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Antonio Henrique de Castilho Gomes

A [re]configuração do discurso do samba


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812811/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao programa de Pós-graduação


em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para
a obtenção do título de Doutor em Letras.

Orientador: Prof. Julio Cesar Valladão Diniz

Rio de Janeiro
Abril de 2012
Antonio Henrique de Castilho Gomes

A [re]configuração do discurso do samba


Defesa de Tese apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutor pelo programa de
Pós-Graduação em Letras do Departamento de Letras
do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-
Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812811/CA

Profº. Júlio Cesar Valladão Diniz


Orientador
Departamento de Letras – PUC-Rio

Profº. Renato Cordeiro Gomes


Departamento de Letras – PUC-Rio

Profa. Stella Teresa Aponte Caymmi

Profº. Frederico Augusto Liberalli de Goes


UFRJ

Alexandre Graça Faria


UFJF

Profa. Denise Berruezo Portinari


Coordenadora Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 11 de abril de 2012.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, do autor e do orientador.

Antonio Henrique de Castilho Gomes


Professor graduado em Museologia pela Universidade do
Rio de Janeiro e em História pela Universidade Federal
Fluminense, Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, atuante na rede privada de
ensino médio.

Ficha Catalográfica

Gomes, Antonio Henrique de Castilho


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812811/CA

A [re]configuração do discurso do samba /


Antonio Henrique de Castilho Gomes ; orientador:
Julio Cesar Valladão Diniz. – 2012.
178 f. ; 30 cm

Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras,
2012.
Inclui bibliografia

1. Letras – Teses. 2. Samba. 3. Escola de


samba. 4. Carnaval. 5. Desfile. 6. Cultura popular. 7.
Indústria cultural. I. Diniz, Julio Cesar Valladão. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Letras. III. Título.

CDD: 800
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Aos meus verdadeiros amores,


minha esposa Ursula e meus
filhos João Pedro e Bernardo,
que dão sentido a minha vida.
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A meus pais Fernando e


Carmem (in memorian), que
muito se sacrificaram para que
eu pudesse chegar aonde
cheguei.
Agradecimentos
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Este espaço é reservado para que, de alguma forma, eu possa retribuir toda a
ajuda que recebi ao longo do processo de construção desta tese. Devo muitas
coisas à muitas pessoas, por isso peço desculpas se algum nome for esquecido.
O número de pessoas que de forma relevante contribuíram para a formação da
minha vida é muito maior de que os aqui listados.

Em primeiro lugar quero agradecer ao meu orientador e amigo Júlio Diniz, com
quem tive a honra de conviver os últimos oito anos, por todo o
comprometimento, toda a disponibilidade a mim dedicada, e pelos proveitosos
encontros informais. Incluo aqui também sinceros agradecimentos aos
professores Karl Erik, Ana Paula Kiffer, Heidrun Krieger, que estiveram
presentes durante meu percurso. Não posso esquecer-me de mencionar a
fantástica Chiquinha, sempre pronta para resolver todos nossos problemas.
Agradeço ainda à PUC-Rio, pelo auxílio concedido, sem o qual este trabalho não
poderia ser realizado.

Sou muito grato também às amizades que construí na PUC e que me foram de
grande valia, nos informais papos acontecidos no “Pires” e em tantos outros
lugares. Em especial, gostaria de destacar: Stella Caymmi, Ana Paula de
Oliveira, Leinimar Pires, Marcela, Daniel, Mauro e tantos outros que me fogem a
memória.
Gostaria de agradecer também aos meus “padrinhos”, que me introduziram no
mundo do samba, em especial Jandyr Antunes, Jayminho, Paulinho Careca,
Maurício “Pipa”, Alexandre Brittes, Hiram Araujo e a meu tio Paulo Bayde.

Também sou muito grato aos companheiros de profissão que muito colaboraram
ao longo desta jornada, com conselhos, paciência e acima de tudo cumplicidade:
Nelson Oliveira, Waldyr Leal, Perivaldo, Nelson Ricardo, Celeste. Agradeço
também a valorosa contribuição dos amigos, professores, gestores e meus
queridos alunos da Escola SESC de Ensino Médio que muito me incentivaram e
fortaleceram em especial a grande figura de Eduardo Fillipe, com quem pude
trocar muitas experiências, que me foram de grande valia. Não poderia
negligenciar um agradecimento especial a Rodrigo Peixoto, pelo gigantesco
esforço dedicado a revisão desta tese.
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Deixo para o final o agradecimento mais afetuoso. Agradeço a minha família.


Meus primos, minha irmã Carla, meus cunhados e sobrinhos, meus sogros,
minha madrinha e segunda mãe e principalmente minha esposa Ursula à quem
muito amo e a meus filhos João Pedro e Bernardo, que souberam abrir mão do
marido e pai neste complexo caminho que me trouxe até aqui. Amo-os
profundamente.
Resumo

Gomes, Antonio Henrique de Castilho; Diniz, Júlio Cesar Valladão. A


[re]configuração do discurso do samba. Rio de Janeiro, 2012. 178p.
Tese de Doutorado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.

Esta tese consiste em uma análise crítica da reconfiguração do discurso do


samba, entendendo a expressão samba não apenas como gênero musical, mas
como um evento que reúne o samba enredo, seu par natural na escola de
samba, e o produto final desta relação, o desfile. Entendendo tal fenômeno como
uma manifestação da cultura popular, este trabalho objetiva analisar as diversas
estratégias utilizadas pelo samba a fim de se transformar, mantendo-se
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hegemônico no cenário cultural brasileiro. Para tanto, esta tese debruça seu
olhar sobre alguns elementos e momentos históricos que foram fundamentais
para a consolidação do caráter dominante do samba. Em primeiro lugar, busca-
se comprovar o espaço de fala do subalterno proporcionado pela força da
configuração do samba no espaço cultural brasileiro. No segundo momento, faz-
se uma análise das relações existentes entre o samba, o sambista, entendido
aqui de forma mais abrangente possível, e a indústria cultural. Por fim, busca-se
compreender de que forma se constrói o discurso do samba hoje em dia, que
relações são tecidas e de que formas elas são utilizadas para garantir o objetivo
fundamental do samba que é permanecer como principal manifestação de
cultura popular brasileira.

Palavras-chave

Samba; escola de samba; carnaval; desfile; cultura popular e indústria


cultural.
Abstract

Gomes, Antonio Henrique de Castilho; Diniz, Júlio Cesar Valladão. The [re]
configuring samba speech. Rio de Janeiro, 2012. 178p. Doctor Thesis -
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.

This thesis consists of a review of the reconfiguration of the discourse of


samba, samba understand the expression not only as musical genre, but as an
event that brings together the samba enredo, her natural pair in the school of
samba, the end product of this relationship, the carnival parade. Understanding
this phenomenon as a manifestation of popular culture, this work aims to analyze
the different strategies used by Samba to become, keeping the hegemonic
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cultural scene in Brazil. To this end, this thesis focuses its look on some elements
and historical moments that were essential for the consolidation of the dominant
character of samba. First, it seeks to prove the speech of the subaltern space
provided by the force of the samba configuration space of Brazilian culture. In the
second moment, it is an analysis of the relationship between samba, sambista,
understood more broadly as possible, and cultural industry. Finally, it seeks to
understand how speech is constructed of samba nowadays, what relationships
are woven and in what ways they are used to ensure the fundamental objective
of samba that is to remain as the main manifestation of Brazilian popular culture.

Keywords

Samba; school of samba; carnival; carnival parade; popular culture and


cultural industry.
Sumário

1. Introdução 11
2. O samba e suas falas 18
2.1.O samba como espaço de fala 20
2.2. Samba e cultura popular 27
3.O samba, o sambista e a indústria cultural 45
3.1.O samba 47
3.2.O sambista 60
3.3.A indústria cultural 73
4.A reconfiguração do discurso do samba 87
4.1.As novas exigências do concurso das escolas de samba do Rio de
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Janeiro 88
4.2.As novas superescolas de samba 104
4.3.O novo conceito de comunidade: entre o afeto e a territorialidade 116
5. Conclusão 126
6. Referências
6.1. Livros e periódicos 132
6.2.Sites 143
7. Anexos
7.1. Entrevistas concedidas ao autor
7.1.1. Jandyr Antunes e Jaime da Vila 147
7.1.2. Alexandre Brittes 153
7.1.3. Hiram Araújo 156
7.2. Entrevistas retiradas de periódicos – recurso eletrônico
7.2.1. Fernando Pamplona, o revolucionário tradicional 158
7.2.2. Fernando Pamplona – Carnavalesco 161
1
Introdução

Na quinta-feira que antecedia o carnaval de 2008, após turbulenta viagem,


um grupo composto por nomes ligados ao carnaval carioca (entre eles o autor
desta tese) desembarcava no aeroporto Salgado Filho, na cidade de Porto
Alegre, Rio Grande do Sul. Todos convidados pelo então Presidente da
SORDHESERJ (Sociedade Recreativa dos Diretores de Harmonia das Escolas
de Samba do Estado do Rio de Janeiro), Jandyr Antunes, para compor o corpo
de julgadores do concurso de escolas de samba daquela cidade. Os membros
da comitiva foram unânimes ao constatar que o convite gerara certa surpresa por
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que não imaginavam, em sua ignorância, que houvesse um desfile desses


moldes em Porto Alegre grande o suficiente para financiar a ida de toda uma
comissão julgadora oriunda do Rio de Janeiro. Quando chegaram à sede da
AECPARS (Associação das Entidades Carnavalescas de Porto Alegre e Rio
Grande do Sul) foram recebidos por gaúchos, com direito a bombacha e
chimarrão, que entendiam tudo de samba. Ao entrarem no sambódromo no fim
da tarde de sexta-feira (lá o desfile ocorre na sexta e no sábado, por conta do
televisionamento do desfile do Rio de Janeiro), eram recebidos como
celebridades numa estrutura razoável, mas muito bem organizada. Mesmo com
arquibancadas removíveis, o desfile se realiza sempre no mesmo lugar, próximo
à cidade do samba: um conjunto de barracões construídos pela prefeitura com
uma infraestrutura relativamente grande. A experiência, que durou apenas dois
anos, conduziu-nos a algumas considerações. Primeiro, reconhecemos a força
que o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro possui e que é capaz de
levá-lo a lugares tão distantes de sua origem. Em segundo lugar, constatamos
como o carnaval das escolas cariocas exerce influência sobre os demais.
Carnavalescos, intérpretes, compositores e até julgadores partiam da cidade
carioca para garantir um desfile cada vez mais próximo do modelo que aqui se
tem. Um evento que tem força e longevidade exemplares deve ser, certamente
pode ser, um objeto de estudo profundo. Sendo assim, pretendemos contribuir
com uma análise que se debruça sobre a potência do samba em se apropriar do
que vem de fora, para, de alguma forma, tirar proveito disso e se manter no
centro dos debates.
12

Diante disso, surgia a primeira pergunta: como um evento que começou


sua história num espaço geográfico e de representação tão limitado,
transformara-se rapidamente neste mega acontecimento que hoje é símbolo da
cultura popular de uma comunidade imaginada chamada Brasil, sendo inclusive
“exportado” para outros estados? A resposta veio imediatamente sob a forma de
uma suposição: as escolas de samba – junto com seu par, o samba enredo e o
produto final, o desfile – souberam, ao longo de sua história, reconfigurar seu
discurso, dialogando, polifonicamente, com setores cada vez mais abrangentes e
diversos. Buscamos, então, comprovar algumas hipóteses básicas.
Primeiramente, a força do samba vem da vinculação com as camadas populares
e da capacidade de dialogar com outros segmentos sociais numa relação
polifônica. Em segundo lugar, sendo um espaço de fala das categorias que
chamaremos de subalternos, o samba (entendido aqui como esta tríade: escola
de samba, samba enredo e desfile) precisou se adaptar para continuar a exercer
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tal papel, realizando uma espécie de antropofagia, absorvendo tudo o que vinha
de fora e reprocessando estes elementos submetendo-os aos próprios
interesses. Finalmente, as transformações ou reconfigurações que o discurso do
samba sofreu sempre funcionaram como uma espécie de estratégia para cumprir
um objetivo “intrínseco" a sua existência: ser hegemônico no cenário da
produção cultural do carnaval brasileiro. Tal pretensão o levou a dialogar
primeiro com o Estado, numa relação complexa em que se cruzaram interesses
mútuos e diversos, mas que lhe garantiu sair do gueto e se tornar símbolo de
uma inventada tradição cultural de um Brasil mestiço, o que de fato lhe trouxe
alguns benefícios, como por exemplo, a subvenção pública. Não propomos que
tenha ocorrido a homogeneização das produções culturais populares, ou uma
espécie de domesticação de uma manifestação livre. Este diálogo não extinguiu
em si, outros caminhos para construção de espaços de fala, ele apenas
representa uma dada opção:

O discurso da homogeneidade mestiça, criado no Brasil através de um


longo processo de negociação, que atinge seu clímax nos anos 30, tornou
determinados ‘atos decisivos’ possíveis e aceitos (como por exemplo, o
desfile de escola de samba com patrocínio do Estado), inventando uma
nova maneira de lidar com os problemas da heterogeneidade étnica e do
confronto erudito/popular. Essa nova maneira não exclui todas as outras
possíveis formas de lidar com os mesmos problemas. O racismo continua
existindo; uma enorme e bem policiada distância continua separando a
elite e as camadas populares; o repúdio pela cultura popular continua
dominando o ‘gosto artístico’ de vários grupos da elite. Ao mesmo tempo,
outros grupos dessa elite valorizam o popular e combatem o racismo. Essa
13

multiplicidade de visões de mundo, estilos de vida, políticas/práticas


sociais contrastantes e discursos contraditórios é uma característica
incontornável da complexidade social.1

Depois o samba dialogou com a academia, absorvendo indivíduos que


passaram a propor uma inversão muito interessante, submetendo a dança e o
lúdico, características que lhe eram originais, ao visual. A entrada em cena de
elementos oriundos da academia, principalmente da Escola de Belas Artes,
realizou uma revolução estética no desfile, projetando-o a patamares
impensáveis nos anos de 1930. Este diálogo representou também, entre outras
coisas, um alargamento do seu universo participativo. Hoje, o samba precisou
aprender a dialogar com a indústria cultural, transformando-se em um produto
consumido por um público cada vez mais amplo e eclético. O espetáculo a partir
desta aliança transforma-se ano a ano, adaptando-se a exigências cada vez
mais minuciosas, que levam as camadas sociais ligadas às tradições do samba
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a se manter hegemônicas no cenário do carnaval carioca, e (por que não dizer?)


brasileiro. Para tentarmos comprovar nossas hipóteses, percorreremos caminhos
que partem de alguns conceitos prévios que sustentam determinadas posições
que serão tomadas ao longo do trabalho.
Postulamos, então, dois pressupostos básicos: Em primeiro lugar, o samba
é uma manifestação de cultura popular. Afirmamos isto mesmo reconhecendo as
dificuldades em estabelecer os limites entre o popular e o erudito na discussão
contemporânea. Entretanto, apropriamo-nos para esta tarefa, de um dado
conceito de cultura popular construído por autores como Stuart Hall. Em
segundo lugar, entendemos que, na condição de cultura popular, o samba se
transforma num potencial espaço de fala daquilo que passamos a chamar de
categorias subalternas. Esta afirmativa é construída a partir dos passos de
pensadores indianos que acreditam que existe a possibilidade de fala de tais
categorias. Mesmo entendendo que esta fala não se dê sozinha, acreditamos,
como James Clifford, que este espaço de enunciação é possibilitado a partir de
uma autoridade dialógica ou polifônica na qual a voz do subalterno se faz ouvir
em conjunto com outras vozes. É verdade que esta relação não é, nem de longe,
harmônica. Ela é permeada por tensões, conflitos e negociações que estão
ligados intimamente às releituras que o samba faz de suas próprias tradições.
Desta forma apontamos para a ideia de que as escolas de samba são um
espaço híbrido, constituído pelo diálogo entre o novo e o velho, numa

1
VIANNA, Hermano. O Mistério do samba, p.154.
14

perspectiva de releitura apontada pelo próprio Stuart Hall. Esta releitura é uma
possibilidade de se afirmar enquanto protagonista de uma dada representação
cultural. O que estamos propondo, de certa forma, é que o samba é o espaço no
qual se articulam tensionalmente representações culturais diferentes,
constituindo assim uma espécie de entre-lugar onde vozes que parecem
dissonantes reconstroem espaços de representações subjetivas de uma dada
categoria subalterna:

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade


de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de
focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na
articulação de diferenças culturais. Esses ‘entre lugares’ fornecem o
terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação - singular ou
coletiva - que dão início aos novos signos de identidade e postos
inovadores de colaboração e contestação no ato de definir a própria ideia
de sociedade.2
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Esta capacidade que o samba construiu desde sua origem, tornou-o capaz
de se transformar acompanhando as necessidades que surgiram ao longo da
própria história. Para permanecerem no lugar em que chegaram, as escolas
precisam dialogar com novos símbolos que transcendem as necessidades
geradas pelos segmentos ligados à tradição. Essas transformações buscam
atender também às demandas de elementos que se foram incorporando no
cenário do samba, conquistando um público/consumidor cada vez mais distante
do seu lugar de origem. A cada ano, as escolas se organizam e se
profissionalizam para garantir um espetáculo que seja visto/consumido por mais
de 140 países. Este hiperdimensionamento só foi possível graças a uma
gigantesca capacidade de se repensar, de se ressignificar e de reconfigurar a
própria fala, que antes era direcionada para um público muito próximo, diferente
de hoje.
Desta forma, o que pretendemos nesta tese não é esgotar as
possibilidades analíticas acerca de tais questões. Pretendemos apenas apontar
e comprovar hipóteses que indicam as estratégias “malandras” de que o samba
se utilizou ao longo da sua trajetória que lhe garantiram a passagem do gueto
para o cenário nacional e que lhe permitem, hoje, uma projeção que nem o mais
otimista fundador de uma das históricas agremiações pensava, enquanto
desfilava pela Praça Onze cantando no pioneiro ano de 1932. O que
defendemos é que, ao contrário do que pensa a crítica ligada à tradição, estas

2
BHABHA, Homi K. O Local da cultura, p.20.
15

releituras ou reconfigurações, não proporcionaram um estreitamento no espaço


da fala das categorias populares, causando o desaparecimento do samba. Ao
admitirem coexistir com outros discursos, incorporando outros signos, o espaço
se alargou e as escolas se transformaram em gigantescos aparelhos de
grandiosos projetos culturais.
Outro aspecto relevante é a ideia de que a profissionalização do samba
traz em si questões que são muito abrangentes e que envolvem interesses
diversos. Tal processo se inicia com a entrada, no cenário das escolas de
samba, de profissionais de outros segmentos da representação da cultura. A
chegada de carnavalescos e estilistas marca uma transformação que vai chegar
ao seu momento áureo com a profissionalização de artesãos e de outras funções
que envolvem a produção do carnaval. As escolas passam a oferecer, desse
modo, cursos de formação de profissionais que atuam nos diversos segmentos
da economia do carnaval. Mesmo tendo havido o problema da frieza profissional,
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que acometeu algumas escolas de samba nos anos de 1990, o fenômeno foi o
grande salto dado por elas, uma vez que acaba por aproximá-las de sua
comunidade, já que tal estrutura produtiva garante a geração de emprego e
renda. Além disso, elas buscam fazer, e têm feito muito bem, a associação entre
técnica e emoção. Uma escola precisa se profissionalizar, mas não pode se
tornar fria. Sua identidade é permeada pela emoção.

Então a gente está a cada dia tentando melhorar, a cada dia se tornando
mais profissional, mas mantendo o espetáculo. A gente não pode
transformar isto aqui numa coisa fria e calculista, tem que ter emoção.
Como é que uma coisa calculista tem emoção? Eu não sei, mas a gente
tem que manter a emoção e a harmonia e tem que ser um excelente
administrador, mas ter um coração de sambista. Não dá para dizer que se
não der lucro fecha. Não dá para ser assim. Escola de samba não ganha
dinheiro, só gasta. Agora tem que ser gasto racionalmente calculado. É
isto que vai te trazer para este mercado. Tem que juntar a emoção do
carnaval e a técnica e o conhecimento.3

Se por um lado trazemos a novidade de assumir a tese de que o


carnavalesco é, sim, um sambista, ultrapassamos as fronteiras da territorialidade
para definir um conceito de comunidade que se baseia não no espaço
geográfico, mas sim numa espécie de escolha referendada pela relação de afeto
que se constrói por uma série de questões entre o membro e a escola. Desta
feita, não é relevante, a nosso ver, se o elemento mora ou não na região de uma
determinada agremiação. O que importa é a relação de fidelidade que ele

3
Alexandre Brittes. Entrevista concedida ao autor.
16

mantém com ela. Da mesma forma, sustentamos a ideia de que o carnavalesco


é um sambista, não evocando uma identidade arraigada às tradições, mas sim
uma identidade móvel, ligada ao samba. Sua fidelidade ao samba é maior do
que sua fidelidade à escola.
Por fim, o que pretendemos comprovar é que a necessidade de se adaptar
aos novos tempos e às novas exigências midiáticas e de aprender a dialogar
com setores cada vez mais distantes do seu universo de representação não são
fenômenos impostos ao samba apenas por eventos que vêm de fora para
dentro. Não negamos esta possibilidade, somente apontamos para o fato de que
tais fenômenos, se não partem do próprio universo do samba, pelo menos
mantêm uma relação dialética com os segmentos que propõem tal mudança.
Defendemos que, muito embora haja tensões entre tantos vetores que recaem
sobre seu universo, o samba sempre soube como lidar com essas questões.
Não acreditamos que haja um lugar de inocência no samba, nem que ele esteja
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submisso e silencioso diante das pressões e imposições que vêm de fora.


Acreditamos que o samba possui uma estratégia muito particular que recebe
muito bem as supostas intromissões, mas, num movimento antropofágico,
reprocessa todas elas e acabar por retirar vantagens de cada uma. Incorporando
a figura do malandro regenerado, muito bem descrita por Claudia Neiva, o
samba vive na fronteira, aproximando-se e afastando-se do que é diferente, do
outro, mas, ao invés do que se possa imaginar, esta suposta conciliação é uma
poderosa estratégia de enfrentamento que lhe garante consolidar-se como um
espaço de fala das categorias subalternas.

A história começa nos fins dos 20, quando surge na música popular o
personagem malandro propriamente dito, para alcançar em seguida, na
década de 30, o ápice de seu prestígio (...) A virada se consuma a partir de
1937, quando o Estado Novo, instituindo a ideologia do culto ao trabalho e
uma política simultaneamente paternalista e repressiva em relação à
cultura popular, vem modificar as regras do jogo e o panorama da
produção poética do samba (...) Incentivam-se os compositores a louvar os
méritos e recompensas do trabalhador, ao mesmo tempo que se interditam
e censuram os casos e façanhas do malandro.
Mas ele já fundara sua linhagem dentro do samba, e esta, ao contrário do
que desejava o Estado Novo, não desaparece aí. O malandro legendário e
prestigiado, a espécie de anti-herói que povoa as composições da década
de 30, é substituído e continuado na década de 40 pela figura ambígua do
‘malandro regenerado’, sempre às voltas com a polícia, falante,
problemático, defensivo, dizendo-se trabalhador honesto, mas sempre
carregando os estigmas e emblemas da malandragem. O personagem
malandro – em cuja boca Wilson Batista em 1936 coloca as palavras: ’eu
passo gingando/ provoco e desafio/ eu tenho orgulho/ de ser tão vadio’
(‘Lenço no Pescoço’) – passa a dizer em 1941, nos versos do mesmo
17

Wilson Batista: ‘Seu Martins Vidal/ eu moro no Lins e sou o tal/ que há
muito tempo exerço/ uma fiel profissão/ eu não sou mais aquele antigo
trapalhão’ (‘Averiguações’)4

Eis a melhor imagem que pretendemos construir do samba hoje, a imagem


do malandro regenerado, que se apropria do discurso do trabalhador para
garantir seus espaços de fala e de representação.
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4
MATOS, Cláudia Neiva de. Acertei no milhar: malandragem e samba no tempo
de Getúlio, p. 14.
2
O samba e suas falas

Quando falamos em samba, naturalmente pensamos numa manifestação


cultural popular urbana brasileira que é de certa forma reconhecida
internacionalmente. Entretanto, compreendê-lo assim exige de nós um esforço
que vai buscar uma compreensão do que de fato pode ser chamado de cultura
popular urbana. Aliás, urge explicitar que existem diversas maneiras de
compreender o samba enquanto manifestação cultural. Obviamente tais formas
de compreensão não se esgotam em si mesmas, ao contrário, fazem parte de
um diverso leque que passa necessariamente por todas as possibilidades que o
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próprio conceito de cultura nos possibilita e nos permite. Dentro delas, optamos
pelas definições que melhor servem ao objetivo deste trabalho. Nesse sentido,
buscamos compreender o samba, enquanto uma manifestação de cultura
popular urbana, de duas formas, que de certa maneira se complementam:
evento e espaço de fala. Obviamente também se faz necessário delimitar a que
evento nos referimos, principalmente por que, de certa forma coexistem diversos
“eventos” que poderiam ser “chamados” de samba. Afinal, não seria de todo
inviável receber um convite para ir a um samba e parar numa simpática casa de
espetáculo para apreciar uma roda de samba, ou um grupo de chorinho, ou
ainda um show de algum sambista notório (de velha ou de nova geração). Quem
sabe não poderíamos ir a um samba e terminar ao redor de uma mesa de
botequim, num subúrbio carioca onde alguns instrumentistas tocam e cantam
diversas composições de também diversos autores. Por fim, quem sabe, ainda,
poderíamos ir a um samba e terminar numa quadra de uma dada escola de
samba ou bloco, ou para um “ensaio”, “feijoada” ou qualquer outro evento que
reúne apreciadores que nem sempre irão desfilar em tal agremiação. Ir a um
samba é uma afirmação repleta de possíveis significados. Neste caso, diante de
um conjunto tão diverso de eventos, abre-se a necessidade de se fazer uma
nova opção, bem mais específica que nos facilitará a análise. Então, quando
falamos de evento nos dirigimos especificamente ao carnaval das escolas de
samba, resultado prático de um tripé – samba-enredo, escola de samba e desfile
– que é construído ao longo de um ano inteiro, num calendário diferenciado com
19

que se marca o tempo festivo do carnaval, iniciado com a preparação para o


desfile e encerrado com ele.

A confecção de um desfile começa mal terminado o carnaval do ano


anterior, com a definição de um novo enredo a ser levado pela escola à
avenida. Dessa forma, na maior parte do tempo, o ano carnavalesco está
sempre um ano na frente do calendário corrente, pois nele tudo converge
para o seu desfecho festivo. Carnaval, nesse sentido amplo, significa não
apenas a festa, mas toda a sua preparação, ao longo da qual um novo
enredo transformar-se-á gradualmente em samba enredo, em alegorias e
fantasias.5

Obviamente, esta definição só existe em função das demais, mas é a que


melhor atende aos nossos objetivos. A partir de então, dentro desse contexto,
passamos a compreender a expressão samba enquanto o evento que se
constitui em um espaço de fala. Tal equação é possível na medida em que
acreditamos que, na “apoteose” de tal manifestação, o desfile das escolas de
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samba se dá no momento em que tal fala se manifesta e se faz ouvir.

Anualmente, durante o reinado de Momo, o desfile das escolas de samba


invade ruidosamente a vida do Rio de Janeiro. Quando as festas do ciclo
natalino se encerram, e o verão do hemisfério sul atinge os quarenta
graus, os preparativos do desfile ganham crescente atenção por parte da
imprensa e da televisão. Sua influência na vida da cidade ressoa então
pelo país e pelo mundo afora.6

Não estamos negando que os demais eventos, que também podem ser
entendidos como samba, constituam espaços semelhantes. Entretanto,
acreditamos que a escola de samba e seu carnaval representam historicamente,
em maior plenitude, esta fala. Dessa forma, todas as vezes que nos utilizarmos
da expressão samba, faremos referência ao tripé escola de samba, samba
enredo e desfile. Obviamente, ao se fazer necessário a referência a outro
contexto para a expressão samba, trataremos de descrevê-lo. Para que
possamos, então, dar continuidade a nossa análise, faz-se necessário que
explicitemos alguns conceitos que nos servem de referencial teórico e dão
sustentabilidade a nossa tese. Tais conceitos giram em torno de uma definição
mais específica de cultura popular e de sua relação com seus agentes
produtores. Para tanto, recorreremos a alguns teóricos que compreendem
cultura popular como um elemento de contenção e enfrentamento. Além disso, é
necessário comprovar a tese de que há, de fato, um espaço de fala para as

5
CAVALCANTI, Maria Laura. Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile, p. 15
6
Op. Cit. p.17
20

categorias ditas subalternas. É este espaço que permite que tais manifestações
sejam elementos de enfrentamento, mesmo que, como veremos adiante, tal
enfrentamento se dê a partir de determinadas estratégias. Nesse sentido
buscaremos em determinados autores e em suas respectivas obras a
comprovação da tese de que o subalterno fala.

2.1.
O samba como espaço de fala

Um de nossos pressupostos é o de que as chamadas categorias


subalternas possuem um espaço de fala. Neste sentido percorremos a contra
mão do discurso da indiana Gayatri Spivak, que em seu texto “Can the Subaltern
Speak?”, revela crer em certa dificuldade de fala destas categorias, ou ainda,
que, mesmo havendo tal espaço, não haveria interlocutor, ou quem estivesse
disposto a ouvi-las. Esta lógica nos leva a ideia de que tais categorias
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necessitam de alguém que por elas falem, dando legitimidade, por vezes
acadêmica, aos seus discursos. Tal tendência se aproxima, em certa medida,
aos modelos antropológicos baseados no princípio da autoridade (como em
Bronisław Malinowski), ou dos modelos interpretativos (como em Clifford Gertz).
Dentro desta perspectiva, cria-se a idéia de “avant guarde”, a crença de que tais
categorias sempre necessitam de alguém que por elas fale. É estabelecida a
ideia de resgate, na qual o outro, o subalterno, é recuperado a partir de um olhar
salvador que está de fora. Seja por uma espécie de “experiência de campo”, que
no caso do samba se daria pela participação dentro da escola, ou pelo crivo
acadêmico do pesquisador, ou ainda pela fusão dos dois; o acadêmico
pesquisador que está “dentro” da escola de samba. Essas teses podem nos
levar à ideia de que, no caso específico do samba, a chegada de elementos
oriundos da academia7, ocupando lugares de destaque na concepção do
carnaval, construiria uma autoridade dialógica, centrada, como o nome já diz, no
diálogo em que “os interlocutores negociam uma visão compartilhada da
realidade”8 na qual o subalterno e seu tradutor teriam o mesmo papel. No
entanto, tal perspectiva antropológica é falsa, e é contestada de forma
contundente por James Clifford. Tal contestação se dá, principalmente, por que o

7
Referimo-nos aqui à figura do carnavalesco, que, a partir de um dado momento
histórico, passou a conceber o carnaval dentro das escolas. Para melhor compreensão
deste tema, sugiro como leitura “As transformações do samba carioca: entre a crise e a
polêmica”. (PUC-Rio)
8
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século
XX, p. 45.
21

diálogo transcrito na obra9 teria sido construído por um autor que configuraria, ou
pior, reconfiguraria o discurso (diálogo). Neste caso, o produto final acabaria
sendo a interpretação da fala original. Esta hipótese interpretativa se baseia na
materialização do olhar daquele que intermediou a leitura do discurso. Assim, o
subalterno não participa de forma ativa do espaço de fala. Na melhor das
hipóteses teria uma participação diminuta, que o distanciaria do objeto e
produziria uma espécie de estranhamento por este indivíduo que teve sua fala
interpretada, ou, se preferirmos, traduzida. Esta linha nos levaria à ideia de
ruptura e não de releitura. Esta lógica corroboraria, então, a tese da
impossibilidade, total ou parcial, de fala do subalterno.
Propomos em nossa análise a abertura de um espaço que debruce o olhar
para uma outra possibilidade que vai ao encontro de nossa tese central. James
Clifford problematiza, com já vimos, a autoridade dialógica para construir um
outro tipo de autoridade, que nos parece mais próxima do que defendemos, que
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é a autoridade polifônica. Nesta possibilidade, o subalterno teria um espaço de


fala garantido por uma profusão discursiva em que uma voz não apaga nem
esconde a outra. Para apontar tal possibilidade dentro de um contexto, ou de
uma idéia de autoridade etnográfica polifônica, partiremos de um pressuposto, já
afirmado, que admite ao subalterno este espaço de fala. Neste sentido,
aproximamo-nos de alguns teóricos que tentaram repensar a historiografia
cultural indiana sob a ótica do que se chamou “estudos subalternos”. Estas
novas perspectivas de análises etnográficas se enquadram dentro de um vasto
campo inovador da análise das construções culturais. O próprio Stuart Hall
acaba tendo um papel de liderança nestas novas tendências analíticas, que
agrupam teóricos de diversos campos semânticos. Da psicanálise lacaniana às
análises culturais neomarxistas de Frederic Jamerson, abrem-se “janelas”
interpretativas que deslocam a posição do subalterno a uma provável/possível
posição protagonista. Dentre esses teóricos, destacamos Ranajit Guha, que
levou em conta as periferias indianas, que, de certa forma, foram silenciadas e
que tiveram sua possibilidade de fala cerceada por uma espécie de controle e
imposição cultural decorrente de séculos de dominação estrangeira,
principalmente inglesa. O teórico propõe uma posição contrária à oficial, que dá
crédito apenas às elites indianas no que tange à construção (ou invenção) de
uma espécie de “nação indiana”, que consentiu uma licença para representar a
voz do outro. Além disso, defendeu a existência de uma categoria de sujeitos

9
Clifford fala do texto etnográfico. No nosso caso específico, este suposto texto é
o desfile carnavalesco das escolas de samba.
22

subalternos, que teriam resistido de forma contundente, às vezes silenciosa,


durante toda a colonização da Índia. Para ele, este subalterno, que resiste, pode
falar. Neste caso, a participação das chamadas autoridades estaria no mesmo
plano do discurso do subalterno. Há, então, uma profusão de vozes que se
articulam, sem uma organização hierárquica, ao contrário, dividem um espaço
onde, ao invés de “reinterpretar” ou “reescrever” o discurso do subalterno,
apenas tornariam tais discursos mais densos. Seria uma espécie de co-autoria
(ou autorias múltiplas) na qual a fala do subalterno se fizesse ouvir junto à de
uma suposta autoridade. Obviamente este espaço não é um espaço livre de
tensão e esta tensão fortalece uma fala em que o discurso do subalterno não
desaparece.
A proposta da existência desta polifonia de discursos, pautada na idéia de
uma autoridade polifônica, pode e deve ser utilizada nas análises acerca do
discurso do samba. Ela se daria numa relação ainda por vezes conflituosa e,
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como já dissemos, repleta de tensões, entre a figura do carnavalesco e os


setores mais tradicionais das escolas de samba. Se entendermos o samba
enquanto um espaço de fala de categorias subalternas, precisamos entender
onde se encaixa a figura do carnavalesco e de outros personagens importantes
na construção do carnaval, que, pelo menos nas grandes agremiações, são
oriundos da academia. Numa leitura mais superficial, encontraríamos aqui uma
relação mais ou menos parecida com a crença de que é necessária a existência
de uma autoridade, seja ela pautada na experiência ou no domínio do
conhecimento acadêmico, a fim de que possa traduzir ou reinterpretar a fala do
sujeito. Como falamos anteriormente, a relação entre tal carnavalesco e os
setores mais tradicionais pode ser vista como a de um elemento que, muito
embora não pertença ao universo que ele vai representar sob a forma de um
discurso plástico, justamente por estar “dentro” deste universo teria a autoridade
de falar por estas categorias. Poderíamos ainda entender que tal figura, a do
carnavalesco, está ali, pois representa o conhecimento acadêmico capaz de
traduzir o discurso destes subalternos. Se acreditarmos nestas duas
possibilidades, estaríamos negando ao samba seu lugar de fala das categorias
subalternas. A saída é a construção de um espaço polifônico, híbrido, onde a voz
do subalterno se faz ouvir por si e pelo diálogo com outras vozes. Desta forma o
resultado plástico do discurso apresentado pelo samba não é necessariamente
apenas a interpretação desta suposta autoridade, mas sim, um espaço onde
diversas vozes se fazem ouvir. A fala das categorias mais tradicionais, ou
subalternas, também se faria presente neste universo polifônico de vozes. De
23

certa forma isto vai de encontro à idéia de que há, por excelência, uma matriz
híbrida na construção do próprio samba10 e tal hibridismo garantiu, entre outras
coisas, a manutenção deste espaço de fala.

O samba, entretanto, é muito mais que uma peça de espetáculo, com mal
definidas compensações financeiras. O samba é o meio e o lugar de uma
troca social, de expressão de opiniões, fantasias e frustrações, de
continuidade de uma fala que resiste a sua expropriação cultural.11

Na realidade, segundo autores como Néstor Garcia Canclinni, toda a


formação cultural latino-americana é forjada dentro de um contexto híbrido,
resultado provável da própria formação das “nações” latino-americanas.

A mistura de colonizadores espanhóis e portugueses, depois de ingleses


e franceses, com indígenas americanos, à qual se acrescentaram escravos
traslados da África, tornou a mestiçagem um processo fundacional nas
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sociedades do chamado Novo Mundo. Na atualidade, menos de 10% da


população da América Latina é indígena. São minorias também as
comunidades de origem européia que não se misturaram com os nativos.
Mas a importante história de fusões entre uns e outros requer utilizar a
noção de que a mestiçagem tanto no sentido biológico – produção de
fenótipos a partir de cruzamentos genéticos – como cultural: mistura de
hábitos, crenças e formas de pensamentos europeus com os originário das
sociedades americanas.12

Obviamente o Brasil, por sua própria condição de integrante desta


construção de latinidade, não se coloca “fora” deste processo, muito embora
tenha havido uma certa demora no reconhecimento deste caráter híbrido de
nossa formação cultural. Vários foram os esforços durante a segunda metade do
século XIX e a primeira metade do século XX para inventar uma tradição
européia. Quando se estabelece o auge da crise de abastecimento de escravos,
ainda no segundo reinado, com a lei Eusébio de Queirós, apressou-se em
incentivar a entrada de imigrantes europeus (principalmente para a região
cafeeira do oeste novo paulista) para iniciar um lento processo de substituição
de mão-de-obra e de embranquecimento da população. Durante toda a república
velha (1889-1930) vários foram os esforços para negar-se a existência de uma
população marginal, e (por que não dizer?), subalterna, que, vez por outra,
tentava de alguma forma se afirmar. As revoltas de Canudos e Contestado,
ocorridas no Brasil, no final do século XIX (no início da República Velha),
10
Voltaremos, mais adiante, a esta discussão.
11
SODRÉ, Muniz. Appud. MOURA, Roberto M. No princípio era a roda: um estudo
sobre samba, partido alto e outros pagodes, p. 55.
12
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas, p. XXVII/XXVIII.
24

respectivamente no sertão da Bahia e na divisa do Paraná com Santa Catarina,


são significativos exemplos desta rejeição e de resistência, configurando-se
espaços de fala destas categorias.

Marcado pela própria natureza/ o nordeste do meu Brasil./ Ó solitário


sertão,/ de sofrimento e solidão./ A terra é seca,/ mal se pode cultivar./
Morrem as plantas/ e foge o ar./ A vida é triste/ neste lugar./ Sertanejo é
forte/ supera a miséria sem fim./ Sertanejo é muito forte/ dizia o poeta
assim./ Foi no século passado,/ no interior da Bahia./ Um homem revoltado
com a sorte,/ do mundo em que vivia./ Ocultou-se no sertão,/ espalhando a
rebeldia./ Se revoltando contra a lei,/ que a sociedade oferecia./ Os
jagunços lutaram/ até o final,/ defendendo canudos/ naquela guerra fatal.13

O próprio samba carioca é de certa maneira fruto desta negação. Ele é


nascido no morro do Estácio, cuja ocupação, assim como a de outros que estão
localizados ao redor do “centro” da cidade do Rio de Janeiro, está diretamente
ligada ao violento processo de exclusão social levado a cabo pelas reformas
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urbanas coordenadas pelo então prefeito Pereira Passos, o “Haussmann”


brasileiro14, que, ao transformar a cidade do Rio de Janeiro na vitrine da suposta
modernidade brasileira, nossa belle-èpocque, pôs abaixo os cortiços expulsando
as populações mais pobres que passaram a ocupar os morros periféricos ao
centro15. Estas novas ocupações não se distinguiam muito dos cortiços e das
Zungas. As condições precárias de vida e moradia estavam presentes no
cotidiano destas populações antes ou depois da reformas.

(...) Um pouco por toda parte espalhavam-se as casas particulares, em


que moravam vinte e mais pessoas. Mas o aspecto extremo dessa agonia
social estava reservado para os zungas, as hospedarias baratas. João do
Rio descreve uma visita em plena noite em companhia de autoridades;
acompanhemos a descrição dos três andares: E começamos a ver o rés-
do-chão, salas com camas enfileiradas como nos quartéis, tarimbas com
lençóis encardidos, em que dormiam de beiço aberto, babando,
marinheiros, soldados, trabalhadores de face barbada. Uns cobriam-se até
o pescoço. Outros espapaçavam-se completamente nus.16

Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde


se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas (...).
13
GRES Em cima da hora. Os Sertões. Edeor de Paula. 1976.
14
Faço aqui uma referência ao prefeito que coordenou as reformas urbanas de
Paris, ocorridas na segunda metade do século XIX, durante o governo de Napoleão III,
Georges Eugène Haussmann, que serviram de inspiração e modelo para as reformas
ocorridas no Rio de Janeiro.
15
Para uma melhor compreensão deste assunto sugiro a leitura das obras “Os
Bestializados” e “Literatura como missão”, respectivamente de José Murilo de Carvalho e
Nicolau Sevcenko.
16
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão, p.19/20
25

Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas nos morros (...). Nelas há


quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de
esgoto.17

Tudo isso era a materialidade de uma lógica que negava a possibilidade de


uma matriz híbrida na formação cultural e social do Brasil A jovem república
brasileira, fundada no final do século XIX, trazia no seu projeto de nação,
influenciado pelo pensamento positivista de filósofos como Herbert Spencer18, a
tese de que a mestiçagem constituía fator de fracasso.
Foi com o advento do modernismo, nos anos 1920, que se iniciou a
inversão dessa ideia. O fenômeno tem como marco referencial o encontro entre
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Prudente de Morais Neto, Heitor
Villa-Lobos, Luciano Gallet, Patrício Teixeira, Donga e Pixinguinha, ocorrido
durante a primeira visita de Gilberto Freyre ao Rio de Janeiro, em 1926,
brilhantemente traduzido por Hermano Vianna em sua obra O mistério do
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samba19. Estes “brasileiríssimos”20 representantes de um Brasil mestiço, negado


e obscurecido por uma ideia de nação fundada sob o signo positivista da
necessidade de embranquecer. Segundo Gilberto Freyre,

Ontem, com alguns amigos – Prudente e Sérgio – passei uma noite que
quase ficou de manhã a ouvir Pixinguinha, um mulato, tocar em flauta
coisas suas de carnaval, com Donga, outro mulato, no violão, e o preto
bem preto Patrício a cantar. Grande noite cariocamente brasileira. Ouvindo
os três sentimos o grande Brasil que cresce meio tapado pelo Brasil oficial
e postiço e ridículo de mulatos a quererem ser helenos (...) e de caboclos
interessados (...) em parecer europeus e norte-americanos; e todos
bestamente a ver as coisas do Brasil (...) através dos pince-nez de
bacharéis afrancesados.21

Iniciava-se aí a construção, ou invenção de uma nova tradição que


buscava uma outra forma de unidade e de conceito de nação. Urge dizer que
esta construção passa a ver no samba, principalmente a partir dos anos 1930,
uma espécie de universo simbólico, que tornava material a nova definição. O
samba passava, então, a ser o espaço de fala de uma categoria de subalternos
que dava seus primeiros passos na direção de sua afirmação.
17
LIMA, Barreto. Clara dos anjos, p. 39.
18
Filósofo inglês do século XIX acreditava que o universo estava em constante
evolução, progresso, tal qual os seres vivos. É um dos principais nomes do darwinismo
nas ciências sociais.
19
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
UFRJ, 1995.
20
Referimo-nos aqui à obra “Tempo morto e outros tempos”, de Gilberto Freyre,
em que ele trata as personagens populares deste encontro como brasileiríssimos.
21
FREIRE, Gilberto. Tempo de aprendiz, p.58.
26

Entretanto, se entendemos o samba enquanto espaço de fala deste


subalterno faz-se necessário definir então quem seria este subalterno. De certa
forma, este conceito, pelo menos no que tange aos estudos literários, é
relativamente recente. Segundo Silviano Santiago, em um texto publicado no
jornal O Estadão22, “aparece na década de 1980, quando emerge na América
hispânica um subgênero de autobiografia, a autobiografia dos destituídos, logo
classificada como ‘testimonio’”. O subalterno, dentro deste conceito, então seria
aquele indivíduo que por razões históricas foi submetido a uma situação de
exploração e de negação de direitos inerentes ao cidadão que o colocou à
margem da sociedade. Seriam, em última análise, ainda segundo o próprio
Silviano, os pobres:

O conceito de pobre como o de subalterno tem uso analítico elástico e


eficiente, propício a outra apreensão das letras nacionais, cujo chão seria
pavimentado pela ‘história dos vencidos’, para usar a nomenclatura
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consensual23.

Este subalterno a que nos referimos seria então um dos protagonistas de


certa produção cultural que, por uma série de questões que trataremos mais
adiante, conseguiu migrar da periferia para o centro. Esta passagem se dá
fundamentalmente pela utilização deste espaço de fala e de uma capacidade de
dialogar e de transgredir. No samba, o subalterno está no lugar da tradição, uma
tradição polifônica, fruto de um conjunto de trocas que historicamente foram
sendo realizadas entre seu universo cultural e aqueles com os quais mantinha
algum tipo de contato. É aquele que, pela sua própria história de vida, se
confunde com a história do samba. Que fez da escola de samba a extensão de
sua casa, ou de sua vida. É este indivíduo que fala e que, através desta fala,
reafirma-se, a cada momento, enquanto agente produtor de uma cultura popular
que se construiu, ou se quer construir, historicamente como símbolo de uma
“comunidade imaginada”24 chamada Brasil.

“(...) É imaginada porque até os membros da menor nação nunca


conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos
outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de
cada um existe a imagem de sua comunhão.”25

22
SANTIAGO, Silviano. Atenção às memórias do subsolo. In: Prosa de sábado.
Estadão.com.br/cultura. São Paulo: 12 de junho de 2010.
23
Op. Cit.
24
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ed. Ática,
1989.
25
Op. Cit. p. 25.
27

É importante salientar que a construção da concepção do nacional está


sempre interligada a um contexto político sem, contudo, distanciar-se dos
aspectos culturais e históricos, que se estabilizam por diversos caminhos a partir
da utilização de um determinado universo simbólico. No caso, o samba.

“No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se


constituem em uma das principais fontes de identidade cultural. Ao nos
definirmos, algumas vezes dizemos que somos ingleses ou gauleses ou
indianos ou jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso, estamos falando de
forma metafórica. Essas identidades não estão literalmente impressas em
nossos genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos nelas como se
fossem partes de nossa natureza essencial”.26

É de fundamental importância relembrar que a relação entre estas diversas


vozes é por vezes conflituosa. Há uma tensão entre elas. Entretanto, tal tensão é
positiva, na medida que acaba por produzir uma linguagem plástica capaz de se
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fazer compreender por todos os que observam o evento. Esta é a grande virtude
da construção deste espaço híbrido: a fala de múltiplas vozes se faz
compreender por todos os segmentos. Não há uma rigidez no discurso, muito
embora seus significados sejam suficientemente fortes para produzir reações
que vão à direção do objetivo da fala. Produz-se certamente um espaço com
muito mais potência do que teríamos caso o discurso fosse “monofônico”,
interpretado ou traduzido por algum tipo de autoridade etnográfica. Por fim, cabe
apontar que, sendo um espaço de fala de categorias subalternas, com as
características já apontadas, o samba se confirma como manifestação de cultura
popular.

