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Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Março de 2012
Talita de Oliveira
Talita de Oliveira
Graduada em Letras Português/Inglês (Bacharelado e
Licenciatura) pela UFRJ em 1999. Mestre pelo Programa
Interdisciplinar em Linguística Aplicada pela UFRJ em
2003. É Professora do Ensino Básico, Técnico e
Tecnológico no Centro Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ) desde 2004. É
Coordenadora dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu do
CEFET/RJ.
Ficha Catalográfica
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Oliveira, Talita de
CDD: 800
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Aos meus pais, José Wanderley de Oliveira e Maria das Graças de Oliveira,
principais responsáveis pela minha ascensão social, todo meu amor e minha
gratidão.
Agradecimentos
A Deus, pai supremo cujo nome é santificado, pelo dom da vida e perene
presença no meu caminhar.
A Nossa Senhora Aparecida, minha mãe do Céu, santa negra mãe dos pobres e
oprimidos, pela condução dos meus passos, pelo conforto em momentos de
incertezas e angústias, pelas graças e epifanias, por tudo.
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Aos meus pais, José Wanderley de Oliveira e Maria das Graças de Oliveira, pelo
amor incondicional, pelo companheirismo cotidiano, por toda luta e sacrifício
investidos na minha educação e crescimento humano. A vocês, papai e mamãe,
dedico esta tese e todo meu amor.
Ao meu irmão, Thiago Maciel de Oliveira, meu melhor amigo, companheiro leal
de todas as horas, por ser, simplesmente, o melhor irmão do mundo! À minha
cunhada, Maralúcia Feitosa, pela torcida constante e imenso carinho.
A todos os meus familiares: avós, tios, primos, obrigada pelo incentivo e pelo
carinho de sempre. Em especial, agradeço aos migrantes nordestinos que,
movidos por uma utopia, deram início à mobilidade social de toda família. Maria
Salomé de Oliveira, Sebastião Timóteo de Oliveira (in memoriam), Ana Selita de
Oliveira Medeiros e João Timóteo de Oliveira, obrigada por sonharem com dias
melhores.
À minha querida orientadora, Liliana Cabral Bastos, pela confiança e por todos os
conhecimentos construídos nesses quatro anos de Doutorado. Admiro sua
competência, sua seriedade e sua forma de orientar, sempre oportunizando e
incentivando o pensamento crítico, maduro e independente de seus orientandos.
À minha querida amiga Liana de Andrade Biar, aquela que se tornou a grande
parceria construída durante o curso de Doutorado. Sua inteligência e seu
profundo conhecimento nos estudos linguísticos fizeram de mim sua fã. A
parceria das aulas na PUC-Rio hoje se estende à nossa atuação profissional (a
ponto de nos tornarmos uma espécie de “binômio”). Sou eternamente grata pelas
leituras cuidadosas que você fez dos meus textos iniciais. Essa tese é, também,
sua, pois foi você a primeira pessoa a chamar atenção para temática da ascensão
social em minha pesquisa. Obrigada pelo seu companheirismo e pela sua
amizade! Muito sucesso e felicidade!
A Roberto Carlos da Silva Borges, minha alma gêmea profissional, meu grande
amigo, um dos maiores incentivadores deste momento. Admiro seu empenho em
trazer para nosso contexto de trabalho a produção de conhecimento sobre
questões que falem de nossas marcas e dores sociais. Admiro mais ainda sua
franqueza, sua emoção à flor da pele, seu companheirismo em qualquer situação.
Obrigada por sua amizade, Beto!
Aos amigos que fiz na época em que era aluna da UFRJ e que, até hoje, se
empenham em dar continuidade aos enredos da Linguística Aplicada. Luciana
Lins Rocha, Raquel Oliveira, Cida Ferreira, Lúcia Pinheiro, Flávia Dutra,
Rodrigo Borba, e Vera Loureiro, meus amigos do coração e competentíssimos
linguistas aplicados, muito obrigada pelo companheirismo de sempre.
Aos professores da UFRJ que fundaram muito do que sou. Luiz Paulo da Moita
Lopes, Branca Falabella Fabrício e Marlene Soares dos Santos, meus eternos
mestres em quem me esmero cotidianamente, muito obrigada por me ensinarem
que pesquisa, ação social e ética são indissociáveis.
Palavras-chave
Narrativa; identidade; performance; ascensão social; educação; Baixada
Fluminense
Abstract
Oliveira, Talita de; Bastos, Liliana Cabral (Advisor). Education and social
mobility: narrative performances of public school students in the
Baixada Fluminense. Rio de Janeiro, 2012. 279p. Doctoral Thesis -
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The present study investigates how students of a public school located in the
Baixada Fluminense, by means of narrative patterns of organizing social
experience, construct values and selves related to an ethos which conceives formal
education as a path to upward social mobility. The research was developed at the
Celso Suckow da Fonseca Federal Center for Technological Education
(CEFET/RJ), more specifically at the Nova Iguaçu Decentralized Unit (UnED).
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Keywords
Narrative; identity; performance; social mobility; education; Baixada
Fluminense
Sumário
1Introdução 19
estudar” 176
5.2.4. Cena 9: “Ele quer que a gente se case, trabalhe e estude” 179
5.3. O (per)curso 186
5.3.1. Cena 10: “Eu investi todas as minhas expectativas aqui” 187
5.3.2. Cena 11: “Tem nem tempo de respirar” 192
5.3.3. Cena 12: “Eu não sabia fazer regra de três” 196
5.3.4. Cena 13: “Não aprende quem não quer” 201
5.3.5. Cena 14: “Valeu a pena ficar reprovado” 205
5.3.6. Cena 15: “Acho que tudo tem que ter paixão” 211
5.4. A mudança 220
5.4.1. Cena 16: “Eu levava a vida como um adolescente” 221
5.4.2. Cena 17: “A gente se depara com um mundo novo” 226
5.4.3. Cena 18: “Se eu tivesse ficado fechada naquele colégio de
bairro...” 231
5.4.4. Cena 19: “Ah, você é fera, hein?” 236
5.4.5. Cena 20: “As pessoas falam como se você fosse um modelo” 239
5.4.6. Cena 21: “Pode estudar que dá!” 244
5.5. O destino 252
5.5.1. Cena 22: “Hoje eu não me vejo fora” 252
6.5.2. Cena 23: “Agora eu tô vivendo um novo rito de passagem” 258
7 Bibliografia 273
“Estude, minha filha, pois o estudo é o bem mais precioso que alguém pode ter. A pessoa
pode perder a casa, o dinheiro, tudo... mas o estudo ninguém vai tirar de você.”
Maria Salomé de Oliveira – minha avó
1
Ao longo do texto, a expressão “Baixada” também será utilizada como forma reduzida de
“Baixada Fluminense”, região sócio-geográfica a ser descrita no item 4.2.
21
pessoa a me chamar atenção para a temática da ascensão social nos meus dados e
que, continuamente, enriqueceu o trabalho investigativo com seus comentários
sempre pertinentes e reveladores. Todos os fatores aqui apresentados foram
determinantes para a estruturação de minha pesquisa, sobre a qual discorro agora.
Historicamente, o CEFET/RJ (Centro Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca) tornou-se símbolo de tradição na formação
educacional tecnológica (conforme será apresentado na seção 4.1) e incorporou
valores associados à noção de prestígio social. O reconhecimento público de seu
ensino de qualidade, especialmente no que tange à educação profissionalizante,
faz a escola ser procurada por muitos jovens que vislumbram uma possibilidade
de conseguir bons empregos ou ingressar no ensino superior por meio de uma boa
formação de nível médio-técnico. A unidade do CEFET/RJ aqui estudada
localiza-se, entretanto, em Nova Iguaçu, na região sócio-geográfica denominada
Baixada Fluminense. O fato de esta unidade escolar estar situada em uma região
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indivíduo age de modo a transmitir aos seus interlocutores uma imagem de si com
base em atributos morais socialmente valorizados. Assim, é por meio do uso de
recursos linguísticos formais de performance que o narrador posiciona-se
ideologicamente frente aos eventos narrados, abre espaço para sua construção
identitária e faz ecoar valores moralmente legitimados de seu meio social. O
capítulo ainda destacará os estudos de Linde (2009) e Dyer & Keller-Cohen
(2000) sobre narrativas contadas em instituições e sua relação com a tessitura de
identidades coletivas. Por fim, situo o próprio ato da pesquisa como uma prática
narrativa (Riessman, 1993; Mishler, 2002).
O capítulo 3 apresenta as principais contribuições advindas da Antropologia
das sociedades complexas (Velho, 2008 [1981], 1994, 2000; Duarte, 1986) para o
desenvolvimento do meu estudo. Questões concernentes às sociedades complexas
moderno-contemporâneas (Simmel, 2005 [1903]; Velho, 2008 [1981]) serão
contempladas, mormente no que tange à interação entre o indivíduo e a sociedade,
bem como às noções de continuidade e ruptura. A vida na cidade, com suas
tensões, contradições e marcas de fragmentação e heterogeneidade, promove uma
multiplicidade de experiências e hábitos. Assim, assume notoriedade o papel do
indivíduo frente a uma sociedade marcada pela coexistência de estilos de vida e
visões de mundo. Nesse sentido, as noções de projeto e de mobilidade social
merecerão especial atenção, pois em muito contribuem para uma melhor
26
a mais tenra idade, ouvia de meus pais, avós e tios que era importante estudar,
pois só assim conseguiria “ser alguém na vida”. Via o sacrifício dos meus pais que
economizavam nas compras do mês, mas jamais deixaram faltar livros e material
didático, nem atrasar o pagamento das mensalidades escolares. Hoje, sou
professora da rede federal de ensino (considerado por muitos uma espécie de
“auge” na carreira do magistério) e encontro-me em vias de concluir meu curso de
doutorado (talvez um “auge” na vida acadêmica). Minha história de vida é, assim,
uma trajetória de ascensão social via educação. Talvez minha avó, nordestina e
analfabeta, não imaginasse, nem em seus mais belos sonhos, que o estudo (esse
bem tão precioso do qual ela me falava) pudesse me levar tão longe, sem com isso
apartar-me de minha origem social. Assim, a pesquisa que, aqui, se apresenta é,
também, um pouco da minha história de vida. Pode entrar, que a casa é sua.
2
Narrativas orais e a construção sócio-discursiva das
identidades
2
Frase constante em diário de pesquisa do dia 10 de junho de 2009, referindo-se à crítica
feita pelo professor, em reunião de colegiado, a decisões tomadas pela direção da escola.
3
Nome fictício.
30
2.1.
A tradição dos estudos narrativos
Alguns trabalhos sobre narrativas merecem destaque não apenas por seu
pioneirismo e pela influência de seu alcance em vários campos de investigação,
mas por privilegiarem a relação entre as formas linguísticas de organização das
histórias e aspectos relativos ao mundo social em que são contadas. A seguir,
serão apresentadas as principais contribuições da Sociolinguística, da Psicologia
4
Tradições investigativas distintas nos Estudos da Linguagem costumam apresentar
definições diferentes para os termos “narrativa”, “história” e “estória”. No presente texto, será
dada ênfase às devidas diferenciações sempre que se fizer necessário, porém procurarei utilizar tais
termos como conceitos intercambiáveis, alinhando-me à proposta de Riessman (2008).
32
2.1.1.
A narrativa laboviana
(Bastos, 2005, p.75; grifo da autora). Para Labov, quando os eventos se tornam
corriqueiros demais, a história não adquire reportabilidade, ou seja, não é
contável.
Seis propriedades formais caracterizam a narrativa laboviana. São elas:
história relatada (o dos personagens)” (Moita Lopes, 2001, p.64). Nesse sentido,
faz-se necessário conceber o modelo laboviano de narrativa situado nas práticas
sociais cotidianas em condições sócio-históricas específicas. O falar sobre o
passado deve ser observado para além do seu conteúdo referencial, logo é
fundamental chamar atenção tanto para a expressão do evento narrado quanto para
as práticas interacionais do evento narrativo. Nas palavras de Johnstone (2001,
p.637):
2.1.2.
Narrativas, produção de significado e exceção ao cânone
meio das quais contam sobre suas vidas. Para serem entendidas, essas construções
privadas de identidade devem emaranhar-se com a comunidade de histórias de
vida, ou “estruturas profundas” sobre a natureza da vida em si em uma dada
cultura. Conectar biografia e sociedade torna-se possível por meio da análise atenta
das histórias.”
“quando você encontra uma exceção ao comum e pergunta a alguém o que está
acontecendo, a pessoa a quem você pergunta quase sempre contará uma história
que contém razões (ou alguma outra especificação de um estado intencional). A
história, além disso, será quase invariavelmente um relato de um mundo possível,
no qual se faz com que a exceção encontrada de algum modo faça sentido”
(Bruner, 1997, p.50).
localizar no mundo simbólico da cultura (Bruner & Weisser, 1991). Três aspectos
interessantes podem ser observados em relação à autobiografia:
2.1.3.
