Você está na página 1de 139

Lia Duarte Mota

Manual do corpo em treinamento


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em Letras.

Orientador: Prof. Julio Cesar Valladão Diniz

Rio de Janeiro
Abril de 2015
Lia Duarte Mota

Manual do corpo em treinamento

Defesa de Tese apresentada como


requisito parcial para obtenção do grau de
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação
em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade do Departamento de
Letras do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Julio Cesar Valladão Diniz


Orientador
Departamento de Letras – PUC-Rio

Prof. Frederico Oliveira Coelho


Departamento de Letras – PUC-Rio

Prof. Joao Camillo Barros de Oliveira Penna


UFRJ

Prof. Alexandre Graça Faria


UFJF

Profa. Marilia Rothier Cardoso


Departamento de Letras – PUC-Rio

Profa. Denise Berruezo Portinari


Coordenadora Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 15 de abril de 2015.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do
orientador e da universidade.

Lia Duarte Mota

Graduou-se em Letras (Línguas Portuguesa e Espanhola


e suas respectivas literaturas) na Universidade Federal de
Juiz de Fora, em 2008. Foi bolsista Provoque de
Iniciação Científica no projeto “Os modos da margem:
representação da marginalidade na cultura brasileira
contemporânea”, com o qual recebeu o prêmio no XIV
Seminário de Iniciação Científica e IV Seminário de
Iniciação Científica Jr, da UFJF. Foi também professora-
bolsista de Língua Espanhola do Projeto de
Universalização de Língua Estrangeira (PU). Ambos em
2008. Fez o Mestrado em Estudos de Literatura na PUC-
Rio, em 2011. Publicou artigos pertinentes aos Estudos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

de Literatura, com foco em corpo, performance e escrita,


além de ter publicado livros ao lado de outros
pesquisadores.

Ficha Catalográfica

Mota, Lia Duarte

Manual do corpo em treinamento / Lia Duarte Mota;


orientador: Júlio Cesar Valladão Diniz. – 2015.
139 f. : il. ; 30 cm

Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica


do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2015.
Inclui bibliografia

1. Letras – Teses. 2. Treinamento. 3. Corpo. 4.


Escrita. 5. Haruki Murakami. 6. Michel Serres. 7.
Jacques Henri Lartigue. I. Diniz, Júlio Cesar Valladão.
II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Letras. III. Título.

CDD: 800
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Dedico esta tese ao meu avô


que me mostrou estradas,
à minha avó que me deu maneiras de percorrê-las.
Y a la Luna en el cielo en estas noches.
Agradecimentos

Desde o início. Obrigada, mãe e pai, pelas muitas histórias variadas, cheias de
detalhes incríveis, que atravessam esta escrita. Acho que, por sermos uma família
grande, acumulamos mais histórias. Compartilhadas. As histórias de cada um são
apropriadas por mim. São também minhas. Em várias situações me pego
pensando como agradeço ter irmãos. Thiago, Lucas, Thomás e Thales, com vocês
aprendi as coisas de meninos, referências tão importantes para mim. Ainda bem,
que tenho também uma irmã. Laís e eu descobrimos, na convivência, que muitas
coisas só uma irmã entende. Lá, obrigada pelas experiências, por ser um
contrapeso de ideias. Rogério, Tatiana e Larissa, vocês fizeram a nossa família, já
ampla, muito mais interessante e diversa. Completaram-na com Luna, Nicolas,
Helena. Sobrinhos fazem as histórias recomeçarem, fazem com que sejam
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

refeitas, muito melhores. Obrigada por me proporcionarem a experiência dessa


nova forma de parentesco.

Adriana, você meio que previu essa tese antes de mim. Você me apresenta muitas
versões possíveis da minha própria história, das minhas leituras, das minhas
experiências. Você soma. Obrigada por compartilhar a Dinamarca comigo de
modo tão especial. Lia Baron, o doutorado já teria valido a pena só pela sua
amizade. Obrigada por me incluir no seu mundo de pessoas tão peculiares e
queridas. Daniel Castanheira completou esse quarteto. Agora, acho que nossos
encontros banhados a álcool e comidas deliciosas – principalmente, aquelas feitas
por Adri – deveriam ter sido semanais.

Obrigada, Tiago, Manu e Leandro, por segurarem a minha onda, por tornarem
todos os meus lares provisórios, durante a tese, momentos de escrita, por darem
alguma leveza ao caos dos últimos meses.

Obrigada, André, Laura, Moema, Larissa, Michele, Carul, Ingrid, Mariana, Yo,
Ana Flávia, por continuarem presentes após tantos anos, por continuarem me
proporcionando experiências que me participam. Obrigada, Bia Bastos e Maria de
Andrade, pelas conversas certeiras.

Obrigada, Mayk, por sugerir, por se empolgar com o tema, por entender a minha
loucura de forma tão carinhosa. Obrigada, Diego Paleólogo, por aquela conversa
na jornada que foi um esclarecimento e pela sugestão de leituras que se encontram
nestas páginas.

Júlio, seis anos são mesmo um longo caminho. Obrigada por acreditar, pela
orientação, pela leitura.

Obrigada, Karl Erik, pelo acompanhamento tão presente durante boa parte do
doutorado, pela leitura dos textos. Agradeço também a oportunidade de uma
experiência única. A Dinamarca foi um marco nesse trajeto.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Obrigada, João Camillo Penna, Alexandre Faria, Frederico Coelho e Marília


Rothier, por aceitarem o convite. É um prazer a oportunidade de conversar com
vocês o assunto desta tese.

Agradeço aos funcionários do Departamento de Letras da PUC-Rio pela ajuda,


pelo domínio da burocracia, pela paciência e gentileza com que sempre me
receberam.

À PUC-Rio e à FAPERJ, pelo auxílio a este trabalho.

À CAPES pela bolsa concedida durante o período de nove meses em Copenhague.


Resumo

Mota, Lia Duarte; Diniz, Julio Cesar Valladão. Manual do corpo em


treinamento. Rio de Janeiro, 2015. 139p. Tese de Doutorado -
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.

O treinamento consiste em se propor metas ainda inalcançáveis. É


imaginar o improvável e, a partir daí, alcançar o possível proposto. A ideia de pôr
o corpo à prova, de testá-lo, vem do trato com os animais. Treinar é preparar o
corpo para uma ação, exigir dele, atingir objetivos e alcançar domínios
desconhecidos, lidar com limites, alterá-los. A escrita é um corpo visual que
ganha forma no treinamento do corpo físico. Na criação de uma escrita é preciso
deixar que as frases sejam construídas em diferentes partes do corpo. Haruki
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Murakami, Michel Serres e Jacques Henri Lartigue treinam o corpo para


inventarem gestos sensíveis: a literatura, a filosofia, a fotografia. O gesto relativo
ao corpo não é apenas uma ação. O gesto se inscreve entre o pré-movimento,
atitude em relação à gravidade, e o movimento. Há, nele, um desejo de se projetar
no espaço que carrega a sua expressividade. Este corpo cria espaço, molda-se
nele. Tem em si todas as forças que regem o espaço e está em contato ininterrupto
com elas. As forças do corpo agem e reagem às forças que o circundam. É com
elas, na fricção, no confronto, no embate com essas forças e com outros corpos,
que há o acontecimento.

Palavras-chave

Treinamento; corpo; escrita; Haruki Murakami; Michel Serres; Jacques


Henri Lartigue.
Abstract

Mota, Lia Duarte; Diniz, Julio Cesar Valladão (Advisor). Training Body
Manual. Rio de Janeiro, 2015, 139p. PhD. Thesis - Departamento de
Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The training consists of proposing oneself goals still unreachable. It is to


imagine the improbable and, from there, reach the possible that was proposed.
The idea of bringing the body to proof, to test it, comes from the handling with
animals. Training is to prepare the body for an action, to demand on it, to achieve
goals and reach unknown areas, to handle with limits, to change them. The writing
is a visual body that takes shape in the training of the physical body. In the
creative process of writing it is necessary to let the sentences be built in different
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

parts of the body. Haruki Murakami, Michel Serres and Jacques Henri Lartigue
train the body to invent sensitive gestures: literature, philosophy, photography.
The gesture of the body is not just an action. The gesture signs up between the
pre-movement – the attitude about gravity – and the movement. There is in it a
desire to project itself into the space that carries its expressiveness. This body
creates space, shapes up in it. It mixes all the forces that govern the space and it is
in continuous contact with them. The forces of the body act and react to the forces
that surround it. It is with them, in the friction, in the clash, in the battle against
these forces and other bodies that the event arises.

Keywords

Training; body; writing; Haruki Murakami; Michel Serres; Jacques Henri


Lartigue.
Sumário

Animália 12

Cavalos de nervos reforçados 21

Gatos de músculos flexíveis 53

Morcegos de ossos alongados 92

Referências bibliográficas 135


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA
Lista de figuras

Figura 1: Exercício n.º 1 de J.P. Müller 11


Figura 2: Exercício n.º 2 de J. P. Müller 20
Figura 3: Exercício s/n de J. P. Müller 52
Figura 4: Exercício n.º 5 de J. P. Müller 91
Figura 5: Óleo van Weers, irmão de Bichonnade,
nosso campeão de salto sobre cadeiras, Rouzat, 1908,
de Jacques Henry Lartigue 130
Figura 6: Dedé, Rouzat, 1911, de Jacques Henry Lartigue 131
Figura 7: William e Robert Laurentz são vencidos por nós,
campeonato de tênis de La Boulie, setembro de 1916,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

de Jacques Henry Lartigue 132


Figura 8: Meu gato Zizi, Paris, rua Cortambert, 40, 1904,
de Jacques Henry Lartigue 133
Figura 9: Exercício s/n de J. P. Müller 134
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA
  12  

Alimária

O mundo animal deve ser percebido nos seus detalhes.


É mutável e adaptável. A ideia de que indivíduos com
variações mais favoráveis ao ambiente sobrevivem e que esse
conteúdo genético aprimorado é perpetuado, eliminando as
falhas do corpo, não o traduz. Animais se adaptam. Falhas
são diferenças, alterações, não imperfeições. Falhas não
necessariamente impedem a sobrevivência. Podem significar,
ao contrário, novas maneiras de habitar o mundo. O mundo
animal não é o paraíso. Corpos se enfrentam, disputam uma
área, comem-se. Embate, confronto, delimitação de espaço,
assim como acolhimento, encaixe, compartilhamento são
procedimentos das relações entre corpos. Homens são
animais. E se utilizo o termo homem para designar qualquer
ser humano não é porque desconheço ou considero
irrelevante a carga semântica da palavra, os efeitos de
dominação arbitrária, de subjugação e adestramento. Uso
homens, porque falo de corpos. E qualquer corpo pode. A
distinção dos corpos humanos acarretaria individuação de
suas potencialidades. Qualquer corpo pode.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Alimária diz sobre qualquer animal, inclusive aqueles


já submetidos ao domínio humano. São os chamados animais
de carga. Quando uma pessoa é grosseira, rudimentar, é
comparada a um animal selvagem. Mas animais, de modo
geral, têm o porte esbelto por princípio. Conseguem alongar o
corpo na medida ideal e promovem a relação equilibrada
entre as diferentes partes para realização da ação corporal que
pretendem. É que animais sabem aproveitar ao máximo as
possibilidades de esforço que a estrutura de seu corpo é
capaz.

Todos os sapatos aparentemente eram idênticos. Pretos, de


sola resistente, extremamente práticos e de couro barato. Ele
os usava até o couro rasgar, o calcanhar deformar e o
calçado ficar totalmente imprestável. Toda vez que o menino
Tengo via aqueles sapatos completamente gastos e
deformados, ele sentia muita pena. O sentimento de
comiseração não era em relação ao pai, mas aos sapatos.
Eles o faziam lembrar aqueles animais de carga à beira da
morte, após serem usados até não aguentarem mais.1

Foi com o domínio dos animais e entre si que o homem


aprendeu sobre o treinamento. Seus benefícios, suas técnicas.
Descobriu que o corpo pode aprimorar suas habilidades por
meio de exercícios disciplinados e repetitivos. O treinamento
focou-se nos gestos e nos seus efeitos. Os resultados gerados
nesta relação produziu a organização de determinados
exercícios em métodos quantificados para promover um
melhor desempenho do corpo. Os métodos de treinamento
sofreram alterações com as novas compreensões sobre o
  13  

funcionamento do corpo e sobre sua aparência. A cada nova


compreensão de uma parte física, novas medidas corporais,
novos métodos. O treinamento envolve o contato com as
resistências, com os obstáculos escondidos, pretende a
superação de um estado anterior. O treinamento faz descobrir
sobre si.
Esta é uma escrita em treinamento. Treinamento do
corpo sentado. Há quem prefira escrever em pé. Goethe era
um desses. O corpo sentado treina uma postura e o manuseio
das palavras no texto. O treinamento, aqui, não é apenas da
escrita, mas o treinamento do corpo antes e no momento de
seu acontecimento. Um corpo que treina e se apresenta na
escrita. Os corpos reunidos, aqui, são corpos que situam, que
habitam, que não se distinguem da realização que propõem.
Corpos que vibram. Corpos que fazem invenções.
A invenção é um estado potente, logo, é ação, feitura,
disposição. Invenção é coisa nova, criada, imaginada. Este
texto é um caminho em invenção, que vai sendo preenchido
por leituras, músicas, danças e conversas, por teóricos e
amadores, no treinamento de cada palavra, no treinamento do
percurso. A invenção está na boca e nas proposições de Hélio
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Oiticica. Numa entrevista para o cineasta do terrir, Ivan


Cardoso, a fala do artista está cheia de marcas da oralidade,
como se também, ali, tentasse fugir da interpretação. A
interpretação é considerada coisa velha, uma tentativa de
buscar significados prontos. Oiticica pretende uma nova
maneira de nomear sua arte. O artista relê a invenção de
Pound, um novo processo descoberto. Inventores são o topo
da classe de pessoas que cria a literatura. Oiticica pretende
um estado de invenção, um processo criativo em que o artista
é um inventor e deve conduzir o espectador a tal estado.
Assim, invenção também é descobrimento, achado.
Buscar, descobrir, ignorar as aspas, experimentar.
Deixar-se atravessar por diferentes e variados estímulos e
reagir a eles. Ou refazer. Apropriar-se de um conteúdo do
passado, apaziguado, e inseri-lo num novo ambiente-tempo,
aproveitando-se da tensão criada para ressituar, começar de
novo de outro lugar. No estado de invenção cabe o artista que
se relaciona com diferentes formas de arte. O artista que tem
no corpo uma extensão de seu fazer artístico independente do
suporte em que a obra é expressa. Descoberta do corpo. O
corpo como prolongamento, continuação. Um corpo que
dança, não porque escuta uma música, não porque executa
passos pré-definidos, mas porque se apresenta e se
presentifica no estado de invenção, porque incorpora,
incorporação.
Um corpo no espaço. Que tem como referência uma
relação de distância com as coisas. Presença. Diferente de
uma forma de atribuição de sentido, interpretação. Um corpo
que se relaciona com o espaço, um corpo que se coloca na
  14  

invenção, um corpo que se lança, que salta. Logo, um corpo


que tem ritmo, pois com pulsações arteriais, pois
comprometido, concentrado. Um corpo não exatamente
consciente, mas concentrado em si, concentrado no ato. Um
corpo que dança, porque inteiramente implicado na invenção.
A dança atinge movimentos complexos que não são tornados
conscientes antes de sua execução. Dança que acontece num
outro modo de consciência em que o corpo está inteiramente
envolvido no movimento, na ação.
Dança pode ser treinamento, quando ligada à disciplina,
à exposição do corpo aos seus limites. Lidar com limites faz
o corpo se colocar inteiro na ação que tenta realizar. Se a
corrida, a caminhada, o alpinismo, os saltos, o corpo inteiro
se organiza e se prepara para a execução. O treinamento
organiza o corpo, coloca-o atento. Uma atenção que não é
mental, é física. O cérebro é um órgão. O corpo está inteiro
preparado, pode realizar movimentos inesperados, pode fazer
os mais distintos gestos, pode atender a qualquer estímulo ao
seu redor. A capacidade de envolver qualquer coisa que o
permeie possibilita a invenção. Descoberta do corpo. De um
corpo que se transforma. “O trabalho criador, qualquer que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

seja, exige um corpo que se transforme: exige infinitas


metamorfoses. Entre as metamorfoses e o poder de suas
virtualidades, o corpo põe em jogo suas potências.”2 Logo,
um corpo em movimento que impulsiona os deslocamentos.
É preciso vivenciar a invenção fisicamente.
No treinamento físico, os movimentos são executados e
repetidos com o intuito de se adquirir força, tônus,
resistência. Com o desenvolvimento dos esportes, os
movimentos começaram a ser categorizados, descritos,
decupados. Outro tipo de domínio do corpo, porque
interessado na execução de movimentos específicos de cada
modalidade. O treinamento é uma forma de fazer perceber os
movimentos do corpo. Eles são memorizados pelos
músculos, ossos, ligamentos, neurônios, para serem
executados com maior precisão.

Tomava também o máximo de cuidado para não fazer


barulho enquanto se exercitava com cargas pesadas nos
aparelhos e, diariamente, além de limpar o chão com
esfregão, dedicava um bom tempo para preparar as
refeições. Praticava espanhol em voz alta, com fitas-cassetes
de conversação nesta língua (ela pediu para Tamaru que as
mandasse junto com os demais objetos de reposição). Os
músculos ao redor da boca começam a atrofiar quando se
fica muito tempo sem conversar. Para evitar isso, é
necessário movimentar exageradamente a boca e, nesse
sentido, nada melhor que treinar uma língua estrangeira.
Aomame nutria havia tempo uma fantasia romântica em
relação à América Latina.3
  15  

Os “esportes atléticos” foram inventados no final do


século XIX, mas foi no século XX que muitas etapas foram
ultrapassadas. Ginástica, esportes individuais e de luta
(halteres, boxe, etc.), esportes coletivos, competitivos, e
esportes de lazer. O século XX, criou e recriou – e todas as
áreas de saber estiveram envolvidas – diferentes formas e
explicações, verdadeiras enciclopédias, para cada
envolvimento social com um determinado tipo de exercício.
Ora valorando uma parte do corpo para ora posterior deixá-la
de lado ou retomá-la sob nova perspectiva. O decorrer do
século foi todo de revisão da compreensão sobre o
aprimoramento do corpo. Houve, em cada etapa, a prioridade
sobre determinada estrutura corporal.
Depois, a contração muscular aparente, a robustez, foi
trocada pela flexibilidade, por uma postura mais livre, porque
mais voltada para as particularidades de cada corpo. Os
exercícios, agora, propõem uma volta a si, um intervalo nas
funções cotidianas para, mais que exercitar o corpo, conhecê-
lo. Os esportes criam novas modalidades para as demandas
dos diferentes corpos. A corrida, se atividade antiga, ganha
novas distâncias e regras.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Haruki Murakami escreve romances e corre. É um


maratonista e, às vezes, ciclista e nadador. O treinamento da
corrida combinou-se com o processo da escrita do romance
até que um não existisse sem o outro. 1Q84, sua trilogia,
narra a tentativa de encontro entre Tengo e Aomame. Ele,
corpo grande, atlético, usa-o no judô como sustento, até o fim
da faculdade. Tengo não se interessa por esportes, mas é bom
neles. No período que teve uma lesão, aprendeu a tocar
tímpano na orquestra da universidade para manter a bolsa de
estudos. É um prodígio da matemática, que lhe serve como
transporte para um mundo claro e livre. Quando essa
passagem entre o real e o matemático torna-se ineficaz,
Tengo começa a escrever ficção. Ao reescrever o romance de
Fukaeri, uma menina disléxica de 18 anos, Crisálida de ar,
ele encontra o seu estilo. Aomame é magra, mas seu corpo é
musculoso e flexível. Não há excesso de gordura. Jogou
softebol durante a faculdade até que se formasse em
Educação Física e fosse trabalhar num clube esportivo.
Aomame conhece todos os músculos e suas funções no corpo
e sabe trabalhá-los com exatidão. Estudou diferentes técnicas
corporais de modo que é capaz de detectar importantes
pontos do corpo apenas com as mãos. Sabe como os pontos
se relacionam e se provocam. Aomame assassina homens que
abusam de mulheres com um picador de gelo adaptado com
uma agulha. Sabe o ponto exato em que deve inserir a agulha
na nuca para matar. Aomame não derrama sangue. Tengo
acredita que a única forma de definir o mundo real, de
reconhecer a fronteira que o separa da ficção, é que nele uma
pessoa sangra quando é espetada por uma agulha.
  16  

Em 1Q84, conhecer envolve o corpo todo. O


pensamento é um conjunto de percepções corporais de
diferentes partes. São corpos que escrevem romances, que
detectam o perigo, que podem reagir a eles de maneira
controlada e bem sucedida. Os corpos são ativos, ágeis e
potentes. A narrativa prepara os corpos que se preparam para
qualquer ação inesperada. São corpos que se movimentam na
caminhada, na escrita, no alongamento, nos esportes, na
prática musical, nas lutas.
O movimento dos corpos que perpassam essa escrita
dão movimento à própria escrita. Não apenas porque a escrita
é feita pelos movimentos das mãos, cujo esforço para fazê-los
é originado no tronco, no centro do corpo, mas também
porque é uma escrita que envolve corpos em treinamento.
Corpos que se colocam em movimentos repetitivos e
disciplinados para realizar gestos específicos.
Michel Serres movimenta a sua escrita filosófica com
fábulas, geometria, operações algébricas, mitos, literatura,
história, qualquer história. Ele iniciou sua formação em
matemática, passou pelo física, estudou literatura, depois
criou seu próprio método filosófico. A filosofia é feita de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

relações e contatos flutuantes e móveis, é um mapa de


navegação que não indica uma única direção. Os saberes,
como as estrelas que se movimentam, quando em contato,
inventam novos deslocamentos. Nesta filosofia, os saberes
devem estar disponíveis e serem experimentados como
“entrar em outro ser humano”. Serres diz que se a filosofia
reflete o mundo, se quer inventá-lo, só é possível fazê-lo com
o corpo. E é preciso que este corpo seja exigido nas
escaladas, na ginástica. Serres treina seu corpo. Este corpo
une seus sentidos ao espaço e ao tempo. A memória do corpo,
as fragilidades da abstração com as quais lida, fazem a
escritura do corpo.

Quem sabe a concentração e o empenho de reescrever a


Crisálida de ar teriam ajudado a deslocar a rocha que até
então bloqueava a fonte. O próprio Tengo não sabia o
porquê de isso acontecer, mas de uma coisa ele tinha certeza:
“Finalmente, aquela tampa pesada fora retirada.” Sentia-se
leve, como se acabasse de deixar um local apertado e que
somente agora pudesse esticar à vontade seus braços e
pernas. Possivelmente a Crisálida de ar é que teria
estimulado esse algo que existia dentro dele.4

A memória do corpo se relaciona à memória das


palavras na escrita. A escrita como uma maneira de tracejar
vias. Não delimitar. O tracejo vem das palavras que
percorrem o corpo. Órgãos, quando fazem um exercício
físico, principalmente aqueles que colocam o corpo em
perigo, pensam. Estes pensamentos ganham nova textura
quando atingem o papel.
  17  

O gesto de escrever é feito de movimento do corpo


implicado no fazer, na invenção, que usa os mais bruscos e os
mais sutis movimentos. O gesto não é medido pela
intensidade. O gesto não é medido. O gesto é um tipo de
movimento, envolvimento do corpo. É forma de exprimir-se,
manifestar-se. O gesto é parte do fazer artístico, é um dos
elementos do estado de invenção. Aqui, está em jogo e em
foco, o estado de invenção no que tem de potente, no que tem
de experimentação, de corpo, de gesto, de efeito, de afeto.
De instante, de agora.
O gesto é uma ação expressiva. Inscreve-se entre o pré-
movimento – atitude em relação à gravidade e em relação aos
afetos e espaços – e o movimento. Há, nele, um desejo de se
projetar no espaço que carrega a sua expressividade. O gesto
é singular e individual e, por isso, impossível de ser repetido.
O gesto, na arte, é uma forma que se dissemina. O artista
inventa o gesto.
Jacques Henri Lartigue foi, durante a maior parte de sua
vida, um fotografo amador. Filho de uma família francesa
abastada, Lartigue passou a vida se dedicando à fotografia,
aos seus diários, à pintura. Como não gostava de ficar parado
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

e tinha preocupação com seu peso, o fotógrafo fazia todas as


manhãs exercícios de musculação e alongamento do método
de J.P. Müller. O livro My system propunha 15 minutos de
exercícios diários não apenas com o objetivo de tornar
saudável, mas também desenvolver a força muscular. Suas
fotografias iam atrás do movimento, mas ele queria capturar
o tempo. Lartigue gostava de guardar memórias. O
movimento o atraia. Além das quedas e saltos, Lartigue
fotografava a família nadando nos lagos, os exercícios de
educação física, jogos de tênis, corridas automotivas. As
máquinas o atraiam. O gesto de fotografar pede um corpo
preparado, envolvido. Trata-se de um pressentimento do
movimento que acontecerá. Suas fotografias são gestos, pois
são um modo singular e desejante de se apresentarem, de
reinventarem um sentido àquilo que antes era apenas uma
ação física. Gestos que não significam fazer ou agir, mas
gerir. Gesto como um meio de medialidade.
Os gestos são encontrados na dança. Ela enfatiza as
relações com o espaço, o tempo, com as coisas do mundo.
Corpos precisam lidar com seus pesos, efeito da gravidade
sobre ele. A dança propõe formas de apoiar o corpo em
qualquer material que o circunde. Pode acentuar sua força,
sua capacidade de leveza, as tensões diversas. Contração. A
dança pode acontecer em diferentes espaços. Rua, jardim,
estúdios, casas. A dança permite a ocupação de espaços não
convencionais. Corpo, um espaço no espaço.
Na dança que se dança, há um corpo vivo e presente
que não pretende representar, que não quer ser interpretado.
Um corpo que se movimenta num espaço, que se relaciona
  18  

com os sons, com os objetos, com outros corpos. Um corpo


situado, que carrega uma história, que é envolvido e que está
na história. Apresentação.
Os corpos que se apresentam aqui, dançam. Seja na
elaboração de ideias, nos movimentos repetidos do cotidiano,
seja escrevendo, vestindo, comendo, seja na movimentação
livre do corpo ao som de uma canção. Esta dança não é
interpretação. É refazimento. Lida com limites, quer
desrespeitá-los.
Oiticica diz que o rock é a dança que se deve dançar
para entender o estado de invenção. É como o branco no
branco de Malevich. Não se trata de repetir um gesto e sim de
perceber o que é irrepetível, o processo singular, o
deslocamento que produz. O rock é a descoberta da libertação
do corpo, porque não é preciso uma iniciação, porque não há
passos definidos, porque não há passos. O rock é conhecer o
corpo. Relacionar exterior e interior. Dança. Para entrar no
estado de invenção, é preciso passar pelo rock, pois o rock é
uma experiência do corpo com o corpo.
O corpo presente na invenção. A invenção gera
invenção. Não se perde, não se dilui. Propicia. Propõe. A
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

invenção: novas formas de combinação, exploração de zonas


ignoradas daquilo que já se conhece. Criações do agora, no
agora. Octavio Paz fala de distintos tempos e distintos
espaços, pois com o apagamento das antigas fronteiras,
tempo e espaço, centro e margem tornam-se referências
confusas.
O manual orienta a execução e o aperfeiçoamento de
uma atividade. É um guia prático. Serve ao manuseio. Mãos
não são apenas uma extensão dos braços, elas produzem
gestos expressivos. Basta as mãos. Ao se relacionarem com
outras partes do corpo, produzem movimentos variados. As
possibilidades de movimentos do corpo nunca se encerram.
Os manuais tratam de corpos e das máquinas que devem ser
manuseados para atingirem o fim proposto. As mãos
manuseiam os manuais, o corpo e as máquinas. Elas
contribuem para a compreensão do corpo e de sua estrutura.
Contribuem para que possamos alterá-la, contribuem na
busca por alternativas para ele. Manuais funcionam a partir
da incorporação.
Lartigue, Serres e Murakami não são os eixos dessa
escrita. Ela trata de corpos. De qualquer corpo. E trata de
algumas possibilidades de tornarem esses corpos inventivos.
Há muitas outras. Aqui, os corpos treinam e inventam. Esta
escrita é feita de corpos variados. Animais, homens e
máquinas. Corpos humanos em treinamento. Correm,
escalam montanhas, fazem alongamento, dançam, caminham,
saltam. Corpos que se preparam para a invenção. Há, nela,
descrições sobre as melhores formas de executar determinado
  19  

movimento. Esta escrita trata de postura corporal, do andar,


do sentar-se para escrever.
Manuais não possuem conclusão, nem o treinamento.
Corpos não se concluem, eles insistem. Esta escrita
continuará a ser praticada. Ela quer dialogar, reunir,
experimentar com conceitos e experiências. Tenciona
períodos, valores, formas e conteúdos. Retira imagens de um
passado, transportando-as ao presente. Outro presente, pois
em mudança, pois que pede reajustes. Dispõe-se a perder o
equilíbrio no que ele tem de dimensão física, no que ele tem
de dimensão subjetiva.
Ela compartilha da busca de Gumbrecht: a busca das
ciências humanas em tornar o mundo mais complexo e mais
complicado. E quer ser regida pela ideia de combinação, Arte
da conjugação, de Octavio Paz. Ela se encontra no regime de
deslocamento de sentido de Rancière e não no regime de
aprofundamento de sentido. E porque quer ser dimensionada
por novas medidas que não o tempo linear, que não os pares,
que não as categorias fixas. É inscrita num mundo em que se
alteram as categorias do literário e do artístico. Tempo e
espaço que pedem imaginação e olhar livre. Invenção que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

aponta para o corpo. Um corpo que experimenta,


experimentação lida como dança. Dança que compreende o
gesto. As invenções desses corpos estão presentes nesta
escrita.
Este é um manual do corpo em treinamento. Músculos
precisam de estímulos diários ou se atrofiam. Quando
utilizados em atividades extenuantes são desgastados com
mais rapidez. E precisam ser lembrados do que podem fazer,
por meio de repetição, ou esquecem. Músculos têm memória,
mas precisam ser trabalhados constantemente, pois ganham
resistência e tendem ao relaxamento na mesma proporção.
Por isso, este é um manual do corpo em treinamento. O corpo
sempre pode mais.

                                                                                                                       
1
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 54.
2
SERRES, M. Entrevista a Roberto Leo Butinof, Adrián Cangi e Ariel
Pennisi. In. Variaciones sobre el cuerpo. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2011, p. 138.
3
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 117.  
4
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 278.  
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA
 
20  
  21  

Cavalos de nervos reforçados

Antes do mas, o corpo é apenas massa que ocupa o


mundo. Depois, tudo se dá no corpo. Todas as coisas do
mundo passam pelo corpo, são experimentadas nele, deixam
marcas. Se a marca de um abraço no seu corpo, extinguível
da parte externa, ou se a marca permanente de um corte, não
há grau de valoração. O corpo é carne, e a carne é moldável.
Por se poder modelar, o corpo admite todo tipo de
interferência, flagelo, inanição, sobejo, exaustão, inatividade,
disciplina, treinamento.

Os olhos estavam abertos, perplexos, como se a última coisa


que presenciasse tivesse sido algo estranho, inusitado. Esse
olhar não era de medo, nem de sofrimento. Era de pura
surpresa: alguma coisa anormal acontecia em seu corpo, mas
ele não sabia exatamente o que era. Não soube discernir se
essa anormalidade era um tipo de dor, coceira, prazer ou
alguma revelação.1

O corpo é potente. Cria espaço, molda-se nele. Tem em


si todas as forças que regem o espaço, as dimensões, os eixos, São 4 as forças que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

regem o universo:
velocidade, ritmo, peso, e está em contato ininterrupto com gravitacional (a partícula
da primeira força
elas. As forças do corpo agem e reagem às forças que o descoberta, gráviton,
circundam. É com elas, na fricção, no confronto, no embate nunca foi detectada),
eletromagnética (o
com essas forças e com outros corpos, que há o fóton), nucleares fortes
(o gluón funciona como
acontecimento. Treinar é uma espécie de acontecimento. mola, mantendo os
quarks dentro do núcleo
do átomo. Os quarks são
Aomame sabia de cor a “Sinfonietta”, de ponta a ponta. blocos de partículas
formadores dos prótons
Escutar a música enquanto esticava ao máximo o corpo, e nêutrons. O físico que
estranhamente, fazia com que se sentisse calma. Era o os descobriu, Murray
Gell-Mann, tirou o seu
momento em que ela torturava e, ao mesmo tempo, se sentia nome da frase “Three
torturada. Forçava e, ao mesmo tempo, se sentia forçada. O quarks for Muster Mark”,
de Finnegann’s Wake ) e
que mais desejava era provar a si mesma sua capacidade de fracas (o bóson). O corpo
autocontrole interno, pois isso a deixava calma. E a música é composto de todas
essas partículas.
de fundo ideal para essas horas era a “Sinfonieta” de
 
Janáček.2

Preparar o corpo para uma ação, exigir dele, atingir


objetivos e alcançar domínios desconhecidos, lidar com
limites, alterá-los, treinar é um modo de conhecer o corpo em
sua complexidade e minuciosidade. Este texto treina
possibilidades do corpo na escrita. Uma escrita que não
distingue produção de pensamento e de sensibilidade, pois
ambas acontecem juntas no corpo. Este corpo pode ter muitos
sentidos. Uma escrita que quer treinar o seu próprio
acontecimento quando relaciona o treinamento físico ao
processo de criação. O treinamento físico é uma forma de
disponibilizar o corpo para a escrita de um romance, para a
criação de conceitos filosóficos, para a fotografia. Um
processo mútuo em que tanto o treinamento físico reorganiza
  22  

o corpo que se apresenta e se realiza na escrita, no modo de Os mongóis tinham 4


sentidos para o termo
pensar e na arte, quanto a construção de um pensamento que corpo: noção de pessoa –

se realiza no treinamento físico, pois só pode acontecer se há o corpo quando


associado ao pronome
o conhecimento do movimento corporal. Para os antigos, o possessivo “meu”
significava “eu” –;
corpo era composto de dois lados não idênticos, que se caracterização de
vitalidade; referência à
encaixavam perfeitamente, um feito para o outro. musculatura e
Treinamento e criação, as duas partes complementares de um corpulência –
indicando o aspecto
corpo que quer ser inteiro. concreto da coisa –; e
designação de uma das
O treinamento como parte de um estilo de vida consiste partes de um elemento
em se propor metas ainda inalcançáveis. É um vislumbre de com duas faces.

um porvir. Imaginar pequenas asas nos pés, garras ou  


membrana entre os dedos, imaginar o improvável. A partir
daí, alcançar o possível proposto. O criador cria as suas
próprias impossibilidades para com elas criar um possível.
Na criação de uma escrita sobre o corpo é preciso deixar fluir
a experiência da escrita pelas mãos. Deixar que as frases
sejam construídas em diferentes partes do corpo. Um modo
de treinamento.
A ideia de pôr o corpo à prova, de testá-lo, vem do trato
com os animais. Na língua portuguesa, treinar era um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

termo de volataria, significava adestrar o falcão a pegar a


sua caça, levando-o a perder o medo de certa ave selvagem
ao lhe dar de comer uma galinha sobre uma ave domesticada
da mesma espécie daquela selvagem, com isso o falcão se
habituava com as características daquela ave e quando fosse
lançado à caça da mesma já não mais lhe tinha medo.3

Os cavalos de corrida eram treinados para eliminar os


movimentos supérfluos com o objetivo de diminuir o tempo
no trajeto percorrido. Submeter os animais à supremacia
humana demonstrou modos de funcionamento de um corpo,
modos de adestramento, demonstrou maneiras de torná-lo
hábil, colocando-o sob a pressão de diferentes forças até o
limite de resistência de suas articulações.
Quando transferidos aos movimentos do corpo-homem,
treinamento passou a significar um determinado conjunto de
exercícios que era organizado de acordo com um método de
aplicação.
O corpo passou a executar exercícios repetitivos que
fortaleciam cada uma de suas partes, formulados com um
objetivo específico. O treinamento não necessariamente se
destina à exaustão. O esforço é progressivo e gradual,
intercalado por momentos de relaxamento. Os exercícios
destinados a cada pormenor visam aprimorar o corpo todo. É
preciso exigir e dispensar, contrair e liberar. Mais do que
focar-se no rendimento físico, nas décadas de 1920 e 1930,
na França, o treinamento adquiriu a conduta de olhar o
interior. Era preciso perceber as sensações, conscientizar-se
sobre os músculos forçados, sua flexibilidade, e entender a
sua demanda diária. O treinamento tornara-se mais íntimo ao
  23  

levar em consideração os desejos dos órgãos trabalhados.


Trata-se de desejo, pois, ainda que não consciente, seria uma
expressão clara de uma vontade de tensionamento, de
espaçamento. Percepção do espaço de si. O corpo é um
espaço no espaço. E, feito de espaços, internos e externos, o
corpo pode modificá-los, ampliá-los ou reduzi-los, reagrupá-
los em infinitas formas, num movimento contínuo.

Aomame começou a fazer os exercícios de alongamento no


carpete da sala. Durante uma hora, castigou impiedosamente
os músculos, suportando dores durante toda a sessão.
Trabalhou com rigor todos os músculos do corpo, um a um,
mantendo uma sequência de exercícios detalhadamente
estudados. Ela sabia os nomes de todos os músculos, assim
como suas funções e características. Nenhum lhe escapava.
Suando muito e com a respiração e o coração trabalhando a
mil, conseguiu mudar a chave mental. Passou a ouvir
atentamente o fluxo sanguíneo e a receber a mensagem
silenciosa de seus órgãos internos. Enquanto movimentava
intensamente os músculos faciais como se participasse de
um concurso de caretas, captou a mensagem que eles lhe
passavam.4
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

A ginástica sempre fora o treinamento utilizado para


exercitar os corpos, torná-los fortes e ágeis, preparados para
as guerras, desde os gregos. Musônio Rufo, estoicista,
escreveu o tratado Sobre o exercício, em que distinguia os
“exercícios para a alma” dos “exercícios comuns para o
corpo e para a alma”. Para os estoicistas, o homem não tinha
controle sobre a vida. Beleza, força e riqueza eram
qualidades externas ao indivíduo que estava condicionado
pelo destino. Os exercícios físicos, praticados nos ginásios
das academias filosóficas, pretendiam a saúde e higiene,
tornar o corpo são para servir ao desenvolvimento do
intelecto. Na Grécia, anterior, falar de corpo era indicar suas
Nos textos de Homero,
partes (membros, pele, articulações, etc.), havendo várias Khrós , muito traduzido
construções linguísticas e não apenas um vocábulo para como corpo, era, de
fato, pele, não o órgão,
designar uma noção de corporeidade. O corpo era uma adição mas a superfície, o
contorno, o limite do
de partes distintas, não uma unidade orgânica. E a educação espaço corpo.

dos jovens – nobres – prestava-se ao corpo, com a aquisição Soma significava


cadáver, corpo sem vida.
de força física, e aos papeis sociais. Era a paideia. A  
democracia e as filosofias helenísticas, depois, introduziram
as atividades intelectuais. A filosofia, nesse período, era um
modo de vida. Cada tendência acentuava seus princípios que
envolviam intelecto, corpo, alimentação, relações. Desde
Sócrates, no entanto, as propostas filosóficas se concentraram
no intelecto – e não no corpo – com diferentes exercícios
para o espírito: meditação, diálogos, discursos interiores e
investigações para se afastar dos prazeres dos sentidos e
exercitar a parte superior (a alma, o intelecto). O corpo era
secundário e afastar-se dele, de seus desejos e demandas,
  24  

permitia conhecer a si mesmo e desenvolver o intelecto mais


profundamente.
A ginástica sofrerá intensas modificações no decorrer
dos séculos. A ginástica não é um esporte. De movimentos de
conjunto realizados nas sociedades de ginástica a práticas
disciplinadas que servissem ao treinamento militar – um
desenho geométrico sempre repetido –, transformando-se em
uma sequência de exercícios individualizados voltados ao
lazer, ao bem-estar e à modelagem do corpo, podendo ser
executada em ambientes destinados à mesma ou em parques
e casas, a ginástica perdura como treinamento que aponta
progressos e definições da estrutura corporal.
As escolas francesas mantiveram a ginástica nas
décadas de 1920 e 1930, quando alguns esportes atléticos já
faziam muito sucesso e as sociedades de ginástica
desapareciam. Os pedagogos acreditavam que os esportes não
eram adequados, pois colocavam o indivíduo sob pressão
física e mental. Os esportes estimulavam a competição. Fazer
ginástica era como aprender a ler: conhecer o alfabeto – e as
formas de alongar o corpo – era essencial, mas conhecê-lo
não significava que o aprendizado havia se encerrado. Os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

processos de apreensão da leitura e da ginástica podiam ser


lentos, repetitivos, funcionais e úteis.
No princípio, quando não se tinha dados contabilizados,
os movimentos foram fotografados, dissecados, medidos,
reproduzidos novamente. Os métodos de exercícios geraram
No século V a.C, a
tabelas, agendaram números. estátua Kânon , de
Policleto de Argos,
estabelece um cálculo
O perímetro do meu peito mede 99cm na expiração, 124cm das proporções ideais
que resultariam num
na inspiração, e meu fôlego avaliado no espirômetro atinge corpo harmônico. A
600cm cúbicos. E isto especifica desde o início o perfil medida era o tamanho
da cabeça. A cultura
esperado das posturas físicas, os resultados diretamente mítica, no entanto,
visíveis do treinamento: tórax lançado para a frente, combinava cada forma
corporal a um ato
espáduas forçadas para trás, a parte superior do corpo inicial de desmedida
desnudada para melhor destacar seu desenvolvimento.5 ( hybris ). Cada vez que
o homem agia de
acordo com um desejo
desmedido que
Tratava-se de padronização física. No século XX, infringia as leis
surgiram os mais variados métodos de treinamento. Valiam o divinas era punido.
Surgem os centauros.
progresso e as previsões. Aqueles que se baseavam nos As medidas do corpo
ideal contradizem os
movimentos corporais básicos: Georges Hébert, um tenente corpos

da marinha, inventou o “método natural”, em que partia dos dessemelhantes dos


mitos, do imaginário,
movimentos naturais realizados pelo corpo humano da vida.

codificando-os para que se tornassem movimentos  


conscientes de melhoria do desempenho físico. Caminhar,
correr, saltar, lançar se transformaram em técnicas
pedagógicas que trabalhavam todas as partes do corpo. Não
intencionavam um esforço exagerado, pretendiam alguma
saúde e bem-estar. Métodos que utilizavam objetos, como
extensores e halteres. Ou o treinamento baseado em uma
conduta simples, executada em qualquer local, de forma tão
sutil que despercebida na multidão. Movimentos rotativos
  25  

para as articulações das mãos e pés, contração e relaxamento


alternados das musculaturas das nádegas, coxas e panturrilha.