2.2.
Samba e cultura popular

No estudo da cultura popular, devemos sempre começar por aqui: com o duplo
interesse da cultura popular, o duplo movimento de conter e resistir, que
inevitavelmente se situa em seu interior.27

Se considerarmos o samba como um espaço de fala, e entendemos que


esta fala é de uma categoria (ou de mais de uma) de subalternos, então
acreditamos que o samba é uma manifestação de cultura popular. Esta
afirmação, entretanto, é muito delicada na medida em que pode ser interpretada
26
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, p. 47.
27
HALL , Stuart. Da diáspora, p.233
28

dentro de uma clave que estabelece um limite acadêmico entre o popular e o


chamado erudito. Neste sentido, cumpre afirmar que esta não será a lógica que
nos norteará para comprovarmos a idéia de que o samba foi e ainda é uma
manifestação de cultura popular. Faz-se necessário, então, compreender o que
entendemos como cultura popular para então localizarmos o samba dentro deste
conceito. Desta forma poderemos confirmar a tese de que o samba se constitui
uma manifestação de cultura popular.
Dentre as diversas possibilidades de entendimento acerca do popular,
procuraremos fixar nosso olhar para as teses que entendem a cultura popular
como um instrumento de contenção e de enfrentamento, servindo de elemento
de afirmação de uma dada categoria social subalterna. Esta moldura, muito
embora pareça engessar o conceito, nos permite dialogar com aspectos ligados
à produção e ao consumo desta produção cultural. A relação entre produção e
consumo e seus desdobramentos permitem um diálogo mais amplo entre os
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segmentos produtores e os segmentos consumidores percebendo aí uma


relação dialógica entre aqueles que produzam e aqueles que consomem, na
medida em que o consumidor flerta com o produtor intervindo ativamente na
própria produção. Desta forma, entendemos que, muito embora o popular seja
elemento de enfrentamento e contenção que garante ao subalterno o espaço de
fala e, por conseguinte, sua afirmação dentro de um espaço sócio-político-
cultural, não é prerrogativa única dos setores subalternos a produção da cultura
popular. O epicentro da questão é o papel que esta produção interpreta, já
determinado de espaço de fala e, por conseguinte, de enfrentamento e
contenção. Ao admitirmos a quebra deste monopólio, admitimos também o
caráter híbrido desta produção e seu conteúdo polifônico. Na mesma medida, o
produtor interfere no consumidor garantindo novas fronteiras estéticas que lhe
possibilitam um mercado cada vez maior e, como natural desdobramento, um
espaço mais amplo de afirmação. Autores como Antonio Gramsci, Edward
Thompson, Stuart Hall, e outros, defenderam, ao longo de suas obras, a idéia de
que a produção cultural é potencialmente um forte instrumento de afirmação
social de seus respectivos produtores. Este modelo nos permite transferir o
embate entre segmentos sociais distintos para o campo do simbólico, arena
onde tal enfrentamento adquire sua maior potencialidade. Esta idéia não nega o
caráter híbrido de tal cultura, ao contrário, reafirma-o. Nos tempos de
globalização de livre fluxo de informação, seria inviável crer na idéia de que
existe uma cultura pura, imaculada, oriunda de categorias subalternas, que não
se “misturam” com o “veneno das elites culturais”. Esta crença é insustentável.
29

No falar de Néstor Canclini: “O popular não é vivido pelos populares como


complacência melancólica com as tradições”28, ao contrário, as tradições são
constantemente reinventadas, relidas e atualizadas, movimento que mantém e
revigora sua potência. Por outro lado, crer na troca, no híbrido, no mestiço, não
inviabiliza também, a ideia de que há uma produção cultural que serve para
conter, conflitar e afirmar determinadas categorias. O caráter híbrido, ao
contrário, é um poderoso instrumento de contenção e afirmação. O contato com
o outro, permite que se releia a tradição sem que a mesma desapareça,
possibilitando uma ampliação do raio de ação desta produção cultural.

O outro também pode ser visto com admiração, mesmo em situações em


que declaradamente inferior política e economicamente. As relações
interculturais são mais complexas e podem adquirir formas
surpreendentes. O outro (ou determinados aspectos do outro – pois
nenhum outro é uma entidade totalmente homogênea) pode ser visto como
superior e servir de modelo a ser copiado. Ou como inferior e ainda assim
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ter aspectos admiráveis. Culturas combinam-se de maneiras sempre


renovadas, seguindo ou não o padrão das relações políticas e econômicas
que existem entre as várias sociedades.29

Sturat Hall, em sua obra, vai possibilitar uma fecunda análise que se
baseia na idéia de releitura também dentro do contexto de contato com o outro.
Idéia esta que vai ao encontro de uma lógica do descentramento das
identidades. Na medida em que não se sustenta mais a tese de uma identidade
única e centrada, que produziria uma marca no indivíduo, busca-se construir as
identidades em um paradigma de movimento, numa espécie de devir que
atravessa o sujeito e o põe em contato com o outro. Fundaria-se, então, uma
lógica polienraizada, na qual não desaparecem nenhuma das identidades, ao
contrário, o que se tem é uma espécie de soma delas, que não se anulam. É
uma espécie de polifonia identitária, de polienraizamento como nos diz Edgard
Morin no texto “Do submarrano ao pós-marrano”. Segundo ele, o autor se
constrói enquanto um sujeito de múltiplas identidades fundadas na sua própria
história e no diálogo que construiu com o outro ao longo de sua vida30. É claro
que Stuart Hall, em sua obra, está pensando nos povos que, por diversas
razões, realizaram diásporas, e que, portanto, foram “obrigados” a dialogar com
o outro, e no que se construiu a partir deste diálogo, sem contudo, anular
aquelas identidades culturais que se constituíram antes da diáspora. O que se
propõe, então, é partir do pressuposto de que estas identidades culturais estão
28
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas, p. 204.
29
VIANNA, Hermano. O mistério do samba, p. 167.
30
Sugiro a leitura completa da obra “Meus demônios”, de Edgard Morin.
30

em constante movimento, proporcionado pelo contato cada vez mais intenso e


profícuo com o outro. Desta forma, diante de uma sociedade híbrida e mestiça
como a brasileira, que tem sua tradição construída, principalmente, sobre tal
matriz, qualquer elemento cultural tem origem em alguma diáspora. Se
colocarmos no centro desta análise o carnaval e o samba, fica ainda mais fácil
de enxergar este diálogo. O samba reinventa-se a partir dos novos espaços que
ocupa, num movimento constante de atravessamento, de devir, de mudança, ou
melhor, de releituras. O samba é polienraizado.

Este conceito descreve aquelas formações de identidades que


atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas
que foram dispersas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm
fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a
ilusão de um retorno ao passado (...) Elas carregam os traços das culturas,
das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais
foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas
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no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias


histórias e culturas interconectadas31

Este hibridismo, a capacidade de dialogar e de se reinventar, então


capacita ainda mais as produções culturais populares a realizarem sua
paradoxal função: confrontar, conter e afirmar seus produtores. Nesse sentido, o
que, para nós, define o que é cultura popular, mais do que uma suposta “carga
genética” é o papel a que ela se propõe. Dialogar ou não com elementos
oriundos de segmentos sociais diversos não inviabiliza o termo popular, ao
contrário, como é esta capacidade que lhe permite cumprir seu papel, reforça-o.
O fato de o mercado consumidor ser igualmente híbrido também acaba por
fortalecer a capacidade de afirmação e contenção do samba, o que reforça esse
papel. De certo modo o samba acaba materializando a experiência de definitiva
ruptura com a ideia iluminista de uma identidade centrada e fixa, dando lugar a
outra que se afirma a partir do diálogo, da troca e da reinvenção.

A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada


continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (...)32

Os novos mercados globalizados exigem dos produtores culturais a


inserção de elementos, inclusive estéticos, que historicamente estariam distantes
de sua produção. Para atingir este mercado cada vez mais amplo e mais

31
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, p. 88/89.
32
Op. Cit. p.12
31

distante geograficamente, e é necessário lembrar que tal objetivo é pedra


angular para que a cultura popular desempenhe seu papel, os produtores
culturais precisam dialogar com estes novos materiais e com estes novos
padrões, precisam reinventar-se a cada momento. Se assim não fosse, estas
produções culturais ficariam circunscritas apenas ao universo que as produz, o
que inviabilizaria seu papel fundamental. Uma manifestação cultural que
pretende afirmar seus produtores não pode ficar circunscrita a um universo
delimitado, ela precisa atravessar fronteiras e, para tanto, precisa dialogar com
estas novas fronteiras, com estes novos lugares. Em tempos de globalização,
para que uma produção cultural seja de fato popular, é necessário, dentre tantas
outras coisas, que haja um diálogo com elementos e sujeitos cada vez mais
diversificados. Um atabaque, ou uma cuíca, não precisa ser construído a partir
de uma barrica com pele de animal33 para que cumpra sua função. Não há
qualquer problema em se utilizar tecnologia para se produzir efeitos visuais em
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uma escola de samba, se isto não a afasta de sua função primeira enquanto
cultura popular. Ao contrário, permite a manutenção de sua própria existência.
Enfim, o que afirmamos, é que a presença de elementos oriundos de outros
mercados ou de outros segmentos, ao invés de limitar o caráter popular de uma
manifestação cultural, pode reforçá-lo. Entretanto, cabe ressaltar que estes
novos paradigmas não servem para justificar que uma produção cultural seja
meramente algo transclassista, que não há diferenciações entre popular e não
popular. É necessário compreender que, mesmo havendo uma participação
múltipla, principalmente no que diz respeito às origens sociais de seus
interlocutores, esta participação acaba reforçando o caráter popular da
produção. Quando, em 1998, a GRES Estação Primeira de Mangueira levou
para a avenida o enredo “Chico Buarque da Mangueira”, reforçou o caráter
híbrido da constituição de um carnaval de escola de samba. Entretanto, este
mesmo desfile tinha como protagonista a escola e sua comunidade que
homenageavam um mangueirense histórico, que fitava embevecido o início do
desfile, a passagem da escola e, por fim, a entrada do último carro alegórico,
que completava a apoteose mangueirense. Ora, neste desfile, o jogo entre figura
e fundo se confunde e a escola se torna tão visceral para o homenageado
quanto o mesmo para a escola. Chico Buarque, compositor, escritor, vindo de
família tradicional, era homenageado por uma comunidade mergulhada nas
contradições da periferia e se rendia a ela através da paixão pela escola.

33
Referimo-nos aqui ao samba “Bumbum Praticundum Prugurundum”, do GRES
Império Serrano, do ano de 1982.
32

Existem outros exemplos que poderiam estar aqui, mas trataremos mais
profundamente destas questões em momentos posteriores.
Mas por que podemos então classificar o samba enquanto uma
manifestação de cultura popular? A resposta é simples: por que reúne em si
todas as características e todas as informações que acima discutimos. Ele é, por
definição, uma manifestação cultural híbrida nas suas influências, nos seus
códigos, na sua história, na sua construção e no seu mercado consumidor. Foi
este hibridismo que possibilitou afirmar o sambista enquanto sujeito produtor.
Foram tais características que fizeram com que o samba deixasse o gueto e
ganhasse o mundo, e, ao ganhar o mundo, transformar-se num espaço de fala,
de contenção, de enfrentamento e, acima de tudo, de afirmação de uma parcela
significativa da sociedade brasileira que, por vezes, tentou-se silenciar.
Arriscamo-nos a dizer que, se não fosse essa capacidade de transitar em
diversos mundos, o samba talvez não mais cumprisse seu papel, quiçá
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desaparecesse.
Mas como esta produção construiu tal singularidade, que curiosamente se
compõe justamente de uma diversidade? Para respondermos esta questão e
confirmarmos a ideia de que o samba é uma manifestação popular, precisamos
rever alguns aspectos da história desta manifestação ao longo do século XX.
Optando pela simplicidade, daremos conta apenas de dois momentos que nos
servirão de base para apresentar o samba enquanto uma manifestação popular.
Primeiro trataremos do nascimento do chamado samba carioca, a passagem da
cidade nova ao Estácio ou da roda para a rua. Depois nos preocuparemos com a
saída do gueto para a condição de música nacional.

Cabral propôs aos dois a mesma questão – o que é samba? Donga


respondeu com o exemplo de ‘Pelo Telefone’ e Ismael discordou: ‘- Isso é
maxixe.’ Para ele, samba de verdade era ‘Se Você Jurar’(Composto por
ele e Nilton Bastos em 1931). Mas Donga também discordou:’- Isto não é
samba, é marcha.34

Esta pequena discussão entre Donga e Ismael pode representar o


momento fundacional daquilo que alguns autores chamariam de “nascimento do
samba carioca”. Celebrado profusamente no início do século XX, nas festas
realizadas nas casas das “tias baianas”, dentre elas a afamada “Tia Ciata”, na
cidade nova, ou Pequena África, o samba, enquanto gênero musical e
manifestação festiva/religiosa era ainda restrito a um pequeno grupo que dessas

34
SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente, p. 132
33

festas participava. Esta restrição pode ser explicada de diversas formas: pela
manutenção de um caráter identitário/cultural, que marcaria o espaço simbólico
de determinados grupos sociais que se afirmavam nestes encontros ou pela
existência de uma legislação que proibia a divulgação de qualquer produto
cultural relacionado, direta ou indiretamente a afrodescendência.

Havia na época muita atenção da polícia às reuniões dos negros: tanto o


samba como o candomblé seriam objetos de contínua perseguição, vistos
como coisas perigosas, como marcas primitivas que deveriam ser
necessariamente extintas, para que o ex-escravo se tornasse parceiro
subalterno ‘que pega no pesado’ de uma sociedade que hierarquiza sua
multiculturalidade. Quanto às festas, que se tornaram tradicionais na casa
de Ciata, a respeitabilidade do marido, funcionário público depois ligado à
própria polícia como burocrata, garante o espaço que, livre das batidas, se
configura como local privilegiado para as reuniões. Um local de afirmação
do negro onde se desenrolam atividades coletivas tanto de trabalho (...)
quanto de candomblé, e se brincava, tocava, dançava, conversava e
organizava. 35
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De qualquer forma, estes espaços já se traduziam em importantes


momentos de transgressão da ordem imposta. Seja através do culto religioso, na
medida em que as festas nas casas de tais “tias” se iniciavam com uma gira de
candomblé, ou da festa profana (rodas de samba, umbigadas, etc), um
determinado grupo social se utilizava destes instrumentos para celebrar suas
tradições e sua história. Entretanto tal celebração era restrita ao próprio grupo
uma vez que se dava em um universo fechado onde pouquíssimos “forasteiros”
poderiam penetrar. Sabia-se, entretanto, que, por conta de diversas razões, era
fundamental manter alguma parceria com brancos, principalmente mantê-los na
condição de aliados:

Enfim, era necessário aprender a se relacionar de alguma maneira com


os brancos, ter aliados conhecer gente de outras classes, como jornalistas
pioneiros que cobriam nas páginas secundárias dos jornais os
acontecimentos das ruas que ganhavam algum destaque nas
proximidades do carnaval.36

O samba produzido no morro, que Sandroni vai chamar de samba carioca


e que realiza a passagem da “Bahia ao Rio” ou da “roda à rua”, romperá com
este paradigma. Para o novo samba, a rua é o espaço sagrado e celebrativo
que, por si só, já configura um espaço naturalmente mais democrático e híbrido
que a sala ou o terreiro das “casas das tias baianas”, como veremos adiante.
35
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro, p. 100.
36
Op. Cit. p.101
34

Sua vinculação com o carnaval é muito intensa. Por esse contexto, o samba vai
apresentar, do ponto de vista étnico, uma pluralidade muito maior. Passará a
existir para cumprir, entre outras coisas, uma função nova: levar à rua o formato
organizado de as camadas populares brincarem o carnaval: o bloco. É o próprio
Ismael Silva que explica isto em entrevistas concedidas a Sérgio Cabral e
também a Máximo e Didier, afirmando que não era possível que os blocos
caminhassem com o tipo de samba produzido na chamada Pequena África. Ele
afirmava que esta modalidade produzia um ritmo parecido com um “tan, tantan,
tan tantan”, e que para os blocos era necessário algo parecido com o “bum, bum,
paticumbum, prugurundum”37. Nascia aí a primeira grande polêmica em torno do
samba. Fato é que muito rapidamente o novo formato ganhou as ruas e se
consolidou no gosto popular. Os espaços celebrativos do “novo samba”: a rua, o
botequim, o bloco etc., são em geral muito mais “democráticos”.
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Blocos e botequins possuem uma característica comum: são mais


públicos, mais abertos socialmente, que a sala de jantar de Tia Ciata.
Nesta última os brancos presentes eram ‘gente escolhida’, que tinha por
uma razão ou outra o privilégio de ser admitida na intimidade das baianas.
Naqueles, ao contrário, a admissão era praticamente livre. Em ambos,
podiam conviver pessoas que a vida separava em todo o resto: profissão,
riqueza, religião, cultura, cor da pele. A capacidade de circulação do
samba nos seus novos lugares sociais aumenta, pois, prodigiosamente.38

Uma das mais significativas características dos blocos, a estrutura


processional foi herdada provavelmente dos ranchos. Esses ranchos
carnavalescos teriam surgido, segundo a maioria dos autores, como, por
exemplo, Edison Carneiro (Folguedos Tradicionais – 1974) e Eneida (História do
carnaval carioca – 1958) das festas religiosas denominadas pastoris, de origem
portuguesa e espanhola, que transformavam datas católicas em festas
eclesiásticas e ao mesmo tempo populares, que misturavam elementos por
vezes pastorais com elementos alegóricos de bailados, textos e canções. Esta
modalidade de manifestação carnavalesca, os ranchos, teria no ano de 1908 um
marco significativo. Segundo Renata de Sá Gonçalves (Os ranchos pedem
passagem – 2007), este ano marcaria o início dos desfiles do Rancho (também
apontado por diversos autores como Rancho/Escola), Ameno Resedá:
“inauguraria uma estrutura de desfile com cortejo, enredo e música” (Os ranchos
pedem passagem. p. 54). Esta tríade – cortejo, enredo e música – repetida em
outras formas de organização do carnaval, espelhava-se nas estruturas

37
CABRAL, Sérgio. Vozes desassombradas do museu.
38
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente, p. 144
35

teatralizadas dos pastoris. Segundo Maria Clementina Pereira Cunha, o ápice da


trajetória dos ranchos, manifestada na história do Ameno Resedá, teria ocorrido
em 1911, quando a agremiação teria sido convidada pelo então presidente
Marechal Hermes da Fonseca para se apresentar nos jardins do Palácio das
Laranjeiras:

O prestígio do Ameno Resedá – que inaugurou um tipo de carnaval


ancorado na performance musical (com coro e orquestra que incluía
cordas e sopro, além do cavaquinho-violão-castanholas da forma
tradicional) e na rigidez do enredo apresentado no préstito com traços de
ópera de rua – chegaria a seu ponto máximo poucos anos depois. Em
1911, Lord Diplomata foi surpreendido pelo chamado de Hermes da
Fonseca: o marechal presidente queria receber a visita do Ameno Resedá
no Palácio das Laranjeiras. Foi um momento de glória para o rancho (...)
Naquele ano, o enredo era ‘ A corte de Belzebu’ de modo que os jardins do
palácio encheram-se de chifrudos diabinhos no domingo de carnaval (...)
Mas ninguém pareceu assustado (...) Ao contrário, toda imprensa logo
assumiu um tom de entusiasmo ardente diante daqueles pés-rapados que,
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ao que parece, tinham uma vocação musical invulgar”39

Os ranchos ainda dividiriam o espaço do carnaval com os blocos e com as


escolas durante um período significativo. De qualquer forma, foi a partir da
estrutura de desfile, que os blocos herdaram dos ranchos que se impôs uma
forma mais organizada das brincadeiras populares dos “infernais” dias de momo.
A lógica destes dias é a da inversão, muito embora sempre tenha havido uma
preocupação significativa por parte das autoridades em domesticar o carnaval.
Os dias de momo se apresentavam fora do enquadramento social racional
estigmatizado pela própria sociedade. Havia neste sentido um carnaval
ordenado e outro desordenado. Há quem afirme que o surgimento dos blocos
representa o momento inicial em que as manifestações populares do carnaval
passam a ser controladas ou ordenadas. Entretanto, há outra leitura possível
deste fenômeno, que vai à direção oposta à lógica da domesticação. Segundo
ela, a ordenação do carnaval fez parte de uma estratégia para forçar a
sociedade racional legal40 a reconhecer as manifestações carnavalescas de
segmentos sociais que viviam à margem da sociedade. De qualquer forma, este
novo elemento, que migrará muito rapidamente para aquilo que se chamou
escola de samba, produziu modificações significativas na estrutura melódica do
samba, dando-lhe as feições daquilo que se convencionou chamar de samba

39
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do
carnaval carioca entre 1880 e 1920, p. 224
40
Refiro-me aqui ao conceito weberiano apresentado na obra Economia e
Sociedade de Max Weber.
36

carioca, que saía, então, do terreiro das casas das tias baianas e ganhava as
ruas. Sua composição, no entanto, realizava-se também em outro lugar: o morro.
É nessa região periférica do Rio de Janeiro, cidade habitada de forma mais
regular após as reformas de Pereira Passos, que o samba passa a ser carioca.
O formato composto pelo binômio música/evento, agora público e não mais
privado, começa a desempenhar uma função cultural mais distinta, configurando-
se como um instrumento de afirmação das camadas sociais periféricas. O
próprio bloco, por sua estrutura pública, democratizava o samba e colocava
como protagonista o subalterno com quem se identificava e por quem era
organizado, muito embora já tenhamos registro de participações transclassistas
nos desfiles realizados nas primeiras décadas do século passado.

Eu sou o samba./ A voz do morro/ sou eu mesmo sim senhor./ Quero


mostrar ao mundo/ que tenho valor./ Eu sou o rei dos terreiros./ Eu sou o
samba/ sou natural aqui do Rio de Janeiro./ Sou eu quem leva a alegria/
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para milhões/ de corações Brasileiros./ Mais um samba,/ queremos


samba./ Quem está pedindo/ é a voz do povo do país./ Viva o samba,/
vamos cantando esta melodia/ pro Brasil feliz41.

A passagem do bloco para a escola de samba é feita quase naturalmente


e se dá na medida em que a agremiação incorpora elementos estéticos de
outras manifestações, como as grandes sociedades, ou sociedades
carnavalescas (cuja herança é o luxo das fantasias e os carros alegóricos).
Surgidas em meados do século XIX, objetivavam civilizar o carnaval dar-lhe um
aspecto mais veneziano, em detrimento das manifestações mais populares,
sobretudo o entrudo. Nos dias que antecediam o carnaval de 1881, circulou na
imprensa uma declaração de autoria comum das principais sociedades
carnavalescas, condenando o entrudo e se autoafirmando como única
manifestação legítima do carnaval42.

As sociedades carnavalescas apareceram na segunda metade do século


XIX com uma imagem legitimada por sua origem social e pelo conteúdo
letrado de seus préstitos, anunciando que a civilização atingira os domínios
de Momo. Seu aparecimento tornou-se um marco universalmente
reconhecido na periodização da festa, aceito por toda a imprensa e
intelectualidade do período. Identificadas pela parte da sociedade que
podia alugar sacadas de sobrados apenas para vê-las passar, como algo
capaz de guindar a folia a um patamar enfim civilizado, essas sociedades

41
“A voz do morro”. Zé Kéti, 1955.
42
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do
carnaval carioca entre 1880 e 1920, p.90
37

carnavalescas conseguiram tornar-se amadas também pelo populacho dos


bailes públicos e pelos grupos de sujos das ruas.43

A aproximação do “populacho” com as grandes sociedades se realiza


plenamente com o advento das escolas de samba, que se afirmaram enquanto
espaço real da construção simbólica do carnaval. Tenentes do diabo,
Democráticos e Fenianos, as mais famosas grandes sociedades, apresentavam-
se de forma muito similar aos desfiles carnavalescos atuais: “como um rico teatro
de carros alegóricos, cavaleiros, fantasias luxuosas, imaginação e banda de
música” 44.
Isto, por si só, já se configura numa matriz híbrida na própria constituição
das escolas de samba. Descendentes diretas das grandes sociedades, dos
blocos e dos ranchos, elas vão muito rapidamente dominar o cenário do carnaval
carioca, inclusive condenando as demais manifestações quase ao
desaparecimento. Uma de suas características mais marcantes, o enredo, foi
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herdado dos ranchos. Manifestações que, como já vimos, eram as principais


atrações dos carnavais do Rio de Janeiro até meados da década de 1920. Sua
popularidade era tanta que, no ano de 1925, por sugestão do Jornal do Brasil
instituiu-se o dia do rancho. Entretanto o aparecimento das primeiras escolas de
samba na segunda metade desta mesma década marcou o início da decadência
dos ranchos no gosto popular.
Há uma controvérsia no que tange ao surgimento desta forma de brincar o
carnaval. Credita-se à agremiação chamada Deixa Falar, do morro do Estácio, o
marco do início das escolas de samba, muito embora alguns autores afirmem
que tal agremiação ainda era um misto de rancho e escola. Nesta brecha, duas
outras agremiações, Estação Primeira de Mangueira e Osvaldo Cruz (mais tarde
Portela), reivindicam para si o título de primeira escola de samba. Fato é que
esta nova forma de agremiação carnavalesca vai rapidamente ganhar espaço.
No início da década 1930, já havia pelo menos cinco escolas de samba: Deixa
Falar, Portela, Mangueira, Vizinha Faladeira e Unidos da Tijuca. Fato que
demonstra o crescimento da nova forma de agremiação. Tal popularização faz
com que o samba passe do gueto em que ficou confinado durante as primeiras
décadas do século XX para o símbolo cultural de um novo formato de nação,
prefigurada, como já dissemos, pelos modernistas, que passam a aceitar seu
caráter mestiço como elemento fundacional. Não é à toa que o Estado Varguista
vai trazê-lo para dentro de si a fim de constituí-lo símbolo deste novo Brasil,
43
Op.Cit. p. 99/100
44
Op.Cit. p. 105
38

característica marcante do formato de Governo que no país entre os anos de


1930 e 1945. Este momento histórico é importante e pode dar origem a, pelo
menos, duas leituras que caminham em direções opostas.
Primeiramente, podemos entender que quando o Estado passa a dialogar
mais de perto com as escolas de samba, instituindo inclusive o desfile oficial, no
ano de 1935, inicia-se a domesticação do carnaval popular e o controle estatal
da folia e das manifestações populares. Dentro de uma lógica que retoma a tese
de Eric Hobsbawn acerca da ideia de invenção das tradições, Hermano Vianna
afirma que a construção de uma ideia de nação passa necessariamente pela
criação de uma autenticidade fabricada.

Se o brasileiro gosta de samba (um ritmo que passa a ser visto como
puro) é por que ‘sempre foi assim’, ou ‘é da natureza brasileira o gosto pelo
samba’. A autenticidade fabricada do samba (que para existir precisa
escamotear esse seu caráter fabricado) torna eterna uma música criada
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recentemente”.45

Hermano Vianna relaciona esta análise ao momento em que, como já


dissemos, busca-se construir uma nova identidade nacional, a partir justamente
da valorização daquilo que até então seria visto com marca de fracasso: a
mestiçagem. Neste contexto, a suposta invenção do samba enquanto símbolo da
autenticidade nacional se daria de forma arbitrária e plural, no que tange à
participação diversa de grupos sociais divergentes.

(...) a invenção do samba como música nacional foi um processo que


envolveu muitos grupos sociais diferentes. O samba não se transformou
em música nacional através dos esforços de um grupo social ou étnico
específico, atuando dentro de um território específico (o ‘morro’). Muitos
grupos e indivíduos (negros, ciganos, baianos, cariocas, intelectuais,
políticos, folcloristas, compositores eruditos...) participaram com maior ou
menor tenacidade, de sua ‘fixação como gênero musical e de sua
nacionalização’. Os dois processos não podem ser separados. Nunca
existiu um samba pronto, ‘autêntico’, depois transformado em música
nacional.46

Obviamente, a crença numa matriz pura não nos parece tangível.


Entretanto, cabe ressaltar que a concomitância entre a construção do samba e
sua nacionalização se dá em um ambiente de trocas e tensões onde “este podia
estar interessado na construção da nacionalidade brasileira; aquele em sua
sobrevivência profissional no mundo da música; aquele outro em fazer arte

45
VIANNA, Hermano. O mistério do samba, p.162.
46
Op.Cit. p.151
39

moderna” (Sandroni. p.113). Acrescentaríamos, ainda, a hipótese de que alguns


estariam buscando, ao longo deste processo (por que não dizer polifônico?) sair
da margem e se auto-afirmar enquanto sujeito47. Tal percurso atravessa as
primeiras décadas do século XX, mas tem nos anos de 1930 seu epicentro,
pelas razões que já apresentamos aqui. Nesse contexto, a oficialização do
concurso de escolas de samba se dá no ano de 1935 quando recebe o título de
oficial por que tinha a chancela do Estado e passava a fazer parte do calendário
festivo do carnaval: era o dia das escolas de samba. Entretanto, é importante
que se diga que, em 1932, por sugestão do jornalista esportivo Mário Filho e por
patrocínio do jornal Mundo Esportivo, realizou-se o primeiro concurso de desfile
de escolas de samba que teve como campeã a Estação Primeira de Mangueira,
como vice-campeãs empatadas as escolas Vai Como Pode (futuramente
Portela) e Linha do Estácio; em terceiro lugar e quarto lugar, respectivamente,
Para o Ano Sai Melhor (do morro de São Carlos) a Unidos da Tijuca48. Sendo
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assim, entendemos que não foi o Estado o mentor da ideia: ele se apropria de
uma proposta que nos parece ter sido bem interessante para todos os
envolvidos. Basta observar que neste concurso apresentaram-se 19
agremiações, número muito maior do que as cinco escolas surgidas na virada
dos anos 1920 e 1930. No concurso oficial de 1935, a já denominada Portela se
sagraria campeã.
Entretanto há outra possibilidade de análise que entendemos ser mais
fecunda por admitir que o vínculo do Estado com a escola de samba não precise
ser lido como algo imposto “de cima para baixo”. Contrariamente, entendemos
que o surgimento dessa última é mais um passo na direção da obtenção do
controle do carnaval por parte das camadas populares. Para tanto, entendemos
esta relação Escola de samba/Estado como polifônica. Há diversos interesses
dentro dela. Como exemplo disso, destaca-se que foi esse diálogo que permitiu
que as escolas saíssem do gueto, o que também foi proveitoso para um Governo
que desejava romper definitivamente com um modelo de sociedade pautado no
controle hegemônico das elites agrárias e sustentado por uma rede de relação
de dependência chamada pelos historiadores de coronelismo. Pretendia-se

47
Esta questão será discutida dentro de uma lógica de reconfiguração do discurso
do samba mais adiante.
48
Tais informações foram retiradas de diversas obras de Sérgio Cabral, dentre
elas: As escolas de samba: o quê, quem, com, quando e por quê e As escolas de samba
do Rio de Janeiro.
40

49
repactuar as relações sociais substituindo, em parte, os “coronéis” pela figura
do Estado que, para tanto, se utilizaria do samba e do carnaval para refundar o
Brasil dentro de uma matriz mestiça, abraçando uma lógica proposta pelos
modernistas. Tal fato se traduz inclusive na presença de uma série de
intelectuais/artistas dentro do Palácio do Catete. Como exemplo, citamos o
comparecimento do maestro Villa-Lobos em todas as comemorações propostas
pelo novo Estado. As escolas de samba também se utilizam desse movimento e
passam ao protagonismo do novo formato de Brasil por sua própria matriz
híbrida. Seria inocência acreditar que as agremiações não obtiveram vantagens
com tal “aliança”. Numa relação dialética, entendendo o termo dentro de uma
lógica adorniana, sem que haja a necessidade da busca de uma síntese50, as
escolas foram afirmando, passo a passo, as camadas populares – que até pouco
tempo antes brincavam o carnaval e realizavam a inversão social dos infernais
dias de momo – como elementos protagonistas do novo formato de nação. Para
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demonstrar como este jogo de interesses funcionava, vale a pena observar os


carnavais vitoriosos durante as décadas de 1930 e 1940:

ANO ESCOLA DE SAMBA ENREDO


1935 Vai como pode (Portela) O samba dominando o mundo
1936 Unidos da Tijuca Sonhos delirantes
1937 Vizinha Faladeira Origem do samba
1938 - Não houve apuração
1939 Portela Teste ao samba
1940 Mangueira Prantos, pretos e poetas
1941 Portela Dez anos de glória
1942 Portela A vida do samba
1943 Portela Carnaval de Guerra
1944 Portela Motivos patrióticos
1945 Portela Brasil glorioso
1946 Portela Alvorada do novo mundo
1947 Portela Honra ao mérito
1948 Império Serrano Antonio de Castro Alves
1949 Império Serrano e Exaltação a Tiradentes e Apologia ao
Mangueira mestre

Podemos constatar que a maioria dos carnavais apresenta temas


nacionalistas, o que comprova a relação estreita com o Estado. Vale ressaltar
que, mesmo não sendo em tese sempre concebidos pelos elementos da escola,

49
Nome dado pela historiografia brasileira aos grandes proprietários rurais no
contexto de suas relações com seus subordinados;
50
ADORNO, Theodor W. Negative Dialectics. London: Routledge e Kegan Paul,
1973.
41

eram eles que os executavam. Não havia ainda a figura fundamental do


carnavalesco ou pelo menos seu papel e, muitas das vezes, os integrantes do
Governo se restringiam a indicar o tema. Por exemplo, os temas vitoriosos de
1943, 1944 e 1945 foram sugeridos à agremiação vencedora, Portela, pela Liga
de Defesa Nacional, organismo que – criado em 1916 por Olavo Bilac, Pedro
Lessa, Miguel Calmon e outros intelectuais – inseriu-se no panorama da Primeira
Guerra Mundial, reeditando-se nos anos da participação brasileira na Segunda
Guerra, período em que foram desenvolvidos tais enredos por Lino Manoel dos
Reis, considerado por muitos como precursor dos carnavalescos
contemporâneos. Figura carimbada em Osvaldo Cruz e na Portela, chegando
inclusive à presidência da agremiação nos anos 1960.
Mesmo quando este modelo de Estado se enfraquece, as escolas
permanecem cada dia mais significativas, apresentando para todos os
segmentos da sociedade brasileira aquilo que outrora se fazia apenas em um
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círculo fechado. Como exemplo disso, a GRES Império Serrano seria campeã
em 1949 com a composição “Exaltação a Tiradentes” e em 1950 com o enredo
“Batalha Naval do Riachuelo”. Neste mesmo ano, a Mangueira também vencia
falando sobre o plano SALTE: saúde, alimentação, transporte e energia.
É interessante apontar que nos anos de 1949, 1950 e 1951 as escolas
estavam divididas em duas organizações: a Federação Brasileira de Escolas de
Samba (FBES) e a União Geral das Escolas de Samba do Brasil (UGESB).
Ambas fundiram-se no início dos anos 1950, mais precisamente em 1952, para
dar origem à AESCRJ, que controlou o desfile até a criação da LIESA (Liga
Independente das Escolas de Samba) em 1984. Quando, em 2008, era fundada
a LESGA (Liga das Escolas de Samba do Grupo de Acesso), a AESCRJ perdia
espaço e passava a controlar apenas os grupos de acesso C, D e E, que
atualmente desfilam na Estrada Intendente Magalhães, no bairro de Campinho.
Havia também no ano de 1950 a União Cívica das Escolas de Samba (UCES)
que tinha como principais filiadas a Mangueira e a Portela. Estas escolas se
negaram a participar da FBES pela suposta ligação de seu presidente – um
simpatizante da novata Império Serrano (fundada em 1947) e da UGESB – ao
clandestino PCB (Partido Comunista Brasileiro), o que impediria o recebimento
de verbas da prefeitura. O que podemos observar com esta disputa de
interesses políticos é que as escolas de samba tornavam-se cada vez mais
protagonistas do carnaval do Rio de Janeiro. Com elas, as camadas populares
passavam ao protagonismo da cultura nacional brasileira assumindo a tarefa de
recontar, sob a ótica popular, a história do Brasil.
42

Este olhar aponta, então, para a possibilidade de entendermos esta


relação, Estado/Escola de samba como elemento que reforçou o caráter popular
das escolas e que lhes possibilitou apresentar-se para um público cada vez mais
diverso, como sujeitos protagonistas do carnaval, que se tornava definitivamente
uma festa popular. A própria denominação escola de samba se origina, segundo
alguns autores para afirmar que seriam elas os espaços sagrados de criação do
verdadeiro carnaval, que tinha seu espaço na rua, não sendo mais aquele dos
bailes e dos mascarados no salão. A rua é, por excelência, o espaço sagrado
das chamadas camadas populares. Eram os “mais pobres e marginalizados” que
neste momento organizavam o carnaval e, inclusive, permitiam que, do seu
espaço simbólico participassem indivíduos de qualquer segmento étnico e/ou
social. Desta forma, mais do que nunca, o samba, agora entendido como um
binômio formado pelo gênero musical e pelo desfile, afirmava-se enquanto uma
manifestação de cultura popular plenipotenciária, que cumpria com afinco a
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lógica do confronto e da contenção. De alguma forma, podemos dizer que a


travessia realizada pelo samba que sai das casas das tias e ganha as ruas,
“acariocando-se”, permitiu-lhe mais que se manter enquanto cultura popular. Ele
pôde cumprir cada vez mais profundamente o papel determinado para tais
culturas. Aliás, vale dizer que o advento das escolas de samba vai ser seguido
por um fenômeno de subordinação da música à escola. Não há aqui uma relação
hierárquica e muito menos um caráter negativo nesta subordinação, mas logo se
fez surgir um tipo de samba intimamente a ela ligado: o samba enredo. Sua
origem é controversa: é posterior à escola e ao enredo, aliás, como já vimos, o
enredo é anterior até mesmo ao surgimento das escolas de samba. Nos
primeiros desfiles, era comum a utilização de composições já conhecidas.
Entretanto, alguns autores apontam para o ano de 1933 como momento em que
aparece pela primeira vez uma composição feita exclusivamente para o desfile.
O samba, de autoria de Nelson de Morais, foi utilizado pela GRES Unidos da
Tijuca no desfile de 1933:

Somos Unidos da Tijuca/ e cantamos o samba brasileiro/ cantamos com


harmonia e alegria/ o samba nascido no terreiro./Não queremos abafar/
nem também desacatar/ viemos cantar nosso samba/ que é nascido no
terreiro/ perante o luar.51

Para encerrar o breve histórico acerca do samba enredo, registramos que


GRES Portela e GRES Estação Primeira de Mangueira também reivindicam esta
51
O mundo do samba. Nelson de Morais. GRES Unidos da Tijuca. 1933. In:
Riotur, Memória do carnaval.
43

paternidade. A escola do morro da Mangueira afirma que o primeiro samba


enredo seria uma composição de Carlos Cachaça, chamada “Homenagem”, que
falava sobre Castro Alves a Bahia. Entretanto, este não era um samba inédito, e,
por conta disso, a escola de samba de Osvaldo Cruz (Portela) afirma ser “Teste
ao samba”, composto para o desfile de 1939, de autoria de Paulo da Portela, o
primeiro. O que importa é que, seguindo um formato melódico próprio, o samba
enredo cumpre uma função muito específica que é a de ajudar a escola a
“contar” seu enredo, além de – por ser apreciado de forma intensa, mesmo que
por um período determinado, pela população – ajudar a escola e seu desfile a se
tornarem cada vez mais populares, atingindo um público cada vez maior.
Embora, como já dissemos, o samba enredo esteja preso à proposta de carnaval
apresentado pela escola, esta dupla formará um par perfeito dentro das
estruturas do carnaval que se solidificava cada vez mais. Desse modo,
completa-se, então, a tríade que compõe nossa definição de samba: escola de
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samba, samba enredo e desfile.


Para finalizar, cabe ressaltar algumas considerações. Primeiro, parece-nos
claro que, desde o seu surgimento, o samba – lembrando que estamos nos
referindo ao carnaval das escolas de samba – cumpre seu papel enquanto
cultura popular, na medida em que foi o principal instrumento que possibilitou a
tais camadas se apresentarem enquanto protagonistas do carnaval e se
afirmarem enquanto sujeitos. Em segundo lugar, é necessário lembrar que tal
processo se dá através de um delicado diálogo com outros segmentos sociais e
principalmente com o Estado. Cremos, inclusive, que essa relação com o Estado
tenha sido a primeira estratégia de enfrentamento bem sucedida destas
categorias que chamamos de subalternas52. É um enfrentamento “por dentro”,
uma via de mão dupla: o Estado utiliza o samba e o samba utiliza o Estado. Não
há dominado nem dominador, nem perverso, nem inocente. Por fim, afirmamos
que todas estas questões só são possíveis graças a uma relação polifônica que
o samba mantém com diversos segmentos sociais, constituindo-se a partir de
uma matriz híbrida, que impossibilita a existência de um lugar sagrado de pureza
do samba, onde se encontraria um possível DNA. Nada melhor do que as
escolas de samba para comprovarem estas afirmações. Elas realizam um
movimento antropofágico, absorvendo tudo o que for possível de qualquer lugar,
reprocessando tais referências de modo que se configure como um instrumento
de cultura popular. A seguir, procuraremos analisar como se constitui

52
Mais adiante falaremos especificamente destas estratégias.
44

historicamente uma relação vital para que o samba continue a se manter como
uma manifestação de cultura popular até hoje: a relação entre o samba, o
sambista e a indústria cultural.
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3
O samba, o sambista e a indústria cultural

Se considerarmos o samba enquanto um espaço popular de fala do


subalterno, construído a partir de uma matriz híbrida e de um espaço polifônico,
precisamos entender como se relacionam, dentro deste espaço, as principais
forças motoras de um universo repleto de tensões que se configurou no maior
espaço de visibilidade do cenário das produções culturais nacionais. Dentro
deste contexto faz-se necessário compreender as três principais personagens
desta complexa relação: o samba, o sambista e a indústria cultural.
Embora pareçam palavras que apresentem sentidos congruentes, muitas
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vezes a relação entre estes três elementos, que compõem o tripé de uma das
mais significativas manifestações da cultura popular brasileira, é dotada da mais
forte tensão. Primeiramente porque a expressão samba, como já afirmamos no
capítulo anterior, pode conter em si diversos significados; em segundo lugar,
porque, julgando-se par natural do samba, o sambista tem uma leitura própria,
muito particular, do que seja samba e do que ele representa para a cultura
popular; por fim, porque, para a indústria cultural, o samba é uma mercadoria, e,
como tal, precisa de mercado, e para alcançá-lo mais amplamente, ela
incorporará a ele aquilo que julgar necessário. Talvez aí esteja o maior foco das
tensões estabelecidas nesta relação: nem sempre é o sambista quem determina
aquilo que será incorporado, o que lhe causa certa estranheza, muito embora,
várias vezes ele mesmo se beneficie destas incorporações.
Como já afirmamos, a expressão samba, para nós, significa mais do que
um gênero musical significa “evento”, que reúne em torno de si diversas
manifestações, entre elas a escola de samba, o desfile e, por último, um dos
desdobramentos do gênero musical samba, o “samba-enredo”. É neste último
que todas as tensões vão acontecer, desde sua preparação, que se inicia ao
término do desfile, até o concurso seguinte. Vale recordar um episódio muito
marcante vivido pela escola de samba Portela no ano de 2005 quando, por
diversos problemas técnicos, os dois últimos carros alegóricos e a Velha Guarda
foram impedidos de desfilarem, por ordem do presidente da agremiação.
46

A Portela viveu momentos dramáticos durante seu desfile na Marquês de


Sapucaí. Pela primeira vez na história da agremiação, os integrantes da
chamada Velha Guarda da escola, que reúne personalidades históricas da
escola, foram impedidos de desfilar.
A escola teve problemas com quase todos os seus carros, o que atrasou
sua entrada. Para contornar o problema, a Portela teve de inverter
algumas de suas alas e correr para não estourar o tempo regulamentar de
80 minutos.
Por conta do atraso, o presidente da escola, Nilo Figueiredo, mandou
fechar os portões e não deixou dois carros entrarem na avenida para evitar
perder ainda mais pontos com o atraso - cada minuto de atraso é um ponto
perdido.
Em um acontecimento inédito, a Velha Guarda foi impedida de desfilar
para não atrasar a apresentação. O incidente provocou a indignação da
comunidade portelense e da plateia, que vaiou o presidente da escola.
O presidente da Portela, ainda durante o desfile, assumiu a
responsabilidade pelos problemas enfrentados pela escola. ‘A culpa é
minha, eu assumo a responsabilidade’, disse.53

Tal atitude teve como justificativa o fato de ser um esforço técnico para
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diminuir as penalidades e manter a agremiação no grupo especial, o que acabou


ocorrendo. De outro lado, sem preocupações técnicas e de pontuação, o público
decidiu vaiar o presidente e pedir a passagem da Velha Guarda. Sobre aplausos
e o canto popular do samba-enredo alguns componentes da Velha Guarda
passaram pela avenida o que configurou, na opinião da imprensa, um dos
episódios mais emocionantes do carnaval carioca. Mas o que nos revela esta
narrativa? Ora, o que era mais importante para a escola, à passagem da Velha
Guarda ou sua manutenção no grupo especial? A resposta vai variar e esta
variação nos revela a tensão existente entre o sambista, o samba, aqui
representado pelo desfile, e a indústria cultural. Do ponto de vista das tradições
da Portela e da memória do carnaval, o lógico seria permitir a entrada da Velha
Guarda e assumir o rebaixamento. Se perguntássemos para qualquer membro
da Velha Guarda ou para qualquer pessoa que estivesse assistindo ao desfile,
provavelmente esta seria a resposta. Mas no que isto acarretaria? Não podemos
afirmar com certeza, exceto pelo fato de que a agremiação, caso fosse
rebaixada, desfilaria no sábado, perdendo dinheiro com cotas de televisão e com
todos os outros contratos de publicidade, que, no grupo especial valem mais.
Além disso, a agremiação perderia também seu barracão na cidade do samba e
tudo o que isto traz consigo. Além do que criaria uma tensão política dentro da
própria escola, visto que tal fato se deu no primeiro ano da gestão do então
presidente, Nilo Figueiredo, responsável pelo retorno de um grupo que há anos

53
Folha de São Paulo. 08 de fevereiro de 2005.
47

havia se afastado da agremiação. No final das contas seriam os próprios


sambistas quem amargariam um relativo prejuízo. Aqui então se revela, de forma
muito clara, a tensão que tratamos: o que deve balizar uma decisão como esta: o
suposto respeito às tradições ou uma lógica econômica da qual tudo, inclusive a
tradição, se beneficia?
Não pretendemos responder à questão de imediato, até porque, talvez não
haja uma resposta única e definitiva. O que pretendemos aqui é tentar
compreender a tessitura destas tensões (relações), que envolvem o samba, o
sambista e a indústria do entretenimento, e de que forma elas estão
relacionadas entre si, e como isso interfere, ou não, na produção cultural popular
do carnaval.

3.1.
O samba
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Cabral propôs aos dois a mesma questão: — O que é samba? Donga


respondeu com o exemplo de ‘Pelo Telefone’ e Ismael discordou: ‘— Isso é
maxixe.’ Para ele, samba de verdade era ‘Se Você Jurar’ (Composto por ele e
Nilton Bastos em 1931). Mas Donga também discordou:’ — Isto não é samba, é
marcha.54

Como já afirmamos anteriormente, apropriamo-nos de um significado mais


amplo para a expressão samba. Usamos o termo expressão e não palavra
justamente para não produzirmos um engessamento do significado. Do nosso
ponto de vista, a expressão traz consigo o gênero musical dentro de uma
especificidade, o samba enredo, o seu par natural, a escola de samba, e, por
último, mas não menos significativo, o desfile carnavalesco, manifestação
plástica do par. Porém, para entendermos como se dá a relação deste conjunto
de elementos com os outros dois do já convencionado tripé (sambista e a
indústria cultural), será necessário analisarmos cada um dos significados
separadamente, muitas vezes confrontando-os.
Nascido sob o signo da ruptura, o samba enredo vai construir um espaço
próprio de manifestação, o desfile, que muito embora tenha surgido primeiro,
cede caminho àquele que, ao longo de sua história, ocupa lugar de destaque, de
modo a se transformar em peça fundamental do engenhoso quebra cabeça que
é o desfile. Desde seu aparecimento, que como dissemos no capítulo anterior, é
objeto de incerteza, o samba enredo vem passando por transformações
significativas, se adequando a novas realidades derivadas de contextos diversos.

54
SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente, p. 132
48

Oriundo da matriz musical carioca, construída no início do século XX por


sambistas tradicionais como Ismael Silva, o samba enredo vai se transformar em
par natural das escolas de samba. É dentro destas agremiações que ele é
concebido, composto, executado e experimentado por um público que
historicamente vai tornando-se cada vez maior e mais híbrido, do ponto de vista
cultural.
Para entender melhor como se dá tal relação, vamos observar três
momentos distintos. O primeiro, ao longo, principalmente, da chamada Era
Vargas55, é aquele em que o samba vai se constituir símbolo de uma tradição
construída sob novos paradigmas sociais. Em seguida, vamos observá-lo no
momento em que se institui a gravação do gênero. Por último, trataremos do
samba enredo ao longo das duas últimas décadas. Cumpre afirmar que esta
divisão é fruto de uma escolha nossa que busca atender a momentos que
compreendemos significativos para as questões propostas no presente trabalho.
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A partir do início da década de 1930 o samba enredo vai se consolidar


enquanto gênero musical, muito embora não tivesse a relevância que tem hoje,
principalmente por conta da pontuação no desfile. Ele cresce em importância e
em popularidade, principalmente ao longo da década de 1940/50, o que não
significa que não tivéssemos, antes deste momento, produções relevantes para
a historiografia musical. Só para relembrar, é do ano de 1933 o expressivo
samba enredo da GRES Unidos da Tijuca: “O mundo do samba”, considerado
por muitos historiadores da música como primeiro samba enredo. Entretanto,
durante as décadas de 1940 e 1950, é que vão surgir os primeiros “grandes
sambas enredos” que se imortalizarão no gosto popular. É, por exemplo, de
1949, uma das pérolas da história do samba enredo: “Exaltação a Tiradentes”.