Narrativas na fala-em-interação
Vale a pena, nesse momento, abrir espaço para a apresentação das principais
reflexões teórico-metodológicas advindas da Análise da Conversa, corrente
sociológica que lida com dados oriundos de contextos espontâneos de fala-em-
interação. Esta é definida por Garcez (2001, p.207)
“de modo que, mais do que simplesmente assegurar a posse da palavra por uma
extensão além do usual na sistemática, suficiente para se contar a estória, se tenha
também alguma segurança de que o interlocutor terá ouvido com atenção a estória”
(Garcez, 2001, p.197).
“Em seguimento a uma estória contada, tendo construído o seu final e o possível
restabelecimento da sistemática usual para a troca de turnos, o interlocutor
“lembra” de alguma coisa e, então, conta uma estória semelhante à que lhe foi
contada” (Garcez, 2001, p.199).
“as estórias que contamos são situadas na sequência conversacional: uma primeira
estória é diferente de uma segunda; os diferentes prefácios vão suscitar diferentes
manifestações dos ouvintes; a presença ou ausência das manifestações dos ouvintes
terão impacto nos enunciados do narrador etc. É também nesse sentido que
dizemos que as narrativas são necessariamente co-construídas.”
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2.2.
Revisão criticamente a tradição
5
Trabalho apresentado no Congresso Internacional Linguagem e Interação II, realizado de
7 a 9 de junho de 2010 na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo,
RS.
43
2.2.1.
Small stories e a construção de um senso de self
“um termo guarda-chuva que captura uma gama de atividades narrativas sub-
representadas, tais como narração de eventos em processo, eventos futuros ou
hipotéticos, eventos compartilhados (conhecidos), mas que também captura alusões
a narrações (anteriores), prorrogações e recusas de narrações” (Bamberg &
Georgakopoulou, 2008, p.381).
2.2.2.
Performances narrativas e atuação dramatúrgica
“nós sempre estamos compondo impressões sobre nós mesmos, projetando uma
definição de quem somos e fazendo reivindicações a nosso respeito e a respeito do
mundo, reivindicações estas que testamos e negociamos com os outros” (Riessman,
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2008, p.106).
“Histórias não caem do céu (ou emergem do recôndito do self); elas são compostas
e recebidas em contextos – interacionais, históricos, institucionais e discursivos,
para nomear alguns. Histórias são artefatos sociais que nos dizem muito sobre a
sociedade e a cultura bem como sobre uma pessoa ou grupo”.
6
Expressão extraída do contexto teatral, o aside refere-se a momentos nos quais o ator (o
narrador) “sai da ação para engajar-se diretamente com a audiência” (Riessman, 2008, p.112).
50
Antes de passar à próxima seção, creio que uma última palavra acerca da
noção de performance seja digna de nota, tendo em vista a polissemia comumente
atribuída ao conceito. Alguns estudos na Linguística Aplicada contemporânea
(Moita Lopes, 2009, 2010) têm se fundamentado, especialmente na pesquisa sobre
identidades sociais, na noção de performance e performatividade segundo Judith
Butler (1990, 1993). A autora, com base na Teoria dos Atos de Fala de Austin
(1962), concebe o gênero e a sexualidade como performances, como um fazer
contínuo que não preexiste ao engajamento discursivo dos sujeitos. Segundo a
autora, repetições de performances, reguladas por convenções sociais, criam uma
aparência de substância, uma impressão de essência do ser. No presente trabalho,
faço uso do termo performance alinhando-me mais às teorizações goffmanianas e
a outros trabalhos que entendem performance sob essa mesma perspectiva de
atuação dramatúrgica (Bauman, 1986; Richards, 1999; Langelier, 2001;
Riessman, 2008). Considero essa perspectiva particularmente relevante para a
análise que almejo desenvolver por destacar os recursos discursivos e estilos
selecionados pelos narradores para construírem uma imagem de si e de sua
52
2.3.
Narrativas, identidades coletivas e instituição
professores universitários em suas próprias aulas (tendo seus alunos como seus
interlocutores), Dyer & Keller-Cohen observam que mecanismos de inclusão e
exclusão identitárias são acionados pelos professores a fim de que sua imagem
como especialistas ganhe notoriedade em detrimento da imagem dos leigos e
noviços. Determinadas escolhas lexicais e pronominais são empregadas de forma
a delimitar o território do “eu-professor-agente-perito na área que leciona” em
oposição às demais dramatis personae (Dyer & Keller-Cohen, 2000) em suas
narrativas.
“Cada versão é contada por alguém em uma posição particular dentro (ou fora) da
instituição para uma audiência real ou projetada. O ponto de vista do narrador e o
da audiência moldam a escolha das histórias, o modo como são enquadradas e as
escolhas das avaliações.”
acordo com os papéis desempenhados pelos outros presentes e, ainda, esses outros
também constituem a plateia”. Os repertórios narrativos elencados pelos
narradores para modelar a face da instituição variam dependendo do palco
interacional estabelecido e da relação estabelecida com seus interlocutores.
2.4.
A pesquisa como prática narrativa
gama de eventos e os ordena de maneira significativa – uma ordem que reflete sua
própria interpretação desse grupo de eventos” (Dyer & Keller-Cohen, 2000,
p.285), creio que basta ao narrador dessa trama saber justificar suas escolhas
epistemológicas e ter consciência das implicações políticas e éticas dessas
escolhas. Além disso, considero importante que o narrador dê ordem e coerência
ao seu relato (leia-se “à sua pesquisa”) de tal forma que convença sua plateia da
reportabilidade de sua narrativa. Vejamos, então, algumas justificativas possíveis
para a adoção dessa perspectiva narrativa para o ato da pesquisa.
A primeira delas advém da área da Antropologia, em especial do
Interpretativismo de Geertz (1989), autor que funda as bases para a percepção do
trabalho etnográfico (tão caro para a compreensão do uso da linguagem na vida
social) como a elaboração de um relato, ou seja, uma narrativa. Geertz atribui à
etnografia um caráter narrativo (textual), não no sentido de que as interpretações
do pesquisador sejam não-factuais, mas no sentido de que o próprio texto
etnográfico pode ser reelaborado, reinterpretado, dentro de circunstâncias
discursivas específicas. Segundo o autor, o conhecimento produzido na etnografia
é, inevitavelmente, situado e sujeito a releituras: “trata-se, portanto, de ficções;
ficções no sentido de que são algo construído, algo modelado” (Geertz, 1989,
p.11). Voltaremos a tratar desse tema na seção 4 – “Contexto e metodologia de
pesquisa”.
59
“Ao construirmos uma transcrição, não ficamos de fora em uma posição neutra e
objetiva, simplesmente apresentando “o que foi dito”. Ao invés disso, os
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7
Riessman (2008), ao tratar do trabalho interpretativo que envolve a transcrição de dados,
lembra que nem sempre a pessoa que transcreve é o próprio pesquisador, o que torna a tarefa de
interpretação dos dados ainda mais complexa.
60
“Há três maneiras de subir na vida: ou você nasce rico, ou se casa, ou estuda.” 8
Márcia9 – presidente do grêmio estudantil da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ
seja, uma vez que o sujeito é “rico de berço”, por herança, não houve, em si, uma
mudança de status social. Já as noções de “casamento” e “estudo” focalizam, de
forma emblemática, a aquisição de uma condição social diferenciada e
hierarquicamente superior à situação anterior de existência. Entretanto, creio que
haja uma diferenciação importante nessas duas outras maneiras de “subir na vida”
(na concepção de Márcia): a ascensão pelo estudo evidencia valores associados ao
esforço e mérito individuais, à escalada do sujeito na sociedade pela via dos seus
próprios projetos (ao contrário do casamento, situação na qual essa ascensão pode
não se caracterizar, propriamente, como uma aquisição dignificante).
Ascensão, mobilidade social, valores associados ao sujeito na vida em
sociedade, todos esses são assuntos bastante caros às áreas do conhecimento que
se debruçam sobre o estudo sistemático da vida social. Focalizarei, aqui, algumas
contribuições teóricas importantes advindas das Ciências Sociais, em especial da
Antropologia das Sociedades Complexas (Velho, 2008 [1981], 1994, 2000;
Duarte, 1986). As noções de continuidade e ruptura serão situadas, aqui, como
traços notórios das sociedades contemporâneas, onde os indivíduos vinculam-se à
elaboração de projetos (Schutz, 1962) e ao múltiplo pertencimento identitário. Em
8
Frase constante em nota etnográfica gerada em 12 de julho de 2010.
9
Nome fictício.
62
3.1.
A sociedade complexa moderno-contemporânea e a dinâmica da
coexistência
um mundo que privilegia o trânsito dos seres humanos por redes de significados
(Geertz, 1989) e que sinaliza ser “próprio da experiência social humana encontrar-
se em permanente fluxo” (Duarte & Gomes, 2008, p.241).
O estudo da sociedade complexa moderno-contemporânea está intimamente
relacionado às questões sobre a metrópole e seus habitantes. A vida na cidade,
com suas tensões, contradições e marcas de continuidade e ruptura, promove uma
multiplicidade de experiências e hábitos, “contribuindo para a extrema
fragmentação e diferenciação de papéis e domínios” (Velho, 2008 [1981], p.16).
Isso remonta às pesquisas de Simmel (2005 [1903]), autor que, no início do século
XX, dedica-se à observação das transformações vivenciadas pelos indivíduos
diante dos ininterruptos estímulos da metrópole. O autor, perplexo diante da sede
de modernidade das cidades, percebe um descompasso entre o mundo objetivo,
com seus recursos técnicos, e a singularidade do sujeito. Para proteger-se de
estímulos excessivos e fragmentados, o indivíduo pode adotar uma atitude blasé,
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Por outro lado, concorre uma visão mais negativa sobre o individualismo,
compreendido como um agente de desagregação e desarticulação de vínculos
comunais e redes de solidariedade. A pessoa que se reconhece como indivíduo,
uno e autônomo, tenderia a afastar-se dos valores da comunidade, dos laços de
parentesco, e a levar uma vida marcada pela impessoalidade. Com base nessa
perspectiva dualista, o individualismo passa a ser concebido como um fenômeno
plural (logo, torna-se mais adequado falar em individualismos), múltiplo, sujeito a
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múltiplos contextos, conferindo-lhe uma aura social, por vezes o sujeito vincula-
se a certos aspectos da vida em sociedade que são tratados como âncoras10
identitárias (Velho, 1994) trazidas à tona em situações estratégicas da interação
social e da negociação da realidade. “A fragmentação não deve ser entendida
como um estraçalhamento literal do indivíduo psicológico” (Velho, 1994, p.29).
Há referências básicas fundamentais para a vida das pessoas que constituem
orientações para seus mapas cognitivos e afetivos (como, por exemplo, as noções
de família e parentesco). Cabe ao pesquisador perceber quando determinada
referência identitária se faz mais relevante em determinados contextos e não em
outros. O olhar atento para o uso da linguagem pode ser bastante elucidativo nesse
sentido.
Toda essa discussão acerca das sociedades complexas moderno-
contemporâneas pode parecer evocar uma visão determinista sobre o fenômeno
urbano e essencialista sobre as identidades sociais, especialmente àqueles
estudiosos alinhados com a perspectiva da chamada pós-modernidade.
10
O termo “âncora” pode evocar uma noção de fixidez em relação às identidades sociais,
contradizendo a ideia de fragmentação e multipertencimento identitário tão discutida e defendida
na contemporaneidade. Ainda que o conceito possa gerar essa controvérsia, creio que seja
elucidativo de como, em determinados contextos da vida em sociedade, os sujeitos tornam
relevantes certas afiliações identitárias, essencializando-as na interação com diversos fins,
estratégicos ou políticos, inclusive.
68
3.2.
Estilo de vida, prestígio e mobilidade social
“O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral
e estético, e sua disposição é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu
mundo que a vida reflete. A visão de mundo que esse povo tem é o quadro que
elabora das coisas como elas são na simples realidade, seu conceito da natureza, de
si mesmo, da sociedade” (Geertz, 1989, p.93).
bairro onde se mora, pelo trabalho que se desempenha, pela escola ou faculdade
onde se estuda, até mesmo pelas benesses da sorte ou do acaso, enfim, são
múltiplos (e díspares) os percursos para “melhorar de vida”. Cabe ao analista,
despojado de categorizações apriorísticas, olhar atentamente para o que os nativos
elencam como valor e que ethos vigora em seu contexto social. A meu ver, o olhar
para o discurso é um modo significativo de criar inteligibilidade sobre a
construção desses valores sociais e visões de mundo. Considero que a análise das
narrativas desses nativos e do modo como eles se apresentam nesse palco
discursivo podem em muito contribuir para uma melhor visualização da
construção desse ethos particular relacionado à noção de ascensão social.
A seguir, discutirei como essas noções de ethos e mobilidade social
ascendente emergem nas culturas das camadas médias e das classes populares,
segundo alguns trabalhos na área da Antropologia das Sociedades Complexas.
Posteriormente, focalizarei o valor comumente associado à educação escolarizada
como uma dessas vias possíveis de ser “bem sucedido”, mormente no que tange
aos anseios de “melhoria de vida” de uma parcela das classes trabalhadoras
urbanas.
