o Tao, o Zen-Budismo ou a própria
experiência mística dos cristãos, é preciso ver que há planos em comum nessas
doutrinas/práticas/experiências a despeito de todas as diferenças envolvidas: trata-
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se, sempre, de uma tentativa de transfiguração se si, de uma elevação da dimensão


corporal a um estado de graça, de uma indiferenciação do em si com relação ao
todo, do atingimento de um estado de indiferenciação plena, da união das partes
junto ao Uno Primordial, da aquisição de uma harmonia do ente com o ser...
19) Tomemos, como exemplo, o Tao segundo o define BLOFELD, 1979:

O Tao é um mar sereno de puro vazio, perlado, ilimitado, imaculado. Dele nascem
dois dragões gêmeos: o macho, o brilhante como o sol e estriado de ouro, senhor da
ação; a fêmea, radiante como a lua e entretecida de fios de prata, dada à
passividade.

O Tao, como o incognoscível, como amplidão, lugar de indiferenciação, pura


abstração do espírito, inatingível. O Tao, inominável que origina tudo a partir da
nomeação e que se esvanece eternamente, que não se confunde com as coisas e que
é infinito retorno. O Tao que nunca nasceu e que nunca morrerá, que não tem
desejo, interesse nem faz escolhas. Mas o Tao é o que permite o advento de tudo o
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que há. O Tao, escuridão dentro da própria escuridão e caminho para toda a
compreensão. O Tao é ao mesmo tempo o ser e o não ser, o nada antes de tudo e o
ser de onde tudo emana. O Tao é fluxo eterno e, nele, tudo se transforma, modifica-
se a cada instante. As mutações ocorrem como condição da vida e nela tudo se
resolve. Como não perceber semelhanças entre o flerte com o ponto abismal de
Zaratustra e a experiência mística taoísta, que visa à destituição do ego e à
libertação do espírito, para que, em se desapegando de tudo que há, retorne como
ilimitado, em consonância com o ser em sua totalidade? Tanto Zaratustra quanto o
Tao sabem do abismo, do indiferenciado e da potência que aí reside, a criação do
todo. Ambos visam, cada um à sua maneira, à seguinte experiência do homem com
o cosmos: a superação das rivalizações polares (todos os valores), das diferenças e a
experimentação de um estado de suspensão que lhes permita a imortalidade (no
caso dos taoístas) e a transvaloração de todos os valores (no caso de Nietzsche).
Zaratustra, diferente do Tao, não falará de imortalidade, mas sim de afirmação
eterna e incondicional da vida.

20) O filósofo-artista –– capaz de pensar, falar e experimentar a transvaloração de


todos os valores e dela dar notícias –– é invenção de Nietzsche. Ele não é um novo
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conceito, uma nova categoria nem uma nova postura a ser afirmada: é uma criação
artística, de um filósofo que ousou expandir-se através de suas afecções rumo ao
limite do possível, contornando o impossível. O filósofo-artista, “concepção
superior da arte”, termo cunhado pelo duplo de Zaratustra, é o nome que melhor
define a trajetória e o legado de Friedrich Nietzsche.
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