Joaquim José da Silva Xavier/ Morreu a vinte e um de abril/ Pela


independência do Brasil/ Foi traído e não traiu jamais/ A Inconfidência de
Minas Gerais/ Foi traído e não traiu jamais/ A Inconfidência de Minas
Gerais/ Joaquim José da Silva Xavier/ Era o nome de Tiradentes/ Foi
sacrificado pela nossa liberdade/ Este grande herói/ Pra sempre há de ser
lembrado.56

Percebemos que há significativas transformações entre estes dois sambas


e os sambas mais contemporâneos. O primeiro, de composição relativamente
curta, transparece certa autonomia, mesmo que mínima, em relação ao enredo.
55
Deliberadamente iremos “esticar” o período até o início dos anos 1950.
56
Exaltação a Tiradentes - Mano Décio, Estanislau da Silva e Penteado. GRES
Império Serrano (1949)
49

O samba do GRES Império Serrano possui uma letra tão simples e objetiva,
quanto o primeiro (da Unidos da Tijuca), entretanto o segundo já apresenta uma
visível subordinação ao enredo. Hoje alguns sambas são dotados de tanta
subjetividade, que mal o compreendemos, muito embora ele esteja
completamente subordinado à proposta de tema da agremiação. A questão que
nos parece relevante é perceber a relação íntima que a musica apresenta com
seu par o enredo, e com a proposta do desfile. Começa a ficar muito claro que
ele deve elucidar, mesmo que ainda de forma “simples” aquilo que a escola
pretende apresentar em seu desfile. Mas o que nos parece ser ainda mais
relevante, é a ligação entre todos esses fatores e o contexto histórico da década
de 1940.
Iniciado em 1937, mas com raízes que estão ligadas ao movimento de
1930, o chamado Estado Novo objetiva entre outras questões, refundar o Brasil
em uma matriz híbrida apontando, como já afirmamos no capítulo anterior, à
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peculiaridade da nação brasileira. É sob o guarda chuva deste novo formato


autoritário de Estado que a relação entre o samba enredo e o enredo vão ficar
mais evidentes. As composições produzidas nestas duas décadas dialogam com
determinados interesses que ficam evidentes pelo teor de suas letras e temas.
Durante todo o governo Vargas e mais especificamente na ditadura
estadonovista, buscava-se, no plano político-ideológico, refundar as tradições e
reinventar a ideia de nação brasileira. Desta forma, buscando consolidar seu
lugar de fala, o samba vai ajudar a construir esta nova tradição, na medida em
que dela vai se beneficiar. A dependência que o samba enredo tem com seu par,
o desfile, leva ao surgimento de sambas enredo que colaboram com a invenção
desta nova tradição da qual o samba também vai se beneficiar. O trabalho
imaginativo da construção de uma ideia de nação é inventar uma autenticidade
fabricada implicando na deformação de parte do passado, transformando-o em
algo estável, quase imemorial, garantindo assim não só a estabilidade política do
governo, mas também a consolidação de seu projeto político-social.
Desta forma percebe-se que tais construções não podem apenas ser
compreendidas a partir dos segmentos hegemônicos, mas também a partir de
grupos sociais menos abastados que são possuidores de necessidades e
desejos privados. Há, então, uma espécie de troca. Desta forma, as
composições e desfiles dos anos 1940, principalmente (mas não só) até 1945,
vão obedecer a esta lógica. Os anos Vargas funcionam como uma espécie de
incubadora onde novas tradições se consolidam e reinventam o Brasil. O samba,
principalmente o samba enredo e o desfile, participam ativamente deste
50

processo. A nova ideia de nação parte fundamentalmente da rejeição do caráter


negativo atribuído ao aspecto mestiço da sociedade brasileira. O que antes era
visto como fracasso, agora é nossa mais importante tradição. É exatamente aí
que o samba abre espaço para se transformar em símbolo nacional.

Se o brasileiro gosta de samba (um ritmo que passa a ser visto como
puro) é porque ‘sempre foi assim’, ou ‘é da natureza brasileira o gosto pelo
samba’. A autenticidade fabricada do samba (que para existir precisa
escamotear esse seu caráter fabricado) torna eterna uma música criada
recentemente.57

Obviamente, esta relação irá, por exemplo, criar uma subordinação às


necessidades do Estado. Durante os anos de guerra era necessário que as
escolas falassem de forma ufanista da participação brasileira. Entre os anos de
1940 e 1945, dentre os carnavais vitoriosos, a maioria tratava de assuntos que,
direta ou indiretamente, enalteciam o Brasil, vejamos os vencidos pela Portela.
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Em 1941, o enredo era “Dez anos de Glória”; em 1943, “Carnaval de guerra”; em


1944, “Brasil glorioso”; e finalmente em 1945, “Motivos patrióticos”. Entretanto,
cumpre dizer que tal obrigatoriedade parte da própria escola. É claro que o
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) controlava todas as
publicações, entretanto, é o próprio sambista, querendo construir
reconhecimento, que parte para a adoção de tais temas. Esta iniciativa funciona
como uma estratégia bastante interessante que faz com que o Estado passe a
olhar com boa vontade as escolas de samba. É inegável que esta estratégia
colaborou para a ascensão das mesmas.

Que a censura na ‘era Vargas’ foi um caso sério, não se discute. Que o
DIP tenha interferido profundamente nas manifestações da cultura
brasileira, também não (...). A exigência nos regulamentos de temas
nacionalistas, não partiu do DIP – está muito mais ligada aos próprios
sambistas que a uma imposição do governo. Em 1938 o primeiro artigo
proposto pela União das Escolas de Samba dizia o seguinte: ‘De acordo
com a música nacional, as escolas de samba poderão apresentar os seus
enredos no carnaval, por ocasião dos préstitos, com carros alegóricos ou
carretas, assim como não serão permitidas histórias internacionais em
sonhos ou imaginação.58

É obvio que a existência do DIP, por si só, já influenciava nessa decisão.


Entretanto, não seria correto crer que o sambista foi coagido ou cooptado por

57
VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba, p.162
58
MUSSA, Alberto. Sambas de enredo: história e arte, p. 52
51

este instrumento. Ele se faz valer dessa dada realidade para transformá-la num
instrumento que, de alguma forma, opere em seu favor. É inegável que a relação
foi bastante proveitosa para o samba, que saía do gueto para se transformar em
símbolo nacional. O intenso jogo de interesses, que permanece ao longo do final
da década de 1940 e durante quase toda a década de 1950, envolve
praticamente todas as agremiações. Curiosamente, o que fora sugerido pelo
regulamento de 1938 tornava-se obrigatório, de forma explícita, em 1947, já
durante o período democrático.

Art. 6°-Há inteira conveniência na divulgação dos enredos, ficando os


concorrentes com inteira liberdade de distribuição aos jornais desta
Capital. E obrigatório nos enredos o motivo nacional.59

Vale ainda ressaltar que tal obrigatoriedade de uso dos temas nacionais só
foi extinta em 1997. Para ilustrar a presença desta relação, observemos a tabela
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abaixo60:

ANO AGRAMIAÇÃO ENREDO


1946 GRES Portela “Alvorada do novo mundo”
1947 GRES Portela “Honra ao mérito”
1949 GRES Império Serrano “Exaltação à Tiradentes”
1950 GRES Império Serrano “61 anos de República”
1951 GRES Império Serrano “Batalha Naval”
1953 GRES Portela “Seis datas magnas”
1954 GRES Mangueira “Rio através dos séculos”
1955 GRES Império Serrano “Exaltação a Caxias”
1958 GRES Portela “Vultos e efemérides do Brasil”
1959 GRES Portela “Brasil Panteon de glórias”

Assim sendo, este período se torna pedra angular da construção do


espaço hegemônico do carnaval carioca. Inicia-se aí um interessante jogo entre
as políticas de Estado no que tangem aos diversos projetos de nação e o samba,
que busca construir seu espaço de fala e representatividade a partir deste tênue
jogo com o Poder. Rompendo, relendo, reconstruindo e reinventando tradições,
ele consolida-se no cenário nacional. “A preservação pura das tradições não é

59
AUGRAS, Monique. A ordem na desordem. Appud Silva e Oliveira F°, p. 73
60
Nos anos de 1949, 1950 e 1951 houveram dois desfiles, os considerados
extraoficiais foram vencidos respectivamente por Mangueira em 1949 e 1950, com os
respectivos enredos “Apoteose ao mestre” e “Saúde, lavoura, transporte e educação”, e
Portela em 1951 com o enredo “ A volta do filho pródigo”. Além disso, não houve
concurso em 1952.
52

sempre o melhor recurso popular para se reproduzir e reelaborar sua situação”


(Canclini 204/20).
É importante ressaltar que novas transformações serão introduzidas no
samba ao longo do século XX. A entrada em cena da figura do carnavalesco,
como concebemos agora, em meados dos anos 1960, determinando aquilo que
alguns autores chamam de primazia do visual, vai impor novos e significativos
conceitos. Já consolidado como “o maior espetáculo da terra”, já ocupando um
papel hegemônico na fala das camadas subalternas, o samba vai incorporar
novos elementos para melhor se aproximar da indústria do entretenimento. Com
o televisionamento e gravação, o espetáculo vai ter que sofrer algumas
modificações importantes. O andamento é acelerado, por conta de diversos
fatores, entre eles o gigantismo assumido pelas agremiações que chegavam a
desfilar com cerca de 5.000 componentes, e o tempo de faixa e de transmissão,
as letras se tornam mais complexas ou subjetivas e o samba enredo passa a ser
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critério de julgamento. Há, enfim uma série de transformações inauguradas com


a presença de elementos ligados à universidade na produção do carnaval de
uma escola de samba. O samba, que já havia se constituído símbolo nacional,
construía agora sua escalada para se tornar produto comercializável. Para tanto,
foram necessárias diversas mudanças, nem sempre bem compreendidas. Tais
modificações não se restringem apenas à complexidade da letra, mas também
no que tange ao seu andamento. Elas também se ligam ao desfile das escolas
de samba e alterando sua estrutura e o conjunto do desfile, por sua vez, altera o
andamento do samba. Para alguns, há perda de qualidade, para outros apenas
transformação. O fato é que foi a mudança, que não chega a desconfigurar o
samba como um símbolo fundamental da cultura popular, muito embora seus
compositores não sejam necessariamente populares. Da mesma forma que a
escola sofreu uma espécie de “invasão” por parte da classe média61, o samba
ganhou também, na sua fileira de compositores, artistas oriundos de outros
espaços sociais, mas que, via de regra, são participantes da agremiação.
Também é relevante o fato de que o samba enredo - apesar de ter um
espaço cronológico bastante definido: os meses que antecedem o desfile -
sempre se manteve no gosto popular. Fato que está ligado ao mesmo vetor que
vai fazer pressões que irão provocar alterações no próprio samba e que, de certa
forma, diminuirão este espaço cronológico, ou pelo menos restringi-lo aos meses
que antecedem o carnaval e a um curto espaço posterior. Este fato será a

61
Trataremos mais adiante deste fenômeno.
53

gravação do samba enredo que inicialmente, era realizada pela extinta


gravadora Caravele, dentro da quadra da própria escola. Eram os tempos do
compacto simples. No final dos anos 1960, a gravadora Top Tape, na época
uma das gigantes do mercado, comprou os direitos de gravação dos sambas
enredo. O que isto nos revela? A percepção de que o gênero musical, balizado
pelo evento a ele ligado, crescia no que se refere à construção de uma mercado
consumidor que se expandia para diversos segmentos sociais, para além
daqueles historicamente envolvidos com a produção do carnaval. Para o
sambista, a gravação complementava o avanço iniciado timidamente com a
radiodifusão. A fundação da “Hora do Brasil”, destinado à apresentação da
chamada música folclórica e os programas da Rádio Nacional, muito embora se
limitassem a apresentar os chamados sambas exaltação, iniciavam a
radiodifusão do samba.
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Ao governo de Getúlio Vargas não escapou, sequer, o papel político que


o produto música popular poderia representar como símbolo da vitalidade
e do otimismo da sociedade em expansão sob o novo projeto econômico
implantado com a revolução de 1930: ao criar em 1935 o programa
informativo oficial chamado “A Hora do Brasil”, o governo fez intercalar na
propaganda oficial números musicais com os mais conhecidos cantores,
instrumentistas e orquestras populares da época (...) 62

A imprensa sempre esteve próxima do carnaval e em especial das escolas


de samba. Agora, com a gravação, além de ser tocado nas rádios o samba era
comprado/consumido por um público cada vez maior, alargavam-se cada vez
mais as fronteiras do consumo do samba agora configurado em produto.
Entretanto, o LP, com seu tempo de faixa pré-determinado, impunha exigências
na produção. Como as letras se tornaram mais complexas e subjetivas, e às
vezes longas, o andamento acelerou-se. Este foi um dos preços que o samba
enredo pagou para se ver consumido por um mercado cada vez maior.
Entretanto os ganhos econômicos também foram muitos, além do crescimento
da relevância daquela manifestação cultural e de seus agentes produtores. A
gravadora mudou (após a Top Tape veio a Som Livre, do mesmo grupo da
emissora que passou a transmitir, pela televisão, o desfile. Atualmente a
gravação independente é conduzida pela própria LIESA – Liga Independente
das Escolas de Samba), mas os desdobramentos continuam os mesmos. Fica a
dúvida: o espaço cronológico de consumo do samba enredo diminuiu por conta
das transformações que teriam provocado uma queda na qualidade? Ou esta

62
TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira, p.299.
54

queda na qualidade estaria ligada a outras questões, tais como: a interferência


política e econômica no ato das escolhas dos sambas enredo, ou uma queda na
qualidade dos compositores, ou ainda a própria curta vida útil dos produtos
consumíveis que a indústria do entretenimento exige, já que uma mercadoria
precisa ter vida útil curta para dar espaço para o surgimento de outra. Talvez
tenhamos uma combinação destas várias possibilidades. O fato é que os
sambas enredo contemporâneos não emplacam, às vezes nem mesmo no
período que antecede o desfile, são muito parecidos. Muitas vezes percebe-se
claramente uma mesma estrutura melódica ou um mesmo molde na estrutura da
estrofe e do refrão:

A partir de 1990 os sambas começam cada vez mais a ficar


estruturalmente semelhantes. Passam a ter, quase sem exceção, uma
primeira parte, seguida de um refrão de oito versos (ou seja, 16
compassos), e de uma segunda parte, seguida de um segundo refrão,
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também de oito versos – que passou a ser chamado ‘refrão principal’, dada
a sua quase obrigatoriedade. Esse refrão principal, via de regra, tem como
função ‘levantar a avenida’, mencionando de forma entusiástica o nome da
escola, às vezes fugindo completamente do enredo.63

Esta “exigência” acaba dando origem à fusão de duas ou mais


composições, na qual se pega uma estrofe de uma, um refrão de outra,
transformando o samba numa espécie de “Frankstein” musical. Pode até dar
certo, na maioria dos casos não. O fato é que por todas estas questões, um ou
outro samba consegue notoriedade. Tanto que, quando se busca construir uma
lista dos melhores sambas enredo de todos os tempos, esta lista, em sua
maioria é composta por sambas “mais antigos” como: “Aquarela do Brasil” de
Silas de Oliveira ou “Os Sertões”, de Edeor de Paula, respectivamente da GRES
Império Serrano e GRES Em Cima da Hora, compostos nas décadas de 1960 e
1970.
Este gênero musical tem seu espaço criativo e de execução na escola de
samba. Ela é seu par natural e ele surgiu para auxiliar a compreensão do enredo
desenvolvido, que se configura em um tema a ser apresentado, de forma
inteligível, para a plateia. O primeiro desfile com enredo, executado pelo Rancho
Ameno Resedá, teve como tema o hino nacional (1924). A década seguinte vai
marcar a entrada no cenário do carnaval carioca, das escolas de samba. Se, em
1932, o jornal Mundo Esportivo organizava e patrocinava o primeiro concurso
das escolas de samba, no ano seguinte, a prefeitura do Distrito Federal, junto ao

63
MUSSA, Alberto e SIMAS, Luis Antonio. Samba de enredo, p. 117
55

Touring Club do Brasil, inseria no calendário e financiava, de forma modesta, o


desfile. A partir de 1934, pode-se observar um esforço, cada vez maior das
agremiações, objetivando consolidar um lugar de destaque no cenário do
carnaval carioca. A imagem de inocência e de cooptação não resiste diante de
tais esforços. Em 1935, era fundada a União das Escolas de Samba sob
presidência de Flávio Paulo Costa, que, em carta ao então prefeito Pedro
Ernesto, esclarecia os objetivos da fundação daquela entidade que pretendia
organizar e orientar “os núcleos onde se cultiva a verdadeira música nacional,
imprimindo em suas diretrizes o cunho essencial da brasilidade”64. Na carta,
observa-se ainda que havia cerca de 30 núcleos inscritos e que os enredos
deveriam, preferencialmente, possuir características nacionalistas. Este
momento nos revela duas questões fundamentais. Uma é a relação que as
escolas mantêm com interesses que estão além do seu universo. Outra é a
forma como ela usa esta relação ao seu favor. Além disso, observa-se
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claramente que elas entendem que é fundamental organizar o desfile para


assumir a preponderância do carnaval carioca. Este sempre foi o desejo das
camadas populares, organizar-se para produzir um carnaval que ocupasse lugar
de destaque no calendário festivo dos infernais dias de momo. Como sabemos,
o surgimento dos blocos e das escolas estão intimamente ligados a este desejo.
O próprio nome “escola”, segundo Monique Augras, em sua obra O Brasil do
samba enredo65, servia para fazer alusão à ideia de que lá se produzia o
verdadeiro carnaval, lá se podia ensinar a fazer carnaval. Esta sede de
organização e de construção de um espaço hegemônico teve como marco a
decretação, dias após a fundação da União das Escolas de Samba, do caráter
oficial do desfile, que reconhecia, entre outras coisas, a legitimidade da
instituição. É importante que observemos que nesta relação com o Estado, não
há um lado dominante e outro recessivo, não há passividade, o que há é um
diálogo mútuo, uma estratégia malandra, em que todos se beneficiam. Não é à
toa que neste mesmo ano ocorria o primeiro desfile oficial que apresentava
novidades no julgamento, quando comparado aos desfiles anteriores.
Consolidava-se aí o desejo intrínseco das escolas, brilhar e obedecer às regras
do jogo. Curioso é perceber como estes elementos ainda se fazem presentes de
forma clara nos dias atuais. Nos anos de 1990, em que a GRES Imperatriz
Leopoldinense acumulou vitórias sob a coordenação de Rosa Magalhães, a

64
História das Escolas de Samba, vol. 3,1976.
65
AUGRAS, Monique. O Brasil do samba enredo. Rio de Janeiro: Editora FGV,
1998.
56

escola era reconhecida por fazer carnavais tecnicamente corretos, obedecendo


obcecadamente os critérios de julgamento, demasiadamente técnicos, como
podemos observar nos trechos do manual do julgador da LIESA para o carnaval
2001, que apresenta o que deve ser observado no critério de julgamento de
alguns quesitos:

A coesão do desfile, isto é, a manutenção de espaçamento o mais


uniforme possível entre Alas e Alegorias, penalizando, portanto, a abertura
de claros (buracos) e a embolação de Alas e/ou Grupos (ex: uma Ala
penetrando na outra).
A uniformidade com que a Escola se apresenta em todas as suas formas
de expressão (musical, dramática, visual etc);
Os acabamentos e cuidados na confecção e decoração, no que se refere
ao resultado visual, inclusive das partes traseiras e geradores;
Os acabamentos e os cuidados na confecção;
A uniformidade de detalhes, dentro das mesmas Alas, Grupos e/ou
Conjuntos (igualdade de calçados, meias, shorts, biquínis, soutiens,
chapéus e outros complementos, quando ficar nítida esta proposta).66
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É claro que esta relação muito próxima com o Estado e seus interesses
também trazia problemas. Monique Augras no seu texto A ordem na desordem:
A regulamentação do desfile das escolas de samba e a exigência de "motivos
nacionais" nos recorda o episódio ocorrido com a Vizinha Faladeira, que fora
eliminada no concurso de 1939 por apresentar como enredo uma “lenda”:
Branca de Neve. Esta relação sempre se manteve no limite entre a troca de
favores e interesses e o controle. Tanto que no início dos anos 1940 a comissão
julgadora do carnaval era nomeada pelo secretário geral de administração da
prefeitura do Distrito Federal.
Hoje, em tempos de “cidade do samba”, as escolas funcionam como
empresas, sendo responsáveis direta e indiretamente por uma parcela, cada vez
mais significativa, do mercado de trabalho. Já consolidadas como protagonistas
do carnaval, como símbolos de cultura popular e como espaço de fala e
reconhecimento da própria cultura popular, a empreitada é consolidar-se como
mercadoria valorosa na indústria do entretenimento. Não há mais espaço para o
amadorismo, a busca pela perfeição associa-se à ideia de cumprimento de
regras. As escolas são instituições profissionais. Curiosamente, aquelas que não
se adequam a esta nova realidade são postas para trás, o que na prática
significa ficar de fora do seleto grupo das escolas de samba do grupo especial,
organizadas pela LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de

66
Manual do Julgador. LIESA. 2011.
57

Janeiro). Esta instituição, fundada em 1984, concretizou um projeto, pensado por


uns e criticado por outros, de transformação das escolas em grandes “empresas”
(“super escolas de samba S.A., super alegorias, escondendo gente bamba, que
covardia”)67, fazendo um carnaval cada vez mais gigantesco. A mutação lhes
trouxe benefícios e problemas. Para alguns elas deixaram de ser espaço
popular, para outros, elas e seus atores foram projetados em um patamar
inimaginável. Fato é que hoje o espetáculo possui amplitude e movimenta uma
fabulosa quantidade de dinheiro. Mas é relevante reforçar que muitas
agremiações pagaram o preço desta transformação. Se à União das Escolas de
Samba coube construir o caminho que levou as escolas de samba para o
cenário nacional, coube à LIESA construir e garantir um espaço mercadológico
para estas mesmas escolas. A LIESA administra o carnaval do grupo especial
que reúne as 12 maiores, ou melhores, escolas de samba do Rio de Janeiro.
Hoje são elas: Estação Primeira de Mangueira, União da Ilha do Governador,
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Acadêmicos do Salgueiro, Beija-flor, Unidos do Viradouro, Unidos da Tijuca,


Mocidade Independente de Padre Miguel, Portela, Unidos de Vila Isabel,
Imperatriz Leopoldinense, Acadêmicos do Grande Rio e Porto da Pedra68 e
Renascer de Jacarepaguá69. Esta lista se altera anualmente, na medida em que
uma escola sai do grupo especial, a última colocada no desfile, e uma outra
sobe, a primeira do grupo de acesso A. Percebemos que algumas escolas
tradicionais estão fora desta lista. Escolas como Império Serrano e Caprichosos
de Pilares movimentam-se constantemente entre o grupo especial e o grupo de
acesso A. Outras, também tradicionais, amargam outros grupos de acesso,
como a Lins Imperial e a Em Cima da Hora, que já desfilaram junto com as
chamadas grandes. O sobe e desce, o número sem fim de grupos é apenas um
dos preços pagos pelo gigantismo atribuído a uma das funções da própria
escola, o desfile.
Hoje o desfile movimenta alguns milhões de reais e é administrado pelas
próprias escolas através de entidades formadas por elas mesmas. É fato,
também, que o jogo de interesses levou à criação de diversas entidades. Hoje,
além da LIESA, que, como sabemos, administra e organiza o desfile do grupo
especial (desfilando no domingo e na segunda-feira no sambódromo),

67
Bum bum paticumbum, prugurundum - Beto Sem Braço e Aluisio Machado.
GRES Império Serrano, 1982.
68
Fonte: www.liesa.globo.com
69
Em 2012 serão 13 agremiações em função do incêndio ocorrido em 2011 que
levou a LIESA a suspender o descenso. Entretanto, no ano de 2012 cairão duas
agremiações.
58

envolvendo 12 agremiações, patrocínios milionários, transmissão ao vivo para o


mundo todo (o que gera gordas cotas televisivas), gravação e divulgação e
outras coisas mais. Existem, ainda, mais duas entidades: a recém criada LESGA
(Liga das Escolas de Samba do Grupo de Acesso), que administra o também
rentável grupo de acesso A, que desfila no sábado (sambódromo) e já tem
garantido os direitos de transmissão televisiva e o não tão rentável grupo de
acesso B, que desfila na terça feira (sambódromo). O grupo de acesso A contou
com nove agremiações no ano de 2012, em função do não descenso do grupo
especial em 2011, motivado pelo incêndio na cidade do samba. São elas:
Caprichosos de Pilares, Estácio de Sá, Paraíso do Tuiutí, Império da Tijuca,
Inocentes de Belford Roxo, Acadêmicos da Rocinha, Acadêmicos de Santa Cruz,
Acadêmicos do Cubango, Unidos do Viradouro e Império Serrano70. Destas
agremiações, uma subirá para a elite do carnaval e duas outras descerão para o
grupo de acesso B. Este grupo contou no carnaval de 2012 com onze
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agremiações, sendo elas: Unidos de Vila Santa Teresa, União de Jacarepaguá,


Sereno de Campo Grande, Alegria da Zona Sul, Arranco do Engenho de Dentro,
União do Parque Curicica, Mocidade de Vicente de Carvalho, Tradição,
Caprichosos de Pilares, Unidos de Padre Miguel e Difícil é o Nome. Podemos
perceber a presença de escolas tradicionais, que, por uma razão ou outra, estão
muito distantes do glamour que o grupo especial oferece. A partir deste grupo a
organização fica sob a responsabilidade da AESCRJ (Associação das Escolas
de Samba da Cidade do Rio de Janeiro). São três grupos: Grupo de acesso C,
Grupo de acesso D e Grupo de acesso E desfilando, todos estes três grupos, na
Estrada Intendente Magalhães, no bairro de Campinho. No grupo de acesso C
temos a presença de algumas escolas que já transitaram no grupo especial por
vários anos: Lins Imperial, Unidos da Ponte e Em cima da Hora por exemplo. O
mesmo acontece com a Unidos de Lucas, que hoje se encontra no Grupo de
acesso D e Vizinha Faladeira, fundada em 1932. Longe dos holofotes do grupo
especial e do grupo de Acesso A, estas agremiações cultivam a expectativa de
um dia chegarem até lá. Essa sedução faz com que alguns blocos de enredo
bastante tradicionais optem por se transformar em escolas de samba, como os
Boêmios de Inhaúma71. Este grande número de grupos e de escolas nos leva a
algumas observações.
Primeiro, podemos observar que há uma diferença significativa no valor
dos investimentos dos respectivos grupos. Isto é visível nos equipamentos,

70
Fonte: www.lesga.org
71
Fonte: www.aescrj.com.br
59

alegorias e fantasias das escolas. Há, é verdade, uma relativa aproximação


entre os grupos especial e de acesso A, porém, a diferença já é visível entre
estes e o grupo de acesso B. A distância fica ainda mais evidente em relação
aos grupos de escolas organizados pela AESCRJ, os grupos C, D e E. A
diferença é tão grande que quando as escolas chegam a um dos três grupos que
desfilam no sambódromo, precisam alterar quase todas as suas estruturas,
principalmente aquelas relacionadas aos carros alegóricos, pois o sambódromo
exige uma verticalização que não é possível na Intendente Magalhães. Para tais
alterações, faz-se necessário um significativo aumento do orçamento, que via de
regra não é possível no primeiro ano de grupo especial. O que na verdade
ocorre é que o seleto grupo especial fica cada vez mais seleto, basta ver a
pouca variação entre escolas que “sobem” para o grupo especial. Em 2004, por
exemplo, o Império Serrano “subia” para o grupo especial para ser rebaixado
novamente em 2009; A São Clemente, rebaixada em 2004, subia novamente em
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2007 para ser novamente rebaixada em 2008. A Rocinha chegava ao grupo


especial em 2005, para cair em 2006, ano em que a Estácio de Sá chegaria ao
grupo especial, sendo rebaixada no ano seguinte, em 2008. A União da Ilha do
Governador seria rebaixada em 2001 e somente subiria em 2009. Nos últimos 6
anos, algumas escolas realizam um movimento de subida e descida, não se
fixando no grupo especial. É uma variação muito pequena que estrangula os
demais grupos. Quais seriam as chances de uma escola dos grupos C, D ou E
chegar ao grupo especial? Esta impossibilidade revela um dos problemas do
modelo atual. Se, por um lado, ele eleva as grandes escolas e seus integrantes a
um patamar inimaginável, ele condena as menores a um ostracismo da mídia, e
sem ela não há patrocínio. Sem patrocínio não há como construir uma estrutura
que possibilite ascender ao grupo especial.
Assim, da mesma forma em que o samba foi se constituindo uma
manifestação cultural cada vez mais visível, alargando o espaço de fala das
categorias tradicionalmente a ele ligadas, foi também criando uma espécie de
funil, dificultando o acesso de agremiações menores a este novo universo. Outra
questão fundamental é que, como já dissemos anteriormente, este novo e maior
espaço midiático construído pelo samba, pautado na lógica de uma polifonia,
abriu espaço para uma nova configuração do sambista. A entrada em cena de
elementos oriundos da academia foi, como já pontuamos, fundamental para todo
o processo de afirmação do samba. Estes novos elementos em constante
diálogo com outros segmentos da própria escola foram reconfigurando a lógica
do desfile, da escola, do samba e do próprio sambista. Esta reconfiguração foi
60

fundamental para o alargamento do universo em que o samba se inseriu, e é


necessário que se compreenda melhor como ela se dá.

3.2.
O sambista

Expressão de difícil tradução, o sambista é por excelência aquele que está


ligado, de forma direta ou indireta, ao samba, entendido aqui como evento que
engloba o samba enredo, seu par, a escola de samba e o produto dessa junção,
o desfile. Mas o que é estar ligado ao samba? Esta capciosa pergunta pode ter
diversas respostas, dependendo do lugar de onde elas sejam proferidas. Sendo
um espaço de participação democrática, o samba é um telhado que hoje abriga
diversos segmentos sociais. Como nos afirma Sandroni em sua obra Feitiço
Decente, ao sair da casa e ganhar as ruas com seu novo formato, o bloco, ele
alargava naturalmente seu leque de participantes:
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Blocos e botequins possuem uma característica comum: são mais


públicos, mais abertos socialmente, que a sala de jantar de Tia Ciata.
Nesta última, como vimos, os brancos presentes eram “gente escolhida”,
que tinham por uma razão ou outra o privilégio de ser admitida na
intimidade das baianas. Naqueles, ao contrário, a admissão era
praticamente livre. Em ambos, podiam conviver pessoas que a vida
separava em todo o resto: profissão, riqueza, religião, cultura, cor de pele.
A capacidade de circulação do samba nos seus novos lugares sociais
aumenta, pois prodigiosamente.72

É claro que não estamos negando a preponderância de determinados


grupos sociais no que tange ao processo criativo dessa expressão, estamos
apenas apontando uma característica que deve ser problematizada, e que vai
ser mais clara ainda durante o processo de construção do atual modelo de
carnaval das escolas de samba. O samba possui uma matriz híbrida, mas tem
como grande protagonista as camadas populares. A questão, como já vimos, é
que seus protagonistas, para se afirmarem, utilizaram-se de uma estratégia
pautada na ideia de diálogo com todos os segmentos que, por algum motivo,
era-lhes interessante. Esse diálogo, como pontuamos no primeiro capítulo, era
centrado numa polifonia que permitia às camadas populares manter seu
protagonismo. A partir da década de 1930, quando os desfiles se popularizaram
e se tornaram oficiais, as escolas de samba entraram num caminho sem volta.
Este caminho, marcado pelo crescimento, incorporava às escolas elementos de
72
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente, p. 144
61

origens cada vez mais diversas. Que passaram a desempenhar funções distintas
dentro da escola, e, na medida em que a organização do desfile se tornava cada
vez mais complexa, mais elementos se juntavam aos chamados “sambistas”.
Quando, nos anos 60, um grupo de personalidades, ligadas à Escola de
Belas Artes, produziu uma verdadeira revolução no que tange às inovações
plásticas e temáticas nos enredos da Acadêmicos do Salgueiro, o universo do
carnaval via o início de mais uma etapa de uma trajetória que traria as escolas
de samba ao lugar onde hoje estão. Como então, negar, a contribuição
fundamental dada por estas personagens ao carnaval, e mais precisamente as
escolas de samba? Dessa forma é preciso ressignificar a expressão sambista.
Muito se deve a estes novos elementos e muitos dos chamados sambistas
tradicionais ocupam lugar de destaque no universo cultural brasileiro graças ao
gigantismo e a projeção dada a eles pela grandiosidade do espetáculo produzido
por estes carnavalescos. O fato é que tais inovações trazidas por estes
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elementos produziram transformações. Este grupo, liderado por Fernando


Pamplona, tinha participantes que se transformariam nos carnavalescos que
mais carnavais produziriam nas décadas subsequentes. Entre eles figuram
Joãozinho Trinta, Maria Augusta e Rosa Magalhães. Vale lembrar que a última,
por exemplo, conquistou o bicampeonato da Imperatriz Leopoldinense em 1994
e 1995 (“Catarina de Médicis na corte dos tupinambôs e tabajères” e “Mais vale
um jegue que me carregue do que um camelo que me derrube, lá no Ceará”,
respectivamente) e seu tri em 1999, 2000 e 2001 (“Brasil mostra tua cara em...
theatrum rerum naturalium brasilae”, “Quem descobriu o Brasil foi seu Cabral, no
dia 22 de abril dois meses depois do carnaval” e “Cana caiana, cana roxa, cana
fita, cana preta, amarela, Pernambuco... Quero vê descê o suco na pancada do
Ganzá”, respectivamente), Joãozinho Trinta, além de ganhar diversos títulos com
a Beija-Flor de Nilópolis (em 1976 com o enredo “Sonhar com Rei dá Leão”, em
1977, com o enredo “Vovó e o rei da Saturnália na Corte Egípcia”, em 1978, com
o enredo “A Criação do Mundo na Tradição Nagô”, em 1980, com o enredo “O
Sol da Meia Noite: Uma Viagem ao País das Maravilhas” e em 1983 com o
enredo “A Grande Constelação das Estrelas Negras”), fez desfiles memoráveis
como “Ratos e urubus, larguem minha fantasia” (vice-campeão de 1989 com a
Beija-Flor) e “Trevas! Luz! A explosão do universo” (campeão de 1996 com
Viradouro). O que queremos demonstrar com estes dados é a importância que
assume a figura do carnavalesco dentro da escola e do carnaval por elas
produzido. É claro que esta figura vai ser duramente criticada por setores mais
conservadores, mas não se pode negar seu papel.
62

A questão central do debate em torno da figura do carnavalesco enquanto


alguém de “dentro” ou “de fora” da escola é uma das dimensões da tensão entre
o visual e o samba, apontada por Maria Laura Cavalcanti73. Neste jogo, o visual
identifica-se com o aspecto plástico do desfile de responsabilidade direta do
carnavalesco, enquanto o samba identifica-se ao lúdico e festivo mix de música,
canto e dança. Não é à toa que se cunhou o epíteto de escola de samba no pé
para algumas agremiações, sobretudo a Mangueira, em oposição às escolas
luxuosas como a Beija-Flor de Joãozinho Trinta ou a Imperatriz de Rosa
Magalhães. Na maioria das vezes, a dicotomização funcionava apenas no plano
do discurso. As escolas que eram associadas à ideia de samba no pé se
utilizavam tanto dos recursos plásticos como qualquer outra. Por outro lado,
cremos que esta tensão é vital não só para o desfile e a natural disputa, mas
também para a sobrevivência da própria escola. A grande questão é que, ao
reinventar o conceito de enredo, estes carnavalescos também reinventaram o
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próprio desfile.
Se no início da jornada das escolas de samba, nos anos de 1930/40,
quando esta festividade/disputa entrou no calendário do carnaval carioca, o
espaço, o canto, a dança, ou melhor, o individuo era o centro da celebração,
hoje o todo, o coletivo prepondera. Cremos que um grande e interessante
exemplo gira em torno da figura do destaque. Na atualidade, o destaque compõe
o todo de um carro alegórico, ele está inserido na alegoria que o carro
representa. Logo, não traz em si a alegoria, é parte dela. Com isso, sua
presença parece ser diminuta se comparada ao papel por ela desempenhado há
algumas décadas. Mas esta visão é equivocada pois, ao compor o todo, não se
invisibiliza, ao contrário, sua presença na alegoria é tão importante quanto os
possíveis efeitos produzidos nesta mesma alegoria. A ausência do destaque no
carro alegórico leva inclusive, a escola a ser penalizada. Entretanto, já vimos,
por diversas vezes ocorrer uma substituição, por alguma razão, por um
integrante da ala ligada ao carro. Se a escola não foi penalizada por contar com
todos no carro, o efeito da alegoria foi diminuído e a penalização pode ocorrer de
qualquer forma. Antes, o destaque era a própria alegoria. Em tempos de carros
menores, alegorias de mão, a figura imponente do destaque, que vinha no chão,
com sua exuberante fantasia, trazia em si a representação alegórica que ajudava
na compreensão do enredo. Ele era o centro das atenções, por isso vinha
sozinho cercado de importância e símbolo. O que talvez tenha causado maior

73
Refiro-me aqui a obra Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile - Mec/Funarte
63

estranhamento é que a primazia do visual é mais coletiva do que individual. Isso


causou ao sambista mais tradicional uma sensação de anonimato a qual ele não
estava acostumado. Outro exemplo que nos parece interessante está ligado ao
papel desempenhado pela Velha Guarda no desfile. Como o nome já diz, a
Velha Guarda é o lugar da celebração da memória da escola, da tradição. Até
bem pouco tempo atrás, a Velha Guarda vinha como comissão de frente,
apresentando a escola, de casaca, como manda a tradição, para o público e
para a comissão julgadora. Havia nesta função um papel de destaque, era o
primeiro grupo a ser visto por todos. Hoje, a comissão de frente compõe o visual,
faz parte do todo, é uma alegoria do desfile. Coreografada, fantasiada, com ou
sem acessórios, está inserida na lógica do visual. Talvez os exemplos mais
significativos deste novo modelo sejam as comissões de frente do carnavalesco
Paulo Barros e as organizadas pelo coreógrafo Carlinhos de Jesus. A
hegemonia deste novo formato reposicionou a Velha Guarda. Algumas escolas
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encerram o desfile com ela, a pé ou em carros alegóricos, maneira de destacá-


la. Outras a posicionam em carros alegóricos incorporando-as ao visual,
tornando-as menos visíveis. De qualquer forma sempre há certa resistência a
esta suposta “invisibilidade” a que foi relegada. Isto faz da relação entre a Velha
Guarda e os carnavalescos uma relação de constante tensão. Quando
perguntado a respeito, Jandyr Antunes, membro fundador da Sociedade
Recreativa dos Diretores de Harmonia das Escolas de Samba do Estado do Rio
de Janeiro (SORDHESERJ), afirma o seguinte:

Ela não existe. Os carnavalescos têm que engolir porque velha guarda é
velha guarda e baiana é baiana. Mas já tentaram tirar às senhoras da ala
alegando que não aguentavam o peso das fantasias. O convívio do
carnavalesco com a velha guarda é que eles acham que a velha guarda
atrasa o desfile, tanto que tiraram a velha guarda da comissão de frente e
do fim do desfile, botaram no meio para ser empurrada. Dizer que a
convivência é pacífica é mentira!74

Jandyr aponta ainda para outro foco de tensão entre a figura do


carnavalesco e os setores mais tradicionais: a ala das baianas. Como há uma
preponderância do visual, a ala das baianas passa a ser um aspecto deste
mesmo visual. Para tanto, suas fantasias compõem como quase tudo, o enredo.
Desta forma, muitas vezes a fantasia é demasiadamente pesada, dificultando a
participação das tradicionais senhoras. Isso é um tenso lugar de disputa, pois
elas celebram a memória do tempo de origem do samba, que acontecia sobre a

74
Jandyr Antunes e Jayme Machado. Entrevista concedida ao autor.
64

proteção das afamadas baianas da Pequena África. Esta ala mantém presente
também o aspecto ritualístico religioso de matriz afrodescendente (umbanda e
candomblé), tão íntimo ao carnaval das escolas de samba. Junto com a Velha
Guarda, elas representam o sagrado. São tão importantes que uma escola não
pode prescindir de tê-las, sob o peso da penalidade. Há inclusive um número
mínimo de baianas estabelecido pelo regulamento da Liga Independente das
Escolas de Samba. Como equilibrar esta equação entre a tradição e o visual?
Alguns carnavalescos encontram solução na criação de fantasias que utilizam
materiais mais leves permitindo a participação das matriarcas da ala e realização
da gira, coreografia obrigatória das baianas. Além disso, algumas escolas
optaram por posicionar as baianas mais à frente, não sem a oposição ferrenha
dos setores mais tradicionais:

O certo das baianas é lá atrás, ou no meio. Na minha época eu gostava


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de trazer as baianas lá na retaguarda era uma referência a tradição do


samba e das escolas de samba.75

O fato é que ao tentar sobrepor o plástico ao lúdico ou vice-versa, as


escolas criam, recriam, ressignificam e constroem carnavais geniais e se
afirmam mais e mais enquanto espaço de criação do samba. No final plástico e
lúdico viram faces de uma mesma moeda.

A noção de ‘visual’ liga-se intimamente à de espetáculo, que distingue


entre ator e espectador por oposição à ideia de festa, que une os
participantes numa experiência da mesma ordem, e mesmo à de ‘samba’
ou ‘samba no pé’ que valorizam o que há de participativo neste canto e
nesta dança. Certamente a visualidade do desfile enfatiza seu caráter
espetacular. Mas também é certo que as festas carnavalescas, que tem
historicamente a fantasia e a alegoria como parte de seus componentes
centrais, traz a visualidade no seu bojo. (...) Ver, assim como cantar e
dançar, é parte do carnaval.76

Esta nova realidade, que se relaciona diretamente à figura do carnavalesco


que é identificado como símbolo maior de plasticidade, em oposição ao
tradicional sambista, que, com seu gingado, representa o lúdico, tem na figura de
Fernando Pamplona uma espécie de fundador. Pamplona, que começa sua
trajetória no carnaval carioca como jurado, incorporou novas tendências que se
transformaram em paradigmas do carnaval carioca.

75
Jandyr Antunes e Jayme Machado. Entrevista concedida ao autor.
76
CAVALCANTI. Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores
ao desfile, p. 52.
65

A mesma coisa era o carnaval. Carnaval não era meu interesse


fundamental e nunca foi. Era uma expressão cultural, popular e autêntica.
Uma vez, estava conversando no Vermelhinho, que naquela época era o
ponto de reunião do Rio de Janeiro, pois não havia teatro e nem galeria na
Zona Sul. Quem trabalhava com arte se reunia no Vermelhinho, na Araújo
Porto Alegre, em frente à ABI, onde todos os grandes nomes da época se
reuniam. Do Di Cavalcanti ao Pancetti ao Augusto Rodrigues, Mário
Pedrosa, Mário Barata e vai por aí. E um dia, um sujeito chamado Miécio
Tati, que era o copydesk do Jorge Amado, trabalhava no Departamento de
Turismo e Certames, que hoje é a Riotur, e que comandava todas as
festividades no Rio, me convidou para ser jurado e fui júri do carnaval de
1959.77

Pamplona foi responsável, junto com sua equipe, por inovações que irão
mudar vertiginosamente a estrutura do desfile das escolas de samba. Com ele, a
figura do carnavalesco tornou-se parte integrante da escola, participando da
concepção e da organização do desfile. Curiosamente, a chegada destes
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elementos, ligados à Escola de Belas Artes, marca também a entrada em cena


de temas mais populares. Interessante contradição. O carnavalesco, por vezes é
acusado de tornar menos popular o carnaval, mas foi este mesmo carnavalesco
que trouxe pela primeira vez enredos que colocavam o negro com centro do
desfile, mesmo com a resistência dos chamados setores tradicionais:

Ficamos no Salgueiro e começamos a dar vitórias, mas quando cheguei


com um figurino negro, ninguém quis botar, pois estavam acostumados a
colocar Napoleão… Nós chamávamos genericamente a indumentária
barroca de Luís XV.78

Como dizia o saudoso Joãozinho Trinta para justificar o exuberante luxo do


seu carnaval: “Quem gosta de pobreza é intelectual!” O fato é que a figura do
carnavalesco é fundamental para a estruturação do desfile. Com algumas
diferenciações, que podem variar de escola para escola, e desconsiderando
temporariamente uma nova figura instaurada na corte do carnaval das escolas
de samba, o Diretor de carnaval, o carnavalesco tem pleno controle do
desenvolvimento e da preparação do carnaval de uma escola de samba:

A figura do carnavalesco, na minha opinião, todos na escola ficam


aguardando, esperando, ele apresentar o tema enredo, o enredo, e
aprovado ele começa a desenvolver a sinopse para passar para os
compositores para ele s fazerem o samba enredo, apresenta o figurino
geral da escola. Mas ele também tem que apresentar logo a planta dos
77
PAMPLONA, Fernando. Entrevista concedida ao site “O batuque.com”, em 23
de novembro de 2004.
78
Op. Cit.
66

carros alegóricos. Por que primeiro se começa no barracão para depois ir


fazer as fantasias. Então ele tem que montar a planta baixa, fazer o
desmonte todo dos carros do ano que passou para poder montar os novos.
Tem que verificar as ferragens para saber se elas vão aguentar o que ele
quer fazer. É assim que ele começa. Depois ele vai pesquisar o tipo de
fazenda, de tecido para realçar o desfile. E também deve participar
ativamente do processo de escolha do samba enredo, por que ele é que
sabe o que vai botar na avenida. Há tempos atrás o carnavalesco
esperava os compositores apresentarem o samba enredo, ele esperava a
escolha e ia trabalhar em cima do samba vencedor, mas isso já mudou.
Hoje em dia o carnavalesco da opinião e às vezes é até parceiro do samba
enredo.79

Curiosa também esta relação entre o carnavalesco e a escolha do samba


enredo. Sabendo que tal escolha não obedece a critérios unicamente estéticos a
figura do carnavalesco (ainda desconsiderando a nova figura do diretor de
carnaval), tem preponderância na escolha do samba enredo, às vezes
determinando, inclusive, a fusão de dois ou mais sambas. Mas isto não é
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recente. O próprio Fernando Pamplona, em uma entrevista concedida ao


Jornalista, sociólogo e professor do Instituto do Carnaval da Universidade
Estácio de Sá, Bruno Fillipo, fala acerca da escolha de um determinado samba
do salgueiro;

Bruno Fillipo: E dos sambas-enredos?


Fernando Pamplona – Um gênero decadente. Os sambas estão muito
acelerados, mais acelerados do que o frevo. Acabaram com o compasso
do samba.
Bruno Fillipo: Mas o senhor ajudou a consolidar esse tipo de samba
acelerado, ao escolher, no Salgueiro em 71, o samba do Zuzuca, que ficou
conhecido como Pega no Ganzê, pega no ganzá.
Fernando Pamplona – Isso nem samba é! Quem escolheu foi o povo, que
cantava esse samba nas ruas antes de ele ser escolhido. Não era o meu
preferido. Gostava mais do samba do Bala, que era cantado pelo Laíla.
Mas a comissão – formada por mim, pelo Arlindo Rodrigues e pelo Haroldo
Costa – não teve como não aclamar o samba do Zuzuca.
Bruno Fillipo: O senhor arrepende-se da escolha?
Fernando Pamplona – Arrependo-me. Se pudesse voltar no tempo, teria
escolhido o samba do Bala. Era lindíssimo.80

Partindo destas questões, como distinguir a figura do carnavalesco da figura do


sambista? Para alguns a resposta é bastante negativa como identificamos no
discurso daqueles que entendem que estas figuras “invadiram” o universo das
escolas trazendo signos e significados não pertencentes ao universo do samba.

79
Jandyr Antunes e, Jayme Machado. Entrevista concedida ao autor.
80
Entrevista concedida por Fernando Pamplona a Bruno Fillipo. Crédito: O Dia na
Folia. www.odiaonline.com.br
67

Esta posição tem como argumento central o fato de que tais profissionais não
possuem ligação com a escola e que são contratados a peso de ouro e que por
um peso maior podem trocar uma escola por outra.