A condessa de Polignac, a filha de Madame Lanvin, evoca


em 1934 os exercícios feitos nos momentos mais
inesperados, sempre vigiados e suficientemente
interiorizados para serem quase invisíveis: “Durante o dia,
no carro, durante uma conversa, eu me exercito sem que
ninguém desconfie. Giro os punhos, levanto-os lentamente, e
[sic] como se pesassem um peso insuportável. Graças a esse
método, adquiri músculos de aço.”Votre bonheur sugere, em
1938, um programa de “ginástica invisível” realizado nos
momentos perdidos, “à espera do ônibus”, “no metrô”, sem
que ninguém perceba, mas com extrema concentração
mental: “Para fortalecer os músculos dos joelhos e das
coxas, das nádegas, contraia e relaxe alternadamente cada
um deles [...], durante alguns minutos você pode fazer toda
uma série de movimentos perfeitamente invisíveis.6

Os métodos, em sua origem, eram grosseiros e


simplificados. A mudança dos efeitos que se quer no corpo
promoveram a combinação dos métodos e a criação de outros
mais sofisticados e específicos às necessidades de cada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

esporte. O corpo é formado por inúmeras partes distintas que


se organizam para formar uma estrutura complexa e
funcional.
Os músculos são órgãos formados por fibras que,
articulados a outras estruturas do corpo possibilitam o
movimento por meio da contração. Os músculos têm a
capacidade de transformar energia química em mecânica.
Quando trabalhados, saltam à pele. Eles definem as estruturas
do corpo, dão a clara ideia de massa e força. São vermelhos,
porque possuem grande quantidade de sangue. Os músculos
são manipuláveis, os músculos murcham.
Os ossos unidos uns aos outros formam o esqueleto.
São tecidos duros caracterizados, principalmente, por sua
mineralização (cálcio). Os ossos são ligados aos músculos
pelas articulações. Eles fornecem pontos de força de alavanca
traduzindo uma sensação de movimento que está neles. Eles
protegem órgãos mais delicados, alojam a medula óssea,
sustentam, servem de suportes às partes moles do corpo.
Constituem a mecânica do movimento. Os ossos são brancos
e estão em constante remodelação. O osso velho é substituído No século XVI, o trato
do corpo não fazia
pelo novo numa espécie de programa de manutenção qualquer alusão às
preventiva. funções orgânicas e aos
músculos. Apenas nervos
Os nervos são cordões cilíndricos esbranquiçados feitos e carne eram citados.
Alguém forte poderia ser
de fibras motoras e sensitivas, transmitem ondas elétricas, “muito nervudo e pouco
impulsos nervosos ou potenciais de ação à grande velocidade, carnudo”. As crianças
deviam ter os “nervos
por todo o corpo. Os nervos têm tamanhos variados e reforçados”. Nervos
forçados, nervos feridos,
perpassam todas as partes, ligam cada mínima área às outras nervos encurtados,

e ao sistema nervoso central. Recebem e transmitem nervos comprimidos. Os


nervos davam significado
informações de forma tão meticulosa que nos permitem ao corpo físico.

 
  26  

movimentos precisos e imprecisos. Nos permitem decidir. Os


nervos são redes. Fazem a relação entre exterior e interior,
através das sinapses.
No treinamento, há a utilização de toda a estrutura
corporal. Há um fluxo de exercícios e um fluxo de humores,
ascendentes e descendentes. Há a constrição e o
espaçamento, a inspiração e a expiração, o alongamento e a
retenção. Motricidade e sensibilidade não se separam. A Os filósofos helenistas
associavam a respiração
informação e a sensação acontecem e circulam o corpo aos exercícios

inteiro. Estão juntas. Podem não ser apreendidas ao mesmo espirituais. Os orientais,
há mais de 2 mil anos,
tempo, podem nunca ser ambas racionalizadas, mas se consideram a respiração
absorção e
apresentam em dupla. transformação de
energia. A respiração
envolve todo o corpo.
Ela sabia de cor todos os nomes dos ossos e músculos do Yoga, t’ai chi chuan têm
esse princípio. Apenas
corpo humano. Conhecia todas as funções e características no século XX,
dos músculos do corpo e sabia como colocá-los no lugar e os ocidentais tornaram a
respiração parte
mantê-los em forma. O corpo é um santuário e, essencial e consciente
independentemente do que se cultue nele, Aomame tinha a dos exercícios físicos.

convicção inabalável de que se devia, no mínimo, mantê-lo  


forte, belo e limpo.7

O corpo é composto de uma parte externa, exposta,


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

doada às coisas do mundo e ao outro, e uma interna,


reservada, quase nunca vista. O treinamento procura uma
sintonia instável entre dentro e fora, é a tentativa de um
equilíbrio breve. O desenvolvimento do treinamento, o
surgimento dos esportes, a história fizeram mudar a relação
com o corpo. Tornou-se importante ouvir o próprio corpo,
compreender a sua demanda, saber como trabalhar cada um
de seus músculos, reconhecer sua estrutura. Sentiu-se a
necessidade de uma individuação no treino. Como cada um
sente o seu corpo, como pode explorar os espaços internos,
como ler os indícios que ele aponta. A procura dos rastros no
seu corpo passou a ocupar a rotina de alguns tipos de
treinamento.
Conhecer não é se distanciar. Experienciar o mundo
com o seu corpo, colocá-lo em jogo, permitir a sensibilidade
extrema das funções sensoriais. O conhecimento também se
dá no fluxo interno-externo, ascendente-descendente. O
corpo é feito de interligações complexas. E as sensações, se
desapreciadas, não dão conta de indicar todas as
possibilidades dessas ligações. Os coreanos entendem que as
mãos e os pés possuem pontos reflexos que, se pressionados,
podem indicar problemas e alterações em qualquer zona do
corpo.

Aomame aprendia com facilidade e tinha uma insaciável


sede de conhecer a fundo todas as funções do corpo. Acima
de tudo, possuía uma extraordinária sensibilidade intuitiva
na ponta dos dedos. Assim como existem pessoas capazes de
ouvir e identificar sons absolutos, ou encontrar veios de água
  27  

subterrânea, Aomame conseguia discernir, somente com o


toque dos dedos e em questão de segundos, o ponto exato
que controla determinada função do corpo humano. E isso
ninguém lhe ensinara; era um conhecimento inato.8

Controle, concentração, correlação de estímulos são


traços do corpo não mais separado da mente. O movimento
do corpo é produto de um movimento motor e cerebral. O
pensamento ocorre no deslocamento. O treinamento
intensifica o fluxo sanguíneo, promove aceleração e está
incondicionalmente relacionado ao movimento. O
treinamento expõe o recôndito do corpo, tornando-o mais
aparente a cada sessão. Lida também com o seu lugar
comum. E, ainda que baseado na repetição, lida com um
corpo em constante alteração. Mesmo que se conheça todas
as respostas de cada músculo à determinada exigência física,
há distribuição das sensações no deslocamento. Fazer um
treinamento é fazer seu próprio movimento.
O treinamento, como o experimentalismo na arte,
intensifica o cotidiano ao unir o ordinário e o extraordinário, O mito de Aristófanes

o “todo dia” e o “outro modo” a partir de possibilidades descreve a antiga


natureza humana. Os
estabelecidas. Dá-se na realização e independe da explicação.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

corpos eram
arredondados e duplos.
O treinamento – e o experimentalismo – é um estar presente Havia o homem, a mulher

no cotidiano e atento para notar que este pode ocorrer de e o andrógino. O homem
veio do sol, a mulher da
outra maneira. terra e o andrógino da
lua. Por suas habilidades
físicas, eles escalaram o
Olimpo para falar com os
Aomame inclinou a cabeça de modo que pudesse ver o céu. deuses. Os corpos foram
Enquanto evocava essas lembranças, ela notou que o céu que separados. O corpo
rompido é symbolon ,
observava estava diferente do céu que normalmente uma das partes que se
costumava ver. Alguma coisa havia mudado. Uma sutil e encaixa perfeitamente
em outra formando uma
inegável diferença que causava uma intensa sensação de unidade.
estranhamento. No céu havia duas luas.9  
Assim como o experimentalismo existe na tentativa da
arte de percorrer novos caminhos, experimentar novos
materiais, aproximar-se de novas técnicas, o treinamento
possibilita ao corpo perceber novos espaços internos,
conhecer novas partes, ampliar as percepções. Reagir de
novas maneiras. Disponibilizar-se para as coisas do mundo.
Novo pode ser outro e pode ser de novo. E a reação pode
transcender o próprio corpo.
Artaud faz sua escritura no palco. A primazia da
palavra, no teatro ocidental, reduz a cena à mera
representação. Artaud quer a cena de volta, quer a linguagem
dos gestos, um novo sentido de escrita. A palavra não deixará
de existir, mas terá um lugar delimitado. É na cena que se
saberá quando e como o diálogo deve existir. Relacionando-o
às outras linguagens, ao movimento, aos gestos, à
iluminação, a palavra sendo necessidade. Trata-se de
ampliação das linguagens e não de destruição. A palavra se
retomada na sua origem, se trazida de volta ao corpo, ao
  28  

invés de ser apreendida apenas por seu valor discursivo – que


detém o pensamento –, se percebida por sua vibração no
espaço, se relacionada aos movimentos físicos, palavras
percebidas como movimentos e relacionadas a outros muitos
movimentos da cena, torna a linguagem viva e todos os
objetos começam a falar. A voz (os sons, as consonâncias, o
ritmo, as vibrações) deve convidar o outro a sair do corpo e
deixar-se levar pela onda sonora para outros espaços que não
o físico em que se situa, deixar-se atingir por um estado de
sensações que ainda não é ação intelectiva. A escritura de
Artaud incapacita o texto, a palavra e a escritura são gestos.
Não mais notação de palavras, mas notações de signos
(fonéticos, plásticos, visuais, picturais).
Artaud vê a realidade como superior à história, tira dela
o que há de criativo, interpretando-a. E isto se faz com o
corpo. Corpo é presença que vive a falta, o vazio, o nada, a
fome como explosiva afirmação. Os limites alteram a forma
do corpo. As onomatopeias, os hieróglifos, a pontuação
alteram a forma da escrita. Corpo na escrita. E, ainda que
pressionado até “sufocarem a ideia de um corpo”, no seu
corpo “não se toca nunca”. Esse corpo que se “divide em mil
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

pedaços” 10 para criar um novo corpo, como escritura,


desenho, pintura, gesto, um corpo que restará.
Jean Genet, quando escreve sobre o ateliê de
Giacometti, mostra corpos. Corpos escritos e inscritos nas
impressões das esculturas, nos diálogos com Giacometti, na
página e no gesso. Os dedos usados para escrever tateiam os
sulcos deixados na escultura. Sua mão vê. E são as mãos que
moldam o material. E que escrevem. Jean Genet pode sentir o
traçado de Giacometti no bronze, são as mãos que veem. Os
olhos estão destituídos de sua função, talvez primeira, na
cabeça colocada de lado. O rosto de Giacometti é sulcado
como suas estátuas e sua pele é empoeirada como o seu
ateliê. Giacometti, objeto no mundo leve da solidão dos
objetos sem peso, porque de tão solitários e pertencentes ao
cômodo parecem não pesar sobre o outro. Os corpos
massivos, o peso é pesar noutro corpo. É entre corpos que o
peso acontece. Mas Giacometti, que trabalha com gesso, com No boxe, o técnico de

argila, com bronze – o peso suspenso pelo detalhe, pela força um lutador pode jogar a
toalha no meio do ringue
delicada –, às vezes, vê a toalha na cadeira e imagina que, e encerrar a luta se
considerar que o seu
tirando o apoio, a toalha permanecerá imóvel. O peso dos pugilista não deve
continuar, mesmo que
corpos não aparece nas estátuas de Giacometti. E mesmo ele ainda esteja de pé. É
sendo estátuas, elas se movem e continuam se movendo na o nocaute técnico. Na
Grécia antiga, a luta só
escritura de Jean Genet. O texto vaga pelo ateliê de acabava quando um dos
lutadores era nocauteado
Giacometti. Não tem início nem fim. Vaga pela poeira, pela ou se rendia. Ele
solidão. É sempre um retomar a partir de novas impressões, levantava o braço para
indicar a desistência.
impressões das mãos. Genet não descreve as figuras de
Giacometti, ele as tateia. São os movimentos de sentir pelas
mãos, que Genet leva ao texto.
  29  

Aqui, uma palavra: com exceção de seus homens andando,


todas as estátuas de Giacometti têm os pés como que presos
num único bloco inclinado, bastante volumoso, mais
parecendo um pedestal. Saído daí, o corpo sustenta muito
longe, bem no alto, uma cabeça minúscula. Essa enorme –
em proporção à cabeça – massa de gesso ou bronze poderia
nos levar a imaginar que os pés carregam toda a
materialidade de que a cabeça se desfaz... mas não; desses
pés maciços à cabeça ocorre uma troca ininterrupta. Essas
mulheres não se apartam da lama pesada: no crepúsculo,
descerão deslizando por uma encosta mergulhada na
sombra.11

O corpo presente na literatura pode ser de ressaca, que


sangra, que sua, que deseja, que faz sexo. Um corpo que
causa sensações reflexas no corpo que o lê. “Vivi tanto A natação em águas
abertas permite todos os
aquele dia que de mim escorreu sangue ao deitar”12. O corpo tipos de corpos. A

de Noll. A escritura como um nado livre, intensa e veloz, gordura não se torna um
empecilho e pode até
desliza. O nado livre, como o nome sugere, é uma das auxiliar na flutuação e na
temperatura do corpo.
categorias nas provas de natação em que o nadador escolhe o Há outros empecilhos
nas competições em
estilo. A associação entre o nado livre e o crawl é comum. águas abertas. Além da
Por ser mais veloz, nesses casos, o crawl é o mais praticado. disputa por espaço com
outros corpos no início e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Inácio, adolescente, tem corpo de nadador e o cabelo áspero das possíveis lacerações
no decorrer da prova,
como se muito exposto ao cloro das piscinas. Ele mergulha está-se suscetível às
porta do banheiro adentro com um corte numa das têmporas. mudanças climáticas e
marítimas. É também um
Ele, o melhor amigo do filho dela. A escritura de João ambiente propício a
reacender os próprios
Gilberto Noll escorrega da cama revirada para o banheiro, de medos. Nadar, para
lá para o hospital, até percorrer o caminho de volta à casa. É Daniel Galera, é entrar
numa espécie de estado
rápida e intensa como se levada por águas agitadas. meditativo, estar a sós
com os seus
Embrenha-se pelos corpos, realiza-se neles. Há sangue, suor pensamentos.
e lágrimas. Inácio é o herói do cloro abatido. É imaginando  
adentrar o seu, o de seu filho e o corpo do amigo, figurada e
literalmente, que ela compreende o mundo e se expressa nele.
Ela “levada pelas águas, bem assim, assim...”13

Seu umbigo era o que de mais meu ele tinha. Cheguei mais
perto, bem devagar, sem quase respirar, para que ele não me
pegasse no ato de examinar aquele seu pequeno ponto cavo
na barriga, aquele ponto de onde saía um fio de pelos que ia
se alargando em direção ao púbis –, um ponto enfim que
estivera ligado ao meu corpo por um cordão..., até a noite de
temporal do nascimento dele. Estava tão próxima a seu
umbigo que quase podia sentir o cheiro de suas vísceras... e
por seus caminhos lá dentro eu poderia quem sabe me
embrenhar...14

A escritura, para Michel Leiris, é tão perigosa quanto a


tauromaquia. Espelho da tauromaquia inscreve a carne na
escrita. A escrita se arrisca. O embate realiza o pacto
oscilante com o mundo e o reencontro consigo mesmo. A
escrita de Leiris, assim como a tauromaquia, faz revelar as
partes obscuras de cada um, lidar com o elemento torto,
  30  

assimilar os males, ainda que se saia corrompido da


experiência. A graça do toureiro confronta a força do touro.

Quando, o touro respondendo bem e o homem sabendo


trabalhá-lo, um e outro se envolvem no labirinto móvel da
série de passos contínuos (no curso da qual os dois
adversários, não se deixando senão para imediatamente se
reconfrontar, aparecem mais e mais cingidos um ao outro),
cria-se uma vertigem que lembra de perto a vertigem
erótica.15

A escrita faz encarar tensões que culminam em


distensões, propõe aproximações que culminam em
afastamentos. É um risco. O corpo em perigo oscila entre a
vida e a morte. A tauromaquia, como a atividade erótica,
explicita a fissura ou o desvio no jogo entre excitação e
angústia. A falha que não se resolve, que ao parecer que se
suplanta logo aponta dilaceração e produz nova aspiração,
novo caminho aberto. Os construtores de espelhos (os
escritores, os toureiros, os amantes) agem na rachadura que
mostra o inacabado, que pede um recomeço, uma nova
corrida.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Do que eu falo quando eu falo de corrida é uma escrita


do corpo na corrida. Corrida é uma forma de treinamento. O
corpo que corre e que escreve é o corpo de Murakami. Ele
corre para escrever. Nos dois casos, é preciso experiência e
instinto. São pelos sentidos que as apreendemos. A primeira
se aprimora com o tempo, com a prática. Indica como desviar
de obstáculos, como transformar fraquezas em manobras – na
corrida é necessário lidar com as fraquezas –, como
metaforizar. A segunda, independe do tempo e da prática. É
preciso estar atento. E usar a imaginação. O instinto propicia
saídas rápidas e, muitas vezes, não analisadas para
empecilhos postos de repente. A escrita de Murakami não
corre, o pensamento sim. A escrita é disciplina, é resistência, Epitáfio prenunciado:
Haruki Murakami
é gasto de energia. É reescrita para atingir locais mais 1949-20**

profundos, não para chegar a um fim. O corpo do texto de Escritor (e Corredor)


Pelo menos ele nunca
Murakami é ativo, é experienciado, é exercitado, é físico. O caminhou

corpo se conhece a ponto de saber que há pontos-cegos, que


há escuros e surpresas. Que há ausências de respostas.

Dia 1 – Quando fui morar em Copenhague, levei meu


tênis de corrida sem ter ideia de onde, como ou quando o
usaria. Eu não sabia quase nada da cidade antes de ir.
Quando cheguei, descobri que é totalmente plana e que todo
mundo corre em Copenhague. Tive que comprar uma roupa
  31  

de frio. Apesar da oferta variada, optei por um moletom


barato e fino. Não sabia como me comportar, o que esperar,
então, demorei um tempo para criar coragem para começar.
Era inverno e os dias estavam escurecendo rápido. O que
não era exatamente um problema por duas razões: a
primeira é que os meus dias eram bastante flexíveis, a
segunda é que você pode estar sozinha na rua em qualquer
horário sem sentir que está se arriscando.

Correr em temperaturas mais baixas melhora o


desempenho. Música envolve o corpo todo. Correr contra o
vento faz parecer que se carrega dois corpos. Ficção altera
noções de tempo e espaço. Correr em regiões com muitos
acidentes geográficos desgasta partes específicas. Distrações
modificam o caminho. Correr depois de se alimentar
confunde o corpo. Proposições criam efeitos.
Correr como treinamento físico, para quem gosta de
correr, visa perder calorias, fortalecer e modelar a Originalmente, dis-cursus
era a ação de correr para
musculatura, tornar saudável, superar limites impostos pelo todo lado, tomar
direções diversas, idas e
corpo. Pode ser uma forma de distender o pensamento. vindas, passos, intrigas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

As intrigas são
Correr de si para si. Qualquer que seja a motivação, a movimentos incessantes
sensação é de que se gasta o corpo durante um determinado da linguagem.

tempo, não somente sua energia, mas a força de seus


músculos. É possível senti-los enfraquecerem. Os músculos
tremem. Correr mexe o corpo todo de maneira harmoniosa.
Quando se tira o pé direito do chão, o braço esquerdo,
arqueado num ângulo próximo de 90 graus, movimenta-se
para frente, promovendo uma leve torção do tronco. Quando
o pé direito toca o chão, calcanhar depois ponta, o pé
esquerdo, atrás, está fazendo, ao mesmo tempo, o movimento
oposto. Calcanhar sai do chão antes da ponta. E o tronco faz a
torção para o outro lado com o braço direito, arqueado em
quase 90 graus, dirigindo-se para a frente.

Dia 2 – Foi em Copenhague que decidi fazer um diário


de corrida. Ainda não conhecia Do que eu falo quando eu
falo de corrida, de Haruki Murakami. Na época, estava lendo
Variaciones sobre el cuerpo, de Michel Serres, e entendi que,
para lê-lo, era preciso colocar o meu corpo em jogo. Não
bastava me exercitar. Sua proposta filosófica só é possível,
as palavras que a definem só podem existir no corpo sujeito
ao frio, ao perigo, à morte, às “mais intensas atividades
ósseas, musculares, nervosas, perceptivas, metabólicas,
respiratórias, sanguíneas” 16 . Eu precisava movimentar o
meu corpo. Dispô-lo ao frio, nenhum empecilho, mas não há
risco na corrida. Propus exigir mais do meu corpo do que
estava acostumado. Se o corpo pedisse para parar, eu não
pararia.
  32  

Correr é movimento natural. É ousar o passo e ser


veloz. É a junção de andar, saltar, dançar. E não é nenhuma
dessas ações. Uma outra habilidade do corpo. Correr. Implica
deslocamento, fadiga, extensão. Estímulo inesperado que
altera o movimento apenas aparentemente constante do
corpo. “Corrida. Posição do pé, posição do braço, respiração,
magia da corrida, resistência.”17
A corrida impõe medidas temporariamente precisas e
individualizadas, exige decisões, principalmente, a de um Movimentos têm a
fluência mais livre
início e um fim. Por se tratar de impor e quebrar metas, torna- quando se originam no
tronco e se direcionam
se uma luta acirrada entre parar e continuar, aceitar que a para as extremidades,

musculatura já não pode ou forçá-la ainda mais. A corrida pernas e braços.


Slashing , chicotear, tem
envolve pensamento ativo e corpo desgastado pelo tempo, uma fluência enérgica e
flexível.
pela insistência. Como ocorre o impacto no solo duro, longe
da fluidez das águas, a corrida pressiona e desgasta
articulações, exige força dos músculos. Como envolve
velocidade, exige respiração rápida e intensa, pois aumenta a
circulação sanguínea, acelera o coração. É preciso controlar
os músculos e os movimentos do corpo, controlar a
respiração, controlar o pensamento.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Mas acabou não puxando o gatilho. No último instante,


afrouxou o indicador da mão direita que estava sobre o
gatilho e tirou o cano da boca. E, como alguém que
finalmente emerge do fundo do oceano, inspirou
profundamente o ar e soltou. Era como substituir
completamente o ar contido no corpo.18

A corrida é um tipo de treinamento que desgasta o


corpo. Pode torná-lo inapto mais cedo. Treinamentos,
principalmente os profissionais, exigem que o corpo se
aperfeiçoe, que dê o máximo numa competição. Atletas se
arriscam ao lidar com impacto, velocidade, limites. A corrida,
mesmo quando ligada à saúde, a um ideal de beleza e bem-
estar dos novos tempos, coloca o corpo em risco. Na Europa
antiga, o exercício forte, súbito, repetitivo, faz emagrecer e
adoece o corpo. Qualquer excesso coloca o corpo em perigo,
rompe com o equilíbrio que o faz sadio. Exercícios devem ser
simples atividades cotidianas.

Dia 3 – Só comecei a correr quando me mudei para


perto dos lagos, um canal cortado por cinco pontes. Todo
mundo corre nos lagos, e caminha, e almoça, e pedala.
Baixei um aplicativo que me informava a distância
percorrida, o tempo gasto, os trechos de inclinação, uma
média de minutos por quilômetro e a quantidade de calorias
perdidas. Cheguei a correr 1 km em 05 min e 46 seg. O
menor tempo que já fiz. No primeiro dia, ao contrário, levei
08 min e 22 seg para correr o último quilômetro. O meu pior
tempo. A medida de perda de calorias não era confiável,
  33  

porque o aplicativo não mede a perda no seu corpo. É


apenas um cálculo genérico que leva em conta a distância, o
tempo e a média de minutos por quilômetro. Mas ter
calculado o trajeto, a distância e o tempo gasto já era
suficiente para mim.

Em alguns esportes com bola, corre-se. No futebol,


assim que o jogo começa, as configurações tornam-se
flutuantes. São múltiplas as maneiras de passar a bola. A bola Na França antiga, havia
uma corrida que
risca o chão, cruza, salta, é batida e bate. Traça relações. consistia em levar uma
Entre os jogadores, entre os jogadores e o espaço, entre pelota de um ponto a
outro, distantes. Não
corpos e objetos. É preciso jogar com a bola. Nesse jogo, o havia times, era cada um
por si. Todos os tipos de
goleiro também se movimenta. Muitas vezes, corre. Quando golpes eram permitidos.
parece imóvel, ele aguarda a bola com o corpo inteiro. A
atenção se irradia por todo o corpo. O corpo pode ir para
qualquer lado. O goleiro, para encontrar a bola, coloca-se em
desequilíbrio, aproveita-se do desvio.
As pessoas que correm sabem que, em algum momento
da corrida, iniciará o embate entre a vontade de parar do
corpo cansado e a vontade de continuar do corpo proposto.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Os motivos para parar são sempre os mesmos: dores, calor,


cansaço, sede. As maneiras de se forçar a continuar são
especiais, porque únicas. Há quem faça cálculos para se
distrair. Há quem conte os postes ou telefones ou árvores e
estipule uma quantidade máxima. Há quem conte até 100,
500. Há quem narre uma história para si mesmo, acontecida
ou criada, fixado nos detalhes. Há quem repita a mesma frase
sem pausa. É sempre uma forma de mantra – porque um
influxo repetido incessantemente – que leva o corredor até
aonde quer chegar, sua meta, o quilômetro final. Os
corredores profissionais, muito provavelmente, pensam em
vencer e bater um novo recorde.

Dia 4 – Demoro um tempo para me acostumar a correr


no frio. Faz muito frio. Comprei uma roupa de corrida mais
adequada para o inverno. É de cor escura, é bom que seja,
pois absorve melhor o calor do sol, que quase nunca há!
Venta excessivamente e correr contra o vento é muito difícil.
Há um gasto maior de energia. Tenho a impressão de que
fico mais ofegante. O nariz escorre o tempo todo. Com o
passar dos dias, consigo aumentar a distância. O meu
rendimento é bem melhor do que no Brasil. Passo de 5 a 7
km em menos de uma semana.

Haruki Murakami é maratonista, às vezes, faz triatlo.


Formou-se em Letras, mas nunca tinha exercido qualquer
profissão que envolvesse as especificações de seu diploma.
  34  

Na década de 1970, ele abriu um pequeno clube nos


arredores de Tóquio onde tocava apenas o jazz que gostava.
A família de sua esposa tinha um negócio e o ensinou os
princípios básicos de administração de um empreendimento.
No dia 1º de abril de 1978, estava no estádio Jingu, à uma e
meia da tarde, assistindo ao jogo de seu time de beisebol,
Yakult Swallows. Quando o jogador americano, Dave Hilton,
chegou à segunda base, Murakami concluiu que podia
escrever um romance. Enviou-o para um concurso literário.
Escreveu outro antes de decidir ser somente um escritor. Ele
fechou o bar. No terceiro livro, Caçando carneiros, sentiu
que encontrara seu estilo de escrita.

Vi, em Washington, o chefe da confraria do fogo dos índios


hopi que vinha, com quatro de seus homens, protestar contra
a proibição de servir certas bebidas alcoólicas em suas
cerimônias. Certamente era o melhor corredor do mundo.
Fizera 250 milhas sem parar. Todos esses pueblos estão
acostumados a altos feitos físicos de toda espécie. Hubert,
que os vira, comparava-os fisicamente aos atletas japoneses.
Esse mesmo índio era um dançarino incomparável.19
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Dia 5 – Corri 5 km e 230 m em 32 min e 34 seg. Quem


corre sabe que cada segundo deve ser contado, ou subtraído.
Foi em Copacabana, e eu não gosto de correr em
Copacabana, porque a pista de corrida (e de ciclismo) fica
exatamente ao lado da Av. Atlântica. Corri bem. Bom tempo
em relação aos anteriores, boa manutenção da energia. No
entanto, e não é nenhuma surpresa, todos os meus recomeços
são assim. O corpo está descansado daquela ação específica
e repetitiva como se os músculos não soubessem que estão
sendo exigidos. Estava muito calor nesse inverno carioca, às
16h. Senti dores ao final do tempo e sentirei ainda mais
amanhã. Garanto que não há relação, mas praticamente não
aqueci o corpo antes da corrida e evidentemente – porque já
é comum – não o fiz depois.

Murakami precisa sentir as coisas do mundo Para Goethe, os


exercícios físicos
fisicamente. É na corrida que lida com as demandas da vida contribuíam na
diária. Colocar o corpo em movimento é uma forma de não se produtividade e na
sagacidade da escrita.
perder, buscar uma perspectiva. Quando corre é muito difícil Suas preferências eram a
natação e a patinação.
que tenha uma ideia para um romance. Prefere o vácuo, mas
o vácuo sempre é preenchido por algum tipo de pensamento.
Murakami gosta de praticar as suas palestras enquanto corre.
Como normalmente são em inglês, a corrida auxilia a
memorizar cada palavra, e o tempo de duração das frases, os
intervalos viram parte do ritmo da corrida. Ele memoriza 30,
40 minutos de palestra para não lê-la. Apesar de sua fluência
não ser muito boa, em palestras ele prefere falar inglês do que
  35  

japonês. O limite de vocabulário torna-se um benefício. O


discurso fica mais conciso, com palavras que sejam mais
fáceis de pronunciar. E, se tivesse que falar em japonês, teria
que lidar com as escolhas mais acertadas de palavras na
imensidão da língua mãe.

Dia 6 – A metade final foi sofrida. Era o trecho da


praia e eu estava quase entregue às minhas dores. Quis
desistir. Estava calor demais, minha cabeça pulsava. Não
precisava de um espelho para saber que o meu rosto era uma
bola redonda e vermelha interrompida apenas por um
círculo branco ao redor da boca. A explicação para esse
fenômeno – eu diria que um tanto desconfortável para mim –
é que quando está muito calor e o exercício exige muito do
corpo, os vasos sanguíneos da pele se dilatam para controlar
a temperatura. A proposta inicial era melhorar o meu tempo
e aumentar a distância. Com o meu corpo meio-morto, só me
restou ultrapassar a distância anterior. Foram 5 km e 780 m
em 37 min e 14 seg.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Murakami não gosta de esportes de equipe e não se


sente motivado pela competição. Para ele, atingir os objetivos
fixados na maratona, bater o tempo que planejou, ou fazer
uma descoberta significativa sobre si, são as razões para
continuar correndo.

Quando era estudante do colegial e da faculdade, seu


treinador de judô e seu colegas veteranos sempre lhe diziam:
“Você tem talento, força, está sempre praticando, mas não
tem ambição.” Eles tinham razão. O sentimento de “vencer a
todo custo” era muito fraco em Tengo. Por isso, nas
competições, ele conseguia chegar com facilidade à
semifinal, mas, diante de uma luta decisiva, perdia com a
mesma facilidade com que vinha vencendo. Sempre muito
calmo, inexistia nele a atitude de levar as coisas até o fim,
custe o que custar. O mesmo acontecia em relação ao
romance. Seu texto não era ruim, suas histórias eram
interessantes, mas faltava-lhe a ousadia de querer
impressionar o leitor.20

A corrida, como a escrita que aqui se faz, como o Exercício de


compreensão da ação
processo criativo de Murakami, é uma realização, uma corporal para o
descoberta, um esforço em fazer melhor e uma vontade de desenvolvimento amplo e
profundo do corpo:
solidão. A solidão é indispensável na escrita. A corrida, como Prepare-se para dar um
pulo com um pé alto, no
o processo criativo, exige treinamento e disciplina, ar. Parta desse pé, por
disposição. Impor-se metas, superá-las. A corrida, como a meio de uma pequena
corrida, e caia sobre
escrita, por basear-se na disciplina repetida diariamente, pede ambos os pés, baixo. Use
uma unidade de tempo
medidas sutis de distração. Murakami para de correr e para cada passo corrido
escrever num momento em que poderia correr e escrever e duas para o pulo e a
elevação no ar.
  36  

ainda mais, tomado por uma sensação de exaltação, para


retomar no dia seguinte com o mesmo vigor.

Para escrever um romance, tenho de exigir muito de mim,


fisicamente, e despender um bocado de tempo e esforço.
Toda vez que começo um romance novo, sou obrigado a
escavar um novo buraco profundo. Mas como tenho mantido
esse estilo de vida por muitos anos, tornei-me bastante
eficiente, tanto técnica como fisicamente, em abrir um
buraco na rocha dura e localizar um novo veio d’água.21

Quando escreve, prefere a língua japonesa. O japonês é


para a mesa, sentado, sozinho. Para escrever, é preciso se
apropriar das palavras e de seu contexto. Aprofundar-se em
cada sentença até que pareça concreta. Murakami acredita
que escrever romances é uma forma de vida pouco saudável.
Há uma espécie de toxina que orienta o escritor. Ele a
reconhece e precisa encarar o perigo, pois é desse embate que
emerge a narrativa. Criar imunidade para a toxina significa
criar narrativas mais poderosas e estar apto a lidar com
toxinas mais perigosas. É uma dinâmica ininterrupta. Para
fazê-lo, portanto, e para ter uma longa carreira como escritor,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Murakami exercita o corpo todo na corrida. A energia que


adquire no treinamento físico serve para conviver com a
toxina do processo criativo.
O clube de jazz mantinha seu corpo ativo e funcional
no período noturno, além de disponível a uma vida bastante
social. Quando decidiu ser apenas romancista, Murakami se
encerrou numa mesa de escritório, trabalhando durante o dia
e fumando 60 cigarros. Também ganhou alguns quilos. Aos
33 anos, parou de fumar, mudou a alimentação, começou a
dormir e acordar cedo, reduziu os eventos sociais. Para
Murakami, foi a idade em que virou um corredor e que se
transformou num romancista.

Dia 7 – Tentei acordar cedo para correr e só saí de No século XVII, os


casa depois de muita recusa, negação e redenção. Por isso, corredores eram os
empregados dos nobres
cheguei no aterro às 11h. Já está quente. É o último dia de que resolviam os
inverno. Meu corpo não funciona de manhã. Devo ter me problemas fora da casa
e, inclusive, precediam a
arrastado durante o primeiro 1,5 km. Às vezes, gosto de carruagem do patrão.
Eles eram magros,
programar o celular tocando músicas aleatórias para me asmáticos e

surpreender. Hoje, o ponto alto da corrida foi quando tocou desenvolviam hérnias,
porque o excesso
Lisztomania, do Phoenix. Eu dancei e corri. Claro, dancei atrapalhava o suor,
desequilibrava os
pequeno, limitada pelas passadas rápidas das minhas humores, causava

pernas. Estou sentindo mais dores no corpo por causa do problemas nos órgãos.

treinamento. Durante a corrida, fico bem, dói apenas a


lateral esquerda da lombar, mas essa já é conhecida e não
me importo. Me preocupa as dores nos joelhos no final do
dia e no próximo. Corri 6 km em 42 min e 22 seg. Preciso
melhorar o meu tempo.
  37  

Quando entra num ritmo puxado de treinamento para


alguma maratona, Murakami corre seis dias por semana. Na
época que escrevia Do que eu falo quando eu falo de corrida,
o escritor se preparava para a Maratona de Nova York. Ele
corria em média 300 km por semana. Os músculos precisam
de treinamento quase diário. Mais de dois dias sem se
exercitarem e eles regridem. O corpo não volta à estaca zero,
mas fica mais próximo do preparo inicial do que do atual.
Com o tempo, os músculos adquirem uma memória só
possível através da repetição. O corpo entende com a prática.
Para mostrar que os músculos podem aguentar mais, é
preciso diariamente forçá-los um pouco mais. Por outro lado,
eles relaxam muito rápido. Uma memória antiga de No século XVI, os
treinamento não se perde completamente. Um corpo músculos e a agilidade
do corpo não eram
acostumado com exercícios físicos pode retomá-los após citados nas literaturas
muito tempo parado com certa facilidade. Já a memória que envolviam exercícios
físicos. Não se entendia
muscular, aquela exigência investida no dia a dia para que a o porte físico como um
trabalho muscular. Não
musculatura realize um pouco mais, terá que ser adquirida havia o interesse na
novamente. rapidez da execução, na
velocidade. O mais
Em qualquer treinamento, é visível a mudança do próximo dessa imagem
eram comentários como
corpo. O treinamento faz a estrutura corporal se alterar. Na o de Montaigne que dizia
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

corrida, além dos músculos tornarem-se mais perceptíveis, que seu pai se exercitava
com “palmilhas
interna e externamente – como se, de repente, eles chumbadas” para ter
mais leveza ao correr e
começassem a existir – a aparência do corpo muda. Não saltar.

apenas os músculos saltam, o corpo perde líquido, perde


gordura.

Dia 8 – Fui correr na Praça Paris. Era uma terça-feira


à noite. Isto é o bom da Praça Paris, correr à noite. Muitas
pessoas dizem e preferem correr de manhã, porque o corpo
está descansado e a atividade física o mantém ativo durante
o dia, mas eu discordo no meu corpo. Para mim, o melhor
horário para correr é no fim de tarde, início da noite. É o
horário que tenho mais energia e que meu corpo já está
ativo. Não preciso de muito tempo para entrar no clima,
corpo preparado, sabendo o que vai acontecer. O lado ruim
da praça é que a pista mais extensa tem pouco mais de 1 km.
Logo, quanto maior a distância, mais voltas na pista. E a
repetição espacial é entediante. Corri 6 km e 510 m em 43
min e 06 seg. Melhorei o tempo e aumentei a velocidade.

Do que eu falo quando eu falo de corrida é sobre a


corrida e a escrita, sobre treinamento. A experiência da
corrida e da escrita, por se darem no corpo, lidam com
sensações, os fluxos, os espasmos, os buracos existentes entre
órgãos e ossos do corpo. A corrida e a escrita não serão
incorporados por outros corpos da mesma maneira. São
experiências individuais. As sensações do corpo transpostas
  38  

para a língua são traduções. E as traduções expostas ao outro


ganham novos sentidos. Porque se deparam com outras
traduções. Porque tornam-se experiências de outro nível –
absorvidas por outros sentidos – no corpo do outro. Os
métodos de Murakami, a demanda de seu corpo, as suas
estratégias fizeram com que a corrida e a escrita fossem
indissociáveis. Relação produtora. Para ele, o processo de
escrita tem um envolvimento direto com o corpo. O que
aprendeu sobre escrever ficção, ele aprendeu correndo.

O mundo não é tão simples assim. Para dizer a verdade, eu


nem acho que exista grande correlação entre o hábito de
correr todo dia e essa coisa de ter ou não força de vontade.
Creio que fui capaz de correr durante mais de vinte anos por
um motivo simples: isso me cai bem.22

Murakami não recomenda a corrida. As experiências


são individuais. A corrida se descobre correndo. E a corrida
não é para todos os corpos. Escrever um romance também
não. Certamente, escolhas, métodos, aparelhos e/ou objetos
utilizados em ambos os processos não definem o êxito.
Quando perguntado sobre todos os aparelhos que os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

corredores europeus utilizam para treinar, como pernoitar em


uma cama de hipoxia a 3.000 m de altitude, o maratonista
Samuel Wanjiru, queniano, disse:

No sé nada. En invierno resido en Fukuoka y el resto del año


estoy en Kenia. Duermo en una cama normalita y no
conozco con exactitud el pulso que tengo ni en reposo ni al
máximo esfuerzo. Cuando entreno en Kenia parece como si
el corazón se saliese de su lugar, pero no tengo una idea
acerca de cuántos latidos da.23

Para saber que se corre, que o corpo aguenta, não é A ultramaratona pode
preciso dados numéricos e aparelhos. Não é preciso saber ser definida pela
quilometragem ou pelo
quantas batidas o coração dá por minuto para conhecer seus tempo de duração. Deve
limites. Saber é bom, principalmente para corredores. A ter, no mínimo, 100 km
ou 24 horas de corrida,
pulsação do coração também pode ser, em alguma medida, sendo o vencedor aquele
que fizer a maior
controlada pela respiração. E, para um corredor, controlar as distância nesse intervalo.
demandas do corpo faz parte do processo de treinamento. Na Amazônia, a
ultramaratona possui 127
Mas aparelhos não são essenciais. É necessário conhecer o km.

próprio corpo. A respiração e as pulsações do coração, o


pensamento e os desejos, perpassam todo o corpo.

Dia 9 – Voltei a correr na praia de Copacabana. Eram


seis e meia. Corri do Leme a Ipanema, são 4 km. Depois
retornei a Copacabana, completando 6 km e 700 m. Fiz em
42 min e 18 seg e o meu quilômetro mais rápido durou 06
min e 11 seg. Murakami consegue correr 1 km entre 04 min e
30 seg e 05 min e 30 seg. Consegui diminuir o tempo anterior
  39  

e correr mais. Além disso, segundo o meu aplicativo, foi o


trecho com a maior elevação, 182 m. Não fiquei muito
cansada e não tive vontade de desistir.

Murakami conta, em seu livro, que perguntou ao


corredor olímpico, Toshihiko Seko, se havia dias que ele não
tinha vontade de correr, o qual respondeu com “uma voz que
deixava cristalinamente claro como achava a pergunta
estúpida”24, o tempo todo. Impor-se uma rotina diária de
treinamento e de escrita faz brigar com as vontades do corpo.
Vontade de descansar um pouco mais, de alterar a rotina.
Mesmo o treinamento da escrita, o método e a disciplina
estipulados, a informação que se quer transmitir, precisa ser
assimilado pelo corpo. Durante o processo de escrita, usa-se
toda a energia do corpo. A concentração, a escolha de
palavras, a construção da narrativa – um encandeamento de
ideias complexas – todos os dias, durante um logo período,
implicam o envolvimento do corpo todo. O escritor “pensa
com todo o seu ser.”25
Na Europa do século
Compreender o corpo faz compreender o processo de XVIII, o surgimento das
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

corridas apontavam o
escrita. “Ser ativo todos os dias torna mais fácil escutar essa interesse na velocidade,
voz interior.”26 Os músculos de Murakami demoram para se na relação entre
distância e tempo
aquecer, mas depois que se aquecem podem ser exigidos sem percorrido, mas os
nobres as faziam a
demonstrar fadiga por um longo percurso. Seu corpo é mais cavalo. Ninguém
dado a corridas de longa distância. O treinamento o ensinou a simplesmente corria,
nessa época, como
manter respiração e pulso controlados. exercício físico.

Quando você vê gente correndo na cidade, é fácil distinguir


os iniciantes dos veteranos. Os que estão arfando são
iniciantes; os que respiram de forma compassada e tranquila
são veteranos. Seus corações, perdidos em pensamentos,
contam o tempo vagarosamente. Quando passamos uns pelos
outros na pista, escutamos o ritmo da respiração de cada um,
e sentimos o modo como a outra pessoa registra cada
momento que se vai.27

Murakami sabe que não seria um bom corredor de curta


distância. Seu corpo não entraria na condição da corrida a
tempo. Para ele, a forma como os músculos trabalham é
também a forma como sua mente trabalha. Corpo e mente
influenciam um ao outro. Há sempre uma possibilidade de
adaptação, mas a essência é inalterável.

Dia 10 – Aterro de manhã. Essa foi a última vez. Pelo


menos, consegui chegar mais cedo e sofrer um pouco menos
com o calor. Fiz o sentido contrário hoje. Comecei pela
direita na direção de Botafogo. Passei por baixo do viaduto e
corri até a rotatória, onde zera a quilometragem. Não entrei
em Botafogo. Corri 7 km e 110 m em 47 min e 40 seg. Para
  40  

completar o tempo, tive que correr até a Marina da Glória e


voltar, ultrapassar o quilômetro 800, que fica quase na
passagem que utilizo quando entro e saio do aterro, e correr
quase até o final da praia e voltar. A ideia era correr apenas
7 km, mas como não tinha chegado à marca de quilômetro
feita no chão, acabei estendendo um pouco mais até ela.
Meus joelhos começaram a doer quando chegava ao final.
Tive que diminuir o ritmo para conseguir terminar.

A corrida e a escrita, enquanto processos, não precisam


ser entendidos mentalmente e analisados para que ocorram,
para que se realizem em sua completude. Elas passam pelo
corpo, é o corpo que as entende. E o corpo é o suporte da
invenção. Discorrer sobre o processo de escrita é praticar.