71
3.2.1.
Cultura(s) das camadas médias
econômica burguesa, essa classe intermediária entre a nobreza e a plebe que passa
a gerir os cursos da vida moderna-contemporânea. Segundo Weber (2001 [1904 e
1905], p.124),
século XVI, especialmente no puritanismo inglês. Para essa ética cristã particular,
o trabalho era considerado a principal finalidade da vida, uma ordem divina que,
uma vez colocada em prática, é retribuída pelo elemento providencial (a
perspectiva de que “Deus abençoará os negócios”). O valor atribuído ao trabalho
metódico e à organização racional do capital é considerado pelo autor o “apreço
ético mais elevado para com o sóbrio self made man da classe média” (Weber,
2001 [1904 e 1905], p.119). Hoje, a questão do mérito norteia muitas discussões e
práticas na vida em sociedade, independente das afiliações religiosas dos
indivíduos. O contexto escolar, por exemplo, costuma ser orientado por uma
lógica meritocrática, por meio da qual se premiam os que mais se empenham –
categorizados como “merecedores”. A recompensa é dada como fruto do esforço
individual.
O prestígio nas camadas médias pode assumir contornos bem variados.
Conforme foi apresentado na seção 3.2, o ideal relativo a ser “bem sucedido” ou
ter status pode se manifestar por vias diferentes. Um exemplo bastante
emblemático sobre prestígio nas camadas médias é o trabalho de Gilberto Velho
(2002 [1973]), fruto de um investimento etnográfico em um prédio de
apartamentos conjugados no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Em Utopia
Urbana, o autor aponta para um estilo de vida de um grupo social específico que
reconhece na mudança de bairro um índice de ascensão social. Ao saírem de seus
73
pode indiciar um descenso na escala social, logo “muitas vezes parece haver uma
tentativa de “apagar” o fato de terem morado lá” (Velho 2002 [1973], p.52).
3.2.2.
Cultura(s) das classes populares
Se, por um lado, as culturas das camadas médias seriam orientadas por um
ethos individualista aliado a um ideal de modernidade, por outro, as chamadas
classes populares seriam constituídas por um caráter hierárquico-holista (Duarte,
1986). O interesse por pesquisas sobre os valores e visões de mundo das classes
populares não é recente nas Ciências Sociais. Estudos sobre periferias e áreas
suburbanas, particularmente no contexto brasileiro, sempre obtiveram a atenção
de pesquisadores que, considerando-se membros de uma elite intelectual e social,
têm aguçada sua curiosidade por esse universo a princípio tão distante da lógica
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das camadas médias e altas. Os trabalhos de Duarte (1986) e Duarte & Gomes
(2008) são, nesse sentido, bastante representativos, uma vez que vão na contra-
mão desse interesse de pesquisa por um mundo totalmente estranho ao
pesquisador. Os dois autores apresentam-se como membros de ramos familiares
situados nas classes populares, portanto investem na tarefa de produzir
conhecimento acerca de uma realidade social bastante familiar, sem, com isso,
abrir mão do exercício de distanciamento e auto-reflexão do fazer antropológico.
Duarte (1986) aponta a ocorrência de três principais denominações que
conferem conotações variadas a esses grupos sociais caracterizados por estarem
em situação de subordinação na hierarquia das sociedades moderno-
contemporâneas. O termo “classe operária”, de orientação marxista, coloca em
destaque a relação desse grupo social específico com os meios de produção
capitalistas. Já a expressão “classes populares”, segundo o autor, apresenta uma
conotação vaga, podendo referir-se tanto à noção mais abrangente de “povo”
quanto ao que se costuma intitular “classe média baixa”. “Classes trabalhadoras”
já corresponde a um termo mais plural e, por esse motivo, é bem mais utilizado
pelo autor ao longo de sua obra. Duarte (1986) chama atenção, entretanto, para a
importância de, no empreendimento etnográfico, o analista privilegiar o critério da
“auto-representação”, ou seja, é preciso ancorar-se no modo como esses próprios
75
“puxadinho” pode ser entendido como uma evidência desse ethos da localidade e
dessa dificuldade em desenraizar-se. É bastante comum, também, que as relações
de trabalho se deem no próprio lugar onde se mora, ou em regiões próximas.
Predomina a “viração” como forma de trabalho: as pessoas “viram-se como
podem” (Duarte & Gomes, 2008, p.130) através do chamado trabalho autônomo e,
em geral, juntamente com membros de sua rede familiar. Em verdade,
família/trabalho/localidade constituem um tripé (Duarte, 1986) fundamental.
Outro aspecto notório nas práticas sociais das classes trabalhadoras diz
respeito ao ethos da receptividade. Contrariando os mecanismos de
individualização representativos das classes médias, com seus projetos específicos
e ideais de progresso relativos a um futuro a conquistar, prevalecem, nas camadas
populares, a lógica da relacionalidade e a importância das redes de socorro mútuo.
A família, a vizinhança, a casa, o quintal, o bairro, todos esses entes morais são
78
3.2.3.
Escolarização e trajetórias de ascensão social nas classes populares
A pesquisa social tem apontado para um certo fascínio que exerce o ethos
do estudo, da escolarização, sobre boa parte das classes trabalhadoras (Duarte,
1986). Muitas vezes, percebendo-se abandonados à própria sorte, os membros
desses grupos sociais buscam mecanismos que os façam melhorar de vida e
sobreviver aos signos da escassez e à crescente pauperização de muitas
localidades de origem popular. O acesso aos estudos é encarado, em geral, como
uma possibilidade de se vislumbrar outros futuros possíveis de uma forma digna e
honrosa. Por vezes, lança-se um olhar mais instrumental e utilitarista ao valor do
estudo, tido como meio de inserção mais imediata no mercado de trabalho para
lidar melhor com os enfrentamentos do cotidiano (Duarte, 1986). Enfim, esse
valor atribuído à escolarização nas classes trabalhadoras é permeado por
significados múltiplos e por um percurso de ambiguidades e contradições. Se, por
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um lado, o sujeito das classes populares busca melhorar de vida pelo caminho da
educação, por outro esse investimento em sua ascensão social pode desestabilizar
a ordem relacional de seu grupo social de origem. A educação é, de alguma forma,
um projeto individualizante e civilizatório, sendo, assim, circunscrito numa óptica
modernizadora das camadas médias. Assim, para as classes trabalhadoras, “subir
na vida” por meio da educação pode dignificar o indivíduo, mas pode ser
interpretado, também, como uma traição ao seu grupo social originário.
O ethos de valorização do estudo como via de ascensão social não é um
fenômeno recente na sociedade brasileira. Nesse ínterim, creio ser relevante fazer
menção às pesquisas realizadas por Gilberto Freyre (1936), no âmbito das
Ciências Sociais. Em sua obra Sobrados e Mucambos, o autor faz um estudo
cuidadoso das relações sociais na transição do Brasil patriarcal/rural para um
Brasil moderno/urbano e, por meio de intensiva observação participante no seu
próprio meio social, faz uma análise microscópica (nos termos de Geertz, 1989)
dos mecanismos individualizadores e de aquisição de status nesse período de
transição. Entre outros eixos temáticos, o autor debruça-se sobre a questão da
ascensão social do bacharel e do mulato, vistos como “elementos de
diferenciação” (Freyre, 1936, p.711) nesse período de mudanças na estrutura
sócio-econômica brasileira. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, em decorrência de
81
11
A questão do embranquecimento de mulatos pobres no Brasil dos séculos XVIII e XIX,
mencionada na obra de Gilberto Freyre, é cercada de controvérsia e o termo pode soar um
desserviço aos esforços contemporâneos de grupos que lutam contra o racismo e pela promoção de
condições mais justas de inserção na vida social por parte de grupos historicamente excluídos,
como é o caso da população afrodescendente. De qualquer forma, considero que a expressão
aponte para o modo como a educação formal “igualava” o mulato pobre aos aristocratas de berço,
tendo em vista o projeto modernizador e urbanizador da sociedade brasileira, até então tecida com
base nos moldes rurais e patriarcais. Essa suposta igualdade entre bacharéis (fossem eles mulatos
ou não) não eliminava, entretanto, o racismo estruturante da sociedade brasileira.
82
12
Apesar de manter a citação original de Gilberto Freyre, discordo da noção defendida pelo
autor (e fortemente difundida no Brasil contemporâneo, seja no senso comum ou mesmo na
academia) de que o racismo no Brasil é mais suave que em outros países. Creio que o racismo no
Brasil assume contornos bastante sérios justamente por maquiar-se do discurso da democracia
racial, gerando o enfraquecimento da discussão sobre as relações etnicorraciais, além de impactos
devastadores na sociedade brasileira (haja vista o ainda muito reduzido número de
afrodescendentes matriculados no Ensino Superior e a forte relação existente entre pobreza e
negritude).
83
ambiguidades, uma vez que a própria unidade agregadora típica das classes
trabalhadoras estaria ameaçada. Muitos segmentos dessas classes investem em
projetos de escolarização a fim de que possam alcançar posições mais prestigiosas
na sociedade. O resultado desse processo pode incidir sobre a migração de uma
classe social para outra (mais especificamente, para as camadas médias) e todas as
implicações decorrentes dessa trajetória de mobilidade. Ao ascender às camadas
médias, o sujeito oriundo das classes populares teria se metamorfoseado (Velho,
1994) e se convertido a uma ética mais individualista, típica dos discursos
modernizadores de ordem burguesa. Por outro lado, nesse processo de
metamorfose, é possível que se resguardem marcas identitárias do seu grupo
social de origem. Instaura-se, assim, uma espécie de paradoxo: o sujeito das
classes populares que ascende socialmente pela via da escolarização percebe-se
como um indivíduo diferente de sua comunidade de origem, porém não se torna,
necessariamente, um “igual” entre os membros das camadas médias já
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13
Expressão latina que significa “no meio das coisas”. Trata-se de uma técnica literária por
meio da qual a narrativa tem início “no meio da história”, com os acontecimentos já em sequência.
No presente trabalho, utilizo a expressão como metáfora para referir-me a esse sujeito em processo
e cuja identidade é híbrida, móvel e contraditória.
84
3.2.4.
A(s) moralidade(s) das classes trabalhadoras: fronteiras entre “nós”
e “eles”
chamada pós-modernidade.
Estes não são homens pós-modernos que se recriam a cada manhã: suas vidas
seguem dentro de parâmetros claramente definidos, em redes que eles conhecem a
partir de um ângulo interno e que são definidas como notavelmente estáveis.”
(Lamont, 2000, p.11)
“classes trabalhadoras”, constitui uma fronteira moral que aloca os ditos “dignos”
de um lado e os ditos “indignos”, do outro. Nesse sentido, a pesquisa de Lamont
aponta para o modo como as noções de mérito e dignidade podem ser construídas
de formas distintas, em função das relações de semelhanças e diferenças tecidas
pelos membros de um grupo sobre si próprios e sobre seus respectivos “outros”.
No contexto estadunidense, por exemplo, os trabalhadores brancos constroem sua
moralidade em oposição aos valores dos trabalhadores negros. Já na França, “os
verdadeiros “outros” [para os trabalhadores franceses] não são os negros ou os
pobres, mas os imigrantes do Norte da África, que são percebidos como pessoas
culturalmente incompatíveis com os valores franceses” (Lamont, 2000, p.6). Boa
parte dos valores associados às noções de mérito, responsabilidade e auto-
disciplina é construída e avaliada com base em relações racistas, o que implica
dizer que chegar às comunidades morais do mundo das classes trabalhadoras
envolve a observação das tensões e contradições envolvidas no estabelecimento
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dessas fronteiras.
Considero que o estudo empreendido por Lamont assume relevância por dar
visibilidade ao modo como as identidades de classe social ainda ocupam um lugar
bastante significativo na sociedade, contrariando uma vertente contemporânea de
que estaríamos vivendo um declínio da importância da consciência de classe.
Concluo citando a própria autora, que chama atenção para o perigo de incorrermos
em uma miopia social ao negligenciarmos as construções sociais, esquemas de
avaliação e redes de pertencimento das classes trabalhadoras no mundo atual.
4.1
O estudo de caso de inspiração etnográfica
58
O paradigma interpretativista também é denominado de paradigma hermenêutico,
fenomenológico ou qualitativo.
99
dos fenômenos sociais e afirma que as várias interpretações do real só são possíveis
mediante a relação intersubjetiva entre sujeito e objeto de conhecimento. Para tal,
utiliza preferencialmente metodologias qualitativas e participativas.
A pesquisa do tipo qualitativo, segundo Bogdan e Biklen (apud
Lüdke&André, 1986:13) “envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no
contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo
que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes”.
A partir de 1980, a abordagem qualitativa, originária da Antropologia e da
Sociologia tem sido muito utilizada em pesquisas educacionais, pois possibilita a
compreensão dos significados que tecem as relações e o dinamismo interno das
situações analisadas ao considerar os pontos de vista de todos os participantes em
suas interações e influências recíprocas, geralmente inacessíveis ao observador
externo (André, 2003).