Agora, o seguinte: que negócio é esse de escola de samba, de repente,


chegar a um nível, isso precisa ser esclarecido, em que tudo é decidido por
um único elemento, por um único carnavalesco, que faz tudo? Chega a um
nível de loucura tal, de abstração tal, de delírio tal em que fica todo mundo
assim, juntando um monte de dinheiro pra escola comprar a figurinista
(aqui, referem-se a Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, ex-alunas — na
Escola Nacional de Belas Artes — e ex-assistentes de Arlindo Rodrigues e
Fernando Pamplona) tal que ganhou o carnaval passado, pra trazer o
carnaval para a nossa escola este ano, vamos ver se a gente acha um
cara que tenha dinheiro para comprar o fulano, vamos trazer esse cara pra
cá etc. (...)81

Tudo isto é verdade e relevante, mas mesmo após ter sido campeão pela
Viradouro e passado por outras escolas, a figura de Joãozinho Trinta ainda não
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pode ser associada à Beija-Flor? E Rosa Magalhães, carnavalesca que não


pertence mais a Imperatriz, não continuará sendo identificada com um
determinado momento desta mesma escola? Ambos não foram figuras
importantes para as respectivas escolas? Mesmo recebendo salários, não teriam
nenhuma ligação com as escolas? Se respondermos com um sim a estas
perguntas, não poderíamos então denominá-los sambistas? É claro que tudo isto
pode e precisa ser relativizado, porém, estas questões sinalizam um
alargamento para a definição de sambista. A fidelização do indivíduo com uma
dada agremiação precisa ser posta sob discussão. O fato é que hoje esta
suposta fidelidade se dá em relação ao carnaval e não mais em relação a uma
escola. Mesmo podendo identificar a figura de um ou outro carnavalesco com
uma dada agremiação, conforme exemplificamos acima, o que de fato é
produtivo é identificar a figura deste indivíduo com o carnaval das escolas de
samba. Muito embora, por exemplo, não seja possível estabelecer uma relação
visceral entre Milton Cunha e uma escola específica, é perfeitamente possível
identificá-lo com o carnaval das escolas de samba. Dominguinhos do Estácio
não está na Estácio e nem por isso deixamos de ver nesta personalidade uma
figura ligada ao samba e as escolas de samba. Alguns mestres tradicionais de
baterias, como Odilon, Ciça e tantos outros, também mudam de escola. O
próprio Odilon que começou na União da Ilha teve uma breve passagem pela
Beija Flor e se firmou na Grande Rio, de onde já saiu. Então, estando hoje na

81
Paulinho da Viola. In. Suplemento especial - O correio brasiliense - 22 de janeiro
de 1978.
68

Portela, amanhã na Mangueira e depois na Vila Isabel, um carnavalesco vai ser


sempre identificado, mesmo não estando em nenhuma agremiação, com o
carnaval das escolas de samba, muito embora, para Renato Lage e Rosa
Magalhães, em palestra proferida no Centro Cultural Banco do Brasil:

A cada ano que passa dentro do barracão, o carnavalesco tem que


aprender a se adaptar aos fatores novos e particulares de cada
agremiação. Os dois destacaram que a continuidade no trabalho dentro
das escolas de samba é muito importante e que o carnavalesco que vive
trocando de uma para outra acaba perdendo sua identidade artística.82

Agora, a bem da verdade, esta prática é bastante comum. O próprio


Jandyr Antunes, que hoje continua militando no carnaval das escolas de samba,
sem ter ligação específica com alguma agremiação, já foi diretor de harmonia na
GRES Em Cima da Hora, GRES União da Ilha do Governador e GRES
Caprichosos de Pilares. Com relação aos ritmistas este fato é ainda mais
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comum. Um ritmista desfila em mais de uma agremiação em um mesmo ano,


muito embora tenha lá sua escola de coração.
A relação entre o tradicional sambista, aquele que nasceu e cresceu em
torno da escola (como Cartola na Mangueira, Candeia na Portela, Djalma Sabiá
no Salgueiro ou tantos outros menos famosos, mas não menos importantes,
como o já citado Jandyr Antunes, ex-diretor de harmonia da Caprichosos de
Pilares, ou Jayme Machado, ex-diretor de harmonia da Vila Isabel) e os
carnavalescos sempre foi complexa. O sucesso ou o fracasso desta relação
dependia muito da forma como o carnavalesco chegava na escola. Numa
entrevista concedida por Renato Lage e Lílian Rabelo à Maria Laura em 1992,
Lílian dizia:

(...) quando resolvemos falar da história da escola, fomos à Favela do


Vintém, conversar com todo mundo (...) A Velha Guarda que tem lá o seu
canto (...). Ora, são os fundadores. Nós chegamos perguntando pela Velha
Guarda, eles ficaram muito contentes e isso pegou muito bem (...)83

É o próprio Pamplona que também vai afirmar que, quando chegou no


Salgueiro no início dos anos 1960, contava com a colaboração destes elementos
ligados à tradição:

82
Trecho retirado do portal: ”O Terminal Carnavalesco”
83
CAVALCANTI. Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores
ao desfile, p. 61
69

Naquela época eu fazia o risco. Chamávamos de ‘esbolceto’ ou croqui.


Mas o povo do morro falava risco. Eles sabiam português mais do que a
gente. Eles perguntavam se podiam mudar: ‘Posso mudar aqui e ali?’. Eu
tive muita colaboração. Eu aprendi mais com o morro do que o morro
comigo. Ficamos no Salgueiro e começamos a dar vitórias, mas quando
cheguei com um figurino negro, ninguém quis botar, pois estavam
acostumados a colocar Napoleão… Nós chamávamos genericamente a
indumentária barroca de Luís XV.84

Este sambista, reverenciado por Lílian Rabelo e por Fernando Pamplona


nas citações anteriores, é o elemento ligado às tradições. É ele quem faz da
escola um lugar de celebração da memória do samba carioca. Ele é quem
garante a manutenção do espaço sagrado da própria escola. Sua presença na
Escola é de suma importância para que a mesma continue a cumprir seu papel
histórico, mostrar ao povo como as camadas populares sabem fazer o carnaval.
Ele está ligado a uma comunidade, talvez imaginária, se levarmos em conta que
as fronteiras geográficas se alargaram, que identifica a escola. É o morro, o
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mesmo morro de onde brotou o samba, é a favela, espaço urbano da periferia.


Este sambista representa a ligação entre a territorialidade e o samba. Vila
Vintém e Mocidade, Ramos e Imperatriz, Nilópolis e Beija Flor, e tantos outros
casamentos perfeitos, pares perfeitos, que não se cansam, ao contrário se
encantam mais e mais. Para compreender melhor esta relação basta perceber a
ligação entre Unidos da Tijuca e o morro do Borel, mesmo que, por razões
alheias à vontade geral, a escola tenha que realizar seus ensaios distante da
comunidade, em sua moderna quadra na região central da cidade85. É verdade
também que, como qualquer relacionamento, este também teve seus momentos
de crises que se traduziram em momentos de distanciamento entre a
comunidade e a escola, normalmente por conta de exageros de um modelo
grandioso de desfile, por conta de um excessivo interesse financeiro, que levou
algumas agremiações a encher seus desfiles de alas de turistas86. Elas
pagaram um preço alto por conta desta opção. Hoje o que vemos é um
movimento de retorno na direção de suas comunidades. Não apenas no seu
aspecto geográfico, mas, fundamentalmente no aspecto místico que envolve a

84
Entrevista concedida por Fernando Pamplona a Bruno Fillipo. Crédito: O Dia na
Folia. www.odiaonline.com.br
85
A atual quadra da escola, localiza-se em frente a antiga estação de trem da
Leopoldina, na Avenida Francisco Bicalho.
86
Entendemos aqui turista, não necessariamente como alguém que vem de fora
do estado ou do país. Há muitos componentes que vem de longe mas que construíram
um enorme laço de afinidade com a escola, e acaba desfilando como um componente
local. O turista, para nós é aquele indivíduo que compra a sua fantasia, se embebeda e
passa o desfile inteiro fazendo tudo, menos desfilar.
70

paixão entre um componente e sua escola do coração. Este fenômeno se iniciou


com a Beija-Flor, principalmente após a formação da comissão de carnaval
encabeçada pelo Laíla. Esta ligação sempre foi grande e teve nos seus
patronos, Farid Abrão David e Anísio Abraão David, elementos que solidificaram
esta parceria. Hoje é inegável que o diferencial da Beija Flor não está apenas no
luxo de seus desfiles, cuidadosamente preparados, tecnicamente perfeitos, mas
sim na energia que emana da comunidade envolvida no desfile. Muito mais de
cinquenta por cento dos componentes têm ligações diretas com a escola e com
o município87, em muitos casos esta ligação é profissional. Agora é importante
salientar que hoje, muito mais que geográfico, o paradigma de comunidade está
associado à agremiação. A comunidade da GRES Vila Isabel, por exemplo, não
se restringe mais ao bairro homônimo ou aos morros dos macacos e pau da
bandeira, mas sim a própria escola.88
A figura do patrono, ou presidente de honra, possibilitou a entrada desses
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novos elementos dentro das escolas. Se for possível se falar em um novo


modelo de carnaval, deve-se associá-lo, inicialmente, aos próprios presidentes
de honra. Estes indivíduos acabam atuando como uma espécie de mediador na
difícil relação entre o sambista tradicional e o sambista profissional, carnavalesco
ou diretor de alguma coisa, não importa. Esta relação tão importante para a
escola sempre é mediada pela figura do patrono, ou em alguns casos dos
presidentes eleitos. São eles que, no fim das contas, escolhem o profissional
que vai contratar para a sua agremiação, seja um intérprete, um carnavalesco ou
até um casal de mestre sala e porta bandeira. Se em algum ano um dado
quesito não foi bem desenvolvido pela escola, muitas das vezes se vai buscar a
solução fora dela, contratando. E é este patrono, presidente de honra quem vai
realizar a contratação. É a figura que muitas das vezes é capaz de reunificar as
tendências diversas que existem dentro de uma escola, que também é palco de
disputas políticas. Basta lembrar a debandada em massa de personalidades
históricas da Portela, como Paulinho da Viola e Candeia, que discordavam dos
caminhos traçados pela nova administração de um grupo ligado a Carlinhos
Maracanã. Candeia vai fundar o Grêmio Recreativo Escola de Samba e Artes
Negras Quilombo dos Palmares, buscando uma espécie de retorno a um
purismo que provavelmente nunca existiu. Outros dissidentes foram fundar a
Portela é Tradição que por questões legais virou apenas Tradição, administrada
por um grupo ligado ao falecido Natal, histórico presidente da Portela, aliás,

87
A Beija Flor esta localizada no município de Nilópolis, baixada fluminense.
88
Trataremos melhor deste assunto no próximo capítulo.
71

grupo que em sua maioria retornou à Portela após a vitória eleitoral do atual
presidente. De qualquer forma, foram estes patronos ou presidentes de honra
que deram a partida para este novo modelo de carnaval, que tem na figura do
carnavalesco a personagem principal, o protagonista, pelo menos durante a
preparação do desfile. Vale lembrar que a Liga Independente das Escolas de
Samba foi fundada a partir da dissidência de dez das maiores escolas de
sambas do Rio de Janeiro: Acadêmicos do Salgueiro, Beija-Flor de Nilópolis,
Caprichosos de Pilares, Estação Primeira de Mangueira, Imperatriz
Leopoldinense, Império Serrano, Mocidade Independente de Padre Miguel,
Portela, União da Ilha do Governador e Unidos de Vila Isabel. Interessados em
impor um conjunto de mudanças que objetivavam modernizar o desfile, estes
presidentes, liderados pelo então presidente da Mocidade Independente, Castor
de Andrade, criaram o primeiro esboço de estatuto (escrito pelo advogado
Randolfo Gomes) da LIESA.
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Cada tentativa de investir na qualidade do espetáculo era rejeitada. Os


impasses geravam desentendimentos, levando questões do samba para o
lado pessoal. Só havia uma solução para resolver o entrave: a dissidência.
E esta não demorou a acontecer.
De uma conversa entre o então presidente da Unidos de Vila Isabel, Ailton
Guimarães Jorge, com o amigo Castor de Andrade, presidente da
Mocidade Independente de Padre Miguel, surgiu a luz que tiraria da
escuridão as maiores Escolas de Samba da Cidade. Castor prometera
buscar uma saída para os descontentes. A solução viria dias depois, já em
forma de minuta de Estatuto esboçado pelo advogado Randolfo Gomes.89

Neste mesmo momento (24 de julho de 1984) era eleito provisoriamente


presidente da LIESA Castor de Andrade. Era dado o pontapé inicial para que o
desfile ganhasse o gigantismo que tem hoje. Não que ele já não fosse grande,
apenas tornou-se maior, e as escolas mais ricas, pelo menos algumas. Este ano
a LIESA completou 25 anos de existência e transformou-se não apenas na
organizadora do desfile, mas também num centro de referência do carnaval
brasileiro. Na sua presidência já passaram alguns dos patronos mais importantes
da história mais recente do carnaval carioca: Anísio Abrahão David (1986), Ailton
Guimarães Jorge (1987 - 1993 e 2001 - 2007) e tantos outros. Estes patronos
muitas das vezes financiavam parte das escolas, fato que é cada vez mais
irrelevante, em função das cotas de patrocínio conseguidas pelas escolas.
Alguns nomes foram responsáveis diretos por momentos memoráveis de
algumas escolas. Administrando de forma peculiar cada um destes patronos, as

89
http://liesa.globo.com/2012/por/02-liesa/02-liesa_principal.htm
72

vezes substituídos por parentes, davam a sua escola, sua feição. Vejamos a fala
de Paulinho de Andrade, filho de Castor de Andrade, numa entrevista a Maria
Laura:

Paulinho de Andrade afirma: ‘Nossa administração na Mocidade, minha e


do meu pai, é confiar no trabalho das pessoas que você contrata. Eu não
sei acompanhar cronograma, eu não sou fiscal. Mas, no final eu vou cobrar
o projeto (...). A gente sempre conseguiu se dar bem com os grandes
carnavalescos por causa disso. Essas pessoas são artistas, criam. Criar
não tem tamanho. Quando você vai criar alguma coisa, você se transporta
para o universo. A Mocidade sempre permitiu que as pessoas criassem o
que quisessem. O Arlindo uma vez resolveu que a Mocidade ia sair de
cabeça raspada e ela saiu. O Fernando Pinto, que a bateria ia de saiotinho
de índio. O Renato resolveu botar a bateria de gato com rabinho e saiu.
Porque a gente acredita na capacidade criativa do artista então esse é o
grande trunfo da Mocidade para com eles. Então o cara vem trabalhar e
começa a se sentir à vontade’90
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De um lado sambistas tradicionais, comunitários, que vivem todos os dias


de sua vida orbitando em torno de sua escola. Homens e mulheres que dedicam
a vida ao carnaval. Ritmistas, diretores, Velha Guarda, anônimos, não importa.
Estes elementos são fundamentais para a escola, e seja o modelo que for, estes
homens e mulheres não podem ficar de fora. Eles são a alma, a memória da
escola. De outro, os carnavalescos. Artistas de formação acadêmica, mas
ligados profundamente ao carnaval. Elementos que ajudaram a projetar a escola,
e seu carnaval, a lugares inimagináveis, capazes de produzir desfiles
memoráveis como “Kizomba, festa da raça” (Milton Siqueira, Paulo César
Cardoso e Ilvamar Magalhães - Vila Isabel, 1988) e “Trevas! Luz! A explosão do
universo” (Joãozinho Trinta e Wany Araújo - Viradouro 1997). Figuras tão
importantes quanto os setores mais tradicionais. Estes novos sambistas
ajudaram a projetar a escola para o lugar onde estão hoje, beneficiando,
inclusive os setores mais tradicionais com quem , como já dissemos, mantêm
uma relação de amor e ódio, mas visceral. Mediando toda esta relação, de forma
muito particular está a figura do patrono. Com mais ou menos força, estes
indivíduos administraram estas relações e possibilitaram o crescimento das
escolas. Não são fenômenos recentes. Quem não se lembra do já citado
lendário Natal da Portela, protagonista, de fato ou não, de episódios memoráveis
e curiosos. Estes são os personagens que vivem a tensão entre o lúdico e o

90
CAVALCANTI. Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores
ao desfile, p. 70/71
73

visual, entre a tradição e a ruptura. Confrontam-se numa relação dialética91 sem


que necessariamente haja uma síntese. Deste confronto nasce o “maior
espetáculo da terra”, que se reinventa a cada ano. A cada calendário “litúrgico”
do carnaval este espetáculo se renova, para o bem ou para o mal, sendo
“aplaudido” ou rejeitado. Esta constante e tensa reinvenção só é possível pela
existência destas três personagens fundamentais do samba: o sambista
tradicional, o sambista carnavalesco e o patrono92. Como já dissemos, são
personagens congruentes de uma única realidade e acabam por fazer, juntos,
uma releitura das tradições do carnaval carioca, e um espetáculo grandioso.

3.3.
A indústria cultural

Para iniciarmos o diálogo com o terceiro elemento deste tripé (samba,


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sambista e indústria cultural) cabe ressaltar que tomaremos, em parte, como


referencial teórico para conceituar o que seria indústria cultural, os escritos da
Escola de Frankfurt, em especial a “Dialética do Esclarecimento”, de Adorno e
Horkheimer. Entretanto, há que se dizer que não tomaremos este conceito
radicalmente. O que pretendemos é compreender o que Adorno entende
enquanto indústria cultural, para, a partir daí, efetivemos uma leitura mais
particular e proponhamos uma releitura do conceito à sombra da relação
específica existente entre o samba e a indústria cultural, e de que forma esta
suposta relação se desdobra.
Segundo Adorno, na Indústria Cultural tudo se torna negócio. Enquanto
negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e
programada exploração de bens considerados culturais93. Neste sentido, a
produção cultural seria o produto desta indústria. Uma leitura mais minuciosa da
crítica de Adorno à cultura de massa nos permitirá perceber que, na realidade, o
que está em questão não é a cultura popular, mas sim a indústria cultural.
Desconsiderando a ideia de inferioridade, entendemos que a cultura popular é,
para a indústria cultural contemporânea, um excelente produto, por ser
apreciado por um quantitativo relevante de consumidores. Se tal produção se

91
Referimo-nos a dialética negativa, desenvolvida por Adorno em sua obra,
Negative Dialectics (London: Routledge e Kegan Paul, 1973.).
92
Alguns modelos contemporâneos de administração de escolas de samba a
figura do patrono é substituído por um elemento pertencente historicamente à escola e
que chega a presidência via eleição.
93
T. W. Adorno, Os Pensadores. Textos escolhidos, “Conceito de Iluminismo”.
Nova Cultural, 1999.
74

estender para outras faixas de consumo, como por exemplo, a classe média94,
melhor. Daí os investimentos para, do ponto de vista do consumo, transformar a
produção cultural em um produto transclassista. Ora, na sociedade industrial
típica do século XX (que se difere do século XIX e do XXI) na qual a velocidade
da informação assume papel fundamental para a concepção da própria
materialidade da cultura, é possível que haja uma tendência quase natural a se
valorar mercadologicamente inclusive a produção cultural. Para alguns autores,
há na realidade um deslocamento da qualidade para o paradigma do consumo:

Esses produtos passaram por uma hierarquização quanto à qualidade, no


sentido de privilegiar uma quantificação dos procedimentos da indústria
cultural, não há uma preocupação exata com seu conteúdo, mas com o
registro estatístico dos consumidores.95

Desta forma, a indústria cultural tem como referência o consumidor, daí


demanda sua necessidade natural de massificação da produção cultural e do
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acesso à mesma. Busca-se criar uma espécie de sentido de consumo


construído, não pela vontade do consumidor, mas por uma espécie de imposição
de valores externos aos objetos da produção cultural. “O valor do uso é
absorvido pelo valor de troca em vez do prazer estético, o que se busca é
conquistar prestígio e não propriamente ter uma experiência do objeto”96. Em
realidade, a posição de Adorno é a de que o capitalismo entende o prazer como
parte integrada da alienação do trabalho. Ou seja, para Adorno, a indústria
cultural de massa reproduz, assim como o ambiente da produção material, a
mesma alienação. Não haveria, então, diferenciação entre o trabalhador e o
consumidor da indústria cultural de massa. Quão maior for a fronteira de
consumo de um determinado bem, cultural ou não, melhor. Para tanto, faz-se
necessário constantemente ressignificar o sentido da produção. Ora, uma dada
produção cultural inserida dentro de uma lógica industrial/comercial não pode
ficar restrita aos signos de seus produtores, sob pena de não atingirem as
massas.

A diversão no capitalismo tardio é o prolongamento do trabalho. É


buscado como um escape do trabalho mecânico, e como um
restabelecimento da força para poder lidar com ele novamente. No
entanto, a mecanização domina o lazer e a felicidade do trabalhador em
descanso, e determina tão profundamente a produção dos bens de

94
Entendemos aqui, que as camadas populares são de fato consumidoras, mas
que para a lógica do mercado quanto maior for o mercado melhor.
95
COSTA, Alda Cristina Silva da e outros. Movendo ideia, p.13. Junho de 2003.
96
Op. Cit. p.14
75

diversão que suas experiências são inevitavelmente pós-imagens do


próprio processo do trabalho.97

Entretanto, não cremos que o sujeito popular, individual ou coletivamente,


não participe destes produtos culturais, ao contrário, cremos que ele é
protagonista. O que se tem, em verdade, é um jogo no qual a indústria cultural
massifica aquilo que teoricamente estaria restrito a um determinado grupo. Esta
massificação não é necessariamente ou unicamente danosa. Se ela repete no
campo do entretenimento as relações de domínio do capital sobre o trabalho,
também abre uma brecha na qual tais produtores acabam se afirmando como
protagonistas de um produto cultural que chega a esferas sociais até então
inimagináveis. Este produtor popular, individual ou coletivamente, como já
dissemos não é tão inocente assim. Sabe como poucos se valer dos
mecanismos que se sobrepõem a ele. É o bilontra de José Murilo de Carvalho
em sua obra Os bestializados, ou ainda o malandro de Antonio Cândido
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(guardando, é claro, as devidas proporções). Se, em Adorno, experimenta-se a


contradição de sua negação sobre a possibilidade da existência do prazer e do
oferecimento do mesmo prazer pela massificação dos bens culturais realizada
pela indústria do entretenimento, neste novo olhar – em que os segmentos
populares também usam a indústria cultural para dela tirar proveito – abre-se,
então, a possibilidade real do prazer contido na materialização e massificação
destas produções culturais populares.
É claro que, ao propor esta vertente de leitura na qual as camadas
populares sabem também como tirar proveito da massificação produzida pela
indústria cultural, não negamos o óbvio que está explicito em algumas
características impostas a determinadas produções culturais, que
necessariamente não vêm de estratos populares. Nestes casos, a lógica do
controle proposta por Adorno fica bem visível. Talvez o exemplo mais nefasto da
parceria entre a indústria cultural e a produção artística esteja na
teledramaturgia. Em sua maioria, não em sua totalidade, por que se assim
pensássemos estaríamos cometendo alguns equívocos. Mas o fato é que, na
maioria das produções, os graves problemas sociais brasileiros são esmaecidos
e passam quase despercebidos. Normalmente, a relação entre patrão e
empregado ou é dada numa esfera de parcerias inimagináveis no nosso dia a

97
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER,Max. Dialética do esclarecimento:
.
fragmentos filosófico,. p.123
76

dia ou então a relação é tão cruel que tal crueldade não se dá por conta das
naturais relações de exploração capitalista, mas por uma espécie de psicopatia
lombrosiana da personagem. Mas esta também não é uma verdade absoluta, e,
curiosamente, no caso específico das produções populares, o diálogo se dá de
forma bem diferente. É claro que, por conta desta possibilidade, esta produção
passa a ter contato diverso e precisa ressignificar seus conteúdos à luz deste
novo diálogo, desta nova correlação de forças, desta nova dinâmica estabelecida
na relação capital/trabalho:

Se atentarmos para o fato de o capitalismo industrial ter alterado as


relações de força e exacerbado as lutas em torno das culturas das classes
populares, perceberemos que, em muitos casos, a questão da hegemonia
realmente se manifesta por meio de um conflito entre doutrinação e
resistência. No processo de consolidação deste processo produtivo,
práticas sociais e formas diferenciadas de vida foram substituídas, caíram
em desuso ou se marginalizaram, no entanto, é necessário que se
reconheça que as culturas populares sempre estiveram entre as forças
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atuantes na sociedade capitalista e que nunca puderam ser apreendidas


como sistemas exteriores a ela.98

Desta forma, a produção cultural popular que vai ser difundida ou


massificada pela indústria cultural não pode mais ser rotulada como algo puro,
imaculado. Aliás, esta é uma impossibilidade intrínseca à própria materialidade
da cultura. A noção de purismo cultural é equivocada na sua própria essência, a
ideia de que se pode encontrar o suposto DNA de uma determinada produção
cultural é tão infrutífera quanto imaginar ser possível se produzir culturalmente
na sociedade contemporânea sem dialogar com a indústria do entretenimento.
Não há nada mais equivocado que se propor uma manifestação cultural de
raiz99. É obvio que, mesmo compreendendo o papel que a indústria cultural
desempenha e as perdas e os ganhos do diálogo com este fenômeno, não
abandonamos a crença de que as manifestações de cultura popular cumprem
um papel de contenção e enfrentamento, que não se dá fora de um contexto
marcado pela massificação. Mais adiante, discutiremos a possibilidade da
existência de uma estratégia por parte dos segmentos sociais que usam a
indústria cultural para constituírem um espaço de fala cada vez mais amplo e
que chega cada vez mais longe atingindo setores da sociedade impensáveis
sem a massificação proposta/produzidas por esta mesma indústria cultural. O

98
SILVA, Anna Paula de Oliveira Mattos; DINIZ, Júlio Cesar Valladão. Pindorama,
onde o samba é mais puro: o discurso da tradição na política, na crítica e no mercado
musical brasileiro, p.49.
99
Refiro-me aqui à ideia de samba de raiz popularmente veiculada para apontar
uma produção musical sem as interferências dos tempos presentes.
77

confronto se dá em uma arena muito mais ampla e proveitosa do que se


imagina.
O que não se pode negar também é que a relação entre a produção
cultural popular e a indústria cultural é mais antiga do que se pensa. Não é
nenhuma novidade a massificação do popular. A própria travessia que o samba
faz do anonimato à condição de música nacional passou necessariamente pela
massificação do produto samba. Foi fundamental abranger o universo de
consumo do samba para que fosse construída, ou, se preferirmos, inventada a
tradição do samba, como símbolo da “nação” brasileira. Este projeto, levado a
cabo pelos idos de 1930, juntou forças e desejos bastante congruentes. Como já
dissemos, havia o Estado desejoso de refundar o Brasil em matrizes mais
híbridas, havia a indústria cultural percebendo neste fenômeno um significativo
negócio e havia o samba, querendo afirmar-se enquanto materialização de uma
cultura dominante. Dessa forma, para que se inventasse a tradição de que
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brasileiro naturalmente gosta de samba, foi necessário alargar o consumo deste


“produto” e a parceria entre o Estado e os meios de massificação, em parte
controlados pelo próprio Estado. Não podemos perder de vista que o estado
autoritário – que se construía a, partir de 1930 e se consolidava em 1937 – foi
eficiente para todas as partes envolvidas.
Se as escolas de samba viveram também de perto este fenômeno, com o
gênero musical a relação ainda é mais antiga. A profissionalização do músico
popular remonta ainda as primeiras décadas do século XX. Em sua obra “Nem
do morro nem da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural”,
José Adriano Fenerick afirma que, já num período anterior à década de 1920, o
músico popular precisou se profissionalizar e, para tanto, abrir mão de
determinadas características como exigências naturais do processo de
profissionalização.

Mesmo antes da década de 1920, para o sambista se afirmar como


indivíduo-autor-compositor, de certo modo, era preciso afastar-se um
pouco de seus núcleos comunitários, como ocorreu, por exemplo, com o
episódio, sempre lembrado pelos estudiosos do assunto, das brigas entre
Donga e os frequentadores da casa da Tia Ciata, por ocasião do registro
da autoria do ‘Pelo telefone’. Os novos meios de comunicação de massa
que se instauravam nesse momento, ainda que precariamente, de certo
modo, aceleravam este processo de individualização do sambista (...)100

100
FENERICK, José Adriano. Nem do morro nem da cidade: as transformações do
samba e a indústria cultural (1920-1945), p. 139/40
78

O fato é que a transformação do músico em profissional acabava por


cumprir também um desejo intrínseco ao sambista: ganhar notoriedade. Aliás,
este desejo está na alma da fundação das escolas de samba e de sua trajetória
até hoje.101 A profissionalização e a massificação da produção musical de um
dado autor, dava a ele a notoriedade que desejava, um tipo de aceitação social
que os iniciais anos da República Velha negava a tudo que de alguma forma
lembrasse o popular. É claro que, a partir deste dado momento, a produção
musical passou obedecer a uma lógica imposta pela indústria cultural,
principalmente com o desenvolvimento das gravadoras. Isto fez com que autores
viessem transformar cenas cotidianas, transclassistas, em obras musicais
populares, principalmente sambas. Ainda segundo José Fenerick, Sinhô é o
grande representante deste momento/fenômeno:

O tempo do reinado de Sinhô marca o início da substituição, ainda que


nunca integral, da produção artesanal do samba, feito aos poucos e com
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um indeterminado tempo de maturação nas rodas de samba dos pagodes


cariocas, pela produção industrial, com seu ritmo de produção em série
que, de certo modo, obrigava aos compositores a utilização de temas
musicais oriundos dos mais diversos meios socioculturais, para suprir as
necessidades cada vez maiores da recente indústria de diversão que se
instalava no Rio de Janeiro neste período.102

Citamos aqui Sinhô, mas poderíamos citar Donga ou Pixinguinha ou


qualquer outro. Abria-se caminho para uma relação bem próxima entre o
sambista e a indústria cultural. Estes exemplos nos mostram que a relação é
bem antiga. Se hoje se discutem determinadas imposições que alteram isso ou
aquilo na produção do desfile, na sua transmissão ou ainda na composição do
próprio samba enredo, é fundamental que se perceba que esta relação, via de
mão dupla, é mais antiga do que se imagina e traz benefícios para ambos os
lados. A indústria fonográfica ia pouco a pouco ajudando a popularizar uma
música, ouvida até pouco tempo atrás, apenas pelos escolhidos frequentadores
das casas das tias ou das rodas. No ano de 1925 (no Brasil, em 1927) uma
verdadeira revolução na indústria do entretenimento alavancaria ainda mais a
produção musical dos artistas populares ligados ao samba: a primeira gravação
por sistema elétrico, o que tornou ainda mais eficiente esta realidade,
possibilitando registros mais amplos e com mais qualidades nos famosos discos
de rotação 78 e um número maior de instrumentos que impactavam mais e

101
Discutiremos mais profundamente esta questão no próximo capítulo.
102
Op.Cit. p.146
79

tornava o produto mais desejoso, além de ampliar ainda mais o consumo e os


estratos sociais consumidores.
Para finalizar, vale lembrar a importância que a gravação dos sambas
(Inicialmente em compacto simples pela Caravele e, posteriormente, em LP, pela
Top Tape. Atualmente os CD’s são responsabilidade da própria LIESA ) enredos
representam para os compositores das escolas de samba e para o próprio
carnaval. O registro do samba enredo também o transformou num produto
comercializável e deu notoriedade a alguns compositores de diversas escolas,
como Noca da Portela, Silas de Oliveira e tantos outros. É fato que, por conta de
uma série de necessidades, interesses e outras coisas mais, o samba enredo
acabou sofrendo algumas modificações na sua estrutura melódica,
principalmente por conta do rígido tempo de faixa.
Outro aspecto relevante é a divulgação do samba por meio da rádio, cuja
relação com a indústria cultural tem como marco fundamental o decreto lei
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assinado em 1932 pelo então presidente provisório do Brasil, Getúlio Vargas. Tal
decreto permitia a divulgação de propaganda pelo rádio, ajudando a
profissionalizar este veículo de transmissão de informação e entretenimento.
Este fato foi benéfico a diversos setores. Aliás, cumpre lembrar que o Presidente
Vargas vai utilizá-lo amplamente para as propagandas oficiais do Estado,
principalmente a partir da criação da “Hora do Brasil”.
Este momento tem um protagonista, Ademar Casé, considerados por
muitos como o primeiro radialista profissional do Brasil. Casé trabalhava na
Rádio Philips do Brasil, que, segundo Fenerick, havia sido fundada para
“aumentar a venda de seus aparelhos receptores domésticos”103. A experiência
de Casé como radialista aponta um fenômeno bastante interessante: a
preferência pela música popular. Graças à dinâmica proporcionada pela entrada
da propaganda, descortinou-se uma série de programas de rádio. O programa
de Casé, iniciado em meados da década de 1920, dividia-se em duas partes de
duas horas cada. O acesso do ouvinte feito, já naquela época, por telefone, era
muito maior nas primeiras duas horas em que só se tocava música popular,
principalmente sambas. Isso provocou, mais tarde, uma mudança de
programação: tocava-se apenas músicas populares. O fato preponderante que
nos interessa é que, à medida que as “ondas do rádio” avançavam, o samba se
popularizou ainda mais, exigindo uma produção em série ainda maior e dando
mais notoriedade aos compositores. É fato também que esta popularização fez

103
Op.Cit. p.168
80

com que cada vez mais entrassem no universo do samba compositores oriundos
de segmentos sociais mais diversos. O samba mantinha o seu telhado amplo,
que, como já dissemos, abrigava muita gente, de muitos lugares.
Alguns autores vão apontar neste fenômeno mais um passo no processo
de domesticação do sambista, o que não é inverdade. A profissionalização do
rádio exigiu-lhe uma postura profissional. Se a autoria obrigou-o a abandonar,
em parte, seu senso de coletividade – dizemos em parte por que este senso
ainda está presente, em maior ou menor escala, ma relação entre sambistas – a
divulgação do rádio exigiu uma conduta profissional diferente da figura do
malandro, daí alguns autores se utilizarem da expressão “o malandro
regenerado”:

(...) Mas o malandro pra valer/, não espalha/, aposentou a navalha,/ tem
mulher e filho/ e tralha e tal./ dizem as más línguas/ que ele até trabalha,/
mora lá longe chacoalha/ num trem da central (...)104
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Mas não nos faltam histórias que apontam certa dificuldade na relação
entre o sambista e a exigência de profissionalização. Fenerick transcreve parte
de um depoimento do próprio Casé acerca das dificuldades com o sambista Noel
Rosa:

Noel Rosa era um pândego. Um moleque na melhor expressão da


palavra. Um dia, peguei-o chegando ao elevador da emissora às duas da
tarde, quando deveria ter cantado uma hora antes. Passei-lhe uma
descompostura, mas ele não se alterou e virou-se para mim, com a cara
mais santa do mundo e disse: ‘Casé, eu não pude fazer nada, o bonde
furou o pneu...’ Em outras vezes, se desculpava dizendo que esquecera
onde ficava a Rádio Philips, indo cantar em Cascadura. Mas a maior do
Noel foi quando ele tinha um programa marcado para meio-dia e não
apareceu. Lá pelas três da tarde, foram encontrá-lo dormindo atrás do
piano do estúdio, certamente, depois de mais uma noite de farra. Mas,
novamente, ele não perdeu a pose e retrucou num tom de indignação que
beirava o deboche: ’se eu não cantei até agora foi por que ninguém me
acordou, estou aqui desde as onze da manhã.105

O malandro não estava tão regenerado assim. De qualquer forma, a


indústria cultural, a partir da popularização do rádio, foi pouco a pouco impondo
um índice de profissionalização desconhecido no universo do samba. Se, no
início, o sambista – bem como o artista de modo geral – ganhava por

104
“Homenagem ao Malandro”. Chico Buarque de Holanda, 1977/1978. Ópera do
Malandro.
105
Ademar Casé in, CASÉ, R. Programa Casé:o rádio começa aqui. Rio de
Janeiro: Mauad, 1995. p. 56/57. appud, FENERICK, José Adriano. Nem do morro nem
da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural (1920-1945), p. 172.
81

apresentação, aos poucos as rádios foram montando seu grupo de fixos. Esta
modalidade inseriu definitivamente, mas não totalmente, o sambista no mundo
do trabalho. Importante ainda ressaltar que a “época de ouro do rádio” se dá
durante a primazia da afamada Rádio Nacional. Fundada em 1936, ela vai se
tornar símbolo deste poderoso instrumento de difusão de cultura e informação.
Entretanto, vale dizer que, se por um lado a popularização do rádio foi um
poderoso instrumento para alavancar o samba à qualidade de símbolo nacional,
atendendo, como já dissemos, aos interesses da indústria cultural, do Estado e
do próprio sambista, também é verdade que o número de artistas negros que
tinham uma posição de destaque no universo radiofônico era muito pequena. O
sambista negro, do morro ou do subúrbio, compositor, via seu produto ganhar
notoriedade, mas quase sempre sendo interpretado por uma artista branco,
vestido a rigor, como, por exemplo, Francisco Alves que, segundo Carlos
Sandroni, foi o maior veículo da difusão do samba carioca no início do século:
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Entre os vários critérios possíveis para realizar esta seleção, escolhi o de


escutar todas as gravações de um cantor: Francisco Alves (1898-1952).
Um dos maiores que o Brasil já teve”,Chico” Alves, “Chico Viola” ou o “Rei
da voz”, como também era conhecido, foi o principal veículo da difusão em
larga escala das primeiras composições de Ismael Silva e seus amigos.106

Era necessário romper com a imagem de malandro associada ao samba.


Neste fértil período, numa disputa fantástica entre Noel Rosa e Wilson Batista,
ficava evidente esta questão. Quando, em 1933, Wilson Batista compunha Lenço
no Pescoço iniciava-se uma disputa, com Noel Rosa, que de certa forma
exemplifica a questão da profissionalização do sambista enquanto um caminho
para dar notoriedade ao samba. Este assunto está muito bem discutido na obra
Acertei no milhar, de Cláudia Matos, que faz uma brilhante análise do processo
de passagem do samba à condição de música nacional. Vejamos o teor de duas
das principais composições desta pendenga:

Lenço no pescoço107

Meu chapéu do lado


Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso

106
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente, p. 187
107
Wilson Batista, 1933.
82

Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio
Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão
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E eles tocam
E você canta
E eu não dou

Rapaz Folgado108

Deixa de arrastar o teu tamanco


Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora esta navalha que te atrapalha
Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo um samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão
Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado

108
Noel Rosa, 1933.
83

Não te chamar de malandro


E sim de rapaz folgado

Noel parece ter compreendido bem as exigências que a popularização do


samba impunha. É claro que a posição de Wilson Batista tem um pouco de
resistência a um modelo que ainda não abarcava todos. É dentro deste contexto
que o samba solidifica-se enquanto um produto viável para ser consumido,
principalmente depois de ser guindado à condição de símbolo da cultura
nacional.
Além da gravação e da radiodifusão, outros elementos fundamentais
entraram em cena nos anos 70 do século passado, o advento da TV a cores e
da possibilidade do vídeo tape: a transmissão televisiva dos desfiles109. Este
evento possibilitou um alargamento incomensurável no consumo do espetáculo
carnavalesco, garantindo a manutenção da hegemonia das escolas no que tange
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ao seu papel de signo maior da cultura nacional brasileira. Principalmente a


partir da década seguinte, quando atores e atrizes se juntaram à multidão de
sambistas, atraindo ainda mais a atenção do público. Hoje, o espetáculo é
transmitido ao vivo para um número cada vez maior de espectadores em todo o
mundo. A emissora que detém os direitos de exclusividade da transmissão paga
por eles uma fortuna inimaginável.
É claro que este novo fato trouxe alguns problemas. O tempo de desfile, o
horário de início, o número de escolas no grupo especial, entre outras questões,
impuseram-se como tópicos de mudança110. A transmissão de TV é elaborada
para um público eclético. Isto fica claro no formato da transmissão que privilegia
quadros de imagens que deformam o desfile e desagradam os espectadores
mais ligados ao samba. Não faltam críticas ao televisionamento da emissora que
detém os direitos de transmissão. Normalmente, elas se referem, à seleção de
imagens e à repetição das mesmas, deixando outras de fora:

A maior crítica à cobertura da Globo é o modelo da transmissão. Os


locutores Cléber Machado e Maria Beltrão – que, justiça seja feita,
conseguem ser espontâneos e se esforçam em passar as notícias obtidas
na apuração realizada semanas antes do desfile – só informam as alas, as
fantasias e os carros alegóricos quando a escola chega a um determinado

109
Sob a forma de flash, a TV Continental já transmitiam pedaços do desfile nos
anos de 1960.
110
Aconselhamos para um aprofundamento destas questões a leitura da
dissertação de mestrado de Gomes, Antonio Henrique de Castilho. As transformações do
samba enredo: entre a crise e a polêmica. Orientador: Júlio Cesar Valladão Diniz. PUC-
Rio.
84

ponto da Marquês de Sapucaí, o que leva cerca de meia hora. Até lá, as
imagens se repetem: comissão de frente, carro abre-alas e o início do
desfile não cansam de ser mostrados pelas câmeras (...)A emissora
também vacilou em questões técnicas. Várias vezes os narradores
comentavam uma ala que não era a mesma focalizada no vídeo. As
correções foram frequentes.111

Outra crítica ferrenha é em relação ao monopólio da Globo, que não


permite duas visões acerca da transmissão. Criando-se um único modelo que
não vai agradar a todos os telespectadores:

O monopólio da transmissão pela Globo obriga o telespectador a ver


abundantes imagens de seus artistas. Eles estão em quase todas as
escolas, sem contar que uma delas, a Grande Rio, parece ter virado
sucursal da emissora, permitindo a tomada de imagens para a novela das
oito durante o desfile da escola (...)Por falar em monopólio da transmissão,
tá difícil aguentar o modelo que a Globo impinge ao telespectador. As
entrevistas priorizam os artistas da casa.112
Para iniciar o que aqui pretendo criticamente sinalizar já serviria pôr em
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discussão a validade ética a respeito do direito a transmissões exclusivas


num país no qual, pela legislação vigente, as emissoras são uma
concessão pública. Moralmente o fato em si nada contém de perturbador.
Afinal de contas, alguém, por contrato, compra algo que outrem oferece.
Juridicamente, também nada a obstar. É um regime capitalista e, como tal,
o princípio de compra e venda está previsto e referendado. O problema,
entretanto, por um viés ético, surge quando à lembrança vem o fato de ser
o desfile uma expressão da espontaneidade popular, a despeito das regras
e evoluções marcadas que a legião de alas tenha de cumprir.113

Ainda outra crítica se faz ao desarranjo das imagens selecionadas pela


transmissora, que, ao desrespeitar a ordem do desfile, no dizer de alguns,
atrapalha a percepção do enredo:

A televisão se superou na cobertura de grandes eventos. Transmitiu os


desfiles das escolas de samba quase tão mal quanto a última guerra. As
grandes atrações do Carnaval carioca cruzaram o vídeo como rajadas de
luzes em noite de tensão no golfo. Quem piscou não viu Luma de Oliveira
passar.
Problemas técnicos à parte, não dá para entender porque quem está em
casa não pode assistir aos desfiles parado em um determinado ponto do
Sambódromo. O olhar do telespectador corre nervoso da comissão de
frente para a bateria, da dupla de mestre-sala e porta-bandeira para a ala
da velha guarda, do último carro para o abre-alas, da bunda de uma para

111
Observatório da Imprensa - Raphael Perret. 2005.
112
Eliakim Araújo - Publicado originalmente no site Comunique-se em 12 de
janeiro de 2005
113
Ivo Lucchesi - Publicado originalmente no Observatório da Imprensa em 15 de
fevereiro de 2005
85

os peitos de outra. Parece que as imagens caíram no chão e alguém as


embaralhou de qualquer jeito na pressa de levá-las ao ar.114

Também se critica, na transmissão da televisão, a subordinação que o


monopólio permite em relação à programação cotidiana da emissora. O horário
do desfile, no que tange ao início e ao término, está condicionado à rotina da
programação da própria emissora. A quebra do monopólio não subordinaria o
desfile a tais exigências.
Ora, o que precisa ser dito é que a lógica da televisão é a lógica do
mercado da indústria cultural: vender o produto a um público cada vez maior e
cada vez mais distante do núcleo produtor daquele evento/produto. O que não
se pode perder como referência é que este jogo também interessa aos
protagonistas do espetáculo, na media em que, ao possibilitar um alargamento
destas fronteiras consumidoras, reforça o caráter hegemônico do samba. A
transmissão não se prende à esfera nacional, o espetáculo é transmitido a mais
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de 120 países no mundo que necessariamente não querem ver aquilo que um
brasileiro, que se julga um sambista em potencial, gostaria de ver. Esta
transmissão colabora para uma movimentação financeira de cerca de 41 milhões
de reais, segundo dados oficiais. A própria construção do sambódromo impôs
um modelo de desfile verticalizado que exige um esforço televisivo. Se as
transmissões mostram mais celebridades do que anônimos talvez seja por que o
telespectador comum, brasileiro ou não, goste mesmo é de ver celebridades. É
preciso entender também que o gigantismo que as escolas de samba ganharam
fez com que elas mesmas relessem alguns conceitos. Purismos, espaço de
negro, pobre e favelado, não lhes cabem mais, muito embora os sambistas
tradicionais, como já dissemos, ainda sejam a “alma” das escolas, elas se
transformaram numa manifestação híbrida de cultura popular. Utilizando uma
expressão de Edgar Morin, a escola de samba é um fenômeno “polienraizado”.

