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Talita de Oliveira

Educação e ascensão social: performances narrativas de


alunos da rede pública federal na Baixada Fluminense
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812835/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras da PUC-Rio.

Orientador: Profa. Liliana Cabral Bastos

Rio de Janeiro
Março de 2012
Talita de Oliveira

Educação e ascensão social: performances narrativas de


alunos da rede pública federal na Baixada Fluminense

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção


do título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812835/CA

Examinadora abaixo assinada.

Profa. Liliana Cabral Bastos


Orientador
Departamento de Letras - PUC-Rio

Profa. Maria do Carmo Leite de Oliveira


Departamento de Letras - PUC-Rio

Prof. Luiz Paulo da Moita Lopes


UFRJ

Prof. Pedro de Moraes Garcez


UFRGS

Profa. Edlaine de Campos Gomes


UNIRIO

Profa. Denise Berruezo Portinari


Coordenador(a) Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas -
PUC-Rio

Rio de Janeiro, 30 de março de 2012


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da
autora e do orientador.

Talita de Oliveira
Graduada em Letras Português/Inglês (Bacharelado e
Licenciatura) pela UFRJ em 1999. Mestre pelo Programa
Interdisciplinar em Linguística Aplicada pela UFRJ em
2003. É Professora do Ensino Básico, Técnico e
Tecnológico no Centro Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ) desde 2004. É
Coordenadora dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu do
CEFET/RJ.

Ficha Catalográfica
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Oliveira, Talita de

Educação e ascensão social: performances


narrativas de alunos da rede pública federal na Baixada
Fluminense / Talita de Oliveira ; orientadora: Liliana Cabral
Bastos. – 2012.
279 f. : il. (color.) ; 30 cm

Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica


do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2012.
Inclui bibliografia

1. Letras – Teses. 2. Narrativa. 3. Identidade. 4.


Performance. 5. Ascensão social. 6. Educação. 7. Baixada
Fluminense. I. Bastos, Liliana Cabral. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
Letras. III. Título.

CDD: 800
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Aos meus pais, José Wanderley de Oliveira e Maria das Graças de Oliveira,
principais responsáveis pela minha ascensão social, todo meu amor e minha
gratidão.
Agradecimentos

A Deus, pai supremo cujo nome é santificado, pelo dom da vida e perene
presença no meu caminhar.

A Nossa Senhora Aparecida, minha mãe do Céu, santa negra mãe dos pobres e
oprimidos, pela condução dos meus passos, pelo conforto em momentos de
incertezas e angústias, pelas graças e epifanias, por tudo.
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Aos meus pais, José Wanderley de Oliveira e Maria das Graças de Oliveira, pelo
amor incondicional, pelo companheirismo cotidiano, por toda luta e sacrifício
investidos na minha educação e crescimento humano. A vocês, papai e mamãe,
dedico esta tese e todo meu amor.

Ao meu irmão, Thiago Maciel de Oliveira, meu melhor amigo, companheiro leal
de todas as horas, por ser, simplesmente, o melhor irmão do mundo! À minha
cunhada, Maralúcia Feitosa, pela torcida constante e imenso carinho.

A todos os meus familiares: avós, tios, primos, obrigada pelo incentivo e pelo
carinho de sempre. Em especial, agradeço aos migrantes nordestinos que,
movidos por uma utopia, deram início à mobilidade social de toda família. Maria
Salomé de Oliveira, Sebastião Timóteo de Oliveira (in memoriam), Ana Selita de
Oliveira Medeiros e João Timóteo de Oliveira, obrigada por sonharem com dias
melhores.

À minha querida orientadora, Liliana Cabral Bastos, pela confiança e por todos os
conhecimentos construídos nesses quatro anos de Doutorado. Admiro sua
competência, sua seriedade e sua forma de orientar, sempre oportunizando e
incentivando o pensamento crítico, maduro e independente de seus orientandos.
À minha querida amiga Liana de Andrade Biar, aquela que se tornou a grande
parceria construída durante o curso de Doutorado. Sua inteligência e seu
profundo conhecimento nos estudos linguísticos fizeram de mim sua fã. A
parceria das aulas na PUC-Rio hoje se estende à nossa atuação profissional (a
ponto de nos tornarmos uma espécie de “binômio”). Sou eternamente grata pelas
leituras cuidadosas que você fez dos meus textos iniciais. Essa tese é, também,
sua, pois foi você a primeira pessoa a chamar atenção para temática da ascensão
social em minha pesquisa. Obrigada pelo seu companheirismo e pela sua
amizade! Muito sucesso e felicidade!

Aos professores do Departamento de Letras (PUC-Rio), por todo intercâmbio de


conhecimento propiciado nas aulas, reuniões de grupos de pesquisa e demais
atividades acadêmicas durante o curso.
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Aos funcionários da Secretaria de Letras, pela exemplar organização e


atendimento aos alunos, pela prontidão com que todas as questões foram
resolvidas. Um agradecimento especialíssimo a Francisca Ferreira de Oliveira
(nossa querida Chiquinha) e a Digerlaine Gomes Tenório (nossa também querida
Di), que conseguem aliar competência, sabedoria e simpatia.

Aos professores membros da banca, pela oportunidade singular de interlocução


acerca da pesquisa desenvolvida e por terem, gentilmente, aceitado o convite para
participarem de minha defesa de tese.

Aos meus queridos colegas do G-NIT (Grupo de Pesquisa Narrativa, Interação e


Trabalho), com os quais tive a privilegiada oportunidade de discutir e enriquecer
meu trabalho de pesquisa.

A Ana Tereza Rollemberg, amiga de longa data, desde os tempos de Iniciação


Científica no Projeto Salínguas (UFRJ). Jamais me esquecerei do seu cuidado e
receptividade no meu primeiro dia como aluna de Doutorado da PUC-Rio.
Obrigada pelo carinho.
A Elizabeth Sara Lewis, pela cuidadosa e primorosa revisão do abstract em
inglês do presente trabalho.

A Roberto Carlos da Silva Borges, minha alma gêmea profissional, meu grande
amigo, um dos maiores incentivadores deste momento. Admiro seu empenho em
trazer para nosso contexto de trabalho a produção de conhecimento sobre
questões que falem de nossas marcas e dores sociais. Admiro mais ainda sua
franqueza, sua emoção à flor da pele, seu companheirismo em qualquer situação.
Obrigada por sua amizade, Beto!

Aos docentes da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ, em especial aos meus


queridos amigos Viviane Abreu de Andrade, Marta Máximo, Aline Provedel Dib
e Carlos Henrique dos Santos Martins. Vocês são o melhor exemplo de que laços
verdadeiros de confiança são para sempre.
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Aos funcionários da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ, em especial a Elenice


Pinto, a Jorge Apolinário e ao Luca, por serem o coração daquela escola.

À Direção da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ, os professores Luciano


Raptopoulous e Luane Fragoso, por todo apoio e orientação para o
desenvolvimento da pesquisa.

À Direção Geral do CEFET/RJ, os professores Carlos Henrique Figueiredo e


Maurício Mota, e ao Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação da instituição,
professor Pedro Manuel Callas Pacheco, pela confiança em meu trabalho e pelo
empenho no sentido de oportunizar caminhos para o desenvolvimento de
pesquisas em áreas não comumente associadas à tradição da instituição, como é o
caso da área de Letras e Linguística.

À Coordenadoria de Pesquisa e Estudos Tecnológicos (COPET) do CEFET/RJ,


pelo apoio destinado à execução deste estudo e pela concessão da bolsa de
Iniciação Tecnológica ao aluno Carlos Vinícius Pereira dos Santos.
Aos alunos participantes desta pesquisa. Suas narrativas, seus valores, suas
crenças, seus sorrisos, seus olhares ficarão gravados para sempre na minha
história de vida. Muito obrigada por serem os atores centrais desse belo enredo
cujo ponto é a ascensão social de cada um de nós pela via da educação.

A Carlos Vinícius Pereira dos Santos, meu bolsista de Iniciação Tecnológica,


meu primeiro orientando, um dos alunos mais brilhantes e bem articulados com
quem já pude trabalhar. Aprendi muito com nossas conversas e torço muito pelo
seu sucesso.

Às grandes amigas que a PUC-Rio me apresentou. Priscila Starosky, Carolina


Magalhães, Renata Gaspar e Melissa França, muito obrigada pelo carinho, pela
torcida e pelos belos momentos de celebração à vida.
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Aos amigos que fiz na época em que era aluna da UFRJ e que, até hoje, se
empenham em dar continuidade aos enredos da Linguística Aplicada. Luciana
Lins Rocha, Raquel Oliveira, Cida Ferreira, Lúcia Pinheiro, Flávia Dutra,
Rodrigo Borba, e Vera Loureiro, meus amigos do coração e competentíssimos
linguistas aplicados, muito obrigada pelo companheirismo de sempre.

Aos professores da UFRJ que fundaram muito do que sou. Luiz Paulo da Moita
Lopes, Branca Falabella Fabrício e Marlene Soares dos Santos, meus eternos
mestres em quem me esmero cotidianamente, muito obrigada por me ensinarem
que pesquisa, ação social e ética são indissociáveis.

Aos meus queridos amigos de tantos outros contextos e igualmente importantes


na minha vida. Mirela Lamego, Ettiene Almeida, Luciano Brívio, Anderson
Canuto, Renata Garcia, Ângelo Magina, Bruna Mariano, Michelle Dominguez,
Naira de Paula, Daniele Cardoso e tantos outros amigos, obrigada pela torcida de
sempre.

À Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), pela concessão


de bolsa de isenção ao longo do curso de Doutorado.
Aos meus alunos do Ensino Médio/Técnico do CEFET/RJ – tanto da UnED de
Nova Iguaçu quanto da Unidade Maracanã – e da Pós-Graduação Lato Sensu em
Letramento(s) e Práticas Educacionais, obrigada pelo generoso apoio, pelo
carinho e pelo respeito de sempre.

Aos meus bichinhos de estimação (o cãozinho Fred e os gatinhos Frida, Carlota e


Cartola), companheirinhos leais que afagavam e embeleciam a solidão de minhas
noites monográficas em claro.
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Resumo

Oliveira, Talita de; Bastos, Liliana Cabral. Educação e ascensão social:


performances narrativas de alunos da rede pública federal na Baixada
Fluminense. Rio de Janeiro, 2012. 279p. Tese de Doutorado -
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.

O presente estudo investiga como, por meio de padrões narrativos de se


organizar a experiência social, alunos de uma escola da rede pública federal de
ensino na Baixada Fluminense constroem valores e imagens de si associados a
um ethos que entende a educação formal como caminho para a ascensão social.
A pesquisa foi desenvolvida no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso
Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), mais especificamente na Unidade de Ensino
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Descentralizada (UnED) de Nova Iguaçu. A instituição, símbolo histórico de


tradição na educação profissionalizante, ressignifica-se ao ser inaugurada em
uma região sócio-geográfica de periferia e, ao mesmo tempo, contribui na
alteração do campo de possibilidades dos filhos da localidade, marcada pelas
trajetórias das camadas populares. O percurso analítico da pesquisa procurou
aliar a observação e a descrição sistemática da vida social ao olhar atento para a
materialidade discursiva tecida via modos narrativos. Nesse sentido, o trabalho
buscou, inicialmente, revisitar a pesquisa sobre narrativas orais no campo dos
Estudos da Linguagem de orientação sócio-interacional. Foi dado particular
destaque à noção de performance narrativa/identitária e à forte imbricação entre
narrativas e construção de identidades, considerando-se que, no palco
interacional da vida em sociedade, o indivíduo age de modo a transmitir aos seus
interlocutores uma imagem de si com base em atributos morais socialmente
valorizados. Assim, por meio do uso de recursos linguísticos formais de
performance, o narrador posiciona-se ideologicamente frente aos eventos
narrados e faz ecoar valores moralmente legitimados de seu meio social. Em
seguida, o estudo apresentou contribuições notórias da pesquisa social, em
especial da Antropologia das Sociedades Complexas, focalizando como as
noções de projeto e de mobilidade social proporcionam uma melhor
compreensão do valor atribuído à ascensão social no mundo moderno-
contemporâneo. Foram discutidos os ethos tradicionais que caracterizam as
culturas das camadas médias e das classes populares, com base na literatura
antropológica contemporânea, enfatizando-se o status atribuído à educação como
meio de mobilidade social ascendente e suas repercussões simbólicas para as
classes trabalhadoras. A pesquisa afilia-se à metodologia interpretativista de
pesquisa nas Ciências Sociais, para a qual a etnografia e a observação
participante são consideradas modos significativos de se produzir conhecimento
sobre a vida social. A análise dos dados orais gerados em situação de entrevista
com alunos da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ buscou destacar a
organização narrativa e os dispositivos de avaliação empregados pelos narradores
na construção discursiva dos valores e crenças moralmente reconhecidos como
válidos na instituição e na região sócio-geográfica em que está situada. As
narrativas estudadas sugerem a coexistência de dois ethos particulares: um
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marcado por processos de individualização e auto-afirmação, propiciados pela


educação escolarizada; outro associado a redes de solidariedade e relacionalidade
locais típicas das camadas populares. A pesquisa, enfim, dimensiona a instituição
aqui estudada como microcosmo das transformações vivenciadas pela Baixada
Fluminense e dá visibilidade a uma parcela específica de sua população que
concebe o acesso aos estudos como caminho mais seguro e digno de melhorar de
vida.