Cada execução é única, tão interessante para compositores e


executantes quanto para o público. Por isso, todos se tornam
ouvintes. Eu expliquei tudo isso ao público antes de começar
o programa musical. Destaquei o fato de a gente estar
acostumada a pensar em uma peça de música como um
objeto apto a ser entendido e subsequentemente avaliado,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

mas que aí a situação era bem outra. Estas peças, eu disse,


não são objetos, mas processos, essencialmente sem
propósito. Naturalmente, então, tive de explicar o propósito.
Eu disse que os sons eram somente sons, e que se eles não
fossem somente sons nós faríamos (eu estava usando,
naturalmente, o nós editorial), nós faríamos tudo para tomar
uma providência na próxima composição.28

Os sons, na corrida, são um estímulo. Na corrida e na


escrita, os estímulos são vitais. O processo de treinar não tem
o efêmero de Cage. Trata-se de repetição. O processo não
tem variação, quem varia é o corpo. Optar pelo treinamento é
escolher a repetição. É se transformar, se distorcer, para
tornar o processo parte do corpo. O processo não muda.
Paciência é importante. Repita. É também possível expandir
os próprios limites assim.
Do que eu falo quando eu falo de corrida é um relato
centrado no ato de correr. Murakami se prepara para uma Nas maratonas mais
importantes do mundo, o
maratona e, relendo os seus diários de corrida, revê o seu Quênia é o país com os
treinamento, as suas participações anteriores. Revê os seus melhores maratonistas.
Em segundo lugar, está
fracassos, as ausências que o corpo envelhecido terá que Etiópia e, em terceiro, o
Japão.
contornar, as maiores loucuras correndo, como atravessar os
40 e poucos quilômetros entre Atenas e Maratona, em 1983,
para um artigo de revista, sem nunca ter passado de 36 km
corridos. Na corrida, cada quilômetro faz uma grande
diferença. O livro é um exercício de escrita que contribui
para a corrida, pois é preciso terminar a Maratona de Nova
York com um tempo melhor.
  41  

Para isso, Murakami corria todos os dias. Para um


corpo suscetível, o treinamento ajuda a melhorar o
metabolismo, impede o enfraquecimento de músculos e
ossos. Treinar implica aperfeiçoamento, progressão,
aprimoramento da performance corporal. Performance –
colocar o corpo no limite, expandi-lo. Uma experiência física
e espacial. A performance coloca o corpo em contato com
outros corpos.

A tarefa mais importante aqui era deixar que meu corpo


soubesse sem a menor sombra de dúvida que correr tão forte
é apenas parte da trajetória. Quando digo deixar que meu
corpo soubesse sem a menor sombra de dúvida, estou
falando figurativamente, claro. Por mais que você comande
seu corpo para obter um desempenho não conte com ele para
obedecer imediatamente. O corpo é um sistema
extremamente prático. Você precisa deixá-lo experimentar a
dor intermitente por algum tempo, e então ele vai entender
onde você quer chegar. Como resultado, ele aceitará (ou
não) de bom grado a quantidade maior de exercício que é
obrigado a fazer.29
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

O corpo apreende o meio em que está inserido. É na


prática – no movimento – que ele conhece. E produz gestos.
Os gestos de um corpo são intransponíveis, singuralizam-no.
A escrita é gesto. A escrita é uma forma de corpo a corpo
com o mundo. O mundo e o texto são da ordem do sensível,
precisam ser vivenciados. A escrita se faz no corpo. E é o
corpo que a recebe e a recria, recontextualiza, reescreve,
transforma.

Nas pesquisas de sociólogos, nos trabalhos A experiência do


corpo a corpo é física
etnográficos, o envolvimento do corpo, se antes era menos e mental.

considerado no estudo, tornou-se cada vez mais evidente.  


Não era mais possível apagar sua marca. Havia o embate dos
corpos, e o embate se dá tanto na ocupação física de um
espaço quanto na exposição de ideias e costumes, de
vontades e crenças. O corpo reivindicou atenção. No embate,
há interação e uma linguagem feita com o olhar e com os
gestos. Copresença. O corpo é índice. Mesmo depois de
reposicionar o corpo no contexto, de voltar os olhos para ele
e de inseri-lo como presença definidora na relação que se
estabelece, em alguma medida, etnólogos e sociólogos
continuam a tomar a palavra, tornam-se protagonistas não por
vivenciar o acontecimento, mas por mediar e modelar o
relato. Um corpo outro é escrito.
  42  

Mais do que “ver”, o certo seria dizer que ele a “examinava


minuciosamente”. O homem parecia observar todas as partes
de seu corpo, de cima a baixo. Era como se, em questão de
segundos, ele conseguisse arrancar tudo, deixando-a
completamente nua. Um olhar que perscrutava para além da
pele, adentrando músculos, órgão e, inclusive, o útero. “Este
homem consegue enxergar no escuro”, pensou Aomame.
“Ele consegue enxergar além do que os olhos podem ver.”30

Em muitos esportes, o corpo a corpo é literal e faz parte


Vanderlei Cordeiro de
do jogo, apesar de muitas vezes ser considerado uma falta, Lima chegou a ter uma

uma falha, uma provocação. Nas corridas de rua e nas vantagem de 42 seg
para o segundo lugar
competições de natação em águas abertas, o corpo a corpo é Stephano Baldini, da
Itália, na Maratona
consequência. Muitos corpos ocupando o mesmo espaço. O das Olimpíadas de

embate é inevitável. Há o embate propositado e inesperado, Atenas em 2004,


quando foi empurrado
como o que ocorreu com o corredor brasileiro durante a por um padre irlandês.
Ele ficou com o
maratona. Já no futebol americano e no boxe, os violentos bronze. Seu tempo, 2h
12 min e 11 seg.
choques fazem parte das regras. É preciso atacar e bloquear.
Copresença.  
O corpo a corpo do sexo usa todos os sentidos. Inventa
sentidos. O sexo é realização das partes que buscam o seu
outro perdido na antiguidade da separação dos corpos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Quando o homem liberou os braços e caminhou de pé,


inventou o amor e a linguagem, inventou o beijo e a fala. É
justo te dar um beijo na boca à margem da testa, da fala e da
escrita, uma represa, uma festa? Corpos contorcidos e
flexíveis, retorcidos. Corpos de muitos nomes. Copresença.
Linda Montano e Tehching Hsieh passaram um ano
presos por uma corda de mais ou menos 2 metros, entre
1983/1984. Faziam tudo juntos, menos sexo.
Compartilhavam o mesmo espaço, mas não as ideias. Para
ela, a performance possibilitava que os sentimentos, questões
pessoais, tivessem outra repercussão, ambientassem outra
esfera. Estar amarrada a ele fazia com que sua mente
prestasse atenção àquilo que antes era inexistente, ao
momento presente, à presença do outro. Não prestar atenção
ao outro causaria acidentes. Para ele, a performance era sobre
indivíduos, independente do gênero. Não era sobre questões
pessoais, era sobre todas as pessoas. O sexo não fazia sentido,
pois eles não estavam atados como casal, eles estavam
propondo outra tipo de experiência.
A performance já não mais como linguagem artística
independente definida pelos ideais de sofisticação, de
simbolização, de criação de conceitos rígidos. O artista não
como um captador do mundo e o espectador não como
receptor. Performance como ato de presença no mundo, como
um momento em que afetos e perceptos são recebidos, como
emergência, pois que não se desfaz no acontecimento, não se
finaliza. “Cada performance nova coloca tudo em causa. A
forma se percebe em performance, mas a cada performance
ela se transmuda.”31
  43  

Após um tempo de convívio, a comunicação entre eles No século XVII, os


jogos existentes
passou a ser por sons guturais, muitas vezes num volume tinham a função de
quase imperceptível para aqueles de fora. Era a forma de externar paixões
locais, apaziguando
avisar o outro que eles precisavam se mexer. Primeiro, eles se conflitos, como entre
celibatários e casados,
comunicavam por diálogos e puxando a corda. Depois por entre pessoas
gestos. No final, só alguns sons. Os diálogos entre si envolvidas em
empasses de terras.
diminuíram até que eles conversassem apenas por volta de Era uma maneira de
mobilizar tensões
uma hora por dia. Eles não mais precisavam de palavras para sexuais. Os jogos ,

se entenderem em relação às questões diárias. Mas conversar nessa época, estão


relacionados ao
não era uma proibição. Copresença. Da performance impulso, ao desejo, ao
apetite, à carne. Não
restaram, mais ou menos, 700 horas gravadas em fitas dizem sobre

cassetes de 90 minutos e uma fotografia de cada dia do ano. treinamento ou


preparo físico.
O outro tornou-se um espelho.
Marina Abramovic e Ulay, ao contrário, faziam suas
performances como um casal. Lidavam com os limites e
excessos da relação, do outro, do sexo. Na década de 1980,
fizeram a performance Nightsea crossing, em que sentavam
um de frente para o outro e se olhavam durante 7 horas. Não
comiam, não bebiam. Os movimentos eram limitados.
Copresença. Estar presente para o outro até que a presença
perdesse as suas hastes definidoras. Necessidade de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

concentração e controle do corpo. Em abril de 1984, eles


fizeram uma única alteração no formato, intitulada Nightsea
crossing conjuction. No Foam Museum, em Amsterdam, eles
se sentaram numa mesa circular com o Lama do Tibet e um
membro da tribo Pintubi da Austrália. A performance mudou
o seu sentido. Durante 4 horas de 4 dias, eles se sentaram à
mesa no nascer, ao meio dia, no pôr do sol e à meia noite
para se olharem. Cada posição de corpo delineava um ponto
cardeal. Para eles, a performance alcançou a integração com
uma estrutura cósmica maior.

O treinamento é intrínseco ao esporte. É capacidade de O esporte propõe


formas corporais
concentrar-se no inesperado, de afastar qualquer distração. breves e
intempestivas.
“Perder-se na intensidade da concentração”32. O esporte é um
 
tipo de experiência estética, que faz ver e apreciar o que seria
banal, e até grotesco, que faz lidar com limites. O esporte não
é obra de arte, mas é força transformadora, envolve corpos
que se apresentam no espaço propondo formas belas – não
relacionadas à perfeição geométrica, mas no que possuem de
singular e inesperado –, que desaparecem tão inusitadamente
quanto sua aparição. Uma espécie de epifania.
Presença no espaço. Possibilidade de um quase tocar,
de vivenciar percepções sensoriais imediatas. Distanciamento
da metafísica. Sentir-se parte do mundo físico, próximo aos
objetos que o habitam. Tornar todo início uma espécie de
acontecimento, porque não é a ausência de novidade, não é a
repetição de um ato que encerra, que limita a percepção.
  44  

O treinamento dedicado não define o desempenho do


corpo no esporte. Por isso, além de expor formas corporais e
de transpor as limitações críveis do corpo, o inesperado
fascina. Um som principia o momento desconhecido A Maratona de Berlim
é a trajetória ideal
programado, em que há uma expectativa, há um preparo e para homens rápidos.
disposição, mas qualquer coisa de incomum pode acontecer. É o local onde eles
podem se superar. O
E o incomum, nesse caso, é o ordinário. Principalmente nas recorde de velocidade
não para de cair. Em
participações solitárias – natação, corrida, alpinismo, salto 2014, foi 2h 02 min 57
em distância, ginástica de aparelho –, há apenas um corpo seg.  
concentrado que se movimenta num tempo temporariamente
suspenso. “Alguma coisa acontece aos corpos nos grandes
momentos do esporte, algo para o qual os corpos não foram
feitos.”33

Tamaki era baixa, mas tinha reflexos desenvolvidos e sabia


usar a inteligência. Conseguia captar rapidamente múltiplas
circunstâncias. Na hora de lançar a bola, sabia exatamente
como devia inclinar o corpo e, após avaliar rapidamente a
direção da bola rebatida, saía correndo para uma cobertura
correta. Era muito difícil encontrar uma jogadora de base
capaz de fazer isso.34
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

A performance dos corpos em treinamento modifica-se


com as demandas culturais, sociais, com a mudança na visão
do corpo. Há dois séculos, a criação de estádios e de salões
de esportes fizeram mudar a atenção dada à performance
corporal. Banhos de rios e os exercícios nos antigos ginásios
são substituídos pela intensificação dos esportes e pela
obrigação das ginásticas nas escolas. A performance está
ligada à robustez. Depois, a performance deve superar
limites. É a vez dos excessos. Há o treinamento dos esportes
para as competições, que buscam a superação, e há a prática
de esportes que levam ao bem-estar, ao relaxamento do corpo
daqueles movimentos repetitivos e incorretos do cotidiano.
Uma contradição se instala na performance corporal, o risco
do treinamento excessivo e a tranquilidade do exercício
físico. O desempenho dos corpos no esporte quer o inédito,
superar recordes, desafiar a gravidade, realizar movimentos
próximos da perfeição. A performance do corpo que pratica
esporte, agora, quer mostrar-se. A busca e o excesso podem
levar à transgressão. As regras tentam impedi-la.
Durante dois meses e meio, de 14 de Março a 31 de
Maio de 2010, Marina Abramovic sentou-se numa cadeira,
no MoMa, na retrospectiva de sua obra, The artist is present,
Ronaldo da Costa
e encarou desconhecidos em silêncio. Foram sete horas por disputou a maratona
dia, seis dias da semana. 700 horas. Performance é estar de Berlim em 1998. A
melhor marca da
presente, comunicar com o corpo. O corpo como meio, não distância estava
estagnada há 10 anos.
mediado. Há muitos modos possíveis de performance. A No meio da corrida,

performance como qualquer movimento do corpo inserido na soube que poderia


bater um novo
dimensão da presença. A performance como qualquer recorde. Seu tempo,
2h 06 min 50 seg.
situação em que o corpo se arrisca.  
  45  

Isabelle Launay enrolou-se num longo tecido branco,


torcido na cabeça e nos pés, como um casulo. Deitada em
pilhas de toalhas brancas, deixou seu corpo ser manipulado
por outra pessoa. O tecido ao redor de si impedia movimentos
voluntários, impedia preconceber movimentos, impedia
reações aos movimentos impostos por outro corpo. Restava
apenas a queda, a força da gravidade reagindo sobre seu
corpo. Dançar no escuro. Corpo sensível às intervenções
externas, atento e entregue.

Diversificação dos gestos, diversificação dos corpos. Espaço feito de


sulcos, sem
Os diferentes métodos de treinamento baseados em diferentes fronteiras.

compreensões do corpo dão lugar a novos gestos, novas  


formas corporais. A atenção à percepção dos sentidos, não
apenas cuidado técnico e enrijecimento muscular. O corpo
deve perceber o meio, relacionar-se com ele. Mais, o corpo
deve aproveitar-se daquilo que antes era considerado falha,
deficiência. Os esqueitistas relacionam o gingado do corpo a
uma sensação de tontura, vertigem. O drible de pausas
inesperadas de Garrincha, os movimentos leves, velozes e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

certeiros de Nadia Comaneci nas barras da ginástica, dois


tipos de corpos, dois tipos de esporte, são inovações.
Na década de 1970, o número de praticantes de esporte,
profissional e amador, é massivo. Não há mais um único
modelo de corpo saudável, adequado. Há diferentes
possibilidades de corpos para diferentes possibilidades de
esporte. A circulação de informação, somada ao avanço
tecnológico dos materiais para a produção de equipamentos,
influenciou também as práticas esportivas. Diversificação de
espaços. Não apenas uma ampliação dos espaços tradicionais,
mas a ocupação de espaços coletivos não convencionais. A
contracultura no esporte.

Os “surfistas do Atlântico” interrogados por Jean-Pierre


Augustin, por exemplo, declaram “uma singularidade de
estilo de vida e um sentimento de diferença”, que os afasta
da rede esportiva tradicional; os esquiadores do freeride, um
esqui radical, ávido de “extrapista” e de vertical, designam
também a sua prática como “um modo de vida, um
fenômeno de sociedade” que se mostra mais sensível à
natureza que às competições organizadas; ou ainda
corredores de estrada que não cessam de lutar por corridas
que escapam às estruturas federais, privilegiando a aventura
coletiva, um imenso happening onde cada um buscaria uma
performance pessoal e não tanto um desafio lançado aos
melhores. Enquanto as associações de esqueitistas
multiplicam as iniciativas urbanas para um pouco mais de
“liberdade de movimento”.35
  46  

A relação do corpo com o meio que o circunda. Novos


esportes radicais que utilizam os espaços coletivos das Samuel Wanjiru
cidades, em que a arquitetura transforma-se em obstáculo venceu a Maratona
das Olimpíadas de
para a manobra. Skate, bicicleta e patins adaptados para Pequim, em 2008, aos

manobras no concreto. No final da década de 1970, nos EUA, 21 anos. Seu tempo,
2h 06 min 32 seg.
um novo território da performance surge em East Village. O Fazia 24 anos que o
recorde da Maratona
movimento punk e a contracultura questionaram os limites da Olímpica estava

arte e, consequentemente, agiram na dissolução das barreiras paralisado no tempo


de 2h 09 min 21 seg,
entre o pop, o marginal e a arte estabelecida. Os artistas feito pelo português,
Carlos Lopes, em Los
ocuparam prédios velhos e baratos, criando galerias e casas Angeles.

noturnas precárias, de chãos sujos e irregulares, que se


dispunham às mais diversas experimentações artísticas. A
área concentrou o mercado de arte do período.

Tengo lavou o arroz e ligou a panela elétrica. Enquanto o


arroz cozinhava, preparou uma sopa de missô com alga
desidratada e cebolinha, assou uma cavala defumada e tirou
um pedaço de queijo de soja da geladeira, temperando-o
com gengibre. Ralou o nabo e requentou numa panela uma
porção de legumes previamente cozidos. Como
acompanhamento, pegou uma porção de nabo e ameixa
azeda, ambos em conserva. A cozinha parecia ainda menor
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

quando Tengo começou a se movimentar de um lado para


outro com o seu corpo grande, mas isso não o incomodava.
Já estava acostumado a viver com as coisas que tinha.36

A body art faz do corpo um suporte artístico uma vez


que a proposta é desfetichizar o corpo para transformá-lo
novamente em instrumento. O treinamento, em 1906,
baseava-se nas medidas e cálculos. Aparência, volume e
contorno do corpo eram os atributos planejados pelo
bodybuilding. A body art questiona por meio do corpo. A
obra se faz no momento em que se apresenta. O bodybuilding
visa a pose. Elas eram baseadas nas estátuas gregas. Os
culturistas fazem dos gestos mais usuais, como cruzar os
braços, uma forma de mostrar os músculos dos braços e
peitorais contraídos. A body art segue diferentes linhas, pode
provocar ou ser lúdica, pode ser cruel ou terna, pode ser
perigosa ou amena, pode esgotar e instigar. O bodybuilding
sofre inúmeras alterações na passagem do tempo, tanto da
forma corporal ideal quantos das motivações para a mesma.
As silhuetas se alteram, o contorno dos músculos torna-se
cada vez mais evidente. A regeneração e o treinamento
militar são trocados pelo exibicionismo, pela possibilidade de
transformação da própria anatomia. A body art interrogou a
identidade sexual, a relação homem-mulher, a condição
homossexual e feminina, enfocou a diferença corporal. O
bodybuilding, ao mesmo tempo que servia para eliminar o
efeminamento, era usado como forma de tornar viril o corpo
homossexual. Noções de corpo ampliadas. Não mais o corpo
ausente da obra, não mais o corpo restrito da saúde. O corpo
  47  

pode ser a obra em si. O corpo pode tomar uma forma outra
desejada.
Entre 1974 e 1985, a cubana Ana Mendieta realizou
performances em que o corpo era o instrumento da prática
artística. Seu trabalho ficava entre a arte conceitual, a
performance, a mixed media e a land art. Suas performances
eram filmadas e fotografadas para que ela pudesse se afastar
e olhar sob outra perspectiva. Essas imagens compõem suas
exposições. O núcleo de seu trabalho era as Siluetas
(Silhouettes) (1973-1981) gravadas em diferentes superfícies
naturais. Era sua busca por seu lugar, por seu contexto na
natureza. Em seu primeiro tableau, Untitled (Rape Scene),
ela recriou a cena de um estupro em seu apartamento e
projetou diferentes imagens na parede, como forma de
chamar a atenção à violência contra o corpo feminino,
apresentar um sentido de desapego e deslocamento, além de
retomar um processo ritualístico das culturas antigas. Em
seus Rastros corporales (Body Tracks) (1982), Mendieta
mergulhou seus braços em sangue e, esticados acima de sua
cabeça, pressionou-os contra a parede. Com seu corpo
gradualmente se afundando rumo ao chão, ela produz um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

rastro de sangue que a persegue. O sangue não é considerado


uma força negativa. O sangue tem traços de magia e poder,
aponta para os ritos sacrificiais, de iniciação e exorcismo.

Há uma convergência entre espectador e autor. Ambos Espectador e autor


são fazedores de
investem emoção no evento. Para além de ganhar ou perder, mundo.

no caso do esporte, cada movimento ocorrido é uma forma de  


intensidade vivenciada. Ambos se disponibilizam para uma
ação inesperada, para o que não se tem controle. Liberam-se
de uma preconcepção. O esporte e a performance são
experiências coletivas. Não são experiências comuns.
Envolvem corpos. E corpos são facilitadores.

No trem, tenho ideias: circulam a meu redor, e os corpos que


passam agem como facilitadores. No avião, é exatamente o
contrário: estou imóvel, socado, cego; meu corpo, e portanto
meu intelecto, estão mortos: só tenho à minha disposição a
passagem do corpo envernizado e ausente da aeromoça,
circulando como uma mãe indiferente entre os berços de
uma creche.37

O espectador, no esporte, prepara-se para ver acontecer


um evento que realça os limites do desempenho humano.
Momento que se revela no instante em que começa a
desaparecer. Uma experiência coletiva. A competição
esportiva transfigura os corpos, faz com que eles adquiram
qualidades até então imperceptíveis. As regras dos esportes
os distanciam da vida comum. A vitória, mas também o
drama da competição, elucida o atleta. A ação inimaginável
  48  

marca o espectador no momento em que ocorre e em sua


memória, como vislumbre, como uma distância real, mas
inalcançável. O drama transforma uma competição em
narrativa. Os espectadores se reúnem com um objetivo único.
Estar imersos no universo da presença. O grito uníssono
marca a semelhança passageira, disponível apenas no
momento do jogo, a transformação num corpo único.
Celebra-se a superação de limites, o alcance de um
impossível e, até mesmo, as realizações aleatórias.
Na Grécia antiga, o espectador era uma testemunha das
habilidades extraordinárias da performance humana. Nos O vencedor do primeiro
evento esportivo dos
jogos olímpicos, os atletas atuavam nus e há indícios de que jogos olímpicos gregos
dava nome à olimpíada.
passavam um produto na pele para que seus corpos Os atletas eram heróis, e
brilhassem. Um corpo potente e habilidoso era sinal de o significado de herói,
antes, era semideus.
superioridade. Só havia um primeiro lugar em cada evento
esportivo. O vencedor enaltecia sua família e sua cidade.
Estar no Olimpo era estar próximo dos deuses, pois os deuses
gregos habitavam lugares específicos.
O espectador, hoje, não é testemunha, não é aprendiz.
Não precisa compartilhar um sentimento ou compreender em
seu corpo o que o evento pretendeu apontar. O espectador é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

emancipado. “Olhar é também uma ação que confirma ou


transforma essa distribuição das posições.” 38 O poder do
espectador não está em se transformar num coletivo durante
um determinado período, em que a interatividade reduz as
diferenças, e sim poder traduzir à sua maneira o que vê, ouve,
capta. Poder fazer relações únicas entre a experiência
compartilhada, as suas experiências vividas, os objetos
presentes no seu mundo.

Alguma coisa trouxera Tengo para perto dela. E esse


acontecimento parecia ter produzido uma grande mudança
em seu físico. Desde que acordara de manhã, sentia um
contínuo atrito perpassando seu corpo. Tengo surgiu diante
dela e partiu, sem que pudessem conversar ou se tocar. Mas,
mesmo nesse curto espaço de tempo, ele alterou muitas
coisas dentro dela. Ele havia revolvido seu corpo e sua
mente, literalmente, como uma colher que mistura o
chocolate numa xícara. Ele havia mexido com todos os seus
órgãos internos, inclusive o útero.39

No esporte e na performance, há uma ação apresentada Dennis Kimetto é o


que “não é a transmissão do saber ou do sopro do artista homem mais rápido do
mundo atualmente.
espectador. É essa terceira coisa de que nenhum deles é Antes de 2008, ele era
agricultor e corria, no
proprietário, cujo sentido nenhum deles possui, que se máximo, 4 km. Na

mantém entre eles, afastando qualquer transmissão fiel, Maratona de Berlim,


em 2014, Kimetto
qualquer identidade entre causa e efeito.” 40 Não significa ultrapassou o tempo
dos dois melhores
dizer que não há uma experiência vivida em coletividade, que corredores do mundo.

una pessoas distintas por um breve período. Significa que a Seu tempo, 2h 02 min
57 seg.
forma como ela é vivenciada é única, não premeditada e não  
transferível. Espectador e autor são um corpo coletivo, pois,
  49  

envolvidos numa mesma ação, jogam com as fronteiras do


seu corpo, da arte, do mundo. A apresentação convoca, no
sentido de que se aproveita das coisas do mundo, paredes,
árvores, jornais, tecnologia, corpos, ritmo, ar. Absorve e
descarta. Pode improvisar.
Na década de 1990, Yoshiko Chuma, introduziu o The
living room/ Waiting room Project. Os bailarinos dançavam
nas salas de algumas casas e na fachada de lojas. Eles
começavam a dançar em velocidades desiguais nos cantos do
cômodo. A proposta era conhecer e modificar o próprio
bairro. Os bailarinos dançavam também em lojas e
lavanderias. Durante dois minutos, os bailarinos dançam em
espaços inusitados, reduzidos, devendo se adaptar a ele. Às
vezes, as pessoas que passavam pela rua não percebiam a
movimentação inusual.
Em 2002, o performer David Leslie promoveu uma luta
de boxe para encerrar a sua carreira. Era o Box Opera 3. A
performance fazia parte do projeto “Impact Addict” que, em
1999, sediou a luta contra o escritor Jonathan Ames, que
havia desafiado David a lutar. Eles treinaram boxe numa
academia antes de se enfrentarem. Leslie nocauteou Ames.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Para encerrar sua carreira cheia de invenções perigosas,


Leslie queria ser nocauteado. Para ele, os impactos eram algo
único. Não se tratava de querer morrer e sim perceber a
sensação vivenciada pelo corpo durante o momento de perigo
iminente.
Lutas de boxe não envolvem apenas a violência de
golpear o adversário até o nocaute, vitória que qualquer
boxeador espera. É também a necessidade de dominar o
reflexo de autoproteção. A violência e a proximidade da
morte fascinam. O boxe marca o corpo, pela cicatriz, pelo
som seco do golpe, deixa evidente o sofrimento. O boxeador
deve aprender a encaixar seu corpo no outro para interromper
os golpes, deve saber contra-atacar, deve ser preciso no
esquivar-se e na parada. Os movimentos do boxe requerem
mais do que força. O golpe deve ser rápido e certeiro, deve
surpreender. O corpo precisa de elasticidade para se No século XVIII, o
movimentar. Elasticidade que vem da técnica, da inteligência treinamento de boxe
compunha-se de dieta,
estratégica, do conhecimento de seu corpo. A graça corporal, sudação e trabalho. Dieta,
quantidade de exercícios,
a execução de movimentos tão precisos – pela agilidade, pelo horas de sono, unidas ao
aproveitamento do esforço que o originou, pela relação das banho, à fricção, às
corridas. Tudo era regulado
partes do corpo – que parecem não demonstrar qualquer para um melhor
desempenho do lutador.
dificuldade, é sempre uma referência a Muhammed Ali.
 
Todas as lutas da Box Opera procederam revivendo os
rituais do ringue. A entrada anunciada dos competidores,
música de filmes clássicos de boxeadores, os shorts de cetim,
luvas de couro, telão, os baldes nos cantos, o MC em black-
tie. Tom Murrin era o mestre de cerimônia. O boxeador
profissional peso-pesado, Gerry Cooney, 6 cm mais alto e
  50  

75 kg mais pesado, enfrentou David Leslie na luta final. Ele


deu uma surra em Leslie, mas não o nocauteou.

                                                                                                               
1
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol.1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 59.
2
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol.2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 47.
3
HOUAISS, A. Grande dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Disponível em: <  http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em: 02 Jan. 2015.
4
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol.2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 278-
279.
5
CORBIN, A., COURTINE, J.J & VIGARELLO, G. História do corpo:
Mutações do olhar. O século XX. Vol. 3. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p.
210.
6
CORBIN, A., COURTINE, J.J & VIGARELLO, G. História do corpo:
Mutações do olhar. O século XX. Vol. 3. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p.
221.
7
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol.1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 192.
8
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol.1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 193.
9
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol.1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 276.
10
ARTAUD, A. Para acabar com o julgamento de Deus. Texto-poesias
de transmissão radiofônica.
11
GENET, J. O ateliê de Giacometti. Sao Paulo: Cosac & Naif, 2003, p.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

43-44.
12
NOLL, J.G. Nado livre. In: A máquina de ser. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006, p. 21.
13
NOLL, J.G. Nado livre. In: A máquina de ser. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006, p. 26.
14
NOLL, J.G. Nado livre. In: A máquina de ser. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006, p. 26.
15
LEIRIS, M. Espelho da tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naif, 2001,
p. 47.
16
SERRES, M. Variaciones sobre el cuerpo. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2011, p. 34.
17
MAUSS, M. As técnicas corporais. In. Sociologia e Antropologia. São
Paulo: EPU, p. 227.
18
MURAKAMI, H. 1Q84.  Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 29.
19
MAUSS, M. As técnicas corporais. In. Sociologia e Antropologia. São
Paulo: EPU, p. 227.
20
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol.1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 279.
21
MURAKAMI, H. Do que eu falo quando eu falo de corrida. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2010, p. 42.
22
MURAKAMI, H. Do que eu falo quando eu falo de corrida. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2010, p. 42.
23
WANJIRU, S. El amo de los 21 km. Entrevista concedida a Martín
Fiz. Disponível em: <http://www.runners.es/noticias/elite/articulo/martin-
fiz-entrevisto-a-samuel-wanjiru.> Acesso em: 15 Jan. 2015.
24
MURAKAMI, H. Do que eu falo quando eu falo de corrida. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2010, p. 44.
25
MURAKAMI, H. Do que eu falo quando eu falo de corrida. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2010, p. 71.
26
MURAKAMI, H. Do que eu falo quando eu falo de corrida. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2010, p. 48.
27
MURAKAMI, H. Do que eu falo quando eu falo de corrida. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2010, p. 75.
28
CAGE, J. De segunda a um ano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014, p.
134.
  51  

                                                                                                                                                                                                                                   
29
MURAKAMI, H. Do que eu falo quando eu falo de corrida. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2010, p. 49.
30
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol.2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 142.
31
ZUMTHOR, P. Performance, recepção e leitura. São Paulo: Cosac &
Naif, 2007, p. 33.
32
GUMBRECHT, H. U. Elogio da beleza estética. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 45.
33
GUMBRECHT, H. U. Elogio da beleza estética. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 128.
34
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol.1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 230.
35
CORBIN, A., COURTINE, J.J. & VIGARELLO, G. História do
corpo: Mutações do olhar. O século XX. Vol. 3. Petrópolis, RJ: Vozes,
2011, p.238-239.
36
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol.2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 194.
37
BARTHES, R. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 159.
38
RACIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2012, p. 17.
39
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol.2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 342.
40
RACIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2012, p. 19.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

 
 
52  
  53  

Gatos de músculos flexíveis

Movimentos são escritas do corpo no ar. Ao se


movimentar, o corpo se comunica e se expressa. A escrita do
corpo no papel é movimento. Das mãos, dos olhos, do
pensamento. A escrita é um tipo de traço, e os traços podem
tomar diferentes formas. O corpo é composto pelos traços
que formam frases, o corpo é composto no e pelo
pensamento. O corpo se movimenta nas palavras presas no
papel.
No corpo, há os movimentos de sombra, pequenos,
aqueles realizados na execução de outros, como combinados
sem serem planejados, muitas vezes, inconscientes e
involuntários, não perceptíveis para o corpo que os faz. Eles
se diferem ou complementam os movimentos da ação com
objetivo. Eles são expressivos. No corpo, há os movimentos
habituais, quase mecanizados, porque feitos durante toda a
vida, porque considerados inalteráveis. No corpo, há a
possibilidade de rever movimentos, de recriá-los.
A circularidade presente no movimento do universo
funciona para o corpo. Movimentos circulares soltam as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

articulações, abrem espaços entre órgãos e músculos, fazem


esses espaços respirarem. A circularidade faz deslocar
quando feita em espiral. A musculatura faz um desenho
espiralado. Não é linha reta como aparenta externamente. A
parte posterior do corpo nos mantém em pé, nos direciona
para frente, nos faz cair. A parte anterior sustenta. A parte
superior do corpo tende para cima, para uma leveza aérea,
enquanto a inferior tende para baixo, para um vínculo com o
chão. As direções de todos esses lados não buscam uma
organização retilínea. O corpo procura a diagonal espiralada,
que parte do centro para as extremidades, que produz
equilíbrio.
A reta também participa das variações dos movimentos.
Retas podem ser passagens, podem ser direções. É importante
que movimentos retilíneos não sejam travados. A postura do Controle Primordial é
o fator primeiro para
corpo humano é composta por essas direções opostas, que um alto nível de
concordam entre si. A oposição não é desequilíbrio nem desempenho e de
coordenação nas
anulação. Os métodos corporais que visam uma organização ações, adquirido
através de uma
da postura, a solução de problemas físicos (respiratórios, relação entre a

circulatórios, estruturais), no século XX, seguiram linhas, cabeça, o pescoço e o


torso. A aquisição de
pontos iniciais e procedimentos diferentes, mas tinham em um controle
primordial não é uma
comum a percepção de que o corpo deveria ser entendido estrutura definitiva.

como inteiro. Cada parte toca e interfere na outra. O corpo Ele está em constante
mudança, organiza-se
precisava se libertar de uma rigidez adquirida, do domínio de de diferentes
maneiras, pois ocorre
hábitos estabelecidos. Nos movimentos básicos, percebemos em todas as posições
do corpo. Os
uma repetição prejudicial, um comportamento que restringe. flamingos avançam a
Nos movimentos básicos, podemos fazer alterações cabeça e alongam a
coluna para iniciar o
significativas que, depois, serão incorporadas aos voo.

 
  54  

movimentos mais complexos e permitirão novas


experimentações.

Ao mesmo tempo, Aomame não conseguia conter a


curiosidade. A doença do homem que não era comum e, por
isso, seus músculos saudáveis e bem-torneados estavam
danificados; um corpo vigoroso, e uma força de vontade
capaz de resistir a uma dor intensa, que ele dizia ser o
“preço pela graça recebida”, eram coisas que atiçavam sua
curiosidade. Ela queria saber o que poderia fazer por aquele
homem, e como o corpo dele reagiria às suas técnicas. Era
uma curiosidade profissional e, ao mesmo tempo, pessoal.1

Melhorar a postura, para Alexander, Klauss, Laban, não


é apenas alongar o corpo, colocar partes em seus lugares
ilusoriamente fixos. É aprender novos hábitos, é aprender um
melhor uso de si mesmo. A disciplina e o trabalho constante
para modificar os hábitos fazem o corpo agir de outra
maneira, demonstram outros caminhos para um movimento.
Só a insistência fará com que estes tornem-se naturais,
absorvidos, novos hábitos corporais. O treinamento – as
técnicas corporais – engendra um corpo inteligente, que se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

adapta a estímulos, que pode reagir a eles criativamente e


com melhor desempenho. A postura não deve ser fixa. Ela
responde a diferentes emoções, sensações, diferentes
estímulos. O corpo inteligente é flexível e resistente, reage
não para atingir um fim, mas como resultado necessário de
uma máxima tensão exposta.
Reorganizar o corpo, sua postura, não se dá na
apreensão de um alongar-se. O corpo precisa esquecer um
hábito recorrente e malicioso. Na tentativa de alongar uma
parte do corpo, de dar espaços, de ampliar-se, o corpo A liberdade aparente
tensionará outras partes mantendo o hábito recorrente. dos movimentos do
rei era definida por
Aplicar o esforço em outra parte é somente uma aulas de equitação.
compensação. O mau uso do corpo afeta o nosso sentido Eram recomendados
gestos controlados e
cinestésico. Se a cinestesia, essa sensação dos fatores do calculados. O porte
suntuoso, o manejo da
corpo, está presente no momento em que decidimos iniciar lança e o domínio do

um movimento, já que nos sensibiliza para uma sensação de corpo na corrida


combinavam uma
acertude do nosso corpo em relação ao equilíbrio, à imagem militar,
imponente e graciosa
disposição, ao peso, também está presente no uso incorreto que deveria ser

que fazemos dele. Acreditamos reorganizar a postura, mas mostrada ao povo. O


movimento tinha uma
cometemos um novo erro. Uma nova postura passa por vertente psicológica.

alterações sutis, passa, especialmente, pela não resposta. Para  


alongar uma parte é preciso não fazer o movimento.
Pensamos, colocamos a nossa atenção naquele ponto e, ao
invés de ficar em pé, falar, alongar o pescoço, não fazemos
nada ou fazemos um outro gesto. Inibe-se um hábito para
depois dar uma nova instrução. Não basta o desejo de corrigir
a falha, o corpo está acostumado com a repetição. As novas
técnicas ensinaram a não buscar um fim, a concentrar-se nos
meios.

 
  55  

Enquanto ouvia a música, ele digitava o texto diante da tela


do processador. Ouvir diariamente a Sinfonietta de Janáček
nas primeiras horas da manhã era um de seus hábitos
cotidianos. Ela passara a ter um sentido especial para Tengo
desde o colegial, quando precisou, de última hora, tocar
como percussionista de uma banda. Desde então, sempre que
a escutava, se sentia motivado e seguro. Pelo menos, para
ele, era isso o que a música proporcionava.2

Os movimentos são realizados por impulsos internos, Um indivíduo que


aprende a dominar o
estão ligados a um esforço que os origina e marca a espaço fisicamente
interioridade deles. O esforço é visível. Mesmo quando não por meio de seus
movimentos tem
vemos a ação, mas a ouvimos ou a tateamos, podemos atenção. Aquele que
domina a relação
imaginar o esforço envolvido na vibração das cordas vocais, esforço-peso tem
na contração dos músculos. O esforço é composto por tensões intenção. Um
indivíduo que domina
musculares e formas espaciais variadas. Suas características o tempo dos seus
movimentos tem
são individuais. Dependem da forma do corpo, de sua decisão.
constituição. Quando realizam um movimento, os homens se  
distinguem.
Os animais têm um número reduzido de características
de esforço – um número restrito de combinações de esforço
para a realização de um movimento –, mas conseguem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

utilizá-las de modo eficiente. Animais selvagens são mais


precisos nos movimentos, pois convivem com o risco da
morte desde o início da vida. Eles aprendem os movimentos
de caça, defesa, ataque, fuga, quando são filhotes e ainda não
precisam executá-los com a finalidade determinada. Os
animais brincam.
Os movimentos de cada espécie animal variam de
acordo com as características de esforço. A fluência e a
tensão dos músculos na realização de uma mesma ação em
diferentes espécies variam e tornam-nas bastante específicas.
Animais selvagens não realizam os mesmos movimentos de
animais domesticados. O meio ambiente interfere na
qualidade e na execução dos mesmos. Quando domesticados,
os animais mostraram aos homens como lidar e alterar os
hábitos de esforço. Estabeleceu-se um treinamento para o
desenvolvimento da própria movimentação, da qualidade dos
seus hábitos de esforço.
Ao tornar-se ereto, o homem liberou os membros
superiores, especializando e sofisticando os movimentos das
mãos. Também controlou o gasto de energia com
movimentos mais econômicos e precisos. Homens podem se
movimentar como animais. Um homem pode caminhar como
um cavalo, postura ereta, pescoço grosso, enérgico,
comprido. Um homem pode saltar com a leveza e a fluência
livre de um gato. O homem pode conscientizar-se dos
impulsos de ação, pode remodelar os seus movimentos, pode
agir a partir de um estímulo interior. E pode perder os
domínios do corpo, repetindo os mesmos gestos sempre.
Nunca tentar qualquer alteração. Os músculos humanos

 
  56  

tendem a se atrofiar na repetição diária. Animais selvagens


mantêm seus gestos potentes, sua musculatura desenvolvida e
preparada para ações específicas. Seus movimentos são
instintivos e são repostas a um estímulo exterior.

Os gatos agiam com a maior naturalidade: alguns abriam as


lojas enquanto outros começavam a trabalhar na prefeitura,
ocupando suas mesas de trabalho. Mais e mais gatos
continuaram chegando pela ponte. Eles faziam compras nas
lojas, iam para a prefeitura resolver assuntos administrativos
e comiam no restaurante do hotel. Os gatos também
tomavam cerveja no bar e cantavam alegremente as músicas
de gato. Um deles tocava acordeão e outros dançavam ao
compasso da música. Como os gatos enxergam no escuro,
praticamente não havia necessidade de luz, mas, naquela
noite, a lua cheia iluminava toda a cidade, e o rapaz, mesmo
escondido no campanário, conseguiu observar tudo, do
começo ao fim.3

Movimento é ação inerente ao corpo. Mesmo imóvel


o corpo se movimenta. Ele nunca está inteiramente parado. O
sangue pulsa, os órgãos contraem, as substâncias se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

deslocam. O movimento é a soma do involuntário àquele


intencional – movimento proposto – que resulta em uma
ação. Antes mesmo da ação, há movimento. Só de se pensar
em certo movimento, o padrão de unidades motoras
individuais se modificam. No século passado, John
Basmajian, fisiologista, descobriu que não era preciso
feedback (uma demonstração visual) para que essas unidades
específicas do músculo entrassem em atividade. Bastava
colocar a atenção em determinada parte do corpo para que ela
se movimentasse. A musculatura já ganhava tonicidade.
Pensar produz movimento.
A medicina antiga desconhecia o funcionamento do
corpo. Ela baseava-se no corpo feito de humores definido Até o início do século
pelos tratados antigos, dos temperamentos, de Hipócrates e XX, o sistema nervoso
era tido como o
Galeno. Os humores eram sangue, fleuma, bílis amarela e responsável pelo
controle de posturas e
bílis negra e estavam relacionados ao modo de ser do movimentos, por uma
indivíduo. Tê-los na quantidade ideal e misturados eram as precisão dos gestos.
O mal do “ataráxico”,
formas de curar enfermidades e promover a manutenção da incapacidade de
controlar os
saúde. Doenças vêm do excesso ou da falta, do isolamento de deslocamentos, era
um dos humores, da estagnação e da imobilidade. Combatê- uma doença que
degenerava o nervo
las consistia na liberação ou na aquisição dos mesmos. Os raquidiano.

movimentos do corpo serviam para evacuar os humores por  


meio da contração dos órgãos, da agitação e aquecimento das
partes. O atrito das partes causado pelos movimentos tornava
o corpo forte e resistente. Movimentar o corpo tinha o mesmo
papel dessas outras práticas de evacuação. A sangria e a
purgação deixavam o corpo robusto e a carne enrijecida.
Eram maneiras de purificar o corpo internamente.
Distinguiam posições sociais. Era o século XVII, momento

 
  57  

em que só os nervos e a carne eram citados e utilizados para


definir tipos de corpos. Ainda não havia nenhuma alusão aos
músculos.