A proposta das Escolas de Samba não é a de se tornar uma estrutura


fechada da qual não se tem acesso, e sim, têm a vontade de seduzir um
número cada vez maior de pessoas, inclusive as de classes sociais mais
elevadas, que estão no topo da pirâmide social, para que façam parte de
seus desfiles e garanta uma maior visibilidade na dinâmica social das
grandes escolas. As agremiações agem assim, como objeto de conciliação
e mediação entre os setores das diferentes classes da sociedade, e é isso
que as faz únicas enquanto instituições.115

114
Tutty Vasques - Publicado no site nomínimo em 06 de março de 2003
115
SOUZA, Cássia Helena Glioche Novelli de. SCHMIDT, Beatriz. O desfile das
escolas de samba na televisão: vinte anos de sambódromo. Monografia apresentada
86

Este é, de modo geral, o papel da indústria cultura: transformar uma dada


construção num objeto de consumo que transcenda o público de onde ele vem.
Para ela, não interessa que o produto circule apenas no espaço imaginário de
seus produtores. Ela se nutre e se reproduz alargando constantemente as
fronteiras de consumo de um dado produto, e isto não seria diferente com o
samba, muito embora, numa primeira leitura, isto possa parecer uma ruptura
com as tradições das escolas de samba, a parceria foi muito positiva para elas e
para seus protagonistas mais tradicionais. O que vemos hoje é um número muito
grande de passistas, que, se não têm espaço na estrutura do desfile, conseguem
sobreviver com bastante conforto de sua arte, realizando apresentações dentro e
fora do país. Os compositores, via de regra, têm agendas cheias e shows por
quase todo o ano. Ritmistas tocam em espetáculos diversos e, no fim das
contas, vários elementos acabam participando de eventos e programações
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propostos pela indústria cultural. O saldo é que, no final, todos (ou pelo menos
quase todos) lucram. Há um preço a ser pago? Claro que há, mas vale a pena
pagá-lo? Cremos que sim. A indústria cultural conseguiu manter as escolas de
samba no protagonismo, não apenas do carnaval carioca, mas as transformou
no maior produto cultural brasileiro, popular e consumido no mundo inteiro. No
próximo capítulo, trataremos de analisar com mais intensidade como as escolas
de samba se foram modificando, transformando, reconfigurando seu discurso,
junto a vários elementos que lhes permitiram tornarem-se protagonistas do maior
espetáculo da terra!

como exigência parcial do Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá


– Habilitação Jornalismo. Rio de Janeiro:Dezembro/2004
4
A reconfiguração do discurso do samba

O caminho percorrido pelo samba, iniciado aproximadamente na década


de 1930, se desconsiderarmos os movimentos anteriores que permitiram o seu
surgimento, culmina hoje numa jornada para garantir-lhe a permanência de suas
conquistas. Saindo do gueto, de uma posição marginal, ele veio, conforme
pudemos observar, galgando espaços, até se transformar na principal
manifestação da cultura popular brasileira. Hoje a grande questão é saber como
pode se manter no estado em que está. Sua característica antropofágica lhe
permitiu devorar tudo aquilo que foi necessário para seus objetivos. Devorando,
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transformando e se apropriando, o samba carioca aprendeu a dialogar com o


Estado, com diversos segmentos sociais, com diversos instrumentos de
comunicação e com a indústria cultural. Nunca se colocou numa posição de
vítima, ao contrário, sabendo-se aproveitar de todas estas situações, retirando
delas vantagens que lhe permitiram o caráter hegemônico, dentro do cenário
cultural brasileiro, inclusive sendo tombado como patrimônio imaterial da cultura.
Esta estratégia malandra permanece presente e hoje é um poderoso instrumento
para que possa se manter onde está. É necessário dizer que, ao denominar esta
estratégia de malandra, estamos propondo uma releitura da noção de
malandragem contida na obra “Dialética da malandragem”116 de Antonio
Candido, indo na direção oposta à brilhante leitura realizada por João Cezar de
Castro Rocha em seu texto “Dialética da marginalidade”.117Entendemos aqui a
figura do malandragem não como uma estratégia de coalizão, mas de
enfrentamento. O malandro enfrenta, apropriando-se progressivamente “das
armas” de seu oponente, assumindo deliberadamente, e conscientemente,
determinadas características impostas e delas retirando vantagens. Assim foi a
trajetória do samba ao longo do século XX. Assim é a articulação do samba com
o universo que o cerca no tempo presente. Se antes buscava sua afirmação,
hoje busca a manutenção de suas conquistas, bem como ampliar o universo
consumidor do bem cultural em que se transformou.
116
"Dialética da Malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de
milícias)" in: Revista do Instituto de estudos brasileiros, nº 8, São Paulo, USP, 1970,
117
“Dialética da marginalidade (Caracterização da cultura brasileira
contemporânea)”. Caderno MAIS! / Folha de S. Paulo, 29/02/2004.
88

4.1.
As novas exigências do concurso das escolas de samba do Rio de Janeiro

O carnaval do Rio de Janeiro gira em torno do concurso das escolas de


samba. Este mega evento, iniciado, como já pontuamos, na década de 1930,
tem hoje lugar de destaque no cenário da produção cultural brasileira, na medida
em que se espalhou, primeiramente, para outras regiões do estado de origem e
depois para o resto do país. Basta observarmos que, entre as grandes escolas
do desfile da cidade Rio de Janeiro, figuram agremiações de outros municípios,
da chamada região metropolitana. Dentre elas, merecem destaque a Beija-flor
de Nilópolis (município da baixada fluminense) que acumula 10 títulos, desde
sua chegada, em 1974, ao principal grupo de desfile e a Viradouro, que já foi
campeã no ano de 1997, apesar de hoje estar no grupo de acesso A. Além
disso, este modelo de carnaval já foi “exportado” para outros estados do Brasil.
Como exemplo, podemos destacar, e existência de desfiles de escolas de
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samba em diversas cidades brasileiras. O mais reconhecido é o da capital


paulistana, mas há outros bem interessantes, como o de Porto Alegre, que tem
sambódromo e cidade do samba (no complexo cultural do Porto Seco), e o de
Uruguaiana, que curiosamente acontece após o desfile das campeãs do Rio de
Janeiro, apresentando-se com uma proposta que se aproxima da ideia de data
fixa. Aliás, por questões de interesses que envolvem as agremiações e a
transmissão televisiva do evento, na maioria destas cidades, os desfiles
acontecem na sexta e no sábado em que se iniciam as festividades
carnavalescas para não competirem com o maior de todos os eventos, o desfile
do grupo especial da cidade do Rio de Janeiro, que acontece no domingo e na
segunda de carnaval. Além disso, na própria capital carioca, os demais grupos
desfilam em outros dias, conforme já dissemos, sendo apenas transmitido o
desfile do grupo de acesso A, aliás, transmitido por uma emissora concorrente
daquela que detém o monopólio da transmissão do desfile do grupo especial.
Entretanto, muita coisa mudou desde o primeiro concurso de escolas de
samba, ocorrido na década de 1930. Hoje o evento tem proporções planetárias,
sendo exibido, segundo a própria emissora, para cerca de 120 países. Esta
realidade submete a transmissão a interesses muito diversos dos interesses do
público brasileiro. As críticas, como já apontamos, são muito grandes e elas se
concentram principalmente no formato da transmissão, que é pensado para
atender a um público muito mais eclético do que o publico carioca, que, de
alguma forma, é conhecedor do universo do carnaval. Se no “país do futebol”
89

somos alguns milhões de treinadores e de comentaristas, no “país do samba”,


somos alguns milhões de carnavalescos e de julgadores: no Brasil, “de médico,
louco, treinador e carnavalesco, todos nós temos um pouco”.
É claro que a entrada em cena da televisão impôs mudanças na estrutura
do desfile. Aliás, na medida em que o consumo foi ampliado e que a tecnologia
foi avançando, o desfile precisou adaptar-se, porque senão o “produto” não seria
tão comercializável assim. Por mais estranho que possa parecer, o desfile é,
sem a menor sombra de dúvidas, um produto cultural consumível, e de grande
valor. Se por um lado isto obriga as escolas a se adaptarem, por outro, garante-
lhes sobrevivência e a manutenção de sua hegemonia no cenário da cultura
popular. Além disso, como conquistar um título significa muita coisa, financeira
ou não, as escolas buscam adaptar-se com o propósito de se tornarem mais
competitivas. As escolas que não desenvolvem estas habilidades, por razões
diversas, ficam para trás. Para ilustrar a situação, podemos afirmar que a
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Portela, detentora da maior quantidade de títulos (21, sendo 7 consecutivos),


cujo último ocorreu em 1984 com o enredo “Contos de Areia”, amarga um jejum
de mais de 20 anos. Além desse exemplo, podemos apontar diversos outros,
como a Império Serrano, a Viradouro e a Estácio, só para ficarmos em
agremiações que já foram campeãs. Provocado ou não pelas necessidades
impostas pela indústria cultural, o concurso se modifica – seja em sua estrutura,
seja no seu contexto – e se adapta aos novos tempos, e, com ele, modificam-se
as agremiações. É uma interessante relação de troca em que um influencia o
outro e todos saem ganhando. Entretanto, talvez as mais significativas
transformações tenham acontecido com a fundação da LIESA (Liga
Independente das Escolas de Samba) em 1984, conforme já comentamos. A
partir daí, o controle e a organização do concurso das escolas de samba saem
das mãos da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e passam ao controle de um
organismo criado e administrado pelas próprias agremiações. Tal fenômeno é
resultado de duas forças significativas que têm ligação visceral entre si, uma de
caráter financeiro e outra organizacional. Prender-nos-emos agora às questões
de organização.
Como já discutimos, a disputa no desfile das escolas de samba,
patrocinado pelo jornal “Mundo Esportivo”118, tem como marco inicial o ano de
1932. Segundo o pesquisador e diretor do Centro Cultural da LIESA, Hiram
Araújo, foi nas décadas de 1940/50 que “as escolas de samba completaram o

118
Em 1933 o desfile era organizado e financiado pelo jornal “O Globo”.
90

ciclo de formação e constituíram ‘suas espinhas vertebrais’ básicas compostas


119
pelo enredo, samba de enredo, alegorias e fantasias.” Diferente de agora,
quando a primazia está no visual, naquele momento, a estrutura se assenta em
uma base sólida formada pelo canto e pela dança. Ainda segundo o mesmo
pesquisador, os anos 1960 e 1970 marcariam o início das grandes
transformações das escolas de samba e do próprio desfile. É o período em que
se inicia o diálogo entre os segmentos mais tradicionais das escolas e as classes
médias, que começam a penetrar no mundo do samba. Nesse contexto, cremos
que dois momentos são fundamentais para a consolidação das transformações
conceituais que estão diretamente ligadas às mudanças nas concepções de
desfile e julgamento. O primeiro se dá com a formação do grupo liderado por
Fernando Pamplona que iniciará, no Salgueiro, a primeira revolução no desfile
das escolas de samba:
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Seu primeiro carnaval, o Quilombo dos palmares, desencadeou uma


série de consequências: os temas deixaram os limites da História oficial do
Brasil, outros materiais são introduzidos, as alegorias, adereços e fantasias
mudam de estilo. Uma nova era se abre. Aos poucos, os artesãos das
comunidades cedem seus lugares para artistas e trabalhadores
especializados (os aprendizes do Teatro Municipal, das Escolas de Belas-
Artes e, posteriormente, pessoal também da televisão).120

A segunda grande transformação se dá com a entrada em cena da Beija-


Flor de Nilópolis e os carnavais de Joãozinho Trinta, marcados pela exuberância,
pelo luxo, pela inovação e pela polêmica. Essas transformações – que se
consolidam ao longo dos anos 1970, 1980 e 1990 – encontraram, obviamente,
resistência dos setores mais conservadores. O exemplo mais interessante se
materializa numa carta assinada por Candeia, André Motta Lima, Carlos Sabóia
Monte, Cláudio Pinheiro e Paulo César Batista de Faria, dirigida, em 1975, ao
então presidente da GRES Portela, Carlos Teixeira Martins. Eis alguns trechos:

Durante a década de sessenta, o que se viu foi a passagem de pessoas


de fora, sem identificação com o samba, para dentro das escolas. O
sambista, a princípio, entendeu isso como uma vitória do samba, antes
desprezado e até perseguido. O sambista não notou que essas pessoas
não estavam na escola para prestigiar o samba.(...) Essas influências
externas sobre as escolas de samba provêm de pessoas que não estão
integradas no dia-a-dia das escolas. E por não serem partes integrantes
dessa cultura popular, que evolui naturalmente, são capazes de se deixar

119
ARAÚJO, Hiram. Carnaval: seis milênios de História, p. 230.
120
Op. Cit. p. 232
91

envolver pelo desejo de rápidas e contínuas modificações, que atendam a


sua expectativa de sempre ver ‘novidades’121.

Observemos que esta crítica se debruça justamente contra as


transformações que relatamos e que vão fazer da escola de samba e do desfile
o mega espetáculo que vivenciamos no tempo presente. É obvio que o
fenômeno trouxe algumas perdas para as escolas e para os sambistas mais
tradicionais, mas os ganhos são inegáveis. Ao contrário do que nos afirma o
grupo, entendemos que esta relação foi muito bem conduzida pela escola nos
seus mais diversos setores. Outra questão significativa e que está associada às
mudanças promovidas pela LIESA está no que concerne à quantidade de
participantes do principal grupo, hoje denominado grupo especial, formado pelas
12 mais importantes agremiações. Entretanto, esse número já foi diferente,
vejamos a tabela abaixo, lembrando que, nos referidos anos, o desfile acontecia
em apenas um dia122:
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ANO QUANTIDADE
1970 10 agremiações
1971 10 agremiações
1972 12 agremiações
1973 10 agremiações
1974 10 agremiações
1975 12 agremiações
1976 12 agremiações
1977 12 agremiações
1978 10 agremiações
1979 08 agremiações
1980 10 agremiações
1981 10 agremiações
1982 12 agremiações
1983 12 agremiações
123
1984 14 agremiações

121
Carta a Portela.
122
Optamos por apresentar dados a partir da década de 1970. Dados retirados da
obra de Hiram Araújo: Carnaval: seis milênios de história.
123
Neste ano o desfile foi realizado em dois dias. Foi o ano da inauguração do
sambódromo.
92

Este número elevado, associado a uma série de problemas que


apontavam para um amadorismo não condizente com a importância que o
espetáculo construía, transformava-se, constantemente em atrasos gigantescos,
o que inviabilizava, entre outras coisas, o televisionamento. Outro dado relevante
é a inconstância no rebaixamento. Em 1971, por exemplo, sem aparente
explicação, nenhuma escola foi rebaixada. No ano seguinte, 1972, quatro foram.
Em 1973 apenas duas caíram. Nos anos de 1974 e 1975, todas permaneceram
no grupo especial. Em 1976, 1977 e 1978 novamente quatro escolas cairiam a
cada ano, para em 1979 não haver queda. Em 1980, uma escola foi rebaixada e
novamente nenhuma no ano seguinte. Em 1982, duas seriam punidas e, em
1983, por conta de uma pane da iluminação, todas permaneceram no grupo.
Esta inconstância ressalta os problemas de organização.
As alterações, no que concerne ao rebaixamento, estão associadas aos
interesses de agremiações com forte poder político, que, por conta de ameaça
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de sair do grupo, promoviam as famosas “viradas de mesa”. Com a instituição da


LIESA, o carnaval profissionalizou-se para tornar-se um negócio mais viável. A
escalada se deu para que se chegasse a um número razoável de agremiações
no principal grupo. A Liga vai buscar estabelecer uma regra básica que
determina o acesso e o rebaixamento de forma que, salvo problemas mais
graves, mantém sempre o mesmo número de agremiações no hoje denominado
“grupo especial”124. Todo este esforço culmina hoje em uma estrutura que
estabelece dois dias de desfiles, de modo que sua duração seja razoável, sem
avançar muito após o amanhecer, o que ajuda, inclusive, na plasticidade do
espetáculo. O uso constante de recursos eletrônicos e de iluminação perdem
importância com o dia claro. Além disso, este tempo determinado ajuda a
inserção do evento na programação da televisão. Há quem vá dizer que esperar
o término da telenovela ou do jornalismo de domingo é estar submisso. O que
não é lembrado ao se repetir estas críticas é que o contrato de televisionamento
rende à Liga alguns milhões de reais, que são repassados, em parte, às escolas.
A relação entre a televisão e o desfile é visceral e interessa a ambas as partes.
Se por um lado as escolas tiveram que se adaptar para se tornarem atrativas ao
televisionamento, por outro os contratos com a transmissão garantem-lhes
parcialmente a saúde financeira. Não podemos nos esquecer de que a
visibilidade profissionalizou o carnaval e alavancou carreiras de elementos
ligados à Velha Guarda, por exemplo. Ainda no que tange ao processo de

124
Uma das exceções a esta constância no rebaixamento se deu no ano passado
em função do incêndio na cidade do samba.
93

acesso e rebaixamento, a crítica que se pode fazer reside no fato de que


somente uma vaga se abre por ano, criando-se um funil que impede, ou pelo
menos diminui drasticamente, a possibilidade de chegada ao grupo especial, e,
como já dissemos, promove um vai e vem das mesmas escolas, salvo algumas
exceções. Porém, cabe ressaltar que o grupo de acesso A vem construindo uma
estrutura que se aproxima do grupo especial.125
Outra questão fundamental para que o desfile assumisse o formato que
tem hoje está ligada ao local do mesmo. Há muito tempo que se buscava um
lugar fixo para o desfile. Desde a lendária Praça Onze, onde ocorreram os dois
primeiros concursos, até o sambódromo, situado na avenida Marquês de
Sapucaí, inaugurado em 1984, ele passeou por diversos locais. Praça Onze,
Avenida Presidente Vargas (em diversos trechos), Avenida Rio Branco, Avenida
Presidente Antonio Carlos, Candelária, Marquês de Sapucaí e até mesmo o
Campo de Santana, foram palco do espetáculo. Entretanto, as despesas com
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montagem e desmontagem do “estádio” do desfile gerava um custo elevado e


estava submetido a uma série de questões que acarretavam problemas. A
estrutura provisória submetia-o a situações que atrapalhavam a apresentação.
As precárias instalações e até questões técnicas, como som e iluminação não
eram bem vindas a um evento que se profissionalizava a passos largos.
A concepção de um espaço definido para a apresentação das escolas tem,
no nosso entender, como marco inicial, a construção de arquibancadas em 1960.
Até este período, o que separava as escolas do público eram cordas de
isolamento. Se por um lado isto deixava próximo o folião da escola, por outro
causava alguns problemas que hoje seriam punidos com perdas de ponto. Além
disto, este mecanismo atrapalhava a transmissão televisiva, que também se
iniciou neste mesmo ano, através de flashes. Não havia ainda a transmissão na
íntegra. O que se vai seguir à construção das arquibancadas é a cobrança do
ingresso, que vai acontecer ainda na década de 1960. Na medida em que a
cobertura realizada pela televisão foi tornando-se mais ampla, o que está ligado
à ampliação do gosto popular pelo desfile, ou, se preferirmos, a uma ampliação
da base social que passa a consumir o desfile, entendendo-o como um produto
cultural que passa a ser consumido por setores sociais cada vez mais amplos. A
década de 1960, como já dissemos, é marcada pela entrada maciça da classe
média no universo cultural das escolas de samba.
125
No momento em que este trabalho é escrito, o grupo de acesso A, até então
organizado pela LESGA, mergulha em uma crise institucional, na qual a prefeitura
declara que rompe o contrato com a LESGA por desrespeito a clausulas (rebaixamento)
e por conta de suspeitas de fraudes no resultado.
94

O que pode explicar este fenômeno? Alguns pesquisadores associam-no


às pressões que a ditadura militar iria realizar sobre outras manifestações
culturais. Outra linha nos leva a crer que o início das transmissões, mesmo
parcialmente, tenha popularizado o evento e trazido outros setores. Por outro
lado, as escolas também se esforçaram bastante para alargar seu público e,
mesmo com algumas resistências, estes outros segmentos foram muito bem
recebidos e serviram, entre outras coisas, para ajudar a consolidá-las no cenário
cultural brasileiro. Vale lembrar que, já no início do século, o surgimento dos
blocos democratizou o universo do samba, se compararmos com as casas das
tias baianas, de nossa Pequena África, como, aliás, já pontuamos.
O desejo de se ter um local fixo para o espetáculo é antigo e está
associado às necessidades relacionadas ao crescimento do evento, tanto do
ponto de vista técnico, buscando tornar melhor o televisionamento que, desde a
chegada da TV em cores, tornava-se cada vez mais importante, quanto do ponto
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de vista do público consumidor que ultrapassava com muita rapidez as fronteiras


nacionais, com um número cada vez maior de turistas que vinham para a cidade
do Rio de Janeiro para assistir àquilo que passava a ser conhecido como o
“maior espetáculo da terra”. Este sonho começa a se consolidar quando a
Marquês de Sapucaí é transformada em lugar definitivo para os desfiles, mesmo
antes de 1984, quando sai do papel o projeto de Oscar Niemayer e inaugurava-
se o sambódromo.

Um local definitivo para os desfiles das escolas de samba, ideia


defendida pelos sambistas, através do presidente da Associação das
Escolas de Samba, Amaury Jório, desde 1970 tornou-se realidade, no dia
2 de março de 1984, data em que foi inaugurada a Passarela do Samba. O
projeto encomendado em outubro de 1983, pelo então Governador do
estado do Rio de Janeiro, Engenheiro Leonel de Moura Brizola, é um
gigante de cimento armado, projetado pelo Arquiteto Oscar Niemeyer e
construído no tempo recorde de 120 dias.126

A Passarela Professor Darcy Ribeiro tem a extensão de aproximadamente


700 metros, e, após as últimas reformas realizadas para o desfile deste ano, com
a construção de novas arquibancadas e camarotes do lado direito, tem
capacidade para cerca de 75 mil espectadores, distribuídos em arquibancadas,
camarotes e frisas. Se o Sambódromo resolvia uma questão antiga, a da
montagem e desmontagem do local de desfile, trazia também um problema que
está relacionado ao preço dos ingressos, às vezes elevados demais para

126
ARAÚJO, Hiram. Carnaval: seis milênios de História, p. 188.
95

determinados segmentos sociais. É bem verdade que há setores populares no


início e no final do desfile (praça da apoteose), mas ainda assim insuficientes
para uma demanda grande de espectadores que se amontoam no chamado
“duródromo”, arquibancada gratuita montada ao longo das áreas de
concentração. Outra questão relevante está na concepção original de Oscar
Niemeyer para a praça da apoteose, local onde público e escola realizariam uma
festa comum, o que nunca foi possível em função do rigor do regulamento dos
desfiles, e por que acabaria por atrapalhar a escola seguinte. Algo parecido só
aconteceu no ano de inauguração da passarela do samba, quando a Mangueira
arrebatou o público e realizou a festa. Outro dado importante é que a nova
estrutura produziu um desdobramento significativo na estrutura do desfile: a
verticalização. O desfile “cresceu para cima”. Como as arquibancadas são altas
e a maior parte da transmissão é do alto, os carros alegóricos cresceram e os
adereços de cabeça e ombro das fantasias tornaram-se muito mais importantes.
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É bem verdade que, entra ano e sai ano, os problemas com o exagero no
tamanho dos carros alegóricos causam prejuízos às escolas.
O concurso profissionalizou-se, as escolas não puderam mais errar. Para
chegar ao título, elas devem realizar um carnaval impecável aos olhos dos
jurados, que não estão preocupados com a emoção, mas com rígidos critérios
técnicos que definem a vencedora. Os regulamentos, presentes desde o início
dos concursos, tornaram-se, por razões diversas, cada vez mais exigentes. Há
quem critique, há quem elogie, mas a organização dos desfiles, principalmente a
partir da fundação da LIESA e da inauguração do sambódromo, fez com que o
carnaval das escolas de samba se tornasse cada vez maior e mais importante.
Alguns pontos do regulamento, que pode sofrer pequenas modificações de ano
para ano, sempre com a concordância de todas as agremiações, existem há
muito tempo. Hoje ele foi ampliado e trata desde questões relativas à
organização do desfile, bem como de questões pertinentes às obrigações que
cabem às escolas, à LIESA e até mesmo à prefeitura da cidade do Rio de
Janeiro.

(...) A RIOTUR se responsabilizará pela adoção das medidas relativas ao


funcionamento da Avenida dos Desfiles, nos termos do disposto no
Contrato celebrado com a LIESA (...)
(...) Além das atribuições que lhe confere o Contrato citado no Artigo
anterior, a LIESA se responsabilizará, com exclusividade, por tudo que se
relacione com a Direção Artística dos Desfiles(...)
(...) As Escolas de Samba que não se apresentarem com suas Alegorias
na Área da Concentração (Artigo 16), dentro dos horários e também de
96

acordo com os percursos e horários previstos nos Mapas elaborados pela


Comissão de Concentração de que trata o Artigo 9º deste Regulamento,
poderão ser penalizadas com uma multa pecuniária de R$ 60.000,00(...)127

Esta rigidez é resultado de um processo de profissionalização do


espetáculo, fundamental para sua inserção no mercado da indústria do
entretenimento. O que tornou os desfiles do grupo especial um objeto valioso
dentro do mercado da indústria cultural, capaz de render frutos econômicos que
permitem às escolas sua manutenção e a produção de um carnaval cada vez
mais luxuoso. Se outrora o problema da duração desembocava em atrasos
intermináveis que atrapalhavam a transmissão do espetáculo, hoje um rigoroso
controle do tempo garante o início e o término do desfile dentro de uma margem
satisfatória de tempo. As escolas sabem que o atraso significa a perda de
valiosos décimos de pontos. Vejamos o que diz o regulamento do desfile de
2012 nos artigos 19 e 22:
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O tempo de duração do Desfile de cada Escola de Samba será de, no


mínimo, 65 (sessenta e cinco) minutos e, no máximo, 82 (oitenta e dois)
minutos.
(...) As Escolas de Samba que não desfilarem no tempo estabelecido pelo
Artigo 19 deste Regulamento poderão sofrer, segundo o mapa específico
da Comissão de Cronometragem e a juízo do Presidente da LIESA, uma
das penalidades a seguir:
I - perda de 0,1 (um décimo) de ponto para cada minuto não utilizado em
seu Desfile, quando este tempo for inferior a 65 (sessenta e cinco)
minutos;
II - perda de 0,1 (um décimo) de ponto para cada minuto excedente,
quando o tempo de Desfile for superior a 82 (oitenta e dois) minutos.128

A rigidez garante uma organização suficientemente competente para que o


espetáculo possa ser apreciado por um número cada vez maior de
telespectadores, gerando, como já dissemos uma receita cada vez maior.
Entretanto, o regulamento também trata de questões que envolvem a
manutenção de certa tradição do universo do samba, como, por exemplo, a
obrigação das escolas manterem a ala das baianas, inclusive com um número
mínimo, e ainda proíbe a participação de homens nesta mesma ala, garantindo a
manutenção de um dos lugares mais sagrados da tradição, que como já foi dito,
preserva a memória de um dado lugar da história do samba, bem como seus
aspectos rituais e sagrados.

127
Regulamento dos desfiles das escolas de samba do grupo especial - 2012.
www.liesa.globo.com p.3
128
Op. Cit. p.7.
97

Artigo 26.
Além de outros deveres expressos no presente Regulamento, cada Escola
de Samba tem a obrigatoriedade de:
(...) II - desfilar com, no mínimo, 70 (setenta) Baianas agrupadas;
III - impedir a presença de pessoas do sexo masculino na Ala de Baianas,
exceto Diretores, desde que estes não estejam com a mesma fantasia da
Ala em questão(...)129

Outro aspecto relevante é que, como o carnaval se tornou uma mercadoria


bastante interessante para o investimento, o que leva inclusive às “encomendas
de enredo” (trataremos deste assunto mais adiante); as escolas teoricamente se
transformaram em um lugar bastante favorável para a exibição de marcas. O
merchandising é proibido expressamente pelo regulamento, muito embora
saibamos que há mecanismos bem interessantes para driblar esta proibição. O
enredo da GRES Acadêmicos da Grande Rio no ano de 2010, "Das
Arquibancadas ao Camarote Nº1: Um ‘Grande Rio’ de Emoção Na Apoteose do
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Seu Coração", fazia uma clara alusão a uma determinada fábrica de cerveja e
seu camarote, vejamos o que nos diz o regulamento ainda no artigo 26:

(...) VIII - não utilizar, distribuir ou apresentar-se com qualquer tipo de


“merchandising” (implícito ou explícito) em Enredo, Alegorias, Adereços,
Alas, Destaques, Samba-Enredo ou quaisquer outros meios, exceto:
a. nas vestimentas dos Empurradores de Alegorias;
b. em prospectos com letras do Samba-Enredo;
c. nos instrumentos musicais da Bateria, desde que sejam as marcas de
seus respectivos fabricantes.(...)130

Enfim, o regulamento e busca organizar um evento que possui proporções


cada vez mais abrangentes, servindo também para que as agremiações possam
manter-se durante o ciclo carnavalesco que se inicia quando termina o desfile,
quando as escolas tratarão de garantir recursos para a preparação e
apresentação de um espetáculo grandioso, o que projeta ainda mais o samba no
cenário mundial.
Outra questão relevante que aponta para a profissionalização do desfile e
das escolas está relacionada ao critério de julgamento. Objeto sempre de
dúvidas e críticas, está associado ao modelo que o desfile adotou. Se é correto
afirmar que, desde a entrada de elementos ligados à academia no universo das
escolas de samba, houve a preponderância do aspecto plástico, estético, ou,
como determina a pesquisadora Maria Laura Viveiros, “a primazia do visual”131,
em detrimento do lúdico, representado pelo canto e dança. O gigantismo do
129
Op. Cit. p.9.
130
Op. Cit. p. 11
131
VIVEIROS, Maria Laura. Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile.
98

evento colocou a técnica, a perfeição e o detalhe no lugar da emoção. O que


define um desfile campeão, não é a emoção que ele provoca em seus
espectadores, mas sim a perfeição com que a escola, em todos os quesitos
passa pela passarela. O que acabou cunhando a ideia de desfile tecnicamente
correto, que faz com que nem sempre a escola vencedora “caia nas graças da
arquibancada”. Obviamente isto não é uma obrigatoriedade: um desfile pode ser
tecnicamente perfeito e ainda assim provocar uma intensa emoção no público.
Há exemplos de carnavais em que a escola vencedora não produziu grande
emoção no público, mas também há carnavais em que a agremiação vencedora
arrebatou o público. O excesso da técnica talvez seja o preço pago pela
transformação de um evento oriundo de um determinado grupo num evento
talvez planetário. As escolas optaram por seguir um caminho, que não tem volta
e que faz com que se busque cada vez mais a perfeição em todos os aspectos.
Mas podemos nos arriscar a afirmar que as possibilidades de que tais
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agremiações desaparecessem, ou pelo menos se tornassem menos visíveis sem


tais transformações são enormes. Hoje o julgador que recebe informações
detalhadas sobre todas as escolas e é formado por um curso de jurados
organizado pela própria LIESA tem um olhar muito mais crítico sobre seu
quesito. Houve certo grau de profissionalização da função, muito embora a
LIESA, no manual do julgador, explicite de forma bem clara que o pró-labore não
cobre a importância do ato de julgamento:

Cada Julgador do Grupo Especial receberá um “pro-labore” no valor de


R$ 3.000,00 (três mil reais), pelos dois dias de desfile (Domingo e
Segunda-feira), o qual, evidentemente, não reflete a importância do
trabalho, nem retribuição financeira, representando, apenas, nosso
agradecimento pelo esforço desinteressado na preservação de nossas
raízes culturais populares, o que vem proporcionando o engrandecimento
do maior espetáculo de nosso País.132

Este caráter mais profissional somado a um mecanismo de descarte da


pior nota (em outros anos descartava-se também a maior) tem diminuído as
distorções, muito embora sempre ocorram reclamações. Além disso, ainda são
proibidas muitas coisas aos julgadores, como, por exemplo, ausentar-se da
cabine, utilizar aparelhos telefônicos, pager, televisores, não manter contato com
outrem, etc. Tudo é feito para garantir o mínimo de lisura e equilíbrio no
julgamento. A cada nota inferior a 10,0, o julgador é obrigado a justificar a

132
Manual do Julgador da LIESA – 2012. www.liesa.globo.com p.2
99

penalização. Justificativa esta que fica disponível no site da LIESA. Seu


julgamento deverá obedecer a critérios previamente estabelecidos pela LIESA
que constam no manual. Por exemplo, o julgador de bateria deve:

Para conceder notas de 09 a 10 pontos, o Julgador deverá considerar: A


manutenção regular e a sustentação da cadência da Bateria em
consonância com o Samba-Enredo; A perfeita conjugação dos sons
emitidos pelos vários instrumentos; A criatividade e a versatilidade da
Bateria.
Não levar em consideração: a quantidade de componentes de cada
Bateria, no que se refere ao número mínimo de integrantes fixado pelo
Regulamento; a utilização de instrumentos de sopro ou qualquer outro
artifício que emita sons similares; o fato de qualquer bateria não parar
defronte às Cabines de Julgamento e/ou não estacionar no 2º Recuo (entre
os setores 09 e 11), tendo em vista que não são obrigatórias aquelas
paradas e/ou esse estacionamento; a eventual pane no carro de som e/ou
no sistema de sonorização da Passarela; questões inerentes a quaisquer
outros Quesitos.133
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Podemos afirmar que há um critério técnico que ampara o julgador. Muito


embora seu trabalho ainda tenha uma carga muito grande de subjetividade, ele
se ancora em um conjunto de informações e orientações que lhe dão, mais ou
menos, uniformidade. As diferenças entre os julgadores têm sido cada vez
menores. Para exigir da escola uma uniformidade em todo o desfile, os módulos
de julgamento são espalhados ao longo de toda a passarela. Neste ano de 2012,
havia quatro módulos, de modo que se algo que deu certo no módulo 1, e errado
no módulo 4, as notas serão diferentes, mas estas diferenças terão que ser
explicadas pelas justificativas dos jurados. Para termos uma ideia dos aspectos
técnicos que envolvem o julgamento, vejamos alguns exemplos. No ano de
2011134, a GRES São Clemente, recém-subida para o grupo especial, foi
penalizada em 0,1 pontos pelo julgador de Harmonia do módulo 1, com a
seguinte justificativa:

Durante a passagem pelo módulo 1, a GRES São Clemente esteve muito


bem, contudo, não obteve regularidade no canto de seus componentes em
todos os pontos da agremiação, prejudicando assim uma perfeita
harmonia. Nesse sentido, seguem abaixo as alas assinaladas com o
respectivo tempo de desfile: Ala 14 (0:41), Ala 21 (0:53) e Ala 23 (0:54).
Penalidade – 0,1135

133
Manual do julgador da LIESA – 2012, p.26
134
Estamos utilizando o ano de 2011 por que, quando este trabalho foi escrito, as
justificativas do ano de 2012 ainda não estavam disponíveis ao público.
135
Caderno de justificativas dos julgadores 2011. www.liesa.globo.com
100

No módulo 2, referente ao mesmo quesito, a GRES São Clemente volta a


ser penalizada, junto com a GRES Imperatriz Leopoldinense, que havia
pontuado com nota 10,0 no módulo 1:

GRES São Clemente.


A escola não apresentou um desfile uniforme do início ao fim. Em relação
ao canto, muitos componentes dentro das alas não cantaram todas as
partes do samba ressaltando apenas o refrão. Devido a esse
comportamento de descompromisso com o canto na sua totalidade durante
todo o desfile, a escola oscilou, e o ‘chão’ ficou prejudicado na garra de
seu samba. Alas prejudicadas: 01, 03, 05, 08, 09, 10, 14, 15, 16, 21, 22,
23, 24, 25 e 27.

GRES Imperatriz Leopoldinense.


Alas prejudicadas: 01, 02, 04, 09, 12, 21, 26, 27 e 28. Vários componentes
nas alas acima citadas não cantaram o samba por inteiro durante todo o
desfile, devido a isto o canto não esteve uniforme entre todas as alas,
perdendo a vibração rítmica e melódica.136
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Outros quesitos apresentam um grau de subjetividade maior, mas também


são balizados por critérios técnicos, principalmente os referentes a fantasias e
alegorias e adereços. Vejamos as justificativas para as penalizações da GRES
Unidos de Vila Izabel e GRES Unidos da Tijuca.

GRES Unidos da Tijuca (Fantasias – módulo 1)


Infelizmente muitas fantasias da ala 20 apresentaram-se quebradas e
ainda na ala 22 quase todas estavam soltando as “saias” e descosturando
as espumas dos tubarões, demonstrando falha no acabamento e na
escolha dos materiais.

GRES Unidos de Vila Izabel (Fantasias – módulo 1)


Ala 10 e 15: Cabeças das fantasias aparentemente muito pesadas, pois
vários componentes passavam em frente a cabine segurando as cabeças
para não tombarem ou caírem. Ala 19: Alguns componentes sem as penas
amarelas que compunham a parte de cima da cabeça da fantasia.

GRES Unidos de Vila Izabel (Alegorias e Adereços – módulo 1)


Boas concepções e detalhamento criterioso das alegorias facilitaram o
bom entendimento do enredo. Apesar do luxo, percebeu-se pequenas
falhas de acabamento nas alegorias 03 e 07. Vale comentar que em
algumas alegorias a superposição de informações provocou um visual
mais ‘carregado’, colocando em risco a harmonia do conjunto alegórico.
Alegoria 03: revestimento se desprendendo na parte superior.
Alegoria 07: acabamento deficiente na junção da platibanda do salão de
cabeleireiro.137

136
Op. Cit.
137
Op. Cit.
101

Algumas informações são bastante interessantes e nos revelam a


complexidade do universo do julgamento e do desfile. Um pequeno detalhe –
que para um observador comum sequer aparece, como o peso da cabeça da
fantasia, ou as penas que faltaram em algumas cabeças, ou ainda o problema
na espuma do tubarão – passa a ter um peso enorme e pode definir o carnaval
num concurso que privilegia a perfeição. Para além do critério técnico, ainda há
a subjetividade do próprio julgador que entende uma dada opção estética como
sobreposição de informações que carregam o visual e atrapalham o conjunto
alegórico. O que temos então é uma busca frenética pela perfeição do detalhe.
Talvez a escola que mais tenha sido efetiva nesta busca seja a GRES Beija Flor
de Nilópolis, dado o elevado número de conquistas nos últimos anos. Sempre
com um acabamento rigorosamente detalhista e com um desfile harmônico,
conduzido pelos olhos atentos de seu diretor de carnaval, o Laíla, a Beija-Flor
cunhou um modelo de escola que associa a busca da perfeição com a
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aproximação de um novo formato de comunidade que trataremos mais adiante.


Uma última questão se impõe diante de tanto profissionalismo e de tanta
riqueza técnica. Que limite pode ser estabelecido entre a perfeição, a inovação e
o carnaval? O principal nome dentre os carnavalescos da atualidade é o de
Paulo Barros, que conquistou dois títulos pela GRES Unidos da Tijuca em 2010,
com o enredo “É Segredo”, em que pela primeira vez suas inovações foram
acatadas pela comissão julgadora e neste ano de 2012 com o enredo, “O dia em
que toda realeza desembarcou na avenida para coroar o Rei Luiz do sertão”.
Longe de ser uma unanimidade, sua figura uma discussão bastante interessante
sobre o que é fazer carnaval. No ano de 2011, com o enredo “Esta noite levarei
sua alma”, optou por reproduzir, muitas das vezes fielmente, cenas de filmes que
se aproximavam do seu enredo. Como a famosa cena em que o herói Indiana
Jones escapava de uma rocha esférica graças as suas habilidades. Isto acabou
não sendo bem aceito nem pela crítica e nem pela comissão julgadora,
rendendo-lhe apenas o segundo lugar, atrás da campeã Beija-Flor, por mais de 1
ponto. O que, nos tempos atuais, é uma distância enorme. A questão que se
colocou foi que a reprodução pura e simples não é interessante ao carnaval.
Segundo parte da crítica, o que o caracteriza é uma espécie de releitura da
realidade ou das tradições. A técnica deve estar a serviço disso, como nos
aponta a reportagem abaixo:

O impacto da inovação ainda reside, muitas vezes, na importação de


elementos externos à folia sem adaptá-los (caso do carro do Batman no
102

ano passado). Enquanto o carnavalesco da Tijuca simplesmente reproduz


no desfile personagens e super-heróis famosos, gente como o
carnavalesco Renato Lage, do Salgueiro, mistura Super-Homem com
Carmem Miranda e lança mão de uma Marilyn Monroe negra. E aí está o
passo à frente. A ‘carnavalização’ das inspirações brutas ainda pode e,
certamente, renderá muitas surpresas nas noites de domingo e segunda-
feira de carnaval.138

Acrescente-se aí o famoso King Kong na central do Brasil. A comissão


julgadora também resistiu à ideia de reprodução pura e simples. Neste ano a
escola perdeu muitos pontos no quesito conjunto (9.8, 9.9, 10.0, 9.9, 9.9) quase
sempre associado à ideia de reprodução fiel, ou a problemas com o tamanho
dos carros alegóricos, como observamos nas justificativas abaixo:

Modulo 1
Esbanjou ousadia e criatividade no desfile. No entanto, um desfile
completo compreende outros aspectos. Lamentavelmente o final do desfile
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foi acelerado a partir do quinto setor (da ala 25 a 31), alterando


sensivelmente a unidade do grupo, na movimentação progressiva de seus
integrantes. Observei pequenas falhas nas alegorias 01 e 04. Gostaria de
ter a oportunidade de ver a escola como uma escola de samba e não como
um teatro.
Módulo 2
A desigualdade na passagem da escola pela avenida feriu o seu conjunto:
com seu início demasiadamente marcado, sem sambar o carnaval a escola
abusou no excesso de alas ensaiadas (...)
Módulo 4
Apesar do impacto visual o ritmo do espetáculo e sua ‘leitura’ foram
interrompidos pelas longas paradas em frente ao módulo 4
Módulo 5
Devido ao tamanho de uma das alegorias e seu difícil deslocamento a
escola permaneceu parada por vários minutos(...)139

Para Fernando Pamplona – considerado por muitos como símbolo do


moderno e do tradicional, como aquele que melhor encarnou a ideia de releitura
– parece que deveria haver uma preponderância na importância da agremiação.
Mesmo carnavalescos criativos e competentes como Paulo Barros deveriam
servir à escola e não o inverso. Vejamos o que Pamplona diz em uma entrevista
a Bruno Fillipo, no sitio OBatuque.com:

Bruno Fillipo – O que o srº acha de Paulo Barros?


Fernando Pamplona – Acho um grande artista. Ele deveria expor suas
criações na Bienal de São Paulo, certamente seria premiado. Mas ele não
liga para a escola, aproveita-se dela para se promover. Se eu fosse
presidente de escola de samba, ele não seria meu carnavalesco.

138
www.veja.abri.com.br - 09/03/201
139
Caderno de justificativas dos julgadores 2011. LIESA.
103

Bruno Fillipo – Mas, do ponto de vista estético, Paulo Barros não é uma
grande novidade?
Fernando Pamplona - Sim. Depois do Fernando Pinto, do Joãosinho Trinta,
da Rosa Magalhães, do Max Lopes e do Renato Lage, o Paulo Barros foi a
grande inovação do carnaval do rio, a única coisa boa que apareceu nos
últimos tempos. Ele se renova constantemente. Mas repito: ele não serve à
escola. Se a escola vier bem ou se vier mal, tanto faz, o que importa é que
ele venha bem. Agora, ele não é original. Antes dele, outro carnavalesco
fazia isso.

Bruno Fillipo – Quem?


Fernando Pamplona - Um artista extraordinário que faleceu muito cedo:
Oswaldo Jardim. Na Unidos da Tijuca – não me lembro em que ano - ele
começou a usar figuras humanas como elementos estéticos da alegoria.
Uma vez eu o vi terminando um carro na armação, na Presidente Vargas,
com galhos de árvores que ele arrancava na hora. Não lhe deram, em
vida, o devido reconhecimento.

Bruno Fillipo – O estilo Paulo Barros se tornará um padrão?


Fernando Pamplona - Acho que não. É um estilo que morrerá com ele, e
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não contribui para uma escola de samba ser mais escola de samba. Ou
seja: é uma marca pessoal.140

Parece-nos que, para além da questão da técnica, ainda se busca um


aspecto carnavalizante, de inversão da ordem, de releitura da realidade, que não
tolera a cópia, pelo menos não por enquanto. Sendo assim, o concurso é
balizado pela busca da perfeição para que o produto final seja apreciado por um
público cada vez mais eclético. O esforço das escolas (e por que não dos
sambistas?) é garantir que seu espetáculo transcenda seu universo criador, e
para isso ele precisa a todo tempo reconfigurar sua forma, mesmo que isso
custe alguns sacrifícios como o da diminuição dos espaços e a já falada
preponderância do visual. O que se construiu com esta reconfiguração do
concurso foi um processo, ainda em andamento, em que as escolas passam a
dialogar com setores cada vez amplos da mídia, para continuarem seu
protagonismo. É claro que este diálogo, como vimos, está repleto de tensões, e
não poderia ser diferente. O que está por trás desta tensão é a tentativa de
conciliar uma tradição transgressora, própria do carnaval e do samba em geral,
com as necessidades advindas de uma nova realidade, em que o isolamento
certamente levaria as escolas de samba e seu carnaval a perder o lugar
hegemônico que construíram ao longo de suas histórias. Desta forma, acreditar
que há uma interferência que vem de fora sem um diálogo natural com os

140
Pamplona: o revolucionário tradicional. Entrevista concedida a Bruno Fillipo.
Crédito: O Dia na folia. www.odiaonline.com.br
104

protagonistas do espetáculo é, no mínimo, um equivoco. Todas as


transformações que pontuamos nesta discussão se deram a partir do próprio
samba. São as escolas que gerenciam e conduzem o diálogo entre elas e tudo o
que hoje envolve a produção e execução do carnaval, tanto no que diz respeito
às questões inerentes ao desfile, ao concurso e ao julgamento, quanto aquelas
que se relacionam às questões de ordem econômicas.

4.2.
As novas superescolas de samba

“Super escola de samba S/A, super alegoria, escondendo gente bamba,


que covardia”141, com este enredo, que criticava o caminho que as escolas de
samba trilhavam, o Império Serrano conquistava seu último título de campeã do
principal grupo de escolas de samba do Rio de Janeiro. Esta expressão,
“escolas de samba S/A”, apontava para um lugar comum das críticas que
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recaíam sobre as transformações em curso, tanto no processo de concepção e


execução do carnaval, quanto na própria gestão do desfile. Curiosamente, entre
os que conduziram o Império ao título daquele ano, estava Rosa Magalhães,
nome ligado ao grupo que repensou o carnaval e iniciou, como já dissemos, um
processo de transformação dos desfiles, que nos trouxe ao que temos hoje.
Rosa é notadamente conhecida por realizar carnavais luxuosos e extremamente
bem cuidados. A expressão aponta para o já referido processo de
profissionalização. Para gerirem um carnaval que foi se tornou cada vez mais
grandioso e caro, as escolas precisaram passar também por um processo de
transformação. Precisaram ir, pouco a pouco se transformando em empresas
que tivessem competência administrativa para viabilizar tais eventos. Por conta
destas necessidades, as escolas, representadas a partir de 1984 pela LIESA,
firmaram uma parceria público/privada com a prefeitura do Rio de Janeiro,
estabelecendo obrigatoriedades para que o concurso fosse se tornando
economicamente interessante, a fim de atrair recursos e financiamento. Esta
parceria público/privada foi estimulada a partir de um conjunto de leis que
incentivam a participação de empresas no processo de captação de recursos,
como a Lei Rouanet (nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991), a Lei Estadual de
Cultura nº 1.954, de 26 de janeiro de 1992 e a Lei Municipal de Incentivo à
Cultura da Cidade do Rio de Janeiro nº 1.940, de 31 de dezembro de 1992.

141
Bum bum praticundum prugurundum. Beto Sem Braço e Aluísio Machado.
GRES Império Serrano. 1982.
105

Vejamos o que diz o Ministério da Cultura através da Secretaria de Incentivo e


Fomento à Cultura, na figura da gerência de integração e orientação de projetos:

A lei Federal de incentivo à cultura – 8.313/91 instituiu, por meio do


programa nacional de apoio à cultura – PRONAC, os mecanismos do
Fundo Nacional de Cultura – FNC, do Mecenato e do Fundo de
Investimento Cultural e Artístico – FICART.
O FNC apoia a fundo perdido, projetos culturais apresentados por
entidades públicas e privadas, sem fins lucrativos de natureza cultural.
O Mecenato refere-se ao apoio que o Governo Federal dá à cultura,
permitindo que projetos culturais recebam recursos de empresas e
pessoas físicas. Uma parte destes recursos pode ser deduzido do Imposto
de Renda.
O FICART permite a aplicação em projetos culturais de caráter comercial,
por meio de fundos de investimentos criados por instituições financeiras.
Para que os realizadores de projetos culturais possam receber apoio em
um dos mecanismos do PRONAC, deverão antes obter aprovação do
Ministério da Cultura.142
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Observemos, ainda, o que diz a Secretaria Estadual de Cultura a respeito


da Lei Estadual de Incentivo à Cultura:

A Lei Estadual de Incentivo à Cultura é o mecanismo de fomento de


produção cultural, criado em 1992, cuja finalidade é a concessão de
incentivos fiscais voltados para a realização de projetos culturais.
Para contar com patrocínio por meio da Lei Estadual de Incentivo à
Cultura, os projetos culturais devem ser inscritos em editais anuais,
publicados no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro (DOERJ) e no
sítio eletrônico da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro
(SEC).
As inscrições são realizadas através do Sistema de Inscrições e Avaliação
de Projetos (SIAP) on-line da SEC. A Superintendência da Lei de Incentivo
(SUPLEI) realiza o Enquadramento Prévio do projeto, verificando se está
adequado às especificações formais do edital através do qual foi inscrito.
Estando preenchidos todos os requisitos relativos a adequações e
vedações previstas pelo edital de abertura, o projeto é encaminhado à
Etapa de Parecer Técnico, voltada para a análise dos aspectos referentes
à área específica do projeto e a sua linha de ação. A Comissão de
Aprovação de Projetos (CAP) avalia e aprova os projetos que estejam de
acordo com a política de incentivo à cultura estabelecida pela Lei 1954/92
e o decreto 42.292/10.
Os resultados das etapas de análise por que passa o projeto são
publicados em DOERJ. A partir da Certificação do projeto, o que ocorre
com a aprovação do projeto pela CAP, o proponente poderá buscar
recursos de patrocínio.143

142
Manual PRONAC. In: http://www.cultura.gov.br
143
O que é a Lei Estadual de Incentivo a Cultura. In: http://www.cultura.rj.gov.br
106

Este “contrato” vem estabelecendo papéis bem definidos para todas as


partes interessadas e envolvidas, como podemos perceber nos trechos retirados
do regulamento para o desfile do grupo especial de 2012:

(...) A RIOTUR se responsabilizará pela adoção das medidas relativas ao


funcionamento da Avenida dos Desfiles, nos termos do disposto no
Contrato celebrado com a LIESA (...)
(...) Além das atribuições que lhe confere o Contrato citado no Artigo
anterior, a LIESA se responsabilizará, com exclusividade, por tudo que se
relacione com a Direção Artística dos Desfiles(...)
(...) As Escolas de Samba que não se apresentarem com suas Alegorias
na Área da Concentração (Artigo 16), dentro dos horários e também de
acordo com os percursos e horários previstos nos Mapas elaborados pela
Comissão de Concentração de que trata o Artigo 9º deste Regulamento,
poderão ser penalizadas com uma multa pecuniária de R$ 60.000,00(...)144

Toda esta organização permitiu construir uma dinâmica muito mais


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profissional da gestão do carnaval. Do ponto de vista financeiro, a LIESA passou


a gerenciar um aporte de recursos cada vez maior, gerado pelas próprias
agremiações, principalmente por conta dos contratos de televisionamento, pela
venda dos CD’s dos sambas enredos, pela venda de ingressos e pelos contratos
de patrocínio. O que ficou subtendido com a fundação da LIESA é que as
agremiações que diretamente geravam tais recursos passariam a administrá-los,
o que proporcionaria um repasse maior às agremiações, tornando-as menos
dependentes de aportes financeiros oriundos de diversos setores, inclusive da
contravenção. Na prática, isto só funcionou em parte. O repasse, de fato, passou
a ser muito maior, entretanto o carnaval foi se tornando cada vez mais caro e as
escolas continuaram a ter que buscar aportes financeiros, que hoje vêm
principalmente de contratos de patrocínio, de enredos comprados, ou ainda de
relações mantidas com elementos supostamente ligados ao jogo do bicho, como
aponta os acontecimentos que antecederam o desfile de 2012145. As
necessidades financeiras para se construir um desfile competitivo são maiores a
cada ano.