Entre os vários os tipos de pesquisa de abordagem qualitativa (relatos de
experiência, história de vida, pesquisa histórica, pesquisa-ação) a pesquisa do tipo
etnográfico e os estudos de caso têm um papel de destaque.
O estudo de caso de inspiração etnográfica, opção assumida nesse trabalho,
define-se, portanto, como uma pesquisa qualitativa de abordagem
interpretativista, cujas características apontadas por vários autores foram assim
sintetizadas por André ( 2003:52):
100
“Podemos dizer que o estudo de caso deve ser usado: (1) quando se está
numa instância em particular, numa determinada instituição, numa pessoa,
ou num específico programa ou currículo; (2) quando se deseja conhecer
profundamente esta instância particular em sua complexidade e em sua
totalidade: (3) quando se estiver mais interessado naquilo que está
ocorrendo e no como está ocorrendo do que nos seus resultados; (4)
quando se busca descobrir novas hipóteses teóricas, novas relações, novos
conceitos sobre um determinado fenômeno; e (5) quando se quer retratar o
dinamismo de uma situação numa forma muito próxima do seu acontecer
natural”.
seja um estudo de uma unidade com limites bem definidos, que preencha os
requisitos da etnografia ( André, 2003)
4.2
A coleta de dados
ocasiões fossem liberados/as das aulas, contei, mais uma vez, com a colaboração da
direção, dos/as professores/as e dos/as próprios/as entrevistados/as.
Também em relação às filmagens nas salas de aula, cabe considerar, que
além da necessidade de permissão de todos os participantes para fazê-la e das
perturbações que acarretam, naturalmente, no desenvolvimento da aula, tive
dificuldades de registrar simultaneamente os contextos de interação de forma a
incluir todos os participantes – professor/a, intérprete, alunos/as surdos/as e
ouvintes. Na impossibilidade de manter a filmadora fixa, vivendo o dilema de
filmar ou anotar e diante do constrangimento de alguns/algumas professores/as,
intérpretes e alunos/as, optei por restringir esse procedimento de coleta de dados à
apenas três filmagens de dinâmicas de sala de aula, que serviram para
complementar as informações dos depoimentos das entrevistas e das observações
sobre o papel do/a intérprete na interação entre o/a aluno/a surdo/a e o professor/a.
Finalizadas as entrevistas com os/as alunos/as surdos/as contei com o trabalho de
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4.3
O contexto pesquisado
”Eu fui na verdade o primeiro professor a entrar em sala de aula com o aluno
surdo. Inclusive, no ano de 2002, quando a escola começou a fazer esse trabalho,
houve uma enorme procura porque é um trabalho totalmente novo e eu cheguei a
dar uma entrevista ao RJ/TV que veio aqui na escola. A nossa turma era uma
turma experimental, era apenas uma turma que tinha seis alunos surdos e que
começou esse trabalho de inclusão. Nós éramos cinco professores, cinco matérias
e tínhamos uma intérprete que fazia um apoio pedagógico a esses alunos. Ela se
encontrava com eles em outro horário e procurava tirar as duvidas das matérias,
ela conversava com os professores para saber o que cada um iria lecionar, então
era um trabalho diferenciado, a gente sentia que existia um trabalho diferenciado
para os surdos.”
“No início funcionou bem, houve uma aceitação. Quando a inclusão começou a
crescer de forma errada começou a rejeição. Hoje eu sinto que não há um
planejamento para dar prosseguimento àquele trabalho inicial. Me parece que
houve uma certa empolgação por um trabalho que deu certo no inicio e achavam
59
Os depoimentos dos/as entrevistados sobre a implementação da educação inclusiva serão
apresentados no próximo capítulo.
110
que iria continuar dando certo para sempre mesmo sem planejamento. Talvez aí
esteja a minha decepção.”
60
Os sinais criados para pessoas são uma espécie de apelido. Em geral representam alguma
característica física, psicológica ou relacionado a algum fato ou situação. No meu caso, é o dedo
médio sobre a pinta da minha testa. O sinal da escola é mão esquerda em “E”, inicial do nome da
escola, apoiada sobre a mão direita fechada.
112
61
Bimodalismo, também chamado de Português sinalizado, é um sistema artificial que dificulta a
estruturação do pensamento, uma vez que “com a busca constante de ajuste entre a fala e sinais
perde-se o fio condutor do assunto, a simultaneidade veiculada pelo bimodalismo deforma a
enunciação, que se torna uma montagem artificial e, sempre baseada na língua oral.” (
Botelho2002:122).
5
Análise de dados
analisadas. Cada sequência interacional foi numerada (de 1 a 23) e nomeada como
“cena”. Tal escolha lexical justifica-se pelo fato de, no presente trabalho, as
narrativas serem compreendidas como performances, para além de seu conteúdo
referencial. Assim, na análise de cada fragmento interacional, será dado destaque
ao modo como os narradores, por meio de recursos formais de performance,
encenam a vida social. As linhas de cada cena respeitam a mesma numeração
contida na íntegra da transcrição das entrevistas orais. As vinte e três cenas foram
alocadas em cinco eixos temáticos, nomeados em função de dois critérios: os
períodos de tempo relacionados ao cotidiano escolar desses alunos na UnED de
Nova Iguaçu do CEFET/RJ; e a noção de passagem, de trânsito, de mobilidade.
Desse modo, cada conjunto de cenas recebeu os seguintes títulos: 5.1) a chegada;
5.2) a origem; 5.3) o (per)curso; 5.4) a mudança; e 5.5) o destino. Esta
segmentação não sugere uma cisão rígida entre os cinco temas aqui elencados; em
muitas ocasiões, é notória a interpenetração de ethos e tópicos, de modo que a
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5.1.
A chegada
à vaga de bolsista e, sabedora de que somente uma vaga poderia ser preenchida
(segundo previa o próprio edital), decidi estabelecer critérios para a seleção.
Solicitei, então, que os alunos candidatos lessem, previamente, o texto do meu
projeto de pesquisa cadastrado na COPET (cf. notas de rodapé 40 e 41, item 4.6) e
redigissem uma carta de intenções na qual pudessem justificar seus interesses em
participar da pesquisa. Em seguida, seriam feitas entrevistas gravadas em áudio
com esses alunos candidatos. Ainda que esse contexto de entrevista particular
possa sugerir uma dinâmica interacional menos espontânea – por se tratar de uma
situação supostamente mais formal, de candidatura a uma bolsa de pesquisa –,
como já apontei no início da presente seção, procurei enquadrar esse momento
como um bate-papo e somente a parte final das entrevistas foi destinada à
discussão mais específica sobre o projeto de pesquisa e as motivações para a
candidatura. A cena 1 diz respeito a um momento inicial da entrevista com Carina,
realizada no dia 4 de maio de 2010 em uma das salas de aula do segundo andar da
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escola.
5.1.1.
Cena 1: “Foi uma comprovação pra mim que eu era capaz”
5.1.2.
Cena 2: “Foi uma emoção grandiosa!”
212). Assim, a emoção relativa à conclusão de uma fase de estudos conjuga com a
emoção pelo início de uma trajetória escolar em uma instituição renomada,
historicamente marcada pelos signos do prestígio (como apresentado nos itens 4.1
e 4.3). A história do dia da formatura assume uma importância tão singular que
torna a orientação da narrativa construída por Manuela ricamente detalhada: a
quantidade de alunos de sua turma também aprovados para o CEFET/RJ, seus
nomes, os cursos escolhidos, a reação vivida por eles naquela ocasião, enfim,
detalhes que vêm à tona em virtude do quão representativo aquele dia foi para
Manuela.
5.1.3.
Cena 3: “É um milagre!”
45
A Região do Vale do Café é constituída dos seguintes municípios fluminenses: Piraí,
Mendes, Conservatória, Vassouras, Barra Mansa, Pinheiral, Volta Redonda, Engenheiro Paulo de
Frontin, Miguel Pereira, Paty do Alferes, Valença e Rio das Flores. (Fonte:
http://www.turisrio.rj.gov.br)
144
palavra “cansa::da” – linha 100), Wagner remete a uma noção crucial apontada
por Linde (1993). Para a autora, uma narrativa, quando contada repetidas vezes,
entra no repertório de relatos que constituem uma história de vida. Wagner
sinaliza, com seu prefácio para sua longa performance narrativa/identitária, que a
história de sua entrada no CEFET/RJ já figura no hall de narrativas
necessariamente dignas de serem verbalizadas para que se veja sua identidade
social sendo forjada. Márcia, presidente do grêmio estudantil, nesse sentido,
assume uma função muito importante, pois é elencada por Wagner como
testemunha e legitimadora da reportabilidade de sua narrariva (“Ah... conta do
seu milagre.” – linha 101).
Em termos estruturais, Wagner produz uma narrativa bem aos moldes
labovianos e apresenta-se como um exímio narrador, engenhoso e habilidoso no
manejo de recursos performáticos de dramatização que conferem vivacidade ao
enredo construído e conexão afetivo-emotiva como sua audiência. É possível
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46
Colégio Técnico da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
47
Centro Federal de Educação Tecnológica de Química do Rio de Janeiro (atual IFRJ –
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro).
148
“depois que eu entrei pro “>eu aprendi muita coisa...” (linha 169)
CEFET” (linhas 168-169) “a minha vida mudou<...” (linhas 169-
170)
“enfim, eu sou OUTRA pessoa depois
que eu vim pra cá...” (linhas 170-171)
dificuldade que vale a pena ser vivida (ver cena 1), sustenta um ethos de ascensão
social, aqui possibilitada pelo processo de escolarização. Por fim, a resolução da
narrativa de Wagner é permeada por um discurso de valoração de dois aspectos: a
retribuição e a gratidão pelo que a escola fez pelo aluno. Wagner constrói sua
participação na representatividade estudantil como um meio de “pagar” à escola
pelos benefícios a ele prestados (“acho que <no grêmio>... eu vou ter
a... a possibilidade de fazer... assim, de retribuir pra essa
escola tudo que ela representa pra mim.” – linhas 174-176).
Outros aspectos da performance narrativa/identitária de Wagner merecem
destaque. Wagner constrói sua entrada no CEFET/RJ como um evento acidental
(Linde, 1993), ou seja, não motivado intencionalmente. A noção de “acaso”
assume um papel notório em diversos momentos de sua narrativa. O universo
conspira e toda sorte de problemas quase inviabilizam a matrícula do aluno na
instituição. Toda ação complicadora é tecida em uma trama de dificuldades
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aluno nessa dificultosa travessia foi superado, de forma inusitada (porque divina),
e qualquer justificativa orientada por uma lógica racionalista humana seria falha.
Wagner, o bem-aventurado rapaz de Paracambi contra quem o acaso parecia
conspirar, agora se engaja na tarefa de dar testemunho de sua miraculosa entrada
no CEFET/RJ, fazendo sua narrativa ser ouvida, repetidas vezes, a diferentes
interlocutores dentro (e, possivelmente, fora) da instituição.
A narrativa de Wagner sinaliza que a chegada ao CEFET/RJ nem sempre é
fruto de um projeto (Schutz, 1962), ou seja, uma ação ideada antecipadamente na
constituição de uma ação futura. Apesar do status adquirido historicamente, o
CEFET/RJ raramente figura como sonho único e exclusivo dos alunos
participantes da presente pesquisa. É comum que se preste concurso para outras
instituições de ensino de nível Médio-Técnico e o CEFET/RJ corresponde a
apenas uma entre outras possibilidades, entre outras escolas de nível Médio-
Técnico ou academias militares. Resta-nos indagar, portanto, o motivo para que
essas narrativas de chegada à instituição sejam marcadas tão fortemente pelas
noções de emoção e felicidade. Considero que, para além da aprovação no
processo seletivo para o CEFET/RJ, há enredos nem sempre visíveis e que, uma
vez trazidos à baila, tornam inteligíveis projetos, crenças, valores que modelam a
chegada do aluno à instituição.
154
5.1.4.
Cena 4: “Eu não acreditava que eu ia passar”
a história de como o CEFET/RJ não fazia parte dos seus planos inicialmente; e b)
a história dos antecedentes e desdobramentos relativos à sua chegada à instituição.
Kátia, no início de sua narrativa, constrói discursivamente seu projeto de
tornar-se aluna da FAETEC (ver nota de rodapé 35) como uma ideia fixa,
inabalável, uma meta a ser atingida. O emprego de repetições, de fonologia
expressiva e do diálogo construído como discurso interior (Tannen, 1989)
contribui para o efeito de obstinação, de pensamento insistentemente executado,
quase como um mantra que, por força da repetição, seria convertido em realização
de fato.
“meu pai falou assim... “ah, você tira nota bo::a, >você não
precisa entrar< no curso”.” (linhas 141-143)
“aí minha mãe falou assim, “não, não, ela vai entrar osimo... nem
que seja assim com muito esforço, tudo, mas ela vai entrar”.”