Palavras-chave
Narrativa; identidade; performance; ascensão social; educação; Baixada
Fluminense
Abstract

Oliveira, Talita de; Bastos, Liliana Cabral (Advisor). Education and social
mobility: narrative performances of public school students in the
Baixada Fluminense. Rio de Janeiro, 2012. 279p. Doctoral Thesis -
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The present study investigates how students of a public school located in the
Baixada Fluminense, by means of narrative patterns of organizing social
experience, construct values and selves related to an ethos which conceives formal
education as a path to upward social mobility. The research was developed at the
Celso Suckow da Fonseca Federal Center for Technological Education
(CEFET/RJ), more specifically at the Nova Iguaçu Decentralized Unit (UnED).
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This institution, a historical symbol of tradition in vocational education, is


resignified upon being opened in a peripheral socio-geographical region,
contributing, at the same time, to altering the field of possibilities of the local
young generations, marked by working class trajectories. The analytical trajectory
of this research aimed to ally systematic observation and description of social life
with a close look at the discursive materiality sewn together in narrative modes.
Therefore, initially the study revisited the research on oral narratives in the field of
Language Studies of sociointeractional orientation. Particular prominence was
given to the notion of narrative/identity performance as well as to the strong
imbrication between narratives and identity construction. It is considered that, in
the interactional stage of societal life, people act in such a way as to transmit to
their interlocutors an image of themselves based on socially valued moral
attributes. By making use of formal linguistic devices of performance, narrators
ideologically position themselves in relation to narrated events and echo the
legitimate moral values of their social environment. This study, then, presented
some well-known contributions from social research, especially from
Anthropology of Complex Societies, focusing on how the notions of project and
mobility provide a better understanding of the value which is attributed to upward
social mobility in the modern-contemporary world. Based on contemporary
anthropological literature, the traditional ethos of middle and working classes were
discussed and particular emphasis was given to the status attributed to education as
a path to upward social mobility, as well as to the symbolic consequences of such
mobility for the working classes. The study is affiliated with the interpretative
methodology of research in the Social Sciences, in which ethnography and
participant observation are considered significant modes of producing knowledge
about social life. The analysis of oral data generated in interviews with students of
the Nova Iguaçu UnED of the CEFET/RJ attempted to highlight the narrative
organization and the evaluation devices employed by narrators in the discursive
construction of the values and beliefs morally recognized as valid inside the
institution, as well as in the social geographic region in which it is located. The
narratives studied suggest the coexistence of two particular ethos: the first, marked
by processes of individualization and self-affirmation, provided by school
education; the second, associated with networks of local solidarity and
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relationships, typical in working classes. Finally, this research frames this


institution as a microcosmos of the changes lived in the Baixada Fluminense and
gives visibility to a specific portion of its population which conceives education as
the safest and worthiest way of improving their lives.

Keywords
Narrative; identity; performance; social mobility; education; Baixada
Fluminense
Sumário

1Introdução 19

2 Narrativas orais e a construção sócio-discursiva das identidades 29


2.1. A tradição dos estudos narrativos 31
2.1.2. A narrativa laboviana 32
2.1.2. Narrativas, produção de significado e exceção ao cânone 35
2.1.3. Narrativas na fala-em-interação 37
2.2. Revisão criticamente a tradição 40
2.2.1. Small stories e a construção de um senso de self 43
2.2.2. Performances narrativas e atuação dramatúrgica 45
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2.3. Narrativas, identidades coletivas e instituição 52


2.4. A pesquisa como prática narrativa 57

3 Ascensão social e vida em sociedade 61


3.1. A sociedade complexa moderno-contemporânea e a dinâmica da
coexistência 62
3.2. Estilo de vida, prestígio e mobilidade social 68
3.2.1. Cultura(s) das camadas médias 71
3.2.2. Cultura(s) das classes populares 74
3.2.3. Escolarização e trajetórias de ascensão social nas classes
populares 80
3.2.4. A(s) moralidade(s) das classes trabalhadoras: fronteiras entre
“nós” e “eles” 84

4 Contexto e metodologia de pesquisa 89


4.1. O percurso da educação profissional no Brasil 90
4.2. A Baixada Fluminense 98
4.3. O CEFET/RJ (Unidade de Ensino Descentralizada de Nova
Iguaçu) 105
4.4. Investigando a vida social: a descrição etnográfica 116
4.5. Pesquisando o próprio campo de trabalho: a etnografia de si 121
4.6. A geração dos dados 126
4.7. Aliando a observação participante aos Estudos da Linguagem 132

5 Análise de dados 134


5.1. A chegada 136
5.1.1. Cena 1: “Foi uma comprovação pra mim que eu era capaz” 137
5.1.2. Cena 2: “Foi uma emoção grandiosa!” 140
5.1.3. Cena 3: “É um milagre!” 143
5.1.4. Cena 4: “Eu não acreditava que eu ia passar” 154
5.1.5. Cena 5: “Minha mãe sempre foi hipertensa” 162
5.2. A origem 167
5.2.1. Cena 6: “Esquecem um pouco da gente” 168
5.2.2. Cena 7: “Eu não estudava na outra escola” 172
5.2.3. Cena 8: “Meus pais sempre quiseram esse negócio de
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estudar” 176
5.2.4. Cena 9: “Ele quer que a gente se case, trabalhe e estude” 179
5.3. O (per)curso 186
5.3.1. Cena 10: “Eu investi todas as minhas expectativas aqui” 187
5.3.2. Cena 11: “Tem nem tempo de respirar” 192
5.3.3. Cena 12: “Eu não sabia fazer regra de três” 196
5.3.4. Cena 13: “Não aprende quem não quer” 201
5.3.5. Cena 14: “Valeu a pena ficar reprovado” 205
5.3.6. Cena 15: “Acho que tudo tem que ter paixão” 211
5.4. A mudança 220
5.4.1. Cena 16: “Eu levava a vida como um adolescente” 221
5.4.2. Cena 17: “A gente se depara com um mundo novo” 226
5.4.3. Cena 18: “Se eu tivesse ficado fechada naquele colégio de
bairro...” 231
5.4.4. Cena 19: “Ah, você é fera, hein?” 236
5.4.5. Cena 20: “As pessoas falam como se você fosse um modelo” 239
5.4.6. Cena 21: “Pode estudar que dá!” 244
5.5. O destino 252
5.5.1. Cena 22: “Hoje eu não me vejo fora” 252
6.5.2. Cena 23: “Agora eu tô vivendo um novo rito de passagem” 258

6 Considerações finais 262

7 Bibliografia 273

ANEXO: Convenções de transcrição 279


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Lista de figuras

Figura 1 – Imagem de satélite da UnED de Nova Iguaçu do


CEFET/RJ 106
Figura 2 – Visão da entrada principal da UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ 106
Figura 3 – Visão frontal da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ 108
Figura 4 – Visão aérea da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ 108
Figura 5 – Nome da instituição gravado no gramado próximo ao
bloco A 109
Figura 6 – A evolução estudantil 112
Figura 7 – “Quem faz a escola é o aluno” 116
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- Minha pobreza tal é


que não tenho presente melhor:
trago este papel de jornal
para lhe servir de cobertor
cobrindo-se assim de letras
vai um dia ser doutor.

João Cabral de Melo Neto. Morte e vida Severina

Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo


vida primária que respira, respira, respira. Material
poroso, um dia viverei aqui a vida de uma molécula com
seu estrondo possível de átomos. O que escrevo é mais do
que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça
entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca
arte, o de revelar-lhe a vida.
Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.

Clarice Lispector, A Hora da Estrela


1
Introdução

“Estude, minha filha, pois o estudo é o bem mais precioso que alguém pode ter. A pessoa
pode perder a casa, o dinheiro, tudo... mas o estudo ninguém vai tirar de você.”
Maria Salomé de Oliveira – minha avó

A epígrafe acima figura como um enquadre (Goffman, (2002, [1979])


bastante personalista para a pesquisa desenvolvida por mim ao longo do curso de
Doutorado em Estudos da Linguagem na PUC-Rio, sob orientação da professora
Liliana Cabral Bastos. Ao mesmo tempo, trata-se de uma singela homenagem a
Maria Salomé de Oliveira, uma senhora de 92 anos que, com suas narrativas e
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ensinamentos, continua deixando um legado de valores fundacionais na minha


trajetória de vida. Sempre ouvi suas histórias sobre o Rio Grande do Norte, sua
terra natal, com muito apreço, o que me conferiu um forte senso de identidade
familiar atrelada às suas raízes regionais. Seus aconselhamentos serviram de trilha
para os passos adiante e, ainda hoje, são sinônimos de alento e esperança face aos
dramas da vida cotidiana. A epígrafe que inicia este trabalho corresponde ao mais
emblemático dos ensinamentos de Maria Salomé de Oliveira (ou, simplesmente,
minha avó). Nordestina e detentora de escassos recursos materiais, migra com a
família na década de 1960 para o Rio de Janeiro, onde estabelece residência no
município de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Analfabeta, sempre
reconheceu na educação formal uma maneira de “melhorar de vida”. Com
frequência relatava ser sua maior tristeza não saber ler e escrever, e isso sempre
servia de argumento para a defesa desse ethos (Geertz, 1989) particular. Era como
se dissesse: estude, e seja feliz. Ou: estude, e eu serei feliz por causa da tua
felicidade. O estudo me era apresentado como um “bem precioso” que propiciaria
uma mudança significativa de vida. Tendo minha avó (e outros membros de
minha família) já passado por tanta dificuldade e escassez material, a redenção das
gerações mais jovens residiria na aquisição de bens simbólicos: o estudo, nesse
caso, figura como posse real e duradoura que possibilitará o alcance de melhores
20

condições de vida. Em outras palavras, o estudo é apresentado como caminho para


a ascensão social, para a aquisição de um novo e melhor status.
As palavras de minha avó, de alguma maneira, constituem os passos iniciais
do percurso investigativo que será aqui apresentado. Considero que esse ethos
vigente em sua fala perpassa as trajetórias de muitos outros atores sociais que
veem a educação escolarizada como possibilidade singular de mudança de vida.
Histórias de tantos outros “nordestinos analfabetos” (expressão tomada aqui tanto
literal quanto figurativamente) se entrecruzam no universo do que as Ciências
Sociais convencionaram chamar de classes populares (Duarte, 1986) e dialogam
com outros valores, como aqueles que tipificam as trajetórias mais
individualizantes das camadas médias (Velho, 2008 [1975], 2008 [1981], 1994).
Gostaria, assim, de circunscrever minha pesquisa como um entrelaçamento de
enredos. A Baixada Fluminense1 constituirá o cenário principal para a tessitura
dessa trama em que dialogam e co-habitam valores oriundos de universos sociais
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díspares (pelo menos a um primeiro olhar). A escola da rede federal de ensino


onde atuo como professora figurará como palco para a atuação dramatúrgica de
sujeitos sociais que buscam ascender socialmente por meio da educação pública
de qualidade. Definidos o cenário, o palco e os atores, considero-me um pouco
diretora dessa trama que pretende dar visibilidade a valores e crenças de um grupo
social específico que, assim como os membros de minha família, vislumbra
ascender socialmente com dignidade e pelo estudo. Gostaria de me apropriar das
palavras de Duarte & Gomes (2008), por acreditar que elas, de algum modo,
referendam meus propósitos de pesquisa e sintetizam o perfil dos atores sociais
que dela participam.

“...este trabalho contribui para a visibilização de núcleos familiares e formas de


reprodução que são majoritariamente distantes daquela imagem [da marginalidade
e da violência]. Para a maioria dos personagens aqui aportados, apresentar certa
“dignidade” moral, apesar das duras dificuldades enfrentadas, parece ser um ponto
de honra suadamente defendido” (Duarte & Gomes, 2008, p.15).

A metáfora do caminho, da passagem, da travessia, do trânsito ser-me-á


bastante interessante para a composição de um cenário que envolve idas e vindas,

1
Ao longo do texto, a expressão “Baixada” também será utilizada como forma reduzida de
“Baixada Fluminense”, região sócio-geográfica a ser descrita no item 4.2.
21

fluxos e contra-fluxos no (per)curso da vida em sociedade, além de impactos e


transformações identitárias ocasionadas pela situação de deslocamento (Louro,
2010). Em momentos estratégicos do texto, essa metáfora emergirá para procurar
dar conta desse entrelaçamento de enredos ao qual fiz menção no parágrafo
anterior. Nos lugares de passagem que são a escola e a Baixada, entrecruzam-se
narrativas que fazem emergir atributos socialmente valorizados por esse grupo
social particular. No lugar de passagem que é a própria pesquisa, ocorre o
encontro de teorias e métodos de tradições investigativas diferentes, como os
Estudos Narrativos (Labov, 1972; Bruner, 1997; Riessman, 1993; Bastos, 2005;
Linde, 1993) e a Antropologia das sociedades complexas (Velho, 2008 [1981],
1994, 2000; Duarte, 1986). Soma-se a isso o fato de a minha própria história de
vida interseccionar-se com os demais enredos que se colocam nesse trajeto.
O percurso dessa trama investigativa inicia-se em dezembro de 2007,
quando submeti à avaliação o meu projeto de entrada no Doutorado. Na ocasião,
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estava eu motivada por outras questões que, em princípio, me pareciam relevantes


e dignas de uma investigação sistemática. O interesse, naquela época, era estudar
as narrativas de alunos, professores e servidores do corpo técnico-administrativo
da Unidade de Ensino Descentralizada (UnED) de Nova Iguaçu do CEFET/RJ
(instituição que descrevo na seção 4.3 deste estudo) e verificar em que medida
essas histórias constroem um senso de identidade para a instituição. A motivação
advinha de tensões vivenciadas por essa unidade escolar naquele ano de 2007,
quando culminou um preponderante norte reivindicatório no sentido de se
fortalecer um pensamento comum e consolidar uma “identidade própria” dessa
unidade de ensino. Havia certo anseio de seus atores sociais em fazer valer um
projeto institucional singular que se opusesse, claramente, aos mecanismos
totalizadores advindos da unidade sede do sistema CEFET/RJ (descrita nas seções
4.1 e 4.3). Tudo isso, na ocasião, parecia a mim bastante significativo. Recordo-
me que, durante a entrevista do processo de seleção para o curso de Doutorado,
fui indagada pela banca avaliadora quanto à abrangência do meu estudo e em que
sentido seria relevante investigar um contexto tão particularizado. Antes mesmo
dessa situação de entrevista, durante o período de contato e primeiras
interlocuções com a professora Liliana Cabral Bastos, a mesma sugeriu que eu
procurasse ampliar as dimensões do projeto, focalizando a relevância da discussão
proposta para o quadro social da Baixada Fluminense. Em outras palavras, desde
22

o início desse percurso, fui questionada a respeito da abrangência da minha


proposta investigativa e em que sentido poderia eu “tirar grandes conclusões a
partir de fatos pequenos” (Geertz, 1989, p.19-20). Como todo princípio de
percurso, eu não poderia prever que rotas alternativas seriam dispostas à minha
frente. O olhar retrospectivo que lanço, hoje, sobre esses episódios localizados
temporalmente em 2007 me faz notar que, desde o início da caminhada, já havia
pessoas me alertando para os rumos que minha pesquisa tomaria. Entretanto,
talvez até pela relativa inexperiência como pesquisadora, não conseguia enxergá-
los. Hoje, percebo que, durante o percurso de pesquisa, “as ideias crescem (...)
como resultado de nossa imersão nos dados e do processo total de viver” (Whyte,
2005 [1943], p.284).
Ao longo dos quatro anos do curso de Doutorado em Estudos da Linguagem
da PUC-Rio, tive contato com abordagens teóricas e metodológicas ricas em
reflexão sobre a dinâmica da vida em sociedade, o papel da linguagem nas
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interações sociais e a centralidade das narrativas na compreensão do mundo em