Nós vimos aí, há alguns anos atrás, e quem acompanha carnaval há de


lembrar que foi dito em verso e prosa que a subvenção da liga e da Riotur
daria para fazer o carnaval de qualquer escola. Não haveria necessidade
de patrocínio por que o dinheiro daria para fazer o carnaval. Mas acontece
o seguinte, tem escola de samba que além da subvenção da liga e da

144
Regulamento para o desfile das escolas de samba do grupo especial – LIESA,
2012.
145
Referimo-nos aqui a prisão de nomes supostamente ligados ao jogo do bicho
que eram “patronos” de algumas agremiações.
107

Riotur, tem um patrocinador, ou um patrono. Aí ele sempre bota um


dinheiro a mais, além da subvenção da liga e da Riotur e com isso a escola
vem fazendo uma apresentação bem melhor do que as outras, que não
tem patrocinador para bancar certas coisas.146

Neste contexto, construído pela necessidade de administrar um carnaval


cada vez mais caro, cada vez mais competitivo e cada vez mais perfeccionista,
as escolas tiveram que se transformar em verdadeiras empresas,
profissionalizando todos os setores de sua “cadeia produtiva”. Esta ideia,
proposta por um grupo de pesquisadores composto por Luiz Carlos Prestes
Filho, Sérgio Cidade, Carlos Saboya Monte, Clarissa Alves, Sidney Limeira,
Antonio Alkmim e Pedro Argemiro entende que há uma organização capitalista
que serve como base para a produção do carnaval. Independente da crítica que
o grupo faz a este modelo mais “industrial” e menos lúdico, a ideia nos parece
bastante relevante e subdivide a estrutura produtiva do segmento relacionado
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aos desfiles do grupo especial em quatro elementos: atividades diretas (pré-


produção e ensino acadêmico, produção – criatividade e execução, distribuição –
divulgação e marketing, comercialização e consumo), atividades indiretas
(turismo, audiovisual, indústria fonográfica, indústria editorial e gráfica, indústria
de bebidas, entretenimento), direitos (propriedade intelectual e direitos de
imagens) e por fim as políticas públicas (investimentos em infraestrutura,
fomento e incentivos fiscais)147. Prenderemo-nos à ideia de atividade direta, à
medida que as escolas de samba se inserem neste segmento desta cadeia
produtiva. Responsáveis diretas pela pré-produção e pela produção dos desfiles,
naquilo que tange ao espetáculo propriamente dito, as escolas de samba
passaram a gerenciar um universo cada vez mais amplo e profissional. Hoje não
basta uma grande ideia (enredo) ou grandes desenhos de fantasias, alegorias e
adereços. Se a execução não se realizar o mais profissionalmente possível, a
escola não coseguirá seu objetivo, seja ele conquistar o título da disputa ou
manter-se no grupo especial. Desta forma, as escolas que profissionalizaram
seus “barracões” – que, desde a criação da cidade do samba em 2006,
tornaram-se verdadeiras fábricas de carnaval – obtêm a cada ano resultados
mais positivos.
Isso produziu dois movimentos bastante interessantes. Primeiro, trouxe
para dentro do universo das escolas de samba profissionais das mais diversas
áreas que nem sempre tiveram relação com o universo do samba. Dizemos nem
146
Jandyr Antunes e Jayme Machado: Entrevista concedida ao autor.
147
PRESTES FILHO, Luiz Carlos e outros. Cadeia produtiva da economia do
carnaval. http://www.fundaj.gov.br
108

sempre, porque muitas vezes, direta ou indiretamente, sempre estiveram


próximos deste universo. Não são poucos os exemplos de elementos ligados às
escolas que se especializaram para exercer tais posições. O segundo é
exatamente o movimento inverso, o da profissionalização de funções que antes
eram realizadas de forma amadora para atender às novas demandas: ferreiros,
marceneiros, costureiros, aderecistas, etc. Prova irrefutável deste novo universo
são os cursos de administração de eventos carnavalescos realizados por
algumas universidades148. Vejamos o depoimento de Alexandre Brittes, Diretor
Geral de Harmonia da GRES Renascer de Jacarepaguá:

(...) Eu tinha minha profissão, eu sou diretor executivo, trabalhava numa


emissora de televisão e era hobby para eu trabalhar no samba. Só que
hoje, neste modelo de carnaval as empresas, as escolas são empresas,
sempre foram, as pessoas estão começando a acordar para isso. A gente
tem hoje profissionais do mercado trabalhando no samba. Administrador
de empresa administrando as contas do samba não é mais o amigo.
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Antigamente era muito comum se trazer um amigo do presidente para


ajudar num setor. Hoje não dá mais para fazer isto. Tem que ser
profissional. Tem que trazer um profissional de marketing para cuidar da
imagem da empresa. Um profissional de comunicação para fazer a
assessoria de comunicação. Um profissional administrador para
administrar a empresa, financeiro e assim vai (...)149

As escolas hoje funcionam num formato empresarial e movimentam uma


economia relativamente grandiosa. Segundo a RIOTUR, o carnaval movimenta
um volume de dinheiro que gira em torno dos 1,5 bilhões de reais. É claro que
estamos falando de toda a cadeia e não apenas das escolas de samba, mas
vale lembrar que, muito embora o carnaval de rua e os blocos tenham
“renascido” na cidade, o desfile das escolas de samba é o principal evento do
carnaval carioca e o atual modelo movimenta uma “indústria” o ano inteiro. Além
da movimentação financeira, há também a geração de empregos. Segundo a
Secretaria Estadual de Trabalho do Estado do Rio de Janeiro, cerca de 80% dos
empregos gerados pelas escolas de samba são de caráter temporário. Porém,
se observarmos apenas as atividades ligadas ao “barracão” (fantasias, alegorias
e adereços), este índice cai para aproximadamente 60%. Temporários ou não, a
indústria do carnaval das escolas de samba gera muitos empregos. Segundo
Regina Duran, em uma entrevista concedida em abril de 2009 para um simpósio
de excelência em gestão e tecnologia (administração em escolas de samba: os

148
A Universidade Estácio de Sá, numa parceria com a própria LIESA, foi pioneira
nesta empreitada.
149
Alexandre Pereira Brittes. Entrevista concedida ao autor.
109

bastidores do sucesso do carnaval carioca)150, “o desfile de uma escola de


samba é o maior projeto social na área de cultura do mundo”. Ora, se isto é
verdade, e acreditamos que seja, é possível que tal evento seja sustentável,
mesmo que cada vez mais caro. Porém, para que tal fato ocorresse, as escolas
precisaram assumir um formato empresarial. Isto acabou afastando grupos que
se recusaram a compreender tais mudanças como processos “naturais” de
manutenção de sua própria existência. Com um nível de exigência cada vez
maior daqueles que consomem o carnaval, ou as escolas se adaptavam ou
perderiam progressivamente espaço para outros eventos/produtos. Entretanto,
não basta apenas se tornar uma grande empresa, é necessário também associar
este novo caráter às tradições do samba. A ideia do novo não é
necessariamente absoluta, retomamos aqui a ideia de releitura das tradições
como ferramenta de adaptação entre o tradicional e o renovado, contida no
pensamento de Stuart Hall. Não é necessário romper definitivamente com as
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tradições, nem mantê-las plenipotenciariamente, o que se precisa, o tempo todo,


é relê-las:

Esse negócio de novidade é muito relativo. Por que tem de haver


novidades? Quando estava no Salgueiro, momentos antes de a escola
desfilar na Presidente Vargas, um batalhão de repórteres começou a me
perguntar qual seria a grande novidade que eu apresentaria naquele ano.
Eu disse: “Nenhuma! O Salgueiro não vem com nenhuma novidade,
desfilará do mesmo jeito que nos anos anteriores.” Para inovar, o artista
tem de fazer bonito, ser original, como o Paulo Barros, ou então repetir, de
maneira bela e benfeita, o que já existe.151

Este diálogo sempre é muito delicado e repleto de tensões, na medida em


que ou esta releitura não é bem compreendida ou não é bem feita se tem a
ruptura pela ruptura, afastando, com isso, segmentos historicamente importantes
para a escola de samba e para o carnaval em geral. Quando isso ocorre, o
prejuízo é enorme, até porque as escolas se tornam menos atrativas, inclusive
aos investimentos, quando figuras importantes estão longe da agremiação. O
abre-alas da GRES Portela, no carnaval deste ano (2012), trazia à frente da
águia, símbolo maior da escola, duas figuras emblemáticas que atraíam a
atenção de todos. Paulinho da Viola, cantor e compositor completamente

150
Este trabalho foi organizado por Carla Alves Lopes, Maria Cecília Bezerra
Tavares Malafaia e José Carlos Vinhais e apresentado no SEGeT – Associação
Educacional Dom Bosco.
151
Fernando Pamplona: Carnavalesco. Entrevista concedida ao site “O
batuque.com”, em 23 de novembro de 2004.
110

identificado com as tradições da escola, muitas vezes se posicionando


publicamente contra determinadas inovações e que esteve “fora” da escola por
muitos anos, e Marisa Monte, ligada a escola a partir do pai, Paulo Monte e de
sua ligação com a Velha Guarda. As escolas sempre conseguiram de forma
bastante interessante aliar as tradições, às novas necessidades. Mesmo que se
tenham produzido perdas, o saldo é positivo. Escolas como Salgueiro, Portela,
Mangueira e tantas outras, mantêm-se no topo das principais agremiações,
mesmo com as grave crises por que passaram ou passam, sejam crises
fundamentalmente financeiras, ou, por vezes identitárias, como a que ocorreu
com a Portela no ano de 2003 e que culminou com a eleição de um grupo há
muito afastado da escola, porque possuem um elevado grau de legitimidade
entre todos os segmentos que participam direta ou indiretamente da gestão do
carnaval das escolas de samba.
Outra questão fundamental é a forma como as escolas vão se organizar
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para arrecadar o capital necessário à produção do seu carnaval, afinal de contas


não basta ser legítima junto ao público, tem que ser atrativa também aos
investimentos externos. Já sabemos que, muito embora o aporte financeiro
garantido pela LIESA e pela prefeitura tenha aumentado, eles não são
suficientes para garantir um carnaval competitivo. Como já dissemos, não basta
uma boa ideia e uma boa concepção, é necessário, mais do que nunca, uma boa
execução, o que custa muito dinheiro. As escolas buscam caminhos diversos
para suprir esta necessidade. O que apresentaremos agora são caminhos
tomados por algumas escolas que lhes garantem maior ou menor aporte
financeiro, o que significa maior ou menor chance de lograr êxito na disputa do
título de campeã do carnaval do grupo especial.
Uma das estratégias mais utilizadas pelas escolas de samba são os
famosos “enredos comerciais”. A escolha de um enredo pode garantir um aporte
financeiro significativo. Por exemplo, são muito comuns enredos que falam sobre
cidades, estados ou países. Ao realizarem tal empreitada as escolas garantem
uma exposição gigantesca a estes lugares. Se levarmos em conta que o desfile
é transmitido, como já dissemos, para cerca de mais de 120 países, a “marca”
destes lugares tem sua visibilidade aumentada. É uma jogada de marketing que
possibilita um aumento na indústria do turismo destes locais. Quando uma
agremiação realiza um enredo deste tipo, ela espera que a retribuição venha sob
a forma de aporte financeiro. Na realidade, a decisão de desenvolver tais
enredos é balizada por um acordo a priori em que a cidade, o estado ou o país
garante um apoio significativo em troca de sua exposição. É verdade que às
111

vezes há também uma espécie busca de uma suposta identidade, não que isto
invalide a questão econômica, apenas reforça o próprio tema escolhido como,
por exemplo, o enredo de 2012 da GRES Unidos de Vila Isabel, cujo tema era
“Você semba lá... que eu sambo cá! O canto livre de Angola”. Como o próprio
samba enredo diz: “Vibra oh minha vila, a sua alma tem negra vocação. Somos a
pura raiz do samba. Bate meu peito à sua pulsação, incorpora outra vez
Kizomba e segue na missão”152, a escola fazia memória a sua suposta negra
raiz, bem como no fascinante enredo do ano de 1988, “Kizomba: a festa da
raça”, primeiro título da agremiação que a colocava, definitivamente, entre as
grandes do carnaval carioca. A mesma Vila, no ano de 2006 tornar-se-ia
novamente campeã com o enredo, “Soy loco por ti América, a Vila canta a
latinidade”. Este enredo lhe garantiu um aporte financeiro da PDVSA, empresa
petrolífera estatal venezuelana. Tornou-se bastante comuns os enredos
comerciais sobre lugares. Eis alguns exemplos:153
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2004
"A cana que aqui se planta tudo dá, até GRES Acadêmicos do Salgueiro
energia... Álcool, o combustível do
futuro"
"Manôa, Manaus, Amazônia, Terra GRES Beija Flor
Santa... Que alimenta o corpo,
equilibra a alma e transmite a paz"
2005
"Mangueira energiza a Avenida. GRES Estação Primeira de Mangueira
Carnaval é pura energia e a energia é
o nosso desafio"
"Nós podemos: oito ideias para mudar GRES Portela
o mundo"
"Alimentar o corpo e alma faz bem" GRES Acadêmicos do Grande Rio
2006
“Poços de Caldas: Derrama Sobre a GRES Beija Flor
Terra Suas Águas Milagrosas – Do
Caos Inicial,
à explosão da Vida – Água – a Nave-
Mãe da Existência”
“Na folia com o Espírito Santo, o GRES Caprichosos de Pilares
Espírito Santo caprichou!”
2007
“Caxias - O Caminho do progresso, um GRES Acadêmicos do Grande Rio
Retrato do Brasil.”

152
“Você semba lá... que eu sambo cá! O canto livre de Angola”. Arlindo Cruz,
André Diniz, Evandro Bocão, Leonel e Artur das Ferragens. GRES Unidos de Vila Isabel.
153
Optamos por selecionar alguns enredos a partir do ano de 2004. Entretanto
cumpre-se dizer que esta prática é anterior a esta data, começando a se tornar mais
comum nos anos 1980. A fonte desta relação é a própria Liga Independente das Escolas
de Samba do Rio de janeiro.
112

2008
“100 anos do Frevo, é de perder o GRES Estação Primeira de Mangueira
sapato. Recife mandou me chamar”
2009
“Vira-Bahia, pura energia!” GRES Acadêmicos do Viradouro
Voila, Caxias! para sempre. Liberté, GRES Acadêmicos do Grande Rio
Egalité, Fraternité, Merci beaucoup,
Brésil! Não tem de quê”
2010
“Derrubando fronteiras, conquistando GRES Portela
liberdade... Rio de paz em estado de
graça!”
México, o Paraíso das Cores,sob o GRES Acadêmicos do Viradouro
Signo do Sol

Não são apenas lugares que são objeto de enredos cujo objetivo é garantir
financiamento. Há também os enredos que versam sobre empresas ou
atividades econômicas. Entretanto, este tipo de enredo sempre corre o risco de
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ser confundido com merchandising, o que é terminantemente proibido pelo


regulamento. Dessa forma, a escola se obriga a passar a mensagem
subliminarmente, como foi feito no já citado exemplo do enredo da GRES
Acadêmicos do Grande Rio do ano de 2010, "Das Arquibancadas ao Camarote
Nº1: Um ‘Grande Rio’ de Emoção Na Apoteose do Seu Coração". Esta mesma
agremiação, por conta de uma parceria com uma determinada indústria do ramo
alimentício, já trouxe um enredo cujo tema fazia alusão ao marketing desta
empresa. Até mesmo a GRES Estação Primeira de Mangueira já realizou
enredos deste tipo, como o de 2005, citado na tabela anterior, cujo tema falava
sobre energia e utilizava o slogan da Petrobrás, estatal que patrocina o carnaval
carioca, tendo contrato com a LIESA, e que era, na época, uma das parceiras
econômicas da agremiação. O que vale ressaltar é que nem sempre estes
enredos são bem aceitos pela comissão julgadora, ou são de difícil concepção e
acabam não dando muito certo. O exemplo mais recente se deu com uma das
rebaixadas deste ano, a GRES Acadêmicos do Porto da Pedra, que levou para
avenida um enredo sobre a história do Iogurte, patrocinado pela Batavo. A
comissão julgadora tirou vários pontos do quesito enredo, o que ajudou a
rebaixar a agremiação.
Muito embora haja críticas a estes tipos de enredo, eles são cada vez mais
numerosos e legítimos. É característica fundamental das escolas a liberdade,
salvo questões de regulamento, de escolher e desenvolver enredos variados. É
verdade que alguns deles são tão subjetivos que às vezes só são
compreensíveis aos jurados porque são portadores das sinopses. Estes enredos
113

comerciais, principalmente aqueles que versam sobre lugares, quase sempre,


salvo problemas de execução, agradam ao público em geral (o da passarela do
samba e o da televisão). Não podemos nos esquecer de que, para realizar um
carnaval que agrade a todos, inclusive os membros das escolas, é necessário
um volume de dinheiro grande, e se o enredo pode ser utilizado como uma
ferramenta para angariar recursos, por que não utilizá-lo?
Outra estratégia utilizada para financiar o carnaval se deu pela primeira
vez este ano com a GRES São Clemente, uma escola recém-chegada do grupo
de acesso, que fez um carnaval bastante elogiado, que pôde ser construído a
partir da parceria com um empresário do ramo de eventos artísticos,
principalmente musicais. A agremiação apresentou um enredo que falava
justamente deste tipo de espetáculo, fazendo, de certa forma, propaganda do
produto que o empresário que ajudou a financiar o desfile vende. Está é uma
modalidade de enredo interessante, que ainda não se havia dado da forma que
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se viu. As escolas estão tornando-se grandes empresas e realizando carnavais


cada vez mais profissionais, o que, de certa forma, vem diminuindo a
participação econômica de figuras supostamente associadas à contravenção.
Se esta parceria era notória há algumas décadas, o número de escolas
que dependem cada vez menos destes patronos vem diminuindo. É fato que
esta transição é lenta e às vezes compromete as possibilidades financeiras das
que ficaram por muito tempo sob a tutela dessas figuras, mas hoje, mesmo
aquelas que ainda mantêm direta ou indiretamente relações com tais patronos,
são tão importantes para eles quanto o contrário. Se o patrono põe dinheiro,
certamente algum benefício ele tira deste investimento, porque, mesmo no
campo da contravenção, o jogo do bicho, atividade da maioria destes patronos, é
uma atividade capitalista, e dentro desta lógica tudo tem que ter um retorno.
Outra forma de se tornar economicamente viável está, como já dissemos,
em montar uma estrutura comercial dentro da escola. Algumas administrações
têm esforçado-se para garantir geração de riqueza ao longo de todo o ano. Um
interessante exemplo disto é a GRES Unidos da Tijuca. Esta tradicional escola,
que foi campeã pela primeira vez em 1936, figura entre as seis primeiras que
voltam a desfilar no sábado seguinte ao carnaval, no já tradicional desfile das
campeãs. Administrada por Fernando Horta, um comerciante bem sucedido, a
escola se esforça para se modernizar. Hoje a escola do Borel possui uma quadra
de ensaios fora de sua região original que figura entre as mais modernas e se
transforma num espaço para eventos privados e públicos ao longo do ano. A
escola inclusive oferece um serviço de Buffet e de organização de eventos para
114

seu público. Isto, associado aos shows, feijoadas, eventos e ensaios que
acontecem durante todo o ano, vem tornando a escola economicamente viável, o
que lhe garante a execução de um carnaval que beira a perfeição, permitindo-lhe
figurar entre as principais escolas do grupo de acesso. Além disso, a escola tem
um departamento de marketing que lança de forma profissional seus enredos,
muito antes de eles serem divulgados oficialmente pela LIESA.
Outra estratégia bem interessante para possuir uma fonte de recursos que
garanta a sustentabilidade, é a ideia de associado. As escolas sempre
possuíram sócios, mas a relação entre a instituição e o seu quadro social
sempre foi significativamente amadora. Não havia, pelo menos com constância e
profissionalismo, uma política que garantisse ao associado algumas vantagens e
que o incentivasse a manter o pagamento, ou contribuição, em dia. Além disso,
algumas escolas conseguiram transformar suas quadras em verdadeiras casas
de espetáculo, com atividades lucrativas ao longo de todo o ano, o que as
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tornam atrativas à participação de um público cada vez maior. As atividades


ligadas ao desfile se iniciam por volta do meio do ano com o concurso que vai
escolher o samba enredo e prosseguem com os ensaios, que passam a ser mais
atrativos no terço final do ano. Para além destas atividades as escolas
promovem ainda suas famosas feijoadas, e shows. Desta forma, algumas
escolas encontraram um mecanismo interessante para fidelizar seu público e
atrair sócios que garantem uma renda mensal proporcional ao tamanho do
quadro social. Vejamos a estratégia utilizada pela GRES Unidos de Vila Isabel,
uma das escolas que mais cresceu nos últimos 10 anos:

O carnaval é uma festa que não para e envolve uma estrutura


administrativa que trabalha o ano inteiro. Por isso precisamos que os
integrantes de nosso quadro social tenham suas mensalidades em dia,
ajudando desta forma, a manter os serviços fundamentais para o
funcionamento da escola. Você que ainda não é sócio, junte-se a nós e
ajude a manter esta estrutura em constante crescimento. Fazer parte do
GRES Unidos de Vila Isabel é fazer parte da história do samba e do
carnaval carioca e como sócio você tem acesso gratuito nos ensaios da
escola e descontos nos shows que irão acontecer durante todo o ano, nos
preparativos para o carnaval 2012, além de, na época de eleição de
diretoria, participar deste evento democrático, votando. Então não perca
tempo, associe-se. Faça uma visita a nossa quadra de ensaios (...)154

O que as escolas têm procurado com medidas como essas é garantir o


funcionamento de uma máquina administrativa que faz funcionar a “fábrica de

154
Notícias. In: http://www.gresunidosdevilaisabel.com.br
115

sonhos” que se materializa em um espetáculo grandioso durante o carnaval da


cidade do Rio de Janeiro. Na medida em que as escolas se transformaram,
adaptando-se às exigências dos novos tempos e dos novos mercados,
precisaram transformar também sua estrutura administrativa. Não há mais
espaços para amadorismos. As atuais exigências do mercado e do próprio
concurso impõem às escolas um nível de profissionalização que transcende a
máquina administrativa e chega à estrutura produtiva. A partir, principalmente, da
inauguração da cidade do samba, no ano de 2005, a produção do carnaval, no
que tange aos carros alegóricos, fantasias e adereços, passou a funcionar
profissionalmente, com espaço e equipamentos que permitiram aos
carnavalescos executarem com maior precisão aquilo que conceberam. No
entanto, foi preciso profissionalizar ainda mais a “linha de produção”. Para isso
algumas agremiações contam, muitas das vezes, com a parceria de empresas
público/privadas e até mesmo do Estado. Vejamos mais um exemplo da GRES
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Unidos de Vila Isabel:

A querida Unidos de Vila Isabel sabe da importância de gerar oportunidade


e estimular a qualificação das pessoas, abrindo assim inscrições para
participação em projeto gratuito com o apoio da Petrobrás e do Governo
Federal. Batizado ‘Projeto Comunidade Unida Aprende, Trabalha e Desfila
Feliz’, ele é constituído por oficinas de forração de fantasias, de técnicas
de bordados em paetês, adereços, arte plumagem, pedraria, chapelaria,
forração de esculturas e carros alegóricos, de desmonte de alegorias e de
reciclagem de material, além de introdução de modelagem e costura para
o carnaval, inclusão digital e apoio escolar (brinquedoteca). A carga horária
varia entre 30 e 160 horas, de modo que a duração dos mesmos é distinta,
tal qual o material didático, a escolaridade e idade mínimas para o
ingresso. Todos os alunos, porém, serão certificados no final dos cursos,
após avaliação (...)155

Ao realizar tal empreendimento, as escolas de samba estão tentando


garantir a profissionalização do seu barracão e também a fidelização com sua
comunidade156, o que contará muito no dia do desfile, por que, se por um lado
ele é cada vez mais técnico, por outro exigem-se dos componentes da escola o
canto, a organização e a demonstração de garra quando ele ocorre, elementos
que estão presentes nos critérios de julgamento, principalmente do quesito
harmonia. Obviamente outras escolas realizam projetos semelhantes e ainda
outros, como cursos de formação de mestres-salas e porta-bandeiras, de
155
Op. Cit.
156
Mais adiante discutiremos uma nova configuração do conceito de comunidade
presente nas agremiações.
116

ritmistas, passistas, etc. A GRES Beija-Flor de Nilópolis mantém um curso de


formação de mestres-salas, porta-bandeiras coordenadas pela porta bandeira
Selminha Sorriso, várias vezes campeã do troféu Estandarte de Ouro, oferecido
pelo jornal O Globo, aos melhores do carnaval. Esta escolha é realizada por uma
comissão julgadora independente, formada na maioria das vezes por
personalidades ligadas ao universo do carnaval:

Comandado por Selminha Sorriso, porta-bandeira da Beija-Flor, o projeto


que visa formar novos talentos para o samba carioca, além da arte da
dança, tem o objetivo de despertar, entre as crianças e jovens da
comunidade, a disciplina e a cidadania. As aulas são ministradas por
Selminha e pelo mestre-sala Claudinho. Entre os projetos sociais da
escola, as turmas de formação de mestre-sala e porta-bandeira e de
passistas estão entre as mais procuradas.157

Enfim, poderíamos citar diversos exemplos, mas o que importa é perceber


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que as escolas de samba souberam, com maior ou menor competência, adaptar-


se às novas necessidades e exigências, buscando garantir a manutenção de sua
hegemonia no cenário do carnaval carioca. Este mecanismo garantiu não só
esta hegemonia como transformou as escolas de samba em gigantescos
projetos sociais na área de cultura. A cada novo parceiro, a cada novo curso de
formação, as escolas vão profissionalizando-se e inserindo-se mais dentro de
suas comunidades, tornando-se espaços de fala delas, que se reafirmam, a cada
novo carnaval, como o lugar daqueles que de fato sabem fazê-lo, frase a muito
dita para justificar, ou trazer para as camadas populares a soberania da festa
garantida pelas escolas de samba.

4.3.
O novo conceito de comunidade: entre o afeto e a territorialidade.

Quando evocamos a ideia de comunidade, via de regra nos prendemos à


noção de territorialidade. No universo do samba, a noção de comunidade
sempre foi estabelecida como paradigma para uma dada inserção, em um
determinado espaço da produção cultural. Há um princípio histórico que atrela o
samba a uma determinada comunidade, que quase sempre é, ou pelo menos foi,
pensada a partir de uma concepção espacial. A comunidade da Mangueira, do
Estácio, da Tijuca e por aí vai. O indivíduo tendia as se constituir membro deste
universo, muito mais pela ocupação do espaço do que por qualquer outra coisa.

157
Notícias. In: http://www.beija-flor.com.br
117

O individuo se sentia mangueirense porque a escola era intrínseca à


comunidade, havendo um conjunto de característica que o fazia se sentir
mangueirense, não porque tais características estariam, a priori, impressas nas
suas escolhas, mas porque foram construídas ao longo do tempo a partir daquilo
que a escola representava para a comunidade. Como nos aponta Hall:

As identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos,


mas são formadas e transformadas no interior da representação. Nós só
sabemos o que significa ser ‘inglês’ devido ao modo como a ‘inglesidade’
(Englishness) veio a ser representada – como um conjunto de significados
– pela cultura nacional.158

. Neste contexto é que nasceram as escolas de samba, dignas


representantes de um espaço geográfico e cultural. A Estação Primeira de
Mangueira, no morro da mangueira, a Unidos da Tijuca, no morro do Borel, a
Vila, no bairro de Vila Isabel. Esta foi a lógica em que se fundaram tais
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concepções de comunidades que amparavam tais escolas. Este espectro


permanece até hoje, não é a toa que, ao iniciar um desfile, alguém que
represente aquela agremiação evoca sua comunidade a partir de um discurso
que aponta para a territorialidade. Borel, Serrinha, Mangueira, Oswaldo Cruz,
Madureira, Nilópolis, Vila são lugares evocados como uma espécie de “terra
mátria” de suas respectivas agremiações. Entretanto, em tempos de
globalização e hibridismos, a própria noção de comunidade foi se deslocando da
ideia de territorialidade e se ancorando numa proposta que passa
necessariamente, por um conhecimento de se sentir como membro da
Mangueira, da Portela, do Salgueiro, da Vila ou de qualquer outra agremiação
pela qual, por razões diversas, elegemos como nossas comunidades. Este olhar
não passa pela noção de território, mas sim por uma espécie de afeto que
construímos por dada agremiação, que carrega em si mesma determinados
simbolismos que tomamos como nossos. Nossas escolhas não são isentas, elas
se constroem sob uma base que se constitui a partir de elementos que compõem
uma espécie de avaliação e legitimidade da escolha159. Pertencer a essas dadas
comunidades é muito mais uma questão de escolha do que uma coisa inerente
ao indivíduo.
Stuart Hall, em seu trabalho sobre identidades culturais na pós-
modernidade, vai rediscutir o conceito de comunidade afirmando, a priori, que tal
sentimento passa por um processo de ressignificação a partir de um sistema de

158
HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade, p. 48/49.
159
SIMMEL, George. Filosofia do amor, p. 113.
118

representação cultural. O que insere um indivíduo, ainda segundo Hall, em uma


ideia de nação é a capacidade que esta ideia tem, a partir de uma construção
simbólica cultural que tem o “poder de gerar um sentimento de identidade e
lealdade”160. Quando pensamos na comunidade que sustenta do ponto de vista
identitário uma dada escola, precisamos romper com a ideia de território e
abraçar um conceito que se aproxime mais desta ideia de lealdade a que se
refere Hall. Tal lealdade pode ser experimentada a partir daquilo que Simmel
aponta como elemento que compõe a tessitura das redes de racionamento
social. Segundo Simmel:

Os indivíduos estão ligados uns aos outros pela influência mútua que
exercem entre si e pela determinação recíproca que exercem uns sobre os
outros161

É fato que, em sua origem, a formação destas agremiações passava


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necessariamente por uma questão de território, ou vizinhança como nos aponta


Fábio Pavão em sua dissertação de Mestrado.162 Para ele, a comunidade da
escola de samba passou por um processo de transformação, partindo de laços
de vizinhança para uma espécie de escolha particular, chamando este novo
modelo de associação de comunidade eletiva. Entendemos, porém, que, mesmo
diante da questão territorial, um dos fatores agregadores desta comunidade
passa pela ideia de afeto, que pode ser construído por diversos aspectos,
inclusive a noção de território. Ainda nos apropriando do pensamento de
Simmel, entendemos que de alguma forma as experiências do afeto, ou das
emoções, possibilitam ou perpassam as diversas formas de associação,
inclusive a comunidade que abraça e sente abraçada por uma dada escola de
samba. Já observamos que, de alguma forma, as próprias escolas buscam
construir estes laços afetivos a partir da oportunização oferecida a seus
membros comunitários de se especializarem e de muitas vezes, adentrarem no
mercado formal de trabalho, graças aos projetos sociais que oferecem. Por conta
destas construções, é correto pensarmos que, nas relações contemporâneas
que envolvem uma escola de samba, não é ela quem escolhe sua comunidade,
mas sim é escolhida para ser congregadora de um grupo de indivíduos

160
Stuart Hall, Appud. SCHWARZ, B. Conservatism, nationalism and imperialism.
In Donald, J. e Hall, S. (Org.), Politics and Ideology, p.106.
161
SIMMEL, G. Questões fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade,
p.17.
162
PAVÃO, Fábio de Oliveira; LEOPOLDI, José Sávio. Uma comunidade em
transformação: modernidade organização e conflito nas escolas de samba. Dissertação
de Mestrado. Departamento de Antropologia, UFF. 2005.
119

separados cotidianamente por questões geográficas e sociais, mas que, por uma
razão ou outra, identificam-se com aquela escola.
Este hibridismo presente na construção dessa nova ideia de comunidade
que circunda uma dada agremiação está visceralmente ligado ao processo de
popularização e de alargamento das fronteiras de consumo pelos quais passou o
desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Essa construção imaginada de
comunidade passa necessariamente pela ideia de difusão presente na obra de
Benedict Anderson, que aponta para a importância da descoberta/invenção da
imprensa como elemento que possibilitará uma espécie de aproximação pautada
na horizontalidade:

Se o desenvolvimento da imprensa como mercadoria é a chave para a


criação de ideias inteiramente novas sobre simultaneidade, ainda estamos
simplesmente no ponto em que se tornam possíveis as comunidades de
tipo horizontal-secular, transtemporais.163
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De certa forma, a construção da comunidade de uma agremiação passa


necessariamente pela difusão de sua marca, ou ainda de suas supostas
características oriundas ou não de tradições inventadas. Assim, aproximam-se
destas agremiações indivíduos que vêm de espaços geográficos distintos e
muitas das vezes distantes da região geográfica em que originalmente se
localizava a escola. Utilizamos o verbo neste tempo porque muitas das escolas
sequer estão localizadas em suas regiões originárias. Mesmo evocando o Borel,
a GRES Unidos da Tijuca, tem sua quadra na região portuária, só para ficarmos
no exemplo mais famoso. É fato que tais “mudanças de endereço” estão
relacionadas a diversos fatores, como a questão da violência originada a partir
da ocupação dos espaços primitivos pelo tráfico de drogas, ou mesmo pela
impossibilidade técnica de transformar a quadra num espaço utilizado para
grandes eventos que, como já dissemos, acontecem todo o ano e ajudam a
manter uma estrutura cada vez maior e mais cara. De certa forma, o vínculo
entre as escolas e seus “lugares” se mantém muito mais por questões ligadas às
tradições do que propriamente pela participação coletiva da população. Se, para
pensadores como Weber164 e Anderson165, as guerras trazem como

163
ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem
e a difusão do nacionalismo, p. 71.
164
WEBER, Max. Conceitos básicos de Sociologia. São Paulo: Editora Moraes,
1987.
120

possibilidade a consolidação de uma ideia de nação, ou comunidade, o universo


das disputas carnavalescas também o fazem. É durante o processo de
preparação do carnaval que esta identidade é evocada e a comunidade abraça a
escola para consolidar um carnaval competitivo.
Curiosamente, este é um fenômeno relativamente recente para muitas
agremiações que ficaram sob a tutela de alas comerciais que introduziam no
desfile componentes em nada comprometidos com a escola. A reconstrução do
conceito de comunidade se dá no momento em que, para ter um algo a mais,
aquilo que se chama no jargão popular do carnaval de chão, tornou-se
significativo. Entretanto, o que hoje se chama chão, não é necessariamente a
dança, o lúdico, mas a garra com que os componentes desfilam e cantam o
samba da agremiação, mesmo tendo que carregar fantasias cada vez mais
complexas e muitas das vezes pesadas e que acabam comprometendo o desfile
por impedir que o integrante cumpra o seu papel166. As escolas que vêm
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logrando resultados cada vez mais significativos são aquelas que fizeram um
movimento de retorno à comunidade, não mais aquela geográfica, mas a um tipo
de comunidade constituída por elementos que possuem um elo afetivo e que
escolheram, por uma razão ou outra, ser determinada escola. Como vimos no
item anterior, com o exemplo da GRES Unidos de Vila Isabel, há uma
preocupação latente nas escolas em aliar-se com suas comunidades, buscando
um processo de fidelização que produzirá um efeito positivo no desfile.
Obviamente a comunidade da Vila Isabel, transcende o morro dos Macacos e o
morro do Pau da Bandeira, e alcança regiões geográficas distantes da Vila de
Noel. Este fenômeno ocorre naturalmente em todas as escolas, inclusive nas
agremiações mais jovens:

Hoje a comunidade não é geográfica. Eu atendo aqui gente da Freguesia,


do Tanque, da Taquara, Camorim, Curicica e até da Barra da Tijuca e do
Recreio. Tem gente aqui de Campo Grande, de Bangu e de Padre Miguel.
E lá tem a Mocidade, mas o cara vem aqui. Eu vou dizer o que? Vou dizer
que ele não pode? Ele está aqui o tempo todo, desfila há anos. A
comunidade que está aqui ao lado é composta por muitos nordestinos, que
não gostam muito de samba e quase nem vem aqui. A gente faz evento e
não vem quase ninguém daqui do lado.167

165
ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem
e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.
166
Este ano a GRES União da Ilha do Governador foi penalizada em vários
quesitos porque suas fantasias estavam muito pesadas comprometendo, entre outros
aspectos a harmonia e o conjunto.
167
Alexandre Brittes. Entrevista concedida ao autor.
121

Ora, este fenômeno se explica por esta eletividade pautada pelo afeto que
baliza a organização das novas comunidades. Quando o Diretor Geral de
Harmonia da GRES Renascer de Jacarepaguá afirma que o componente que
não mora na circunvizinhança da escola esta lá todo dia, isto se explica por dois
motivos fundamentais. Primeiro porque sua escolha faz com que ele queira estar
lá, presenciar os eventos que a escola produz. Segundo porque em todas as
escolas, principalmente naquelas em que o número das chamadas alas da
comunidade são superiores às chamadas alas comerciais, o que configura a
responsabilidade do membro da comunidade, é, entre outras coisas, a
participação, nos diversos ensaios que são promovidos. Ou seja, para o
indivíduo ser aceito como membro que vai desfilar em uma das chamadas alas
da comunidade, é preciso que ele mantenha uma frequência semanal nos
desfiles. Mesmo mudando de escola para escola, sempre há um limite mínimo
de faltas para que o componente receba gratuitamente sua fantasia. Essas alas,
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que participam ativamente da preparação do carnaval de sua escola garantem


aquilo que definimos como chão. Ele se sente responsável pelo fracasso ou pelo
sucesso do desfile. Mais do que fruição, há nestes indivíduos um senso de
competitividade, que o leva a realizar um desfile tecnicamente correto. Sua
preocupação prioritária não é a diversão, muito embora ele se divirta, é a
competição. Nas alas comerciais, salvo casos em que o componente está ali
porque escolheu participar daquela comunidade, tem afeto por aquela escola e
com ela se identifica, por razões intermináveis, o de competitividade desaparece.
O indivíduo que pagou, e pagou caro por sua fantasia, está pouco preocupado
com o rigor exigido pelo concurso, ele quer mesmo é curtir o momento. É muito
comum a presença de turistas nacionais ou internacionais que muitas das vezes
sequer sabem cantar o samba enredo, e, como passar diante de um módulo de
julgamento sem cantar, significa perda de pontos, muitas das vezes estas
escolas, para não se prejudicarem, utilizam expedientes no mínimo curiosos,
como oferecer chicletes para que o componente passe mascando e leve o
julgador a crer que ele está cantando. É claro que isto nem sempre funciona. O
resultado é que as escolas que têm um número maior de alas da comunidade
quase sempre obtêm resultados melhores. Vejamos o caso da Beija-Flor de
Nilópolis. Dos quase 4500 componentes apenas cerca de 650 pertencem às
chamadas alas comerciais, distribuídas em somente 4 setores. A GRES Portela,
que até bem pouco tempo era conhecida como a escola dos turistas, apresentou
apenas 11 alas comerciais em um universo de cerca de 35 alas. É fato que a
Portela, como já dissemos, passou recentemente, em 2004, por um processo de
122

reconstrução marcado pelo retorno de elementos vinculados à escola e que há


cerca de três décadas estavam afastados, e que inclusive haviam fundado uma
escola que inicialmente era chamada de Portela Tradição, virando apenas GRES
Tradição168, que tinha a Águia como símbolo, mas teve que mudar para o
Condor por questões judiciais. Esta disputa também está permeada pela ideia de
comunidade. Muitos sambistas notórios da Portela não reconheciam a direção
apoiada por Carlinhos Maracanã (que durou três décadas. Ele é apontado como
elemento ligado à contravenção) e, ao promoverem a famosa invasão em 2003,
pretendiam retomar a direção da escola entregando-a aos portelenses
chamados de verdadeiros. Este evento nos remete novamente à ideia de
comunidade, estando ela ligada às tradições. Aliás, estes eventos não são
novidades na Portela. Já na década de 1970, como vimos anteriormente, um
grupo liderado por Candeia rompeu com a escola e fundou o Grêmio Recreativo
Escola de Samba e Artes Negras Quilombo dos Palmares. Essa ruptura
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representava na época uma negação às transformações que o samba sofria e


que ressignificavam o carnaval, e as escolas.
Mas voltemos à questão das alas de comunidade. Como já definimos, o
conceito de comunidade transcende o aspecto geográfico e é permeado por uma
escolha que atravessa o sentimento de afeto e pertencimento. Entretanto, é
fundamental pontuar que é um fenômeno muito comum que determinados
presidentes de alas comercializem uma pequena parte das fantasias que
pertencem a tais alas. O que motiva esta prática pouco ortodoxa e nada oficial
resume-se a, pelo menos, duas coisas: a necessidade de completar uma ala, em
função de uma adesão menor do que a esperada; e talvez a principal, o desejo
de obter alguma vantagem financeira, mesmo que mínima, na medida em que
nos tempos em que as alas comerciais eram maioria, muitos diretores de alas
viviam economicamente do comércio de fantasias. O que hoje vemos é que
presidentes de alas comerciais, geralmente coordenam alas em várias
agremiações, a fim de aumentar seus ganhos. Quando vamos efetuar a compra
de uma fantasia, a primeira pergunta que ouvimos é referente à qual fantasia de
que escola estamos interessados.
Outra questão que deve ser abordada quando discutimos a ressignificação
da noção de comunidade, é a da identidade. Já nos propomos a alargar o
conceito de sambista anteriormente. No momento contemporâneo em que a

168
Atualmente a GRES Tradição, desfila no grupo de acesso B, tendo ficado neste
ano em quinto lugar. Cabe ressaltar que para o ano de 2013 a prefeitura fundiu os
grupos A e B, criando o chamado grupo de ouro.
123

polifonia é um instrumento eficaz para consolidar o samba como espaço de fala


de uma dada categoria subalterna, o diálogo com outros elementos, que a priori
parecem distantes do universo do samba, foi fundamental. Para nossa análise, a
entrada em cena de elementos oriundos de outros segmentos sociais não
compromete o caráter popular do samba e se configura numa releitura das
tradições e, como já dissemos, acaba por reforçar este caráter. Desta forma,
para nós, a concepção de sambista, como já foi explicitada anteriormente, deve
ser alargada. Esses elementos oriundos de outros lugares, distantes da tradição,
também possuem uma identidade de sambista. Carnavalescos, profissionais de
diversas áreas, como historiadores, administradores, publicitários, etc, ao se
vincularem profissionalmente a uma dada escola e dela participarem
efetivamente, passam a viver o samba numa intensidade tão grande quanto a
dos elementos ligados às tradições. Desta forma, o ser sambista é uma
identidade que se faz presente, e é evocada por todos os que de alguma forma
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estão ligados a este universo.


Curiosamente, dentro de uma lógica proposta pelo próprio Stuart Hall, que
identifica a presença de múltiplas identidades no indivíduo, podemos pelo menos
encontrar duas identidades que configuram o indivíduo que está ligado a este
evento. A primeira é a de pertencimento a uma dada agremiação. Esta
identidade aflora, de forma mais intensa durante a disputa, e se dilui, dando
espaço à identidade de sambista, quando a disputa já terminou, ou ainda não
começou. Na realidade, o ser pertencente a uma dada agremiação não o impede
de ter simpatia, frequentar e admirar outras agremiações. Há, é verdade, uma
fidelidade à escola que o indivíduo escolheu para pertencer, mas há outra
fidelidade, que é ao samba. Quando os segmentos mais tradicionais criticam que
um carnavalesco, ou qualquer outro elemento, ora está em uma escola e ora
está em outra, eles estão negando algo que é óbvio ao formato atual: a
profissionalização. Entretanto, é curioso perceber que existem outros elementos
que não recebem remuneração mas que também participam de mais de uma
agremiação por amor ao que fazem e ao carnaval. Analisemos a figura do
ritmista. Elemento ligado ao coração da escola é muito comum que este
indivíduo desfile em mais de uma agremiação. Observemos o depoimento do
ritmista Maurício “Pipa”: “Eu desfilo atualmente em cinco escolas – Grande Rio,
Porto da Pedra e União da Ilha e São Clemente, no grupo especial, e Alegria da
Zona Sul, no grupo de acesso”. É claro que ele possui sua escola de coração,
aquela que, por relações que passam pelo afeto, ele escolheu para integrar.
Entretanto, há uma identidade que pulsa forte, que é a identidade do sambista.
124

Durante os dias de desfile, sua fidelidade é ao carnaval, ao samba e não apenas


a uma agremiação. Desta mesma forma, aqueles que vivem do carnaval
profissionalmente têm suas escolhas particulares, mas sua fidelidade maior é ao
universo do samba, do carnaval, até por que é dele que tira o sustento.

Hoje não tem mais espaço para amadorismo no carnaval, mas tem muito
espaço para quem gosta de trabalhar. Tem que cair dentro. Hoje ainda é
muito trabalho. A remuneração é razoável é muito trabalho (...) Então eu
vejo isto: hoje é tudo profissional, eu vejo um mercado ainda pouco
explorado, as pessoas não acreditam que o samba sustenta uma família, e
sustenta. Um profissional do samba hoje pode ter um salário razoável,
melhor que no mercado. Tem professores trabalhando comigo,
profissionais da administração vindo trabalhar no carnaval, saindo de
empresa tradicional e vindo para a empresa carnaval(...)169

Esta nova realidade cria um vínculo entre o indivíduo e o carnaval. É como


se existisse um macro universo, o carnaval e vários micros universos que se
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relacionam intensamente entre si e com ele, que são as escolas de samba.