(linhas 148-150)
“>a Andréia estudava< comigo desde a... terceira série.” (linhas 176-
177)
“a gente estudou juntas desde a terceira série” (linhas 179-180)
“eu falei assim... “ah, vou botar enfermagem. Pelo menos se eu
o
passar, eu estudo com a Andréia, eu já conheço alguém da escola e
tudoo”” (linhas 180-183)
colega, e seu objetivo era, unicamente, passar para a FAETEC), agora o ethos do
sacrifício, da luta, do esforço individual entram em cena na performance narrativa
de Kátia: “porque eu sabia o tanto que eu tinha estudado, que... foi
DIFÍ::CIL” (linhas 195-196). A aluna também constrói sua aprovação em termos
de auto-engrandecimento de si, no sentido de fazer emergir uma auto-estima até
então desconhecida. A aluna que “não era de amizade com ninguém” (linhas
203-204), “a MENOS popular” (linha 204), mostra seu valor e comprova,
publicamente, sua capacidade para aqueles que “ficavam tirando o::nda...
ficavam falando que eram os melho::res” (linhas 198-199). O êxito
alcançado por Kátia fá-la reconstruir sua história e sua auto-imagem à luz do
momento presente e tendo em vista os valores moralmente reconhecidos por sua
comunidade e audiência.
A cena a seguir aborda noções já performadas na narrativa de Kátia no que
tange a dois aspectos: a) a chegada ao CEFET/RJ motivada por um ethos mais
coletivista que individual; e b) o lugar central ocupado pela família no âmbito das
camadas populares. A cena 5 foi extraída da entrevista com Carlos, aluno do 3º
ano do Ensino Médio-Técnico de Enfermagem que tinha dezessete anos de idade
e residia em São João de Meriti, município da Baixada Fluminense bem próximo
à cidade do Rio de Janeiro e entre as mais altas densidades demográficas do
162
continente americano. Carlos era, assim como Carina (cena 1), candidato à vaga
de bolsista de Iniciação Tecnológica, cujas atividades estariam vinculadas,
necessariamente, ao meu projeto de pesquisa. Carlos foi o candidato selecionado
para trabalhar como meu auxiliar de pesquisa e, por esta razão, é o único
participante que não teve seu nome substituído por outro de natureza fictícia.
Carlos não constrói, propriamente, uma narrativa de sua chegada à instituição,
assim como acontecera nas cenas 1 a 4. Entretanto, creio ser producente incluí-la
neste primeiro eixo temático de análise de dados uma vez que as motivações e
justificativas pelas quais Carlos escolhera o curso de Enfermagem assemelham-se
às das demais cenas discutidas até aqui.
5.1.5.
Cena 5: “Minha mãe sempre foi hipertensa”
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constrói uma narrativa mínima com base em uma lógica de causa e efeito: o
apreço pessoal pela disciplina do currículo básico mais diretamente relacionada ao
curso de Enfermagem é o que leva Carlos a escolher tal área técnica.
Das linhas 222 a 227, Carlos enumera uma sequência de cunho avaliativo
que enaltece o quão interessante sua área técnica se apresenta em função de sua
relação direta com o corpo humano (“vendo, tendo como objeto de estudo
o corpo huma::no” – linhas 223-224) e por seu aspecto prático (“olhar pra
MIM MESMO e poder ver que que eu, VER o que eu to aprendendo aqui
em mim” – linhas 225-227). Nas linhas seguintes, Carlos focaliza a dimensão
instrumental de sua formação profissional, com meio de se conseguir inserção no
mercado de trabalho (“de empre::go” – linha 229), ressaltanto, porém, que seus
objetivos vão além dessa visão mais utilitarista. Apesar de estar em dúvidas sobre
que caminhos trilhar futuramente (“No momento ainda to meio
aspira. Ao situar o ensino superior como “algo melhor” (linha 231), Carlos
alinha suas aspirações ao ethos de valorização da educação como meio de
ascender na escala social e de adquirir prestígio.
Se, por um lado, as pretensões para a vida universitária parecem guiadas por
uma margem de escolha consciente de Carlos, na condição de indivíduo, o mesmo
não se pode afirmar no que tange à escolha do curso técnico de Enfermagem. A
relação direta entre sua preferência por Biologia e o fazer prático da área técnica
de Enfermagem, ainda que construída como elemento importante na narrativa de
Carlos, minimiza-se frente a uma sub-narrativa sobre a razão mais notória e nobre
para sua chegada ao CEFET/RJ: a doença de sua mãe.
O início dessa sub-narrativa é marcado por rodeios, meandros e hesitações
até que se chegasse ao ponto: querer ajudar sua mãe nos cuidados de sua
enfermidade a partir do conhecimento que adquirisse no curso técnico. Alguns
recursos formais de performance são dignos de comentário. De início, Carlos
parte de uma visão mais generalista acerca do trabalho com tal área técnica
(“poder tá >ajudando< as pesso::as, por... no futuro eu vou...
poder AJUDAR... seres huma::nos com aquilo que eu to aprendendo” –
linhas 237-240) até chegar aos benefícios que esse conhecimento poderia
proporcionar no âmbito de uma sociabilidade mais íntima, no seio familiar
165
(“sempre tive o desejo de... aprender pra poder ajudar ela” – linhas
251-252). A mudança de uma preocupação com as pessoas em geral para o
cuidado com a saúde de sua mãe é definida por Carlos como “uma questão
interessante” (linhas 240-241). Palavras ditas de forma incompleta (“mui-” –
linha 241; “ponta-” – linha 243), um sem-número de pausas curtas, o emprego de
termos de sentido vago (“é uma coisa” – linhas 241-242) correspondem a
marcas de hesitações que sinalizam a dificuldade de Carlos inserir, em sua
narrativa, um assunto de ordem tão íntima, mas, ao mesmo tempo, de tamanho
sentido simbólico. A longa pausa, na linha 243, sugere uma certa emoção que
antecipa a história que está por vir.
Carlos constrói a orientação de sua narrativa a partir de traços que
caracterizem a personagem central dessa trama e principal responsável pela
chegada do aluno no curso de Enfermagem do CEFET/RJ: sua mãe.
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5.2.
A origem
5.2.1.
Cena 6: “Esquecem um pouco da gente”
Helena inicia seu relato partindo de uma constatação acerca da região sócio-
geográfica onde se localiza a UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. A Baixada
Fluminense é construída discursivamente como lugar precário no qual a carência
de atenção governamental desdobra-se em sofrimento para a população.
“trazer pra Baixada Fluminense uma coisa que talvez seria mais só
ali da cidade do Ri::o... das cidades gra::ndes” (linhas 158-160)
“tá num lugar... onde, que:: não tem tantas oportunidades” (linhas
175-176)
“dar >oportunidade< realmente às pessoas... daQUI:: e da Baixada
Fluminense oem sio” (178-179)
que abriga “uma escola de QUALIDADE” (linha 174). Helena emprega uma série
de dispositivos avaliativos que conferem ao CEFET/RJ uma noção de status,
justificando, assim, o até então improvável fluxo migratório invertido para a
Baixada Fluminense. A fonologia expressiva e o prolongamento de vogais
contribuem para destacar e enaltecer o prestígio da instituição – por exemplo em
“QUALIDADE” (linha 174), “QUALIDA::DE” (linha 196), “cefe::t” (linha 185),
“FEDERAL” (linhas 186, 195). Também o prolongamento de vogais dá destaque
aos efeitos positivos da passagem do aluno pelo CEFET/RJ no que diz respeito à
garantia de ingresso no nível superior e no mercado de trabalho: “faculda::de”
(linha 191), “empre::go” (linha 191), “empre::sas” (linha 192). Do mesmo
modo, chama a atenção o emprego da interjeição “poxa” (linhas 183, 185, 189,
190) como eficiente recurso de avaliação externa que denota certo espanto e
encantamento pela instituição construída discursivamente com base na noção de
prestígio.
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um pouco da gente.” – linhas 148-149). Uma vez mais, Helena torna relevante,
em sua narrativa, a noção de contra-fluxo: a orientação sobre seu bairro segue o
itinerário do trem, ou do ônibus, de sua casa para a escola, ou seja, da capital para
a Baixada Fluminense. Na busca pelas oportunidades não concedidas pelas
instâncias governamentais, percorrem-se caminhos contrários aos comumente
previstos, contribuindo na reelaboração de nossas afiliações identitárias.
As noções de precarização e ausência comumente atribuídas à Baixada
Fluminense também figuram nas narrativas construídas pelos alunos sobre suas
escolas de origem. Não são raros os relatos que situam, em lados antagônicos, o
CEFET/RJ e as escolas onde os alunos cursaram o ensino fundamental. Na cena a
seguir, Kátia (ver descrição da aluna na cena 4) constrói a escola estadual onde
estudara como lugar sem regras, sem cobranças e sem a necessidade de estudar.
Atributos semelhantes são tecidos em relação, também, a sua família.
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5.2.2.
Cena 7: “Eu não estudava na outra escola”
o
99 Kátia Eu também troquei muitoo... Assim, pra MIM,
100 é::... entrar pro cefet foi uma grande
101 conquista... no meu ver, oassimo. <De início>,
102 é... meus pais nunca foram aqueles pais assim de
103 cobrar... igual a Joana falou, de ter aquela
104 coisa assim de passar. Meus pais, assim... é até
105 um pouco, assi::m... aliena::dos em relação a
106 isso, não tinham conhecimento, >que nem<, ainda
107 HOJE eles são assim... só não são tão porque EU
108 entrei, e hoje eles têm mais contato com escola
109 técnica, faculdade pública, com essas coisas...
110 mas assim, era::... eu estudava em escola, é::
111 pública, estadual... não tinha NADA dessas
112 re::gras, assim, era, era até mais diferente,
113 era coisas assim... bem mais so::ltas... é::...
114 você não tinha aquela coisa... eu sinceramente
115 nem precisava estudar pra, pra fazer pro::va...
116 e quando eu entrei pro cefet foi um <baque>
117 porque eu vi que realmente eu precisava
118 estudar... precisava... estar sempre ali
119 estuda::ndo, contando >notinha daqui, notinha
120 dali<, e eu não estudava na outra escola e
121 tirava sempre no::ve, de::z... ah... eu
122 gostavahhh ((risos))
“meus pais nunca foram aqueles pais assim de cobrar” (linhas 102-103)
“Meus pais, assim... é até um pouco, assi::m... aliena::dos em
relação a isso” (linhas 104—106)
“não tinham conhecimento” (linhas 106)
48
Referência ao poema “Ode ao burguês”, de Mário de Andrade.
175
5.2.3.
Cena 8: “Meus pais sempre quiseram esse negócio de estudar”
“Então eu sempre fui preparada pra::, pra isso mesmo” (linhas 18-19)
“eu fiz cu::rso... preparatório pra faetec e opra estudar aquio”
(linhas 19-21)
“>Na outra escola ainda IA, minha “aqui ela NUNCA precisou...
mãe ainda< vinha comi::go” (linhas vir me trazer, opor mais que
34—35) seja mais longe” (linhas 37-38)
de uma assinatura – linhas 28-30), agora é Joana, por agentividade própria, que
comunica à família os resultados obtidos. Joana, por meio da fala relatada,
dramatiza essa espécie de “prestação de contas” à mãe (““mãe, ó, tirei
ta::nto, tô de recuperação ou nã::o”” – linhas 32-33) no que diz respeito
ao seu rendimento no CEFET/RJ. O passado da aluna na escola anterior é
construído de modo a posicionar sua mãe como guia, condutora dos caminhos a
serem percorridos (“me levava< na esco::la” – linhas 36-37), bem como
protetora contra as intempéries e inseguranças do cotidiano (“aí dizia “ah, tá
perigoso, >vou contigo”” – linhas 35-36). Já na escola atual, a distância
espacial (“opor mais que seja mais longe” – linha 38) entre outras situações
adversas não são mais tornadas relevantes a ponto de a vigilância materna ser
totalmente descartada. Está em cena um ethos de proteção e vigilância parentais
que, aos olhos de Joana, são interpretados como opressão e falta de confiança
(linha 40). Os pais, por outro lado, parecem construir um sentido mais nobre para
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essa presença física constante nos caminhos trilhados por Joana, ancorando o
significado de suas atitudes na visão de que a família deve proteger e sustentar
seus filhos e conduzi-los ao melhor caminho para que seja considerada honrada.
Os valores cultivados no seio familiar adquirem um papel notório e decisivo
na tessitura do ethos de valorização da educação formal como meio de ascensão
social. Os discursos que circulam nas origens familiares são atravessados pela
crença no estudo como percurso que dignifica o filho das camadas populares,
proporcionando-o benefícios em termos de auto-afirmação, estabilidade, além de
prestígio e notabilidade sociais. A cena a seguir é um exemplo do papel nuclear e
englobante da família nos caminhos a serem percorridos pelos filhos. Desta vez,
além da valoração atribuída à escolarização, a religião, o trabalho e a perpetuação
da família tradicional também figuram como unidades fundacionais relevantes
para os filhos das camadas populares.