As duas luas provocaram em Tengo uma leve sensação de


tontura, quase de vertigem. Parecia que seus nervos estavam
desequilibrados. Sentou no alto do escorregador e, com a
cabeça encostada no corrimão, fechou os olhos. A sensação
era a de que a gravidade ao seu redor estava ligeiramente
alterada. Em algum lugar, as marés subiam e, em outros,
recuavam. As pessoas oscilavam inexpressivas entre o
“insano” e o “lunático”.4

Depois aparecem os músculos. Os movimentos dos


músculos corrigem a estrutura corporal. Não servem mais O espartilho era
utilizado por todas as
para a decantação de humores. O músculo age sobre a crianças nobres desde
os primeiros meses de
morfologia, o corpo torna-se ativo ao executar movimentos vida para garantir um
corretivos. É preciso que a ação aconteça do interior para o porte correto, dar
força e ensinar a
exterior. As forças externas não reforçam o corpo. Objetos manter-se sobre os
dois pés. A força
não corrigem a estrutura sem que haja um movimento externa criaria a força
produzido pelo corpo, oriundo de um esforço interior. interna do corpo. No
século XVIII, o francês
Fraqueza e enfermidade advém de uma natureza fraca, da Andry de Boisregard
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

foi um dos primeiros a


falta de incentivo da criança à ação. A natureza do ser se aproximar de uma
humano torna-se responsável pela fortificação do corpo. A ideia de ortopedia, ao
propor que o
maneira de exercitar e de aprimorar os movimentos movimento ativo
fortalecia o corpo. Os
acreditada, orientada e difundida pelos e para os nobres é músculos deviam

contraposta aos movimentos dos homens rústicos, mais produzir a força do


corpo, seriam os
próximos dos animais selvagens. Este corpo que exerce uma responsáveis pelos
efeitos corretivos. A
força sobre si mesmo ao se movimentar livremente e retirar força interna passou a

das ações corporais o seu sustento demonstra o vigor de um comandar as ações


associadas à postura e
corpo novo. Estamos no século XVIII, os músculos assumem à saúde corporal.

uma orientação estrutural do corpo, mas seu funcionamento  


não é compreendido. Há o desconhecimento da contração
muscular.
Em seguida, as fibras ganham evidência. Elas devem
ser firmes e fortes, qualidades adquiridas por meio de
movimentos de oscilações. Antes, os ares frios podiam
adentrar os poros e causar doenças. Agora, o movimento, o
ar, o clima aumentam a consistência das fibras o que torna os
vasos mais tensos e os músculos mais vigorosos. As fibras
são associadas a tensões físicas. Fazer exercícios em que o
corpo oscile e aumente as pulsações promove
endurecimentos variados. Mas os exercícios ainda não foram
criados. Não há ginásticas como a conhecemos nem
movimentos seriados para treinar o corpo. Os exercícios são
as atividades comuns que já se praticavam e que utilizam
objetos do cotidiano. Não havia métodos específicos.
O impulso da ação é interno, único, e interage com
peso, espaço, tempo e fluência. Estes fatores de movimento
atuam na qualidade da ação, na modalidade de esforço.
Quando se é jovem, animais e homens possuem capacidades

 
  58  

de esforço mais variadas que, relacionadas aos fatores de


movimento, propiciam ações de maior mobilidade. O
crescimento enrijece a estrutura corporal. A história de vida e
o meio ambiente enquadram as características de esforço. No
entanto, durante toda a vida é possível experimentar formas
novas. E os movimentos, quanto mais compreendidos, mais
podem ser aproveitados.
São nos experimentos que se definem as melhores
combinações de esforço para uma situação que se coloca. É
como aprendemos a andar, e depois a correr, a pular, a
dançar. Treinamos o corpo para realizar da maneira mais
adequada – ou mais exagerada, ou mais delicada –, de todo
modo, uma realização fruto da aprimoração, o movimento
que melhor se encaixa à demanda. Aprendemos combinações
de esforços no nosso corpo, podemos ter respostas imediatas
diante de situações. Não significa que nos limitamos,
definindo movimentos de reação sempre os mesmos para
uma escala de situações correlativas. Também não significa
que melhor é a fórmula em que menos esforço se equaciona
com maior rendimento e concretiza uma máxima. Significa
que passamos a conhecer a mobilidade de nossos corpos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

podendo lidar com o inesperado sem antes processar


mentalmente a situação e a ação. Arriscar-se nas extensões,
na elasticidade, nas quedas, ultrapassar limites não por meio
de corrupção dos nossos próprios entraves e sim por trajetos
alternativos.

O modo como eles trabalhavam em equipe era eficaz e sem


movimentos supérfluos. Não faziam barulho além do
necessário e os passos eram discretos. Eles terminaram as
tarefas em vinte minutos, abriram a porta e saíram.5

Diferentes partes do corpo se relacionam através do Quando a fluência


substitui o peso no
movimento. Partes que pareçam desconexas fazem ligações movimento, com as
consonantes, calculadas ou não. Não há um movimento, qualidades controlada
ou livre, o ímpeto
mínimo que seja, que envolva apenas uma parte. Quando torna-se “como
visão”, no sentido
decidimos levantar o braço, antes mesmo que comecemos o imaginativo, porque o
movimento do membro superior, a panturrilha da perna significado corporal
perdeu as qualidades
contrária se contrai para rearranjar o equilíbrio do corpo. A de esforço relativas
ao peso.
energia gerada circula o corpo todo. O esforço de uma parte
repercute no corpo todo. Quando se movimenta, o corpo faz a
conexão de suas partes durante um determinado tempo,
ocupando e desabitando espaços, despendendo uma
quantidade de força. As ações corporais são alterações.
Quando para, o corpo adquire uma posição. Ainda está sob a
égide das propriedades temporais, espaciais e tensionais, mas
com outro enfoque.
Uma ação como esticar um braço pode dizer apenas de
um conhecimento mecânico que o corpo é capaz de realizar.
Já a força que se coloca, o peso empregado, a intensidade de
um aceno diz sobre desejos e disposições. Um passo não é a

 
  59  

mesma ação para qualquer corpo da mesma espécie. Além da


intenção que os diferencia, a forma de cada corpo também os
singulariza. Os corpos não usam exatamente os mesmos
músculos e ossos, com a mesma intensidade. Passos não são
idênticos entre corpos. Um movimento mecânico não
padroniza o homem, não anula sua subjetividade.

Tamaru esticou os braços, as palmas para cima, como um


homem esperando a chuva no meio do deserto. Mas não
disse nada. Suas mãos eram grandes e volumosas, e nelas
havia algumas cicatrizes. Pareciam mais a parte de uma
enorme máquina do que de um corpo humano.6

Os movimentos são formas de pensamento, porque


expõem uma interioridade, porque expressam e comunicam.
É possível pensar pelo movimento sem necessariamente ter o
domínio orientado deles. Se o pensar por movimento pode
situar, organizar o mundo exterior, juntamente com as
palavras, pode também aperfeiçoar o mundo interior ao
desferir o impulso numa ação, no fazer. O pensamento move
uma quantidade de músculos e o corpo memoriza uma
emoção.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Dominar os movimentos é saber usar a fluência


possível no corpo. Primeiro, é preciso saber onde está
situado. Conhecer a relação dos pés com as outras partes do
corpo e com uma disposição interior. Para saber o que uma
articulação pode fazer, para liberá-la, é preciso, primeiro,
perceber que ela está presa. Depois, pode-se encaixar e
desencaixar, soltar. As articulações atuam na fluência do
movimento. Aponta-se uma intenção por meio de um
movimento mais ou menos fluído. Na pausa ainda há fluidez,
uma fluidez mais controlada. A prontidão para parar a ação
ou a sensação de fluência continua na pausa. A fluência está
no movimento mais livre e progressivo, que se assemelha aos
líquidos, assim como comporta os movimentos de resistência
e contra-movimento. A fluência não se dá apenas no que é
livre, contínuo, delicado. Detido, intermitente, duro também
podem ocorrer nela. O fluxo interno-externo e um fluxo
contrário, do contato com outro corpo ou objeto que faz
iniciar um movimento, estabelecem relações e comunicações.
O movimento tensiona e intenciona. Em 1910, as
companhias norte-
Os corpos pesam. Uns sobre os outros. E o corpo pesa americanas de seguro
de vida definem o
sobre si mesmo. A estrutura corporal é toda feita de partes valor das tarifas de
que pesam umas sobre as outras. Em alguma medida, o peso acordo com oito
categorias
pode ser controlado. Pode-se pesar leve ou firmemente sobre relacionadas ao peso.
Elas se organizam à
outro corpo. Pode-se colocar mais ou menos peso. O controle medida que se

do peso tem a ver com contração ou relaxamento muscular, distanciam da norma.


Os limites são 12
tem a ver com a respiração. O peso é massa do corpo. Uma quilos abaixo e 23
quilos acima da
massa que toca a superfície, que pesa ligeiramente. A massa mesma. É quando o
peso passa a ser sinal
só pode ser pesada no contato com outros corpos, e no de saúde.
contato há pressão e troca. De suores, de peles descamadas,  

 
  60  

de forças. Pode-se buscar equilíbrio no pesar sobre outro ou


pode se deixar desequilibrar. Pode ser apoio, pode ser
repulsa. Corpos, ao pesar-se um sobre o outro, encaixam-se
de maneiras inusitadas e não necessariamente formam figuras
belas.
As formas que o corpo assume são qualidades
espaciais. Acontecem no espaço, relacionam-se e se
compõem nele. Não um espaço norteado, que se ocupa, que
pode ser delimitado por direções e planos, e que é percorrido
durante um determinado tempo. Um corpo não preenche um
espaço. Ele é um espaço, aberto, um lugar de existência.

É pele dobrada, redobrada, desdobrada, multiplicada,


invaginada, exogastrulada, furada, evasiva, invasiva, tensa,
distendida, excitada, siderada, ligada, desligada. De todas
essas maneiras e de muitas outras ainda (aqui não há
<<formas a priori da intuição>>, nem <<tábua das
categorias>>: o transcendental está na modificação
indeterminada e na modulação espaçosa da pele, o corpo dá
lugar à existência.7

São tantos os espaços possíveis quanto as nossas


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

capacidades semióticas e nossos modos de subjetivação. As


percepções dos espaços atuais podem ser duplicadas por
percepções antigas de espaços também antigos. Não é o
mesmo que voltar a um lugar tempos depois. É ter
percepções que retornam em espaços distintos. Construir uma
ponte entre eles. Espaços são máquinas agenciadoras,
máquinas de sentido esmagadoras ou ressingularizantes. Ao O cientista inglês
Robert Hooke, em
delimitar o espaço como um quadrado, pode-se definir dois 1665, viu pequenas

ou mais pontos fixos. Se o quadrado for de matéria maleável, cavidades numa


cortiça e deu o nome
os pontos se movem. Aproximam-se, distanciam-se. Um de célula, do latim
cella , um lugar
corpo altera os pontos fixos de um espaço ao tornar-se parte fechado, um pequeno

dele, ao movimentá-lo. O corpo movimenta o espaço, quando cômodo. A cortiça é


formada por células
o modifica, quando o ocupa. mortas, o que ele viu
foi o envoltório. As
Antigamente, o corpo entendido como poroso estava células, na verdade,
foram descobertas
vulnerável ao clima. A umidade do ar, por exemplo, atingia pelos botânicos.
os órgãos. Nos dias de chuva, era prudente comer comidas Primeiro, o escocês
Robert Brown, viu que
secas. A sudação ajudava a eliminar o excesso de água. Nos ela tinha um núcleo e
era preenchida por um
dias de nevoeiro, era prudente evitar os movimentos físicos e material gelatinoso –
as caminhadas, principalmente ao ar livre. Os poros podiam 1831. Depois, o
botânico alemão
se constipar, interromper a evacuação dos humores e Mathias Schleiden
concluiu que a célula
acarretar problemas ao corpo. Depois de exercícios físicos era uma unidade viva
intensos, era prudente evitar espaços abertos, pois o ar que pertencia a todas
as plantas – 1838. O
penetraria o corpo atingindo as partes interiores. Devia-se zoólogo alemão
Theodor Schwann
evitar, especialmente, o ar frio e o ar das epidemias. estendeu a descoberta
Movimentos intensos e violentos abririam os poros e os para todos os seres
vivos – 1839. Surgiu a
deixariam suscetíveis aos males provenientes do ar. Nessa teoria celular.

época, ainda não existiam células e não se sabia que o sangue  


circulava.

 
  61  

Mais tarde, o estado da pele seria um indicador de uma


pessoa que se exercita, que se movimenta, que é saudável. A
pele do corpo que treina “se torna sempre mais transparente,
mais lisa, mais colorida e mais elástica”8.

Tengo se lembrou de que a pele perde diariamente cerca de


quarenta milhões de células. Elas se soltam e, como uma
minúscula partícula de poeira, desaparecem no ar. Neste
mundo talvez sejamos como essas células e, sendo assim,
não seria nada estranho se um dia, de repente, alguém viesse
a sumir.9

O tempo, definido como linha reta, pontos fixos, serve


para medidas, para acomodações espaciais e lógicas. O tempo
da existência é dobra. Pode ser amassado, rasgado,
aproximando ou distanciando acontecimentos. Um Quando a fluência
substitui o tempo no
acontecimento da história “é multitemporal, remete a algo movimento, quando o

passado, contemporâneo e futuro simultaneamente” 10 . Os movimento perde as


qualidades de
corpos continuam a fazer gestos arcaicos, são atualizados sustentado ou súbito
relativas ao tempo, o
pelos gestos do presente, e ensaiam gestos desconhecidos, indivíduo adquire uma
expressão
que podem ser absorvidos como naturais posteriormente. “encantada”. Seu
Uma sociedade faz conviver crenças e comportamentos movimento tem a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

qualidade de fascínio.
antigos, atuais e futuros. Uma circunstância do passado pode  
ser ressignificada no presente, um objeto antigo pode
continuar a existir. Um corpo velho pode apresentar-se de
forma muito jovial. Jards Macalé é um quase jovem num
corpo de 70 anos. Um corpo jovem, se congelado, mantém
seus traços, sua natureza, intactos. Pode ter filhos mais velhos
que si. Um corpo queimado derrete, desaparece.

− Acho que o corvo não se preocupa com a questão do


tempo. O conceito de tempo só serve para os homens.
− Por quê.
− Os homens concebem o tempo como uma linha reta. É
como marcar uma haste de madeira reta e comprida e
definir que o que está do lado de cá é o passado e do lado
de lá é o futuro. E que aqui e agora é o presente. Algo
assim. Entende?
− Acho que sim.
− Na prática, porém, o tempo não é linear. No amplo
sentido da palavra, o tempo não possui forma. Mas,
diante da dificuldade de imaginar algo que não possui
forma, por conveniência passamos a percebê-lo como
uma linha reta. Até onde se sabe, somente o homem é
capaz de fazer essa substituição conceitual.
− Mas nós é que podemos estar errados.
Tengo refletiu sobre isso.
− Está dizendo que o fato de considerar o tempo como uma
linha reta e contínua pode estar errado?
Não houve resposta.
− Essa possibilidade existe, é claro. Podemos estar errados
e o corvo é que está certo. Talvez o tempo não seja linear
como supomos ser. Pode ser que ele tenha o formato de

 
  62  

uma rosca trançada – disse Tengo. – Mas o homem


provavelmente vive há dez milhões de anos tendo como
base a ideia de que o tempo é uma linha reta e contínua, e
suas ações foram pautadas nesse conceito. E até hoje ele
não encontrou nenhuma inconveniência ou contradição
nisso. Portanto, como modelo experimental, esta ideia
pode ser considerada correta.11

As combinações dos fatores de movimento produzem


graduações de ação. Nem sempre utilizamos todos os fatores
num dado movimento. Eles não agem sempre juntos. Quando
um deles não aparece há um esforço incompleto. E o
movimento resultante se diferencia daquele em que fluência,
peso, espaço e tempo o compõe. São movimentos de
transição entre ações essenciais. São atitudes. Já quando a
fluência está subentendida, encoberta, há os ímpetos de ação.
Neles, as ações corporais assumem outras qualidades, novas
expressões.
Podemos escolher atitudes frente aos fatores de
movimentos que dão indícios de quem somos. Indicam como
nos colocamos para diferentes corpos no mundo. Podemos Quando a fluência

compreender os nossos próprios movimentos. Olhá-los, substitui o espaço,


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

quando as qualidades
torná-los conscientes, investigá-los nos dão chances de espaciais flexível e
direto tornam-se
alterações, de ampliar opções, logo de desdobramentos pouco aparentes, de

imaginativos, de novas disposições para se apresentar ao modo que a forma não


possui mais uma
mundo. Corpos percebidos e expressivos, sentidos, são referência específica,
as ações corporais
corpos de experimentações. Não é preciso o corpo transformam-se em
ímpetos de paixão.
vigorosamente saudável nem o corpo das medidas ideais do
agora pregados pela tríade medicina, moda, esporte. Ter o
domínio dos movimentos do corpo, conhecer o interior, serve
tanto para alargar a quantidade e melhorar o desempenho em
ações habituais quanto para estender os limites e os processos
criativos oriundos das experimentações.
Os movimentos se dirigem a objetos externos, a outros
corpos, a outras partes do corpo, àquilo que não se pode ver
com os olhos, um estímulo, uma sensação. As partes do
corpo olham, endereçam o interesse, pois têm orientação
própria. A cabeça se vira para direcionar a visão ao que se
pretende aproximar, palmas das mãos e solas dos pés veem,
podendo se direcionar para diferentes sugestões. As mãos
podem ver o que os olhos não alcançam. O peito também vê
por meio do esterno que pode se orientar sem que os pés
saiam do chão, sem que os braços apontem.

Ela não é um conceito, não é um símbolo nem uma


metáfora. Ela é uma existência real cujo corpo possui calor e
um espírito em movimento. Esse calor e esse movimento são
coisas que eu não posso deixar escapar. Levei vinte anos
para entender uma coisa tão óbvia. De fato, sou uma pessoa
que leva tempo para “estender” as coisas, mas, mesmo
assim, acho que levei tempo demais. Talvez seja tarde

 
  63  

demais. Seja como for, preciso encontrá-la. Mesmo que seja


tarde demais.12

Ao fazermos um movimento, estabelecemos


relacionamentos mutáveis e momentâneos, resultados de um
preparo, de um encontro, de uma liberação. O preparo pode
ser o direcionamento da cabeça, normalmente o é, pois a
cabeça, à primeira vista, concentra quase todos os sentidos. A
cabeça também comporta os dois mecanismos de equilíbrio
mais importantes: o óptico e o vestibular. O homem do
ocidente está acostumado a preparar a ação utilizando a
primeira ordem dos sentidos, a mais usual. Já as mãos estão
mais habituadas ao contato propriamente dito, função
primeira. Após agarrar, é preciso soltar, virar-se para a
direção contrária. Dá-se a liberação.
A aproximação envolve a locomoção e os gestos, além
do desejo, intenção, obrigação, saudade, resolução,
necessidade, alívio, raiva, satisfação, objetivo, tesão, vontade.
Chega-se por qualquer lado, pode-se rodear, pode-se
penetrar. Há o estabelecimento de referência espacial-
temporal com a coisa que se quer. E há uma expectativa do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

encontro, o confronto, o choque, o encaixe, o salto. Os


segundos antes do contato reverberam no outro, na coisa Hermes era o
desejada. A proximidade já é troca. O contato se dá no toque, mensageiro. E o
mensageiro está
no deslize, na transferência de peso, no transporte, no sempre em
sustento. Mas o corpo também repele, empurra, espalha. Um movimento, sempre
em algum lugar entre
corpo rejeita outro, não encontra junção, não frui a textura. É o céu, a terra e o
inferno. Suas sandálias
como permitir que uma palavra desgovernada deixe minha de ouro tornavam-no

boca e aumente minha resistência a você. Ao executar a muito veloz. Os


espaços são
forma de ação espalhar, o corpo encaminha uma energia do transitórios, as coisas
do mundo também.
seu centro para as extremidades e para a coisa. O contrário, a Hermes ocupa,

forma de recolher, possuir, advém de uma energia das conecta espaços, faz
circular vozes,
extremidades do corpo que se encaminha para o centro. O promove mediações.

corpo acolhe, abraça.  


 
“Mas e se eu nunca mais encontrá-lo. O que devo fazer?”
Seu coração estremeceu. Antes de existir um ponto real de
conexão com Tengo, a história era bem mais simples. Até
então, encontrar-se com o Tengo adulto não passava de um
sonho, uma hipótese abstrata. Mas, no momento em que
Aomame o viu de verdade, a existência dele se tornou
incomparavelmente mais real e poderosa do que antes.
Aomame desejava a todo custo reencontrá-lo. Queria ser
abraçada e que ele a acariciasse. Seu corpo e sua mente
pareciam romper em duas partes só de imaginar que isso
poderia não acontecer.13

O processo importa mais que o fim. Porque o fim não é


irredutível, porque o corpo se re-conhece no durante. O
processo reencaminha, dá um novo sentido, não limita. Os
meios devem ser os mais aprimorados, os melhores para o

 
  64  

propósito que se quer atingir. Não pensar no fim é como o


corpo se experiencia, abre-se para as percepções. Para
perceber os seus gestos, as suas reações imediatas. Muitas
vezes, não é preciso fazer conscientemente um movimento,
basta deixar que ele de tão necessário só possa acontecer. Um
movimento acertado como único modo possível de ser num
dado momento.
Os movimentos corporais ganham complexidade e Rudolf Laban nasceu em
1879 na Bratislava.
singularidade quando executados. Formas corporais como Começou a estudar
recolher e espalhar, que exprimem possessão e repulsa, são arquitetura, em Paris,
mas abandonou para
fundamentais e originárias. São, no entanto, realizadas de tornar-se bailarino e
coreógrafo. Desenvolveu
maneiras únicas por cada indivíduo. Costumam nos várias pesquisas não
acompanhar. São motivadas por inúmeros estímulos, são voltadas somente para o
bailarino, e sim para
executadas com objetivos também incalculáveis. Recolher é qualquer corpo humano.
Estudou os elementos
fechar-se, assumir posição fetal, agachar-se, pegar. Espalhar constitutivos dos
é empurrar, é esticar-se, é lançar. movimentos naturais do
homem. Criou uma
Gestos e movimentos dizem algo do corpo. Podem ser técnica que podia ser
aprendida por qualquer
lidos. Não são mapas precisos e podem, muitas vezes, ser pessoa que visasse um
manipulados. Quanto mais se domina os movimentos do aprimoramento dos
movimentos do corpo.
corpo, mais ferramentas se tem na comunicação. Gestos e Trabalhou com operários
de uma fábrica, em
movimentos dão indícios, também mentem. Gestos e Berlim, nos anos 1930.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

movimentos alteram o mundo. Movimentam o que está Em 1937, fugiu do país.

parado. Os corpos alteram lugares físicos.

− Entendo... – Komatsu disse. Após soprar a fumaça do


cigarro, calou-se, com uma expressão de total desinteresse.
Mas, como não era de hoje que Tengo o conhecia, ele não se
deixou enganar por essa atitude. Ele sabia que Komatsu era
do tipo que, às vezes, expressava no rosto sentimentos
opostos ao que sentia em seu íntimo. Ciente disso, Tengo
aguardou pacientemente a iniciativa de Komatsu começar a
falar.14

O movimento pode ser interno e se exteriorizar. Ou


pode ser originado por uma força externa. Não precisa ser
elaborado antes de concretizado. Não precisa ser consciente
para expressar-se. O movimento externo é facilmente visto e
pode ser analisado, indicando maneiras de fazer e de
experimentar. Análise, aqui, não é decomposição e descrição.
É experimentar o movimento no próprio corpo, tentar fazê-lo
de maneiras outras. Um professor de atuação japonês disse a
seus alunos para desconfiarem da aprendizagem teórica e da
compreensão intelectual. As técnicas de atuação devem ser
aprendidas através do corpo. Vale um fluxo livre ou
controlado, um peso leve ou firme, um espaço flexível ou
direto, um tempo sustentando ou súbito. Vale a recombinação
desses elementos. Vale a supressão de um dos fatores.
Quando a ação é decupada nas imagens, vemos os
impulsos, o preparo, os movimentos de transição. A olho nu,
os olhos veem a ação concluída, perdem os detalhes.
Observar o movimento de outro corpo faz voltar-se para o

 
  65  

próprio movimento. O domínio dos movimentos passa por


outros corpos.
O equilíbrio pode ser buscado no corpo todo. Quando
se diminui os espaços no corpo, espaços entre as articulações,
entre os órgãos, diminui-se o equilíbrio. O equilíbrio também
se relaciona com o exterior, não ocorre apenas internamente.
Reconhecer as sutilezas do equilíbrio permite que o corpo se
organize a partir de um repouso equilibrado, em que produz
novas ações, não respostas programadas, habituadas pelo
corpo. Uma das posições de estar em pé é aquela em que as
pernas estão posicionadas numa abertura mais larga que os
ombros. É a posição das lutas orientais, porque é equilibrada
e ativa. Pode-se sair dela para um movimento de forma ágil,
redistribuindo o peso da posição estável entre as partes do
corpo que se mexem. Ao caminhar, o corpo busca um
equilíbrio de suas diferentes partes. A linha central e
imaginária que perpassa o corpo é desestabilizada a cada
retirada de um dos pés do chão e compensada com a
mudança de peso de uma perna para a outra, com o
movimento do tronco para a frente.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Dia 1 – As distrações de minhas caminhadas diárias


muitas vezes foram preenchidas por contemplações
encantadoras de que lamento ter perdido a lembrança.
Fixarei através da escrita as que ainda poderão me
acontecer; cada vez que as reler, recuperarei o prazer. Essas
folhas não passarão de um diário disforme de meus
devaneios. Nele, muito se falará de mim, porque um solitário
que reflete necessariamente se ocupa muito de si mesmo. De
resto todas as ideias externas que me passam pela cabeça ao
caminhar também ali encontrarão lugar. Direi o que pensei
tal como me ocorreu e com tão pouco encadeamento quanto
as ideias da véspera têm em geral com as do dia seguinte.

Caminhante, pedestre,
Caminhar exercita um grande número de músculos do andarilho, transeunte,
passeador, multivago,
corpo sem desgastá-los. Libera devaneios. Caminhar regula a errabundo, nômade,
respiração e a circulação sanguínea. Permite encontros. erradio, passante,
caminhador, viageiro,
Caminhar aumenta os estímulos elétricos nos ossos, peregrino, lacaio,
romeiro, vagabundo,
facilitando a absorção de cálcio. Dispõe os sentidos. andante, caminheiro,
Caminhar desacelera o envelhecimento. Alarga as direções. viandante, errante,
vagamundo,
Caminhar ativa a produção de insulina no pâncreas e reverte aventureiro, viajante.
Há quase tantas
a resistência à insulina de alguns corpos. Instiga o olhar. formas de definir

Em outros séculos, a caminhada era um exercício físico aquele que caminha


quanto há motivações
que visava a saúde no que ela tinha de ligação com a higiene. para caminhar.

 
  66  

Exercícios deveriam agitar os humores, limpar o corpo dos


excessos. Como os outros exercícios que tinham o mesmo
objetivo, a caminhada podia ocorrer em qualquer espaço e
deveria ser feita com moderação. Era preciso se precaver do
clima, era importante que fosse moderada. Quando os
humores e suas formas de evacuação tornaram-se
retrógrados, a caminhada ascendeu. Com os banhos frios e a
dieta, ela passou a ser um tônico sensível. Era muito indicada
para as mulheres. As roupas femininas perderam até algumas
camadas para facilitar no trajeto.
A caminhada não difere corpos, não hierarquiza. Não
exige roupas nem espaços especiais. Com o passar do tempo,
a caminhada foi reelaborada. Descobriu-se que independe do
clima, do horário, da idade, do peso do corpo. Descobriu-se
que independe do objetivo. Caminha-se por muitas razões.
Para pensar, para chegar a um lugar. Para não pensar, para
apurar os sentidos. Para conhecer algo ou alguém. Para não
chegar a lugar nenhum. Apenas uma delas é o treinamento
corporal.
A ação de caminhar também pode ser revista. O mal Frederick Matthias
Alexander nasceu em
uso do corpo repercute nos passos. O corpo se organiza e se 1869 na Austrália.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Tornou-se ator e músico.


desorganiza a cada passo dado. Há quem coloque o apoio na Dava recitais, concertos
lateral interna do pé, há quem o coloque na lateral externa. Se e fazia sessões em que
declamava textos
o tendão posterior for encurtado, o apoio será nas pontas. A dramáticos e
humorísticos. A
execução correta consiste em colocar o calcanhar, em seguida rouquidão e problemas
borda externa, centro, borda interna e ponta. Movimento respiratórios fizeram
com que passasse a
espiralado, não decomposto, natural. Assim que a ponta observar o próprio corpo
no espelho. Por meio de
encosta o chão deve receber o peso do corpo. O peso na suas experiências
ponta do pé impulsiona o corpo a seguir adiante. Caminha-se. corporais, desenvolveu
uma técnica que
As sutilizas da diferença participam em cada corpo. Para cada pretendia o melhor uso
do corpo para que atinja
medida do corpo único pode-se adaptar a caminhada para um as melhores posições.

melhor desempenho. Uma tradição japonesa consiste em Ficou famoso. Médicos


recomendavam seu
olhar as solas dos sapatos dos pretendentes a marido. Os pais treinamento. Durante a
Primeira Guerra, mudou-
devem fazê-lo, pois se os calcanhares forem gastos se para os EUA. Entre as

significam que ele é preguiçoso. Enquanto um solado gasto posições reaprendidas


pelo corpo estão sentar-
nas pontas indica um corpo saudável e vigoroso. se, levantar-se, andar.

Numa caminhada dura, a tensão pode ser colocada no


pescoço, nas escápulas. Quando bem executada, quando a
relação cabeça-pescoço-torso é bem resolvida, distribuindo o
esforço corretamente por todo o corpo, a caminhada evita o
desgaste excessivo de partes específicas, dá leveza e
suavidade. Quando assim ela ocorre, quem a vê acha que só
as pernas se movem. É que o corpo está funcionando num
relaxamento muscular ideal, conseguido pelo melhor uso das
partes sem excesso em nenhuma delas.

Dia 2 – Senti isso nas caminhadas. A planície, ainda


verde e agradável, mas em parte desfolhada e quase deserta,
apresentava por toda parte a imagem da solidão e da

 
  67  

aproximação do inverno. Resultava de seu aspecto uma


mistura de impressões doces e tristes, análogas demais a
meu destino para que não as aplicasse a mim. De repente, vi
se lançar sobre mim um grande cão dinamarquês que não
teve tempo de parar sua corrida ou desviar ao me ver.
Calculei que a única maneira de evitar ser atirado ao chão
era dar um grande salto, tão preciso que o cão passasse por
baixo de mim enquanto estivesse no ar. Essa ideia, mais
breve que o relâmpago, que não tive tempo nem de
considerar nem de executar, foi a última antes do acidente.
Não senti nem o golpe nem a queda, nem nada do que se
seguiu até o momento em que voltei a mim.

A caminhada é uma atividade física composta pela A marcha atlética exige o


treinamento do corpo
soma de um mesmo movimento complexo e completo: para um procedimento
usual, andar. É uma
andar. A mais básica de nossas ações, pois uma das mistura de caminhada e
primeiras. E que envolve um multifacetado conjunto de corrida. Nela, o dedo do
pé de trás só pode sair
referências mentais, sensoriais e motoras. Aprendemos a do chão quando o
calcanhar do pé da
andar sem refletir sobre as dificuldades. Aprendemos com o frente encosta o chão.
risco, a queda, a repetição, o desejo. Não pensamos em cada Alguma parte de um dos
pés deve sempre tocar o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

parte que deve se mexer, cada músculo que deve adquirir chão. A falta é chamada
de salto. A perna de
tônus. Andamos. A criança um dia anda. Descobre uma nova sustentação deve estar
utilidade para os seus membros inferiores. A partir dela, um esticada até que a outra
perna a cruze e o
acervo de possibilidades se abre, pode-se correr, pular, calcanhar encoste o
chão. É esta exigência
dançar. Ações derivadas da primeira. Não, não é preciso que faz o quadril se
andar para dançar. Mas andar implica, em algum momento, movimentar. A marcha
foi inventada no século
dançar. Andar, uma ação quase acidental, um das funções do XVII. Edward Payson
Weston, no século XIX,
corpo, transforma-se num movimento liberal, na abertura fez alterações e utilizou-

para imaginações diversas. a para percorrer o


continente americano.
Caminhar serve à escrita. Acontece nos romances,  
poesias, confissões. Palavras deslocam os homens. “Ocorre
uma certa reciprocidade entre meu passo e meus
pensamentos, com meus pensamentos modificando o meu
passo; com meu passo excitando meus pensamentos.”15 Paul
Valéry conta que um dia, enquanto caminhava, sua “máquina
de viver” foi tomada por “ritmos inesperados”, uma
composição cada vez mais complicada. Paul Valéry, que
sempre manobrou ideias e imagens durante a caminhada, não
soube o que fazer com a música que criara. Quando se
conscientizou da intuição rítmica, ele a perdeu.

Um certo dia, quando os dois caminhavam pelo parque, se


depararam com um concerto ao ar livre e resolveram assistir.
Naquele momento, de repente, Janáček sentiu a felicidade
aflorar por todo o seu corpo, e foi ali que nasceu o tema da
Sinfonietta. Posteriormente, ao recordar esse passado
nostálgico, Janáček revelou que naquele dia sentiu como se
algo rompesse dentro de sua cabeça, proporcionando-lhe
uma agradável sensação de êxtase. Naquela época, por
acaso, ele estava incumbido de compor uma fanfarra para

 
  68  

uma grande competição esportiva, e a Sinfonietta surgiu


justamente da junção do tema da fanfarra e da “inspiração
musical” que teve no parque. O livro ressaltava que, apesar
da denominação “pequena sinfonia”, a composição nada
tinha de tradicional, e a combinação de metais utilizados em
fanfarra – para ocasiões festivas e grandiosas – com
instrumentos de corda, das refinadas orquestrações da
Europa Central, criava uma atmosfera única, original.16

Dia 3 – Decidi utilizar a caminhada do dia seguinte


para me questionar sobre a mentira e segui convicto de que
Conhece-te a ti mesmo do templo de Delfos não seria uma
máxima tão fácil de seguir. A primeira coisa que me veio à
mente ao começar a concentrar-me foi uma mentira horrível
contada em minha juventude. O que mais me surpreendeu foi
que, ao relembrar essas coisas inventadas, não senti nenhum
arrependimento verdadeiro. Conheci pessoas que, na
sociedade, chamamos de verdadeiras. Toda a sua veracidade
se esgota em conversas inúteis, citando de maneira fiel os
lugares, as datas, as pessoas, não se permitindo nenhuma
ficção, não acrescentando nenhuma circunstância, nada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

exagerando. O homem que chamo de verdadeiro faz


exatamente o contrário. Em coisas de todo sem importância,
a verdade que o outro tanto respeita o toca muito pouco, e
ele terá pouco escrúpulo em divertir uma companhia com
fatos inventados dos quais não resulta nenhum julgamento
injusto, nem contra nem a favor de quem quer que seja, vivo
ou morto.

Klauss Vianna nasceu em


A caminhada estabelece uma outra relação com o Belo Horizonte, em 1928.
tempo e o espaço. O tempo é suspenso, o espaço é Bailarino e coreógrafo,
inventou a sua própria
subjetivado. O corpo impõe um tempo. O tempo, na técnica de preparação do
corpo. Não apenas
caminhada, é uma vontade. Pode ser um quociente, resultado dedicada a bailarinos e
de um excessivo gasto de energia. O espaço modifica-se atores, mas a qualquer
um que quisesse
incessantemente à medida que se especifica. Ganha detalhes. aperfeiçoar sua
percepção corporal, que
Detalhes passageiros. Caminhar envolve ação de diferentes quisesse rever as

partes do corpo, do pensamento. Caminhar é vivenciar o seu próprias posições e


movimentos. Uma vez
interior. Relacioná-lo ao exterior ou retirar-se dele. deu um curso para
senhoras. Descobriu que
Os caminhos são sulcados na terra pelo homem, pela o cotidiano delas

água, pelos animais, pelo fogo. Caminhos não são fixos. Mas envolvia os trabalhos
domésticos. Pediu que
guardam marcas de seus passantes. Caminhantes deixam levassem os
instrumentos usados na
rastros que transformam-se em indícios. Indicam peso, limpeza para a aula e que
fizessem os movimentos
estatura, pertences, companhias, temperamentos, intenções. habituais realizados em
Rastros desaparecem, misturam-se, são alterados. O caminho casa. Depois, disse que
deveriam repeti-los
também se movimenta. Leva a um fim ou a uma bifurcação. tornando-os agradáveis,
simples e conscientes.
A caminhada obriga a decisões mesmo do corpo que só quer Foi quando perceberam
vaguear. que usavam mal o corpo.

 
  69  

Apesar de ser muito mais cômodo caminhar pela estrada, os


guiliaks preferem andar no meio da floresta, distante da
estrada. Andar na estrada significa ter de reelaborar a própria
noção de caminhar. E isso implica reelaborar outras coisas.17

Marina Abramovic e Ulay percorreram a Muralha da


Em 2003, o astronauta
China, o corpo de um dragão dormindo. Ele começou pela chinês Yang Liwuei

cauda, oeste, e ela pela cabeça, leste. Caminhariam até se deu 14 voltas ao redor
do planeta Terra. Ele
encontrarem. Quando concebida, 8 anos antes, a performance declarou que não era
possível ver a Muralha
chamava-se The Lovers, mas demorara 5 anos para que da China do espaço
sem o uso de
obtivessem a licença do governo chinês para fazê-la. Quando aparelhos visuais. Até
saiu a permissão, em 1989, tinham acabado de se separar. esse momento ainda
se acreditava que a
Decidiram manter a peça. Quase toda a ideia original fora muralha era o único
monumento feito pelo
alterada na prática. Eles não poderiam estar sós, não homem que poderia
poderiam acampar, não poderiam caminhar nas áreas ser visto do espaço.
Foi o astronauta
militares. Decidiram manter a peça. Durante 4 anos, viveram americano, Gene
Cernan, quem fez essa
no carro, viajaram por diferentes países. Suas performances e declaração em 1972.
o período em que viveram viajantes lidavam com o risco, o Muito antes dele, em
1938, o livro
limite, a dor, o movimento, a ausência de ensaio, de um fim Maravilhas do Mundo ,
de Richard
determinado, de repetição. A caminhada pela Muralha da Halliburton, já trazia
China durou 3 meses. Era para ser um momento de essa afirmação. Em
2003, o governo
meditação, de se situar num espaço, de ir ao encontro do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

chinês mandou retirar


o fato das cartilhas
outro. Para ele, a ação de caminhar tornou-se mecânica, a escolares.

terra movendo abaixo de seus pés como uma esteira. Ele


media a muralha com seu corpo. A caminhada tornou-se um
estudo da China e da energia envolvida em seus estados
emocionais. Para ela, a caminhada foi um risco diário. A
parte do muro que percorrera era alto, nas montanhas, o chão
era composto de pequenas pedras. Trêmulo, oscilante. A
caminhada causava dor e exaustão. A muralha tornou-se o
foco de sua atenção. Não deveria pensar no passado ou no
futuro. Não havia planos, nada era fixo. A única decisão era
caminhar todos os dias. Quando se encontraram, após 90
dias, ela chorou e ele fez um comentário sobre o sapato dela.
Ambas as experiências não correspondiam. A expectativa que
tinham um do outro durante os três meses em que andaram o
muro não fora alcançada.

Dia 4 – Quase não temos movimentos maquinais cuja


causa não possamos encontrar em nosso coração se
soubermos procurar bem. Essa caminhada era bastante
banal em si, mas ao me lembrar que fizera maquinalmente
diversas vezes o mesmo desvio, procurei a causa em mim
mesmo e não pude deixar de rir quando consegui esclarecê-
la. Esse prazer tornado aos poucos hábito se encontrou, não
sei como, transformado em uma espécie de dever cujo
incômodo logo comecei a sentir. A partir disso, passei por ali
com menos boa vontade e, por fim, peguei maquinalmente o
costume de fazer quase sempre um desvio quando me
aproximava daquela barreira. Eis o que descobri ao refletir

 
  70  

sobre isso, pois nada disso ocorrera, até o momento, com


discernimento à minha mente. Essa observação me lembrou
pouco a pouco das inúmeras outras que me confirmaram que
os verdadeiros e primeiros motivos da maior parte de minhas
ações não são tão claros a mim mesmo quanto por muito
tempo imaginei.

Caminhar é um hábito. Alterar hábitos corporais é olhar


para o próprio corpo e rever a maneira como nos colocamos
para o mundo. Para alguns povos, reelaborar noções abstratas
passa pela reelaboração de ações corporais. Andar pela
floresta era um hábito dos guiliaks. Apesar de não serem
bélicos e de não se oporem à chegada de estrangeiros na
região – os russos transformaram a ilha numa colônia penal
no século XIX –, os guiliaks mantiveram o hábito de
caminhar pela floresta densa ao lado da estrada, em fila
indiana, por causa das dificuldades. Caminhar é uma fuga. É
colocar-se em movimento, retirar-se de um estado de
repouso, de uma situação, de um momento. Caminhar
implica deixar algo ou alguém para trás.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Retirar-se do cotidiano, buscar um convívio consigo,


fincar um intervalo entre ações massivas e repetitivas, O laboratório Orfield,
em Minneapolis, foi
afastar-se dos sons incessantes da cidade são razões para construído onde, antes,
era um estúdio de
caminhar, não são modos de vivenciar o silêncio. Parques, gravação, que foi usado
por Bob Dylan no disco
campos, sítios, florestas, alternativas comuns para as Blood on the tracks . O
caminhadas do nosso século, espaços de treinamento físico laboratório possui uma
câmera anecóica, criada
que prospectam saúde, beleza e bem-estar, não são espaços para absorver o som. Os
sons emitidos dentro
de fruição do silêncio, de retorno à origem. O silêncio é uma dela são percebidos sem
abstração. O corpo é sonoro. Os espaços são sonoros. Antes, ecos, sem distorções ou
reflexões. O quarto é
quando havia apenas florestas, mares e montanhas, não havia escuro. Uma pessoa
dentro dele ouve, com
silêncio. Talvez, a busca pelo silêncio seja somente uma nitidez, os sons do
expressão mal alojada de uma ausência de percepção do próprio corpo.

próprio corpo, de sua organização e complexidade, de sua


potencialidade. O corpo está em constante movimento. E
movimento não é silêncio.

Não. Não é que não havia ninguém. Alguém nas


proximidades estava martelando um prego na parede: toc-
toc-toc-toc. Uma batida seca e constante. A parede parecia
ser extremamente maciça, e o prego, resistente. “Quem
estaria batendo um prego na parede numa hora dessas?”,
Tengo achou estranho e olhou novamente ao redor, mas não
encontrou nenhuma parede sendo martelada. Somente um
tempo depois é que ele percebeu que esse barulho
desagradável eram as batidas de seu coração, que,
estimulado pela adrenalina, bombeava rapidamente uma
grande quantidade de sangue pelo interior de seu corpo.18

 
  71  

Dia 5 – Todas as manhãs depois do café da manhã com


uma lupa na mão e meu Systema naturae embaixo do braço,
ia visitar o cantão da ilha, que para isso dividira em
pequenos quadrados na intenção de percorrer um depois do
outro em cada estação. O exercício e o bom humor dele
indissociável tornavam o descanso do almoço muito
agradável; porém, quando este se prolongava demais e o
bom tempo convidava, não podia esperar tanto e, com todos
ainda à mesa, me esquivava e pegava sozinho um barco que
conduzia para o meio do lago quando a água estava calma;
ali, me estendendo ao comprido dentro dele com os olhos
voltados para o céu, me deixava ir e derivar lentamente ao
sabor das águas, às vezes por várias horas, mergulhado em
mil devaneios confusos, mas deliciosos, que sem terem algum
objeto bem-determinado ou constante não deixavam de ser,
na minha opinião, cem vezes preferíveis a tudo o que
encontrara de mais doce nos chamados prazeres da vida.