que vivemos e das nossas marcas identitárias. Impulsionada pelas motivações
iniciais do meu projeto de pesquisa e pelas discussões travadas nas disciplinas
cursadas semestralmente, busquei uma interlocução mais aprofundada com as
Ciências Sociais e matriculei-me, em 2009, em um curso com o professor Gilberto
Velho (referência importante no presente estudo) no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, no Museu Nacional (UFRJ). Não se pode desconsiderar,
nesse processo, a minha formação anterior, orientada pela Linguística Aplicada e
sua proposta indisciplinar (Moita Lopes, 2006) de se criar inteligibilidade sobre o
uso da linguagem na vida em sociedade. Decisivo nesse percurso, a meu ver, foi o
momento quando comecei a transcrever e a analisar os dados. O mergulho nos
dados fez emergir determinados conceitos e categorias que redimensionaram as
motivações e propósitos iniciais. Isso, entretanto, não se deu ao acaso ou por um
esforço exclusivo meu. Considero que todo processo investigativo é resultado das
interlocuções travadas ao longo desse percurso e, nesse sentido, atribuo um papel
significativo às conversas com minha orientadora, a professora Liliana Cabral
Bastos, e meus colegas do G-NIT (Grupo de pesquisa Narrativa, Interação e
Trabalho), primeiras pessoas a quem submeti meus dados à apreciação crítica e
que contribuíram sobremaneira para o novo contorno dado ao meu estudo.
Destaco, aqui, a privilegiada interlocução com Liana de Andrade Biar, primeira
23

pessoa a me chamar atenção para a temática da ascensão social nos meus dados e
que, continuamente, enriqueceu o trabalho investigativo com seus comentários
sempre pertinentes e reveladores. Todos os fatores aqui apresentados foram
determinantes para a estruturação de minha pesquisa, sobre a qual discorro agora.
Historicamente, o CEFET/RJ (Centro Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca) tornou-se símbolo de tradição na formação
educacional tecnológica (conforme será apresentado na seção 4.1) e incorporou
valores associados à noção de prestígio social. O reconhecimento público de seu
ensino de qualidade, especialmente no que tange à educação profissionalizante,
faz a escola ser procurada por muitos jovens que vislumbram uma possibilidade
de conseguir bons empregos ou ingressar no ensino superior por meio de uma boa
formação de nível médio-técnico. A unidade do CEFET/RJ aqui estudada
localiza-se, entretanto, em Nova Iguaçu, na região sócio-geográfica denominada
Baixada Fluminense. O fato de esta unidade escolar estar situada em uma região
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periférica em relação à capital do Estado do Rio de Janeiro, a meu ver, assume


contornos bastante significativos, uma vez que vozes locais são agregadas e outros
valores são produzidos. O potencial de transformação social já possibilitado pela
educação (Moita Lopes, 2002) adquire, na UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ,
uma amplitude maior, visto que interage com um ethos (Geertz, 1989) de
valorização da educação como meio de ascensão social característico de alguns
segmentos das classes populares (Duarte, 1986; Duarte & Gomes, 2008). Assim
como os valores construídos nas narrativas de minha avó no seio familiar, acredito
que, também, os alunos dessa unidade escolar e suas famílias participam desse
mesmo circuito de valores que enxergam na educação uma possibilidade de
“mudar de vida” (e para melhor).
A temática da mobilidade social (seja ela ascendente ou descendente) figura,
de maneira estelar, nas Ciências Sociais, em especial nas áreas que se debruçam
sobre a relação entre cidade, modernização e indivíduo. Com base em métodos
qualitativos de pesquisa e na descrição densa e microscópica (Geertz, 1989) de
ambientes, sujeitos sociais, rotinas interacionais e sistemas simbólicos, boa parte
da pesquisa social tem procurado estudar em que medida a urbanização e os
projetos modernizadores das cidades contribuíram na produção de visões de
mundo, estilos de vida, hierarquias e mecanismos de diferenciação social. As
contribuições das Ciências Sociais, sejam elas teóricas ou metodológicas, são
24

centrais no meu estudo. Interessa-me investigar em que medida a UnED de Nova


Iguaçu do CEFET/RJ pode ser concebida como um microcosmo de fenômenos
plurais e ambíguos que vêm acontecendo na região da Baixada Fluminense, onde
ideais referentes à noção de modernidade projetam e moldam um novo valor de
indivíduo, este porém circunscrito em um contexto social marcado pelas
trajetórias de classes populares. Creio, porém, ser necessário um olhar mais atento
para o modo como esses valores são construídos pelo uso da linguagem. É nesse
sentido que reconheço na análise narrativa (Riessman, 1993, 2008) um percurso
particularmente interessante para se atingir a perspectiva êmica do nativo (Duarte
& Gomes, 2008) tão cara aos estudos antropológicos. A narrativa é, aqui,
entendida como um “processo instaurador de realidades sociais” (Fabrício, 2006,
p.192), como produções culturais que muito dizem a respeito de nós mesmos.
Como aponta Sarup (1996, p.15), “se você perguntar a alguém a respeito de sua
própria identidade, uma história logo surgirá. Nossa identidade não está separada
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daquilo que já aconteceu”. É, portanto, por meio da análise de padrões narrativos


de se organizar a experiência social que o pesquisador terá acesso à construção
dos valores, dos estilos de vida, dos processos de diferenciação acionados pelo
indivíduo e pelo universo social em que está inserido.
O percurso analítico aqui empreendido procurará aliar a descrição densa (via
observação participante) da dimensão social ao estudo da apresentação do self
(Goffman, 2007 [1975]) via padrões narrativos. Nesse sentido é que especial
destaque será dado à organização da narrativa e aos dispositivos avaliativos (ou
metanarrativos) empregados pelos narradores na construção desses valores e
imagens de si. Três questões centrais norteiam o presente estudo:

a) Que valores e imagens de si emergem nas performances narrativas dos


alunos da UnED de Nova Iguaçu?
b) Como a organização da narrativa (em especial os dispositivos avaliativos –
ou metanarrativos) contribui para a construção desses valores e imagens de
si?
c) Em que medida esses valores vinculam-se a um ethos de ascensão social
via escolarização?
25

No capítulo 2, procurei situar e historicizar a pesquisa sobre narrativas orais


dentro do vasto campo dos Estudos da Linguagem de orientação sócio-
interacional. Serão revisadas obras fundadoras no âmbito da Sociolinguística
Interacional e da Análise da Conversa (Sacks, 1984) e será apresentada uma
teorização crítica mais contemporânea (Bamberg & Georgakopoulou, 2008;
Bastos, 2008; Mishler, 2002) que procura deslocar o foco para o significado das
histórias que contamos no mundo social, em vez de centrar-se nas propriedades
mais estruturais das narrativas. Serão discutidas, também, noções importantes
relativas à performance narrativa/identitária (Bauman, 1986; Langelier, 2001), ao
gerenciamento de impressões por parte do narrador (Goffman, 2007 [1975]) e à
forte imbricação entre narrativa, práticas sociais e construção de identidades
(Moita Lopes, 2001; Fabrício & Bastos, 2009). O conceito de performance
narrativa/identitária é particularmente relevante no meu estudo, uma vez que
assumo o ponto de vista de que, no palco interacional da vida em sociedade, o
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indivíduo age de modo a transmitir aos seus interlocutores uma imagem de si com
base em atributos morais socialmente valorizados. Assim, é por meio do uso de
recursos linguísticos formais de performance que o narrador posiciona-se
ideologicamente frente aos eventos narrados, abre espaço para sua construção
identitária e faz ecoar valores moralmente legitimados de seu meio social. O
capítulo ainda destacará os estudos de Linde (2009) e Dyer & Keller-Cohen
(2000) sobre narrativas contadas em instituições e sua relação com a tessitura de
identidades coletivas. Por fim, situo o próprio ato da pesquisa como uma prática
narrativa (Riessman, 1993; Mishler, 2002).
O capítulo 3 apresenta as principais contribuições advindas da Antropologia
das sociedades complexas (Velho, 2008 [1981], 1994, 2000; Duarte, 1986) para o
desenvolvimento do meu estudo. Questões concernentes às sociedades complexas
moderno-contemporâneas (Simmel, 2005 [1903]; Velho, 2008 [1981]) serão
contempladas, mormente no que tange à interação entre o indivíduo e a sociedade,
bem como às noções de continuidade e ruptura. A vida na cidade, com suas
tensões, contradições e marcas de fragmentação e heterogeneidade, promove uma
multiplicidade de experiências e hábitos. Assim, assume notoriedade o papel do
indivíduo frente a uma sociedade marcada pela coexistência de estilos de vida e
visões de mundo. Nesse sentido, as noções de projeto e de mobilidade social
merecerão especial atenção, pois em muito contribuem para uma melhor
26

compreensão acerca do valor do conceito de ascensão social no nosso mundo. Em


seguida, discutirei os ethos tradicionais que caracterizam as culturas das camadas
médias e das classes populares, à luz d.a literatura antropológica contemporânea
(Velho, 2002 [1973], 2008 [1981]; Duarte, 1986; Duarte & Gomes, 2008;
Lamont, 2000). Por fim, focalizo o status atribuído à educação como meio de
mobilidade social ascendente, buscando um diálogo com a obra de Gilberto
Freyre (1936) e discutindo as repercussões dessa ascensão social quando ocorre
no seio das classes trabalhadoras.
Já no capítulo 4, descrevo o contexto em que se deu a pesquisa e o aparato
metodológico empregado para a confecção da mesma. O contexto é apresentado
em três dimensões: primeiramente, situo o percurso da educação profissional no
Brasil e sua relação com seu processo de modernização/industrialização; em
seguida, caracterizo a região sócio-geográfica da Baixada Fluminense, sua história
e sua gente, dando destaque às especificidades do município de Nova Iguaçu; por
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fim, apresento a UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ, personagem principal


desse enredo, em seu aspecto físico, funcional e humano. A caracterização do
contexto de pesquisa (em suas três dimensões) orienta-se pelo que Geertz (1989)
intitula descrição densa e microscópica, considerando-se a importância do olhar
atento do pesquisador para a interpretação dos dados gerados e a conversão dos
mesmos em resultados de pesquisa. Afilio-me à metodologia interpretativista de
pesquisa nas Ciências Sociais, para a qual a etnografia e a observação participante
são consideradas modos significativos de se produzir conhecimento sobre a vida
social. Situo, também, o tipo de observação participante empreendida por mim no
presente estudo. No trânsito entre a familiaridade e o estranhamento, percebo-me
em um permanente estado etnográfico (Duarte & Gomes, 2008), uma vez que sou
nativa do contexto em investigação e essa condição antecede, inclusive, a minha
entrada oficial no campo de pesquisa.
A discussão dos dados orais gerados em situação de entrevista com alunos
da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ é apresentada no capítulo 5 do presente
texto. Foram selecionados vinte e três fragmentos de entrevistas, os quais foram
denominados por mim como cenas com o intuito de tornar relevante a
compreensão de que as narrativas são performances, sendo analisadas, portanto,
para além de seu conteúdo referencial (Bauman, 1986). Apropriei-me da metáfora
da passagem para agrupar essas vinte e três cenas em cinco eixos temáticos
27

relacionados à vivência desses alunos com relação à UnED de Nova Iguaçu do


CEFET/RJ, a saber: a) a chegada; b) a origem; c) o (per)curso; d) a mudança; e) o
destino. Nas chamadas narrativas de chegada, os alunos remontam os passos que
antecederam sua entrada na instituição e reconstroem as situações vivenciadas
durante o processo seletivo discente. As narrativas de origem focalizam valores
fundacionais construídos discursivamente pelos alunos, tais como a família, o
trabalho e a religião, além da própria imagem da região sócio-geográfica da
Baixada Fluminense. Já as narrativas de (per)curso trazem à tona a performance
das dificuldades vividas pelos alunos da instituição, buscando discutir em que
sentido as noções de esforço, sacrifício, exaustão e superação de obstáculos estão
intimamente ligadas ao ethos de valorização da educação como meio de ascensão
social. As narrativas de mudança discutem o notório valor atribuído pelos alunos
entrevistados à dimensão da mudança em suas vidas a partir do seu ingresso no
CEFET/RJ e como tal dimensão costuma ser caracterizada como algo positivo,
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frequentemente associado às noções de responsabilidade, amadurecimento e


aprendizagem. As narrativas de destino encerram a seção de análise de dados,
buscando apresentar o modo como os alunos constroem discursivamente seus
projetos e percursos futuros não mais na condição de alunos da instituição.
Considero que as narrativas aqui analisadas contribuem para a compreensão
dos valores e crenças moralmente reconhecidos como válidos nessa instituição em
particular, bem como na região geográfica em que está situada (no caso, a Baixada
Fluminense). Reconheço, nessas narrativas, a coexistência de dois ethos
particulares: a) de um lado, um ethos marcado por processos de individualização e
auto-afirmação, propiciados, em especial, pelo investimento na educação
escolarizada; b) de outro, um ethos de solidariedade local, tipicamente associado
às classes populares. Os dados da minha pesquisa parecem dimensionar a UnED
de Nova Iguaçu do CEFET/RJ como uma espécie de microcosmo dos anseios dos
sujeitos sociais da Baixada Fluminsense, bem como das ambiguidades e
transformações vivenciadas pela região em tempos mais recentes.
No item 6, teço as considerações finais, procurando juntar os fios dessa
trama investigativa e traçar os próximos passos dessa jornada, à luz da reflexão
aqui investida. Juntamente com os comentários críticos a respeito do estudo
desenvolvido, apresentarei os caminhos que ainda podem ser percorridos, em
termos de pesquisas futuras, no sentido de preencher os poros desse tecido
28

investigativo. Ressalto, aliás, que o presente trabalho não almeja alcançar um


sentido de completude, de fim definitivo, e considero que a linha de chegada desse
percurso investigativo talvez não exista, tendo em vista que toda pesquisa sobre a
vida social está sujeita a ressignificações, releituras, tensões e embates.
Creio que ainda haja espaço para uma última palavra nesse capítulo
introdutório. Iniciei o presente estudo estabelecendo um diálogo com as crenças
moralmente valorizadas no âmbito da minha família, tomando como principal
referência a figura de minha avó. Como já dito, suas narrativas e ensinamentos
fundaram, de forma emblemática, muito do que sou (ou de como me apresento,
em termos de performance). Sou filha de migrantes nordestinos e nortistas que,
buscando melhores condições de vida no utópico Rio de Janeiro, estabelecem
residência na Baixada Fluminense. Nasci (e, há até bem pouco tempo, ainda
residia) em São João de Meriti, município limítrofe ao Rio de Janeiro, tão perto
em termos geográficos, porém imensamente distante em termos simbólicos. Desde
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a mais tenra idade, ouvia de meus pais, avós e tios que era importante estudar,
pois só assim conseguiria “ser alguém na vida”. Via o sacrifício dos meus pais que
economizavam nas compras do mês, mas jamais deixaram faltar livros e material
didático, nem atrasar o pagamento das mensalidades escolares. Hoje, sou
professora da rede federal de ensino (considerado por muitos uma espécie de
“auge” na carreira do magistério) e encontro-me em vias de concluir meu curso de
doutorado (talvez um “auge” na vida acadêmica). Minha história de vida é, assim,
uma trajetória de ascensão social via educação. Talvez minha avó, nordestina e
analfabeta, não imaginasse, nem em seus mais belos sonhos, que o estudo (esse
bem tão precioso do qual ela me falava) pudesse me levar tão longe, sem com isso
apartar-me de minha origem social. Assim, a pesquisa que, aqui, se apresenta é,
também, um pouco da minha história de vida. Pode entrar, que a casa é sua.
2
Narrativas orais e a construção sócio-discursiva das
identidades