A próxima atriz social a se apresentar nesse palco que dramatiza as
moralidades enraizadas nas classes populares é Mariane, aluna do 2º ano Médio-
Técnico em Enfermagem. Na ocasião da entrevista, Mariane tinha dezessete anos
de idade, morava no bairro de Austin, em Nova Iguaçu, e era candidata à vaga de
bolsista de Iniciação Tecnológica. Em certo trecho de sua entrevista, Mariane
elenca seu pai como a pessoa que a levara a acreditar que o CEFET/RJ poderia lhe
proporcionar uma educação diferente das escolas por onde havia circulado
179
anteriormente. Na cena 9, Mariane constrói seu pai não apenas como principal
representante do ethos de valorização da educação, mas, também, como guardião
de valores morais associados à conjugalidade, ao trabalho e à religião.
5.2.4.
Cena 9: “Ele quer que a gente se case, trabalhe e estude”
o
230 Talita Não sabiao. E aí você, você acha que seu pai
231 foi um... um grande... incentivador?
232 Mariane [Sim... acredito que sim... Foi
233 sim, porque, no caso, o meu pai só tem até a
234 oitava sé::rie... e ele acredita... ele, ele faz
235 de tudo... ele fala assim... “eu quero que vocês
236 estu::dem... pra... futuramente vocês ter uma,
237 vocês terem uma estabilidade... porque eu NÃO
238 tive estudo”... Ele tem um bom empre::go <e
239 tu::do>, mas é porque... ele tem uma
240 característica assim... que é, gosta de criar as
241 coisas... aí ele conseguiu, conseguiu a
242 estabilidade dele. MAS... eu... é... ele fala
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Mariane faz da minha pergunta inicial (“você acha que seu pai foi
um... um grande... incentivador?” – linhas 230-231) o resumo/abstract da
sua narrativa: apresentar seu pai como grande incentivador para seu ingresso em
uma escola que pudesse oferecer um modelo de educação diferente do que, até
então, constituía seu campo de possibilidades (Velho, 1994). Após a reafirmação
desse sumário (“Sim... acredito que sim” – linha 232), a aluna prossegue
com uma sequência de orações narrativas, alternando verbos no presente e no
pretérito que servem de orientação a fim de caracterizar seu pai e os valores
sociais e morais por ele personificados.
o modelo de ascensão social do pai ser adotado como referência para as gerações
mais jovens da família. De algum modo, Mariane já está no caminho de
afastamento de sua condição social herdada, uma vez que está em um curso de
nível Médio-Técnico, diferentemente do que fizera seu pai. Como aponta a fala do
pai, a condição elementar para garantir a estabilidade futura de Mariane são os
estudos, e não outras vias possíveis. A palavra de ordem é, portanto, “estudar”. O
discurso do pai parece bastante alinhado com esse ethos, típico das classes
populares, que concebe a educação como forma se ascender socialmente com
dignidade. “AONDE nós estamos” (linha 244) – leia-se “na Baixada Fluminense”
–, o pobre só alcança estabilidade frente às lutas do dia-a-dia se estudar. O
descrédito atribuído à Baixada Fluminense e a precariedade dos serviços
oferecidos na região poderiam sugerir pouca (ou nenhuma) necessidade de mão-
de-obra especializada via escolarização formal. O pai de Mariane, entretanto,
atribui um valor positivo e emergencial à educação, ainda que, no nível do
discurso, a Baixada Fluminense continue ocupando um lugar menor – “ele fala
que eu TENHO que ter estudo... que até mesmo AONDE nós estamos...
necessita do estudo, >pra qualquer coisa que a gente vá fazer<”
“ele falou, “a::h, eu quero comprar uma fazenda pra mim e me mudar
LÁhh:: pro interiorhh... ((riso)) que eu não quero mais viver
aqui::hh... oe nossao, quando tiver oportunidade to indo embora
daqui”” (linhas 272-276)
posso... seguir meu caminho” (linhas 308-310). Soma-se a esse novo status
ocupado pelo ethos de valorização do estudo, construído discursivamente na
narrativa de Mariane, a maneira como os lugares sociais de homem e mulher são
apresentados: ao homem, cabe-lhe o papel de provedor e agente central do ente
moral família; à mulher, reserva-se uma condição inferior nessa hierarquia
conjugal.
185
“aquele homem que me tirou da casa dos meus pa::is” (linhas 304-305)
“que me deu sustento por dete, por determinado te::mpo” (linhas 305-
306)
“do na::da ficar... ter, ter que voltar pra casa dos meus pais”
(linhas 307-108)
“ele pode me largar” (linhas 309-310)
5.3.
O (per)curso
5.3.1.
Cena 10: “Eu investi todas as minhas expectativas aqui”
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o
13 Manuela Olhao, antes do <cefe::t>... oeuo, e::u... eu
14 sempre gostei de estuda::r... sempre fui assim
15 muito interessada nessas co::isas, onéo... e,
16 graças a Deus sempre fui muito esforçada... e
17 assi::m... eu tinha::... expectati::vas... meu
18 primeiro objetivo não era vir pro cefe::t...
o
19 néo, mas assim... em decorrência assim de
20 algumas circunstâncias... da minha vida eu
21 acabei vindo pra cá... e isso >pra mim< foi
22 muito bom... Antes eu tive experiências com
23 grê::mio... assim me envolver com pessoas... de
24 dentro da escola... me envolver com alguns
25 trabalhos da escola também, sempre tive
26 envolvida onessas coisaso... e::... assi::m...
27 MUDOU.
o
28 Talita Uhumo, que circunstâncias são essas, oassim...
29 que você falouo?
30 Manuela É::...
31 Talita É, que você falou que você veio pra cá por causa
32 de algumas <circunstâncias>.
33 Manuela Porque assim... no final do a::no... é::...
34 eu... >fiz, você tem que< fazer inscrição pro
35 estado, né... pra estudar no estado.
36 Talita Uhum.
37 Manuela E eu NÃO TINHA feito essa inscrição... que é
38 pela internet... eu não fiz essa inscrição,
39 perdi essa época de inscrição. Então
40 >automaticamente pra eu conseguir uma vaga< em
41 outro lugar, eu ia ter que esperar época de
42 matrícula <DA esco::la>... que eu quisesse ir
43 >pra eu< poder entrar.
44 Talita Você estudava em escola pública?
45 Manuela Eu estudei em escola pública até a sétima
46 série... odurante a minha vida toda eu estudei
47 em escola públicao... só que na oitava série, eu
188
“sempre” – linhas 14, 16), uma característica nata, uma dádiva (“graças a Deus
sempre fui muito esforçada” – linha 16). Esse movimento de orientação que
envolve o engrandecimento identitário de Manuela é importante para justificar o
modo como constrói a superação das dificuldades por ela vividas, como veremos a
seguir.
Manuela afirma ter se tornado aluna da UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ em virtude de algumas circunstâncias (“em decorrência assim de
algumas circunstâncias... da minha vida eu acabei vindo pra cá” –
linhas 19-21). De um modo semelhante à cena 3, na qual Wagner constrói sua
chegada à instituição como um acidente, Manuela também não situa o CEFET/RJ
como uma escolha (“meu primeiro objetivo não era vir pro cefe::t” –
linhas 17-18), mas como um acontecimento casual. Assim como na narrativa de
Wagner, uma sequência de episódios frustra os planos iniciais de Manuela,
deixando-a à mercê do acaso e sem direção diante de perdas e erros em série.
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5.3.2.
Cena 11: “Tem nem tempo de respirar”
1ª SUB-NARRATIVA
“eu no caso faço curso... sete horas, de sete às dez” (linhas 361-
362)
“então eu saio daqui quatro e vinte” (linha 363)
“vou pra casa CORRE::NDO” (linhas 363-364)
“é só o tempo de >tomar banho,” (linha 364)
“comer alguma coisa” (linha 365)
“e voltar pro curso” (linhas 365-366)
2ª SUB-NARRATIVA
“>eu tava falando com as meninas<” (linha 366)
“a gente teve prova HO::je.” (linhas 366-367)
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5.3.3.
Cena 12: “Eu não sabia fazer regra de três”
“aí eu, “não, não vou fazer de novo assim... Eu vou fazer DE
NOVO... pra... conseguir fazer a prova”. (linhas 113-115)
modo satisfatório. Além das notas baixas e das dificuldades de acompanhar bem
as aulas e conteúdos (linhas 128-129), a pena capital que Mariane poderia sofrer,
caso a mudança absoluta dos hábitos de estudo não acontece, figuraria na forma
de reprovação (linhas 136, 142).
5.3.4.
Cena 13: “Não aprende quem não quer”
436 Talita Como é que é teu dia-a-dia aqui pra VIR pra
437 escola?... como é que... cê vem, cê agora tá
438 vindo ce::do, né, porque você agora tem aula de
439 manhã, mas... como é que era...
440 Manuela [É... eu venho pra cá de manhã::... tenho
441 aula até as onze
442 Talita Cê vem de ônibus?
443 Manuela Venho de ônibus... é o único meio de transporte
444 que eu te::nho, pra vir pra cá... venho de
445 ô::nibus... e::((pausa longa)) GERALME::NTE...
446 pelo menos na minha época de ensino médio... >a
447 gente costumava< passa::r... o DIA inte::iro na
448 escola
449 Talita Uhum.
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biblioteca
livros
amigo
5.3.5.
Cena 14: “Valeu a pena ficar reprovado”
Gabriel parte de uma constatação (“eu vi” – linha 78) para construir
discursivamente a sua decisão do que poderia ser chamado de “reprovação
voluntária”. Primeiramente, Gabriel apropria-se de um recurso discursivo de
identificação e diferenciação por meio do emprego dos referentes “lá” (linha 79)
– a escola estadual – e “cá” (linhas 78 e 81) – o CEFET/RJ. Trata-se de uma
oposição centrada, aqui, na questão da qualidade do ensino e permeada por um
julgamento moral e ideológico acerca desses dois espaços: a noção de que o “cá”
é melhor que o “lá”. Essa oposição, aliás, é bastante frequente nos relatos dos
alunos da UnED de Nova Iguaçu49. Mostrar-se diferente do aluno da escola
estadual é quase que um ponto de honra; identificar-se como “cefetiano” assume
um significativo valor de prestígio. Ao buscar alcançar seus objetivos (linhas 79-
80), Gabriel vislumbra, ao estudar na UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ, uma
possibilidade de colocar em prática seus projetos individuais, aliados a um ethos
de ascensão social por meio da educação (particularmente a profissional – linhas
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80-81). O aluno parece sinalizar que um ensino fraco não o permitirá alcançar
melhores condições de vida, daí a necessidade do afastamento da sua condição de
origem. Considero importante, entretanto, relativizar essa questão. Ao olhar de um
observador externo, pode não fazer muito sentido essa diferenciação entre o “lá” e
o “cá” construída por Gabriel, uma vez que tanto a escola estadual a que o aluno
se refere quanto o CEFET/RJ localizam-se na mesma região sócio-geográfica: a
Baixada Fluminense. Ambos os espaços seriam, em tese, marcados pela mesma
condição de precariedade e marginalidade se comparados, por exemplo, às escolas
situadas no Rio de Janeiro (capital). Contudo, é importante procurar reconhecer
que valores o narrador torna relevantes discursivamente em sua narrativa, ao invés
de partir de conclusões apriorísticas. Na narrativa de Gabriel, constrói-se uma
partição valorativa entre dois universos de escolarização (a escola estadual vs. o
CEFET/RJ), o que implica dizer que níveis diferentes de hierarquização podem
acontecer ainda que dentro de uma mesma sociedade. Se os valores construídos
são diferentes, isso implica dizer que estamos diante de outras as redes de
significados (Geertz, 1989).
49
Notas etnográficas registram a constante diferenciação que, nativamente, os alunos fazem
de si próprios em relação aos alunos da FAETEC (Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado
do Rio de Janeiro). Arrisco dizer que se trata, inclusive, de um mecanismo de negação. Ser
confundido como aluno da FAETEC pode ser motivo de muita indignação para alguns alunos do
CEFET/RJ.
208
Ressalto, aqui, o modo como o aluno reconstrói sua ascensão social dentro
da própria escola: Gabriel afirma “aceitar” (linhas 88, 90) ser representante de
turma e, posteriormente, membro do grêmio estudantil. Isso implica dizer que o
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5.3.6.
Cena 15: “Acho que tudo tem que ter paixão”
o
356 Talita Ângelao?
357 Juliana A Ângela::...
358 Talita [oEla terminou tem quanto tempoo?
359 Juliana Tem um ano.
o
360 Talita De repente ela foi minha alunao.
361 Juliana Então, ela fez vestibular pra educação fí::sica,
362 que era o sonho da vida dela... ela foi e
363 largou... porque acho que é integra::l, eu não
364 sei direito. Largo::u o último ano do técnico, e
365 muitas pessoas chegaram pra ela e falaram “não,
366 mas... mas é mais uma, uma forma de você
367 conseguir empre::go, onão sei quêo”... mas::...