Estas duas formas identitárias não se anulam, ou se completam, apenas
coexistem, e se sobressaem num mesmo indivíduo, dependendo da conjuntura
em que ele esteja envolvido em um dado momento:

Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não


tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se
uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em
relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos
sistemas culturais que nos rodeiam (...) O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao
redor de um eu coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações
estão sendo continuamente deslocadas (...) à medida em que os sistemas
de significação e representação cultural se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de
identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar
– ao menos temporariamente.170

Este é o grande dilema a ser discutido. Quando escolhemos fazer parte de


uma agremiação, assumimos uma identidade que passa a conviver lado a lado
com outra, a de ser sambista, a de estar visceralmente ligado ao complexo
universo do carnaval carioca. Desta forma, esta nova comunidade – pautada no
afeto que se constrói por uma dada agremiação a partir da identificação que
sentem com um conjunto de símbolos que se ressignificam a cada dia, e na

169
Op.Cit.
170
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, p. 12/13
125

escolha que fazemos, pautada neste afeto e que não é necessariamente natural
– é construída a partir da identificação de uma espécie de lugar comum, de
pertencimento, dialoga constantemente com outra comunidade muito mais
abrangente que é a comunidade que representa o universo do samba.
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5
Conclusão

Segundo o diretor do departamento cultural da Liga Independente das


Escolas de Samba do Rio de Janeiro, o carnaval é uma festa que possui
aproximadamente seis milênios de história. Segundo ele, após a última glaciação
da terra, quando provavelmente os homens se fixaram nos campos e passaram
a viver da agricultura, iniciaram-se as festividades, normalmente ligadas aos
ciclos naturais da agricultura. Eram festividades que giravam em torno dos
corpos celestes, possuindo formas simples. Mais tarde, quando as relações de
produção aumentaram sua complexidade e a relação entre os homens assumiu
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uma característica notadamente de exploração, as celebrações adotaram


modelos mais complexos e serviram como uma espécie de válvula de escape.
São estas festas que Hiram Araújo chama de início de história do carnaval,
apontando dois grandes “centros de excelência do carnaval”171:

O primeiro centro de excelência do carnaval se localiza no Egito. É o


modelo mais simples de carnaval e consta de danças e cânticos em torno
de fogueiras, logo se incorporando aos festejos, máscaras e adereços, e à
medida que as sociedades evoluem para a divisão de classes, orgias e
libertinagem (na acepção de liberdade, culto ao corpo, ao belo humano).
Os festejos se ligam a totens e deuses (é importante e relevante lembrar
que o fogo, a água, a terra e o ar entram em conjunção com as forças
vitais sobre as quais repousa o universo)... O segundo centro de
excelência do carnaval desenvolve-se na Grécia e em Roma, entre os
séculos VII a.C. e VI d.C. Com as sociedades já organizadas em castas e
rígidas hierarquias, com nobreza, o campesinato e os escravos
nitidamente separados por classes sociais, acentuam-se as libertinagens,
e licenciosidades, provocadas, ao que se supõem, pela necessidade da
criação de válvulas de escape. Sexo, bebidas e orgias incorporam-se,
definitivamente, às festas que, juntamente com o elemento processional e
a inversão de classes, compõem o modelo que alguns autores consideram
o fulcro estético e etimológico do carnaval. 172

Ao buscar origens tão longínquas, acabamos encontrando aspectos ainda


fundamentais na estrutura do carnaval contemporâneo. O carnaval é ainda uma
festa associada ao corpo, um espaço natural de transgressão, onde podemos,
171
Esta é uma expressão do próprio Hiram Araújo, que entendemos ser um tanto
exacerbada. Entretanto, vamos nos apropriar dela para construirmos nossa linha de
pensamento.
172
ARAÚJO, Hiram. Carnaval, seis milênios de história, p.3/9
127

se quisermos, realizar nossas fantasias. É um período de libertação das


convenções que amarram e organizam a vida em sociedade. São os “infernais
dias de momo”, quando o nobre vira plebeu e o plebeu vira nobre. Este espaço
de transgressão, que, segundo Hiram, tem suas origens mais remotas no antigo
Egito, permaneceu e atravessou a história da humanidade, sendo inclusive
adicionado ao calendário cristão no ano de 590. Segundo Bakhtin173, os festejos
carnavalescos ocupavam um lugar de destaque na vida do homem medieval,
pois era o momento em que ele poderia experimentar uma espécie de segunda
vida “baseada no princípio do riso” e da festa, que contrapunha uma lógica
religiosa que via como pecado estas práticas. Curiosamente, a Igreja vai
incorporar no calendário litúrgico o carnaval, que prepara o início da quaresma,
construindo aquilo que Hiram Araujo vai chamar de terceiro centro de excelência
do carnaval ou o carnaval cristão clássico. A incorporação do carnaval no
calendário litúrgico e a oficialização do nome carnaval são íntimas, na medida
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em que nestes festejos se comeria e se beberia de forma abundante, para, na


quaresma, tempo de preparação para a celebração do tríduo pascal, praticar-se
o jejum174. Isto impôs ao carnaval um calendário móvel que, aliás, temos até
hoje, muito embora haja correntes dentro da LIESA que defendem a marcação
de uma data fixa que facilitaria as questões econômicas que hoje fazem parte,
principalmente, do carnaval das escolas de samba. A questão é que a chegada
do carnaval ao continente americano, junto com o processo de colonização,
trouxe para o Brasil, em especial, uma tradição de ruptura festiva para a
sociedade brasileira. O Brasil foi experimentando o surgimento de festejos
celebrativos cada vez maiores. Alguns estudiosos chegam a apontar uma data
provável para o primeiro desfile carnavalesco, que teria sido em 1641, na cidade
do Rio de Janeiro, por conta das festividades da restauração portuguesa:

A notícia da restauração chegou a Benevides por meio de carta do vice-rei


Dom Jorge de Mascarenhas, Marquês de Montalvão. Acompanhava outra,
do próprio rei, que o confirmava na capitania. Benevides convocou os
cidadãos importantes do Rio de Janeiro a uma reunião no Colégio dos
Jesuítas, na qual expôs as cartas. E, obviamente, todos se proclamaram
leais ao rei. Programaram também, como estava próxima a Semana Santa,
a realização de festividades depois da Páscoa.
Para financiá-las, solicitou o Governador contribuições voluntárias; os que
não as fornecessem, seriam presumidos “apaixonados de Castela”. Esses,
se mesmo após as festividades, não aderissem aos ‘leaes ânimos

173
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no renascimento – o
contexto de François Rabellais. São Paulo/Brasilia: Editora da UNB, 1993.
174
BURKE, Peter. A cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Schwarcz,
1995.
128

Portuguezes e Brasilientes em serviço de seu verdadeiro Rey’, seriam


convidados a se retirar para Buenos Aires.
As festividades tiveram início em 31 de março de 1641, domingo de
Páscoa, e se prolongariam até o domingo seguinte. Os cidadãos ornaram
suas janelas com luminárias; salvas de canhão das fortalezas eram
periodicamente disparadas, e cento e dezesseis cavaleiros ricamente
ornados percorreram a cidade, dando vivas ao Rei.
No domingo de Páscoa, apresentaram-se carros com rica ornamentação e
música.175

Iniciava-se aí uma saga que atravessaria a nossa história chegando aos


dias de hoje, quando certamente se estabeleceu o maior dentre todos os centros
de excelência da história do carnaval mundial: o desfile das escolas de samba
do Rio de Janeiro, objeto de análise e reflexão desta tese.
A primeira conclusão que nos arriscamos a estabelecer como dada nestas
poucas dezenas de página está relacionada justamente ao início deste texto
conclusivo. Apesar de todas as transformações sofridas pelo carnaval,
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principalmente aquele capitaneado pelo samba, cremos que podemos afirmar,


com certa margem de segurança, como buscamos comprovar ao longo do
trabalho, que ainda é possível vê-lo como um espaço da subversão e da
transgressão. Se compreendermos estas mudanças, como propomos ao longo
de toda esta tese, enquanto estratégias, podemos concluir que elas não se
configuraram instrumentos de domesticação, ao contrário, garantiram a
manutenção deste caráter transgressor, que configura um espaço de fala de
dadas categorias subalternas.
Ao eleger um dado conceito de cultura popular pautado na ideia de que as
categorias subalternas produzem suas representações culturais para que
operem dentro de uma clave de contenção e resistência, não negamos que tais
representações possam se constituir a partir de uma matriz híbrida. Ao contrário,
podemos concluir, ao longo da tese, que, justamente por se construir
hibridamente, é que o samba pode se fazer ouvir em espaços cada vez mais
distantes de seus locais de origem.

O surgimento das escolas de samba no cenário carnavalesco possibilitou


uma vasta interação entre diferentes grupos sociais, num processo que
trouxe para as escolas de samba, não só uma grande vitalidade, como
também, talvez por isso mesmo, uma extraordinária tensão... A tensão
entre o visual e o samba é vital. Possibilitou a expansão e as
transformações das escolas ao longo do século, e creio mesmo que

175
CAMPOS, Antonio. Um raro registro musical no Rio de Janeiro em 1640.
http://www.movimento.com
129

enquanto ela perdurar perdurarão as escolas e a graça de sua


competição.176

Outra questão relevante que esperamos ter conseguido tornar claro é que,
ao admitir que outras falas se fazem presentes no universo do samba, estamos
propondo que estas outras não ocupam o lugar da interlocução. Elas não falam
pelas categorias que representam o espaço da tradição, ao contrário, há uma
relação dialógica entre todas estas vozes. Desta feita, concluímos que quando
elementos ligados à academia adentraram no universo do samba e realizaram
um revolução estética, eles não se tornaram protagonistas do espetáculo.
Entendemos que estes indivíduos se transformaram, no máximo, em mediadores
entre o novo e o tradicional. O protagonismo ainda cabe a segmentos muito mais
ligados à tradição do que se crê. Ritmistas, compositores, mestres de bateria,
baianas, velhas guardas, e tantos outros setores ainda são e o serão por muito
mais tempo os grandes atores deste espetáculo a céu aberto. Se a técnica e a
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perfeição são peças importantes deste complexo jogo, estes elementos


representam aquilo que precisa ser garantido. Como disse Fernando Pamplona
em uma entrevista concedida ao sítio “obatuque.com”, “eu aprendi mais com o
morro do que o morro comigo”.
Cumpre dizer que – ao propor uma análise entre as relações estabelecidas
entre o samba, o sambista e a indústria cultural – objetivamos construir um
debate acerca de uma relevante questão que envolve os interesses que
direcionam as ações que cercam o universo do samba. Cremos ainda que, ao
alargar as fronteiras da definição do sambista, trazendo para dentro dela a
emblemática e controversa figura do carnavalesco, estamos confirmando a tese
de que há no samba um universo de vozes que atravessam esta representação.
Mesmo sabendo que a relação entre o carnavalesco e os setores mais
tradicionais do samba é por vezes conflituosa, entendemos que a contribuição
trazida por estes elementos garantiram releituras significativas das tradições.
Estas figuras, mesmo sendo responsáveis por inovações técnicas, garantiram,
num jogo de rupturas e permanências, a perpetuação de uma ideia de ampliação
do alcance destas falas.
Esta proposta só é possível de ser pontuada por que entendemos que há
também uma profunda transformação no conceito de comunidade. Concluímos
que as escolas de samba transfiguraram a ideia de comunidade fazendo-a
migrar de uma lógica territorialista para uma lógica afetivo-eletiva. Este formato
176
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos
bastidores ao desfile. p.51/53.
130

possibilita um novo olhar para o universo das relações que se desenrolam neste
universo, pois na medida em que estabelecemos o afeto como paradigma para
uma voluntária inserção dentro de uma agremiação carnavalesca, permitimo-
nos afirmar que, mesmo oriundos de universos bem distantes das comunidades
tradicionais do samba, o carnavalesco, ou qualquer outro elemento pode-se
inserir e contribuir para que a escola permaneça alargando suas possibilidades
discursivas e de representação de uma dada cultura. Esta leitura particular
acerca da comunidade e da relação entre estes novos elementos e os
segmentos mais tradicionais nos permite concluir que, seguindo os passos de
Hall, há um deslocamento da noção de identidade do sambista. O que
concluímos é que há uma dupla noção de identidade que se desloca dentro do
indivíduo: uma, como pontuamos, é aquela que está relacionada a sua opção
por uma agremiação e sua fidelidade, nas atividades mais pertinentes ao desfile,
a esta agremiação que ele escolheu por uma sorte de razões; há uma outra, a
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que chamamos de identidade de sambista que faz com que este indivíduo
mantenha relações com todo o universo do samba, e não apenas com sua
escola. Desta forma, quando um carnavalesco sai de uma escola para outra
pode-se muito bem, para além das questões econômicas que hoje são uma
realidade, entender que, naquele momento, há uma preponderância da
identidade de sambista.

(...) vimos que as comunidades que compõem o mundo do samba


possuem características particulares, mas compartilham valores comuns
que realçam, na interação com a sociedade mais abrangente, a identidade
de sambista. Em qualquer quadra de escola de samba, podemos dividir as
pessoas presentes em três categorias mais gerais, de acordo com os
vínculos mantidos com o próprio grupo e com o mundo do samba.
Utilizaremos a classificação entre “comunidade”, “visitantes” e “turistas”
para procurar compreender as interações estabelecidas nas quadras de
ensaio. Tomemos, por exemplo, a quadra da Portela. Em qualquer noite de
ensaios algumas pessoas estão sempre presentes. São os membros do
próprio grupo, os indivíduos que compõem a comunidade da escola.
Alguns são membros de outras agremiações, frequentando a Portela
apenas esporadicamente, sobretudo em ocasiões especiais. Entretanto,
por fazerem parte do mundo do samba, compartilham com os membros do
grupo anfitrião a identidade de sambista. Não são estranhos aos rituais
que serão apresentados, mas, naquele espaço, são apenas visitantes, pois
não estão em sua própria “casa”. Muitos presentes, ao contrário, não
podem ser definidos como sambistas. Não possuem qualquer vínculo com
a Portela ou com o mundo do samba. Frequentam escola de samba por
curiosidade ou para curtirem alguns momentos alegres ao som de uma
bateria. São conhecidos pelo grupo como turistas.177
177
PAVÃO, Fábio. Uma comunidade em transformação: modernidade organização
e conflito nas escolas de samba, p. 38
131

Outra questão que buscamos discutir é a ideia de que todas as


transformações que permearam o universo das escolas, quer seja no desfile,
quer no julgamento, foram impostas de segmentos “de fora” do universo do
samba. Abandonando esta tese buscamos comprovar que tais transformações,
que também se enquadram naquilo chamamos de estratégias, muitas das vezes
vêm de dentro da própria escola, ou, no máximo, vêm de uma relação
estabelecida entre as escolas e a indústria do entretenimento, como por
exemplo, a televisão. Obviamente, colocamos esta relação dentro de um
conjunto de relações de onde o samba busca retirar as vantagens que o
permitem perpetuar-se enquanto hegemônico no cenário das representações
culturais da sociedade brasileira.
Por fim, o que esperamos ter consolidado durante a escrita deste trabalho
é a tese de que as relações estabelecidas entre o samba e o Estado, entre o
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samba e a academia, e entre o samba e a indústria cultural se configuraram em


uma estratégia malandra que faz do samba (da escola de samba) a
representação mais coerente da ideia de malandro regenerado postulada por
Cláudia Neiva Matos. Se de fato existiu na história da cultura popular brasileira
algo que se assemelhasse radicalmente a esta figura, foram as escolas de
samba. Estas souberam, como poucas instituições, usar aquilo que teoricamente
se postava diante de si como uma força contrária a sua lógica, para torná-las
ainda mais vibrantes e coerentes. Não estamos, contudo, querendo confinar as
relações a uma prisão dicotômica, em que um lado representa a tese e o outro a
antítese, nem negar que, de fato, tais conflitos podem ocorrer dentro desta
lógica. Queremos apenas propor outro olhar para estas tensões, um olhar que as
entenda como forças que dialogicamente proporcionam ao samba (às escolas de
samba) manter-se enquanto espaço de fala destas categorias subalternas.
Cremos ainda que, graças a essas estratégias malandras, as escolas de samba
garantiram, ao longo de todo o século XX e até agora, a manutenção do espaço
da subversão e da transgressão do carnaval. Construindo avanços e
retrocessos, contendo, enfrentando, dialogando, ressignificando e
reconfigurando seus discursos, o samba (assumindo a figura do “último
malandro”) vai se mantendo como principal manifestação de cultura popular
brasileira, garantindo desta forma um espaço de fala significativo para as
categorias subalternas que permanecem como protagonistas do maior
espetáculo da terra: o carnaval das escolas de samba.
6
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7
Anexos

7.1.

Entrevistas concedidas ao autor

7.1.1.
Jandyr Antunes e Jayme da Vila

Autor – Qual o significado do carnavalesco na produção do carnaval de


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uma escola de samba?


Jandyr Antunes – A figura do carnavalesco, em minha opinião, todos na
escola ficam aguardando, esperando, ele apresentar o tema enredo, o enredo, e
aprovado, ele começa a desenvolver a sinopse para passar para os
compositores para eles fazerem o samba enredo, apresenta o figurino geral da
escola. Mas ele também tem que apresentar logo a planta dos carros alegóricos.
Porque primeiro se começa no barracão para depois ir fazer as fantasias. Então,
ele tem que montar a planta baixa, fazer o desmonte todo dos carros do ano que
passou para poder montar os novos. Tem que verificar as ferragens, para saber
se elas vão aguentar o que ele quer fazer. É assim que ele começa. Depois, ele
vai pesquisar o tipo de fazenda, de tecido para realçar o desfile. E também deve
participar ativamente do processo de escolha do samba enredo, porque ele é
que sabe o que vai botar na avenida. Há tempos atrás o carnavalesco esperava
os compositores apresentarem o samba enredo, ele esperava a escolha e ia
trabalhar em cima do samba vencedor, mas isso já mudou. Hoje em dia, o
carnavalesco dá opinião e às vezes é até parceiro do samba enredo. Então
assim, preliminarmente, é o papel do carnavalesco, depois é com a diretoria, o
diretor de carnaval.
Jayme – O carnavalesco, atualmente, ele é o principal na formação do seu
enredo, mas na avenida, hoje, no carnaval de hoje, o diretor de carnaval é o
principal veneno da escola. É ele que proporciona aos seus componentes hoje, o
canto, o samba, a coreografia dentro do samba. Modificou-se muito o carnaval,
porque hoje o carnavalesco manda no barracão, nas alegorias, nas fantasias e
148

na avenida quem manda é o diretor de carnaval. É uma figura muito forte. A


figura forte do carnavalesco modificou-se depois que criaram a figura do diretor
de carnaval. Diminuiu-se até a figura do diretor de harmonia que era a figura
principal da escola dentro da avenida. Hoje empurra-se a figura do diretor de
carnaval que é o responsável pela escola e depois, quando dá errado, culpam o
diretor de harmonia.
Autor – Então, historicamente nós temos primeiro o protagonismo do
diretor de harmonia, depois do carnavalesco e hoje temos o da figura do diretor
de carnaval. O Laíla teria sido o grande criador deste protagonismo? Ele foi o
criador da figura do diretor de carnaval?
Jandyr Antunes – O Laíla é muito importante, na Beija Flor ele manda mais
do que o carnavalesco, tanto que os carnavalescos que trabalham com ele na
Beija flor, estão sempre brigando com ele, saindo fora. O que acontece é que o
diretor de carnaval, no caso o Laíla, criou esta responsabilidade pra ele e deu
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certo. Tanto deu certo que os carnavais que a Beija Flor vence é o Laíla, até o
presidente diz que é o Laíla, diz que ele é o cara. Agora ele é o cara por que o
presidente, que conhece menos, da este poder a ele. O Laíla conhece. Basta ver
com quantos carnavalescos bons o Laila já trabalhou: o Pamplona, o Renato
Lage, a Maria Augusta e o Joãozinho trinta. Ele trabalhou com estes todos e
tirou, aprendeu um pouco com cada um. E ele que é um cara inteligente
aprendeu tudo e hoje, não é só no Rio não, no Brasil inteiro quando fala em
carnaval fala em Laíla. Já deixou furo, alguns erros, mas ele é o cara.
Autor – Podemos dizer então que o carnavalesco ajudou a Escola de
samba a se manter como protagonista do carnaval carioca?
Jayminho – O carnavalesco, dentro do propósito de criação do novo
carnaval que a LIESA criou. A LIESA criou este novo carnaval dos carros
alegóricos gigantes das várias pessoas bem fantasiadas e bem equipadas
dentro do propósito do desfile. Então o que aconteceu foi que o carnavalesco
ganhou a importância que tem hoje. Porque no passado, eu que fui diretor de
harmonia por mais de trinta anos na Vila, vi, naquela época, Pamplona, Maria
Augusta que começaram no Salgueiro, que, naquela época, era uma escola
pobre, a Vila emprestava dinheiro pro Salgueiro. Hoje o carnavalesco é uma
figura fora de série no carnaval. Não é um carnaval de comunidade é um
carnaval de grandes sociedades. Os carnavalescos fazem hoje o carnaval das
grandes sociedades. As escolas de samba eram pobres, não tinham esta
pujança. Nos anos 1970 o Ismael se recusava a chamar as escolas de escolas
de samba, chamava de grandes sociedades. Os carnavalescos pegaram o
149

gancho das grandes sociedades e dos ranchos, que não existem mais, e
botaram dentro das escolas de samba. Aí hoje, o sambista do morro, pobre, não
aparece, não tem como fazer seus passos sua coreografia como fazia o Moisés,
o Gargalhada e o Vitamina. Hoje você não vê estas pessoas militando na
passarela. Se passa, passa invisível pelo gigantismo que os carnavalescos
colocam na avenida.
Autor – Como é o convívio do carnavalesco e/ou do diretor de carnaval
com os setores mais tradicionais da Escola como a Velha Guarda e Baianas?
Jandyr Antunes – Não é fácil. Na verdade, é o seguinte: a mudança deste
carnaval começou em 1984 quando foi inaugurado o Sambódromo. Este
carnaval ainda não era todo da Liga, era também da Riotur. Se fosse da Liga a
Mangueira não teria feito o que fez: ir até a apoteose e voltar. A mudança veio a
partir daquele carnaval, eu não tenho a estatística, a partir de 1984, não sei o
Ranking de 1984 para cá, mas me parece que Beija Flor e Imperatriz acumulam
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a maior quantidade de títulos. Escolas de diretores da Liga. É uma verdade que


precisa ser discutida. As escolas sem grandes diretores da Liga raramente
vencem. Veja a Grande Rio, quantos carnavais venceu...
Jayminho – São raras as exceções como a Vila em 1988 que venceu e
eles tomaram um susto.
Jandyr – Eu ainda não respondi sobre o convívio. Ele não existe. Os
carnavalescos têm que engolir, porque Velha Guarda é Velha Guarda e Baiana é
Baiana. Mas já tentaram tirar as senhoras da ala alegando que não aguentavam
o peso das fantasias. O convívio do carnavalesco com a Velha Guarda... é que
eles acham que a Velha Guarda atrasa o desfile, tanto que tiraram a Velha
Guarda da comissão de frente e do fim do desfile, botaram no meio para ser
empurrada. Dizer que a convivência é pacífica é mentira!
Autor – Mas nem com aquele segmento da Velha Guarda que se
beneficiou com estas mudanças, e faz um show atrás do outro, a convivência é
boa?
Jandyr – Só para se ter uma ideia, a Portela tem pelo menos três Velhas
Guardas. O grupo ligado ao Monarco, a Velha Guarda musical. Com este grupo
o relacionamento é bom, mas com a Velha Guarda tradicional, que não participa
do grupo musical, mesmo sendo músicos ou compositores, este grupo fica de
fora mesmo. Com esta maioria o convívio não é pacífico não. Eles têm que
engolir. E só engolem, só para você ter uma ideia, tem Baiana abrindo o desfile.
Tem o Abre Alas e depois vem as baianas, ali não é o lugar delas.
150

Autor – A gente sabe que o desfile das escolas de samba e carnaval


possui intimidade muito grande com a religiosidade de base africana (umbanda e
candomblé). Do ponto de vista da religiosidade as baianas deveriam ficar no
meio ou na parte final? Porque na frente é o lugar de quem abre os caminhos.
Isto é correto?
Jayminho – Sim. O certo das baianas é lá atrás, ou no meio. Na minha
época eu gostava de trazer as baianas lá na retaguarda era uma referência à
tradição do samba e das escolas de samba.
Autor – Há hoje um movimento por parte de algumas escolas de volta à
comunidade. A Beija Flor foi protagonista. Todos que desfilam lá têm alguma
ligação com a escola. A Vila também tem realizado este movimento. De que
forma isto está impactando na Escola?
Jayminho – A Vila ainda tem ala comercial, ela não pode abrir mão destas
alas. As chamadas alas da comunidade são maioria. Mas eles dizem ala da
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comunidade, mas se a comunidade não pagar, não desfila. A Vila não consegue
bancar o Pau da Bandeira e o Macaco. A maioria desta galera não está no
desfile. A escola até veste uma proporção... o Macaco e o Pau da Bandeira são
muito grandes. Ela veste uma proporção para não perder a comunidade, isto é
obrigação. Inclusive ajuda as alas comerciais a cantar o samba com todo o
respeito. Quando eu era diretor de harmonia eu botava uma ala da comunidade
atrás de uma ala comercial para obrigar a ala comercial cantar o samba.
Jandyr – Há uma mística hoje no carnaval que é a ala de comunidade. Mas
não é não. Ala de comunidade hoje é quem frequenta a escola. O camarada as
vezes mora, falando aqui da vila, mora no morro do macaco mas não consegue
frequentar a escola por vários motivos. O outro mora lá em Copacabana e como
ele frequenta toda a semana, como ele vai a todos os ensaios, ele passa a ser
da comunidade. E tem mais, ala da comunidade se é para falar a bem da
verdade, é para encher o bolso de muito malandro. Tem muito malandro
enchendo o bolso de dinheiro dizendo que a ala é da comunidade e não é. A
metade é da comunidade, de quem frequenta o ensaio toda a semana sem falta,
a outra metade não é, ele vende. Ala da comunidade e ala comercial para mim é
tudo igual.
Autor – Pode se relacionar este modelo grandioso, caro, que as escolas de
samba do grupo especial e também do grupo de acesso A realizam e as
dificuldades econômicas das escolas dos demais grupos de acesso? Ou estas
dificuldades são fruto de uma incompetência administrativa da própria escola?
151

Jandyr – Nós vimos aí, há alguns anos atrás, e quem acompanha carnaval
há de lembrar que foi dito em verso e prosa que a subvenção da Liga e da Riotur
daria para fazer o carnaval de qualquer escola. Não haveria necessidade de
patrocínio por que o dinheiro daria para fazer o carnaval. Mas acontece o
seguinte, tem escola de samba que além da subvenção da Liga e da Riotur, tem
um patrocinador, ou um patrono. Aí ele sempre bota um dinheiro a mais, além da
subvenção da Liga e da Riotur e com isso a escola vem fazendo uma
apresentação bem melhor do que as outras, que não tem patrocinador para
bancar certas coisas. Os quesitos principais, por exemplo, Mestre Sala e Porta
Bandeira, são bancados. O Intérprete é bancado, saí de uma escola e vai para
outra porque é bancado. Aí houve uma variação e viram que só com dinheiro da
subvenção da Liga e da Riotur não dava para brigar, porque ia perder sempre o
carnaval, aí veio o tal carnaval patrocinado, dependendo do gestor deste
patrocínio. Tem gente que trabalha com gestão de carnaval só para arranjar
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patrocínio, então o camarada arruma um patrocínio lá com a Petrobrás, por


exemplo, ele ganha uma porcentagem e passa uma porcentagem, a maior parte
para a escola de samba. Juntando com o dinheiro da subvenção o cara vai fazer
um carnaval melhor. Então é isso. E essa coisa não vai mudar, depois que
inventaram que o carnaval é show, não é mais aquele carnaval do nosso tempo,
é show, eles não falam, mas, tem presidente de escola que fica rico da noite
para o dia, de um ano para outro.
Autor – Será que se toda esta estrutura (a indústria cultural) não tivesse
entrado no carnaval, as escolas de samba teriam o papel que tem hoje?
Jayme – Não teria, porque o carnaval hoje é muito caro. A estrutura do
carnaval hoje é muito cara. As ferragens, as peças que são compradas, vem
quase tudo de fora e é tudo muito caro. Para mostrar o carnaval para o turista.
Sem grana, sem carnaval.
Autor – Nós temos um fenômeno relacionado à diferença financeira entre
os grupos: as escolas que sobem geralmente são rebaixadas no ano seguinte.
Isto está relacionado com o gigantismo do modelo do grupo especial e agora do
grupo de acesso A?
Jayme – Isto é o ioiô das escolas de samba. Depois que a Liga criou esta
coisa de botar só 12 escolas no grupo especial, de subir só uma e descer só
uma, a que vem de baixo, que sobe, não tem condições de competir com quem
está lá em cima e acaba sendo rebaixada no ano seguinte. Sobe para descer.
152

Jandyr – Mas também é má administração. Tem cara que não tem carisma
para dirigir uma escola de samba. Veja só o Paulo de Almeida lá na
Caprichosos. Ele afundou a Ponte e agora esta afundando a Caprichosos.
Jayme – Nós temos lá na São Clemente a família que é apoiada pelo
Anízio, mas a escola não se firma no grupo especial. É a escola que mais sobe e
mais desce.
Autor – E o Império Serrano que sofre o mesmo fenômeno e agora é
administrada por uma pessoa tradicional da própria escola que é o Átila. Sua
presença pode transformar este quadro?
Jandyr – Eu tô preocupado, porque não sei se o Átila vai conseguir
administrar a escola. Não sei se ele vai ter dinheiro para fazer o que acha que
deve ser feito.
Autor – Então, na opinião de vocês o fracasso de algumas escolas é
resultado do modelo e da má gestão?
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Jandyr – Exatamente, são as duas coisas. Eu posso citar aqui a Em cima


da Hora, enquanto ela era administrada pelo João Severino, ela disputava pau a
pau com as grandes. Depois que o Severino saiu e entrou o primo do Sérgio
Cabral, aí não teve jeito. Caiu com o enredo Os sertões, que curiosamente
trouxe para avenida um samba considerado por muitos críticos como o maior
samba de todos os tempos. Eu estava lá e vou te dizer uma coisa, quando eu fui
a primeira vez no barracão que ficava ali em São Cristóvão eu olhei para os
carros alegóricos e procurei saber os detalhes. Aí me disseram que era um
produto que ia revolucionar o carnaval: gesso e uma tal mistura, uma resina feita
com sei lá o quê, que colocavam, plastificavam as alegorias. Era bonito o efeito,
mas quando começou a trepidar na Avenida Presidente Vargas, começou a
quebrar tudo. Só restou o livro sobre o Antonio Conselheiro que eu estava
levando, o livro ia à frente. A Em cima da Hora terminou o desfile só com o livro
Os sertões, o restante quebrou tudo. Então eu briguei com todo mundo e saí da
escola, fui para a Ilha trabalhar com a Maria Augusta.
Autor – Para vocês, carnavalesco é sambista?
Jandyr – Alguns são. Sambista. Eu fiz esta pergunta, não se o
carnavalesco é sambista, mas como traduzir a palavra sambista e o que é
sambeiro. E para a minha surpresa, o Cláudio Brito, que é um estudioso, ele riu
para caramba, e falou que todo mundo que trabalha diretamente com o carnaval
das escolas de samba é sambista sim. Você não pode discriminar ninguém. Eu
até achava que só o “crioulo” lá do morro que sabia gingar que era sambista,
mas tava errado.
153

Autor – Então, mesmo o carnavalesco, não tendo ligação com uma escola
específica pode ser chamado de sambista?
Jayme – O carnavalesco só é sambista por que ele está numa escola,
então ele é um sambista intrujão. (risos)
Autor – E a questão do jogo do bicho. Até onde ele ainda tem penetração
nas escolas de samba?
Jandyr – A mesma de sempre. Ele bota dinheiro na escola. Ele bota, mas
também tira. Eles gostam de falar o que botam, mas não falam o que tiram.
Agora são importantes em algumas das principais escolas. O Anízio bancou toda
a graduação de carnaval e turismo da Neide Tamborim, foi um lance muito legal.
Ela acabou fazendo o caminho inverso, saiu da escola e foi para a academia.

7.1.2.
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Alexandre Brittes, diretor geral de harmonia da G.R.E.S. Renascer de


Jacarepaguá

Autor – Caro Alexandre, nos fale um pouco de sua trajetória no Carnaval.


Alexandre Brittes – Eu, na verdade, vim trabalhar na Renascer há cinco
anos, eu era do grupo especial. Eu trabalhava no grupo especial. Fui diretor de
Ala na Unidos da Tijuca, começando a aprender lá, esta atmosfera do carnaval.
Eu caí de paraquedas nisto. Eu queria ajudar um amigo da Tijuca e comecei a
ajudar a organizar fantasias e quando vi estava ajudando a organizar os ensaios,
as alas, a comunidade. Então este amigo foi trabalhar no Salgueiro como diretor
geral de harmonia, no ano do cangaço, ainda na administração do presidente Fu.
Eu fui para lá e fiquei dois anos lá trabalhando como harmonia, ajudando na
direção de harmonia e paralelamente recebi um convite para estar ajudando aqui
na Renascer. Fiquei então trabalhando lá e aqui. Só que era assim: eu tinha
minha profissão, eu sou diretor executivo, trabalhava numa emissora de
televisão e o carnaval era um lazer, um hobby trabalhar no Samba. Só que hoje,
neste modelo de carnaval, as empresas, as escolas são empresas, sempre
foram, as pessoas estão começando a acordar para isso. A gente tem hoje
profissionais do mercado trabalhando no samba. Administrador de empresa,
administrando as contas do samba, não é mais o amigo. Antigamente, a cerca
de 10 ou 20 anos, era muito comum se trazer um amigo do presidente para
ajudar em um determinado setor. Hoje não dá mais para fazer isto. Tem que ser
profissional. Você tem que trazer um profissional de marketing para cuidar da
imagem da empresa, da escola. Um profissional de comunicação social, para
154

fazer a assessoria de comunicação e imprensa. Um profissional administrador


para administrar a sua empresa, a sua escola, suas finanças. E assim vai. Neste
caso, como eu já tinha uma noção, por conta da minha profissão que é a
produção de espetáculo, e a harmonia não é nada mais além de produção.
Organizar uma história contada, com começo, meio e fim, representados por
alegorias e alas e fantasias e como eu já trabalhava nisto, porque para montar
um espetáculo ou um programa de televisão, você tem que ter contato, você tem
que ter tudo dissecado, para até o dia da gravação estar tudo pronto. No dia,
gravou tá pronto. É como aqui no desfile. Então eu trouxe a minha experiência
de produção para cá. De organizar, de dissecar e a gente veio tomando uma
cara nova. Comigo vieram outros profissionais do mercado, como historiadores
para entender um pouco de história do carnaval e ajudar os outros a entender
um pouco mais. Tinha muita gente da comissão da Velha Guarda que não sabia
a história da função dela na escola. Então, a gente começou a organizar mais,
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com palestras, a ficar mais unido. Hoje não tem mais espaço para amadorismo
no carnaval, mas tem muito espaço para quem gosta de trabalhar. Tem que cair
dentro. Hoje ainda é muito trabalho. A remuneração é razoável e há muito
trabalho. A gente acumula muito trabalho. Eu hoje ajudo lá no barracão, tem os
diretores lá e eu vou lá ajudar no dia a dia. Tem sempre coisa para resolver lá.
Eu organizo os ensaios aqui na quadra. Então, terça-feira e sexta-feira eu faço
jornada dupla e nos dias “normais” eu estou lá, dando expediente. Então eu vejo
isso, hoje é tudo profissional, eu vejo um mercado ainda pouco explorado. As
pessoas não acreditam que o samba sustenta uma família, e sustenta. Um
profissional do samba hoje pode ter um salário razoável melhor que no mercado.
Tem professores trabalhando comigo, profissionais de administração saindo de
empresas tradicionais e vindo para a empresa carnaval. Está estudando para
conhecer a empresa carnaval e se aperfeiçoando. Então a gente está a cada dia
tentando melhorar, a cada dia se tornando mais profissional, mas mantendo o
espetáculo. A gente não pode transformar isto aqui numa coisa fria e calculista,
tem que ter emoção. Como é que uma coisa calculista tem emoção? Eu não sei,
mas a gente tem que manter a emoção e a harmonia e tem que ser um
excelente administrador, mas ter um coração de sambista. Não dá para dizer
que se não der lucro fecha. Não dá para ser assim. Escola de samba não ganha
dinheiro, só gasta. Agora tem que ser gasto racionalmente calculado. É isto que
vai te trazer para este mercado. Tem que juntar a emoção do carnaval e a
técnica e o conhecimento.
155

Autor – Como é a relação destes novos profissionais com os setores mais


tradicionais, como a Velha Guarda?
Alexandre Brittes – Quando eu cheguei aqui havia uma rejeição natural,
porque as ideias são conservadoras e a gente tem que trazer uma coisa
revolucionária, que nunca se fez. Eu já estou obsoleto! Eu tenho gente nova
trabalhando comigo. Eu tenho diretor de 64 anos e de 29 anos, e tenho também
de 14 anos trabalhando comigo. Por que isso? Porque isso é o oxigênio,
ninguém se acomoda. Ninguém sabe mais do que ninguém. É meu quinto ano
aqui, não dá mais para ficar dando murro em ponta de faca. Então com muito
carinho, muita educação a gente foi abrindo e mostrando para estas pessoas
que era necessário mudar. Mudar mais sem esquecer o passado da escola. Era
adequar o passado na realidade do presente e a necessidade do futuro. Todo
mundo se beneficia, todo mundo se dá bem.
Autor – A Renascer possui um diretor de carnaval?
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Alexandre Brittes – Não, não tem. A Renascer tem o presidente, tem o


vice-presidente e uma comissão de carnaval, formada por mim, pela vice-
presidência e por outro administrador. Cada um com um pouquinho de tempo e
com o que sabe é que vai gerir o carnaval. Tem um diretor de quadra que
administra o barracão. É um profissional de muito tempo de mercado que é o
Paulinho, que era da Mocidade Independente de Padre Miguel. Então é com um
pouquinho de cada um. Nós não temos esta figura especial, universal. O diretor
de carnaval às vezes vira dono de uma escola de samba, e não pode ser assim.
Toda a diretoria é importante. Nós já tivemos esta figura, mas não deu certo, o
presidente não gostou, eu não gostei, então se adotou este modelo.
Autor – E os gastos?
Alexandre Brittes – O custo do carnaval é muito alto, sem organização e
patrocínio não rola. Não entendo porque não se reaproveita nada. Todo ano é
muita coisa poluente jogada na natureza: isopor, resina etc. Por que uma
estrutura de uma escola não pode ser reutilizada por outra dentro de outro
contexto? Precisa-se pensar no descarte. É muito lixo que poderia ser realizado.
Autor – E a comunidade, qual a relação com a escola?
Alexandre Brittes – Hoje a comunidade não é geográfica. Eu atendo gente
da Freguesia, Tanque, Taquara, Camorim, Curicica, até da Barra da Tijuca e do
Recreio dos Bandeirantes. Tem gente aqui de Campo Grande, Bangu e de
Padre Miguel, e lá tem a Mocidade. Mas o cara vem aqui. Eu vou dizer o quê?
Vou dizer que ele não pode? Ele está aqui o tempo todo, desfila há anos. A
comunidade aqui do lado é composta por muitos nordestinos, que não gostam
156

muito de samba e quase não vem aqui. A gente faz evento e não vem quase
ninguém daqui do lado.
Autor – Para você é grande a diferença entre o grupo de acesso A e o
grupo especial?
Alexandre Brittes – Hoje, o grupo de acesso, principalmente o grupo A, é
muito parecido com o especial. Só tem menos dinheiro e menos glamour. O B já
é mais ou menos, as escolas são menores, e ainda trazem a estrutura da
intendente. Agora na Intendente é muito diferente, muito menor. O patrocinador
não quer pôr dinheiro lá. No grupo A, já bota dinheiro. O nosso patrocinador do
ano passado, no grupo de acesso, que acreditou na gente, ficou. Está com a
gente este ano também. Por isso é muito difícil sair da Intendente e ficar na
Sapucaí. A Renascer conseguiu, mas é difícil. Agora, quando chega ao grupo A
fica mais fácil, é mais parecido. No acesso A, a gente entra com cinco carros
alegóricos e o especial, oito. A diferença é muito pequena, é muito parecido.
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Autor – E quanto ao sobe e desce entre o grupo especial e o grupo A?


Alexandre Brittes – Eu não estou afirmando que seja verdade, ou só isso.
Mas tem preconceito com a escola que vem do acesso. Você pode fazer o
melhor carnaval do mundo, mas sempre acham um defeito. O samba enredo de
quem sobe sempre é o pior samba. Sempre acham um defeito na fantasia, na
alegoria, no enredo. Por isso que, com poucas exceções, as escolas que sobem,
descem. Agora também tem problema de falta de profissionalização. Algumas
destas escolas são muito conservadoras, rejeitam mudanças, e aí cai mesmo.
Vê o Império Serrano, super tradicional, se bem que as coisas estão mudando
por lá com a chegada do Átila. Agora, só se colhe frutos daqui a três ou quatro
anos. É plantar agora e colher depois.

7.1.3.
Hiram Araujo, diretor do centro cultural da LIESA

Carnaval Histórico
Hiram Araújo – O carnaval é uma das festas mais antigas do mundo.
Alguns estudos apontam que após a última glaciação (mais ou menos 10.000
a.C.) o homem passou a viver sedentariamente no campo, a partir do domínio da
agricultura, o que o levou a festejar, celebrar, principalmente após o período das
colheitas. Nascia aí o carnaval.
Estas celebrações que chamamos de carnaval se dirigiam primeiro aos
corpos celestes e posteriormente a corpos sociais. As primeiras formas destas
157

celebrações eram muito simples e esta simplicidade estava ligada a simplicidade


com que os grupos humanos se organizavam, ou seja, quanto mais complexa se
tornava a sociedade mais complexa se transformavam as celebrações.
Com o ordenamento social baseado na escravidão e a polarização
Senhores X Escravos, essas celebrações foram estendidas aos escravos como
válvula de escape para as tensões sociais. Desta forma, havia concessões para
que os escravos realizassem suas celebrações.
Com a instituição do cristianismo, principalmente a partir de 325 d.C.,
ocorre uma espécie de domesticação destas celebrações. Em 390 d.C., ocorre a
oficialização do termo carnaval pela Igreja Católica, que passa a ter um sentido
de preparação para a quaresma, daí a ideia de festa da carne, comia-se
abundantemente para mergulhar no jejum quaresmal, principalmente de carne.

O Carnaval contemporâneo
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No tempo mais presente, na sociedade industrial, principalmente no século


XX, o carnaval ganhou características comerciais, criando uma dependência
econômica e tendo intenções comerciais.
No Brasil os mais ricos brincavam o carnaval nas Grandes Sociedades e
os mais pobres nos Ranchos e cordões.
Com o ordenamento social promovido pelas reformas Pereira Passos, o
carnaval espontâneo foi perdendo a força. Cronologicamente, mais ou menos
até 1930 tinha-se um carnaval espontâneo e a partir de 1930 o carnaval
começou a se profissionalizar. O fato é que a partir de Getúlio Vargas ocorre
uma mudança no Carnaval.

O desenvolvimento da Indústria do carnaval


A partir dos anos de 1930 (mais ou menos), ocorre a decadência dos
Ranchos e das Grandes Sociedades, muito em função da falta de dinheiro, o que
se dava não era o suficiente. As escolas de samba conseguiram fazer o que as
outras associações não conseguiram. As escolas passaram a ter recursos, ou
pela subvenção pública ou através de ações da própria escola. A entrada em
cena dos banqueiros do jogo do bicho, que não precisavam de retorno
financeiro, que passaram a subvencionar as escolas, inaugura uma nova fase na
história destas associações. O combate ao jogo do bicho pode prejudicar
economicamente algumas escolas.
158

Hiram e as escolas de samba


Com o golpe militar de 1964 passei a ser perseguido e por conta desta
história conheci o Amaury Jorge e fui fazer política na Imperatriz Leopoldinense.
Quando passei um tempo morando em Oswaldo Cruz, conheci o Natal, que me
levou para a Portela. Lá criei um departamento de cultura e fui carnavalesco. Fiz
7 enredos dentro de uma linha cultural utilizando os artistas da própria Portela.
Depois fui substituído por Viriato, que acabou com o departamento cultural.
Estou há 03 anos na Grande Rio, no barracão ajudando a desenvolver os
enredos. Há um momento importante que se dá com o Joãozinho 30. A partir
dele as escolas de samba passam a realizar uma espécie de ópera de rua.

Hiram e a LIESA
Sempre fui muito amigo do Anízio e quando ele foi presidente da LIESA
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me convidou para organizar a comissão julgadora. Organizei o modelo de


julgamento que se tem hoje e após três anos assumi o departamento cultural.

7.2
Entrevistas retiradas de periódicos – (recurso eletrônico)

7.2.1.
Fernando Pamplona, o revolucionário tradicional, entrevista
concedida ao Jornalista, Sociólogo e Professor do Instituto do
Carnaval Sr. Bruno Fillipo. (créditos: o dia na folia)

Bruno Fillipo – O que o senhor acha de Paulo Barros?


Fernando Pamplona – Acho um grande artista. Ele deveria expor suas criações
na Bienal de São Paulo, certamente seria premiado. Mas ele não liga para a
escola, aproveita-se dela para se promover. Se eu fosse presidente de escola de
samba, ele não seria meu carnavalesco.
Bruno Fillipo – Mas, do ponto de vista estético, Paulo Barros não é uma grande
novidade?
Fernando Pamplona - Sim. Depois do Fernando Pinto, do Joãozinho Trinta, da
Rosa Magalhães, do Max Lopes e do Renato Lage, o Paulo Barros foi a grande
inovação do carnaval do rio, a única coisa boa que apareceu nos últimos
tempos. Ele se renova constantemente. Mas repito: ele não serve à escola. Se a
159

escola vier bem ou se vier mal, tanto faz, o que importa é que ele venha bem.
Agora, ele não é original. Antes dele, outro carnavalesco fazia isso.
Bruno Fillipo – Quem?
Fernando Pamplona - Um artista extraordinário que faleceu muito cedo: Oswaldo
Jardim. Na Unidos da Tijuca – não me lembro em que ano - ele começou a usar
figuras humanas como elementos estéticos da alegoria. Uma vez eu o vi
terminando um carro na armação, na Presidente Vargas, com galhos de árvores
que ele arrancava na hora. Não lhe deram, em vida, o devido reconhecimento.
Bruno Fillipo – O estilo Paulo Barros se tornará um padrão?
Fernando Pamplona - Acho que não. É um estilo que morrerá com ele, e não
contribui para uma escola de samba ser mais escola de samba. Ou seja: é uma
marca pessoal.
Bruno Fillipo – Paulo Barros sofre severas críticas de alguns setores. No entanto,
antes dele, reclamava-se muito de que o desfile estava-se tornando uma
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mesmice, clamava-se por novidades.


Fernando Pamplona – Esse negócio de novidade é muito relativo. Por que tem
de haver novidades? Quando estava no Salgueiro, momentos antes de a escola
desfilar na Presidente Vargas, um batalhão de repórteres começou a me
perguntar qual seria a grande novidade que eu apresentaria naquele ano. Eu
disse: “Nenhuma! O Salgueiro não vem com nenhuma novidade, desfilará do
mesmo jeito que nos anos anteriores.” Para inovar, o artista tem de fazer bonito,
ser original, como o Paulo Barros, ou então repetir, de maneira bela e bem feita,
o que já existe.
Bruno Fillipo – Por muito tempo o senhor trabalhou como comentarista de
carnaval em transmissão de TV. Primeiramente na TVE, depois na Manchete. A
transmissão atual sofre severas críticas. O senhor as endossa?
Fernando Pamplona - A qualidade da transmissão depende de quem a
comanda, não é culpa necessariamente da emissora. Na Globo, o diretor é o
Aluísio Legey. Quer saber o que eu acho dele? Uma m...! Não há linearidade,
mostra-se o início do desfile, depois o fim, aí volta-se para o meio. Existe,
também, o padrão da emissora, que mostra gente bonita, artista, entrevista nos
camarotes. Lembro-me de que a Glória Maria foi para a concentração com uma
relação de pessoas famosas que ela tinha de entrevistar.
Bruno Fillipo – Mas isso acontecia também na Manchete.
Fernando Pamplona - Na Manchete também tive esse problema. Eu estava
analisando uma alegoria e a imagem mostrava bundas, peitos, coxas. Aí eu
esculhambei no ar o Maurício Sherman (diretor de TV), meu amigo de infância,
160

que era o diretor da transmissão. Falei: “Estou analisando o desfile e o diretor


folgado está mostrando mulher pelada! Estamos aqui à toa.” Foi um Deus nos
acuda (risos). Uma vez, eu estava reunido com o Adolpho Bloch, (falecido
empresário de comunicações, proprietário da “TV Manchete” e da “Bloch
Editores”) e com o Jaquito (Pedro Jack Kapeller, sobrinho de Adolpho e vice-
presidente do Bloch Editores) para acertar a transmissão do carnaval. Disse-lhes
que eu queria repetir a experiência do início dos anos 80 na TVE, quando
fizemos uma transmissão mostrando o povo, não os artistas. Aí o Jaquito disse
que a Manchete só mostrava coisa bonita, não mostrava negro feio. Respondi
dizendo que, se eu fizesse um documentário sobre sinagogas, eu pediria para
não mostrar judeus (risos). (Adolfo Bloch era judeu, assim como Jaquito) Então o
Adolfo Bloch disse, em tom irônico: “Jaquito, você poderia dormir sem essa, seu
burro!” (gargalhadas). Jaquito era uma grande figura.
Bruno Fillipo – O senhor tem saudades do carnaval antigo?
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Fernando Pamplona – Comecei a assistir a desfile de escola de samba nos anos


50. Foi um tipo de desfile que me marcou, que me fez me envolver com o
carnaval. Mas, naquela época, já não era o tipo de desfile que o Ismael Silva
presenciara, por exemplo. Então, o Ismael talvez achasse ruim o desfile dos
anos 50, da mesma forma que um jovem hoje deve achar muito ruim o carnaval
de 30 anos atrás. Não é que eu tenha saudades. É que o meu tempo foi outro, o
meu modelo, as minhas referências de carnaval não existem mais.
Bruno Fillipo – Então, falando de coisas modernas: o que acha dos enredos
patrocinados?
Fernando Pamplona – Terríveis, uma das coisas piores que aconteceram nas
escolas de samba. É uma interferência nociva no trabalho do artista. Quem se
salva, porque é muito inteligente e criativa, é a Rosa Magalhães, que dá um jeito
de mascarar o patrocínio. Muita gente não se lembra, mas quem começou com
isso foi Joãozinho Trinta em 86, com o enredo sobre a história do futebol. O
carro abre-alas era uma bola da Adidas, com o desenho da Adidas, só não havia
o nome da empresa.
Bruno Fillipo – E dos sambas-enredos?
Fernando Pamplona – Um gênero decadente. Os sambas estão muito
acelerados, mais acelerados do que o frevo. Acabaram com o compasso do
samba.
Bruno Fillipo – Mas o senhor ajudou a consolidar esse tipo de samba acelerado,
ao escolher, no Salgueiro em 71, o samba do Zuzuca, que ficou conhecido como
Pega no Ganzê, pega no ganzá.
161

Fernando Pamplona – Isso nem samba é! Quem escolheu foi o povo, que
cantava esse samba nas ruas antes de ele ser escolhido. Não era o meu
preferido. Gostava mais do samba do Bala, que era cantado pelo Laíla. Mas a
comissão – formada por mim, pelo Arlindo Rodrigues e pelo Haroldo Costa – não
teve como não aclamar o samba do Zuzuca.
Bruno Fillipo – O senhor arrepende-se da escolha?
Fernando Pamplona – Arrependo-me. Se pudesse voltar no tempo, teria
escolhido o samba do Bala. Era lindíssimo.