“Que tipo de história a gente quer para a unidade?”2


Caio3 – professor do Ensino Médio da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ

Vivemos em um mundo social povoado de histórias que nos fazem


rememorar eventos passados, sonhar com um futuro possível, tecer relações
sociais com outras pessoas e criar um sentido de coerência para nossas vidas.
Desde a mais tenra idade, investimos em esforços narrativos, mesmo antes do
domínio da expressão linguística (Bruner, 1997), com o intuito de construir redes
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de sociabilidade e de extrair significado do cotidiano. Passamos pelo curso da vida


utilizando-nos de histórias com fins diversos: para rir, chorar, sofrer, reclamar,
persuadir, alegar pertencimento a um grupo, definir fronteiras identitárias,
legitimar ou transformar certos modos de ser e viver. Somos movidos a fazer
sentido de nós mesmos e do mundo que nos cerca através de modos narrativizados
de se interpretar a vida social. Considerada uma forma de organização básica da
experiência e da memória humanas (Bastos, 2005; Bruner, 1997; Moita Lopes,
2001), a narrativa corresponde a um notório instrumento de produção do
significado. Seja nos solilóquios na hora de dormir ou na prática de dar
testemunhos típica do nosso sistema legal (Bruner, 1997), é por meio de narrativas
que construímos a vida em cultura. Se antes a racionalidade era tida como o cerne
da condição humana, agora a essência da humanidade, conforme Johnstone (2001,
p.635), “passa a ser, crescentemente, descrita como a tendência a contar histórias,
a fazer sentido do mundo por meio da narrativa.”
Boa parte da pesquisa contemporânea nas Humanidades, nas Ciências
Sociais e nos Estudos da Linguagem tem chamado atenção para a centralidade das

2
Frase constante em diário de pesquisa do dia 10 de junho de 2009, referindo-se à crítica
feita pelo professor, em reunião de colegiado, a decisões tomadas pela direção da escola.
3
Nome fictício.
30

narrativas na constituição dos sujeitos e da realidade social. Segundo Fabrício e


Bastos (2009, p.41-42),

“...as práticas narrativas têm sido estudadas, por pesquisadores de diferentes


disciplinas, como lócus privilegiado de compreensão da relação entre discurso,
identidade e sociedade, pois as formas narrativas de (re)construção da experiência
organizam nossas ações, nossa percepção de mundo e nossas ficções identitárias.”

A partir de uma perspectiva crescentemente interdisciplinar (Johnstone,


2001), advoga-se, cada vez mais, que, para se compreender o mundo social, é
preciso ouvir e estudar as histórias das pessoas que vivem nesse mundo. A
chamada virada narrativa (Riessman, 1993; Bruner, 1997) desestabiliza os pilares
da concepção ocidental de ser humano, dotado de razão universal, e coloca em
cena um sujeito narrador que opera na cultura e cria identidades sociais por meio
das narrativas que conta. Uma forte tradição positivista de investigação passa a ser
rejeitada e mesmo aquelas áreas que já se utilizavam das narrativas como fontes
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de suas pesquisas (como as Ciências Sociais e a Antropologia) revisitam seus


métodos e ressignificam seus achados. Passa-se a compreender que o estudo das
narrativas pode revelar muito sobre o narrador (Dyer & Keller-Cohen, 2000), bem
como sobre a sociedade onde elas ocorrem (Fabrício & Bastos, 2009).
Nesse momento, serão revisadas algumas obras que constituem as principais
bases para os estudos narrativos no âmbito da Sociolinguística Interacional e da
Análise da Conversa, desde os textos inaugurais desses estudos (Labov, 1972;
Sacks, 1984) às críticas mais recentes desse pensamento fundador (Bamberg &
Georgakopoulou, 2008; Bastos, 2004; Mishler, 2002). Serão discutidas, também,
noções importantes relativas à performance narrativa e identitária (Bauman, 1986;
Langelier, 2001; Riessman, 2008), ao gerenciamento de impressões por parte do
narrador (Goffman, 2007, [1975]) e à forte imbricação entre narrativa, práticas
sociais e construção de identidades (Moita Lopes, 2001; Fabrício & Bastos, 2009).
Soma-se a isso o particular destaque que será dado ao estudo de Linde (2009)
sobre narrativas contadas em instituições – tendo em vista os interesses da
presente pesquisa. Por fim, situo o próprio ato da pesquisa como uma prática
narrativa (Riessman, 1993; Mishler, 2002), sujeita a releituras, a idas e vindas e a
constantes mudanças.
31

2.1.
A tradição dos estudos narrativos

Não há uma definição precisa para o termo “narrativa4”. Diferentes modelos


teóricos e taxonomias, em diferentes áreas do conhecimento humano, têm
procurado compreender o que é uma narrativa e que elementos estruturais formais
a caracterizam como tal. Reflexões embrionárias a respeito do assunto
possivelmente datam da Antiguidade grega, quando Aristóteles já defendia
começo, meio e fim como elementos fundamentais em uma narrativa (Riessman,
1993, 2008). Desde então, é notório e crescente o interesse em estudar não apenas
os constituintes estruturais das histórias, mas, também, o que significa contá-las.
Segundo Riessman (2008, p.11), os chamados analistas da narrativa têm
procurado questionar “a intenção e a linguagem – como e por quê incidentes são
narrados, não apenas o conteúdo referenciado pela linguagem”. Pesquisas
contemporâneas voltaram seus interesses para o modo como nos utilizamos de
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habilidades narrativas, sem as quais “nos tornaríamos inadequados para a vida da


cultura” (Bruner, 1997, p.85), para (re)construir eventos, atribuir significado a eles
e fazer emergir nossas identidades sociais (Moita Lopes, 2001). Nas palavras de
Bastos (2004, p.119),

“Na última década, os estudos discursivos da narrativa progressivamente


abandonaram interesses básicos iniciais, como a identificação de componentes
estruturais, para focalizar outras dimensões da construção narrativa, tais como a
indagação de por que as narrativas estão tão presentes em nossas vidas cotidianas,
ou o que significa contá-las, ou como se relacionam com a experiência.”

Alguns trabalhos sobre narrativas merecem destaque não apenas por seu
pioneirismo e pela influência de seu alcance em vários campos de investigação,
mas por privilegiarem a relação entre as formas linguísticas de organização das
histórias e aspectos relativos ao mundo social em que são contadas. A seguir,
serão apresentadas as principais contribuições da Sociolinguística, da Psicologia

4
Tradições investigativas distintas nos Estudos da Linguagem costumam apresentar
definições diferentes para os termos “narrativa”, “história” e “estória”. No presente texto, será
dada ênfase às devidas diferenciações sempre que se fizer necessário, porém procurarei utilizar tais
termos como conceitos intercambiáveis, alinhando-me à proposta de Riessman (2008).
32

Social e da Análise da Conversa, personificadas nos estudos de Labov (1972),


Bruner (1997) e Sacks (1984), respectivamente.

2.1.1.
A narrativa laboviana

Os estudos de William Labov (1972), considerado um dos fundadores da


Sociolinguística, abriram terreno para o desenvolvimento de pesquisas sobre
narrativa não apenas nos Estudos da Linguagem, mas também em outros campos
do saber (Bastos, 2004). Com base em dados gerados em gravações de conversas
em situação de entrevista, as pesquisas de Labov acarretaram inúmeras
contribuições para a pesquisa sobre narrativas de experiência pessoal, dentre as
quais é possível destacar: a) o reconhecimento de correlações entre a produção
linguística e as marcas sociais dos narradores (Johnstone, 2001) e; b) a descrição
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de uma sintaxe narrativa nos relatos de experiência dos informantes.


“Nós definimos narrativa como um método de recapitulação da experiência
passada em que se liga uma sequência verbal de orações à sequência de eventos
que (infere-se) de fato ocorreram” (Labov, 1972, p.359-360). É a partir dessa
definição que Labov desenvolve seu modelo teórico e sinaliza que “a fala
conectada é ordenável e descritível em termos de sua estrutura e função”
(Johnstone, 2001, p.638). Dentro dessa perspectiva, a noção de sequencialidade
temporal é de suma relevância. Para Labov, se duas orações que recapitulam uma
experiência passada (com verbos de ação necessariamente no pretérito) ligam-se
uma a outra em ordem temporal, ocorrerá o que o autor denomina narrativa
mínima. A cronologia dos eventos ocorridos é, portanto, fundamental, o que
implica dizer que as orações narrativas não podem ser removidas “sem que se
altere a ordem em que os eventos devem ter ocorrido” (Johnstone, 2001, p.637).
Nessa concepção de narrativa, não se incluem, por exemplo, relatos de hábitos no
passado ou histórias sobre situações hipotéticas (Riessman, 1993). Outro elemento
importante no modelo laboviano de narrativa é a noção de reportabilidade.
Segundo o autor, toda narrativa deve apresentar um ponto e referir-se a algo
extraordinário, digno de ser contado. “O ponto da narrativa é sua razão de ser, é o
motivo pelo qual ela é contada, o que está contido em sua mensagem central”
33

(Bastos, 2005, p.75; grifo da autora). Para Labov, quando os eventos se tornam
corriqueiros demais, a história não adquire reportabilidade, ou seja, não é
contável.
Seis propriedades formais caracterizam a narrativa laboviana. São elas:

a) Abstract (ou sumário): corresponde a um breve resumo da história,


constituído de uma ou duas orações no início da narração. Por meio do
sumário, o narrador encapsula o ponto da história (Labov, 1972) e
reivindica o direito de narrá-la (Johnstone, 2001);
b) Orientação: trata-se da identificação de elementos como o lugar, o
tempo, os personagens, as atividades e a situação. A compreensão do
significado da narrativa depende do conhecimento dos itens que
constituem a orientação “e os contadores de história devem presumir esse
conhecimento por parte do interlocutor, ou então tornar explícitos os
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detalhes relevantes” (Clark & Mishler, 2001, p.23);


c) Ação complicadora: corresponde à ação propriamente dita. Constituída
“de orações que recapitulam a sequência de eventos levando ao clímax, o
ponto máximo de suspense” (Johnstone, 2001, p.638), a ação
complicadora é considerada, por Labov, o único elemento essencial para
se reconhecer uma narrativa;
d) Avaliação: Labov identifica dois tipos característicos de avaliação: a
externa e a encaixada. Na avaliação externa, o narrador suspende o fluxo
narrativo para dizer diretamente para seu ouvinte o quão desagradável,
angustiante, perigosa, satisfatória etc. foi a experiência. Já na avaliação
encaixada, é frequente o uso de recursos linguísticos como repetições e
intensificadores lexicais, além de marcas de expressividade fonológica e
prosódica (Bastos, 2005). A avaliação é “que contém informação sobre a
carga dramática ou o clima emocional da narrativa e que é usada para
indicar o seu ponto” (Bastos, 2005, p.76). Riessman (1993, p.20) chega a
caracterizar a avaliação como “a alma da narrativa”, visto que, por meio
de orações avaliativas, o narrador sinaliza como quer ser entendido pelos
seus ouvintes;
e) Resolução: apresenta-se como uma referência sobre o desencadear da
ação complicadora;
34

f) Coda: são observações gerais (opcionais) que sinalizam o término da


narrativa e “os efeitos dos eventos no narrador” (Labov, 1972, p.365). A
coda pode, também, fornecer uma breve síntese, “conectando o mundo da
história com o presente” (Johnstone, 2001, p.638).

Labov esquematiza os principais elementos que constituem a estrutura de


seu modelo narrativo da seguinte maneira:

a) “Abstract: sobre o que foi a história?


b) Orientação: quem, quando, o que, onde?
c) Ação complicadora: então o que aconteceu?
d) Avaliação: e daí?
e) Resolução: o que finalmente aconteceu?” (Labov, 1972, p.370)

É importante ressaltar o fato de a narrativa fazer parte de dois universos:


“aquele da história que está sendo contada (o dos interlocutores) e o do mundo da
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história relatada (o dos personagens)” (Moita Lopes, 2001, p.64). Nesse sentido,
faz-se necessário conceber o modelo laboviano de narrativa situado nas práticas
sociais cotidianas em condições sócio-históricas específicas. O falar sobre o
passado deve ser observado para além do seu conteúdo referencial, logo é
fundamental chamar atenção tanto para a expressão do evento narrado quanto para
as práticas interacionais do evento narrativo. Nas palavras de Johnstone (2001,
p.637):

“Cada um desses elementos das narrativas de experiência pessoal servem a um


duplo propósito, referindo-se a eventos, personagens, sentimentos, etc. que
aconteceram ou existiram fora da interação; e, ao mesmo tempo, estruturando a
interação em que a história está sendo contada, ao guiar o narrador e a audiência
pelos eventos narrados e assegurar que estes são compreensíveis e valem a pena ser
contados.”

Ou, ainda, segundo, Riessman (2008, p.8),

“a narrativa constitui a experiência passada ao mesmo tempo que fornece caminhos


para que os indivíduos façam sentido do passado. E as histórias devem sempre ser
consideradas em contexto, uma vez que o narrar ocorre em um momento histórico
com os discursos e relações de poder que nele circulam. Em um nível local, uma
história é designada para recipientes particulares – uma audiência que recebe a
história e pode interpretá-la de modos diferentes”.
35

2.1.2.
Narrativas, produção de significado e exceção ao cânone

As contribuições advindas da Psicologia Social para os estudos narrativos


devem-se, em grande parte, às reflexões de Jerome Bruner (1997), autor que, ao
estudar a produção de significado e a constituição do que denominou “psicologia
popular”, reconhece na narrativa “uma das formas mais ubíquas e poderosas de
discurso” (Bruner, 1997, p.72) e de organização da experiência e memória
humanas. Para o autor, narrar histórias, especialmente aquelas que falam sobre
nós mesmos (as autobiografias), dota a produção do significado de humanidade.
Além disso, Bruner defende que aquilo que não é estruturado pelo ser humano
como narrativa se perde na memória. Segundo Riessman (2008, p.10), referindo-
se ao trabalho de Bruner,

“Os indivíduos, argumenta o autor, tornam-se as narrativas autobiográficas por


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meio das quais contam sobre suas vidas. Para serem entendidas, essas construções
privadas de identidade devem emaranhar-se com a comunidade de histórias de
vida, ou “estruturas profundas” sobre a natureza da vida em si em uma dada
cultura. Conectar biografia e sociedade torna-se possível por meio da análise atenta
das histórias.”