A caminhada como treinamento físico é uma atividade


aeróbica, atua no sistema cardiorrespiratório e vascular e no
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

metabolismo do corpo. Faz o oxigênio queimar gordura para


gerar energia aos músculos. Mas só após 20 minutos de
atividade esse processo se inicia. Deve ser realizada, pelo
menos, três vezes na semana e deve manter um ritmo
acelerado. A caminhada como treinamento não é O primeiro livro sobre
a ginástica, escrito no
relaxamento, não é uma distração do corpo. Ela regula os século XVI, rodou a

batimentos cardíacos, treina o coração a manter uma Europa até o século


XVII, difundindo os
frequência sem variações bruscas mesmo em situações- efeitos benéficos da
evacuação.
limite. Uma frequência cardíaca entre 70 e 90%, na Mercurialis, seu autor,
dizia que o exercício
caminhada, faz com o que corpo queime gordura de forma aumentaria o calor e a
mais eficiente. Acima, o corpo passa a trabalhar fricção das diferentes
partes do corpo,
anaerobicamente. Interrompe a circulação de oxigênio no provocando firmeza
da carne e menor
sangue e passa a produzir ácido láctico. Envolve um esforço sensibilidade à dor.
intenso de músculos específicos e, por isso, tem uma curta  
duração.
O treinamento físico, aeróbico ou anaeróbico, não
permite longas pausas durante o processo. E pede a repetição
quase diária. A caminhada trabalha uma grande quantidade
de músculos sem desgastá-los tanto quanto a corrida. O
impacto no solo é mais brando. Articulações e ossos duram
mais.
Em 1997, Francis Alÿs caminhou pelas ruas da Cidade
do México, empurrando um bloco de gelo. O bloco deixava
um rastro atrás dele que desaparecia após alguns minutos.
Uma escrita aparecia e desaparecia no tempo ininterrupto do
ciclo da água: o gelo se torna líquido e, logo, evapora.
Contato, fricção, troca de peso entre um corpo e um bloco de
gelo. Na ação de empurrar com os braços o bloco, a energia
se desloca do centro do corpo para as extremidades. Braços

 
  72  

empurram e contactam a pedra, pernas caminham e


O meio-passo desloca,
pressionam o chão. O esforço é do corpo todo, que tensiona mas, para o corpo
músculos no contato com o objeto que se movimenta. A acostumado com o passo
completo, meio-passo é
pedra se esfregava no chão. O atrito entre ela e os desníveis controle e impedimento.
Trata-se de uma perna
do caminho gerava sonoridade. A duração da caminhada é a colocar-se ao lado da

duração do derretimento de todo o bloco, 6 horas e 32 outra ao invés de cruzá-


la. O meio-passo,
minutos. Paradox of Praxis 1 (Sometimes making something combinado a outros
movimentos, é muito
leads to nothing) experimenta um esforço que não engendra usado na dança.

resultados práticos. O que resta é uma pequena poça d’água


no chão que evapora em minutos. O esforço é um gasto de
energia do corpo, de açúcar, de gordura. Caminhar,
empurrando um bloco de gelo pelas ruas de uma cidade, uma
atividade aeróbica. Uma analogia aos esforços dos
transeuntes mexicanos pela melhoria de suas condições.

Dia 6 – Uma de minhas navegações mais frequentes


era ir da grande à pequena ilha, ali desembarcar e passar a
tarde fazendo caminhadas bastante circunscritas em meio a
salgueiros, amieiros, persicárias e arbustos de todas as
espécies, ou me estabelecendo no cume de uma colina
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

arenosa coberta de grama, serpão, flores e inclusive


esparzeta e trevos, que é provável tenham sido semeados há
muito tempo. Quando o lago agitado não permitia a
navegação, passava minha tarde percorrendo a ilha e
herborizando de alto a baixo. Tudo na terra está em um fluxo
contínuo: nada mantém uma forma constante e fixa, e nossas
afeições, que se apegam às coisas externas, necessariamente
passam e mudam com elas. Sempre à frente ou atrás de nós,
elas lembram o passado que não é mais ou preveem o futuro
que muitas vezes não deve acontecer: não existe nada sólido
a que o coração possa se apegar.

Caminhar é uma experiência antropológica. É se


perceber no mundo, no lugar que ocupa momentaneamente
enquanto passa, na relação com o espaço físico e com o
outro, na interferência do homem nesse espaço. É deixar que
o pensamento seja afetado pelo entorno físico. Uma geografia
mental se processa. Por ser uma relação do corpo com o
espaço daquele instante, a caminhada promove revelações e é
sempre renovada. Porque mesmo que se repita sempre o
mesmo caminho, o movimento do corpo, do espaço, dos
outros corpos, não cessa. Ainda que se reconheça todo o
trajeto, caminhar traz em si o impulso do acontecimento.
Thoreau andava. Se precisasse ir a outra cidade, não
pegava o trem. Para ele, era uma vantagem. Ganhava o tempo
em que não trabalhou, ganhava o dinheiro que não gastou no
trem, ganhava a paisagem, a aquisição de conhecimento do
andarilho. Para ele, caminhar em direção ao oeste era o mais

 
  73  

natural. O homem desde o início tendeu seguir a direção Animais se deslocam por
longas distâncias
oeste. Para o leste, vamos de encontro às obras de arte, à periodicamente. As

literatura, à nossa origem. Para o oeste, seguimos rumo ao migrações são sazonais,
reprodutivas ou ocorrem
futuro, à aventura do desconhecido. A rotação da Terra é no devido a condições
alimentares. Suspeita-se
sentido anti-horário, oeste-leste. No Japão, alguns acreditam que muitos animais
conseguem retornar,
que dorme-se melhor com a cabeça voltada para o leste, porque possuem um
acompanhando o sentido de rotação da Terra. O Brasil está a sistema de navegação
baseado no campo
oeste. Sua mestiçagem é cruzada, múltipla, complexa. O magnético da Terra. As
ressonâncias de
processo de conhecimento deve ser mestiço. Adquirir outra Schumann serviriam de
língua, adquirir outra ciência, é adquirir outro corpo. Saber é orientação aos animais.
Há relatos de que o
também colocar a cabeça em uma atmosfera que os pés corpo humano adoece na
ausência das mesmas.
desconhecem.

Tengo caminhou pelo bairro de Kôenji. O dia estava


escurecendo e soprava um vento gelado, mas isso não o
incomodava. Gostava de pensar enquanto caminhava. E
então se sentar diante da mesa e dar forma a essas ideias.
Fazia parte de sua rotina. Por isso, não se importava em
caminhar na chuva ou no vento. Chegou em frente ao bar
Muguiatama. Como não lhe ocorreu nada para fazer,
resolveu entrar e pediu um chope Carlsberg. O bar tinha
acabado de abrir, e não havia nenhum cliente. Tengo parou
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

de pensar, esvaziou a mente e tomou tranquilamente a sua


bebida.19

Caminhar não é apenas locomoção, é aventurar-se pela


natureza, dispor-se a se perder, contemplar o que nela há. Na
época de Thoreau, quando ainda havia muitas áreas naturais,
ele considerava que homem que apenas se locomove pelas
estradas é como máquina, é como animal domesticado que
responde ao primeiro chamado, paralisa-se.
Thoreau gostaria que os casacos feitos de peles de
animais cheirassem à relva e não à biblioteca. Esta aglomera
papeis e poeira, aglomera saberes, mas não contém a única
forma de conhecimento. O conhecimento também se
apreende do lado de fora das construções humanas. Thoreau
lia muitos livros. Livros são também formas de caminhar.
Caminha-se por espaços desconhecidos, criados. Nossa
imaginação nos permite percorrer lugares distantes mesmo
com o corpo sentado.

Que é preciso frequentar as bibliotecas, é certo; convém,


com certeza, tornar-se erudito. Estude, trabalhe, sempre
ficará alguma coisa. E depois? Para que exista um depois,
quero dizer, algum futuro que ultrapasse a cópia, saia das
bibliotecas e corra para o ar puro; se continuar lá dentro,
nunca escreverá nada além de livros feitos de livros. Tal
saber, excelente, contribui para a instrução, mas o objetivo
desta é alguma coisa que não está nela mesma. Do lado de
fora você tem outra chance.20

 
  74  

Dia 7 – Todas as minhas caminhadas botânicas, as


diversas impressões da localização dos objetos que me
chamaram a atenção, as ideias que me provocaram, os
incidentes a eles ligados, tudo isso me deixou impressões que
se renovam quando vejo plantas herborizadas nesses mesmos
locais. É a cadeia de ideias acessórias que me liga à
botânica. Ela traz e lembra à minha imaginação todas as
ideias que mais a deleitam. A botânica é o estudo para um
ocioso e preguiçoso solitário; uma ponteira e uma lupa são
os únicos aparatos de que precisa para observá-las. O
prazer de entrar em um deserto para procurar novas plantas
encobre o de escapar a meus perseguidores e, chegado ao
local onde não vejo sinal dos homens, respiro mais à
vontade, como em um refúgio em que seus ódios não mais me
persigam.

A amplidão da natureza contrasta com a cultura das


cidades. O homem não precisa abrir mão dela para viver em
sociedade. A caminhada, não com a pretensão de uma
atividade física, não como método de treinamento que vise
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

um melhor desempenho do corpo, a caminhada como um


vagueio por espaços abertos e naturais é também uma
maneira de manter o corpo saudável. Isentar-se do mundo,
das obrigações, dos laços sociais, repara o corpo dos
desgastes diários, retira o homem de um ciclo repetitivo de
inquietações e comportamento. Caminhar pode ser não se
concentrar em si e ainda assim estar de corpo inteiro na ação,
no espaço que percorre.
A caminhada acumula poeira no corpo, cria uma crosta. A gravidade zero não
A crosta é aquisição. A experiência se relaciona com o existe. Segundo Einstein,
a estrutura do espaço é
pensamento e com o acúmulo de poeira no corpo. Em alguma estabelecida pela força
de gravidade que os
medida, a crosta pode ser removida. Também nos corpos exercem uns
conhecemos na experiência do corpo com a natureza, com o sobre os outros. No
espaço sideral, há a
rústico, com o estado mais selvagem dos instintos. No corpo, microgravidade. A
sensação de ausência de
há hábito e vigor naturais. Até nos animais domesticados peso quando se está
resta algum instinto inerente à pele, pronto a ser ativado. Os numa nave em órbita da
Terra é apenas uma
perigos naturais alertam o corpo e fazem com que tome ações sensação. Parecida com
aquela que se tem num
imediatas. O pensamento se realiza na ação imediata do elevador. Quando as
corpo posto em seu limite. O conhecimento é sensível. Há forças N e P não se
anulam, tem-se a
diferentes tipos de conhecimento. Aqueles adquiridos nos sensação de leveza ou de
achatamento. Se o cabo
livros e nas relações sociais é somente um deles. do elevador arrebenta, a
Caminhar na natureza é retirar-se das convenções aceleração e a gravidade
tornam-se iguais, de
impostas ao corpo, uma aventura de seus próprios gestos. A modo que tudo no
elevador se movimenta.
natureza exige outra disposição. O ciclo também repetitivo A força N cai para zero e

dela impõe outra perspectiva, observação, o estabelecimento a pessoa sente que está
flutuando. Se ela soltar
de um outro centro de gravidade, porque pisa-se outro chão. um objeto dentro do
elevador também o verá
Aquele que conecta os pensamentos à prova física. Alterar o flutuar. No entanto, uma

centro de gravidade permite rever sua posição no mundo, pessoa do lado de fora
fixa num ponto da Terra,
colocar credibilidade nos recursos do corpo. vê tudo em queda livre.

 
  75  

Tengo suspirou. Não tinha mais nenhuma pergunta a fazer Em 1890, Tchekhov
decide conhecer as Ilhas
para tentar esclarecer o que havia acontecido na noite Sacalinas, no leste da
anterior. O caminho estreito e incerto terminava ali e, dali Rússia, local onde se
encontra uma colônia
para a frente, só havia uma densa floresta. Ele firmou os pés penitenciária, para um
no chão, olhou ao redor e mirou o céu. Aquele era o estudo sobre o sistema
prisional. Lê informações
problema de conversar com Fukaeri. Todos os caminhos de diversos exploradores
terminavam infalivelmente no mesmo ponto. Os guiliaks e faz seu próprio diário
de bordo. Demorou
continuariam a jornada mesmo sem existir o caminho. Mas quase 12 semanas para
para Tengo era impossível.21 chegar à ilha. Suas notas
trazem descrições da
flora e da fauna, dos
tipos de solo, dos
hábitos dos nativos, da
Dia 8 – Lembro-me perfeitamente que, durante meus relação serviçal entre
colonos e presos, das
breves períodos de prosperidade, essas mesmas caminhadas péssimas condições de
higiene e dos problemas
solitárias que hoje me são tão deliciosas me eram insípidas e do sistema prisional
entediantes. Quando estava na casa de alguém no campo, a russo. Seu plano de
viagem tinha a duração
necessidade de me exercitar e de respirar o ar livre me fazia de três meses.

muitas vezes sair sozinho e, me escapando como um ladrão,


ia caminhar no parque ou no campo; porém, longe de
encontrar a tranquilidade feliz que experimento hoje, para lá
levava a agitação das vãs ideias que haviam me ocupado no
salão; a lembrança da companhia que lá deixara me seguia
na solidão; os vapores desbotavam a meus olhos o frescor
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

dos bosquedos e perturbavam a paz do retiro. Por mais que


fugisse para dentro dos bosques, uma multidão inoportuna
me seguia por todos os lados e encobria toda a natureza.

A caminhada pode ser um momento de estar só.


Rousseau se mudou para o campo para fugir dos homens.
Não queria mais viver com eles. Acreditou até que achara um
local no meio do deserto em que ninguém estivera antes.
Sentiu-se orgulhoso, um viajante que descobre uma ilha
desconhecida. Logo, ouviu sons humanos e descobriu uma
área ocupada a poucos metros dali. Rousseau riu de si.
Thoreau não se contentava em caminhar. Era preciso
fazê-lo pelos bosques, lagos e florestas. A estrada é criação
humana, reflete o homem, e leva às cidades. Na cidade,
confronta-se com a lei, a ordem, a igreja, o Estado. Thoreau
prefere se perder na floresta e passar dias sem cruzar com
homem nenhum.
A caminhada na cidade acontece na multidão. Pode-se
estar só ao mesmo tempo que cercado por toda gente. Em
Caminhando, de Lygia Clark, não há autoria. Importa o ato e
o ato acontece num espaço-tempo, num momento único. Não
existe antes e depois, direita e esquerda, frente e verso, dentro
e fora. Apenas a escolha do caminho percorrido. Só importa o
tempo e espaço de expressão do autor-espectador.
Caminhando é dissolver-se no coletivo. A realidade torna-se
uma totalidade revelada durante aquele tempo. Há uma
totalidade mesmo na singularidade, na vida privada que
separa os corpos. Tempo e espaço envolvem todos os corpos.

 
  76  

Sugerem ritmo. O ritmo é movimento. Uma pulsação num A fita de Moebius é um


espaço topológico. Foi
intervalo de tempo. Tudo no mundo tem ritmo e a percepção descoberta em 1858,

do ritmo é comum aos corpos. Nos passos da multidão, um quando o matemático,


Auguste Ferdinand
mesmo ritmo pode ser compartilhado temporariamente. Na Möbius, estudava a
teoria dos poliedros. A
proposição de Lygia Clark, o corpo não se transforma em fita tem uma única
superfície não
objeto, em arte. A proposição é criação de corpo. orientável. Ao voltar ao
Caminhando consiste em pegar uma faixa de papel branca, ponto de origem, está-se
em uma imagem refletida
torcê-la e unir as pontas como a fita de Moebius. Depois, da superfície. Quando
cortada ao longo de seu
enfie uma tesoura num ponto da fita e corte-a no sentido do comprimento gera anéis
comprimento. Após a primeira volta, basta escolher a lateral paradrômicos.

direita ou esquerda da primeira linha ao invés de cair na parte


já cortada. Continua-se percorrendo a fita de Moebius com a
tesoura até que o caminho seja estreito demais para continuar.
O fim do trajeto não é uma conclusão, é um impedimento.
Porque muito estreito, porque muito entrelaçado. Não porque
atingiu-se um ponto final. A fita de Moebius não tem fim.
Não faz nó e sim uma dobra. Mais que uma dobra, uma
articulação.

Perplexa sinto a multidão nos metrôs, na cadência dos


passos somados, no cruzamento de corpos que quase se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

tocam mas que se afastam, cada um tomando rumos secretos


de existência privada. Falo e ninguém entende. Não consigo
comunicar essa mudança de conceito que para mim era tão
profunda e radical dividindo a arte entre “o que já era” e o
que poderia ser. Sinto profundamente a queda de valores de
palavras que deixaram de ter significado, como o “gênio” e a
“obra”, o individualismo. Penso e vivo a morte. Sinto a
multidão que cria em cima do meu corpo, minha boca tem
gosto de terra.22

Não há molduras. Não há limites. Nem no espaço da


arte nem na própria escrita. Trata-se de experiência que pode
se dar na relação com elementos naturais, no amor, nos
gestos, na presença do papel. O corpo coletivo é uma rede de
pessoas dispostas a colocar o fora dentro e o dentro fora. E
ainda assim cada pessoa segue o seu caminho. A
temporalidade de Caminhando é o ato. E o ato é a soma de
uma sucessão de escolhas.

Dia 9 – Senti ao caminhar que alguma coisa faltava,


uma necessidade crescente me trazia de volta sobre meus
passos. Pensei ver em sua ação sem motivo aparente uma
espécie de inspiração que não devia ser desdenhada. E me
restou desse encontro apenas uma lembrança bastante
intensa, mesclada de doçura e tristeza, como todas as
emoções que ainda penetram meu coração, que uma reação
dolorosa sempre acaba apertando. Tudo na terra está em um
fluxo contínuo que não permite a nada assumir uma forma
constante. Tudo muda à nossa volta. Nós mesmos mudamos,

 
  77  

e ninguém pode garantir que amará amanhã aquilo que ama


hoje. Assim, todos os nossos projetos de felicidade nessa vida
são ilusões. Aproveitemos o contentamento do espírito
quando ele ocorre; evitemos afastá-lo por erro nosso, mas
não façamos projetos para acorrentá-lo, pois tais projetos
são puras tolices.

Antigamente, peregrinação era andar por terras


distantes com intuito religioso. Na Idade Média, as pessoas
que vagueavam, pedindo ajuda para ir à Terra Santa, ficaram
conhecidas como sauntering (Sainte Terre – Sainte Terrer –
Saunterer). A peregrinação era para se depurar dos pecados,
preparar-se para o paraíso. Morrer na estrada era sinal de que
a alma fora salva. Hoje, a fé não necessariamente está num
lugar físico, a longa caminhada pode ser só uma busca
interior. O significado de peregrinação e o sauntering não
têm um vínculo com a religião.
A peregrinação é um desenraizamento, um abandono, é A toesa era o sistema de
a busca por um outro olhar, é embrenhar-se por terras medida em vigor na
França até o final do
longínquas, é dispor um tempo contado pela distância século XVIII. Foi
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

padronizada em uma
percorrida cada dia, é uma transformação interior, é a criação barra de ferro com dois
do tempo, é abrir-se ao desvio, é perder alguns pré-requisitos. pinos nas extremidades
colocada na parede do
Institui-se laços em movimento, laços que se movimentam. Grand Chatelet. Cada
toesa é equivalente a 6
Relações que duram o breve momento da passagem, relações pés, quase dois metros.

que acompanham a caminhada. Relações que não se fixam no Depois, veio o metro, a
unidade de medida que
espaço e sim na memória e na expectativa de um reencontro. seria a décima milésima
parte de uma quarto do
Paulo Nazareth caminhou do Brasil aos Estados meridiano terrestre. Os

Unidos. Não uma linha reta, não definindo o norte como franceses Jean Baptiste
Delambre e Pierre
ponto fixo. Algumas vezes eram três passos ao norte e um ao Méchain mediram o
meridiano. Hoje, o metro
sul. Um ir e vir acordado pelas circunstâncias. Levou um ano é definido pelo
comprimento do trajeto
em sua peregrinação, Notícias de América. Uma residência que a luz percorre no
móvel, uma pesquisa de campo, uma arte de conduta. Era vácuo, durante o
intervalo de tempo de
uma coleta de hábitos, modos de vida, coleta de identidades. 1/299.792.458 do
segundo.
Suas próprias identidades. Paulo Nazareth viu-se confundido
com negro, brasileiro, índio, cubano, marroquino. “As
identidades balançam, sua localização se perde nas
vizinhanças imprecisas, a contradição hesita mesmo ante o
confuso.” 23 Além do acúmulo de imagens, memórias,
histórias, contatos, narrativas, acumulou poeira nos pés.
Paulo Nazareth fez todo o percurso com havaianas. Na
fronteira da Guatemala com México, os pés são patas
rachadas. Pela caminhada, pelo trabalho, pelo desgaste diário.
Os pés sujos são uma metáfora das migrações, do seu
percurso, de sua percepção de que é um Latino Americano ou
apenas um Americano. Os pés sem água, em contato direto e
ininterrupto com a poeira, formam uma crosta em constante
modificação. Parte da poeira se renova. Os pés se
transformam assim como o seu portador. As unhas foram se
perdendo pelo caminho. Unhas são formadas por células

 
  78  

mortas. Elas quebram e não sentimos dor. Os pés foram


lavados nas águas do Rio Hudson. Ele levou a poeira de toda
a América para os Estados Unidos.

Dia 10 – Uma de minhas caminhadas preferidas era ao


redor da Escola Militar. Quando por acaso encontro alguém
que tenha escapado às instruções comuns, ou que não
reconhecendo minha figura não demonstre nenhuma
aversão, a honesta saudação desse único me recompensa
pelo comportamento rebarbativo dos demais. Cedo a todos
os impulsos existentes; todo choque provoca em mim um
movimento intenso e breve; assim que cessa o choque, o
movimento cessa, e nada que passou pode se prolongar em
mim. Todos os acontecimentos do acaso, todas as máquinas
da humanidade têm pouco poder sobre um homem assim
constituído.24

Para Thoreau, a caminhada não era uma linha reta, mas Ao andar na diagonal
experiencia-se um modo
antes uma órbita, uma espiral, que sempre tendia para o de andar livre na ocasião
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

em que as pernas estão


oeste. O espaço era todo feito de curvas. E se prestássemos abertas, e um modo de
atenção a um magnetismo sutil da natureza, saberíamos o andar obstruído, quando
uma perna cruza na
caminho a seguir. Não é indiferente o caminho, não deve ser frente ou atrás da outra.
Os passos ocorrem na
qualquer um. Uma direção clara de pensamento, a diagonal, mas os quadris
compreensão de seus movimentos no espaço, define a devem manter a posição
original para que a
escolha do caminho certo. Há um caminho certo. frente do corpo não se
altere.
Na caminhada, ouvimos o mundo. Ouvimos pela pele,
pelos pés, pelos músculos, tendões, nervos. O equilíbrio do
caminhar, se tem um centro muito específico localizado nos
ouvidos, também está expandido para as periferias. O corpo
caminha entre os ruídos e ritmos, ondas sonoras. O cérebro é
analisado pela ciência por meio de suas ondas reproduzidas
num eletroencefalograma. Se emergimos nas ondas,
alteramos a forma do movimento, porque foi alterado o
impulso inicial. O esforço que se coloca ao iniciar um
movimento, o esforço do ponto de origem, de uma alavanca,
o esforço gerado no apoio e pressão de outro corpo,
contrapeso, pode ser reorganizado no corpo quando se insere
numa onda preexistente. A onda é espiralada. Os movimentos
físicos mudaram, alteraram os esportes e os costumes.
Surfistas criam novas possibilidades de surfe, mas continuam
condicionados à volubilidade da onda. As manobras são
poucas. Elas se diferem na onda. Nenhum surfista pega onda
do mesmo jeito. Todos conhecem os perigos do mar. A
filosofia é feita de movimentos. De um ir e vir. Não se trata
de seguir uma linha reta, de uma reflexão sobre. A filosofia
cria conceitos capazes de movimentos intelectuais. Trata-se
de um chegar entre. Conceitos são um composto de linhas,

 
  79  

de curvas, uma região de um plano estabelecido numa lógica


da multiplicidade.

− Não precisa se mover – disse Fukaeri.


− Eu preciso me mover; este é o meu corpo – disse Tengo.
Fukaeri não fez nenhum comentário.
Tengo não tinha certeza se o que estava dizendo provocava
vibrações no ar para torná-lo audível. Ele não sentia os
músculos em torno da boca articulando palavras. A
princípio, parecia estar conseguindo transmitir o que queria
para Fukaeri, mas a comunicação entre os dois era incerta,
como um telefonema de longa distância com sinais de
interferência. Fukaeri deixava de ouvir o que julgava
desnecessário. Tengo, no entanto, não conseguia fazer isso.25

Antes de dizer, o filósofo aprende tudo, as ciências, as


habilidades, os trabalhos, as línguas, as palavras, as artes. “A
filosofia começa depois dos saberes e das literaturas”26. O
sentido da língua total, de seu uso até o esgotamento de suas
capacidades, acontece no movimento. É caminhando, é no
fazer, que a convocamos inteira e pessoal, esgarçando suas
possibilidades, experimentando-a, testando-a, fazendo-a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

existir. O filósofo coloca a língua num “falso equilíbrio”.


Estilo. Adquirido no itinerário, no risco, o estilo deve refletir
a natureza do perigo. A biblioteca, o aprendizado de
conteúdos e métodos de outros, não basta para alcançar seu
próprio estilo. Daí, o estilo de Michel Serres ser construído
numa linguagem simples, usual. A filosofia, para ele, não
dispunha de operadores que permitissem o seu método. Ele
criou uma nova língua.

O primeiro passo de qualquer aprendizado acontece no Mestiço incluso, uma


vez que aqui alguma
movimento. Uma espécie de caminhada sem retorno, coisa termina e não

abandono da origem. Não como esquecimento, mas como termina.

não pertencimento. Para partir, é preciso lançar-se sem


amarras, lançar-se à errância, conduzir-se para outro lugar.
Além de si e do caminho, há um lugar mestiço, de um
terceiro, um outro, estranho, misturado.
A mistura de cores, formas, substâncias faz chegar a
uma terceira coisa nova, mas não parte de uma mescla de
formas puras. A mistura produz diferença. A filosofia dos
corpos misturados une parábolas, história, ciências e o
próprio corpo que constrói o lugar, o mundo, com as mãos,
com a própria carne. A filosofia deve vir da mistura. Noção
que o corpo sabe e pratica.

 
  80  

A ciência fala de órgãos, de funções, de células e de


moléculas, para finalmente confessar: faz tempo não se fala
mais de vida nos laboratórios; mas ela nunca se refere à
carne que, precisamente, designa, num dado lugar do corpo,
aqui e agora, a mistura de músculos e de sangue, de pele e
de pêlos, de ossos, de nervos e de funções diversas, que
mescla aquilo que o saber pertinente analisa.27

Na Grécia antiga, descobriu-se a demonstração


apagônica em geometria. Apagogia é a demonstração de uma Na Grécia, o vinho era
misturado à água. A
proposição pelo absurdo da contrária. Ao medir a diagonal de quantidade de água
misturada – sempre a
um quadrado de lado igual a um, o comprimento não era um água era adicionada
no krater e não o
número par nem ímpar. A diagonal existia, mas era contrário – indicava o
indivizível. Foi assim que surgiu a álgebra. Diz Serres que a grau da embriaguez.
As porções variavam
álgebra surgiu de um mestiço excluído. Hermes, o entre duas medidas
para uma, cinco para
mensageiro, circula esse espaço entre, distribuindo as duas, três para uma.
informações. Hermes era mediador entre os deuses e os Medidas iguais de
água e vinho faziam
homens. Não se punha nulo no trajeto. Ele transformava um vinho forte.
Apenas Dioniso podia
“toda a paisagem a cada informação, meio-lugar se fazendo beber o vinho puro,
meio: animal e deus odiosos e indispensáveis, anjos bons e pois não seria afetado
por ele. Homens
maus juntos, mediadores, operadores de mudança.” 28 No podiam ficar violentos
e até enlouquecer.
Antigo Regime, havia o terceiro estado, o dos excluídos, que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

não pertenciam à nobreza e ao clero. Depois, veio o Terceiro


Mundo. Na língua, a terceira pessoa é sempre aquela de quem
se fala, mas que não está presente ou está distante, ele/ ela,
aquele/ aquela, aquilo. São os mestiços.
A mestiçagem está presente nas obras de muitos
autores que dominaram a ciência de seu tempo, porque
utilizaram diferentes operadores. Serres tem formação em
matemática e física. Depois, ingressou nas ciências humanas.
Serres tinha pressa em percorrer diferentes saberes para, com
eles, criar algo original. A matemática ensinou o pensamento
rápido, porque salta os intermediários, porque se utiliza de
atalhos. A matemática soluciona. O deslocamento fugaz de
Serres, como uma forma de método para a sua criação
filosófica, veio dali.

Durante o primário e o ginásio, Tengo mergulhou de cabeça


na matemática. O que mais o fascinava era a clareza e o
sentimento de liberdade, coisas imprescindíveis em sua vida.
Mas, ao atingir a puberdade, começou a ter um sentimento
crescente de que aquilo era insuficiente. Enquanto estava no
mundo da matemática, nada de errado acontecia. Tudo era
conforme o previsto. Nada poderia obstruir-lhe o caminho.
No entanto, ao se distanciar desse mundo e retornar ao
mundo real – não podia deixar de voltar –, Tengo novamente
se via dentro dessa lamentável jaula de sempre.29

Esse mestiço sempre produz um efeito de


estranhamento já que, como Hermes, tem que narrar
acontecimentos. E na exposição da mensagem há o estranho e
o obscuro. A mensagem não é isenta de um autor, de uma voz

 
  81  

que se coloca. O mestiço opera em saltos, pois lida com


espaços entre que não marcam o meio dividido de dois, uma
medida exata. O entre é variável e fractal. Essa filosofia
modifica a paisagem, quando aproxima o que, a princípio, é
díspar. Uma filosofia resultante da relação entre diferentes
ciências, diferentes paisagens. A matemática e a literatura
compondo uma filosofia outra, nova, “relevo atormentado e
caótico”, que não cita o passado e seu ocupantes, e sim os
coloca em relação às coisas do presente. A filosofia se dirige
ao futuro. Ela inventa.

(Bruno Latour) Compreendo agora o que o Sr. diz em Le


Tiers-instruit: “Ali onde a matemática não chega, que o mito
vá, ali onde o mito não deseja ir, que o gascão vá.”
(Michel Serres) “Ali onde o francês não pode ir, que o
gascão vá.” É uma citação dos Ensaios de Montaigne.
Devemos pôr nota de rodapé?30

A relação acontece entre limites externos incorpóreos e


Em janeiro de 2015,
movimentos internos dos órgãos do corpo. Relações são Tommy Caldwell e Kevin
modos de deslocamento. A ciência, um modo de circulação. Jorgeson ficaram 19 dias
na parede Dawn Wall,
A filosofia deve explorar a relação como um vetor, uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

de 914 m, uma das faces


da formação rochosa El
direção, uma seta do tempo, um índice de movimento. As Capitan, no vale
maneiras de se deslocar variam. Muitas vezes são saltos. Ou Yosemite, na Califórnia.
As cordas na cintura
passagens apertadas. Serres foi marinheiro. Em meio a um serviam apenas para
segurança. A parede
incêndio em um navio está trancado num compartimento. O considerada a mais
treinamento, antes, ensina o corpo a agir para não ceder ao desafiadora do mundo
foi escalada usando
pânico. Depois, a abertura de cobre que serve de passagem é apenas mãos e pés como
impulso.
estreita. Não é mais um treinamento. Passa a cabeça e os
ombros, fica preso. Os braços não podem empurrar, estão
colados no corpo. Um solavanco do navio nas águas ajuda a
passar o tronco. Corpo dividido. Parte fora exposta aos
ventos e águas geladas do inverno, parte dentro prestes a se
queimar no fogo. As pernas não têm apoio para um impulso.
Finalmente, consegue passar para fora em outro solavanco do
navio. O corpo reage a situações extremas sem que o
pensamento formule um método. O corpo reinvindica
passagem. “Existe um lugar quase pontual que o corpo inteiro
assinala na experiência espacial da passagem.” 31 Nessa
passagem, surge o mestiço instruído. O corpo acha a saída, a
escrita inventa caminhos e não volta atrás. Mas Serres, às
vezes volta. A sucessão pouco comum de acontecimentos que
o levaram à sua escrita fizeram-no solitário. Bruno Latour diz
que o texto de Serres não é compreendido como filosofia
pelos críticos. Não há referências (notas de rodapé, citações)
e, por relacionar diferentes saberes, assemelha-se à literatura.
As críticas tornaram Serres avesso ao debate. Para ele, o
debate só opõe ideias e a oposição não pode ser considerada
uma ideia nova. Após cinco entrevistas para explicar o seu
método filosófico, ele percebe que a discussão pode dar a

 
  82  

clareza que vaguear sozinho no deserto, em alguns


momentos, não consegue dar.

Estar preparado para distender o corpo em qualquer Descontraído, livre, o

direção. Uma rede de neurônios ramificada, estrelada, em corpo faz a mímica do


particípio futuro.
todos os sentidos ao mesmo tempo. Isto significa
sensibilidade. Pode ser a sensibilidade da pele do meu pé ou
da minha mão. Este é um estado de mudança, alongar a
capacidade em todos os sentidos. A sensibilidade é um estado
alerta, vibrante, que espreita e espia, que pode vir a ser a
qualquer movimento.
Os exercícios físicos põem o corpo na sensibilidade
aguçada que o possibilita se envolver com o mundo. O corpo
exigido fisicamente expande suas sensações para atender às
exigências que a atividade o impõe. O alpinista usa todos os
seus membros para se sustentar, para se locomover num outro
modo de superfície. Ele está exposto. As mãos e os pés
apoiados na superfície da montanha se organizam de outra
maneira. Estabelece-se um outro entrelaçamento de linhas de
força, outros impulsos internos, outras origens de esforços. O
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

corpo não está mais posto numa linha aparentemente retilínea


como quando em pé. Como um animal, macaco, aranha,
estrela-do-mar, o corpo humano amplia a utilidade de braços
e pernas, cruza as linhas de forças que perpassam essas
extremidades. O dorso protege. Há uma nova experiência de
flexibilidade, de adaptação, o corpo se conhece nesta
exposição ao mundo.

Não desejo ocupar minhas mãos mais do que o necessário.


Minha cabeça é mãos e pés. Sinto que minhas melhores
faculdades aí se concentram. O instinto me diz que a cabeça
é um órgão para escavação, feito o focinho e as patas de
certos bichos, e com a qual gostaria de explorar e cavar meu
caminho através dos morros. Penso que o filão mais rico está
por aí nas redondezas, e assim avalio por meio da varinha de
condão e dos finos eflúvios que se levantam. Aqui
começarei a minerar.32

No avião, quando olhamos para baixo, vemos uma


ampla imagem da paisagem, temos uma visão panorâmica. O
corpo está parado, imóvel. Os olhos veem. Na escalada,
descobrimos o espaço. Quando o corpo está paralelo à rocha,
ele todo se coloca em referência a ela. Mãos e pés tocam,
tórax, ventre, pernas, ficam paralelos, sistema digestivo,
simpático, nervoso, circulatório, músculos se comprometem.
Surge uma relação de tensionamento, de transferência de
peso, de contato físico. A textura da rocha ganha outras
qualidades. Não pode ser áspera que não se possa agarrar
firmemente, não pode ser dura que não se possa encaixar

 
  83  

partes do corpo. A visão não é mais a distância do sobrevoo,


ela se amplia com a aproximação, espalha-se pelo corpo.
Serres diz que, quando escala, sua visão se aproxima do
tato, seus tecidos e ossos tornam-se mais elásticos, sua pele Em 2002, Erik
Weihenmayer completou
de tão extensível pode recobrir toda a região. O corpo em a escalada dos Sete
Cumes, as montanhas
movimento associa os sentidos e os unifica. A linguagem mais altas do mundo, no
verbal se cala. É preciso que os ouvidos ouçam o equilíbrio. Monte Kosciusko,
Austrália. Tatear as
Variaciones sobre el cuerpo foi dedicado a seus rochas, perceber as
diferenças dos sons à
professores de ginástica, a seus treinadores, a seus guias de medida que o ar se
montanha. Eles o ensinaram a pensar. A criação resulta do rarefaz nas alturas,
sentir o vento, a poeira e
treinamento do corpo. Treinamento não é apenas repetição. É o sol na pele, formas de
experienciar o alpinismo.
feito também de variações flexíveis. No treinamento, cada Nas paredes de gelo, ele
órgão está envolvido no esforço. Colocar-se em risco faz utilizava uma picareta
para se fixar. O cabo era
conhecer o corpo. Colocar-se em risco exige encontrar usado para tocar o gelo
e, pelas vibrações,
maneiras de sair dele. Conhecer-se é ter domínio de si. Não o perceber se a área era

domínio da posse, da supremacia. O domínio do improviso, firme o suficiente para


fincar a picareta. Erik
das espirais, do rolamento. O domínio do movimento. A começou a escalar depois
que perdeu a visão por
percepção da situação como um todo, da multiplicidade, do uma doença

espaço topológico. degenerativa da retina.

O segundo ponto em comum é que os dois, assim que


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

cresceram e começaram a entender as coisas, se esforçaram


em ganhar bolsas de estudo e ficar o mais distante possível
de seus pais. Os dois realmente se destacaram como atletas.
O fato de possuírem um talento nato para os esportes
contribuiu para que conquistassem essa autonomia. Mas, na
situação em que estavam, eles precisavam veementemente se
destacar em alguma coisa. Para eles o único meio possível
para conquistar a própria independência era se destacarem
como atletas e, como estudantes, precisavam tirar boas
notas, de modo a obterem o reconhecimento das pessoas.
Era um passaporte importante para a sobrevivência e a
autoproteção. Eles não pensavam como as demais crianças
de dez anos, e o modo de os dois enfrentarem o mundo era
diferente.33

O ginasta, o alpinista, aqueles comprometidos com o


treinamento exigente do corpo, ao dedicarem um
compromisso total com seu corpo, têm no suor, na tensão, na
flexibilidade, na adaptação uma forma de criação. Porque
uma forma de ascender. Lutam com a gravidade, saltam,
escalam. Deslizam contrariando a pressão da água. Usam o
atrito com bolas, com o chão, para lançar, para adquirir
velocidade. Na corrida de 100 metros, o corredor se prepara
agachado no chão. Usa o apoio da perna de trás como
contrapeso para gerar um impulso inicial explosivo.
Já a descida, inverte o corpo. Pede para soltar a
musculatura ao invés de travá-la, pede para amolecer, para
não haver solavanco. Para saltar, é preciso saber cair. A
queda pede que o corpo espirale, que role. Caso contrário, o
corpo se quebra com o impacto. Aqui, ainda há movimento

 
  84  

de um corpo presente. A descida, a queda, não é apenas jogar


para o chão. O impacto pode ser fatal.

Suplício especial, a descida prudente requer que se jogue a


retenção contra a gravidade, que se lance intrepidamente
para o vazio que atrai, mas dominando sua lei; para isso, há
que inverter o trabalho dos músculos, colocar as costas no
lugar do rosto, os joelhos em sua prega poplítea, enviar os
olhos para baixo dos dedos do pé, fazer vesguear em
quiasmo todo o corpo, a parte da frente atrás, o alto abaixo e
a esquerda à direita, por último, estender ou despregar,
desdobrar a força ao invés de trazê-la para si, mais em
extensão que em tração.34

Ossos protegem as partes moles do corpo, mas ossos


podem ser elásticos, o coração pode endurecer. O corpo
alterna as qualidades das partes que o estruturam. O impacto,
a violência, a dor, também fazem parte do conhecimento. E
da criação. Animais, por ainda contarem com o seu instinto
apurado, conhecem seus limites, humanos, por perderem seus
instintos, não sabem o que pode o corpo. A dor põe à prova
os limites dele. O treinamento físico do maratonista, que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

exige o bombeamento máximo do coração e o carregamento


excessivo de carga pelos músculos, coloca o corpo próximo
da morte, assim como a doença. O corpo reage, adapta-se.
Corpos deformados, deficientes de uma de suas partes,
reorganizam-se. Alpinistas cegos, maratonistas sem a parte
inferior da perna (transtibial), nadadores sem braços.
O perigo pode ser um estímulo a façanhas e pode ser
fatal. O quanto se expor é uma medida pouco exata, pois
particular, sensível, dos possíveis de seu corpo. Conquista-se
tal medida com o conhecimento do corpo. Ao testá-lo, treiná-
lo.
O alpinista é um homem que sabe caminhar. Reconhece
como a inclinação da rocha afeta o seu corpo, adapta o seu
equilíbrio ágil aos desníveis do solo. Ele não elimina o
desequilíbrio, apenas encontra saídas criativas nele. Os olhos
são colocados nas solas dos pés. Ao mesmo tempo, a visão
atenta pode sentir a textura sem que mãos e pés tenham ainda
tocado. “Segunda inversão: a vista toca, o tato vê.”35

O aprendizado se adquire no corpo a corpo. Nas lutas, A meta da instrução é

boxe, sumô, judô, corpos se colocam frente a frente. Não há o fim da instrução,
quer dizer, a
barreiras físicas entre eles nessas lutas, apenas a roupa. No invenção.

sumô, há o mawashi. A única peça de roupa indicava uma


luta realizada sem armas, parte de um ritual para os deuses. O
sumô utiliza, principalmente, braços e mãos. Os pés driblam
ou dançam pelo ringue. Nos esportes coletivos, há um
intermediário. A bola define as relações. O esporte prepara o
corpo para as possibilidades de ocorrência. O corpo

 
  85  

memoriza gestos e ações. O aprendizado permite que


escolhamos o gesto mais adequado, no que ele tem de
flexível, evitando uma rigidez excessiva. O corpo é formado
por substâncias fluidas em constante movimento.
O aprendizado começa quando saímos de casa, quando
colocamos o pé na rua e alteramos as relações estáveis,
enquadradas, resumidas das paredes da casa, pelas relações
instáveis, ampliadas, espiraladas, diversificadas da
caminhada. Nela, o corpo aprende novos gestos e costumes
que se fundem aos seus próprios hábitos até que não
reconheçamos uma mudança. É como se sempre estivessem
lá. Na Grécia antiga, o escravo que levava o filho nobre ao
local de estudo era chamado de pedagogo. A passagem tinha
o contato com a exclusão, com o estar fora, saberes do
escravo. “Todo aprendizado exige essa viagem com o outro
em direção à alteridade.” 36 Antes de chegar no local, a
criança já não é a mesma. O aprendizado opera um auto-
engendramento. Ambos passam pelo processo. E em algum
momento do caminho, escolhemos os nossos instrutores. Não
dependemos mais da formação inicial.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Ao ouvir de olhos fechados a recitação de Fukaeri, Tengo


sentiu como se estivesse ouvindo um monge cego que,
tradicionalmente, era acompanhado por um instrumento de
corda chamado biwa. Foi então que se deu conta de que as
Narrativas de Heike eram um poema épico de tradição oral.
Normalmente, Fukaeri costumava falar de um jeito
monótono, quase sem acentuação e entonação, mas na hora
de recitar sua voz ganhava intensidade, riqueza e colorido.
Era como se uma entidade se incorporasse nela.37

O aprendizado compreende deixar uma parte de si para Após uma tentativa com
trás. Na saída, há sempre a perda de alguma parte do corpo, o corda, Alex Honnold
decidiu escalar a face
contato com o exterior, a opção por uma via transversal e a noroeste do Half Dome,

passagem pelo lugar mestiço. A instrução nunca termina. O no vale Yosemite, sem
corda. Carregava apenas
mestiço instruído está sempre vagando, sempre desalojado, um saco de magnésio
para passar nas mãos,
pois se expondo ao outro, colocando-se em risco. A instrução ouvia música e usava
uma sapatilha especial
leva a um lugar que ainda não se conhece, faz arriscar todas para escaladas. A 30
as referências anteriores. metros do topo, ele
titubeou, mas não tinha
Não pertencer a um único movimento é uma opção à como voltar. Honnold
levou 2h50min para
não exclusão. É uma forma de desobediência. E Serres diz escalar 650 m.
que as guerras, as instituições, deram a ele o sabor da
desobediência. Porque a maioria é fisicamente mais forte,
mas não promete a justiça e a virtude. Um homem não
precisa fazer tudo, mas não deve fazer uma coisa que
prejudique a si mesmo ou ao outro. Thoreau não pagava os
impostos para demonstrar sua pouca satisfação, o seu não
pertencimento. O coletor de impostos era seu vizinho.
Thoreau foi preso. Explicava sua decisão dizendo que é
preciso agir, os debates podem ficar acumulados nas
prateleiras. É preciso habitar uma terra desocupada, produzir

 
  86  

aquilo que vai consumir imediatamente e manter mala pronta


para a saída. “Assim é toda mudança para melhor, que tal
como o nascimento ou a morte convulsiona o corpo todo.”38
Sai mais barato a penalidade por desobedecer do que
obedecer a qualquer organização que fira a sua liberdade.
Não basta resistir. É preciso inverter o sentido, um
movimento.
Também aí está a filosofia. Ela engloba todos os
saberes. Ela tenta incluir. Filósofos passam a vida a se
preparar. A filosofia é um saber de velhos, anciãos. Antes, é
preciso viajar, ter contato com outras culturas, colocar o
corpo à prova, treiná-lo, treinar-se. Ler enciclopédias,
aprender as ciências exatas, conhecer os mitos, fábulas, ler
literatura. E viver, é preciso viver dentro e fora das
bibliotecas. Ao mesmo tempo, a filosofia não é um saber ou
uma disciplina, ela compõe um mundo. Lida com o tudo e o
nada. A totalidade é contornada pela dúvida, pela solidão,
pela incerteza. É nesse ponto que se inicia a invenção.
As especialidades e o saberes surgem de uma
necessidade do homem de lidar com suas misérias, os crimes,
a morte. São as nossas fragilidades e fraquezas e também as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

nossas potências e alegrias que impulsionam ao


desenvolvimento de nossas capacidades. A relação entre as
ciências exatas e humanas, naturais, é o fator principal para
que não nos tornemos perigosos, ignorantes. O mestiço
instruído não une dois lados opostos, ele cria uma terceira
instrução, em que as ciências exatas não esgotam as
exigências da razão, em que as humanas não dão conta de
todas as especificidades que compõem o homem. Para medir a altura de
Quando já não somos nada mais que as outras coisas no uma pirâmide, Tales de
Mileto focou-se nas
mundo, nada mais que os outros homens, é quando sombras que corpos e

compreendemos. Os outros (coisas, animais, homens) objetos adquirem em


contato com a luz.
frequentam o nosso corpo. A noção de corpo passa pelo Concluiu que os raios
solares chegam
limiar entre o animal e o homem. São as metamorfoses do inclinados. Ele colocou
uma estaca ao lado da
corpo. Corpo aberto “às performances musculares, passionais pirâmide e percebeu
e amorosas que o afastam da neutralidade e da especialização que, num dado momento
do dia, a sombra dela
da ciência.”39 Uma experiência que a língua filosófica e a media o mesmo que seu
comprimento. Tal relação
matemática não podem substituir. serviria também para a
As nossas invenções se baseiam nos movimentos do pirâmide.

corpo e o liberam para outras atividades. De algum modo, o


corpo perde funções à medida que transforma suas
possibilidades em objetos exteriores, em máquinas, em
ferramentas. Inventados, o corpo se libera de funções. Mas
não significa que ele perde, que o vazio é uma falta ou um
vão. É preciso se esvaziar para inventar. Com todos os
objetos exteriores expostos, os corpos se esquecem que já
dominaram essas funções. O aprendizado é um retorno a
esses anteriores, uma inversão. Aprendemos a andar de
bicicleta sem nos dar conta de que os movimentos de nossas
pernas eram circulares e nos faziam deslocar. “O

 
  87  

aprendizado, lento, remonta o caminho das invenções.”40 E


nos apronta para outras novas. A invenção gera invenção.