7.2.2.
Fernando Pamplona – Carnavalesco. OBatuque.com 23 de
novembro de 2004

OBatuque.com – Quando e onde nasceu?


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Fernando Pamplona – No Rio de Janeiro, dia 21 de setembro, Dia do Ventre


Livre, em 1926, há 78 anos.
OBatuque.com – Formação profissional?
Fernando Pamplona – Escola de Belas Artes, onde virei professor.
OBatuque.com – Atividades atuais. Ainda está trabalhando em alguma ligada ao
carnaval?
Fernando Pamplona – O último elo que tinha com o carnaval eu cortei ano
passado. Eu fiz mais ou menos uns 20 anos o “Estandarte de Ouro” do jornal O
Globo. Há três anos que estava querendo cair fora. No ano passado eu
consegui. Fiz uma carta que era irreversível. O presidente Carlos Lemos,
aposentado do O Globo, aproveitou a chance e disse: “Eu também vou embora”.
Esse ano o Estandarte vai ser renovado. Já tem uns garotos bons aí, que estão
fazendo um grande trabalho de renovação no carnaval do O Globo: o Marcelo de
Mello e o Aloy Jupiara. Ano que vem você não vai me ver no carnaval do Rio de
Janeiro. Trabalho na TV Educativa (RJ), mas se pudessem me mandariam
embora. Entraram duas mulheres estranhas aí. Uma gaúcha e a outra paulista.
Têm nada a ver com a gente. E nos congelaram, por exemplo: mandaram um
cara de 40 anos de cenografia embora, pra contratar uma amadora. Congelaram
todos aqueles que fazem parte do esquema do Barbosa Lima. Não me
mandaram embora porque sou diretor do sindicato e a lei não permite.
Só estou fazendo alguma coisa aí porque meu amigo Sargentelli morreu. E como
já o havia substituído duas vezes, o Fernando me pediu para substituir o
Sargento quando ele foi hospitalizado. Ele morreu e o Fernando pediu para que
162

eu continuasse. Eu falei: “Não sei fazer pausa, não sei ler texto direito, minha
dicção é ruim”. Fernando pediu para tentar umas três vezes: “Se não quiser a
gente tenta outro”. Carioca chia e eu não sabia direito ler. Inflexão, intenção e
pausa são fundamentais, mas eu banquei o estudante de novo e fiz um esforço
para tentar substituir o Sargento. Não com a qualidade que ele tinha, pois era um
profissional excelente. Poderiam chamar o filho dele que a voz é igualzinha. Mas
eles queriam uma pessoa mais velha, que ajudasse a trazer gente. Tem muito
convidado que veio para o programa, chamado “A Verdade”, porque o Sargento
fazia. Ele fez mais de 700 em casa. Eu já fiz mais de 140 depois que ele morreu.
Sei que eles me usam para poder chamar gente, mas se eu for falar, só acabo
amanhã pela manhã.
OBatuque.com – Como se aproximou do mundo do samba?
Fernando Pamplona - O único interesse que eu tenho de conhecimento é cultura
popular. Meu curso primário foi feito no Acre, quando ainda era território e a
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única comunicação com o mundo era por meio de telégrafo. Não havia televisão
e nem telefone. Se o governador quisesse falar com o presidente da república,
era por meio de telégrafo. Quando voltei ao Acre, pedi para tombar onde era o
telégrafo. Era uma das poucas coisas que restou do meu tempo. Navio lá, só de
seis em seis meses. Tinha enchente e navio não entrava. Navio que falo era
aquela barca de São Francisco que a gente chamava de chatinha. Era chatinha
por que tinha um fundo chato. E tinha que ser dessa maneira, senão entrava nos
rios rasos da Amazônia, nos igarapés. Se entrasse, eles encalhariam.
Eu sempre me interessei pela cultura popular. Primeira coisa que eu fiz lá além
dos desafios: “Capivara correu / No buraco se meteu / Esse bicho corre mais /
Do que o vapor Minas Gerais”. Vapor Minas Gerais era um ferro-velho, um
couraçado inglês da 2ª Guerra que nós compramos. Era capitânia da esquadra
do Brasil. Eu vi um boi e me encantei pelo boi. Daí em diante, mesmo adulto e já
no Rio, quando eu viajava queria ver o maracatu, entrava em Minas e queria
saber o que era uma congada. Via tudo que era atividade popular.
A mesma coisa era o carnaval. Carnaval não era meu interesse fundamental e
nunca foi. Era uma expressão cultural, popular e autêntica. Uma vez, estava
conversando no Vermelhinho, que naquela época era o ponto de reunião do Rio
de Janeiro, pois não havia teatro e nem galeria na Zona Sul. Quem trabalhava
com arte se reunia no Vermelhinho, na Araújo Porto Alegre, em frente à ABI,
onde todos os grandes nomes da época se reuniam. Do Di Cavalcanti ao
Pancetti ao Augusto Rodrigues, Mário Pedrosa, Mário Barata e vai por aí. E um
dia, um sujeito chamado Miécio Tati, que era o copydesk do Jorge Amado,
163

trabalhava no Departamento de Turismo e Certames, que hoje é a Riotur, e que


comandava todas as festividades no Rio, me convidou para ser jurado e fui júri
do carnaval de 1959.
Eu fui criado com conto de fadas, não foi com super-herói, não. Eu gostava
muito do Império Serrano. Eu achava que Império Serrano era uma serra onde
tinha castelo, onde havia uma princesa. Como eu comecei a frequentar a UNE,
mesmo antes de começar minha vida universitária, fui influenciado por um sujeito
chamado Rogê Ferreira, que morreu em São Paulo e foi fundador do partido
Socialista. Entrei pro partido e virei um revolucionário chinfrim. Eu adorava o
nome Mocidade Independente. Eu queria ser mocidade e ser independente. Era
uma escola pequena. Mas quando eu vi o Salgueiro entrar pela primeira vez – e
eu era Rio Branco, no Acre, que era vermelho-e-branco também – virei
Salgueiro. O presidente me convidou para fazer o primeiro enredo. Eu fiz,
juntamente com Arlindo Rodrigues e Nilton Sá, que desapareceu no mercado.
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Ele mesmo renegou depois. O resto, vocês sabem, é história.


OBatuque.com – De jurado a carnavalesco, definição que nem existia na época,
da Acadêmicos do Salgueiro. Como foi esse trajeto? Em uma entrevista você
disse que o que o impressionou vendo o Salgueiro foi o enredo, que era Debret.
Fernando Pamplona – O enredo, diferentemente de capa-e-espada, foi o Debret,
que era artista. Então, quando vi uma escola que tinha um artista e era
vermelho-e-branco… Não tinha alegoria. A alegoria era viva. Não era proibido.
Eles repetiam as gravuras do Debret. Achei aquilo a melhor ideia do mundo. Eu
dei 8. Aí a Portela passou tão bem… E a Portela ganhou por um ponto. Nelson
de Andrade (então diretor de Carnaval do Salgueiro) viu. O Edson Carneiro me
chamou pra defender o voto. Todo mundo dava o voto e fugia, pro pau não
comer depois em cima dos jurados. Eu fui lá para defender o voto junto com o
Edson Carneiro. Eles ficaram muito admirados. O Salgueiro perdeu por causa de
um ponto. Depois o presidente me convidou para fazer o Salgueiro. Eu falei pra
ele: “Só se for uma coisa que está na minha cuca, que é o Quilombo dos
Palmares”. Eu tinha colaborado com Abdias Nascimento vendendo ingresso pro
Teatro Experimental do Negro, com Solano Trindade. Fotografei tudo de graça.
Trabalhei com a Mercedes Batista, com o maestro Abigail Moura, que fazia a
Orquestra Afro-Brasileira. Eu quis fazer uma homenagem ao maior negro. Eu li
um livro que era proibido na época e que hoje não está mais proibido, mas foi
editado pela Biblioteca do Exército. Eles começaram a estudar guerrilha. Dois
oficiais foram pra Portugal para ver a documentação, pois Rui Barbosa queimou
toda documentação que tínhamos no Brasil. O que era desonra pra pátria ele
164

queimava. Ele queimou a memória do Brasil, ainda bem que houve Pierre
Verger, que fez a documentação do fluxo e do refluxo do movimento negro no
Brasil. Bem, tivemos que pegar em Portugal, pois lá eles guardam documentos.
Aqui, a gente queimava a documentação, porque Rui Barbosa tinha vergonha da
escravidão. Aí eu fiz o primeiro enredo. Depois fiz Aleijadinho. Eu briguei lá, o
Arlindo fez “Descobrimento do Brasil”. Eu estava na Alemanha e mandei o
enredo todo de “Chico Rei”. Depois “Dona Beija”…
OBatuque.com – Foi difícil convencer a escola, tanto direção como
componentes, a desenvolver esse novo conceito de enredo, fugindo àquela linha
predominantemente patriota da época?
Fernando Pamplona – Quando eu cheguei com Chico Rei no Salgueiro, uma ala
não podia ter o figurino da outra. Hoje tem até desfile de protótipos. Naquela
época eu fazia o risco. Chamávamos de esbolceto ou croqui. Mas o povo do
morro falava risco. Eles sabiam português mais do que a gente. Eles
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perguntavam se podiam mudar. “Posso mudar aqui e ali?”. Eu tive muita


colaboração. Eu aprendi mais com o morro do que o morro comigo. Ficamos no
Salgueiro e começamos a dar vitórias, mas quando cheguei com um figurino
negro, ninguém quis botar, pois estavam acostumados a colocar Napoleão…
Nós chamávamos genericamente a indumentária barroca de Luís XV.
OBatuque.com – Muitos falaram que era uma revolução e você disse que era
uma involução.
Fernando Pamplona – Meu amigo Sérgio Cabral disse que os intelectuais
estavam se metendo no samba. Eu escrevi uma carta pra ele para dizer que nós
estávamos voltando com o tradicional. As baianas já estavam com barriga de
fora. Nós vestimos as baianas. Nós voltamos com tradição e eles disseram que
era uma revolução. Voltamos com a raiz básica de como se formaram as escolas
de samba.
OBatuque.com – Quais apontaria como suas principais contribuições ao
desenvolvimento do desfile das escolas de samba?
Fernando Pamplona - Tema e os maravilhosos figurinos do Arlindo Rodrigues.
Foram duas coisas que caracterizaram os Acadêmicos do Salgueiro. Hoje, o
único que mantém a linha Salgueiro chama-se Max Lopes, que foi criado na
turma que ajudou a gente a fazer o Salgueiro. O Joãozinho, com sua
genialidade, pegou caminho próprio. Inventou cangalha e ombrite. A Maria
Augusta inventou aquela coisa linda que a União da Ilha largou. Foi o
primitivismo da Ilha. Escola ingênua, pura, com pranchas, bandeirinhas. A Rosa
(Magalhães) pegou seu próprio caminho teatral. O Renato Lage, que também
165

começou ajudando a gente, optou pela linha da tecnologia. Esses principais


carnavalescos saíram da corriola que nós fizemos no Salgueiro. Tudo era
decidido na gestão final, mas a elaboração era feita por todo mundo. Muda aqui,
muda ali: “Posso fazer isso?”. Pode.
OBatuque.com – Antes de desenvolver seu próprio enredo, tinha alguma
referência entre artistas que desenvolviam os enredos das escolas?
Fernando Pamplona – Havia uma francesa, que chegou no Brasil com o Teatro
Montepellier da Universidade de Paris. Ficou, casou-se, fez a Portela umas três
vezes. Teve um filho em cada ano com um crioulo diferente. Depois sumiu no
Nordeste, onde ela fez uma casa de cultura popular. Tinha o Julinho, que era
muito primitivo, mas tinha uma fábrica. Ele fabricava alegoria para 10 escolas de
sambas do Brasil. Eles eram profissionais. Nós, no Salgueiro, inclusive os que
me referi, éramos amadores. Depois que saímos do Salgueiro, sim. O Arlindo se
tornou profissional, a Rosa comprou a casa que foi do Oscarito. O Renato Lage
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vive muito bem, cobra U$ 100 mil por cada carnaval. Venderam a qualidade que
têm. Como eu nunca dependi do samba, resolvi não fazer mais carnaval. Apenas
pelo sorriso, pela simplicidade e pelo caráter que era o Jamil Cheiroso do
Império Serrano, eu dei cinco enredos para ele. Mas é aquele enredo de
botequim. Na mesa você passa uns riscos e diz o que tem que fazer. O primeiro
que dei foi o último campeonato da Império, “Bumbum-paticumbum-
prugurundum”, invenção onomatopaica da Rosa, porque eu tinha dado “Onze
Candelárias Sapecaí”, que era uma gozação às três fases das escolas de
samba. Era baseado um pouco no livro da Marília Barbosa, “Fala Mangueira”,
que ela fez sobre o Carlos Cachaça. Depois dei dois para o Renato, “Malandro
é” e depois “Mãe Baiana Mãe”. Depois ele disse: “Quero fazer os meus”. Aí ele
virou “o” Renato. Ainda dei mais dois sobre a história da comunicação no Brasil e
que o carnavalesco, infelizmente, não tinha o talento. Ele morreu, coitado. Era o
Ney Ayan, que esculhambou a guerra. Mas a Império não desceu (1991) por
causa disso, nem interessa especular.
OBatuque.com – Qual foi o seu trabalho preferido como carnavalesco?
Fernando Pamplona – Não é o preferido, não. Mas o maior impacto talvez tenha
sido “Quilombo dos Palmares”. Nós demos uma visão nova. Nós não inventamos
modernização nenhuma. Está no artigo que tem no livro do Haroldo Costa
(“Salgueiro, Academia do Samba”), que eu mandei para o Sérgio Cabral
escrevendo da Europa para ele. A maior contribuição nossa talvez tenha sido a
modificação do enredo: o negro; a mulher, com Dona Beija; o local, com Praça
XI, depois a Lapa; a história da liberdade no Brasil, que era revolucionária.
166

Fomos perseguidos pela ditadura. Depois a Império fez “Heróis da Liberdade”,


que era o mesmo enredo do Salgueiro. Era baseado no livro do Viriato Correa.
Foi uma pressão muito grande que nós sofremos da ditadura. Nossa maior
contribuição foi essa, mudar a linha dos enredos, pois acabou aquele negócio de
capa e espada, Tuiuti, Tamandaré, Riachuelo e Panteon de Glória. Demos uma
de Shakespeare, que fez o teatro dentro do teatro. Nós fizemos o carnaval
dentro do carnaval. Di Cavalcanti quase desmaiou de tanto aplaudir.
OBatuque.com – Hoje há muitas críticas aos poderes dados ao carnavalesco de
uma escola de samba. A Beija-Flor criou a comissão de carnaval e acabou
seguida por outras coirmãs, seja por convicção ou necessidade financeira
mesmo. Como vê esse quadro?
Fernando Pamplona - O carnavalesco não interfere mais porra nenhuma. Para
liquidar rapidamente essa pergunta, eles viraram realmente ditadores e os
babacas pagam a eles uma fortuna e obedecem o que eles inventam, como
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juntar três alas numa só pra poder atingir cem e fazer aquela massa. Aí o
Candeia tinha razão quando fez um samba dizendo que “depois que visual virou
quesito na concepção desses sambeiros…”.
Uma vez, viajando com o Joãozinho Trinta, perguntei a ele sobre a ideia que ele
tinha pra Grande Rio. Ele respondeu: “Eu não tenho ainda, Fernando. Estou
esperando a escola vender”. Então o carnavalesco, ao mesmo tempo que é um
ditador na hora da realização, quase um ditador dependendo do presidente da
escola, fica nas mãos do patrocinador.
No Salgueiro, o Maninho é quem mandava nos carnavalescos. Eu sou muito
amigo do Miro e o amo (nota da redação: a entrevista foi realizada antes do
falecimento de Miro Garcia). O Miro é um cara maravilhoso e o filho tinha o maior
respeito pelo pai, pedia a benção quando chegava. Hoje, os carnavalescos
aguardam as escolas venderem o enredo e os marqueteiros descobriram que as
escolas são o veículo mais barato para anunciar. Com R$ 4 milhões você
compra uma escola. Durante uma hora vai desfilar falando de você. E você vai
ficar conhecido por 40 milhões de pessoas. Você com R$ 4 milhões anuncia no
O Globo, na Veja ou na Isto É e só dão quatro páginas e não vai ter o mesmo
público que assiste aos desfiles das escolas de samba. Veja: vem lá o prefeito e
dá para a Imperatriz e depois não quer pagar, porque a Rosa pesquisou outras
coisas. Cabo Frio foi lá, vendeu e ela inventou o Pau Brasil. Ela é muito
inteligente. Hoje, o carnavalesco não pode usar a sua criatividade, tem que
esperar o enredo patrocinado. Esse foi um dos motivos porque larguei essa
merda.
167

OBatuque.com – Como viu a liberdade dada pelo regulamento atual dos desfiles,
que não limita mais os enredos das escolas a temas nacionais?
Fernando Pamplona- Isso ai era uma bobagem, bobagem fácil, porque quando o
João inventou de fazer o futebol, ele botou a China pra jogar futebol, botou a
Grécia, botou o Egito jogando futebol, ou seja, o João inventa muito e diz que é
verdade, jura que ele que é o vivo. Aí o pessoal acaba acreditando. Ele foi o
primeiro a botar uma bola da Adidas, só não tinha escrito Adidas, a bola do
campeonato do mundo. Ele também fez a história do carnaval, e não se limitou,
como nós, à história do carnaval carioca, que ele ajudou a fazer, ajudou muito
bem, criou a beça. Seja qual for o enredo, ele já inventa um mundo todo, então
pra que fazer uma lei que você praticamente não obedece e tem como não
obedecer? Foi muito bom eles terem tirado isso fora, e ter deixado a criação
dele, do artista. Leia o livro da Eneida (“História do Carnaval Carioca”), que ela
pode dizer isso; se não ler esse, leia outros que eu posso indicar para fazer uma
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ligeira bibliografia sobre o carnaval. As grandes sociedades, por exemplo, faziam


enredos e usavam para decorar a própria sede o tema do enredo, mas isso é
coisa muito antiga que a temática da escola de samba herdou das grandes
sociedades e dos ranchos, que também tinham temas semelhantes e com
formas diferentes de mostrar.
OBatuque.com – Como muitos, o senhor critica a qualidade atual dos sambas
enredos. Há uma causa para isso?
Fernando Pamplona – Você pode fazer uma tese de doutorado para descobrir
qual é a causa. Para mim, a causa primeira foi transformar em marchinha,
porque a briga começou com Zuzuca, que ganhou dinheiro com dois sambas no
Salgueiro, que não são sambas. “O-lê-lê / ô-lá-lá / Pega no ganzê / Pega no
ganzá”, que é “Festa para um rei negro (Pega no Ganzê)”, de 1971. Isso é
divino, ele botou batida e “o-lê-lê” e “o-lá-lá”… E virou samba e ganhou o
carnaval. Depois o Zuzuca fez “Tengo-Tengo / Santo Antônio e Chalé / Minha
gente é muito samba no pé” (“Mangueira, Minha Querida Madrinha”, 1972). Isso
ai é quadrilha de São João, foi o Salgueiro que fez e eu não posso criticar.
A maravilhosa marchinha da Ilha, que tem uma frase maravilhosa que merece
ser enciclopédica, antológica. “Eu vou tomar um porre de felicidade!” (“Festa
Profana”, 1989). Isso é marchinha, e as escolas praticamente começaram a
fazer marcha, aceleraram a batida e o andamento ficou rápido, igual ao frevo. E
quando começa bater lá embaixo você vê uma porção de garotas na
arquibancada dançando frevo. Acabou a síncope, acabou o balanço e hoje é
muito difícil fazer um samba. Este ano, felizmente, a Beija-Flor ganhou e fez um
168

samba de verdade. É muito difícil você fazer samba hoje em dia no carnaval
brasileiro. Ano passado, quando sem querer visitei a Mangueira, eu fiquei muito
admirado, porque eu não vou mais em escola de samba e vi que a Mangueira
tem um lugar onde eles estão lançando de novo os sambas de quadra. No
carnaval que eu peguei você cantava o samba de quadra até a véspera. Não
tem mais o samba de quadra, eles proibiram o samba de quadra. Era um
exercício para que o compositor se inspirasse e depois fizesse a melodia, já que
não precisava ter o samba pronto em outubro, para ser gravado em novembro e
ser vendido em dezembro. E vendia 2 milhões, batia Roberto Carlos, e hoje está
vendendo 80 mil. Eu já fiz uma aposta com todas as escolas de samba reunidas.
Disse que dava uma garrafa de uísque para quem me cantasse um samba dos
últimos cinco anos, e não valia ser da própria escola. Um garoto disse que sabia,
e me cantou um samba de oito anos atrás. Ninguém lembra nada.
OBatuque.com – Será que enredo atrapalha o compositor?
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Fernando Pamplona – Não, não. O samba do Djalma Sabiá é lindo: “Obras de


vulto e encantos mil / legou Debret / às nossas belas-artes, ao Brasil / Pintou /
com genial saber / para sua era reviver! / Foi na verdade um grande artista /
primaz documentarista / do Brasil colonial” (“Viagem pitoresca e histórica ao
Brasil”, 1959). Esse samba que cantaram neste ano, e que ainda estão
cantando, e que agora voltou de repente todo mundo a cantar. Eu viajei lá para o
Sul, e cantaram o samba do Silas, “Aquarela do Brasil”, que ele gravou para o
Sul e foi parar lá em São Paulo. Canta aquela obra-prima da Portela (“Lendas e
Mistérios da Amazônia”). Aí o cara falou assim: “O samba é tão bom que resiste
ao ritmo-metralhadora”. Mas a Portela diminuiu o andamento, respeitando a
Amazônia. Uma vez eu disse para eles: “Vocês têm dinheiro e eu não tenho,
mas eu trabalho de graça para vocês até o fim da minha vida se perder uma
aposta: eu passo cinco mil pessoas naquele sambódromo lá, em ritmo de
marcha-rancho. Eu passo cinco mil pessoas em 80 minutos. Quanto vocês
querem para passar rápido?”. Tem sempre aquele cara que fica olhando no
relógio, segurando a escola, segurando a escola, para depois sair correndo. Eles
são uns merdas, acabou o diretor de Harmonia.
OBatuque.com – Ainda nos anos 80 você criticava o marcheamento dos
sambas. Muita gente justificava isso argumentando que as escolas hoje são
muito grandes, se passarem cadenciadas estouram o tempo de desfile. Aí vem a
Império Serrano com um clássico de 40 anos, seis mil componentes e passa
daquele jeito que emocionou toda a Avenida. Como viu a volta de sambas
antigos aos desfiles?
169

Fernando Pamplona – Eu gostei, porque os compositores tomaram vergonha. E


a única que se salvou, felizmente, foi a Beija flor, ela tem uma qualidade.
Antigamente, o futebol tinha uma Taça Eficiência. Nem sempre o campeão do
Rio de Janeiro ganhava a taça eficiência. Uma escola que tem quatro vices e um
campeonato pode ser mais eficiente que outra que tenha ganho mais. Mesmo
que ela tivesse cinco vices, eu daria a taça para a Beija-Flor.
OBatuque.com – Contrário à reserva de vagas para negros nas universidades,
você sugeriu meio na brincadeira que a LIESA garantisse uma cota mínima de
40% nos desfiles, ideia logo encampada por gente como Carlos Heitor Cony, que
critica a mercantilização do carnaval atual. A descaracterização das escolas teria
chegado a esse ponto mesmo? E isso tem volta?
Fernando Pamplona - Aquilo é o tipo de provocação que é feita contra o racismo.
Agora, que há preconceito, há, e não é só contra negro. É contra judeu, árabe,
pobre etc. A humanidade é cheia de preconceitos e nós, inclusive, somos
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preconceituosos. “Não fala mais de carnaval comigo, porque eu tô com


preconceito com carnaval, tá me escutando?” (risos). E agora não vem com
frescura de privilegiar etnia, seja ela qual for, independente das outras, que isso
não é democracia étnica, isso é racismo, não tem outro apelido.
Outro dia, um cara estava montando meu programa. Aí, todo negro que ia lá eu
perguntava: “Você conhece um negro racista?” E o cara cortava na edição
dizendo que era para me proteger. Eu não pedi proteção para ele e falei para ele
sair do meu programa. O Vovô da Bahia: no Ilê dele não pode entrar branco, isso
é racismo. Racismo tem duas mãos, não tem uma mão só, não. Haja visto lá na
América com o Malcon X, que foi visitar, cumprir a coisa de maometano. Ele
parou com o racismo dele e foi assassinado pelos negros racistas americanos.
Tem racismo negro americano, tem racismo negro no brasileiro. Eu não quero
comprar brigas, mas se vocês procurarem bem vão encontrar aqui. Só falei do
Vovô porque ele sabe que discuti com ele, eu gosto muito dele e ele foi o
responsável pelo surgimento do carnaval negro. Ele é maravilhoso, porém é
racista, não pode entrar branco no bloco dele, de fato. Vamos dar cota para o
negro que foi escravo? Judeu foi escravo do egípcio, o egípcio foi escravo dos
gregos, os gregos foram escravos dos romanos, os romanos foram escravos dos
bárbaros… Escravidão não é uma condição étnica, é uma condição
socioeconômica. Negro não é ex-escravo, não. Negro é homem, e merece ser
respeitado como homem que ele é. Não tem favorzinho para o negro, não, ele
não precisa disso, precisa é de atenção, educação básica, saúde. Aí sim, dê
chance a eles de ser alguém, mas por conta deles, não por favor.
170

OBatuque.com – Como vê as escolas de samba hoje? Para onde evoluirão?


Fernando Pamplona – Decadência das artes plásticas, da música. Vai chegar
um momento que isso vai saturar. O disco que vendia dois milhões, só está
vendendo oitenta mil, e alguma coisa que eu não sei o que é vai substituir isso.
Talvez o pobre do samba que está renascendo nessa região toda e está sendo
respeitado. Os velhos sambistas que não tinham o direito nem ao cachê das
empresas e hoje estão sendo catados, porque estão rendendo. Descobriram de
repente que eles são importantes.
OBatuque.com – Qual vai ser a revolução que vai acabar com isso?
Fernando Pamplona – Eu não sei, mas ainda bem que o Darcy botou umas
escolas na Marquês pra ter utilidade aquele prédio. Mas viva, viva a Marquês de
Sapucaí, que tirou o Rio de seis meses e seis meses de montagem e
desmontagem daquela quitanda, que impedia a cidade de viver. Descobriu-se
um lugar que não atrapalhava o Rio e foi feito um projeto original que era muito
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bom. A Praça da Apoteose não tem nada a ver com o desfile, aquilo ali, é do
Darcy Ribeiro.
OBatuque.com – Nos conte um pouco de sua experiência como jurado de desfile
de escola de samba. O José Carlos Rego disse que não é fácil.
Fernando Pamplona – Eu já julguei tudo, já julguei até aqueles caras que
limpam. Eu já julguei festival de música nativa. Não é difícil você julgar, você só
não pode é dar nota cada vez que passa uma coisa. Fiz assim, mas contestei.
Porque ser jurado é você comparar. Se a LIESA tivesse coragem, não teria nota,
teria que classificar: primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto… Aí, você
que é Mangueira botaria em segundo lugar quem você botaria direto 9 na ordem
de classificação. Aí eu sou Salgueiro, boto primeiro lugar Salgueiro… O segundo
lugar ganhava. Depois se dava nota para o vigésimo, décimo, nono, décimo
oitavo etc. E assim nunca iria dar empate, ou até poderia haver, mas seria um
julgamento muito mais justo, porque tem juiz que tem medo de dar nota e sai
dando 10 para todo mundo e 9 e 8 para duas escolas.
OBatuque.com – No mapa de apuração do desfile do Grupo Especial de 2000,
um jurado de um determinado quesito justificou a nota para uma grande escola
falando em “próximo à perfeição”. O mesmo jurado, na avaliação de uma escola
de menor porte escreveu “próximo à grande perfeição”. Esse jurado deu nota 9,5
para a grande, e 8 para a de menor porte. Há esperanças que um dia esse tipo
de distorção possa acabar?
Fernando Pamplona – Não, porque aí o maior cara que houve no século
passado vai classificar a cuca da gente. Pablo (Neruda) diz que cada indivíduo é
171

um indivíduo condicionado. Não é aquela experiência boboca do reflexo


condicionado, é o pensamento dele. Dois gêmeos: um pode namorar uma garota
que é Fluminense, e outro, uma garota que é Flamengo. Cada indivíduo é
formado por todos os fenômenos em torno dele, nosso mundo é muito pequeno
é individual. Dando o relacionamento que você tem na sua formação. Mas eu li
um negócio muito sério: o homem mais bem informado não consegue saber nem
3% do que se passa no mundo, eu li em uma pesquisa. A verdade é que toda a
estética do mundo se resume em gostou e não gostou. O mundo se auto
influencia. Quando você pede o julgamento estético de um indivíduo, ou o seu,
por exemplo, você vai julgar primeiro a sua formação, depois sua observação,
seguindo tudo aquilo que você já qualificou de bom e já qualificou de ruim. Então
90% do seu julgamento são subjetivos. Apenas 10% de objetividade. Não há
porque duvidar de um juiz. Uma vez o Laíla me trazia a relação dos jurados,
quando eu fiz a Praça Onze (1970). Aí perdemos porque um juiz deu nota baixa.
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“Vamos lá quebrar ele agora”, e eu disse: “Não, Laíla. É que ele é um instrutor
acadêmico e nós estamos fazendo um manequim no lugar de escultura, nós
estamos fazendo caras vestidos com roupas da Lapa, com short da Praça Onze,
com o botequim da Praça Onze, com material da Praça Onze. Deu 7,5 para a
gente, e deu justamente, porque no julgamento dele não podia ter manequim”. O
escultor teria que trabalhar com a mão e ele é um acadêmico babaca, mas era o
julgamento dele. Então o julgamento, pra mim, é 90% subjetivo e 10% objetivo.
OBatuque.com – E neste ano de 2004 um jurado deu 7 ao samba enredo da
Acadêmicos do Dendê. Com as notas fracionadíssimas de hoje, equivale a um
zero e acabou rebaixando a escola (decisão essa depois revogada). Como vê
essas notas fracionadas em um décimo?
Fernando Pamplona – É que o pobre do Hiram Araújo, que é um dos sujeitos
mais maravilhosos que eu conheci, pela dedicação dele, quer fazer mil
experiências de julgamento para torná-lo isento. Tira a menor nota, tira a maior
nota, tira do sorteio cada juiz, só para ficar livre. Sempre que saía o resultado da
escola de samba diziam que a Riotur armava. Aí um sujeito que tinha na Riotur,
chamado Vitor Pinheiro, disse assim: “A Riotur não escolhe mais juiz, as escolas
de samba é que vão escolher”. Cada presidente tem poder de voto, se um
presidente me indicar como juiz vão ter doze presidentes para negar. Então,
quando aquele grupo de juízes que você não sabe nem quem são, e de onde
são, julga o carnaval hoje, eles já estão aprovados pelo mero poder do voto.
Caramba, eles aprovaram o voto do juiz, que pode se dar como você referiu
agora pouco. Pode ter feito uma merda qualquer, eles é que julgaram, então eles
172

é que decidem. Isso foi a melhor coisa que Vitor Pinheiro fez através da Riotur,
e, aliás, foi um ótimo presidente da Riotur. Eu me acostumei com esse negócio
de julgar, você adquire uma certa sabedoria do mecanismo de julgamento.
Uma vez julguei um festival de música, em Santa Catarina, e colei com um
garoto lá e nós tivemos uma excelente influência no resultado do julgamento
musical, em um povoado com amadores maravilhosamente bons. Umas
senhoras alemãs que cantam lindo. Voltamos lá, voltamos no júri, o Sérgio
Cabral foi e lançou o livro do Ary Barroso lá, em Santa Catarina. O Albino
Pinheiro foi, Marcos Carvalho foi e eu fui. Na seleção ficaram doze finalistas e o
garoto lá, com o qual eu tinha me afinado, deu 2, 3, 2, 3, 2, 3 e 10 para o
conjunto de ópera. Aí, no botequim, eu falei assim: “Vou ferrar esse garoto, eu
vou anular o voto dele, intencionalmente”. Veio o julgamento final, eu repeti mais
ou menos a dose e dei 9, 10, 9, 10, e para a música dele eu dei 1, anulei o voto
dele e venceu quem tinha que vencer. Nesse negócio você tem que saber da
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intenção escrota que, às vezes, está por trás. Se o jurado, mesmo dizendo o que
ele acha de verdade e que é o julgamento subjetivo dele, fizer armações, já era.
OBatuque.com – Ainda há espaço para o passista nas escolas de samba? Tem
muita ala de passo marcado passando pela passarela…
Fernando Pamplona - Na verdade, nunca houve muito espaço, não. Teve escola
que, para não prejudicar o desfile, juntou todos os passistas como se fosse um
naipe. Só porque o passista gosta muito de se exibir para uma câmera. Aí a
câmera pega ali no meio e vai para lá, vem pra cá e todo mundo vendo. Aí o
passista atrapalhava a escola, mas não por ser passista, porque eles são
maravilhosos, mas é porque atrapalhava a evolução. Então eles resolveram
juntar tudo. Lá na hora do júri (Estandarte de Ouro), sempre tem o julgamento de
passista e geralmente quem faz é o José Carlos Rego. Ele tem até livro sobre
isso, mas hoje não interfere mais no julgamento. Ninguém dá uma nota maior ou
menor porque o Gargalhada deu um show na Mangueira, ele que foi do
Salgueiro, assim como podia ter falado do Vitamina, que foi um dos maiores
passistas que vi. Mas o fato é que o passista, mesmo ele não desfilando, mesmo
num canto do ensaio de escola de samba, desenvolve coisas que você tem
vontade de aplaudir dez vezes, mesmo que o povo não esteja vendo. Passista é
uma condição natural, de um cara que nasceu para isso e que faz coisas
maravilhosas e não conta para o júri.
OBatuque.com – O passo marcado atrapalha a escola?
Fernando Pamplona – O passo marcado atrapalha sim. Acusaram a Mercedes
Batista por ter marcado o passo – muito bem – no minueto da Chica da Silva. Na
173

verdade, passo marcado sempre existiu na escola de samba. Em 1958, 59, tinha
uns caras da Mangueira que dançavam assim. Mas quem inventou passo
marcado foi o Salgueiro. Mercedes Batista passava com passo marcado
quarenta caras, quatro filas de dez com passo marcado como nesses
showzinhos que tem aí hoje, de vez em quando, nos clubes ou nos shows. Eu
não gosto.
OBatuque.com – Poderia contar algum fato curioso que ocorria em desfiles?
Fernando Pamplona – Antigamente as escolas entravam bem ou mal
dependendo dos quinze minutos que tinham para a armação. Se armasse bem,
entrava bem; se armasse mal, entrava mal. Hoje a coisa está organizada por
computador, tem cara com telefone, cronômetro, etc. Hoje não tem mais diretor
de Harmonia, hoje tem tenente, sargento, soldado… A coisa virou muito
mecânica. Há uma curiosidade com o Alcir Pimentel, que era quem armava o
Império Serrano. Ele era um cara dedicado, maravilhoso. A escola foi sempre a
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mais rica e tinha setenta destaques grandes. E eu estava vendo o Alcir botar os
destaques no carro, o que foi uma grande invenção, ao contrário do que todo
mundo diz, que atrapalha o samba. O carro abriu passagem, deu espaço para o
samba no pé. O famoso samba no pé, que ninguém sabe especificar direito o
que seja. Ele tirou setenta destaques maravilhosos do chão. E os destaques
ocupavam uma área de dez metros que vinha protegida. E setenta por dez é
uma área de setecentos metros de desfile. Até que o João botou tudo em cima
do carro e todos querem ser destaques, artistas da Globo etc. Aí, vinha todo
mundo lá em cima do carro, e como a TV só transmitia do lado esquerdo, elas
pagavam para vir do lado esquerdo, para poder aparecer na TV. Agora, como a
TV está dos dois lados, eles não sabem para onde vão, ficam no meio. Ficou
uma merda. Destaque antigamente era Tiradentes, destaque era personagem, e
Tiradentes era destaque porque ele era o enredo, ele com a camisola e com a
corda pendurada no pescoço com barba grande. Como nós fizemos a visita ao
Rei Negro, quando Mauricio de Nassau foi um destaque. O destaque mudou o
sentido, o destaque passou a ser a mulher que mais tem penas na bunda e que
venha mais nua. Inventaram uma pena lá, que é para fingir que aquilo é dela,
mas não é, e chamam aquilo de destaque. Uma vez eu neguei para o Salgueiro
um destaque que vinha de São Paulo, porque a roupa dela era que nem de
caminhão. E o Djalma Preto da Mangueira aceitou, eu não gostei. A Mangueira é
pura, e aceitou um negócio desse para atrapalhar seu desfile, e atrapalhou.
OBatuque.com – De todos os desfiles que presenciou, quais considera os mais
marcantes?
174

Fernando Pamplona - O melhor de todos, que vai ser insuperável – e eu disse


para o autor: “Você nunca vai fazer coisa semelhante”. “Mas vê o ano que vem”,
ele disse, mas “o ano que vem” foi uma coisa horrível – foi “Ratos e Urubus”, de
João Trinta, que foi maravilhoso, com o Cristo proibido. O juiz mandou me
prender porque eu disse que toda a censura é burra, independente de quem a
exerça, e esse juiz merecia ser preso. Aí pegaram todas as fitas da Manchete e
o juiz de lá, na congregação dos juízes, me acusou de ter ofendido a Justiça. O
Bloch fechou o rabo e mandaram as fitas para bandas internacionais. Aí os
juízes devolveram e disseram que o juiz ofendido me processasse, porque eu
tinha reclamado contra o juiz e que não tinha falado contra a Justiça.
Todas as vezes que transmitimos o carnaval, assim como na imprensa escrita,
onde todos os artigos assinados não são responsabilidades do veículo, e sim de
quem assina, tudo que nós dizíamos era responsabilidade exclusivamente
nossa, não do veículo, que era a Manchete. Isso eu dizia permanentemente em
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todos os programas que fizemos, porque a gente estava ali e não queríamos
ferrar a Manchete. Quando dizia alguma coisa tinha que assumir a
responsabilidade e enfrentaria com maior prazer a Justiça, se fosse processado,
por causa da censura que eles estabeleceram. Mas para mim foi o maior
carnaval de todos os tempos, não tem nenhum parecido até hoje, nem tão
empolgante, quanto aquele “Ratos e Urubus”, que eu chamo de “Cristo Proibido”.
OBatuque.com – Um samba-enredo?
Fernando Pamplona – “Heróis da Liberdade”, “Monteiro Lobato”, a melodia
extraordinária. Depois tem a Amazônia que foi cantada neste ano pela Portela
(“Lendas e Mistérios da Amazônia”), é maravilhosa. Martinho da Vila é fogo.
Aquele samba sem rima…
OBatuque.com – “Raízes”, 1987, no qual os compositores podiam se inspirar
para desenvolver melodia.
Fernando Pamplona – É isso mesmo, você falou certo. A melodia supera a rima.
Eu tenho um samba de Orlando Silva inteirinho sem nenhuma rima.
OBatuque.com - Um compositor?
Fernando Pamplona – Silas de Oliveira, indiscutivelmente acima de todos os
outros. Mas tem Geraldo Babão, Geraldo Pereira, Carlos Cachaça, Noel Rosa de
Oliveira, Zuzuca…
OBatuque.com – Um mestre-sala?
Fernando Pamplona – Difícil, são todos parecidos. Delegado… Mas eu sou mais
o Canelinha, do Império Serrano. Era tão magro e tão habilidoso quanto o
175

Delegado. Mas tinha um cara que tinha sido mestre-sala de rancho que herdou a
elegância do rancho, que eu não lembro o nome dele, não.
OBatuque.com – Uma porta-bandeira?
Fernando Pamplona – Depois da Wilma Nascimento, a Rita (Salgueiro) e fim de
papo.
OBatuque.com – Um mestre de bateria?
Fernando Pamplona – Um nome que vocês não conhecem, que armou a bateria
do Salgueiro. Uma vez saiu no Salgueiro. Ele armou a bateria da Vila, ganhou a
beça, se chamava Branco Ernesto, era batedor de surdo. Se você chegar na Vila
Isabel e perguntar quem foi Branco Ernesto eles vão se ajoelhar no chão,
inclusive o Martinho, e vão falar assim: “ex-grande mestre de bateria do
Salgueiro”.
OBatuque.com – Uma passista?
Fernando Pamplona – Uma mulher chamada Narcisa. Ela passava pelo meio do
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desfile sozinha, não tinha nenhum homem que não ficasse de pau duro, é sério.
Ai daquele que não ficasse assim quando ela passasse, só se o cara fosse
brocha, porque até meio-homem ficava quando Narcisa passava com aquele
rebolado mais maravilhoso e gostoso do mundo. Tem a Roxinha do Salgueiro,
mas a diferença é que ela era uma passista maravilhosa, mas não era tão boa
quanto a Narcisa.
OBatuque.com – Um passista?
Fernando Pamplona – O saudoso Gargalhada, o Serrinha, mas o melhor é o
Vitamina.
OBatuque.com – Uma personalidade?
Fernando Pamplona – Nelson de Andrade, acima de todos. Muitos dizem que o
carnaval existiu antes e depois de mim, e isso é um absurdo. O carnaval existiu
antes de Nelson de Andrade e depois dele. Foi ele quem me colocou no samba
e adivinhou que produto que o Arlindo e eu poderíamos dar, foi quem me
ensinou tudo. Não era bicheiro, era peixeiro, e mais do que Natal ele contribuiu
com tudo e todos, ajudou a quem precisasse no tempo em que ele tinha
dinheiro. Depois ficou tão duro que teve que trabalhar pra mim, com diária. Mas
ele era de uma generosidade e compreensão que verdadeiramente todos
deveriam ter assim no samba. Ele topou fazer o “Debret”, só isso já vale uma
medalha de ouro enorme para ele. Obviamente, ele foi um cara indiscutivelmente
maravilhoso. E ele era paulista. Aliás, eu fiz um artigo uma vez, chamado “Os
Cariocas. Carioca é todo aquele que contribui para ajudar na cultura do Rio de
Janeiro, para a formação do espírito carioca. O maior que eu conheci na minha
176

vida, e até hoje eu afirmo isso, foi João Saldanha. Natal era paulista. A maior
música sobre o Rio de Janeiro foi composta por um pernambucano, Antônio
Maria, “Rio de Janeiro / gosto de você…” (“Valsa de uma Cidade”). O maior
cliente do Rio de Janeiro era o Rubem Braga, ele era do Espírito Santo. Um dos
maiores poetas do Rio se chama Carlos Drummond de Andrade. E aí eu fiz
todos os caras que fizeram o Rio, e obviamente não citei Albino Pinheiro, Beth
Carvalho, Martinho… Não citei os cariocas, citei os caras que fizeram o Rio de
Janeiro e não eram daqui e citei mais de cinquenta nomes. Ainda tem o Joel
Silveira, o maior repórter do Rio, hoje com 90 anos de idade.
OBatuque.com – Um carnavalesco?
Fernando Pamplona – O melhor carnavalesco hoje, pra mim, é a Rosa
Magalhães, que criou uma linha e é fiel a ela. E se houvesse a tal Taça
Eficiência que tinha no futebol carioca que eu falei, depois da Beija-Flor, viria a
Imperatriz Leopoldinense, com a assinatura da Rosa. Ela foi minha aluna de
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verdade, é aquela que trabalhou comigo. Eu fui paraninfo da turma dela na


escola de Belas Artes e era amigo do pai e da mãe, duas das pessoas mais
maravilhosas que já houve na cultura do Rio de Janeiro, Magalhães Junior e
Lúcia Bernadete. Para mim, a Rosinha é a mais inteligente, culta e mais criativa
de todos os carnavalescos, meus amigos existentes hoje. Inclusive mais que
meu irmão querido Joãozinho Trinta, irmão que nossas famílias se uniram, e
minha filha quando vai ao Maranhão se hospeda na casa dele, quando eu vou
ao Maranhão a irmã dele me dá carro com motorista, é amor, e o irmão que
ainda tenho no meio do samba. Tinha o Arlindo, que já morreu, e tem o João
Trinta. Foram os dois caras mais maravilhosos que eu já vi criar o carnaval.
Hoje o João está meio perdido, haja visto a apelação que ele fez neste ano na
Grande Rio. Para mim ele extrapolou, inclusive ele ainda não me ligou, porque
sabe que vai levar um esporro. Eu acho que ele está meio com vergonha,
porque ele nunca foi dependente, pelo contrário, ele foi sempre independente.
João é gênio demais, pela continuidade e criatividade maravilhosa. Mas em
primeiro lugar, pra mim, hoje, que meu irmão me perdoe, é a Rosa Magalhães. E
junto com o João tem o Renato Lage, e como continuidade do Salgueiro tem o
Max, que continua fiel ao Salgueiro. Fora isso é muito difícil você encontrar um
carnavalesco absolutamente top.
OBatuque.com - E um que é de uma geração mais recente e apareceu numa
entrevista que você gostava muito dele, e infelizmente faleceu ano passado, que
foi o Osvaldo Jardim?
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Fernando Pamplona - Pô, você falou em um cara maravilhoso, que não teve a
chance de pegar uma escola grande, mas mesmo pegando escolas pequenas
mostrou ser de uma criatividade maravilhosa, foi um grande artista. E tem aquele
garoto, que uma vez me perguntou no programa que ele tinha o que fazer no
Barbosa Lima, o Milton Cunha, gosto muito dele, inteligentíssimo. Começou na
Beija-flor com o “Margareth Mee, a dama das bromélias”. Acredito que o Milton
Cunha esteja muito mais maduro hoje. Falei pra ele: “Você ainda não sabe,
garoto, você fez coreografia para a bateria. A bateria tem que tocar, não tem que
colar em cores diferentes, nem coreografar para fazer milagre visual, que você
esperava fazer com a Ilha”. Ele é um sujeito, fabuloso, extraordinário e espero
que venha ser um top quando tiver um discernimento estético mais comedido.
Ele já não é mais tão exibicionista, hoje está contido. É um homem muito
inteligente, homem de uma boa formação cultural, ele vai amadurecer.
OBatuque.com – O público sambista sente falta do Pamplona comentarista dos
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desfiles das escolas de samba. Pamplona sente falta de comentar os desfiles?


Fernando Pamplona – Não há mais o que comentar. Já disse tudo que podia
dizer sobre as escolas de sambas hoje.
OBatuque.com – Que mensagem deixaria para as comunidades que tanto se
esforçam para colocar o carnaval na Avenida e que, com seu suor, produzem o
mais fascinante espetáculo da Terra?
Fernando Pamplona – Eu não falaria sobre carnaval na Avenida, eu volto para
uma coisa muito mais atrás, meio primitiva. Uma vez, o ensaio do Salgueiro
estava uma merda, um ensaio qualquer de carnaval. Laíla ainda era do
Salgueiro. Aí nós saímos de lá e fomos bater papo na esquina. Eu tava tomando
umas cervejas com ele, junto com as canas, que o lugar era um português que
tinha as canas geladas, e tava vendo um homem entrar por debaixo do balcão e
o português sumiu. Depois outro e mais outro. “Porra, Laíla o que tem aqui?”. Ele
disse: “Você não sabe? Quer ver?”. E eu falei “quero”. Ele disse: “Seu Manoel,
dá licença”. Os portugueses foram os maiores empresários, o livro de ouro de
escola de samba quem garantia eram eles. As escolas viviam não de entrada,
mas de livro de ouro, eu peguei essa época. O Salgueiro não tinha muro nem
cobrava a entrada. O Brasil não sabe quanto a cultura popular deve a eles, e os
portugueses aqui tinham que ser motivo de respeito e de amor. Eu disse: “Seu
Manoel, a gente pode ir lá ver o que esses homens vão fazer?” Ele falou que
podíamos entrar. Nós entramos e tinha um terreno com cinquenta homens
trabalhando com chapinhas de cerveja. Eles estavam fazendo fantasias. Eu
tenho lá em casa até hoje uma camisa que eles me deram de presente, que era
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verde e branca. O bloco era um bloco que se chamava “Faz Vergonha”. O


responsável veio falar comigo, a pedido do Laíla: “Não, Pamplona, você não
conhece a gente porque nosso carnaval não é na cidade”. Todos os blocos se
reuniam no Rio de Janeiro na Avenida Rio Branco, na Teça-Feira Gorda e era
mais bonito que desfile de escola de samba, era uma festa. O bloco “Faz
Vergonha” era muito bom, não saía na imprensa, e todo mundo se divertia. A
imprensa é uma das grandes culpadas de só dar espaço para as escolas de
samba. Mas as escolas do Rio são dez vezes mais que isso. O carnaval de
bairro é o carnaval do Faz Vergonha, dos Clóvis. É um carnaval que existe, mas
não aparece no estampado, que existe e resiste maravilhosamente bem.
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