Um interesse notório em seu trabalho é a discussão de três propriedades


estilísticas das narrativas. A primeira delas é a ideia de sequencialidade. Segundo
Bruner (1997, p.46), “uma narrativa é composta por uma sequência singular de
eventos, estados mentais, ocorrências envolvendo seres humanos como
personagens ou atores”, o que, de algum modo, dialoga com a noção de
cronologia também preconizada pelo modelo laboviano (conforme apresentado no
item acima – 2.1.1.). A segunda característica das narrativas é o que Bruner
denomina como “sua indiferença factual” (Bruner, 1997, p.50). Isso implica dizer
que não importa se as histórias são “reais” ou “fictícias”, pois o que define a
estruturação do enredo é a sequência das orações narrativas, ao invés de critérios
que ergam pretensão de verdade ou de falsidade a essas sentenças. A terceira
propriedade é a “forma singular de manejar afastamentos do canônico” (Bruner,
1997, p.50). Para o autor, a psicologia popular (senso comum) é dotada de
canonicidade, de constância e previsibilidade. Para lidar com a resolução de
conflitos e justificar a quebra de expectativas frente ao cânone cultural, as pessoas
36

lançam mão de estratégias narrativas para construir um sentido de


verossimilhança ao desvio, à exceção ao comum. Nas palavras do autor,

“quando você encontra uma exceção ao comum e pergunta a alguém o que está
acontecendo, a pessoa a quem você pergunta quase sempre contará uma história
que contém razões (ou alguma outra especificação de um estado intencional). A
história, além disso, será quase invariavelmente um relato de um mundo possível,
no qual se faz com que a exceção encontrada de algum modo faça sentido”
(Bruner, 1997, p.50).

Há, ainda, um quarto elemento que tipifica as narrativas, que é a noção de


perspectivismo (Bruner & Weisser, 1991), ou seja, a posição do narrador frente
aos eventos narrados, seu ponto de vista moral e interpretativo acerca do que
significam as histórias que conta. Para o autor, “as histórias inevitavelmente têm
uma voz narrativa: os eventos são vistos através de um conjunto específico de
prismas pessoais” (Bruner, 1997, p.53). Nesse momento, Bruner abre espaço para
o estudo do self e da autobiografia como modo significativo de o indivíduo se
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localizar no mundo simbólico da cultura (Bruner & Weisser, 1991). Três aspectos
interessantes podem ser observados em relação à autobiografia:

a) em primeiro lugar, “ela é um relato apresentado “aqui e agora” por um


narrador, a respeito de um protagonista que leva o seu nome, que existiu
no “lá e então”; a história termina no presente, quando o protagonista se
funde com o narrador” (Bruner, 1997, p.104);
b) ela nos situa, simultaneamente, como membros de uma cultura, bem
como indivíduos singulares e agentivos;
c) ela corresponde não apenas a um relato de experiências passadas, mas a
“um mergulho reflexivo em nossos próprios pensamentos”, “um
elemento de autoconsciência” (Bruner & Weisser, 1991, p.149) capaz de
organizar outros futuros.

Considero particularmente importante a forma como Bruner articula as


noções de narrativa e de constituição do self à luz da psicologia popular. Além
disso, o autor agrega ao seu modelo de interpretação da estrutura narrativa um
olhar que privilegia as práticas de produção do significado e os usos sociais da
linguagem na constituição do indivíduo. Bruner reconhece que “a narrativa não é,
37

contudo, apenas enredo estruturador ou dramatização. Nem é apenas


“historicidade” ou diacronia. Ela é também um meio de usar a linguagem”
(Bruner, 1997, p.57). Assim, suas teorizações sinalizam que a narrativa não é
apenas forma, mas uma ação social.

2.1.3.
Narrativas na fala-em-interação

Vale a pena, nesse momento, abrir espaço para a apresentação das principais
reflexões teórico-metodológicas advindas da Análise da Conversa, corrente
sociológica que lida com dados oriundos de contextos espontâneos de fala-em-
interação. Esta é definida por Garcez (2001, p.207)

“como a matriz da sociabilidade humana e única forma universal de uso da


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linguagem, é sobretudo interação corporificada e organizada em função do decorrer


do tempo físico real, é sempre uma co-construção indicial (isto é, dependente do
contexto de elocução em seus múltiplos possíveis enquadres de definição) e
mutuamente reflexiva, fruto do trabalho, em tempo físico real, de todos os
participantes da situação de fala.”

O sociólogo Harvey Sacks é considerado o principal articulador dos


pressupostos da Análise da Conversa. Seu objetivo era examinar, cuidadosamente,
fragmentos reais de fala e localizar o que denominou como “tecnologia da
conversa” (Sacks, 1984, p.166), ou seja, as regularidades, os procedimentos que
tipificam a fala-em-interação, sinalizando que “o mundo em que vivemos é muito
mais bem organizado do que imaginamos” (Sacks, 1984, p.166).
Contar e ouvir histórias em conversas espontâneas demanda um trabalho
interacional diferenciado, se comparado às narrativas de experiência pessoal
requisitadas em situação de entrevista. Sacks aponta que o ato de narrar histórias
corresponde a uma forma significativa (e necessária) de o narrador construir-se
como alguém normal ou comum. Segundo o autor, quando uma pessoa conta uma
história na conversa cotidiana, ela engaja-se no trabalho constante de “ocupar-se
em ser comum” (Sacks, 1984, p.167), colocando ênfase não nos episódios
ocorridos propriamente ditos, mas na construção da normalidade do que ocorreu.
Não há nada mais comum na vida cotidiana do que contar histórias (Garcez, 2001)
38

e é em virtude desse esforço investido na ocupação de ser normal que, segundo


Sacks (1984, p.170),

“Relatos de experiências aparentemente ultrajantes, as quais imaginaríamos que


deixariam as pessoas sem palavras, ou sobre as quais esperaríamos ouvir detalhes
extraordinários, acabam sendo feitos de modo que percebemos a experiência como
totalmente corriqueira.”

Outro aspecto notório das narrativas ocorridas na conversa diz respeito à


quebra na alternância de turnos típica da fala-em-interação (Clark & Mishler,
2001; Garcez, 2001). O participante da conversa que almeja contar uma história
necessita negociar, junto aos demais interlocutores na interação, o piso
conversacional para que seu direito de narrar seja ratificado. Em geral, esse
espaço para a narrativa na conversa é alcançado por meio de um prefácio (Garcez,
2001), um enunciado que já indicia a intenção do falante em produzir um turno
mais longo que rompe com a troca sistemática de turnos tradicional. “Note-se que
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a abertura desse espaço é, portanto, um movimento de ação conjunta, algo


sistematicamente co-ordenado e co-construído entre os participantes” (Garcez,
2001, p.194).
Uma vez assegurado o espaço para que a história seja contada, perde-se a
noção de previsibilidade quanto à extensão desse relato e ao seu término. Soma-se
a isso o fato de um novo regime de atenção ser requisitado para que a narrativa na
fala-em-interação ocorra de forma satisfatória. O narrador precisa que seus
interlocutores, de fato, prestem atenção à sua história justamente porque, uma vez
suspenso o fluxo da troca de turnos, o silêncio e a passividade dos ouvintes podem
representar um problema para o delicado trabalho de contar histórias na conversa
cotidiana. Ocorre o estabelecimento de um novo contrato interacional, a
instauração de um novo tipo de monitoramento,

“de modo que, mais do que simplesmente assegurar a posse da palavra por uma
extensão além do usual na sistemática, suficiente para se contar a estória, se tenha
também alguma segurança de que o interlocutor terá ouvido com atenção a estória”
(Garcez, 2001, p.197).

Um fenômeno recorrente nas interações cotidianas (e identificado graças ao


empenho da Análise da Conversa em localizar e investigar a “tecnologia da
39

conversa”) diz respeito à seriação de narrativas, ou seja, uma história comumente


é seguida de outra(s) no curso da interação.

“Em seguimento a uma estória contada, tendo construído o seu final e o possível
restabelecimento da sistemática usual para a troca de turnos, o interlocutor
“lembra” de alguma coisa e, então, conta uma estória semelhante à que lhe foi
contada” (Garcez, 2001, p.199).

A Análise da Conversa classifica essas narrativas como segundas histórias


(Garcez, 2001; Bastos, 2005) que apresentam, como principal função, a co-
construção da intersubjetividade. Essas segundas narrativas se assemelham à
primeira em função de seu tópico ou ponto, demonstrando que o interlocutor
estava atento à escuta da primeira história. Estabelece-se uma relação de
solidariedade entre o narrador e os interlocutores da conversa e ratifica-se o
pertencimento àquele grupo pela co-narração. É como se o interlocutor dissesse ao
narrador inicial: “Sua história é digna de ser contada e posso confirmar isso por
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meio de uma história similar à sua”. Na perspectiva da Análise da Conversa,


“contar uma estória é sempre dizer coisas para alguém, mas sempre em co-
operação com alguém” (Garcez, 2001, p.208).
Essa perspectiva relacionada à co-construção das narrativas em conversas
cotidianas tem orientado muitos trabalhos na área dos Estudos da Linguagem, não
apenas em contextos informais de interação, mas também em ambientes mais
institucionalizados. O estudo de Clark & Mishler (2001) sobre o uso de narrativas
na realização da tarefa clínica corresponde a um exemplo bastante significativo
dessa abordagem. Os autores apontam que, na interação médico-paciente,
determinadas estruturas discursivas podem tanto facilitar como impedir a narração
de histórias por parte do paciente, podendo ocasionar um choque entre as
expectativas do discurso médico e as do discurso cotidiano, laico, dos pacientes.
Ao narrar sua doença, o paciente não apenas procura produzir um relato objetivo
dos sintomas observados, mas engaja-se em um trabalho discursivo que envolve o
fornecimento de argumentos e justificativas, além da apresentação de um self.
Clark & Mishler (2001) chamam atenção, ainda, para a especificidade desse tipo
de narrativa produzida: ela é, necessariamente, uma co-construção, um esforço
conjunto.
40

“Na verdade, falar da narrativa realizada como sendo a história do paciente é


empregar um termo inadequado, uma vez que a narrativa realizada emerge em um
contexto de pedidos, reconhecimentos, ampliações e detalhamentos. A narrativa
representa o esforço conjunto do paciente e do médico para fazer sentido coerente
de um problema dentro de um contexto de ações e resultados construído
conjuntamente” (Clark & Mishler, 2001, p.41).

A Análise da Conversa trouxe contribuições para os estudos narrativos,


mormente no que concerne à observação da co-produção das histórias na fala-em-
interação, vista como uma forma viva do uso da linguagem. A discussão aqui
apresentada pode ser sintetizada nas palavras de Bastos (2004, p.121). Para a
Análise da Conversa,

“as estórias que contamos são situadas na sequência conversacional: uma primeira
estória é diferente de uma segunda; os diferentes prefácios vão suscitar diferentes
manifestações dos ouvintes; a presença ou ausência das manifestações dos ouvintes
terão impacto nos enunciados do narrador etc. É também nesse sentido que
dizemos que as narrativas são necessariamente co-construídas.”
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2.2.
Revisão criticamente a tradição

Estudos mais recentes em torno das narrativas, motivados pela reflexividade


característica da contemporaneidade (Giddens, Beck & Lash, 1997), têm
procurado rever criticamente os trabalhos pioneiros e tradicionais na área,
enfatizando as lacunas deixadas pelos modelos teóricos de maior destaque e as
especificidades do mundo social atual. As críticas incidem, principalmente, sobre
o modelo laboviano para a interpretação das narrativas de experiência pessoal e
sobre a tradição analítico-metodológica da Análise da Conversa (curiosamente,
duas das mais influentes áreas de investigação no campo dos Estudos da
Linguagem).
No que diz respeito ao modelo narrativo proposto por Labov, alguns
pesquisadores reconhecem a funcionalidade dos componentes descritos pelo autor,
porém estabelecem algumas ressalvas quanto aos limites de sua teoria. Segundo
Fabrício & Bastos (2009, p.44),

“apesar da operacionalidade e utilidade de certos componentes e elementos da


proposta de Labov, o modelo é considerado limitado uma vez que seu interesse
central é o de estabelecer correlações entre categorias linguísticas e sociais
41

(tomadas como homogêneas) e não a construção de sentidos, na interação, nas


relações micro-macro, características que não propiciam uma compreensão
adequada do uso da linguagem.”