A instrução só é válida se gera invenção. Apontar erros, O corpo todo inventa.


E o corpo pode quase
opor, prende-se ao mesmo círculo de ideia. Fica-se imóvel. A tudo.

invenção acontece na elipse. Um centro e dois focos, um


espaço ocupado, oscilante, não fixo. A invenção vem da
busca, da procura, do movimento, de se expor. Uma busca
que não pode passar apenas pelos locais habituais, pelo
mesmo conjunto (elementos pertencentes a). É uma luta
contra a rigidez. E o corpo é o suporte da invenção, está
sempre inventando novos equilíbrios instáveis. E é suporte do
trabalho, do saber, da memória, da intuição.

Trata-se de fabricar dinamismos de experiência e


corporalidade, de sustentar o movimento que impulsiona os
deslocamentos, como na geofísica, trata-se de tentar
perceber os movimentos contínuos e lentos que se deslocam
por debaixo e explicam os movimentos súbitos. Perceber é
cavar por debaixo para descobrir, no sentido etimológico, o
regime das placas mais lentas e mais quentes. Tudo conduz
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

ao corpo como epicentro de experiência e percepção. O


corpo sempre é o lugar onde se diversificam os a priori.41

A criação vem do trabalho insistente, necessita saúde,


porque a criação consome o corpo. Serres diz que os grandes
filósofos deveriam ser imaginados como jogadores de rugby.
A invenção não está nas bibliotecas, nas instituições. Está no
corpo que se movimenta, que circula. Nos momentos em que
esse corpo se põe só. Nas montanhas, mesmo quando se
escala com um grupo, os diálogos são reduzidos. Na
caminhada ou na corrida é preciso não falar. A frequência
cardíaca ideal para que a atividade física atinja o seu máximo
desempenho não pode ser alcançada durante a fala. Falar
consome oxigênio e os exercícios aeróbicos precisam desse
oxigênio para gerar energia aos músculos. Nos esportes, o
corpo se expressa de outras maneiras. Primeiro, a experiência
do corpo a corpo, dos contatos, das relações, prepara, instrui.
Depois, é preciso abandonar o que dá segurança e arriscar-se.
A invenção acontece na solidão.
O corpo treina passes e movimentos antes da partida.
Apreende. O corpo lê, se apaixona, faz sexo, escuta, saboreia.
No momento da invenção, o corpo deve esquecer as origens
de tudo que o perpassa. Dominar um movimento não
significa que ele será realizado de forma idêntica todas as
vezes. A repetição do treinamento não torna o corpo
imbatível. O corpo produz máquinas, não se torna uma. Tudo
é passageiro no corpo, os músculos rapidamente perdem a
tonacidade, a gordura rapidamente se acumula. O corpo
morre. O saber, se decorado, pode se fixar na memória por

 
  88  

um intervalo de tempo. Depois desaparece. O movimento


compreendido pelo corpo e o saber incorporado devem se
transformar em algo novo. Desconhecido até que exista. É
preciso esquecer para inventar. A invenção lida com o
imprevisível, o inesperado, o improvável. O artista não sabe o
que vai criar de antemão. Ele inventa um tempo inédito.

No entanto, certo dia, Tengo percebeu que o retorno do


mundo das histórias não era tão frustrante quanto o do
mundo da matemática. Mas por quê? Pensou seriamente e
chegou à seguinte conclusão: na floresta de histórias,
independentemente de elucidar as intrínsecas relações entre
os fatos, não há como obter uma resposta clara. Esse era o
ponto que se distinguia da matemática. A finalidade da
narrativa, em linhas gerais, é desenvolver um problema
colocando-o sob outro parâmetro. Conforme a maneira de se
expressar e o sentido dessa colocação, a própria história é
que vai sugerir algumas respostas possíveis. Era com essas
sugestões que Tengo voltava para o mundo real.42

A invenção, porque parte de uma errância prolongada,


Em 1950, Maurice
de um conhecimento do corpo que foi exposto ao mundo por Herzog e Louis Lachenal
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

escalaram 8.091 m e
meio de ferramentas, tanto revela o novo quanto o histórico. tornaram-se os primeiros
Os ângulos possíveis do joelho, o triângulo isósceles das a atingir tal altura. Era a
montanha Annapurna
pernas. O corpo faz inventar, a invenção propõe aprendizado (“Deusa da Colheita”), no
Nepal, uma das
que nos leva ao passado do corpo. Uma inversão do tempo: montanhas mais
não mais uma linha reta que orienta ao futuro, e sim saltos perigosas do mundo para
escalar, por causa das
entre diferentes momentos. Uma inversão do espaço: avalanches e dos ventos
de 100 km/h. Até 2013,
modificação de paisagem por meio da aproximação de coisas apenas 191 pessoas já
díspares. Uma inversão do processo: a intuição leva à haviam subido, 64
morreram tentando.
invenção que leva ao reconhecimento de eventos históricos.
A invenção não é resultado de uma dicotomia. Não há
dicotomia quando se coloca todo o esforço na escalada,
quando se arrisca o corpo numa queda, para chegar ao cume.
Não há dicotomia quando se gasta toda a energia dos
músculos e se eleva o bombeamento do coração ao máximo
na corrida. Não há dicotomia num passe de bola, no nado, na
luta.
“O corpo existe em potência, em todos os sentidos
imagináveis.”43 O corpo é real. Primeiro aprende-se o que
pode o corpo. O treinamento ensina músculos e ossos.
Resistência, concentração, coragem, paciência, domínio do
medo são necessários à invenção e podem ser adquiridos nos
exercícios físicos. A vida submetida aos ritmos do corpo.
Essas práticas de força e flexibilidade colocam o corpo
inteiro na invenção.

 
  89  

                                                                                                               
1
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 173.
2
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 26.  
3
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 124.  
4
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 317-
318.  
5
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 35.
6
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 23.
7
NANCY, J.L. Corpus. Lisboa: Vega, 2000, p.15-16.  
8
CORBIN, A., COURTINE, J.J & VIGARELLO, G. História do corpo:
da Renascença às Luzes. Vol. 1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 399.
9
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 258.
10
SERRES, M. Luzes: cinco entrevistas com Bruno Latour. São Paulo:
Unimarco, 1999, p. 82.
11
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 50-
51.
12
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 264.
13
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 72.
14
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 25.  
15
VALÉRY, P. Poesia e pensamento abstrato. In: Variedades. São
Paulo: Iluminuras, 1991, p. 207.
16
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 160.
17
Murakami, 1Q84. Vol. 1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p.416.
18
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 317.
19
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 190-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

191.
20
SERRES, M. Filososfia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993,
p. 20.
21
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 263.
22
CLARK, L. Caminhando. Três Rios: Associação cultural O mundo de
Lygia Clark, 1964. Disponível em:
<http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=17>. Acesso
em: 31 mar. 2015.
23
SERRES, M. Os cinco sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011,
p. 220.
24
Todos os diários da caminhada são uma edição do livro de Jean Jacques
Rousseau, Diário de um caminhante solitário. In. ROUSSEAU, J.J.
Diário de um caminhante solitário. L&PM
25
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 224.
26
SERRES, M. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993,
p. 87.
27
SERRES, M. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993,
p. 5.
28
SERRES, M. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993,
p. 56.
29
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 250-
251.
30
SERRES, M. Luzes: cinco entrevistas com Bruno Latour. São Paulo:
Unimarco, 1999, p. 98-99.
31
SERRES, M. Os cinco sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011,
p. 14.
32
THOUREAU, H. D. Walden ou A vida nos bosques, p.103.
33
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 156.  
34
SERRES, M. Variaciones sobre el cuerpo. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2011, p. 41.
35
SERRES, M. Variaciones sobre el cuerpo. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2011, p. 46.  
36
SERRES, M. Filososfia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993,
p.60.
37
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 356.

 
  90  

                                                                                                                                                                                                                                   
38
SERRES, M. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993,
p.
39
SERRES, M. Entrevista a Roberto Leo Butinof, Adrián Cangi e Ariel
Pennisi. In. Variaciones sobre el cuerpo. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2011, p. 137.  
40
SERRES, M. Variaciones sobre el cuerpo. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2011, p. 111.
41
SERRES, M. Entrevista a Roberto Leo Butinof, Adrián Cangi e Ariel
Pennisi. In. Variaciones sobre el cuerpo. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2011, p. 134.
42
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p.
251.
43
SERRES, M. Variaciones sobre el cuerpo. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2011, p. 111.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

 
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA  
91  
  92  

Morcegos de ossos alongados

A mecânica é uma área da física que estuda os


movimentos dos corpos, como o equilíbrio se dá entre eles, e
o comportamento de sistemas no contato com uma ou mais
forças. Dizemos que um corpo faz movimentos mecânicos
quando estes são automáticos e previsíveis. A imagem do
cinema e da fotografia já foram interpretadas como
mecânicas. Usamos o termo mecânica também para a
construção de máquinas. Qualquer uma delas.

Quando não lhe ocorria nada para fazer, Aomame limpava a


arma. Conforme instruções do manual, desmontava a
Heckler & Koch em várias partes, limpava cada peça com
uma pano e uma escova, passava óleo e a remontava. Por
fim, verificava se todos os mecanismos estavam em perfeito
estado de uso. Uma tarefa que ela realizava com destreza. A
arma era como parte de seu corpo.1

As máquinas são elaboradas para auxiliar o corpo. Acredita-se que as


Tornam-se obsoletas. Passam por melhorias com o avanço primeiras armas de fogo
surgiram na China no século
tecnológico. O treinamento diz respeito ao corpo. É
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

IX. A mistura de salitre,


enxofre e carvão vegetal –
destinado, exclusivamente, a ele. Porque o corpo pode ser a pólvora – era colocada
aperfeiçoado, pode perceber mudanças, porque está sujeito a dentro de um tubo de
bambu que, quando em
doenças, acidentes, morte. O corpo pode se aprimorar. O contato com o fogo, atirava
pedras. No século XV,
treinamento o coloca em movimento disciplinado. Máquinas surgiu o mosquete, primeira
fazem movimentos calculados. As máquinas de transporte, arma individual e portátil. É
daí que vem a expressão
depois de criadas, foram usadas em competições de “mosqueteiros do rei”. No
século XVII, Luís XIII armou
velocidade. Humanos competem. Relacionamos competição sua guarda real.

ao jogo. Os jogos são diversão momentânea, um treinamento


físico sem compromissos posteriores, ou são um tipo de
trabalho, definido pela profissionalização, pela
institucionalização, pela relação financeira.

No encontro de duas ou mais pessoas, as possibilidades de


competição são infinitas. Saltar cadeiras pode ser um esporte
momentâneo. Basta um homem já no ar, após o esforço
inicial de várias partes distintas de seu corpo. Este é um salto
sem conclusão. Não sabemos se ele conseguirá saltar as
quatro cadeiras enfileiradas. Porque em movimento numa
cena fixa, partes do seu corpo não estão definidas. Ainda
assim, é um corpo que faz um passo de dança. Uma attitude
na perna da frente e outra na de trás, pernas dobradas no
salto, para dar impulso, para encolher o corpo e evitar o
esbarro no encosto da cadeira. A sombra no chão o duplica.
Composição feita por formas geométricas. As linhas do
jardim estão paralelas à fileira de cadeiras. Um corpo no ar
com cada perna traçando seu semiquadrado. Sua
acompanhante preta, menor e um passo atrás, faz o mesmo
no chão. Um corpo suspenso pelo instante, que insinua
poder prolongar seu movimento numa curva que encontrará
o chão. Mas ainda não. (Fotografia 1, p. 130)
  93  

Homens sempre inventaram jogos. Os jogos


contrapõem corpos, definem um objetivo, situam no espaço,
suspendem momentaneamente as regras sociais. Em alguns
casos, jogos acentuam posições sociais. Nobres tinham jogos
específicos. Houve uma época em que violência, sangue,
morte eram considerados elementos do jogo. Depois, em
algum momento da passagem do século XVI para o XVII,
alterou-se bruscamente a maneira dos jogos e os efeitos da
encenação do porte do rei. Havia uma relação direta entre
eles. Os combates entre grandes guerreiros para entreter a
corte são substituídos por jogos com lança e arco, retirando a
violência de cena. Equitação, dança e esgrima passam a fazer
parte do conjunto de aprendizados necessários ao rei. Os
movimentos pretendem formas definidas, que inspirem valor
e eficácia, e devem traduzir os movimentos descobertos no
mundo, a astronomia e a matemática. Os novos jogos
mostram que o rei domina técnicas de combate ao mesmo
tempo que mantém aparência física nobre. Corpo robusto e
elegante.
Os jogos de rua fundavam-se na diversão, na
Deslizar é um
exposição, na liberação de energia, no prazer, no status e no movimento
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

sustentado, direto e
poderio breves. Não tinham preocupação com uma leve. O deslizar
encenação. Existem porque estimulam o corpo. Causam ocorre quando a
resistência é mais
sensações. Jogo de pela, de malha, luta, corrida, salto, fraca, quando há uma
menor fricção entre o
arremesso de pedra e de outros materiais, muitas vezes em corpo e o objeto
animais. Alguns desse jogos envolviam bolas, tacos e choque tocado.

de corpos. Não era a equipe quem ganhava e sim o jogador


que levava a bola ao local previsto. Estes jogos eram
caracterizados por muita violência e poucas regras. Podiam
ser jogados em qualquer lugar e a extensão não era
delimitada. Eram mutáveis, pessoas entravam e saiam deles a
qualquer momento sem interrupção. Os jogos valiam pelas
apostas ou pelos prêmios. Revelavam força e habilidade. Não
tinham a ver com corpos treinados. Nada se dizia sobre a
velocidade, sobre os músculos, sobre o fôlego. Os jogos
valorizavam o momento, as qualidades do corpo em ação, a
experiência e a intuição, não tinham qualquer interesse nos
benefícios que atividades físicas trariam para o corpo nem em
princípios de construção de um corpo por vir. No mesmo
período em que a violência é impedida na corte, os jogos
tornam-se controlados, limitados, na rua. Alguns são
proibidos.
As regras apareceram para regular uma ação que não
tem uma motivação relevante. O jogo não faz alterações
importantes na sociedade, não transforma o mundo. Ele une
corpos. As regras permitem que o jogo seja compreendido e
definem um objetivo claro. O jogo sempre foi uma
experiência e uma capacidade compartilhada por todos. Com
a definição das regras, há também a definição de papéis:
jogadores e espectadores. Os esportes, depois, fazem do jogo
  94  

uma prática da moral, da exemplaridade, da solidariedade. Os


esportes recortam um pedaço de espaço para o jogo
acontecer. Definem margens. Em algum momento do século
XX, o jogo assumiu um caráter ético, pedagógico. Marcado
pela aleatoriedade, os erros e imprevistos do jogo ensinavam
sobre a vida em sociedade.
O mecanismo clássico fez com que as máquinas
entrassem no jogo. Não só no jogo. Elas também tornaram-se
modelos para o corpo. O discurso sobre o treinamento
assumiu referências da mecânica, da física, da matemática.
Primeiro, o funcionamento do relógio que, com suas
engrenagens interligadas devendo trabalhar perfeitamente
para não atrasar o tempo, refletia o corpo humano. Qualquer
parte que falhasse comprometia o todo. As engrenagens
deveriam se encaixar perfeitamente. Precisavam estar
lubrificadas. O corpo possui as cartilagens que servem para
evitar o atrito dos ossos. Cartilagens são os lubrificantes do
corpo. A física hidráulica, o entendimento dos líquidos e
choques, os sistemas de engrenagens e alavancas, tudo fixava
uma nova estrutura social e uma outra percepção do corpo.
As descobertas sobre o funcionamento do mundo e do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

corpo interferiam nas invenções que permitiam novas


descobertas. A sociedade tornou-se industrial. Uma nova
configuração de trabalho e lazer, de tempo e espaço se
estabelecia. Operários não tinham muito tempo livre. A Em 1905, surge o
primeiro Larousse
correspondência entre dois operários salientava “trabalhos e dedicado aos esportes.
exercícios durante o dia, jogos, coros e narrativas à noite”2. Parte da explicação das
lutas focava nos diversos
Ou passeios no campo no domingo durante a primavera. Para giros dos quadris, nos
variados movimentos dos
além da luta de classes que marcava o período, eles braços enrolados, nas
contemplavam a natureza, compartilhavam experiências possibilidades de
pegadas. Era a época da
sensíveis, exercitavam o corpo. Emancipação. Eles tecnicidade dos gestos.

subvertiam a divisão do sensível ao trabalharem e ao


olharem, deixarem a visão perder-se no campo, ao
partilharem o tempo livre e não o de trabalho, ao traçarem
marcas da individualidade ainda que agentes de um corpo
coletivo que se organizava para a luta.

“Este é o significado de viver”, foi o que Aomame descobriu


numa inspiração. “As pessoas possuem um desejo que se
transforma em combustível, e este se torna a principal razão
de viver. É impossível viver sem desejo. Mas é como tirar a
sorte jogando uma moeda para o alto. Nunca se sabe se o
resultado será cara ou coroa, até que ela caia ao chão”. Ao
pensar nisso, Aomame sentiu um aperto no coração. Todos
os ossos de seu corpo pareciam ranger e soltar um intenso
gemido de dor.3

Máquinas que propunham deslocamento e velocidade


apareciam e eram incorporadas aos jogos e aos esportes.
Jogos de rua, esportes que dependiam somente do corpo,
exercícios corporais dividiam o interesse com o ciclismo, o
  95  

automobilismo, a aviação, o balonismo. Motricidade somada


à velocidade, à agilidade e aos instrumentos. Eles
fascinavam. Bastava observar a natureza, ter recursos e
criatividade. Morcegos tem a estrutura óssea muito parecida
com a dos humanos. A única coisa que os distingue é que as
falanges, por serem mais alongadas, possibilitam voar e ficar
de cabeça para baixo. Compreender o funcionamento, traçar
um modelo no papel, ter o material e a habilidade para
construir, era o necessário para inventar uma máquina. O
século XX acontecia.
A bicicleta alterou o movimento das cidades. Quando
inventada, era um cruzamento de pedaços de madeira sem
pedal. Era 1817. Sua estrutura foi aprimorada para, cada vez
mais, aumentar a velocidade e o controle da máquina e
diminuir os acidentes. Bicicletas eram arriscadas. O pedal, o
aço, as correntes de rolamento duplo, as rodas de borracha, o
guidom, combinação de diferentes materiais à ação humana.
Um instrumento fino e, mais ou menos, comprido. A bicicleta
não fica parada sem cair. Precisa estar encostada ou ter um pé
que lhe serve apenas na ausência de movimento. Quanto mais
gira, mais estável. O corpo troca o arco do pé da caminhada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

pela circunferência da máquina. Pés e pernas fazem


movimentos circulares ao caminhar e ao correr. Este O primeiro Tour de
France ocorreu em 1903.
movimento físico circular sugere a roda. O mundo começou a Sua origem está
ser rápido, mecânico. Ciclistas eram “‘mensageiros do relacionada ao caso
Alfred Dreyfus, soldado
futuro’, protagonistas ‘de uma nova vida’, portadores dos francês acusado por

sinais industriais ao mais profundo da ruralidade”4. Eficiência traição, que dividiu a


França. Jules-Albert de
torna-se uma qualidade que pertence ao corpo e às máquinas. Dion criou o periódico
esportivo L’Auto para
A mobilidade e a mecanização de ambos é combinação competir com Le Veló,
cujo editor acreditava na
promissora, como uma fórmula algébrica bem resolvida, e inocência de Dreyfus. A
fazem as competições de ciclismo uma nova forma de volta ciclística foi criada
para salvar o periódico,
espetáculo. Os ciclistas davam a volta na França. Agora, há L’Auto, do fracasso
completo.
bicicletas que não saem do lugar.

A bicicleta ergométrica fora instalada ao lado da janela. Era


portátil e de boa qualidade. O display indicava a velocidade,
a distância percorrida e o número de calorias gastas. As
rotações por minuto e o número de pulsação também podiam
ser monitoradas. Havia um aparelho fixo para os músculos
do abdômen, os músculos ao longo da espinha e os
deltoides. As peças adicionais eram fáceis de montar e
desmontar. Aomame conhecia bem esse equipamento. Era
um modelo novo e, apesar de simples, proporcionava bons
resultados. Os dois aparelhos garantiam um mínimo de
exercícios para se manter em forma.5

No começo do século XX, a relação de vetores, de


forças, de durações permitiram um corpo técnico que
respondesse de forma mais eficaz no esporte. O corpo era
medido. Progressos eram calculados. O corpo pensado como
máquina tinha um motor com duas vertentes: a do comando e
  96  

a do sensível. As máquinas se aprimoram e ganham funções


diversas. Surgem aparelhos variados para avaliar o corpo que
se exercita. Depois, o computador é utilizado para analisar os
tempos de reflexão de um corpo que compete e os tempos de
reação. Programas motores e programas de treinamento
mental, input e output, fazem com que a relação entre espaço,
duração, sensações do movimentos e sensações externas
sejam apreendidas mentalmente e se tornem informações
disponíveis.
O corpo, agora, quer ser atlético. A primeira guerra
impôs saúde, força, agilidade. Treiná-lo, exercitá-lo, dedicar-
se a ele, não é mais ação restrita de uma categoria. O
treinamento é para todos. Na mesma época, conhecer o
interior do próprio corpo passa a ser considerado no
treinamento. É preciso saber como os seus músculos e
ligamentos reagem a determinadas exigências. Cada corpo
possui uma estrutura, uma elasticidade. Conhecer-se faz
possível dominar a musculatura e os movimentos, dominar o
íntimo e o sensível. As atividades deveriam aproveitar os
espaços abertos. O mar, o ar, o sol eram sinônimos de saúde e
treinamento.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Jacques Henri Lartigue cuidava do corpo, expondo-se à


natureza. Banhos de sol e de mar eram lazer e atenção à
saúde. Sol é energia. Corpo modelado pelo treinamento e
bronzeado pelo sol. Uma nova versão. Jacques Lartigue e sua
família tinham muito tempo livre. Esportes e natureza eram a
combinação medida para os burgueses do entre-guerras.

Um mergulho na piscina começa com um salto. Um corpo


de criança antes de cair. Não aponta para baixo como devem
os mergulhos. Traça a linha numa diagonal ascendente.
Linha que se inicia no lado esquerdo e se estende até o
centro. Parece preso pelos pés. Se não fosse a tensão no Friedrich Jahn criou o
pescoço do menino, esta seria sua forma natural. Uma linha, mais importante método
de ginástica alemã, no
sem peso. Um corpo sendo uma trajetória no espaço durante século XIX. O êxito de
um determinado tempo. Um movimento quase retilíneo sua participação e de
seus alunos na guerra
uniforme. Se não fosse o pescoço. (Fotografia 2, p. 131) contra Napoleão
Bonaparte parece ter se
difundido pelos países
Ele passou a vida sendo saudável. O excesso de peso e da Europa. Sua ginástica
era feita em espaços
a imobilidade não correspondiam ao seu modo de enxergar o abertos, não
mundo e de manusear o corpo. Todas as manhãs, alongava-se distinguindo classes
sociais. As ações
e exercitava seus músculos com o método Müller. Lartigue praticadas eram as
usuais, correr, saltar,
vê o mundo em constante movimento, da natureza, das lançar, mas havia um

máquinas, dos corpos. Não quer ficar parado. Cansaço, no forte teor patriótico. Ele
adotou o termo Tuner,
corpo dele, faz gerar mais movimento. Quando está cansado, que refletia o ideal de
uma ginástica baseada
ele se mexe. na autodisciplina,

Jørgen Peter Müller também acreditava no potencial do lealdade, bondade, para


defini-la, ao invés de
ar fresco, do sol e da água limpa para o corpo. Saúde, Gymnastik. Depois, a
ginástica tornou-se
vitalidade, músculos, adquiriam-se. Só entendia o corpo em proibida na Alemanha,
considerada subversiva e
movimento. E o movimento, nesse caso, era treinamento revolucionária. Jahn foi
físico diário. Não deveríamos passar nenhum dia sem colocar preso.
  97  

os músculos e os órgãos em ação, com movimentos rápidos,


mesmo que por apenas um breve período. Ele competia.
Ganhava medalhas. Em corridas de velocidade e de longas
distâncias, remo, patinação, salto em distância, natação,
mergulho, lançamento de martelo, de disco, de lança, luta
livre, levantamento de peso, cabo de guerra. Ele era daquela
época em que estar suado e pegar umidade poderiam causar
doenças nas vias respiratórias. Tomar sol no verão, o quanto
quisesse, era bom para a saúde. Quanto menos roupa se
usasse, melhor. As crianças também deveriam vestir-se
pouco. Já durante o inverno, as pernas das crianças deveriam
ser cobertas. Pernas expostas ao frio excessivo poderiam
sofrer problemas de crescimento.

Vez ou outra, Tengo se levantava, esticava o corpo e se


aproximava da janela para observar a paisagem. Há alguns
dias o tempo andava nublado, e agora chovia. A chuva que
caía incessantemente durante todo o período da tarde
molhava os pinheiros quebra-ventos, tornando-os
enegrecidos e pesarosos. Em dias assim, não se ouviam as
ondas do mar. Com a ausência de ventos, a chuva caía
verticalmente e um bando de pássaros pretos voava sob a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

tempestade. O coração desses pássaros também ficava


úmido. Travesseiro, livro, mesa, tudo o que havia ali
umedecia. Mas, independente do tempo, da umidade, do
vento e do barulho das ondas, seu pai continuava em coma.
O estado de inconsciência envolvia todo o seu corpo como
um manto misericordioso. Após descansar um pouco, Tengo
continuava a ler em voz alta. Era a única coisa que ele podia
fazer naquele quarto pequeno e úmido.6

Müller criou My system para os intervalos de Kafka era também um


treinamento de sua equipe de remo, no inverno. Na praticante do método
Müller.
Dinamarca, era impossível treinar remo durante a estação. O
método se espalhou pelo mundo, ganhou adeptos e foi mais
elaborado. Ficou famoso. Tornou-se ideal para pessoas
comuns, que não treinavam regularmente, que não eram
esportistas: pessoas velhas, homens da literatura, da ciência e
artistas, funcionários de escritório, para as mulheres, pessoas
do campo, viajantes, pessoas gordas e magras. Propunha um
trabalho do corpo inteiro, desenvolvia a vitalidade e as
funções orgânicas, não somente o fortalecimento muscular. O
método servia para manter a forma, fortalecer a saúde e a
estâmina, aumentar a eficiência física e mental.
Seu corpo robusto defende que palidez, doenças e
tendências hereditárias podem ser combatidas com exercícios
físicos e banhos. Deveriam ser um hábito. Independente da
origem social, nos países ocidentais, nessa época, as pessoas
ainda não tomavam banho com frequência. Para Müller, as
doenças, geralmente, eram uma série de pequenas
transgressões acumuladas no corpo. Eram uma vingança da
  98  

natureza, com acertude matemática, contra aqueles que


abusavam do corpo desregradamente.

Se você não toma banho e não faz exercícios diários que


mexem todo o corpo (uma caminhada não merece essa
descrição) e não percebe que você deve ter de sete a oito
horas de sono à noite, regularmente, é culpa sua você estar
doente, você não se preocupou nem em se livrar de quilos de
matéria venenosa que o nosso próprio corpo produz, nem o
preparou para torná-lo capaz de resistir à infecção que vem
de fora.7

A pele é um dos mais importante órgãos. Nós sentimos


por ela, respiramos por ela, eliminamos substâncias nocivas. A descoberta do
oxigênio, por Lavoisier,
A pele ajuda a regular a temperatura do corpo. Nessa época, fez dos pulmões uma
máquina de energia. O
fazer exercícios, suar, e ficar em áreas abertas, quando muito oxigênio consumido era

geladas, ou tomar líquidos muitos gelados, podiam causar proporcional ao esforço


colocado numa atividade
doenças respiratórias. A umidade prejudicava. corporal. Era 1777.
Antes, a respiração
My system traz imagens de cada exercício utilizando servia para resfriar o
sangue, para pressionar
móveis de casa para sua execução e com descrições artérias e coração. A
minuciosas que pretendiam evitar possíveis erros. Durante os descoberta faz rever o
exercício físico.
exercícios, é necessário concentrar-se na respiração e regulá- Resistência e fadiga são
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

entendidos de outra
la com o relaxamento dos músculos. Se os músculos ficarem maneira. O progresso
contraídos e endurecidos, eles não responderão aos estímulos físico será reformulado
sob novos enfoques.
dos nervos com toda a sua capacidade e não conseguirão
aguentar o exercício por muito tempo.
Após algumas semanas de execução, percebe-se as
primeiras mudanças no corpo. A gordura dá lugar ao
enrijecimento dos músculos, as costas tornam-se eretas, a
postura melhora, os movimentos do tronco ficam mais
elásticos e maleáveis. Todo o corpo fica mais forte, flexível,
móvel e eficiente. Sadio e bonito. A beleza pode ser
percebida em corpos humanos e animais e tem a ver com
proporção e formato. A beleza se adquire com exercícios
físicos diários.
Müller não recomenda as bicicletas. Enquanto uma
caminhada rápida trabalha diferentes partes do corpo, o
ciclismo trabalha apenas alguns músculos da perna. As outras
partes ficam prejudicadas pela fadiga e pela tensão
depositadas. Ficam inoperantes. O ciclista deve usar My
system para exercitar os músculos do peito, das costas e dos
ombros todos os dias. Alguém que não faça exercícios físicos
diários não deveria se arriscar no ciclismo. Acabaria
estragando diversas partes do corpo e exporia seu corpo às
doenças.

Seu corpo, por enquanto, não tinha gorduras, apenas


músculos. Todos os dias, ela se mirava no espelho
totalmente nua para examinar cuidadosamente sua condição.
Não significava que era fascinada por seu corpo, muito pelo
contrário. Seus seios eram pequenos e, ainda por cima,
  99  

assimétricos. Os pelos pubianos pareciam capins pisoteados


por soldados em marcha. Toda vez que ela se olhava no
espelho não podia evitar uma careta. Mas, em compensação,
não tinha gordura, não tinha nenhum excesso que pudesse
pegar com os dedos.8

Lartigue joga tênis, movimento do corpo, e fotografa, Na “Festa dos


movimento do corpo que captura o movimento. O momento músculos”, nas Tulherias,
em 1919, os músculos
decisivo da fotografia se dá em uma fração de segundos fotografados eram de

assim como o toque da raquete na bola amarela. É preciso homens e mulheres. Os


esforços do corpo no
antecipar o momento. Faz-se o movimento antes que se tenha lançamento de peso, na
corrida de obstáculos,
tempo de pensar sobre. Trata-se de um pressentimento do nos saltos em altura são

movimento que acontecerá. O tênis e a fotografia são ações capturados. Ainda assim,
a utilidade das
do corpo que pedem tranquilidade, calma e resistência. No competições esportivas
para as mulheres não é
tênis, enfrenta-se outro corpo. É preciso desestabilizá-lo. Os consenso.

serviços, game, set, match point, além de pontuar, servem


para atrapalhar a concentração do adversário. Na fotografia,
qualquer movimento brusco que atinja a mão, uma respiração
profunda ou um deslize na atenção, desfaz o momento
instantâneo. De alguma forma, a fotografia enfrenta o tempo
e a ação. Ela captura o que era para ser passageiro,
intempestivo e dinâmico. A formação das nuvens numa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

tempestade, um salto, uma onda se formando quando já se


desmancha, um rosto sério, um bote, uma foto de família.
Pessoas que posam para uma foto tentam ficar paradas. O
movimento existe até aí. Fotografias não paralisam uma ação.
Elas eternizam um momento. Para Lartigue, a fotografia é
uma forma de mexer com o tempo.

Acertar uma bola com um raquete pede gingado e


conhecimento dos movimentos do corpo. No tênis, um salto
pode ser um passo de dança. No salto, os pés apontam para
baixo. Uma perna esticada e a outra levemente dobrada, com
o pé recolhido atrás da primeira. No balé, seria um salto com
coupé atrás. Não podemos ver a bola, mas ela é iminente. A
raquete está no ar, aguardando-a. Aponta para trás, puxa o
corpo para trás. O corpo pode cair de costas no chão. Mas
ele é um jogador de tênis que ainda não acertou a bola. Pode
ser que não a acerte. Mesmo assim, o corpo dança, está
suspenso. Este é o instante imperceptível entre o equilíbrio e
o desequilíbrio. Corpos não o percebem conscientemente.
Eles apenas se resolvem na recuperação ou na queda. O
tenista chegará ao chão. Não despencará. Apenas assentará
os dois pés com uma pequena distância entre eles e os
joelhos flexionados para não causar impacto exagerado nos
ossos, para retomar o eixo vertical. Não importa se acertará a
bola ou não, ele ainda está no ar. (Fotografia 3, p.132)

Jacques Lartigue adotou o método de treinamento de


Müller. Primeiro movimento de aproximação entre eles. Há
outras histórias cruzadas. Ambos eram crianças franzinas,
corpos frágeis, finos, sem vigor. Müller nasceu com,
  100  

aproximadamente, 1,8 kg. Teve todas as doenças da infância.


Ele acreditava que sua saúde e força não foram herdadas,
foram adquiridas com exercícios físicos. Comprava livros de
ginástica, ingleses e alemães. Fazia os exercícios em casa
com e sem halteres. Depois, começou a correr. Ele introduziu
a corrida e a caminhada como parte da vida cotidiana dos
dinamarqueses. Morreu com 82 anos. Lartigue um dia viu
adolescente seu reflexo num espelho quando caminhava.
Criança, o médico disse à sua mãe que a câmera fotográfica Levantar-se adquire
formas espaciais
muito pesada entortaria os seus ombros. Realmente variadas, envolve o
esforço de diferentes
aconteceu. Ele precisava de um corpo ágil para suas partes do corpo. As
fotografias de meio segundo furtivo e imperdível. Com 88 tensões musculares
podem sem fortes, como
anos, ele ainda preferia o ângulo baixo para algumas delas. no levantar abrupto, ou
fracas, como no levantar
Sentava-se no chão. Seu corpo ativo. Ele se levanta da lento. Se deitado,
cadeira de tecido, empurra-a, coloca a mão direita no chão primeiro o corpo deve
dobrar-se, utilizando a
com a câmera na mão esquerda. Dobra os joelhos, coloca a flexibilidade de todas as
articulações, depois
bunda no chão. Estica as pernas, cruzando a direita sobre a esticar-se, movimento
esquerda, aos 88. direto, para cima.

Eu era uma criança muito franzina. Aos 16 anos, estava


passeando pela avenida Victor Hugo e me vi num espelho.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Fiquei superenvergonhado. Disse para mim mesmo: que


sujeito é esse com as mãos penduradas? Só havia um jeito,
praticar esportes, um pouco de boxe, eu já jogava tênis, até
integrei o grupo de grandes jogadores do ranking, mas
aquilo me tomava tanto tempo, treinar diariamente, viajar
para os campeonatos, que desisti. Continuei morando perto
de uma academia de ginástica, boxe, ou de uma piscina. O
corpo humano é feito uma câmera fotográfica. Tem que estar
em boas condições, caso contrário não funciona direito. Mas
a boa forma, por sorte, não impede que conservemos,
intimamente, uma fragilidade terrível.9

A fotografia circunda o seu corpo. Desde a primeira,


uma caixa pesada, a máquina fotográfica foi incorporada.
Não bastava estar diante da ação, ele próprio deveria estar em
ação. A primeira máquina era uma 13 x 18, de madeira. Era
grande, com 6 placas de vidro, mas não o impedia de se
mexer. Para capturar o movimento é preciso que o próprio
corpo se coloque livre, concentrado e ágil. Pronto para o
movimento. Correr a quadra de tênis, experimentar diferentes
ângulos, diferentes olhares. Em Lartigue, não há nada que
não passe pelo corpo. A fotografia dele envolve gestos. Ela
captura o gesto efêmero, porque rápido, do corpo em ação.
Fotografar é um gesto que pede gestos do seu corpo para
fazê-lo. A fotografia é um gesto posterior. Quando pega os
saltos do seu gato, os saltos na piscina, o deslocamento entre
o impulso inicial e a queda, impede a força da gravidade
sobre o corpo, controla ou grava a sua existência. As
fotografias são gestos que marcam a suspensão, corpos na
iminência do chão, saltos que se eternizam.
  101  

Por mais que ela tentasse se convencer disso, no fundo, não


conseguia. Ela tinha acabado de matar, com as próprias
mãos, uma pessoa que não era comum. Sentia na pele a
ponta extremamente afiada da agulha penetrando
silenciosamente na nuca daquele homem. Uma sensação
que, por não ser comum, deixava-a muito perturbada. Ela
permaneceu durante um bom tempo observando as palmas
das mãos. Alguma coisa estava diferente. Totalmente
diferente do normal. Mas ela não conseguia discernir o que
era.10

As corridas automotivas parecem transportar a poeira


levantada pelos carros para as fotografias. Não como mancha.
Como ação da natureza. A poeira se levanta. As rodas
perdem as definições. Ou ganham a nuance da velocidade.
Qualquer invenção que envolvesse velocidade o atraia. Mais,
No século XIX, o
a mecânica o atraia. Qualquer coisa em movimento. Barco, espirômetro (media a

carro, bobsleigh (precursores do kart), bicicleta, balão, avião. capacidade respiratória)


e o pneumógrafo
Mas o que Lartigue fotografa é o tempo. As novas instalações (indicava o ritmo
respiratório) foram
que se originam nos espaços antes naturais são sinais do inventados. No século
XX, surgem outros vários
progresso. E não há críticas ao progresso na família de aparelhos de medição
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Lartigue. Nem reflexão sobre a maneira como a dos progressos do


corpo. O duplo
industrialização afeta o mundo. Menos ainda a preocupação conformador, o
raquígrafo e o
com o trabalho. O fascínio pelas máquinas é compartilhado. toracógrafo, que faziam
A fotografia é só dele. Ganhou a primeira máquina aos 8 desenhos da coluna
vertebral, e o ergógrafo,
anos. Seu talento é jovem. Lartigue ocupa um lugar peculiar que registrava o trabalho
do músculo.
na história da fotografia. Ele manuseia a máquina quando os
modos de uso ainda não foram definidos pela arte, pela
ciência, pela imprensa. Quando começou, a fotografia em
instantâneo demonstrava uma análise dos movimentos.
Decompô-los era o real avanço. No ano em que Lartigue
nasceu, o cinetoscópio fazia os primeiros “filmes” impressos
no papel. Registro de um espirro (Edison’s kinetoscopic
Record of a Sneeze) é composto de 32 imagens com sutis
alterações entre si. O filme tem 4 segundos. Foi feito numa
casa-caixa preta que girava para aproveitar a luz solar.
Lartigue nunca parou de fotografar. Raios de sol invadiam as
primeiras fotos, marcavam as primeiras experiências.
Surgiam os fantasmas de seus álbuns. A compreensão da
distância, dos reflexos, dos ângulos, da luz natural foram
integrados ao seu corpo e à fotografia.

Um gato faz qualquer coisa para pegar uma bola que se


mexe na sua frente. Se a bola parece voar, o gato precisará
saltar. Um gato, para saltar, faz o esforço necessário nas suas
quatro patas. E, no ar, assume uma postura ereta. Forma de
alongar o corpo. Forma de diminuir o efeito da força de
gravidade sobre ele. Gato não pensa sobre isso. Seu corpo
sabe. Não vemos o seu esforço, pois ele está parado no ar
com as quatro patas abertas. Cada uma aponta uma direção.
Ele quase alcança a bola. Dizem que gatos não podem pegar
  102  

bolas no ar. Este gato vive no talvez. Dizem que gatos caem
com as quatro patas colocadas no chão ao mesmo tempo.
Gatos caem em pé. Este talvez voe. (Fotografia 4, p. 133)

Dele, restaram todos os negativos, os álbuns e diários.