368 eu acho que se você <não for>, é::... e acho que
369 tudo você tem que ter paixão... não adianta...
370 >não é<, não é discurso utó::pico de::... não é,
371 sabe, de fã de Che Gueva::ra, entendeu?
372 ((risos))
373 Talita Aham. ((Risos))
374 Juliana Mas acho que tudo tem que ter paixão, eu não
375 i::a conseguir dar co::nta de um técnico...
376 <sendo empurrado com a barri::ga>, >de um
377 técnico<... eu não ia, eu não ia conseguir fazer
378 aquilo bem. Agora dentro de uma faculdade de
379 Histó::ria, eu sei que, eu NASCI praquilo...
380 então por mais que eu tenha dificulda::de,
381 >porque dificuldade a gente vai encontrar< em
382 tudo na nossa vida... e::u, eu vou conseguir...
383 ser o melhor que eu puder ser naquilo, uma coisa
384 que eu não conseguiria... no Técnico.
50
Como as entrevistas não foram geradas em vídeo, não incluí nas transcrições as marcas
não-verbais nas performances narrativas/identitárias dos alunos participantes da presente pesquisa.
No caso específico de Juliana, entretanto, creio ser importante incluir a menção aos seus usos
corporais que, aliados aos dispositivos linguísticos empregados pela aluna, conferiram à sua
performance narrativa contornos particularmente diferentes, se comparada aos demais alunos
entrevistados.
214
construída pelo menino como uma escolha incompatível com a trajetória escolar
de Juliana (“você tá fazendo <cefet> pra fazer HISTÓ::RIA?” – linhas
326-327); do outro lado desse campo de batalha discursivo, o prestígio das escolas
militares e a convicção, por parte do menino, de que a sua escolha é
hierarquicamente superior à de Juliana (“não, porque EU vou tentar ITA,
I::ME, fazer vestibular o quê, vou estu-“ – linhas 335-336). A aluna,
por meio de recursos linguísticos de avaliação encaixada (tais como a fonologia
expressiva e o emprego da repetição em “TREZE aninhos... treze aninhos” –
linha 329), constrói sua surpresa diante dos valores desse menino, uma criança
(como sugere o emprego do grau diminutivo) que ecoa uma lógica fortemente
enraizada no mundo da cultura acerca do papel das escolas de orientação
51
O Colégio-Curso Tamandaré é uma instituição de ensino tradicional e tida como
referência no preparo de jovens para concursos vestibulares e para academias militares. Em sua
página na Internet, o prestígio adquirido historicamente pela instituição figura em seu slogan mais
recente: “Tamandaré: 60 anos de ensino forte”. (fonte: http://www.tamandare.com.br/home.html).
52
Instituto Tecnológico de Aeronáutica, sediado na cidade de São José dos Campos – SP. A
instituição militar oferece cursos de Graduação e Pós-Graduação objetivando a formação de
profissionais no campo aeroespacial. O processo seletivo para a instituição, tido como difícil e
concorrido, atribui um forte sentido de prestígio aos alunos que lá ingressam (http://www.ita.br/).
53
Instituto Militar de Engenharia, localizado na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. A
instituição ligada ao Exército Brasileiro oferta cursos de Graduação e Pós-Graduação voltados,
especialmente, para área de Engenharias. No site da instituição (http://www.ime.eb.br/), as
palavras “Tradição”, “Tecnologia”, “Qualidade”, “Excelência” e “Credibilidade” figuram em
destaque como símbolos maiores do prestígio atribuído a tal escola militar.
217
“Você acha que na, a teoria é uma e a prática é outra?” (linhas 346-
347)
“Eu acho que::... é elaborado pra ser de um jeito... mas::... não
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“muitas pessoas chegaram pra ela e falaram “não, mas... mas é mais
uma, uma forma de você conseguir empre::go, onão sei quêo”” (linhas
365-367)
218
“acho que tudo você tem que ter paixão... não adianta” (linhas 368-
369)
“não é discurso utó::pico de::... não é, sabe, de fã de Che
Gueva::ra, entendeu? ((risos))” (linhas 370-372)
“Mas acho que tudo tem que ter paixão” (linha 374)
“eu não i::a conseguir dar “eu sei que, eu NASCI praquilo”
co::nta de um técnico” (linhas (linhas 379)
374-375) “e::u, eu vou conseguir... ser
“<sendo empurrado com a o melhor que eu puder ser
barri::ga>” (linha 376) naquilo” (linhas 382-383)
“eu não ia, eu não ia conseguir
fazer aquilo bem.” (linhas 377-378)
5.4.
A mudança
5.4.1.
Cena 16: “Eu levava a vida como um adolescente”
54
Entre eles, destacam-se: a carência de professores; a deficiência na qualidade do ensino; a
precariedade das instalações físicas da escola, o desestímulo de docentes e discentes; a não-
capacitação dos alunos, entre outros.
224
ANTES DEPOIS
“eu tava acostumado a... “eu comecei a trabalhar também”
levar a vida como um (linha 29)
adolescente, >criança” (linhas “aí já começou a... a
26-28) responsabilidade” (linhas 30-31)
“já tinha dobrado por causa do CEFET”
(linhas 31-32)
“triplicou por causa do trabalho”
(linha 32)
“saía de casa SEIS e meia da manhã”
(linha 33)
“chegava em casa onze da noite”
(linha 34)
em tese, possibilitará a ascensão social; por essa razão, Cláudio vem há tempos
perseguindo esse tipo de aprendizado (não à toa, prestou, por duas vezes, concurso
para instituição, preferindo, inclusive, repetir de série). Entretanto, Cláudio amplia
sensivelmente o conceito de aprendizagem e atribui alto grau de relevância à mera
sociabilidade (Simmel, 2006). A chamada cultura “inútil” (linha 39) enfatiza a
noção de interação social livre das obrigações curriculares, além de privilegiar o
estar com, a coletividade. O self made man, o jovem rapaz que, sozinho e com o
esforço do seu trabalho, vence os obstáculos e supera o fracasso de outrora,
desloca seu olhar para o aprendizado construído nas redes de solidariedade e
situa-o como um tipo de conhecimento mais válido que aquele aprendido “em sala
de aula”.
No fim de sua narrativa, Cláudio constrói uma coda, conectando os eventos
passados vivenciados ao momento presente, e sinaliza o que, possivelmente, há de
vir no futuro. O fato de estar na última série do Ensino Médio (“to no terceiro
ano” – linhas 39-40) pode ser caracterizado como um período de transição: finda-
se um ciclo escolar, inicia-se outro, seja pelo ingresso no ensino superior ou no
mercado de trabalho. Quanto ao presente, Cláudio focaliza dois aspectos: o
ineditismo em não mais acumular estudos e o trabalho (“pela primeira vez
estou só... só no colé::gio...” – linhas 40-41); e o preparo para seu futuro
acadêmico (“fazendo vestibular...” linhas 42-43). É interessante notar que o
226
trabalho já não figura em seu momento presente, nem chega a ser cogitado para os
planos futuros. A conclusão dos estudos de Nível Técnico55 e a possibilidade de
ingressar na universidade (“acho que eu vou... >começar a faculdade só
depois que terminar o quarto ano<” – linhas 43-44) emergem como
principais projetos, relativamente planejados, do aluno. Pode não haver garantias
para que esse ethos de ascensão social via formação bacharelesca se cumpra,
entretanto creio ser inegável que a inclusão do tema “faculdade” (linha 44) em sua
narrativa já sinaliza, ao menos, um roteiro para suas narrativas futuras.
Na construção discursiva do antes e do depois da chegada de um aluno ao
CEFET/RJ, por vezes a dimensão da mudança figura como uma necessidade de
adaptação às rotinas e exigências desse “mundo novo”, diferente do universo de
origem do aluno. É assim que Manuela (ver cenas 2, 10 e 17) constrói o sentido da
mudança proporcionada por seu ingresso na instituição. Na cena 17, a aluna
focaliza o esforço empreendido por ela para ajustar-se e aculturar-se ao “ritmo” da
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nova escola e suprir o que considera ser uma “deficiência” (linha 250, cena 17)
de aprendizagem advinda da oitava série do ensino fundamental. Manuela atribui
uma valoração altamente positiva aos efeitos da mudança em sua construção
identitária, no que diz respeito ao seu crescimento pessoal, assim como visto na
performance narrativa/identitária de Cláudio (na cena 16).
5.4.2.
Cena 17: “A gente se depara com um mundo novo”
55
Na ocasião da entrevista, depois de o aluno concluir o 3º ano do Ensino Médio na UnED
de Nova Iguaçu, ainda permanecia na escola por mais um ano para findar as disciplinas de
formação técnica.
227
inaugural de modo mais agentivo, sem se sentir mais perdida (“o Pablo me
ajudou MUI::TO” – linhas 246-247). Pablo, que é conhecido entre os alunos da
instituição como professor exigente e temido pelo alto grau de dificuldade de suas
avaliações bimestrais, tem sua identidade forjada, pelo discurso de Manuela, como
aquele que sinaliza para a aluna o que é necessário para percorrer esse caminho. A
ajuda (linha 246) de Pablo, entretanto, não é construída como uma facilitação do
percurso. Apesar das lacunas de conhecimento de Manuela oriundas de seu ensino
fundamental, particularmente nas Ciências Exatas (“porque a minha
É notório observar que Pablo é construído como aquele professor que ajuda
Manuela, sem que isso fosse motivado por um sentimento de pena pelas
dificuldades enfrentadas pela aluna. Pablo dá um livro a Manuela (objetificada
pelo pronome oblíquo “me” – linha 247) e não modifica sua ação docente em
função de sua ausência de conhecimentos advindos do ensino fundamental –
construídos, aliás, por Manuela como algo elementar e hierarquicamente menor,
em comparação ao Ensino Médio (“essas definições be::m primiti::vas”
– linhas 260-261). A ação de Pablo é apenas o dispositivo que aciona as
engrenagens do esforço empreendido por Manuela para sua adaptação aos passos
(“entrar no ritmo” – linha 252) necessários para seguir no caminho, sem mais
229
de origem (“numa escola municipal às vezes você não tem... >às vezes
o
não<... na ma::ioria das vezes você não tem... professor assimo
tão bem preparado como os que tem aqui” – linhas 280-283).
A composição desse painel que envolve a mudança de um estado inicial
identitário para outro simbolicamente melhor, nas performances narrativas dos
alunos participantes da presente pesquisa, em geral passa pela tessitura de
movimentos de orientação cuja finalidade reside no contraste entre as escolas
anteriores e a UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. Na narrativa de Manuela, por
exemplo, comparar a formação dos professores da rede municipal de ensino com a
dos docentes do CEFET/RJ significa dizer que sua educação atual é melhor que a
anterior. Se as condições de educação migraram para um estado valorativo
superior, consequentemente a aluna pode construir sua auto-imagem também a
partir desse mesmo movimento. Na cena abaixo, Juliana (ver cena 15) também
compara a escola onde cursou o ensino fundamental com o CEFET/RJ e constrói
discursivamente os impactos identitários nessa mudança de uma instituição para
outra. Desta vez, além da polarização estabelecida entre os docentes de uma e
outra escola, entram em cena dois ethos concorrentes: um que destaca o valor em
torno da localidade e da parentalidade, e outro relacionado a um processo de
desenraizamento de sua condição original.
231
5.4.3.
Cena 18: “Se eu tivesse ficado fechada naquele colégio de bairro...”
56
Foi feito um recorte na sequência narrativa de Juliana (das linhas 35 a 57), na tentativa de
focalizar mais propriamente a narrativa de mudança da aluna, e não as motivações para sua
chegada à instituição (como é o caso das linhas retiradas nesta cena específica).
232
(ou, pelo menos, parte dessa história). É interessante notar, entretanto, que a aluna
associa sua reprovação a um comportamento que denominou “mal de, de
calouro” (linha 66). Calouro é um termo comumente atribuído a estudantes
novatos e, por isso, inexperientes, em uma instituição. Juliana constrói sua
reprovação como resultado de certo encantamento típico de um aluno novato que,
ao chegar a um “mundo novo” (como construído por Manuela na cena 17), não
vislumbra os percursos que estão por vir, ofuscado ainda pela felicidade de ter
sido aprovado no concurso. Este, então, seria o mal do calouro: “achar que tudo
vai ser... a mil maravilhas” (linhas 67-68).
Apesar de ver-se inserida nessa lógica concernente ao “mal de calouro”,
Juliana não encontra uma justificativa para sua reprovação, tampouco se
culpabiliza por isso. Na construção discursiva do seu primeiro ano na instituição
(“o meu primeiro a::no, ele não foi um primeiro ano... desleixado”
– linhas 68-69), Juliana parece não reconhecer um merecimento pela punição
recebida (a reprovação); não à toa, a aluna ainda constrói a surpresa de seus
interlocutores dentro da instituição pela notícia de sua reprovação, juntamente
com um numeroso grupo de alunos de sua turma (“Muitas pessoas até dentro
da escola ficaram admiradas de eu ter ficado entre os doze que
repetiram” – linhas 69-71). O relato de Juliana não é, entretanto, carregado de
qualquer sentimento de tristeza ou mesmo revolta na construção de sua
234
5.4.4.