Riessman (2008), que nomeia o modelo laboviano como um exemplo de


análise estrutural da narrativa, aponta que tal abordagem pode gerar insights
relevantes em relação à chamada análise de conteúdo das narrativas, “quando a
interpretação concentra-se de forma restrita a “o quê” é dito” (Riessman, 2008,
p.100-101). A autora reconhece a utilidade da análise estrutural da narrativa por
“levar a linguagem a sério” (p. 103) e fornecer aos pesquisadores um ferramental
analítico que os oriente na observação de como as pessoas se utilizam do discurso
para construírem suas histórias. Por outro lado, Riessman afirma que esse tipo de
abordagem estrutural tende a enfatizar o nível micro (local) de análise em
detrimento de aspectos macro da sociedade. Nesse sentido, a teoria laboviana é
questionada por tratar a narrativa como uma estrutura formal autônoma em
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relação às práticas de se contar histórias (Bastos, 2004), reduzindo a possibilidade


de uma melhor compreensão sobre quem conta essas narrativas e sobre a
sociedade que as contextualiza. Além disso, critica-se o modelo laboviano por
minimizar, ou mesmo ignorar (Fabrício & Bastos, 2009), a relevância da
participação da audiência na tessitura e interpretação das narrativas. Dessa forma,
não se abre espaço para se considerar o papel das performances (a ser tratada mais
adiante, no item 2.2.2.) e o caráter situacional e estratégico (Oliveira & Bastos,
2001) das histórias que contamos.
Mishler (2002) é, possivelmente, um dos principais críticos do modelo
tradicional laboviano de se estudar as narrativas. Seu argumento orienta-se por
dois caminhos: a) primeiramente, a crítica à noção de sequencialidade e ao
modelo de tempo linear/cronológico; b) em segundo lugar, o deslocamento da
preocupação sobre o que a narrativa é para o que a narrativa faz. Para Mishler
(2002, p.98), “a narrativa deve ser mais do que uma coisa depois da outra”.
Assim, os estudiosos necessitam lançar mão de modelos alternativos que
subvertam a lógica da causalidade e da linearidade do tempo e investigar como as
pessoas agem, por meio de suas histórias sobre o passado, em direção a um futuro
possível. Nas palavras do autor, “o passado não está gravado em pedra, e o
significado dos eventos e experiências está constantemente sendo reenquadrado
dentro dos contextos de nossas vidas correntes e em curso” (Mishler, 2002,
42

p.105). Uma vez deslocada a ênfase da estrutura da narrativa para a práxis de se


contar histórias, estamos diante de um terreno fértil para estudos sobre a
construção de identidades sociais (como será discutido no item 2.3.).
Já a tradição investigativa da Análise da Conversa é criticada por Bastos
(2010) por não considerar interessantes determinados modos narrativos
produzidos em contextos ditos “não-naturalísticos”, ou seja, criados para situações
específicas de pesquisa. É o caso, por exemplo, das narrativas emergentes em
situação de entrevista (como as estudadas por Labov). Em artigo5 sobre as
contribuições da obra de Charles Goodwin na perspectiva da Etnometodologia e
da Análise da Conversa, Bastos (2010) aponta os aspectos importantes do trabalho
do autor (visto com um clássico nos estudos da interação social), ressaltando,
entretanto, o outro lugar teórico (simultaneamente convergente e divergente)
ocupado pela perspectiva sociointeracional da análise do discurso, à qual se afilia.
Segundo a autora, trata-se de
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Um lugar que, ao contrário do que se acredita na perspectiva da análise da


conversa, acha interessante, por exemplo, trabalhar com entrevistas de pesquisa,
analisar as narrativas nelas produzidas, analisar os sentidos construídos (e não
necessariamente as ações) e olhar, como pesquisadora, para as relações entre as
dimensões micro e macrossociais. Além disso, nesse nosso território ao sul do
Equador, temos nossas próprias especificidades: nossas próprias interlocuções
disciplinares e interdisciplinares; nossos próprios dramas e urgências sociais.
(Bastos, 2010, p.101)

É inegável a contribuição da Análise da Conversa para os estudos sobre a


organização da interação humana, particularmente no que tange à análise
cuidadosa do passo-a-passo da fala-em-interação e ao desenvolvimento de
métodos rigorosos para a interpretação da vida social. Entretanto, a própria noção
do que venha ser um contexto “natural” ou “espontâneo” de fala pode ser revista e
relativizada, até para que outros modos significativos de produção do discurso não
sejam invisibilizados. As narrativas produzidas em situação de entrevista, por
exemplo, são tão “naturais” e “co-construídas” quanto as que aparecem na
conversa cotidiana. Estudar histórias situadas em contextos de entrevista é um
trabalho válido e legítimo, e os critérios utilizados pelos pesquisadores para
estudar essas narrativas são tão científicos e rigorosos quanto os métodos

5
Trabalho apresentado no Congresso Internacional Linguagem e Interação II, realizado de
7 a 9 de junho de 2010 na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo,
RS.
43

advindos da tradição da Análise da Conversa (haja vista os trabalhos


desenvolvidos por Labov, 1972; Riessman, 1993, 2008; e Linde, 1993, por
exemplo).
Destaco, a seguir, algumas abordagens alternativas de estudo sobre
narrativas na pesquisa contemporânea em Estudos da Linguagem, a saber: a noção
de small stories (Bamberg & Georgakopoulou, 2008; Bastos, 2008) e a de
performance narrativa/identitária (Bauman, 1986; Richards, 1999; Oliveira &
Bastos, 2001; Langelier, 2001; Riessman, 2008).

2.2.1.
Small stories e a construção de um senso de self

A visão tradicional e prototípica de narrativa (Georgakopoulou, 2006)


focaliza, primordialmente, um evento específico que tenha acontecido no passado
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e que se materialize em forma de texto por meio de orações ordenadas


cronologicamente. Alguns autores contemporâneos, entretanto, apontam que nem
sempre os indivíduos utilizam-se desse modelo narrativo canônico para relatarem
suas experiências. Há uma “riqueza e diversidade de gêneros narrativos”
(Georgakopoulou, 2006, p.128), cada qual com seus próprios estilos retóricos e
estruturas distintivas, elencados pelos narradores com base em suas intenções e
motivações, bem como nas convenções contextuais em jogo. Alguns gêneros
narrativos incluem, por exemplo, relatos de ações habituais, narrativas hipotéticas
ou sobre futuros imaginados, histórias em torno de um único tópico, e até mesmo
recusas ou adiamentos à narração (Riessman, 1993; Georgakopoulou, 2006).
Essas outras formas narrativas, entretanto, costumam ficar “nas franjas da
pesquisa narrativa” (Bamberg & Georgakopoulou, 2008, p.379), sub-
representadas e minimizadas em sua importância.
Os trabalhos de Bamberg & Georgakopoulou (2008) e de Bastos (2008)
apresentam essas narrativas sub-representadas como small stories (pequenas
histórias, ou narrativas breves), e essa denominação possui duas motivações: uma
literal e outra, metafórica. As small stories costumam ser pequenas em extensão
(breves) e, além disso, tende-se a atribuir um valor menor a elas em comparação
44

às big stories (as narrativas canônicas). Trata-se de um termo polissêmico que


abarca diversas formas de se contar histórias, ou, como dizem os próprios autores,

“um termo guarda-chuva que captura uma gama de atividades narrativas sub-
representadas, tais como narração de eventos em processo, eventos futuros ou
hipotéticos, eventos compartilhados (conhecidos), mas que também captura alusões
a narrações (anteriores), prorrogações e recusas de narrações” (Bamberg &
Georgakopoulou, 2008, p.381).

Ao estudarem as small stories, os autores estão interessados nas narrativas


em sua perspectiva funcional e nos efeitos que elas acarretam para a vida das
pessoas. Seja para falar de pequenos acontecimentos, ou para sustentar um
argumento, ou mesmo para falar sobre absolutamente nada, o olhar atento para as
small stories sinalizará como as pessoas “usam histórias em situações cotidianas,
mundanas, de forma a criar (e perpetuar) um senso de quem são” (Bamberg &
Georgakopoulou, 2008, p.378-379). Nesse sentido, o principal interesse é em
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como as pessoas constroem identidades.


“É nas práticas cotidianas, como espaços para o envolvimento, que o
“trabalho identitário” é conduzido” (Bamberg & Georgakopoulou, 2008, p.379).
A construção desse senso de identidade se dá, portanto, no uso cotidiano das small
stories no palco interacional da vida humana. Assim, estudar essas histórias pode
dar acesso ao modo como as pessoas investem em ações contínuas de forma a
construírem um senso de identidade estável e unificada, apesar de vivermos em
um mundo social cambiante, permanentemente em trânsito.

“Acreditamos que os envolvimentos contínuos e repetitivos decisivamente nos


levam a hábitos que se tornam a fonte para o senso de continuidade daquilo que
somos – um senso de nós como sendo “os mesmos”, apesar da mudança contínua”
(Bamberg & Georgakopoulou, 2008, p.379).

Emerge, portanto, a necessidade de a pesquisa contemporânea sobre


narrativas reconhecer que as small stories são passíveis de observação, análise e
investigação assim como as narrativas prototípicas (Georgakopoulou, 2006) e isso
se deve a três razões principais:
a) essas histórias ratificam a forte imbricação entre a fala e a produção da
vida social;
45

b) as identidades construídas por meio das small stories são localmente


construídas e performadas, sujeitas a contestação e sempre abertas a
releituras;
c) as práticas sociais pequenas, não-oficiais e não-hegemônicas são espaços
centrais para a construção da subjetividade.
(Georgakopoulou, 2006)

A preocupação com o estudo de como essas histórias são tecidas e dos


instrumentos utilizados pelos narradores para demonstrarem como querem ser
compreendidos na interação nos remete à noção de performance
narrativa/identitária (Bauman, 1986; Richards, 1999; Oliveira & Bastos, 2001;
Langelier, 2001; Riessman, 2008), assunto a ser tratado no item que se segue.
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2.2.2.
Performances narrativas e atuação dramatúrgica

Segundo Moita Lopes (2001, p.65), “na dinâmica de se relatar o que se


passou, as identidades sociais surgem”. É tácita a inter-relação entre o ato de
narrar histórias e a construção de identidades sociais, visto que o narrador
posiciona-se moral e ideologicamente em relação aos episódios narrados e,
simultaneamente, engaja-se na tessitura de sua auto-imagem. Labov (1972) já
mencionava o “auto-engrandecimento” do narrador como ponto de algumas
narrativas de experiência pessoal que investigou, o que demonstra uma
preocupação, por parte do narrador, a respeito de como sua imagem e reputação
serão interpretadas por aqueles que ouvem as histórias que conta. Conforme
aponta Riessman (1993, p.11), “ao contar sobre uma experiência, também estou
criando um self – como quero ser reconhecido por eles”. Nesse sentido, atribui-se
relevância ao conceito de performance (Bauman, 1986; Richards, 1999; Oliveira
& Bastos, 2001; Langelier, 2001; Riessman, 2008), uma vez que nos possibilita
compreender as narrativas como atuações dramatúrgicas (Goffman, 2007 [1975])
que dão forma às relações sociais cotidianas.
Os estudos sobre performance já figuram nos trabalhos de Erving Goffman
(2007 [1975]) a respeito do gerenciamento de impressões do eu face à presença
46

dos outros na interação, de sua plateia. Utilizando-se de uma metáfora


dramatúrgica para elaborar sua teorização, Goffman aponta que, no palco
interacional da vida em sociedade, o indivíduo espera ser reconhecido por seus
atributos morais socialmente valorizados. Assim, embrenha-se na tarefa de
comportar-se de tal maneira a transmitir para os outros a impressão sobre si
almejada. Ao mesmo tempo, espera que sua plateia leve a sério a impressão sobre
si que deseja veicular. Goffman define performance (o desempenho) como “toda
atividade de um determinado participante, em dada ocasião, que sirva para
influenciar, de algum modo, qualquer um dos outros participantes” (Goffman,
2007 [1975], p.23). A metáfora dramatúrgica de que Goffman se apropria, assim,
aponta que

“nós sempre estamos compondo impressões sobre nós mesmos, projetando uma
definição de quem somos e fazendo reivindicações a nosso respeito e a respeito do
mundo, reivindicações estas que testamos e negociamos com os outros” (Riessman,
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2008, p.106).

Essa noção de performance atribuída à apresentação do self e ao processo de


construção narrativa pode sugerir uma visão de que as identidades tecidas pelo
narrador sejam inautênticas (Riessman, 2008) e que as histórias que contam sejam
fingimentos, mentiras forjadas por esse self-ator para ludibriar sua audiência. Não
se pretende negar, dentro dessa perspectiva, que os indivíduos utilizem narrativas
para dissuadir seus outros discursivos. Aliás, a dissuasão é considerada uma das
funções do uso da narrativa, assim como a lembrança, a persuasão, a
argumentação, o envolvimento e a diversão (Riessman, 2008). O que se almeja,
entretanto, com o conceito de performance é considerar alguns aspectos que, na
pesquisa narrativa tradicional, eram deixados de lado justamente pelo fato de a
narrativa ser entendida como uma unidade auto-centrada, autônoma, centrada em
“o quê” é narrado. Primeiramente, a noção de performance chama atenção para a
situacionalidade das narrativas que contamos e para a relevância dos ouvintes na
composição e interpretação dessas histórias. Em outras palavras, as identidades
geradas via performance narrativa “são situadas e realizadas tendo a audiência em
mente” (Riessman, 2008, p.106). Consequentemente, o imediatismo da
performance, da encenação da história, adquire notoriedade, uma vez que traz a
ação passada para o aqui e agora da interação. Em segundo lugar, toda essa
47

perspectiva reconstrói (ou mesmo desconstrói) o que, dentro da nossa cultura,


costumamos nomear como “verdade” de uma história. Assim, a noção de
performance entende as narrativas como artefatos sociais e a verdade como
produto dos intercâmbios face-a-face, em vez de dado “real” empiricamente
comprovado. Nas palavras de Riessman (2008, p.105),

“Histórias não caem do céu (ou emergem do recôndito do self); elas são compostas
e recebidas em contextos – interacionais, históricos, institucionais e discursivos,
para nomear alguns. Histórias são artefatos sociais que nos dizem muito sobre a
sociedade e a cultura bem como sobre uma pessoa ou grupo”.

Contemporaneamente, vários trabalhos têm sido orientados pela perspectiva


da performance narrativa/identitária. O estudo de Richard Bauman (1986), por
exemplo, tem norteado muitas pesquisas interessadas na dinâmica do
gerenciamento de impressões e da construção de identidades via padrões
narrativos. Segundo o autor, performance é entendida
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“como um modo de comunicação, uma forma de falar, a essência de que consiste o


pressuposto da responsabilidade com uma audiência para a demonstração da
habilidade comunicativa, destacando o modo como a comunicação ocorre, para
além de seu conteúdo referencial” (Bauman, 1986, p.3).

No que diz respeito ao conteúdo referencial das narrativas (o o quê da


história, o evento a que se refere), é importante mencionar que a perspectiva da
performance subverte a visão tradicional de evento, a premissa de que as histórias
espelham uma realidade extra-discursiva. Ao invés de se ancorar na perspectiva
de que os eventos antecedem as narrativas (ou seja, um episódio acontece
primeiro e, depois, contamos uma história a respeito dele), a noção de
performance advoga que os eventos emergem no próprio processo de narração das
histórias. Segundo Bauman (1986, p.5),

“os eventos são abstrações da narrativa. São as estruturas de significação na


narrativa que dão coerência aos eventos no nosso entendimento, que nos
possibilitam construir, no processo interdependente de narração e interpretação, um
conjunto coerente de inter-relações que denominamos um “evento”.”