Sua coleção completa, organizada disciplinadamente, doada
antes de morrer. Seu inventário pessoal do mundo, seu
herbário, uma coleção de coisas da vida inteira montadas
minuciosamente. A combinação de imagens nos álbuns
considerava o tema, a disposição, o tamanho delas, a
cronologia. Lartigue era disciplinado. O treinamento do
corpo era transposto para os outros hábitos. As fotografias,
antes de uma adição, têm o objetivo de rememorar. A
fotografia preenche os buracos deixados na memória. “Tenho
esse tipo de coisa dentro de mim, que nunca me deixa
tranquilo.”11 Com seis anos, ele inventou a armadilha de olho
para guardar na memória as coisas que gostava. Tratava-se de
abrir e fechar os olhos muitas vezes, bem arregalados e
prensados, focando a coisa que queria guardar. “Capturo a
imagem com tudo: as cores! O verdadeiro tamanho! E aquilo
que guardo é algo vivo, que se move e que sente.”12 Piscar é
o jeito natural de associar impressões visuais e emoções.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Memória fotográfica. Depois veio a câmera. A imagem não


era a substituição de um momento. Era um meio de retomá-
lo, de sentir o cheiro, a temperatura, o barulho.
O uso da luz natural se aprimorará. Seu irmão inventa Zissou inventa o tire
as máquinas, ele as fotografa em ação. Lartigue diz que a boat . Seu “barco-pneu” é
feito de calça
composição faz a foto. Ele não a procura, ela o encontra. Ele impermeável em
se vê como espectador. Não é. Todas as pessoas em suas borracha inflada com
pneu. Ele enfia as pernas
fotografias não são personagens, são agentes. Se não pode ser na calça e pode boiar na
água sem molhar seu
etéreo assim, não significa que seja calculado. Seu olhar terno.
procura o ângulo, vê uma imagem que outros não veem. Às
vezes, ele cria a cena. Seu corpo todo, desde os 7 anos, vê a
vida pelas lentes. O disparo é feito sem que precise pensar.
Sem que a imagem pronta paire a consciência. Ele sabe
aproveitar o momento. Dispara três ou quatro vezes uma
cena. Não mais.

Uma garota de 10 anos, obviamente, não seria capaz de


explicar racionalmente o motivo daquele conflito.
Tampouco conseguiria entender a diferença entre o grupo
da revolução e o grupo da paz. A impressão que ela tinha era
de que a revolução representava um pensamento de formato
pontiagudo, enquanto a paz tinha formato arredondado. Para
ela, o pensamento possuía um formato e uma coloração
próprios e, como a Lua, ora se tornava cheio, ora minguante.
Seu conhecimento se limitava a isso.13

Lartigue diz que a foto representa a realidade ao captar


o detalhe, que não a interpreta. A realidade é bela e esquiva
demais para ser apreendida. Suas imagens, no entanto, não se
  103  

situam no regime representativo. Há outra forma de vê-las.


Elas não complementam o expressivo, não intensificam a
força da ação. Elas resistem ao pensamento. Não indicam
uma forma pura, a duplicação de algo, nem um
acontecimento carregado de realidade. Não se inserem na
resolução de causa e efeito. Suas fotografias eram registros
de um amador até os seus 68 anos. Algumas vezes, são
encaradas como registro de um século que passou. Suas
fotografias são imagens pensativas. Há uma tensão entre arte
e não arte que as caracteriza. Porque o jogo de tensões e
separações pode se dar tanto no que é arte quanto no que não
é. Essa forma de pensatividade faz a arte escapar dela mesma.
Há um trabalho da arte para tornar-se invisível. A
pensatividade não está em saber se a cena se organizou
casualmente ou se o fotógrafo a viu e a fotografou
conscientemente. A vida que atravessa o corpo é movimento
sem fim, no sentido de não parar e no sentido de ser livre de
uma finalidade. Essas vidas estão presentes no corpo de
Lartigue e nos corpos de suas fotografias.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Dia 1 – Delimitei um quadrado na sala de casa com


uma fita adesiva amarela. Tudo que adentrasse aquele
espaço deveria participar da dança. Durante 2 horas
seguidas de um dia na semana, o quadrado seria ocupado
sem intervalo. Eu não poderia sair dele. Nas outras 166
horas, eu não entraria nele. O quadrado seria ocupado com
dança. Essas eram as minhas únicas regras. Primeiro dia, Mary Wigman foi uma
das representantes da
duas horas em pé no meio do quadrado. Respirei, resolvi dança expressionista. Foi

contar a minha pulsação por minuto. Quis ouvir o som do aluna e, depois,
assistente de Laban
meu corpo. Ouvi a porta do prédio batendo. Lembrei do dia durante 7 anos. Abriu
sua escola em 1920.
que encontrei o vizinho cineasta perto do prédio e Criou a dança da

conversamos animadamente sobre todas as coisas que a expressão que consistia


em movimentos que
nossa intimidade de quatro ou cinco encontros nos permitiu. personificassem emoções
humanas. Ora explorou
Tentei voltar a focar no meu corpo, olhando os meus pés movimentos primitivos
com músicas percussivas
dispostos paralelos. ora colocou máscaras em
seus dançarinos para que
um estado de emoção
universal fosse
apresentado. Música e
Dançar é atividade aeróbica e anaeróbica. Movimentos dança deveriam ser
alargam possibilidades. Dançar faz alterações significativas compostas juntas. Sua
dança não era narrativa,
nos pés. Carne consiste em mistura. Dançar utiliza todas as era simbólica. Apesar de
sua escola ter sido
partes do corpo sem hierarquia. Estruturas são móveis. fechada pelos nazistas,
Dançar expande o espaço. Ritmos acontecem no corpo. ela colaborou com o
regime, sendo uma das
Dançar organiza a postura. Vibrações atravessam sólidos. coreógrafas do
encerramento das
A dança, além de expressão manifesta por meio de Olimpíadas de Berlim, de
movimentos corporais, é um treinamento físico. Quando 1936.
  104  

treinamento, atrás dela há exercícios para alongar, aquecer,


fortalecer, soltar, estender, ampliar as partes do corpo.
Durante e após, a dança acontece. Se treinamento ou ação
despreparada, a dança trabalha todos os músculos de forma
não seriada. Movimentos são ilimitados. A dança faz
músculos específicos serem treinados num momento e não
em outro. Músculos, nesse processo, são percebidos, em
outros momentos, podem se recolher. Como se não
existissem no corpo.
A repetição ganha enfoques variados ou, às vezes,
enfoque nenhum. A dança pode ser treinamento físico diário
que lida com os limites do corpo, desgastando-o. Pode ser
treinamento físico leve voltado para saúde e bem-estar. Pode
ser descontração. Pode ser tudo ao mesmo tempo. A dança é
sempre experienciar o mundo, transformar a vida, mexer o
corpo.

Se eu fosse professor de dança, não faria todas as


macaquices de Marcel. Levaria [meu aluno] para o pé de um
rochedo, lá eu lhe mostraria que atitude é preciso assumir,
como se deve manter o corpo e a cabeça, que movimento é
necessário fazer, de que modo se deve pôr ora o pé, ora a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

mão, para seguir com ligeireza os caminhos escarpados,


ásperos e rudes, e lançar-se de pico em pico tanto subindo
como descendo. Faria dele o rival de um cabrito, mais do
que um dançarino da ópera.14

A caligrafia é oriunda do treinamento. Cada letra ou


ideograma possui um traço, pede um trajeto único de
movimento da mão sem que o projétil que escreve saia do
papel. Os dedos pinçam, as mãos circulam e traçam retas,
fazem curvas e diagonais. Para a escrita, as mãos dependem A gazela é a presa de
da soltura do pulso que se relaciona com o cotovelo que inúmeros felinos.
Guepardos são animais
precisa do suporte do ombro. Ombros estão ligados ao esguios e velozes.

tronco. Gazelas são herbívoros.


Guepardos não. Apesar
As mãos se movem, mas o movimento começou antes. de não ser tão rápida
quanto eles, a gazela é
Na escrita, a forma da ação é espalhar, o esforço sai do centro mais resistente, porque
possui narinas grandes e
para as extremidades. A mão dança no papel. As palavras são vascularizadas.
movimentadas no corpo antes de se fixarem. As palavras Guepardos são os
animais terrestres mais
escritas ficam presas. As ideias que elas propõem não. velozes. A aerodinâmica
de seu corpo, coluna
Dançam. Uma dança que já não é mais expressa apenas pelo flexível, pernas
corpo. Ela produz palavras, um suplemento. Pollock usava o alongadas, permite
arrancadas velozes.
corpo todo, em movimento, nas suas telas no chão. A tinta, Correm curtas distâncias,
pois exigem muito do
na tela, conduzida pelo corpo de Pollock em movimento, organismo. As fêmeas de
ganha formas. Dança. Se nesses casos ainda não há uma guepardo, às vezes,
caçam gazelas jovens
dança como definem as enciclopédias, há indícios. para ensinar aos filhotes.
Ela não a mata. Captura
A dança estabelece uma relação complexa entre tempo, e solta novamente a
espaço e corpo. Como reunião de corpos, costumes, história, gazela para que os
filhotes façam a caçada.
a dança não é parte do modo de vida de todos as Se nenhum filhote a
consegue, ela pode
comunidades. Mas, se a dança pode ser “uma sequência de pegá-la novamente ou

passos em que, a cada passo, se perde e se recupera o deixá-la ir.


  105  

equilíbrio” 15 , é possível ver alguma forma de dança em


qualquer corpo, pelo menos nos gestos codificados, nos
movimentos diários. A dança, mesmo quando coreografada,
fazendo corpos executarem movimentos idênticos, ganha
nova forma no corpo de cada um.

Dia 2 – Vi que precisava cortar a unha do pé. Quando


se dança não rola deixar a unha do pé grande. Lembrei das
vezes que perdi a unha do dedão no balé. A unha me fez
voltar para o pé. Os pés são esquecidos no corpo. Abri os
dedos do pé no chão, trabalhei o dorso com calma,
prestando atenção não ao movimento, mas ao esforço. O
movimento é muito sutil. Para fortalecer o arco do pé é
preciso levantá-lo sem tirar os dedos do lugar. Lembrei dos
pés horríveis que já vi. Vi que estava contraindo os músculos
da coxa. Parei o movimento no pé. Contraí e relaxei as coxas
cinco vezes cada para ter claro no corpo a sensação dos dois
estados. Depois, voltei para os pés. Deixei que escapassem
do chão algumas vezes. Ora com o joelho esticado como os
jetés, ora com ele dobrado como coupés que, na verdade,
não eram coupés, porque o pé ficava no ar, mantendo a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

distância dos quadris exposta na posição dos pés no chão.


Duas horas.

A dança faz parte de rituais religiosos antigos e


variados. Na dança-mímica, os bons e os maus espíritos, que
interferiam na vida humana, eram aproximados dos Quando morreu, no
movimentos de animais. Os bons espíritos eram relacionados século XVIII, Buffon
tinha publicado 39
aos movimentos dos animais adorados, os maus, aos volumes sobre A história
malquistos. Aqui, a dança já era um treinamento. O natural . Quando compara
as espécies animais e
propósito, no entanto, era outro. Era como as combinações de vegetais, ele conclui que
não há diferenças
esforços tornavam-se mais conscientes. Como as qualidades essenciais, apenas de
dos movimentos e para que são usados fossem conhecidos graus. As diversas
espécies estão
por todos os componentes do grupo. Pensar por movimentos. organizadas em cadeia,
sendo possível assinalar
Impressões de acontecimentos que orientam o mundo interior uma continuidade.
do homem. Manifestações de esforço que mostram como um  
grupo pensa, organiza-se, estabelece relações. As danças
ensinam hábitos e costumes.

− As coisas podem ser as mesmas, mas o modo como as


pessoas de antigamente a percebiam teria sido muito
diferente do de hoje. Naquela época, a escuridão da noite
devia ser muito mais profunda, de um intenso breu e,
consequentemente, a lua era vista como algo muito
maior, muito mais claro e mais reluzente. As pessoas
obviamente não tinham discos, fitas-cassete e tampouco
CDs. No dia a dia elas não tinham condições de ouvir
uma música de tão boa qualidade a qualquer hora e
momento desejado. Ouvir música era algo muito
especial.
  106  

− Você tem razão – admitiu a velha senhora. – O fato de


vivermos num mundo como o de hoje, com muitas
comodidades, deve ter embrutecido nossa sensibilidade,
não acha? A lua pode até ser a mesma, mas nós a
enxergamos de maneira diferente. Quatro séculos atrás,
talvez tivéssemos um espírito mais desenvolvido e mais
conectado à natureza.16

A dança, os ritmos, os esforços, a mímica, era


expressão da tradição, diálogo entre si e entre uma
comunidade e outros entes. Tribos indígenas e africanas
tinham o corpo amplo, aberto, expandido. Sabiam usar todas
as potencialidades do corpo. O corpo dizia como eles
experienciavam o mundo. A dança ocupava o lugar da
escrita, modo de compartilhar a memória do grupo, os
saberes e deveres.
O xamã entra em contato com o mundo dos espíritos A organização do corpo,
para os mongóis, é
por meio de movimentos corporais. Cada gesto corporal é dualista. O corpo
completo e vivo é o
específico para um espírito e para o que se quer comunicar. suporte da alma. Antes

Nas danças populares, o corpo é percebido em seu modo de encarnarem no corpo


humano, as almas
mais natural, mais aperfeiçoado. Porque memória antiga que possuem a forma de um
animal. Elas escapam do
percorre os séculos, os movimentos exteriorizam a diagonal corpo durante o sono e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

durante fortes emoções


interna do corpo, a energia que o circula. pelas axilas, pelo umbigo
A transformação do xamã, para o ritual, acontece com o e pela fontanela. A força
vital do corpo é que fixa
uso de vestimentas especiais, com a bebida de misturas, com a alma nele. É preciso
adestrar o corpo para
a inalação da fumaça de infusão. Se há êxtase é porque a fixá-la. Se a alma deixa o
dança faz o corpo movimentar-se em círculos, expande o corpo durante muito
tempo, o corpo morre.
espaço, estabelece relações com outros corpos, liga o ritmo Há uma associação entre
a domesticação do
do corpo ao ritmo dos sons que o circundam. animal e a educação
A dança ritual constrói um vínculo de pertencimento, humana. Quando a
pessoa envelhece,
estabelece regras de viver juntos. É fenômeno preparado, tem estimula-se a embriaguez
do ancião, pois ela
funções. Consiste na apresentação do próprio corpo para auxiliará na deseducação
estabelecer uma comunicação com um mundo outro. Para necessária para que a
alma deixe o corpo.
demarcar ciclos agrários. Para a fertilização. Para se livrar da
dominação dos homens brancos. A revolta expressa na dança
tinha premissas políticas e bélicas, fazia unir vivos e mortos
por meio de referências. Para preparar iniciados, educá-los.
Para enviar os mortos ao mundo dos mortos. Passava-se com
o defunto numa maca pelas casas correndo, sacudindo-o e
jogando-o para cima. Depois, deixava-o de lado e recriava
sua história numa dança dramática. O morto, antes um
fantoche, revivia entre os seus antes do sepultamento. As
danças circularam, sofrendo alterações, ora transpunham
tribos da região. Os descendentes continuam a dançá-la. As
danças contam uma história que atravessa o tempo, mas, a
cada nova execução, ganha novos traços.

Dia 3 – Para manter o equilíbrio quando o peso está


apenas em uma perna ou quando se tenta alguma forma de
suspensão, não dá para olhar um ponto fixo como
  107  

acreditavam os antigos bailarinos clássicos. O equilíbrio não


está fora do corpo. Está na disposição do peso no corpo, na
sensação de suspensão, na centralização da energia. O
centro do corpo ativo, área que concentra. O pensamento
está no centro. Fiz vários movimentos de espalhar e recolher
para circular a energia e trazê-la de volta ao abdômen. É
nele o centro do corpo. Fiz vários abdominais. Mesmo as
técnicas que propõem linhas de movimentos distantes do balé
clássico incorporarão muitos de seus movimentos. Muda a
intenção, muda a trajetória do esforço. No contato e
improvisação é preciso apoios momentaneamente fixos e bem
definidos e centro ativo. O esforço concentrado no centro faz
carregar pessoas maiores e mais pesadas que você. Quando
não quero que uma pessoa me levante, sei como ficar mais
pesada. Este é um tipo de conhecimento do corpo apesar do
propósito avesso.

Houve um momento em que a equitação, o balé e a A geometria, de


Euclides, estuda
esgrima foram mediados pela mecânica e pela geometria. As propriedades métricas
leis do universo, que ainda centralizavam a Terra, e as figuras de figuras que não
variam no deslocamento.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

geométricas modelavam os exercícios nobres. Na equitação, Propriedades não


métricas, propriedades
a marcha ganha novos ritmos e movimentos, voltas, piruetas, qualitativas da figura,
acento dos trajetos. A atividade continua executada pelos pertencem à topologia.
Esta é um ramo da
cavaleiros, mas a técnica não tem mais objetivo guerreiro, o geometria. A topologia
estuda as propriedades
tema militar é estetizado. A equitação é um balé executado da figura que ficam

por homens e cavalos. Cavalos andam nas pontas dos cascos preservadas mesmo
quando ela altera sua
como as bailarinas clássicas. A equitação é uma apresentação forma ou tamanho. Ou
pode-se dizer que a
ocorrida em festas para exaltar o rei. A história contada geometria métrica cuida

evidencia sua agilidade e vitória. Os desenhos geométricos dos cálculos das


distâncias definidas e
centralizam o rei. estáveis enquanto a
topologia quer saber dos
O balé integra círculos, quadrados e triângulos. A rasgos e das
proximidades.
perspectiva linear, na matemática, alterou o enfoque das leis
geométricas e o espaço de visibilidade ao redefinir os
estímulos visuais. A geometria estava relacionada à óptica,
aos ângulos possíveis da visão, e às proposições
astronômicas. A organização do Universo transposta para o
chão terrestre. Aqui, o rei representa a Terra e não importa a
figura formada, todas possuem um único ponto central em
que se situa apenas ele. Os movimentos dos corpos humanos
nas dançam ganham organização, regularidade e disciplina
visual. O macrocosmo ordenava o microcosmo e a dança da
corte salientava tal correspondência. Os balés, nessa época,
eram uma grande encenação que envolviam membros da
família real, cortesãos e bailarinos. Não era o balé clássico,
mas as formas geométricas já eram aplicadas ao corpo.
Quando a armadura é abandonada pelo surgimento das
armas de fogo, a esgrima adquire novos gestos. Os combates
de espadas tornam-se danças mais sofisticadas, pés mais
ágeis, estocadas menos fortes e mais precisas. As armaduras
  108  

protegiam, havia choques de corpos, faíscas pelo contato dos


metais, as espadas quebravam. Sem armaduras, as pontas das
espadas atravessavam o corpo e faziam sangrar. A nova
técnica exigia deslocamento do corpo em curvas, retas,
diferentes direções. A geometria, uma vez mais, era vista nos
movimentos.

Deslocamento limitado de braços junto com um curto


avanço de pé antes e sobretudo a um recuo do pé para trás,
no tratado de Agrippa, em 1553, ampla projeção do corpo
para frente, em compensação, no tratado de Vizani, em
1575, com um nítido e profundo avanço do pé: “Quando
quiserdes aplicar uma estocada, fazei com que o pé direito Buffon se dedica,
avance um largo passo e deixai cair imediatamente vosso durante 17 anos, a medir
a estatura de um jovem
braço esquerdo.”17 nascido em 1752. Era a
época em que o porte e
a conformação física
Os movimentos elegantes, delicados e controlados da ditavam as regras do
progresso corporal. De
dança distribuem-se por todas as atividades dos nobres. O seis em seis meses, ele

corpo adquire novas qualidades, mais abstratas. Deve ter boa faz a medição num
processo de comparação
graça, força e destreza. O porte deve ser esbelto, os que busca ritmos de
crescimento,
movimentos devem mostrar equilíbrio e simetria. Corpo ágil dissonâncias quando do

e leve. Modos de apresentar uma boa educação, baseada em inverno para o verão,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

quando da fadiga para o


novo atributos. E todos, de alguma forma, dançam. repouso.

Dia 4 – Não tenho ninguém para olhar meus


movimentos. É difícil saber se faço como sinto fazer. Hoje,
trouxe um espelho, mas só posso ver minhas pernas e pés. E
quero trabalhar o tronco. Suas retas e torções. Estico um
braço na frente do corpo, outro atrás. O tronco torce na
direção do braço de trás, inevitável. Cabeça olha o polegar
da mão de trás. E olha a parede e o quadrado. A ideia é não
se concentrar num único ponto. Contração do centro, peso
do tronco para frente até a cintura. Tronco para as laterais.
Tronco para trás sem despencar a cabeça. É preciso
alongar, ombros, peito, ao invés de querer um cambré. Tudo
depois, faço com os joelhos dobrados. Tento fazer também
para trás. Sempre aprendi que não era possível fazê-lo, pois
eram dois vetores contrários, que não funcionavam. Um que
leva para o chão e outro para trás. Gosto da sensação de
estranhamento, desse desconhecido mínimo no corpo. Faço
séries breves de balanço do tronco. É uma delícia soltar o
tronco para frente e para trás, até que quase desgovernado.
Recupera-se em cima.

As assimetrias, falhas e tensões no uso da língua, na


aproximação de conceitos, na relação entre pessoas, podem
ser encontradas na dança. E podem também ser aproveitadas
como produtoras. A dança se dá nas relações. Não tê-las
fixas, propicia novos encontros. E quedas, e frustrações, e
  109  

enganos. A dança é uma sequência de combinações de


Merce Cunningham
esforço que causa uma sensação de prazer no corpo. O jogo nasceu em 1919. Aos 8
pode também ser descrito assim. anos, foi estudar dança.
Seu pai era advogado. A
A dança deve buscar não ter motivação ou intenção, ideia de estar no palco o
atraia. Aos 13, foi
assim como o jogo, no sentido de uma transformação estudar sapateado com a

concreta no mundo, no sentido de código transmitido. Um sra. Barrett. Aos 19, foi
para The Cornish School
movimento pode ser intencionado. Animais dançam com uma for Performing and
Visual Arts, em Seattle,
intenção definida: acasalamento. Mas eles não intencionam. fazer aulas de teatro e

A dança acontece fora da consciência. É essa distância que dá de dança. No verão, foi
de carona para o Mills
à dança a graciosidade e a energia adquiridas, sentidas, College, em Oakland,
Califórnia, pois
percebidas. Também a relação entre corpos, o treinamento conseguiu uma bolsa.
Aos 21, foi para Nova
anterior e as regras caracterizam a dança, mas não a definem. York dançar na
Cunningham fez um espetáculo todo definido por operações companhia de Martha
Grahan. Estudava balé
de acaso. Nenhuma decisão pronta. Uma única regra. A clássico na American
Ballet School e começou
dança é e não é um jogo. As regras também não definem o a trabalhar nas próprias
jogo. O jogo pode ser um elemento aberto. danças.  
A graça da famosa marionete de Kleist está exatamente
em seus movimentos mecânicos. Na ausência de intenção, na
distância com uma subjetividade. O boneco move. Desafia as
leis da gravidade. Não pensa. A graça é um estado entre o
centro de gravidade e o centro do movimento. A marionete
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

está no ar. A graça é que seus membros obedecem apenas às


leis mecânicas. Não há intenção. Por não pesar e não pensar,
seus membros estão livres para se moverem em relação ao
centro. A dança se aproxima dos movimentos da marionete.
Se quando se dança distancia-se da consciência, resta o
espaço. A presença do corpo no espaço.

− Senhorita Takai, estou aqui para cobrar a taxa de


recepção da NHK. É isso mesmo. A NHK de todos nós.
Sei que está aí. Trabalho há muito tempo como cobrador
e sei distinguir quem realmente está ausente é quem está
se passando por ausente. Por mais que você não faça
barulho, as pessoas deixam um sinal de presença. As
pessoas respiram, o coração bate, o estômago faz a
digestão. Por isso, senhorita Takai, eu sei que, neste
momento, você está aí, dentro do apartamento. Está
aguardando que eu desista e vá embora. Não tem a
intenção de abrir a porta nem de me atender. Porque você
não quer pagar a taxa de recepção.18

É preciso entender muito bem as possibilidades do


corpo, as suas capacidades e trajetos de execução para não
mais se pensar neles. Quando se dança, mesmo que haja uma
coreografia muito bem apreendida, não é possível pensar
cada próximo movimento antes de executá-lo. A dança
acontece. Quando Gumbrecht assiste ao futebol americano
dentro do campo, ele vê graciosidade nos movimentos dos
jogadores. Porque a graça não está na harmonia, está nos
movimentos inacreditáveis aparentemente naturais
executados na ausência de um estado de consciência.
  110  

Dia 5 – Essas duas horas na semana não tinham o


objetivo de produzir algo concreto, algum tipo de resultado a
ser apresentado ao mundo. Eram um momento de
experimento do corpo. Laban retoma os movimentos
naturais. É possível um conhecimento amplo e profundo das
possibilidades de movimento do corpo se o andar, por
exemplo, for percebido em seus detalhes e tornado
consciente até que se transforme num novo hábito. Caminhei.
Um passo amplo, dado com precisão, transferência de peso
completa de uma perna para outra. Ando em todas as
direções sem mudar a referência frente do corpo. Depois,
ando mudando a referência do corpo e ainda mantenho a
precisão dos passos. Perna direita dá um passo à frente,
esquerda dá um passo à esquerda levando o tronco consigo.
Perna direita encontra a esquerda. Posição fechada. Pés
paralelos no chão. E uma nova direção. O andar normal está
no plano médio. Tento os outros dois. O baixo cansa mais.
Andar com os joelhos dobrados ao máximo sem que os
calcanhares saiam do chão. Doem as coxas e as
panturrilhas. O deslocamento do plano alto é rápido e de
passadas curtas. Não usa o calcanhar, só as pontas dos pés.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Andar de bailarina clássica.

Com cinco posições do tronco, ereta, curva, em arco, Todas as posições de pés
torcida e inclinada, pode-se criar distinções. Pernas e braços do balé clássico são
feitas com as pontas
se organizam em relação a elas, cinco posições básicas. voltadas para fora (en
dehors) e as pernas
Parte-se do estrito para o vasto. Os movimentos parecem esticadas. A direção faz
estranhos como se cada parte do corpo se dirigisse para um com que toda a
musculatura da perna
lado. O espaço da dança todo utilizado. Não é preciso haver gire. As cinco posições
são: 1ª, calcanhares
uma única frente. Muda-se a direção, muda-se a visão da encostados formando um

dança. Pode-se ver uma pessoa de qualquer ângulo. O espaço V; 2ª, pernas abertas na
largura dos ombros, 3ª,
não é mais fixo, o que faz haver um alargamento de pés cruzados, calcanhar
com calcanhar, 4ª, um pé
possibilidades. Quando se dança, domina-se o espaço. na frente do outro, a

Não há limites para os movimentos. Qualquer tipo de distância de um passo


normal, com os
movimento pode ser dança. Primeiro passo. Depois, é preciso calcanhares alinhados ou
a ponta de um pé
descobrir os movimentos que não conhecemos. Se não os alinhada ao calcanhar do
outro, 5ª, pés cruzados,
conhecemos, é preciso descobrir como fazê-los. A dança é sendo que o calcanhar de
tentativa insistente. Passo quatro, entender o que faz cada um pé encosta-se na
ponta do outro.
parte do corpo no movimento. Montamos um novo corpo que
entende o caminho que faz para alcançar uma posição. No
movimento, e na dança, o caminho é tão importante quanto a
posição. O movimento precisa passar inteiramente através e
para dentro do corpo. Passo cinco. Movimentos só para o
tronco pretendem suas possibilidades pouco experimentadas.
O passo sete é de movimentos só para as pernas. Junta-se,
então, tronco e pernas em direções contrárias, em velocidades
variadas. Pernas a favor ou contra o tronco. Na dança,
normalmente, conta-se até oito. Merce Cunningham
  111  

descobriu que precisaria criar a sua própria técnica corporal


para que os dançarinos entendessem no corpo a sua dança.

Aquele homem tinha o rosto e o corpo assim assimétricos.


Assimetria que logo saltou aos olhos de Tengo. De modo
geral, o lado direito e o esquerdo do corpo são ligeiramente
desiguais, mas isso pode ser considerado normal. O próprio
Tengo tinha o formato da pálpebra direita um pouco
diferente do da esquerda; e o testículo esquerdo também
ficava um pouco abaixo do direito. O nosso corpo não é um
produto fabricado em massa, com medidas padronizadas. No
entanto, a diferença entre o lado esquerdo e o direito daquele
homem extrapolava os limites do que se consideraria
aceitável. Aquele desequilíbrio, que qualquer um podia
notar, provocava em seu interlocutor um incômodo estado
de nervos. Um desconforto como o de ver a própria imagem
refletida num espelho distorcido, o que, ainda por cima – por
refletir a imagem nitidamente –, provocava uma certa
irritação.19

O corpo inteiro pode ver, qualquer parte dele serve ao


Isadora Duncan nasceu
deslocamento. Um corpo em prontidão, que sabe onde está o em 1877. Era filha do
outro sem precisar olhá-lo. Antes, os bailarinos não podiam poeta Joseph Charles
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

e da pianista Dora
se olhar no palco para não desmanchar a cena, a ilusão de Gray Duncan. Trocou
os EUA pela União
corpos que não pesam. O balé era uma representação. A Soviética e, mais

dança moderna traz corpos pesados, e achatados, tarde, mudou-se para


Paris. Ela dançava
arredondados, exageradamente esguios, tortos. Os descalça quando todos
dançavam na ponta.
movimentos da natureza são conduzidos para o corpo de Sua dança era feita de

Isadora Duncan. Ela ouvia os movimentos. Transformava-os. movimentos livres


quando as outras eram
Como a natureza, não há formas iguais. O corpo não imita. coreografadas. Ela
morreu enforcada pela
Ele se abre ao estímulo. Como a natureza, o movimento echarpe que ficou
presa na roda do
acontece quando não pode mais se conter. Os pés estão conversível. Aos 50.
descalços e pisam inteiros o chão. Dançarinos se olham,
porque ver o outro pertence à cena. Dançarinos não se olham,
porque podem perceber a presença do outro em seu corpo.

Dia 6 – Deitei logo no chão. Fiquei um tempo


percebendo os buracos do meu corpo, as partes que não
tocam o chão. A mão, quando relaxada, não fica totalmente
aberta. Os dedos fazer uma leve curvatura no sentido da
palma. Há um espaço da lombar. Cada corpo cria o seu.
Atrás do joelho sobra um espaço. Ele varia. Os pulsos fazem
buracos. Todos esses espaços podem ser diminuídos e
aumentados com alguns movimentos mínimos. Mas o
pescoço, a parte de trás do pescoço, nunca encosta o chão.
Movimentos no chão expandem e condensam. Tento outros
apoios que não apenas os pés e mãos. Há a cabeça, os
joelhos, as laterais das pernas e dos braços. No chão
também treinei subidas e descidas usando o impulso gerado
no rolamento. Quando do chão, salto e volto ao chão, é
preciso preparar o corpo para o retorno. A melhor maneira
  112  

de retornar ao chão é aproveitando a própria espiral do


corpo.

A dança pode aproveitar a disposição espiralada das


partes do corpo. Ao aprender uma técnica corporal, todos os
movimentos do corpo serão realizados baseando-se nela.
Quando se ensina ao corpo uma técnica, o corpo a assume
como parte de si. Organiza-se e compreende seus
movimentos por ela. Mesmo que se mude o movimento, que
um novo estímulo seja apresentado, o esforço se originará no
local já sabido. Como os movimentos equivocados que
adquirimos durante a vida e que, tornados hábitos, não
podem ser eliminados apenas com um comando do cérebro,
as técnicas corporais são incorporadas. O corpo decora. É um
treinamento.
Mostra-se aos músculos, por meio de movimentos, que
eles se estendem espiralados. Disciplinada e insistentemente,
até que o movimento, em seu melhor desempenho, aconteça
como natural. Os músculos estruturam a postura. Ela está
ligada a um estado emocional. O corpo não é só movimento
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

mecânico. Movimentos se relacionam a percepções e afetos.


O corpo reestruturado se coloca ao mundo.

De vez em quando, Aomame costumava fazer caretas diante


do espelho. Sua careta continuava a mesma de sempre. Os
músculos do rosto se esticavam e suas feições se
transformavam completamente. Todos os sentimentos do
mundo brotavam em seu rosto. Não era belo nem feio.
Dependendo do ponto de vista, ela parecia um demônio ou
um palhaço. Conforme o ângulo, parecia apenas a expressão
do caos. Quando deixava de fazer caretas, os músculos
gradativamente se relaxavam, como ondulações da
superfície de um rio a se acalmar, e suas feições voltavam ao
normal. Aomame conseguia ver uma nova versão de si
própria, completamente diferente da anterior.20

O corpo da dança que percebe outros corpos dispondo No século XVI, a


de todas as aberturas do sentir, relaciona-se com outros expressão “boa graça”
passa a fazer parte do
corpos nos espaços convencionais. A dança está aí, está aqui. vocabulário e do
corpo do rei. Todos os
Quando o corpo conhece o seu movimento, as suas exercícios devem
capacidades, ele se dispõe ao mundo. Não, não começaremos transparecer essa
elegância e
todos a dançar passos coreografados nos semáforos, no naturalidade.

metrô. Apenas o mundo está em constante movimento e um


corpo é uma singularidade que ocupa um espaço. Um corpo
que aprimora seus movimentos está inteiro e preparado para
as possibilidades de criação. Para surfar a onda, para
metaforizar o pensamento, para se expressar. Se o mundo
está sob a égide dos mesmos fatores presentes na dança, se o
corpo é composto pelos mesmos elementos do mundo, a
dança pode acontecer a qualquer momento.
  113  

Dia 7 – Dancei passos incertos durante meia hora sem


parar. Não me preocupei com nada. Não decompus
movimento, não parei para analisá-lo, não fiz correções.
Deixei músicas tocando aleatoriamente. Depois, tentei
recuperar aqueles movimentos que me pareceram mais bem
realizados. Aqueles em que o impulso foi gerado na parte do
corpo que começou o movimento, que não tensionou
abusivamente outras partes, que respondeu ao peso e à
fluência, que usou todo o espaço de extensão que lhe era
possível. Criei uma sequência. Analisei cada passagem,
como cada parte de minha estrutura corporal se organizava
e se desorganizava para realizar os movimentos. Criação e
análise são processos diferentes, precisam acontecer um de
cada vez. Se interrompo a criação com análise, interrompo o
fluxo. Então, mexi na dinâmica, coloquei ritmo.

Homero disse que a dança se situa entre a cidade e o Shiva criou o Universo
labirinto. O labirinto traz a chance de não voltar ao ponto de dançando. O rei
Raghunatha Nayak ,
partida e a chance de encontros. Daí, quando sai, o dançarino no século XVII, criou o

se libera de algumas coisas suas deixadas pelo caminho e se tratado da dança que
trazia os 108 Karana ,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

reveste de novos conhecimentos. A cidade diz que o os passos de Shiva.


Cada unidade de
dançarino pertence, então, comunica, alinhava memórias. O movimento foi
relacionada a uma
labirinto o dirige à aventura, ao extravio. Também à solidão e sílaba rítmica.
ao sombrio. O dançarino é meio Dionísio, meio Hermes.
Combina o êxtase e a embriaguez ao movimento e à
comunicação, etapas da criação.
O fluído e o flexível desse corpo adentram sulcos,
espaços estreitos e disformes. O sólido não é sempre sólido.
Já foi antes líquido, e vapor. Formas cambiáveis. O corpo é
moldável, ultrapassa seus limites. A pele parece sólida, mas
não encerra o corpo, não delimita um espaço fixo.
O conhecimento não se livra dos desejos e sensações,
não se separa do corpo. O corpo que dança amplia a extensão
do toque, estende a compreensão que tem do outro. A dança é
uma experiência de vitalidade, de alcance. Ela demole
preconceitos, estereótipos. A palavra oral e escrita envolve
um conjunto de órgãos e movimentos para chegar ao outro.
Glote, língua, gengiva, dentes, lábios, respiração, e ombros,
braços e dedos. “A palavra executa mil e uma contorções
físicas”21. Do concreto ao abstrato e de novo ao concreto.
Uma rede de significantes. As palavras, na boca, dançam.
Adquirem som, altura, ritmo.
A pele é feita de camadas. Nela, há trocas de oxigênio e
nutrientes. As possibilidades do corpo não ensinam a adaptar-
se, mas a bifurcar-se. Turbulências nas trocas, convulsões
protegem o corpo do pane. O corpo pode enfrentar riscos e
deslizamentos.
O corpo dança e se expressa, envolve o outro corpo
parado no movimento, nas imagens móveis, rápidas,
  114  

inapreensíveis ao intelecto. Sem que seja necessário fazer um


movimento. A visão faz os neurônios enviarem o estímulo
elétrico que tonifica o músculo. Um corpo que dança passa
informações para neurônios, ossos e músculos de outros
corpos.

Dia 8 – Escolhi um parangolé. Vesti-lo foi confuso.


Algum tempo tentando entender onde colocar pernas e
braços, onde cabeça, onde frente e trás. Parecia que a capa
permitia que eu sentisse onde funcionava, no meu corpo,
cada uma daquelas partes. Com a capa no corpo,
imediatamente comecei a dançar. Não era possível nem eu
queria impedir as expressões. Para HO, os parangolés são
uma extensão do corpo. Põem o corpo em relação consigo, a
capa em relação ao corpo e a ela mesma. A capa
potencializa o corpo e o instiga. Ela pede movimento e o
corpo faz. Porque depois de vestida não é fácil negar a capa,
não deixá-la ganhar vida. E dar vida ao corpo que a veste.
Era uma incorporação. Era um estado de invenção. A capa
no cabide era um amontoado de pano. A capa no meu corpo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

era um parangolé. Os movimentos prolongavam a capa,


liberavam os tecidos vários que a compunham. Prolongavam
o meu corpo. Ação. Era incorporação. Criação, descoberta.
E um gesto. Uma forma de presença, uma performance. Um
corpo em movimento no espaço.

A dança é uma experiência do corpo com linguagens. Martha Graham nasceu


em 1894. Estudou com
Até numa mesma linguagem há modulações. A contração do Ruth St. Denis e Ted
Shawn, cujos movimentos
corpo no trabalho de Martha Graham propunha um se inspiravam nas danças
movimento concêntrico, um recolhimento. Depois, a orientais. Mudou-se para
Nova York e criou sua
contração tornou-se mais próxima do alongamento. A forma companhia de dança. Sua
técnica relacionava
pode parecer quase a mesma, mas o movimento busca o respiração e movimento,

excêntrico. Como uma linha que se curva por causa do contração do centro do
corpo. Sua dança se
alongamento. Valéry viu dança numa tela. Badiou usa a apropriava do chão.
Louis Horst, figura
dança como metáfora do pensamento. Ela é um ato importante no cenário da

expressivo, criador. Uma forma de experimentar um ato total, dança moderna na época,
era colaborador de
de ser um ato total. Não somente uma contemplação do outro, Graham. Ele tinha grande
influência no trabalho
das coisas, do mundo, mas um estar no mundo. Não dançar dela. Insistia na
disciplina rigorosa, na
para fugir, para se retirar. O êxtase não é ausência. Dançar diminuição do improviso.
para vivenciar as possibilidades do corpo, para atingir a Eles se tornaram
amantes.
imanência do ato. A dança engendra imagens.

Esse ato, a imersão no ritmo, é um puro ato criador, uma arte


– é a criação do próprio ato, da continuidade; é também,
como o são todos os atos da expressão criadora, um criador
de imagens – aliás, para mim, foi como uma nova descoberta
da imagem, uma recriação da imagem, abarcando, como não
poderia deixar de ser a expressão clássica na minha obra.22
  115  

Esta dança não é interpretação. É rock. E o rock não é


dança da moda, não marca um período nem uma geração. O
rock persiste. Ele é invenção, porque não delimita passos e
espaços. Dançar rock é se liberar para si. A dança é expressão
adquirida com os movimentos do corpo, aponta um ato do eu,
uma forma de criação. Um intérprete pode ser um refazedor.
A criação pelo ato corporal, a dança mostra. Pode ser
estendida a qualquer forma de expressão. Não precisa ser
arte. A dança produz imagens fugidias que serão apreendidas
pelos olhos que as veem de maneiras diversas. Forçar o corpo
para fora de si e não apenas como deslocamento no espaço.
Impulso do movimento, emoção que age energicamente.

Dia 9 – Até quando tentamos nos livrar de todas as


regras, criamos uma regra nova – não criar regra nenhuma.
Decidi fazer um diário da dança, porque um dia li sobre a
topologia na matemática. Na topologia, a distância entre
dois pontos pode se alterar, porque um objeto pode se
deformar em outro. Resolvi experimentar as possibilidades
geométricas do espaço com o corpo. Era só. Para funcionar,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

tive que criar três regras iniciais. Recortei um retângulo


dentro do quadrado. Defini dimensões virtuais. Tinha pouco
mais da minha altura e da minha largura. Experimentei
movimentos num espaço virtual limitado. Lembrei que,
quando me encontrava num corredor estreito, gostava de
colocar os dois pés numa parede e as costas na outra. Ficar
sentada, ficar suspensa, alterar o espaço. Não era mais um
corredor, era um retângulo feito com duas linhas do meu
corpo e duas de concreto. Regras podem ser proposições.

Cada gesto da dança, cada um de seus traços, não é


uma consequência de outro, consequência de um estímulo do
corpo ou de uma coisa externa, cada um é a origem da
O corpo dos astronautas
mobilidade. Não significa que há apenas princípios do muda no espaço. Além da
coluna tornar-se mais
movimento. Pelo contrário. Não é possível encontrar um reta, aumentando a
ponto inicial. A mobilidade se desdobra a si mesma. Os altura, os órgãos
internos tendem para
movimentos ressoam. cima, deixando a cintura
mais fina. O sistema
A dança movimenta o ar que circula o corpo. A dança é cardiovascular que atua
aérea, pois desafia a força da gravidade. Permite que o corpo nas partes inferiores
levando fluidos e sangue
experimente diferentes planos, diferentes direções. Ela para cima, sem o efeito
da gravidade para o
possibilita outros olhares. A dança só pode brincar com a opor, faz com que o
gravidade, porque ela revela a força de sua retenção. O tronco fique inchado e as
pernas finas. A aparência
movimento mesmo o mais expansivo – aquele que libera uma é de um tronco
superexercitado, mas os
grande quantidade de energia, que fora concentrada no músculos se atrofiam
centro, em uma coisa –, possui algo que fica retido dentro rapidamente. A luta
contra o efeito da
dele. gravidade sobre o corpo
na Terra faz com que os
A dança é uma vontade. Ela exprime. Mas não precisa músculos se exercitem

haver um sentido nos movimentos gerados. Os movimentos diariamente.

 
  116  

na dança não precisam expressar uma emoção de tristeza ou


de alegria. Um movimento não precisa fazer sentir que há
algo para além dele. Ainda assim, a dança é uma linguagem
do corpo, que não indica um sentido. Algumas comunidades
entendem os movimentos sob outros aspectos. Movimentos
não expressam sentimentos. Eles indicam ações.

Voltando à questão tão interessante da linguagem Jacarés ficam mais


férteis e potentes
especializada, não posso deixar de lembrar o leitor, já que sexualmente à medida
ficou entendido que me aproximarei nestas páginas de tudo que envelhecem. Ficam
de boca aberta no sol,
o que tiver vontade de me aproximar, que os povos porque a pele é mais fina
primitivos ou selvagens, entre os quais as faculdades de nesta área, o que
permite a absorção mais
observação estão para as nossas assim como o olfato do cão rápida de calor. Seus
está para o do homem, desenvolvem seu vocabulário corpos podem restringir
a circulação sanguínea
segundo a quantidade de nuanças que percebem no estado apenas para o coração e
das coisas ou dos seres. O falecido cientista sueco o cérebro em ambientes
muito gelados. Os seus
Nordenskjöld, que explorou, há três ou quatro anos, a região órgãos internos se
assemelham mais com os
do Panamá, conta que os índios cunas, que habitam aquele das aves do que com os
país, possuem nomes para a diversidade das dobras das dos répteis. Possuem o
quarto dente maxilar
folhas segundo a hora e o vento, e que possuem nada menos inferior escondido
do que quatorze verbos para designar os quatorze dentro da boca quando
ela está fechada,
movimentos da cabeça do jacaré.23 diferente dos crocodilos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Jacarés podem saltar


para caçar, utilizando o
rabo como apoio.