Cena 19: “Ah, você é fera, hein?”
– linha 810). A performance da dor física vivida atinge seu clímax no momento
em que Joana constrói seu mal-estar como uma situação de morte iminente (como
sinaliza o vocábulo “quase” – linha 814).
5.4.5.
Cena 20: “As pessoas falam como se você fosse um modelo”
Por meio do emprego de fala relatada, Joana dramatiza o pedido dessa mãe
para que Joana auxilie sua filha no preparo necessário à aprovação no processo
seletivo para o CEFET/RJ. Uma vez mais, Joana é construída discursivamente
como um exemplo a ser seguido, tendo em vista o status adquirido por ela ao se
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tornar aluna de uma instituição de renome (“eu quero que ela passe >pra
estudar< que nem você passou pra lá::, hein?” – linhas 865-866). É
preciso destacar, entretanto, que, ao invés de pautar-se na retórica do mérito
individual, do esforço solitário que se desdobra sob forma de êxito, a vizinha de
Joana torna relevantes as redes de solidariedade (“ó, você ajuda a minha
fi::lha, he::in?” – linhas 864-865) como caminhos para que sua filha
conquiste a aprovação para o CEFET/RJ. Com base em uma moralidade em torno
das relações de confiança, de amizade e de ajuda mútua, típica das trajetórias das
classes trabalhadoras (Duarte & Gomes, 2008), a vizinha credita o êxito futuro de
sua filha a um empreendimento coletivo, que envolve a interação entre os anseios
da filha com a experiência acumulada de Joana. Como a aluna já está
familiarizada com os meandros relacionados ao concurso e ao cotidiano da
instituição, isso é interpretado pela vizinha como uma experiência favorável no
sentido de apontar que caminhos devem ser percorridos por sua filha.
Se, por um lado, os alunos da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ mudam
seu status no âmbito da família e da localidade, deixando um legado a ser seguido
pelas gerações contemporâneas e/ou mais jovens, também esses alunos têm seus
modelos de referência dentro da própria instituição, o que pode favorecer a uma
alteração significativa nos seus projetos futuros. Na cena 21, a seguir, Kátia e
Joana compõem, conjuntamente, uma narrativa de mudança com base na
244
5.4.6.
Cena 21: “Pode estudar que dá!”
estudo como instrumento que proporcionaria uma condição de vida estável, por
meio da entrada no mercado de trabalho, para dar cabo das expectativas já
previsíveis em relação ao lugar social dos filhos das classes trabalhadoras. Os
poucos movimentos de afastamento da condição social herdada pelas alunas
figuram como mobilidade relativa e bastante sutil, não chegando a constituir uma
ruptura nos enredos previstos para elas. Os anseios de Kátia e Joana são, assim,
circunscritos pelo tripé família/trabalho/localidade (Duarte, 1986); viver “um
pouquinho melhor” que os pais” (linha 965) ou morar no próprio apartamento
(linha 967), ao invés da casa, já figurariam como situações acima do esperado.
ANTES DEPOIS
“Eu o o
tinha assim a intenção... “>terminou a faculdade, quero
“ah, vou fazer faculda::de, fazer pós, quero fazer
acabou a faculdade, vou mestrado, quero doutora::do<,
arranjar meu empre::go e e tudohh... POSSÍ::VEL... até::
pronto”” (linhas 951-953) o último=” (linhas 955—958)
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Os anseios e enredos até então previstos para Kátia e Joana mudam de rumo
quando constroem a influência que o CEFET/RJ proporcionara em suas vidas. Os
estudos universitários já não são o fim, mas o começo de uma jornada que envolve
uma sequência ascendente e cumulativa de estudos: “quero fazer pós, quero
fazer mestrado, quero doutora::do” (linhas 956- 957). Já não basta
estudar para ingressar no mercado de trabalho, mas estudar “tudohh...
250
AVALIAÇÃO RESOLUÇÃO
5.5.
O destino
5.5.1.
Cena 22: “Hoje eu não me vejo fora”
na análise na cena 11). No “ano que vem” (linha 672), Joana já terá concluído
seu ciclo como estudante do CEFET/RJ, possivelmente originando outra
sequência de atividades rotineiras que, por enquanto, não figuram no seu
repertório de projeções (“não consigo imaginar =” – linhas 669-670),
tampouco no de Raquel (“[é estra::nho imaginar” – linha 671). Emerge,
assim, uma performance narrativa/identitária de desorientação justificada pela
incerteza e insegurança do porvir. O emprego de orações interrogativas ressalta
esse sentido de desorientação provocado pela exclusão do CEFET/RJ da rotina
diária da aluna: “não vai ter mais cefet pra mim?” (linha 673); “Eu vou
PRA O::NDE?” (linhas 673-674); “que que eu vou fazerhh?” (linhas 692-693).
É interessante notar o modo como Joana e Kátia atribuem às suas
respectivas mães o papel de testemunhas oculares da desorientação vivida quando
o CEFET/RJ deixa de figurar como centro de referência a partir do qual suas
rotinas vivenciais são tecidas. O emprego da fala relatada, como importante
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“Eu acho que >vai tem um dia que eu vou< acorda::r, vou vestir o
uniforme da esco::la e vou pro ponto do ô::nibus... minha mãe vai
lá me buscar, “minha fi::lha, que que tá acontecendo?” ((risos))”
(linhas 694-698)
As ações imaginadas por Joana e Kátia parecem não fazer o menor sentido.
A perda de referência das alunas, construída com base na retirada do CEFET/RJ
de suas vidas, torna suas hipotéticas ações futuras situações absurdas e sem nexo.
“Ficar em CASA” (linha 692) é interpretado por Joana como algo incomum e
ilógico, pois o significado do seu dia-a-dia está atrelado ao seu agir dentro da
escola. Sem o CEFET/RJ, não há o que Joana fazer (linhas 692-693). Kátia
narrativiza um dia qualquer de seu futuro no qual reproduziria uma sequência de
ações típicas de seu cotidiano atual: acordar (linha 695), vestir seu uniforme (linha
695), tomar o transporte público rumo à escola (linha 696). A surpresa de sua
mãe, dramatizada via fala relatada (“minha fi::lha, que que tá
256
referências tão emblemáticas, ou seja, longe daquilo que considera ser sua
“prime::ira casa” (linha 677), Joana vê-se à deriva, sem destino certo. O futuro
da aluna é coberto por uma bruma de incertezas, uma vez que não consegue
vislumbrar o porvir longe de suas raízes.
Joana (ratificada por Kátia e Raquel) constrói discursivamente o sentido de
insegurança em torno de seu destino longe do CEFET/RJ em virtude de uma
dificuldade em desenraizar-se desse lugar tornado casa, no qual se sente amparada
e amiga de todos. Da linha 684 à 690, a aluna sequencia uma ação complicadora
com verbos no presente do indicativo a fim de caracterizar sua rotina dentro das
dependências da instituição. A narrativa de Joana é tecida com base em um forte
ethos de receptividade e relacionalidade, como se as dependências da UnED de
Nova Iguaçu do CEFET/RJ fosse transformada em uma espécie de quintal de
casa. Não à toa, Joana emprega, por três vezes, o verbo “brincar” (linhas 685, 686,
687), ressaltando a construção do espaço escolar como lócus vivencial de prazer e
aconchego, bem como esfera privilegiada para o estabelecimento de relações
interpessoais. A aluna elabora uma construção sintática paralelística na qual
sequencia seis orações no tempo presente: cada movimento empenhado pela aluna
destina-se a uma brincadeira com os sujeitos sociais que transitam pelo espaço da
escola. Os movimentos encadeados pela aluna procuram reconstruir
discursivamente o caminho que se percorre da entrada da escola até o pátio
257
“aí >passo no pátio<” (linhas 686- “brinco com todo mu::ndo” (linha
687) 687)
“então eu já::... assim, >interajo com todo< mu::ndo”
(linhas 688-689)
“eu não me vejo assim, ofora daquio” (linhas 689-690)
5.5.2.
Cena 23: “Agora eu tô vivendo um novo rito de passagem”
minha lembrança dessa nossa conversa informal (“cê me falou que vai fazer
um concurso na semana que vem, né” – linha 811-812), solicito que Manuela
elabore um autorretrato identitário (“como é que a tua vida tá agora” –
linhas 814-815) com base nessa experiência vivida como aluna do CEFET/RJ
(“em função desses trê::s, quase quatro anos aqui dentro?” – linhas
815-816). A partir de então, Manuela constrói uma sequência narrativa
englobando três movimentos temporais: a avaliação do passado; as ações do
presente; e os anseios para o futuro.
“Muita gente nem acreditava mais em mim. Teve momentos que eu até duvidei, sabe?
Depois que eu peguei o resultado, eu falei: chegou a minha vez.”57
Breno58 – ex-aluno da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ
57
Declaração gerada em janeiro de 2012 em conversa entre mim e o ex-aluno em uma das
redes sociais da Internet. Na ocasião, o aluno comunicou-me a notícia de que havia sido aprovado
para o curso de Admnistração Pública na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), após ter concorrido à vaga pela nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM). Breno havia sido jubilado da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ por ter sido
reprovado na 1ª série do Ensino Médio por dois anos consecutivos.
58
Nome fictício.
263
Primeiramente, investi em uma revisão teórica acerca dos estudos narrativos sob
uma perspectiva interacional, desde os trabalhos fundadores até as revisões
contemporâneas dos modelos pioneiros de se olhar para a organização da
experiência humana via padrões narrativos. Foi dada particular ênfase à
organização estrutural da narrativa (Labov, 1972), à noção de performance
narrativa/identitária e sua relação com a apresentação do self (Goffman, 2007
[1975]; Bauman, 1986; Riessman, 1993, 2008) e à concepção da pesquisa como
um fazer narrativo. Em um segundo momento, focalizei reflexões advindas das
Ciências Sociais, mormente da Antropologia das sociedades complexas.
Conceitos bastante caros à discussão antropológica contemporânea foram
apresentados, dentre os quais se destacam as noções de projeto (Schutz, 1962;
Velho, 1994), ethos (Geertz, 1989) e mobilidade social no âmbito das camadas
médias (Velho, 2002 [1973]; 2008 [1981]) e das classes populares (Duarte, 1986;
Duarte e Gomes, 2008; Lamont, 2000). Destacou-se, também, a notoriedade
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condição original herdada pela família e pela localidade. Por outro lado, a
valoração atribuída à escolarização formal como meio de ascensão social é algo
que se dá no próprio seio familiar. O desafio desses alunos residiria, então, na
conciliação desses ethos: melhorar de vida, sem que isso signifique um
afastamento total da relacionalidade local.
Considero que os alunos participantes da presente pesquisa pertencem a
camadas sociais menos pauperizadas da Baixada Fluminense, cujos membros
poderão, em algum momento, ascender às chamadas camadas médias. Entretanto,
essa aquisição de uma condição social superior à de sua origem é construída como
algo que não se dá sem renúncias e trabalho incansável; daí compreende-se o fato
de situações desastrosas ou fracassadas, ou que envolvam extremo grau de
dificuldade ou cansaço, serem ressignificadas como êxito: é a retórica do “plantar
agora para colher depois”, do sacrifício que “vale a pena” porque realizado em
nome de um bem maior: a possibilidade de aquisição de prestígio e de ascensão
social por meio da educação em uma instituição renomada. Não pretendo,
entretanto, pintar a imagem de uma Baixada Fluminense una, monolítica, onde
todos os seus habitantes respondem por esse ethos de valorização da educação
como meio de ascensão social. Para muitas famílias da região, a subida de nível
na escala social pode ser valorizada por outros caminhos que não o da
escolarização, ou pode nem ser uma questão a ser perseguida. Prefiro pensar em
269
LAMONT, M. The dignity of working men: morality and the boundaries of race,
classe, and immigration. New York: The Russel Sage Foundation, 2000.
LINDE, C. Life stories: the creation of coherence. New York: Oxford University
Press, 1993.
____ Working the past: narrative and institutional memory. New York: Oxford
University Press, 2009.
____ Narrativa e identidade: a mão dupla do tempo. In: MOITA LOPES, L. P.;
BASTOS, L. C. (Orgs.) Identidades: recortes multi e interdisciplinares.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2002.
____ Práticas narrativas como espaço de construção das identidades sociais: uma
abordagem socioconstrucionista. In: TELLES RIBEIRO, B.; COSTA LIMA, C.;
LOPES DANTAS, M. T. (Orgs.) Narrativa, identidade e clínica. Rio de Janeiro:
Edições IPUB/CUCA, 2001.
____ (Org.) Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola
Editoral, 2006.
277
____ Narrative Methods for the Human Sciences. Los Angeles: Sage
Publications, 2008.
SCHUTZ, A. Collected papers: the problem of social reality (Vol. I). The Hague:
Martinus Nijhoff, 1962.
VELHO, G. Utopia urbana. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002 [1973].
ANEXO
Convenções de transcrição