Assim sendo, compreendem-se os eventos não como um conjunto


monolítico e inalterável de episódios congelados no passado, mas como
48

“realizações sociais situadas nas quais as estruturas e convenções podem fornecer


precedentes e orientações para as alternativas possíveis” (Bauman, 1986, p.4). As
próprias noções de verdade e falsidade na narrativa são vistas por um viés mais
relativista, como enunciado no parágrafo anterior. Segundo Riessman (1993, p.4-
5), “as histórias dos informantes não espelham o mundo “lá fora”.” As narrativas
que criamos são versões parciais e temporárias do mundo social e são
entrecortadas por nossos posicionamentos político-ideológicos, o que implica
dizer que “os enredos não são inocentes” (Riessman, 1993, p.65), muito menos
neutros. As “verdades” construídas via padrões narrativos são sempre parciais e
instáveis, suscetíveis a questionamentos e releituras. Não importa se há uma
mentira ou uma verdade a ser revelada: “o evento narrado (...) emerge na
performance” (Bauman, 1986, p.6).
Essa ênfase colocada sobre a comunicação humana para além do seu
conteúdo referencial chama atenção tanto para a expressão da narrativa quanto
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para o próprio narrador. Interessado na etnografia da performance oral, Bauman


(1986) considera que toda performance narrativa é, necessariamente, situada e
determinada pela audiência e por condições sócio-históricas específicas. “A cada
performance, o narrador necessariamente transforma a estória em função das
especificidades da situação, o que traz também a possibilidade de interferência na
estrutura social normativa” (Bastos, 2005, p.80). O ato de narrar (ou a
performance da experiência pessoal) não se dá em campo neutro e isento de
crenças e valores. A performance narrativa e, consequentemente, identitária
ocorre em meio a embates discursivos e ideológicos, a relações sociais complexas
permeadas por redes institucionalizadas de relações de poder (Langelier, 2001).
O trabalho de Bauman (1986) focalizou, por meio de uma abordagem
etnográfica, o estudo da performance oral de um contador de histórias que, em
momentos diferentes de sua trajetória de vida, relata um mesmo episódio ocorrido
em um campo de pesca. Bell (nome atribuído a esse narrador) apresenta-se como
um virtuoso artista da narrativa, para cuja performance sua audiência já cria uma
certa expectativa. Com o passar do tempo, Bell investe na complexificação de sua
narrativa, verificada, principalmente, pela acomodação de novos episódios à
primeira história e pela auto-consciência que desenvolve acerca de sua
performance. Bell compreende que cada contexto e cada plateia demandam uma
performance diferenciada e, para bem desempenhar o seu papel de hábil narrador,
49

lança mão de um variado repertório de recursos formais, dentre os quais é possível


citar o uso do discurso direto e de estruturas paralelísticas, além de estratégias
metanarrativas.
Ao contar uma história, o narrador vivencia, segundo Riessman (1993,
p.20), “um problema fundamental: como convencer o ouvinte que não estava lá de
que algo importante aconteceu”. Na tentativa de produzir coerência para seu
relato, o narrador recorre a formas retóricas de persuasão a fim de construir
conexões afetivas com seu interlocutor. Além disso, lança mão de recursos
linguísticos de dramatização/performance (Riessman, 2008) a fim de criar
factualidade e conferir credibilidade às suas narrativas. Dentre os vários artifícios
que fornecem às narrativas um aspecto dramatúrgico, dialógico e mesmo
estratégico (Oliveira & Bastos, 2001), alguns merecem destaque: o emprego de
estruturas repetitivas e paralelísticas, de asides6, de sons expressivos e
alongamento de vogais, da alternância de tempos verbais etc. Destacarei, aqui,
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alguns recursos bastante observados nas pesquisas sobre performance narrativa, a


saber: a metanarração, o apelo para as emoções e o uso da fala relatada (também
conhecida como discurso direto).
A metanarração corresponde aos comentários avaliativos acerca da própria
narrativa e dos elementos que constituem o evento narrativo (como, por exemplo,
os personagens envolvidos na cena). Para Bauman (1986, p.100), a metanarração
objetiva “construir uma ponte entre o evento narrado e o evento narrativo, ao
atingir faticamente os ouvintes, que se aproximam da história, se identificam com
ela e dela participam”. Trata-se de um recurso por meio do qual o narrador se
mostra para sua plateia da forma como quer ser visto. Ao julgar determinadas
ações como justas, absurdas, desagradáveis etc., o narrador evidencia o ponto de
sua história e abre espaço para sua construção identitária. A metanarração já
figurava com uma das formas de avaliação externa, segundo o modelo laboviano
(conforme visto no item 2.1.1): o narrador suspende o fluxo narrativo com o
intuito de dirigir-se diretamente para seu ouvinte e emitir um julgamento
avaliativo acerca da experiência narrada.
Nesse sentido, o apelo à carga dramática e emocional das histórias assumirá
importância. Uma vez que os relatos são, sempre, reconstruções ou replayings

6
Expressão extraída do contexto teatral, o aside refere-se a momentos nos quais o ator (o
narrador) “sai da ação para engajar-se diretamente com a audiência” (Riessman, 2008, p.112).
50

pessoais de experiências passadas (Goffman, 2007 [1975]; Bastos, 2005), faz-se


necessário despertar as emoções dos interlocutores como forma de trazê-los para o
palco da performance do narrador. Essas conexões afetivas permitem um
alinhamento (Goffman, 2002 [1979]) entre narrador e ouvintes e criam um forte
sentido de envolvimento. Somos convidados, assim, “a entrar na perspectiva do
narrador” (Riessman, 2008, p.9). Ademais, dramas movidos por emoções intensas
assumem um caráter persuasivo decisivo em determinados contextos sociais. O
trabalho de Oliveira & Bastos (2001), por exemplo, aponta que a narração de
situações trágicas e injustas em cartas direcionadas a um seguro de saúde serve de
argumento para o envio de reclamações e reivindicações a essa empresa. Uma vez
mais, a noção de que as narrativas podem ser construídas com fins persuasivos e
estratégicos poderia evocar a visão de que o narrador estaria se beneficiando dos
alinhamentos com sua audiência em nome de uma imagem “inautêntica” de si e de
seu relato. Como visto anteriormente, estamos interessados menos em uma
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veracidade dos eventos narrados e mais na impressão de verdade construída via


padrões narrativos e no papel que o apelo emocional com a audiência desempenha
na tessitura dessa impressão.
O uso da fala relatada é, também, um recurso bastante eficaz na
performance narrativa, no que concerne à construção do envolvimento entre
narrador e ouvintes e da factualidade do relato. Segundo Goffman (2002 [1979],
p.141), “quando, em vez de dizermos algo nós mesmos, optamos pelo relato do
que o outro disse, estamos mudando nosso footing”. Segundo Richards (1999,
p.159), “o uso do discurso direto é mais do que uma simples rotina ou uma
questão de economia linguística; ele funciona como um poderoso mecanismo de
envolvimento, trazendo a audiência para dentro da história”. A fala relatada é o
indício mais claro de que narrar uma história é engajar-se em uma atuação
dramatúrgica. Ao trazer para o evento narrativo diálogos oriundos do evento
narrado, o narrador recria a ação dos personagens em cena e confere veracidade
ao seu relato. É como se dissesse aos seus ouvintes: “Isso, de fato, aconteceu, e
essas palavras comprovam isso”. Ainda que a fala relatada seja uma reconstrução,
ela é tratada pelos ouvintes como exemplo “vivo” da experiência passada. As
palavras são tratadas como verbatim (Richards, 1999), criando um sentido de
evidência e de acesso direto ao evento narrado. Nas palavras de Riessman (2008,
p.112), “o uso do discurso direto (frequentemente chamado de discurso relatado
51

ou reconstruído) constrói credibilidade e arrasta o ouvinte para o momento


narrado”.
A análise narrativa pelo viés da performance afasta-se da mera interpretação
de temas presentes nas histórias, apropria-se de elementos da análise estrutural e
acrescenta outras preocupações. O olhar para a atuação dramatúrgica no palco da
vida em sociedade dá visibilidade ao modo como as histórias são contadas e o que
elas dizem sobre o narrador e a cultura ou grupo social a que pertence. Ademais,
na perspectiva da performance, elementos como o “quando” e o “por quê” da
narrativa, além dos participantes discursivos e do próprio pesquisador, são
incluídos na análise. O olhar para o detalhe na observação e interpretação da
experiência narrada em sua complexidade, portanto, é que fará a diferença. Nas
palavras de Riessman (2008, p.137),

“A atenção expande do olhar detalhado para a fala do narrador – o que é dito e


como isso é dito – ao ambiente dialógico em toda sua complexidade. O contexto
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histórico e cultural, a audiência da narrativa e as mudanças do posicionamento do


analista ao longo do tempo são trazidos para a interpretação. A linguagem – as
palavras e os estilos selecionados pelos narradores para recontarem as experiências
– é questionada, não tomada em seu valor nominal”.

Antes de passar à próxima seção, creio que uma última palavra acerca da
noção de performance seja digna de nota, tendo em vista a polissemia comumente
atribuída ao conceito. Alguns estudos na Linguística Aplicada contemporânea
(Moita Lopes, 2009, 2010) têm se fundamentado, especialmente na pesquisa sobre
identidades sociais, na noção de performance e performatividade segundo Judith
Butler (1990, 1993). A autora, com base na Teoria dos Atos de Fala de Austin
(1962), concebe o gênero e a sexualidade como performances, como um fazer
contínuo que não preexiste ao engajamento discursivo dos sujeitos. Segundo a
autora, repetições de performances, reguladas por convenções sociais, criam uma
aparência de substância, uma impressão de essência do ser. No presente trabalho,
faço uso do termo performance alinhando-me mais às teorizações goffmanianas e
a outros trabalhos que entendem performance sob essa mesma perspectiva de
atuação dramatúrgica (Bauman, 1986; Richards, 1999; Langelier, 2001;
Riessman, 2008). Considero essa perspectiva particularmente relevante para a
análise que almejo desenvolver por destacar os recursos discursivos e estilos
selecionados pelos narradores para construírem uma imagem de si e de sua
52

cultura, não ignorando, contudo, o contexto mais imediato em que se dá a


performance narrativa (por quem, a quem, quando e por quê a história é contada).
Por outro lado, reconheço bem mais aproximações que dissonâncias entre essas
duas visões acerca do conceito de performance. Considero, aliás, que estejamos
diante de perspectivas complementares, uma vez que ambas destacam a
centralidade do discurso na construção do significado bem como a natureza não-
essencialista de nossas identidades sociais, entendidas como um fazer contínuo
tecido nas interações com nossos outros discursivos. Assim, nas duas concepções
aqui descritas, a performance é compreendida “como um fazer ou ação que
constrói a vida social, o que chama a atenção para a natureza constitutiva das
narrativas” (Moita Lopes, 2009, p.135) e, por conseguinte, das nossas marcas
identitárias e o mundo da cultura.
Uma vez que nossas narrativas não podem ser consideradas isoladamente e,
em geral, relacionam-se a pertencimentos identitários coletivos, é fundamental
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considerarmos a performance como uma ação discursiva também atribuída a


grupos sociais e a instituições. Quando um indivíduo narra episódios passados,
ocorre um investimento discursivo na produção e manutenção da identidade de
uma coletividade. Em instituições, por exemplo, as narrativas dos seus membros
funcionam como um elo entre as representações tradicionais do passado
institucional e o modo como seus atores sociais usam, alteram ou contestam esse
passado (Linde, 2009). A memória institucional, portanto, não está congelada em
um passado estático e fossilizado, mas está em permanente ressignificação. Nesse
sentido, é fundamental que se lance um olhar sobre as narrativas que as pessoas
contam sobre a instituição e sobre si próprias dentro da arena institucional
(assunto do qual trataremos no item a seguir, 2.3.); assim, será possível se
produzir inteligibilidade sobre o modo como o passado institucional é preservado,
performado e remodelado no discurso de seus atores sociais.

2.3.
Narrativas, identidades coletivas e instituição

Linde (1993), em sua pesquisa sobre histórias de vida sobre escolha


profissional, aponta que a narrativa corresponde à “unidade que desempenha o
53

mais importante papel na construção da história de vida” (Linde, 1993, p.85). Ao


contarmos histórias de vida, “falamos sobre como nos tornamos o que somos e
transmitimos aos outros o que devem saber sobre nós para nos conhecerem”
(Bastos, 2005, p.81). Nesse sentido, o ato de narrar serve como espaço para que o
próprio narrador se constitua, uma vez que este conta uma história sobre si
mesmo. Entretanto, ainda que padrões narrativos abram caminho para a tessitura
desse auto-retrato (Schiffrin, 1996) do narrador, é importante salientar que
investimos em narrativas autobiográficas na tentativa de projetar coerência sobre
nosso senso de identidade e de, também, reivindicar/negociar nosso pertencimento
a um determinado grupo social (Linde, 1993). Segundo Riessman (2008, p. 8),
“grupos usam histórias para mobilizar os outros e promover um senso de
pertencimento”. A história de vida de um é, na verdade, uma história coletiva
produzida por muitos ou, conforme apontam Bamberg & Andrews (2004, p.5), “a
“minha autobiografia” jamais pode ser apenas sobre mim mesmo, já que vivemos
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e respiramos histórias e influências de que nem sempre temos consciência”. Nas


palavras de Linde (1993, p.3), “usamos histórias para reivindicar ou negociar
pertencimento a um grupo e para demonstrar que somos, de fato, membros dignos
desse grupo que seguem, de modo apropriado, seus padrões morais.”
Em contextos institucionais, as narrativas atuam não apenas na construção
das identidades pessoais dos indivíduos, mas também no estabelecimento de
vínculos de pertencimento a grupos sociais. Considerando-se que a identidade é
“um fenômeno social e relacional que se estabelece diante do outro, em um jogo
de semelhanças e diferenças em relação a esse outro” (Fabrício & Bastos, 2009,
p.46), adquire relevância a investigação sobre “eus” coletivos, co-construídos em
relação aos opositores, aos diferentes, aos outros. Como apontam Oliveira &
Bastos (2001, p.174),

“Esse movimento de identificar antagonistas e opositores é constitutivo do


processo de construção de identidade no que se refere a categorias sociais mais
amplas, estabelecidas a partir de categorizações binárias, em função de diferenças
em relação a outros grupos sociais. O que é colocado como diferente, como ‘o
outro’, é o excluído, o desvalorizado, o negativo.”

O trabalho de Dyer & Keller-Cohen (2000) corresponde a um exemplo


bastante pertinente de pesquisa sobre narrativas e construção de identidades em
contextos institucionais. A partir da análise das narrativas contadas por dois
54

professores universitários em suas próprias aulas (tendo seus alunos como seus
interlocutores), Dyer & Keller-Cohen observam que mecanismos de inclusão e
exclusão identitárias são acionados pelos professores a fim de que sua imagem
como especialistas ganhe notoriedade em detrimento da imagem dos leigos e
noviços. Determinadas escolhas lexicais e pronominais são empregadas de forma
a delimitar o território do “eu-professor-agente-perito na área que leciona” em
oposição às demais dramatis personae (Dyer & Keller-Cohen, 2000) em suas
narrativas.