Dia 10 – Quando desenhei um retângulo imaginário no


meu quadrado e dancei apenas nele, mantive a atenção no
espaço inteiro. O quadrado era uma referência de uma
extensão que, naquele momento, meu corpo não podia
atingir, mas que existia como possibilidade. Hoje, comecei
na borda esquerda-frente. Ia treinar deslocamentos. Formas
variadas de sair de um ponto e chegar a outro. Estava me
deslocando no plano baixo, usando pernas, braços e tronco,
uma mistura de movimentos de vários animais quadrúpedes
– não os rastejantes –, quando uma cigarra entrou pela
janela. Ela circulou a sala durante um tempo até pousar
dentro do quadrado. Eu não podia sair. Tive que diminuir o
meu uso do espaço. Dividir com a cigarra. Fiquei em pé,
fazendo movimentos lentos sem me deslocar para não mexê-
la. Num dado momento, ela começou a voar. Meus
movimentos tornaram-se enérgicos, intensos. Tinha que
mexer o tronco para me desviar dela. Eu não saia do meu
lugar.

Demorou para que os exercícios começassem a ser


anotados com o objetivo de avaliar a progressão. É no século
XVIII que as anotações tornam-se cuidados comuns entre
escritores, educadores, estudiosos de diferentes áreas. Eles
criavam um registro destinado à aprendizagem da eficácia
dos exercícios físicos para o corpo. São os primeiros a
apontar a criação de uma notação específica dos exercícios
  117  

do corpo. O movimento tornou-se medido e calculado. As


anotações acumularam referências. As anteriores não
focavam o aperfeiçoamento. Não tinham o cuidado da
comparação. Eram mais dedicadas ao estado sentimental, os
exercícios apareciam como atividades diárias dissolvidas
entre as outras. Só depois aparece a criação da escrita
dedicada ao corpo que se exercita. Contar os passos para
subir e descer escadas e os impulsos que o passo do cavalo
envia ao cavaleiro, analisar as melhores posições para
carregar fardos pesados, calcular a altura dos saltos das
crianças e das árvores escaladas. Os exercícios físicos não
eram padronizados, ainda pertenciam às atividades presentes
no cotidiano. Eram, no entanto, representados no papel para
futuras avaliações do corpo.
A coreografia diz respeito à composição e à notação da
dança. É a sua partitura. O balé clássico fez com que a Coreografia vem das
palavras gregas, Khoreia ,
nomenclatura de movimentos concebida na França, no século que significava dança, e
graphein , que se referia aos
XVI, fosse utilizada no mundo todo. Até hoje. O estilo surgiu atos de escrever, pintar e

na Itália. O seu desenvolvimento não aconteceu lá. O balé desenhar.

clássico afrancesou até o nome do primeiro coreógrafo


italiano.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

É comum na dança a presença de mais de um. Nas


comunidades mais antigas, nas danças da corte, a execução
era realizada por um grupo. Quando há um coreógrafo, há
uma posição de poder, alguém que dita o passo que deve ser
feito e como. Na história, essa posição tornou-se recorrente.
Bailarinos eram considerados intérpretes, executavam a
dança criada por outro. O coreógrafo minimizava a
heterogeneidade do grupo. Até se tentasse captar a
singularidade daquele que dançava, o coreógrafo tenderia a
fixá-lo no seu próprio modo de dança sem instigá-lo a ousar
por outros caminhos. Coreógrafos, de modo geral, tornaram-
se conhecidos por sua excentricidade, arrogância, imposição.
A dança contemporânea se rebelou. Desmistificou o
título. Não haveria distinção entre coreógrafo e dançarino.
Não há uma pessoa que defina sozinha a criação, que
imponha um vocabulário e que se coloque de fora do
processo, fora do trabalho coletivo. Alguns pararam de usar
os termos coreógrafo e coreografia. Alguns apenas
destituíram os termos dos significados até então adquiridos.
Merce Cunningham dançou na companhia de Martha
Graham. Saiu para desenvolver o seu próprio trabalho. Torse
tinha uma tabela espacial e uma tabela de movimentos,
ambas com 64 unidades distintas, que se cruzavam pelas
operações de acaso. Uma forma de notação.
A improvisação, a experimentação coletiva que podiam
partir de situações, gestos e lugares cotidianos passaram a
fazer parte do trabalho de criação. Não havia apenas um
compositor. Às vezes, não havia uma coreografia. Havia,
sim, uma estrutura, que norteava a dança. Os movimentos
  118  

que aconteceriam, nesse estrutura, eram resultado da


combinação de vários fatores, disposição dos corpos, espaço,
espectador, estímulos materiais, num dado momento. Mais do
que isso, os movimentos se distinguiam do balé clássico,
desde o início do século XX. A notação clássica não mais
servia para a dança que se propunha fazer.
Noverre, no século XVIII, fez uma distinção entre o ato
de composição e o ato de notação. No século XIX,
coreógrafo era aquele que compunha. Os bailarinos, mesmo
que contribuíssem na criação, não eram citados nem
nomeados de outra forma que não bailarinos. Cem ano
depois, Serge Lifar criou o termo coreautor para se distinguir
do notador e do bailarino que porventura viesse fazer parte da
autoria. O título não funcionou. A dança moderna não tinha
problemas em usar coreografia no contexto da composição e
coreógrafo para designar um criador. Alemães e americanos
podiam sê-lo. A maturidade, no entanto, faz Martha Graham
dizer que desenvolveu um trabalho e não uma coreografia,
faz Laban criar sua própria notação. Cinetografia ou
labanotação considerava “a multiplicidade dos parâmetros do
movimento e das situações do exercício cênico da dança”24.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Mas dançarinos não fazem coreografias, eles inventam


danças. Os problemas impostos na dança em relação à
notação, como o desejo de conservar a obra, a mutação
ocorrida na passagem do sensório-motor à notação, a leitura
da partitura por futuros dançarinos e a retomada da obra em
outro tempo, a redução do movimento a uma estrutura
significante, a um sistema de sinais gráficos que dê conta de
uma experiência motora e espacial, não podem ser
encarcerados nas dificuldades com a execução. Não devem
ser vontade de preservá-la dos atravessamentos. Das outras
artes, das novas tecnologias que podem servir ao registro, do
desejo de manipulação futura.

Na etnologia, Marcel Mauss foi mexer naquilo Andar sem saber


colocado de lado sob o rótulo de “diversos”. Um conjunto de absolutamente o que
vai acontecer.
desconhecidos que marcam as fronteiras das ciências
humanas. Os indefinidos. Os “diversos”, espaço heteróclito,
abarcavam os problemas urgentes, as coisas a se descobrir.
As técnicas corporais pertenciam à essa mixórdia. Mauss fez
um trabalho de taxonomia. Sua distinção: a descrição de
técnicas corporais físicas e motoras. Ele escolheu fazer
essencial aquilo que para todos os outros era acessório,
porque mecânico, básico, comum, repetitivo, sem valor
dentre os grandes temas culturais de seu período.
  119  

As técnicas corporais são como sabemos servir de


nosso corpo. Indicam uma época, um gosto, uma estrutura de
pensamento. Suas especificidades as definem. Corpos as
aprendem. Técnicas corporais alteram-se. A natação, nesse
momento, usava a cabeça fora da água, e engolir água era
normal. Aprendia-se a nadar e só depois a mergulhar. Foi só
no século XX que o marinheiro que não sabe nadar, começou
a aprender, na França. A corrida, antes, era feita com os
punhos juntos do corpo, o que limitava os movimentos.
Os gestos que nos parecem mais naturais, aqueles
executados muitas vezes ao dia todos os dias e que também
por isso parecem parte de nosso fenótipo, hábito tão
incrustado que parece não ter influência de qualquer fator
social, são construídos na submissão de nosso corpo às
normas coletivas: andar, comer, dormir, sentar, pôr-se em
posições sexuais. Variam de acordo com costumes e mantêm
um certo padrão, humano. Talvez, chamá-los naturais nos
adultos fosse mesmo uma expressão inadequada. Porque o
corpo vai se comportando a tantas regras sociais, aos pesos
das vestimentas, dos adereços, dos instrumentos, que o
natural é, de fato, uma aglomeração de pré-requisitos. As
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

roupas identificam, igualam, chamam a atenção, prestam-se à


sedução. São fantasias, são cobertas. Andar é um desses
gestos naturais, que, quando de sapatos, sofre transformação.
Sapatos mexem com a posição dos pés. Sapatos deformam os
pés.
O gesto, aqui, é um verbo de ação. Andar projeta o
Em 1935, antes das
tronco para cima, liberando as pernas. Elas se alternam. Olimpíadas de Berlim,

Braços se movimentam. Pulsos passam ao lado da cintura, Jesse Owens andou no ar


e estabeleceu um novo
cotovelos arqueiam. A respiração está ligada ao ritmo do recorde para o salto em
distância que se manteve
corpo. Mulheres andam diferente de homens. Porque durante 25 anos. Sua
marca: 8,13 m.
possuem corpos diferentes, porque respondem a diferentes
demandas sociais. Em algumas culturas, as mulheres
aprendem o balanço acentuado dos quadris. Homens têm que
aprender o andar duro da marcha. Traçadas as limitações, o
gesto do andar é único para cada um. Pode estar inserido em
costumes bastante rígidos, mas traz a individualização que o
próprio corpo tem.

Pés para fora, pés para dentro. Extensão da perna. Rimo-nos


do “passo de ganso”. É o meio para o exército alemão obter
o máximo de extensão, dado, sobretudo, que o conjunto dos
homens do norte, de pernas altas, gostam de tornar o passo o
mais longo possível. Por falta desses exercícios, grande
número de nós, na França, ficamos de certa medida
cambados do joelho. Eis uma dessas idiossincrasias que são
ao mesmo tempo da raça, de mentalidade individual e de
mentalidade coletiva. As técnicas como as da meia-volta são
as mais curiosas. A meia-volta “por princípio” à inglesa é
tão diferente da nossa que exige todo um estudo para ser
aprendida.25
  120  

Cada passo dado cria uma nova posição, assume uma


direção espacial. Andar diz sobre a forma de vida. O gesto de
andar, intencional ou não, conta uma história. Um gesto do
corpo é um movimento que, para acontecer, não precisa de
uma explicação satisfatória, que satisfaça o outro, que faça
com que o outro compreenda exatamente o que quero dizer.
Primeiro há o gesto (expressão do corpo), depois a ideia
(expressão da cultura, intertexto).
O gesto de andar é como nos apresentamos ao mundo.
É anterior ao aperto de mão, à aproximação física, à
linguagem verbal de um corpo na presença de outro. Para
todos estes, antes, é preciso chegar. O gesto de andar é um
indício, um aviso. Pode ser um preparo. Não é sempre o
mesmo. Como tiro o pé do chão, a distância que utilizo para
cruzar a perna do ar com a outra, o pisar (qual a parte do meu
pé sustenta o peso do meu corpo na caminhada), são
movimentos básicos. É a maneira que a estrutura corporal
encontrou, ao longo dos anos de vida, de se organizar para
que se locomova com as pernas. Corpo ereto, não mais
quadrúpede.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

A partir daí volto a andar normalmente e a observar se


houve alguma mudança na minha relação com o chão, na
minha postura, na minha sensação do peso do corpo.
Finalmente, trato de reorganizar meu movimento de acordo
com essa percepção, buscando estabelecer uma relação de
equilíbrio: o peso do corpo para fora, os quadris sobre as
pernas e o tronco sobre os quadris; a cabeça numa posição
de aproximadamente 90º em relação ao pescoço e o corpo
todo voltado para a frente, enfatizando o trabalho da
musculatura anterior e procurando anular a força da
musculatura posterior que, normalmente, atua como freio do
movimento e nos puxa para trás.26

Só de se observar o andar, antes mesmo de se propor Para que se


qualquer alteração, interfere-se nele temporariamente. O compreenda os
movimentos corporais,
corpo é assim sensitivo. Mesmo o olhar do outro, altera-o. O um dos exercícios da

corpo é assim flexível. Ombros abertos podem ser uma técnica de Laban é
observar as ações
disposição, ombros caídos podem ser distanciamento, passos corporais de uma
pessoa em seu
pesados e ágeis podem ser agressividade, passos arrastados cotidiano, de um ator
encenando, de um
podem ser relaxamento. O gesto de andar indica. O corpo bailarino executando
mente. O gesto de andar varia, nele está implicado o desejo, uma dança típica.
Observar os
um posicionamento somático, estético e político. A relação movimentos permite
perceber melhor as
de equilíbrio que mantenho com o chão, a abertura da variações do uso do
articulação da coxa com a bacia, a posição dos dedos, a corpo em relação aos
fatores de peso,
relação do tronco com as pernas, não. Essa mudança pede espaço, fluência e
tempo.
treinamento.
Quando o homem ficou ereto, o gesto de andar serviu à
caça, à fuga. Ampliou a visão. Depois, andar era,
principalmente, deslocar-se. Ampliado o alcance da visão, o
andar expandiu-se para uma área maior. Vieram os meios de
  121  

transporte, o andar reduziu-se. Passou a envolver pequenas


distâncias. A ciência avisou que a imobilidade causava
doenças. Andar virou esporte. Andar sempre foi um gesto de
apresentar-se ao mundo, um gesto de exposição. E uma
forma de conhecer.

Gestos são movimentos corporais e movimentos dos Escrever com palavras


instrumentos unidos ao corpo. Mas nem todos os movimentos cheias de memórias.

corporais são gestos. O gesto não se explica por sua causa,


porque, no gesto, há uma vontade, um impulso anterior ao
movimento, gerado no corpo. Causas físicas, sócias, culturais
estão presentes no gesto, mas não necessariamente tocam o
motivo que o originou. Ele expressa e articula algo,
representa, dá um sentido a algo. Porque nos reconhecemos
no outro, aproximando suas motivações e reações das nossas
próprias, podemos ler o gesto do outro. Nem sempre a leitura
é correta. Essa atmosfera em comum que nos permite
compreender um gesto que não seja o nosso não passa
somente pelo pensamento. Passa por todo o corpo. O gesto
afeta o observador.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Fukaeri, porém, não tinha a intenção de escrever desse modo


sugestivo e enigmático. Esse era o seu jeito natural de se
expressar. O único jeito de ela conseguir transmitir imagens
e pensamentos era usando esse tipo de vocabulário e
construção frasal. Para conversar com ela, era preciso se
acostumar com esse modo específico do uso da linguagem.
Para entender o que ela falava, o interlocutor precisava
mobilizar toda sua capacidade e seu dom de discernimento
para não só mudar a posição das palavras, como também
preencher adequadamente as lacunas.27

As anotações dos gestos nos esportes são inventários


minuciosos. Mostram alterações. Como o corpo era visto,
entendido, utilizado. Como o corpo desempenhava ações,
como acumulava progressos físicos. A forma que o corpo
deve se comportar em cada situação inscreve uma história
dos gestos no esporte. História escrita. Os gestos dos quadris
das lutas, gestos precisos e soltos do jogador de golfe, gestos
insistentes e fatigados dos caminhantes. Informações
presentes no papel. Antes da fotografia e do cinema, era
preciso descrever os movimentos do corpo no esporte. Era
como se registrava o conhecimento e se adquiria a precisão
dos gestos. Era a única forma de rever os próprios
movimentos. As anotações também ficaram mais precisas. A
compreensão do corpo em cada época, sua estrutura e
funcionamento, aparece na escolha do vocabulário para a
descrição de seus gestos. O conhecimento da fisiologia fez
com que os movimentos do corpo fossem traduzidos mais
adequadamente para outra linguagem.
  122  

A construção de uma noção de indivíduo, que atinge


seu auge na segunda metade do século XX, interfere nos
gestos dos corpos que se exercitam, interfere no esporte. A
heterogeneidade nos modos de ação, nos estilos, nos espaços,
nas intenções da prática, faz respeitar as diferentes
motricidades, faz surgir novos esportes. A insistência no
conhecimento do próprio corpo desenvolve um vocabulário
baseado em imagens do corpo por dentro. Imaginar a energia
fluindo pelo corpo, os líquidos passando por canais, uma cor
envolvendo todo o corpo. O gesto de escrever distribui
imagens no papel.
O gesto de escrever arranha a superfície. Escrever é
penetrante, irruptivo. Escrever é escavar. Escrever é uma
urgência. É um traço expressivo. É um gesto político,
estético, pela prática, pelo conteúdo. A escritura conta uma
história única, que percorre séculos, do ser humano. Feita, na
maior parte, de vozes dominantes, não indica uma verdade. A
escritura é perpassada por milhões de histórias. Muitas delas
presas nas entrelinhas.
O gesto de escrever é cultural. Alfabetos são compostos
por partículas significantes especiais, porque únicas para uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

comunidade e incompreensíveis para outras. Como a escrita


acontece no papel é também específico. Há aquelas da
esquerda para a direita e de cima para baixo. Há escritas da
direita para a esquerda. Há caracteres que designam palavras
ou conceitos. Os movimentos do gesto de escrever variam
para cada comunidade e, em menor escala, feita de detalhes
sutis, variam em cada corpo. A escritura é uma maneira de
estar no mundo. Envolve os dedos, a mão, cotovelos e
ombros. Envolve o tronco. Há quem escreva com os pés,
quem escreva com a boca. Escrever envolve o corpo. Muitas
vezes, o corpo todo. Canhotos e destros organizam o corpo de
maneira diferente no gesto de escrever. Cada corpo possui
suas idiossincrasias nos movimentos executados nesse gesto.
A escrita necessita de utensílios. A tinta e a superfície.
Nas Olimpíadas de Roma,
Foi feita em pedra, madeira, papiro, papel. A escrita na em 1960, Ralph Boston,
parede incorpora as ondulações e as cavidades presentes. No com apenas 21 anos,
supera o recorde do
papiro, a escrita seguia paralela às fibras. O papel pode ser salto em distância. Sua
marca: 8,21 m.
pautado e a mão se arrasta sobre ele. Se fica área, a mão faz
movimentos redondos. Antes, as palavras, como as temos,
deveriam ser redondas, uma letra unida à outra. A tinta só
deixava a superfície quando a palavra terminava. Só depois
se cortava o t, colocava-se os pingos e acentos. Era a “arte de
escrever bem”. Havia os cadernos de caligrafia. Mais do que
ser legível, a escrita deveria aparentar harmonia, higiene.
Com as máquinas de escrever, os dedos começaram a saltar.
Os movimentos das mãos tornaram-se pulsados. Movimentos
staccatos. Mudanças do gesto.
  123  

Em minha memória há palavras, que não são só


instrumentos para absorver a virtualidade que é para ser
expressa e dar-lhe o que poderia se chamar uma forma
tipográfica. As palavras são unidades, que vibram e têm sua
própria vida: têm seu ritmo, sua harmonia, suas melodias.
Suas raízes ocultam a sabedoria antiguíssima de toda a
história, cujo herdeiro sou eu. As palavras projetam todo um
parâmetro de conotações. Por isso, não sou livre para
escolher, entre as palavras da minha memória, aquelas que
se adaptam à virtualidade que há para ser expressa. Primeiro
tenho que escutá-las.28

Na escritura, é preciso deixar as palavras percorrerem o


corpo. Ritmo, harmonia e melodia são vivenciados por ele.
Novas palavras são agrupadas ao meu léxico pessoal quando
são experienciadas numa frase, numa escuta, numa marca
física. O gesto de escrever é feito rede, uma palavra convoca
a outra. O gesto de escrever começa antes da escritura. Ao
dar forma ao pensamento. Depois, a escrita une palavras em
frases, acrescenta sinais, pontos e vírgulas. Cria linhas. Salta-
as. Insere espaços. São os parágrafos. O pensamento se
articula também pelos gestos. Gestos são movimentos do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

corpo. Escrever é deixar o pensamento percorrer o corpo até


chegar à superfície do material escolhido. O corpo gesticula e
se inscreve. Alguns corpos se sentam para escrever, outros
ficam em pé. Há modos de sentar-se que tornam o corpo
preparado para executar movimentos, como sentar-se em
cima dos pés. Nesta postura, o corpo pode fazer um novo
movimento com agilidade. A postura permite. Basta levantar
o quadril. Quando se senta com as pernas cruzadas, o ataque
repentino torna-se mais difícil. É preciso descruzar as pernas,
separá-las, trocar o apoio que está no chão.
As máquinas de escrever possibilitaram movimentos
mais dinâmicos com as mãos. Mãos dando agilidade ao
pensamento. O computador fez a escrita virtual. Fez com que
ela pudesse desaparecer sem rastros. O surgimento das
máquinas não limita ou empobrece o gesto. Suplementa-o.
Novas mídias ampliam as possibilidades da escritura.
Mudanças do gesto.
Conhecer as minúcias de uma língua permite liberdade
na escritura, possibilita experimentações. Saber as regras dá a
opção de subvertê-las. No gesto de escrever, definimos um
estilo, reunião de nosso conhecimento linguístico e de nossa
experiência. O estilo é a escolha do tema e do vocabulário. É
um modo de expressar único, junção do movimento do corpo
e das palavras. O gesto de escrever é uma maneira de ser no
mundo. Não é a única. É uma maneira de expressar um
pensamento. Não é a única. É uma maneira de criar uma
imagem. Não é a única. Para muitos, as palavras têm força,
dominam, seduzem. Para eles, apesar de todos os textos
existentes, ainda será preciso escrever. Não para dizer o que
  124  

não foi dito. Apenas para se deixar contaminar pelo gesto. O


gesto de escrever, nesses casos, é como tais pessoas são no
mundo.

A dança é feita de gestos unidos pelos movimentos do Saltar para um outro.

corpo. Por lidar com movimentos, a dança traz novos e


elimina outros. Cria expressões de si e impressões no outro.
Cada gesto tem uma antecipação da nossa musculatura. É a
antecipação do ataque que torna o movimento único. Todo
corpo possui uma atitude em relação à gravidade, produtora
de uma carga afetiva, que faz diferir o gesto e dá qualidade a
ele.
O gesto só tem sentido no seu contexto. Uma
expressividade ligada a uma atitude, a uma postura, a uma
emoção. A postura que assumimos em um dado momento nos
prepara para alguns gestos e não para outros. Para executar o
gesto de saltar, preciso organizar a minha postura. A
percepção do corpo para um dado gesto, o estado tônico
necessário, dá-se em segundos. Não é concentração
centralizada num único ponto. É uma atenção ao corpo e ao
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

meio que o circunda, a tudo o que é relevante num dado


momento. Quanto mais treinamos o corpo, mais ampliamos a
plasticidade da nossa percepção. Mas cada tipo de
treinamento organiza o corpo à sua maneira e faz com que ele
se perceba – antecipe-se – também à sua maneira. Todos os
corpos se preparam para o salto.
O gesto de saltar é deslocamento. O salto pode ser
Bob Beamon, em 1968,
apenas na vertical, pode ser na vertical e horizontal. Saio do nas Olimpíadas do
chão, atinjo uma altura e volto. No salto está implicado a México, correu no ar e
estabeleceu o recorde do
queda. Diferente do gesto de andar, o salto libera todo o salto em distância com
uma diferença de 55 cm
corpo no ar. Pode-se girar, contorcer o corpo, movimentar para o recorde anterior.
braços, pernas, cabeça e tronco antes de chegar ao chão. Levou 23 anos para que
outro atleta o superasse.
Desenhos no ar. Formas breves. O gesto de saltar é inventivo, Sua marca: 8,90 m.

permite ao homem dar novas funções às partes do corpo,


temporariamente. A densidade do ar faz diferença no salto.
No salto, o homem ocupou o espaço aéreo.
O gesto de saltar nos aproxima dos animais. O homem
pode imitar os saltos de diferentes animais. Não conseguirá a
mesma desenvoltura que eles. Animais que utilizam o salto
como meio mais comum de deslocamento possuem a
estrutura corpórea adaptada para fazê-lo. Fazem do salto o
uso proficiente de seu esforço. Homens não usam o salto
como única forma de deslocamento. Não conseguem.
Homens desenvolveram diferentes tipos de saltos.

O próprio Ushikawa admitia ser como um animal de vida


noturna que se oculta na escuridão da floresta à espreita da
presa. Sabia aguardar pacientemente o momento certo para
atacar. Antes do bote, cuidava em não deixar nenhum
vestígio de sua existência. O importante era se ocultar e
  125  

saber distrair o outro. Desde o tempo do primário ele agia


dessa maneira. Nunca dependia dos outros, e tampouco
demonstrava seus sentimentos.29

Em todo treinamento, salta-se. Basquete, natação,


futebol, patinação, ginásticas, danças. Nas lutas, eles não
saltam. São arremessados. Homens criaram esportes em que
o gesto de saltar é a ação principal. Salto ornamental, salto
em altura, salto em distância, salto com vara, salto em
trampolim, salto triplo. Na Grécia Antiga já se saltava do
rochedo no mar. O salto ornamental ainda não era um
esporte. Numa versão atual, passaram a saltar com utensílios,
skate, bicicleta, prancha, paraquedas.
Nos jogos olímpicos da Antiguidade, o principal evento
era o pentatlo, formado por corrida, salto em distância,
lançamento de disco, de dardo e luta livre. Acontecia no
segundo dos cinco dias. Os esportes não faziam distinção das
habilidades militares, de modo que tinham relação com as
atividades físicas realizadas no cotidiano. Se os atletas eram
semideuses não o eram por praticarem o impraticável. Eram
porque executavam as melhores performances, porque, dali,
sairia o atleta que mais se aproximava da perfeição física.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Um herói. Um dos gestos que esse corpo deveria realizar no


mais alto nível de perfeição possível era o salto. Para isso, ele
usava um peso em cada mão feito de madeira ou de metal. A
forma do peso variava. O impulso era adquirido sem sair do
lugar através do arremesso dos braços para frente. Quando no
ar, os braços e pernas buscavam o alinhamento paralelo, o
corpo tentando formar um retângulo com o tronco. Próximo
de aterrissar, o atleta jogava seus braços para trás e soltava os
pesos para prolongar ainda mais o salto. A distância máxima
percorrida registrada é de 7,05 m. Só no século XIX, um
irlandês a atingiu. Aos 25 anos,

Hoje, o atleta corre, pelo menos, 40 m antes de saltar. A Cunningham fez o


primeiro trabalho com
corrida serve à impulsão. O último passo é dado numa tábua John Cage. Aos 20 e
poucos, passa a
que fica no nível da pista e da caixa de areia. O atleta frequentar a casa de
Peggy Guggenheim e
caminha no ar e, no momento da queda, empurra seus braços conhecer artistas das
para trás para tentar prolongar a distância. O recorde só vale artes visuais e da música.
Aos 27, saí da
se o vento não ultrapassar a marca de 2 m/s na direção a Companhia Grahan para
desenvolver seu próprio
favor. Saltar mais longe que alguém já saltou sem hesitar, trabalho. Vai pela
seguindo uma sequência de movimentos com restrições primeira vez a Black
Mountain. Começa o
claras, traçar uma parábola no ar, confrontar as forças relacionamento amoroso
com John Cage. Aos 33
naturais, distinguem os saltadores, fazem com que o salto em anos, cria a Merce
distância continue a ser treinado. Cunningham Dance
Company. Só quando
Saltos são gestos da vida cotidiana. São usados para estavam velhos,
Cunningham e Cage
atravessar espaços que não podem ser pisados, para elevar-se, foram morar juntos.
para avançar num percurso. São executados nos treinamentos
físicos para aquecer e fortalecer a musculatura, para queimar
a gordura corporal. Nas danças, os saltos ganham formas no
ar. Corpos se direcionam para cima ou projetam-se em mais
  126  

de uma direção. É a organização do corpo para cima que dá a


leveza aparente ao dançarino. No balé clássico, os saltos já
foram considerados voos. Era o século dos românticos. Eles
se opunham à postura sentada dos burgueses. Na dança
moderna, os saltos tornaram-se mais explosivos, porque
partiam de preparos corporais muito diferentes, porque não
queriam representar a delicadeza nem as formas geométricas
harmoniosas. Merce Cunningham dizia que um salto na
dança é só um salto na dança. Ele intentava retirar a dança do
lugar de criação de sentido, queria que a dança não fosse
considerada uma narrativa linear. Um movimento deve ser
visto como um movimento. Há nele a potencialidade
necessária para ser por conta própria. O gesto de saltar tira-
nos do lugar, muda a perspectiva. Quando saltamos,
alteramos o campo de visão. E não são os olhos que buscam,
é o corpo. O gesto de saltar concede outro olhar.

As mãos, depois que se liberaram do deslocamento, Fotografar é filosofar

ganharam novas funções. Mãos fazem muitos gestos. por imagens.

Aqueles do cumprimento e da sinalização, aqueles que


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

acompanham e dão desenvoltura à fala. Mãos ainda agarram,


ainda pegam, ainda podem escalar. As mãos construíram
instrumentos. Novos instrumentos usados pelas mãos. Elas
participam do gesto de fotografar.
Fotografar traduz um gesto. Porque, aqui, há dois
gestos. O gesto do corpo que é fotografado, que perde suas
dimensões para fixar-se numa tela plana, e o gesto de
fotografar, que pode tornar-se o foco central da ação.
Fotografar. Na fotografia, se o que é fotografado fica parado,
o fotógrafo se move, se o que é fotografado se move, é
preciso que o fotógrafo fique o mais próximo da imobilidade
para conseguir capturar o momento exato.
O gesto de fotografar é uma ação contemplativa. A
fotografia resulta de um olhar o mundo. Mais do que
direcionar o olhar a algo, o fotógrafo busca um ponto de
vista. O ponto de vista se adquire numa disposição do corpo
no tempo e no espaço, o corpo precisa se movimentar.
Sentar-se, esticar-se, dobrar o corpo em posições pouco
convencionais ou quase impraticáveis para ele, subir em
coisas, aproximar-se de beiras, colocar-se em risco.
Fotografar pede flexibilidade do olhar e do corpo. Pede
movimentos variados. Todos feitos com um câmera na mão.
Movimentos ritmados. O tempo é ditado pela coisa
fotografada.

Como se ela ouvisse o som do disparo, Fukaeri olhou


rapidamente em direção à câmera. Através do visor, ela e
Ushikawa ficaram como que frente a frente. Ushikawa
conseguia ver claramente o rosto dela. Ele a observava
através da lente telescópica. Simultaneamente, Fukaeri o
  127  

encarava pelo outro lado. Os olhos dela captavam o rosto de


Ushikawa no fundo da lente. Suas negras e delicadas pupilas
de azeviche refletiam nitidamente o rosto de Ushikawa. Uma
sensação de contato estranhamente direto. Ele engoliu em
seco. Não. Não podia ser.30

O fotógrafo manipula a situação para encontrar a cena


escolhida. Seleciona os raios de luz que quer destacar. Altera
a luz, altera o espaço. Muitas vezes sem acrescentar ou retirar
nada. Apenas com o seu movimento, com a escolha do foco
em determinados pontos. Outras, alterando o próprio
ambiente, acrescentando ou retirando a luz, mudando coisas
de lugar. A própria presença do fotógrafo manipula a
situação, e ela o modifica. O fotógrafo toma decisões, define
posições. Elas o situam no mundo. Tanto ele causa uma Em 1992, Mike Powell
fez o salto mais distante
reação no fotografado quando opta pelo momento, pelo que já computado na história
do esporte, 8,99 m. Não
quer mostrar, quanto é afetado pela coisa fotografada. Mesmo valeu, pois o vento
que uma paisagem. Ele deve situá-la, como deseja, dentro do favorável estava acima
do permitido. Foi ele
visor de seu aparato. Se uma panorâmica ou um detalhe, se a quem superou o recorde
do salto em distância,
expressão de uma parte do corpo ou a expressão do corpo em 1991, no Mundial de

inteiro, o aparato está junto do corpo. Não é um corpo, é Atletismo de Tóquio. Sua
marca: 8,95 m.
parte dele. A câmera se movimenta junto do corpo do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

fotógrafo, é manuseada por ele.


Só depois, ele dispara. Ao fazê-lo, é necessário um
controle corporal completo para manter-se parado. Um único
dedo se mexe. A atenção não está no dedo. Está no corpo
todo, no ambiente, na cena que será capturada. O gesto de
fotografar não isenta o ambiente e o que se quer fotografado.
Tudo participa. O fotógrafo é quem dispara.
O gesto de fotografar se aproxima do gesto filosófico.
Neles, há um olhar que pretende captar o mundo como
imagens distintas e não como imagens indivisíveis. Escolhe-
se uma posição, vinda de uma série de decisões abruptas – a
dúvida metódica – e este ato faz manipular a situação, não
significa controlá-la. A reflexão filosófica está no olhar o
visor. Ao olhá-lo, o fotógrafo se vê. Tem o domínio de si.
Uma forma de liberdade. Não é preciso um espelho real. É
uma disposição autocrítica que pode ser percebida na
qualidade da imagem. É preciso saber o momento exato de
parar de olhar para obter a imagem reveladora.

Quero dizer que fotografar é um gesto que translada certas


atitudes filosóficas a um novo contexto. Na filosofia como
na fotografia, a busca de uma posição é o aspecto manifesto.
A manipulação da cena, que pode impressionar, nem sempre
é admitida facilmente; mas, de qualquer forma, caracteriza
os distintos movimentos da filosofia, e o aspecto autocrítico
é aquele que nos permite julgar se a manipulação foi
alcançada ou não.31
  128  

Cada fotografia faz principiar novas buscas. O gesto de


fotografar é a soma de decisões tomadas diante da coisa
fotografada. Há um momento exato, um preparo. Há uma
imagem.

                                                                                                               
1
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 118.
2
RACIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2012, p. 22.
3
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 72-
73.
4
CORBIN, A., COURTINE, J.J. & VIGARELLO, G. História do corpo:
Mutações do olhar. O século XX. Vol. 3. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p.
208.
5
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 35.
6
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 48.
7
MÜLLER, J. P. My system: 15 minutes’ exercise a day for health’s
sake. London: Link House, s/d, p. 14.
8
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 257-
258.  
9
LARTIGUE, J. H. Entrevista a Hervé Guibert. Le Monde. Paris, 1985.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Disponível em: <http://www.lartiguenoims.com.br/entrevista-lartigue-


herve-guibert/#.VQBB-EJN3Cc>. Acesso em: 11 mar. 2015.
10
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 238.  
11
LARTIGUE, J.H. Entrevista a Hervé Guibert. Le Monde. Paris, 1985.
Disponível em: <http://www.lartiguenoims.com.br/entrevista-lartigue-
herve-guibert/#.VQBB-EJN3Cc>. Acesso em: 11 mar. 2015.
12
LARTIGUE, J.J. Jacques Henry Lartigue: a vida em movimento.
Textos de Martine D’Astier, Michel Frizot, Shelley Rice. São Paulo:
IMS; Paris: Hazen, 2013.
13
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 295.
14
ROUSSEAU, J. J. Emílio ou Da educação. São Paulo: Martins Fontes,
1995, p. 163.
15
GUMBRECHT, H. U. Graciosidade e estagnação: ensaios escolhidos.
Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2012, p.108.  
16
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 299.  
17
CORBIN, A., COURTINE, J.J. & VIGARELLO, G. História do
corpo: Mutações do olhar. O século XX. Vol. 1. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012, p. 324-325.
17
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 35.  
18
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 75.  
19
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 31.
20
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 315.
21
SERRES, M. Variaciones sobre el cuerpo. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2011, p. 96.
22
OITICICA, H. A dança na minha experiência. Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/programaho/>. Acesso em: 18 mar. 2015.
23
VALÉRY, P. Degas dança desenho. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.
149.
24
MARZANO, M. Dicionário do corpo. São Paulo: Edições Loyola,
Centro Universitário São Camilo, 2012, p. 252.
25
MAUSS, M. As técnicas corporais. In. Sociologia e Antropologia. São
Paulo: EPU, p. 227.
26
VIANNA, K. & CARVALHO, M. A. A dança. São Paulo: Siciliano,
1990, p. 111.
27
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 225.  
  129  

                                                                                                                                                                                                                                   
28
FLUSSER, V. Los gestos: Fenomenología y comunicación. Barcelona:
Herder, 1994, p. 35.  
29
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 197.  
30
MURAKAMI, H. 1Q84. Vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 249-
250.  
31
FLUSSER, V. Los gestos: Fenomenología y comunicación. Barcelona:
Herder, 1994, p. 106.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

 
  130  

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
  131  

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

 
 
 
 
 
 
 
   
 
 
 
 
 
 
  132  

 
 
 
 
 
 
 
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

 
 
 
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

 
 
 
 
 
 
 
 
 
133  
  134  

 
 
 
 
 
 
 
 
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

 
 
 
  135  

Referências bibliográficas

AGAMBEN, G. O autor como gesto. In: Profanações. São Paulo:


Boitempo, 2007, p. 55-63.
_______. Notas sobre o gesto. In: Revista Artefilosofia. Ouro Preto, n.4,
jan. 2008, p.9-14.
ARTAUD, A. Para acabar com o julgamento de Deus. Texto-poesias de
transmissão radiofônica.
______. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BADIOU, Alain. Pequeno Manual da Inestética. São Paulo: Estação
Liberdade, 2002.
BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: F.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Alves, 1989.
_______. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação
Liberdade, 2003.
_______. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
_______. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007.
CAGE, J. De segunda a um ano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014.
CORBIN, A., COURTINE, J.J & VIGARELLO, G. História do corpo:
Mutações do olhar. O século XX. Vol. 1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
______. História do corpo: Mutações do olhar. O século XX. Vol. 3.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
CARLSON, M. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
CAGE, J. De segunda a um ano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014.
CARR, C. On edge: performance at the end of the twentieth century.
United States: Green Press, 1994.
CARREIRA, A. L. A. N., VILLAR-QUEIROZ, F., GRAMMONT, G. de et
al.(Org.). Mediações Performáticas Latino Americanas. Belo Horizonte:
Faculdade de Letras/UFMG, 2003.

 
  136  

______. Mediações Performáticas Latino Americanas II. Belo


Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 2004.
CASCUDO, L. C. História dos nossos gestos. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
CLARK, L. Caminhando. Três Rios: Associação cultural O mundo de
Lygia Clark, 1964. Disponível em:
<http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=17>. Acesso
em: 31 mar. 2015.
COHEN, R. Performance como Linguagem – criação de um tempo-
espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva, 2007.
CUNNINGHAM, M. O dançarino e a dança: conversa com Jacqueline
Lesschaeve. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014.
DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992.
DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: História da arte e tempo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.


DUQUE-ESTRADA, P. C. Derrida e a escritura. In.: Às margens: a
propósito de Derrida. Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002, p. 9-28.
FLUSSER, V. Los gestos: Fenomenología y comunicación. Barcelona:
Editorial Herder, 1994.
GELB, M. O aprendizado do corpo. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
GENET, J. O ateliê de Giacometti. Sao Paulo: Cosac & Naif, 2003.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos,
emblemas, sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990, p.143-179.
GLOSSÁRIO de Derrida. Supervisão: Silviano Santiago. Rio de Janeiro:
F. Alves, 1976.
GLUSBERG, J. A arte da performance. Tradução Renato Cohen. São
Paulo: Perspectiva, 2009.
GODARD, H. Gesto e percepção. In: Lições de dança 3. Rio de Janeiro:
Editora UniverCidade, s/ a, p. 11-35.
GOLDBERG, R. L. A arte da performance. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
GUATTARI, Félix. Caosmose. São Paulo: Editora 34 Ltda, 2012.

 
  137  

GUMBRECHT, H.U. Corpo e forma: ensaios para uma crítica não-


hermenêutica. João Cezar de Castro Rocha (org.). Rio de Janeiro:
EdUERJ, 1998.
______. Elogio da beleza atlética. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
______. Graciosidade e estagnação: ensaios escolhidos. Rio de
Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2012.
HADOT, P. O que é a filosofia? São Paulo: Edições Loyola, 1999.
HOUAISS, A. Grande dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Disponível em: < http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em: 02 Jan. 2015.
LABAN, R. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.
LARTIGUE, J. H. Jacques Henry Lartigue: a vida em movimento.
Textos de Martine D’Astier, Michel Frizot, Shelley Rice. São Paulo: IMS;
Paris: Hazen, 2013.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

______. Entrevista a Hervé Guibert. Le Monde. Paris, 1985. Disponível


em: <http://www.lartiguenoims.com.br/entrevista-lartigue-herve-
guibert/#.VQBB-EJN3Cc>. Acesso em: 11 mar. 2015.
LEIRIS, M. Espelho da tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naif, 2001.
LIMA, D. Gesto: práticas e discursos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.
MARZANO, M. Dicionário do corpo. São Paulo: Edições Loyola, Centro
Universitário São Camilo, 2012.
MAUSS, M. As técnicas corporais. In: ______. Sociologia e
antropologia: volume II. São Paulo: EPU, 1974, p.209-233.
MICHAUD, P. A. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2013.
MÜLLER, J. P. My system: 15 minutes exercise a day for health sake.
London: Link House, s/d.
MURAKAMI, H. Do que eu falo quando falo de corrida. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2010.
_______. 1Q84. Vol. 1, 2, 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
NAZARETH, P. Paulo Nazareth: arte contemporânea/ LTDA. Textos de
Janaina Melo... et al. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012.
NANCY, J.L. Corpus. Lisboa: Vega, 2000.
NOLL, J.G. Nado livre. In: A máquina de ser. Rio de Janeiro: Nova

 
  138  

Fronteira, 2006.
OIDA, Y. O ator invisível. São Paulo: Via Lettera, 2007.
OITICICA, H. Ivan Cardoso entrevista Hélio Oitica. In: Ivampirismo: O
cinema em pânico. Rio de Janeiro: Editora Brasil-América - Fundação do
Cinema Brasileiro, 1990, p. 67-81.
______. Disponível em: Programa Itaú Cultural: Programa Hélio Oiticica –
Projeto Hélio Oiticica
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/home/dsp_ho
me.cfm> Acesso em: 30 jul. 2013.
PAZ, O. Invenção, subdesenvolvimento, modernidade. In: Signos em
rotação. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 133-137.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível – estética e política. São
Paulo: Ed. 34, 2005.
______. O espectador emancipado. São Paulo: Editora Martins Fontes,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

2012.
ROUSSEAU, J. J. Emílio ou Da educação. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
______. Os devaneios do caminhante solitário. Porto Alegue, RS:
L&PM, 2014.
SANTOS, Roberto Corrêa dos; REZENDE, Renato. No contemporâneo:
arte e escritura expandidas. Rio de Janeiro: Editora Circuito: FAPERJ,
2011.
SERRES, M. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
______. Luzes: cinco entrevistas com Bruno Latour. São Paulo: Unimarco
Editora, 1999.
______. Os cinco sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
______. Variaciones sobre el cuerpo. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 2011.
THOREAU, H. D. Andar a pé. eBooksBrasil.com, 2003.
______. Walden ou a vida nos bosques e a Desobediência civil. São
Paulo: Editora Aquariana, 2012.
VALÉRY, P. Poesia e pensamento abstrato. In: Variedades. São Paulo:
Iluminuras, 1991.
______. Degas dança desenho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

 
  139  

VIANNA, K. & CARVALHO, M. A. A dança. São Paulo: Siciliano, 1990.


WANJIRU, S. El amo de los 21 km. Entrevista concedida a Martín Fiz.
Disponível em: <http://www.runners.es/noticias/elite/articulo/martin-fiz-
entrevisto-a-samuel-wanjiru.> Acesso em: 15 Jan. 2015.
ZUMTHOR, P. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify,
2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112757/CA

Você também pode gostar