“Os professores fazem uso contrastante de referência pronominal inclusiva versus


exclusiva e expressões para se distanciarem dos seus respectivos outros nas
narrativas. Ambos os professores se apresentam como agentes principais nas suas
narrativas, fazendo uso de recursos para despersonalizar e/ou tornar invisíveis e/ou
impotentes os outros nas narrativas” (Dyer & Keller-Cohen, 2000, p.292-293).

Os autores chamam a atenção, entretanto, para o “dilema ideológico” (Dyer


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& Keller-Cohen, 2000, p.297) enfrentado por esses professores ao buscarem se


construir como especialistas dentro do sistema de valores e crenças da chamada
sociedade democrática. Em um lugar onde, ao menos idealmente, todos são iguais,
essa performance identitária de auto-engrandecimento da sua condição de
especialistas precisa ser cuidadosamente manejada, sob pena de a imagem de si
ser associada a atributos relacionados ao pedantismo e à humilhação dos outros
“ditos inferiores”. Nesse sentido, evidencia-se a natureza contingencial, cultural e
essencialmente social (Clark & Mishler, 2001) das narrativas que contamos. Ao
debruçarmo-nos sobre as histórias produzidas em contextos institucionais,
podemos conhecer melhor os valores e crenças da sociedade em que vivemos.
Segundo Fabrício & Bastos (2009, p.41),

“se os processos identitários são produzidos em práticas discursivas intersubjetivas


e situadas tanto local como sócio-historicamente, eles são tantos quantos forem os
contextos nos quais os indivíduos se encontrem imersos, influenciando-os e sendo
por eles influenciados.”

A pesquisa de Linde (2009) merece destaque ainda maior se tivermos como


propósito buscar uma melhor compreensão a respeito da construção de narrativas
e identidades em contextos institucionais. Fruto de uma longa e complexa
investigação etnográfica dentro de uma companhia de seguros, o trabalho de
55

Linde procura observar como é formado um repertório central de histórias dessa


instituição e como seus funcionários fazem uso dessas narrativas de modo a
projetar um sentido coerente de identidade e pertencimento a esse grupo
particular. O desafio desse trabalho, segundo a própria autora, é contar “uma
história cujo protagonista é uma companhia de seguros” (Linde, 2009, p.3) e
refletir sobre três questões centrais: “os mecanismos sociais e linguísticos pelos
quais formas de representação do passado são produzidas, as relações entre essas
formas de representação e os modos como são utilizados no presente” (Linde,
2009, p.13).
O termo “instituição” empregado pela autora inclui quaisquer tipos de
grupamentos sociais (sejam eles formais ou informais) que tenham uma existência
continuada ao longo do tempo e que possuam práticas e regras de conduta
estabelecidas. As instituições frequentemente recorrem a formas de representação
e organização do passado, como fotos, arquivos, memoriais etc. Entretanto, as
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narrativas assumem um status diferenciado entre essas formas de rememorar o


passado, pois atuam no estabelecimento de vínculos identitários de pertencimento
à instituição. Em outras palavras,

“A narrativa funciona para estabelecer identidade, ou seja, para responder à


pergunta “O que somos?”. A narrativa também constitui uma ligação entre o modo
como a instituição representa seu passado e as formas como seus membros usam,
alteram ou contestam esse passado, a fim de compreenderem a instituição como um
todo e os seus lugares como membros de tal instituição” (Linde, 2009, p.4).

A autora afirma que “a vida social é um oceano de histórias, e a vida nas


instituições não é uma exceção a isso” (Linde, 2009, p.72). Em conversas
informais ou em ocasiões mais institucionalizadas e ritualizadas (como em
palestras ou em reuniões de trabalho), as narrativas são usadas para diversos fins,
entre eles o de colaborar na construção da memória institucional como um evento
social. Algumas narrativas institucionais ganham uma vida prolongada graças ao
fato de terem sido contadas e recontadas ao longo do tempo, retrabalhadas e
ressignificadas não apenas por seu narrador inicial (aquele que, em tese, contou-as
pela primeira vez), mas também por outros que delas se apropriaram. Essas
narrativas repetidas no curso da vida da instituição podem vir a se tornar parte do
seu repertório canônico de histórias que, sensivelmente, agregam um senso de
identidade para a instituição. Linde (2009) lembra, entretanto, que essa coletânea
56

de histórias não figura como mero repositório de enredos congelados. Justamente


por serem as narrativas apropriadas e re-narradas por outras pessoas, seu conjunto
adquire vida, podendo, ainda, ser acrescentado de outras histórias ao longo do
tempo. Nas palavras da própria autora, “o repertório central de histórias não é um
arquivo inerte. É um conjunto de histórias que são repetidas vezes recontadas de
forma que as tornam continuamente relevantes” (Linde, 2009, p.122). Ou, ainda,
“a coleção de histórias [da instituição] é um cânone aberto. Enquanto a instituição
continuar, podemos esperar que novas histórias sobre desastres evitados, triunfos
e mudanças de direção sejam adicionadas” (Linde, 2009, p.88).
Linde utilizou-se, para sua análise de dados, de um corpus de narrativas
extraídas de cinco fontes distintas (três versões escritas e duas orais): a) um livro
contendo a história autorizada da companhia e a biografia de seu fundador; b) um
memorial a respeito do fundador da companhia, publicado em comemoração ao
seu aniversário de 70 anos; c) uma série de oito artigos sobre a empresa
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destinados aos agentes de vendas; d) uma gravação em vídeo de uma palestra


proferida por um dos vice-presidentes da empresa e direcionada para gerentes
regionais recém-promovidos; e) uma gravação em áudio de uma entrevista com
um gerente que trabalhou para a empresa durante 40 anos. Resguardadas as
especificidades estruturais e conceituais de cada tipo textual analisado por Linde,
dois propósitos nortearam a comparação entre essas cinco versões da narrativa
dessa instituição em particular. Primeiramente, Linde buscou identificar que
conteúdos referentes ao passado institucional se repetiam em todas as versões
para, em seguida, “descobrir como uma re-narração do passado é moldada pela
posição presente do narrador e pela situação presente a respeito da qual o passado
é trazido à tona” (Linde, 2009, p.94).
Duas questões notórias puderam ser observadas nos estudos de Linde sobre
narrativa e memória institucionais. A primeira delas diz respeito aos principais
conteúdos que constituíram o repertório central de histórias dessa instituição; boa
parte das narrativas identificadas abordava aspectos identitários relacionados à
construção de um “nós” coletivo: “quem somos “nós”, como nos tornamos assim,
como preservamos nossa essência identitária em períodos de mudança” (Linde,
2009, p.110). O segundo aspecto relevante nessa pesquisa refere-se ao ponto de
vista na constituição das narrativas. Segundo Linde (2009, p.96-97),
57

“Cada versão é contada por alguém em uma posição particular dentro (ou fora) da
instituição para uma audiência real ou projetada. O ponto de vista do narrador e o
da audiência moldam a escolha das histórias, o modo como são enquadradas e as
escolhas das avaliações.”

Com isso, nos estudos sobre narrativas institucionais, é necessário que se


faça um exame da situação de narração e não se pode ignorar o fato de esta ser
construída em função das afiliações institucionais e pessoais do narrador.
Dependendo da forma como o narrador se alinha (Goffman, 2002 [1979]) em
relação à instituição, o passado desta será narrado a partir de prismas
diferenciados e, consequentemente, faces múltiplas (e até contraditórias) da
identidade institucional podem emergir durante a performance narrativa.
Toda performance narrativa/identitária ocorre na dependência de
circunstâncias sócio-discursivas específicas e da presença dos interlocutores, e
com a construção de narrativas institucionais não poderia ser diferente. Segundo
Goffman (2007 [1975], p.9), “o papel que um indivíduo desempenha é talhado de
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acordo com os papéis desempenhados pelos outros presentes e, ainda, esses outros
também constituem a plateia”. Os repertórios narrativos elencados pelos
narradores para modelar a face da instituição variam dependendo do palco
interacional estabelecido e da relação estabelecida com seus interlocutores.

2.4.
A pesquisa como prática narrativa

Tendo já navegado pelos enredos das principais teorias acerca do fenômeno


da narrativa (desde os modelos mais tradicionais até as releituras críticas feitas por
autores contemporâneos), é quase chegada a hora do desfecho dessa trama (dessa
seção, pelo menos). Antes, porém, creio que valha a pena ainda um último
comentário, uma coda, talvez. Creio que seja pertinente situar o próprio ato da
pesquisa como uma performance narrativa.
A pesquisa pode ser compreendida como a tessitura de um relato sobre um
determinado tema (quiçá uma ação complicadora), com seus personagens,
cenários, situações, clímax e desfecho. A própria organização textual de um
trabalho acadêmico (seja um artigo ou uma tese) assemelha-se, de certo modo, ao
modelo laboviano de narrativa. A introdução poderia ser vista como um abstract
58

que encapsula o grande enredo, que é a própria pesquisa. A descrição da


metodologia e do contexto de pesquisa poderia ser a orientação. Na análise de
dados, encontraríamos a ação complicadora. Na conclusão, estaria situada a
resolução da narrativa. Quanto à avaliação, acredito que esta permeie todo esse
grande enredo que é o trabalho investigativo, desde a seleção do aporte teórico da
pesquisa, passando pelos posicionamentos assumidos pelo autor durante a análise
de dados, até as reflexões e encaminhamentos apresentados pela conclusão do
texto.
Esta é, inegavelmente, uma leitura nada hegemônica acerca do trabalho
investigativo, uma visão minoritária dentro de um universo ainda muito
influenciado pela tradição positivista de pesquisa (inclusive na área dos Estudos
da Linguagem). A proposta que se coloca, aqui, é pensarmos a pesquisa como
uma história a ser contada e o pesquisador como seu narrador. Se considerarmos,
entretanto, que “as histórias são construídas por um narrador que seleciona uma
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gama de eventos e os ordena de maneira significativa – uma ordem que reflete sua
própria interpretação desse grupo de eventos” (Dyer & Keller-Cohen, 2000,
p.285), creio que basta ao narrador dessa trama saber justificar suas escolhas
epistemológicas e ter consciência das implicações políticas e éticas dessas
escolhas. Além disso, considero importante que o narrador dê ordem e coerência
ao seu relato (leia-se “à sua pesquisa”) de tal forma que convença sua plateia da
reportabilidade de sua narrativa. Vejamos, então, algumas justificativas possíveis
para a adoção dessa perspectiva narrativa para o ato da pesquisa.
A primeira delas advém da área da Antropologia, em especial do
Interpretativismo de Geertz (1989), autor que funda as bases para a percepção do
trabalho etnográfico (tão caro para a compreensão do uso da linguagem na vida
social) como a elaboração de um relato, ou seja, uma narrativa. Geertz atribui à
etnografia um caráter narrativo (textual), não no sentido de que as interpretações
do pesquisador sejam não-factuais, mas no sentido de que o próprio texto
etnográfico pode ser reelaborado, reinterpretado, dentro de circunstâncias
discursivas específicas. Segundo o autor, o conhecimento produzido na etnografia
é, inevitavelmente, situado e sujeito a releituras: “trata-se, portanto, de ficções;
ficções no sentido de que são algo construído, algo modelado” (Geertz, 1989,
p.11). Voltaremos a tratar desse tema na seção 4 – “Contexto e metodologia de
pesquisa”.
59

Outra justificativa é oriunda da própria análise narrativa, caracterizada por


Riessman (1993, 2008) como constituída de cinco níveis: a) a observação da
experiência; b) a narração; c) a transcrição; d) a análise e; e) a leitura. Para
Riessman, pesquisar é, sempre, um processo seletivo e interpretativo e o
pesquisador tem como tarefa criar “uma meta-história sobre o que aconteceu (...)
editando e moldando o que foi dito e criando uma história híbrida” (Riessman,
1993, p.13). As narrativas criadas pelos pesquisadores em seus trabalhos são, na
verdade, recriações, reinvenções dos episódios e relatos estudados, jamais uma
cópia fiel dos eventos ocorridos. Mesmo a transcrição, tida comumente como uma
forma de fixar a linguagem em formas pesquisáveis, é compreendida, dentro dessa
perspectiva, como uma tarefa “incompleta, parcial e seletiva” (Riessman, 1993,
p.11) e, por excelência, uma prática interpretativa7.

“Ao construirmos uma transcrição, não ficamos de fora em uma posição neutra e
objetiva, simplesmente apresentando “o que foi dito”. Ao invés disso, os
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investigadores estão imbricados em cada passo da constituição das narrativas que


analisamos” (Riessman, 2008, p.28).

Para concluir esse movimento argumentativo no sentido de situar o


atividade de pesquisa como uma prática narrativa, remeto-me às ideias de Mishler
(2002). Para o autor, a pesquisa corresponde a um constante movimento de ir e
vir, uma tentativa de juntar os fios de uma trama quase sempre fragmentada e,
consequentemente, os resultados de nossos estudos são permanentemente sujeitos
à reconstrução e à ressignificação. Assim, nossas pesquisas são histórias cujos fins
podem não ser tão previsíveis quanto almejamos.

“Eles [nossos achados e teorias de pesquisa] não são imutáveis, universais e


atemporais, mas, isso sim, sempre tentativos, continuamente revisitados à luz de
nossas descobertas que funcionam como finais de histórias que mudam nossa
compreensão do conhecimento passado e apresentam novos problemas para serem
estudados, que não haviam sido previstos antes” (Mishler, 2002, p.116).

O capítulo seguinte abordará a questão da mobilidade social ascendente e os


valores a ela atribuídos na vida social contemporânea. Esmero-me em teorizações

7
Riessman (2008), ao tratar do trabalho interpretativo que envolve a transcrição de dados,
lembra que nem sempre a pessoa que transcreve é o próprio pesquisador, o que torna a tarefa de
interpretação dos dados ainda mais complexa.
60

advindas das Ciências Sociais, especialmente do campo da Antropologia Social, e


procurarei estabelecer pontes com estudos que tematizam a construção de
identidades sociais a partir de uma perspectiva discursiva.
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3
Ascensão social e vida em sociedade

“Há três maneiras de subir na vida: ou você nasce rico, ou se casa, ou estuda.” 8
Márcia9 – presidente do grêmio estudantil da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ

A epígrafe que inaugura a presente seção, de alguma maneira, concentra


duas visões dominantes acerca da noção de ascensão social: ora como status
atribuído, ora como status adquirido (Duarte & Gomes, 2008). “Nascer rico”
(como apontado por Márcia em sua frase) não sinaliza, propriamente, uma “subida
na vida”, uma vez que a noção de prosperidade aí embutida privilegia um critério
mais naturalizante em detrimento da noção de mobilidade (Duarte, 1986) – ou
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seja, uma vez que o sujeito é “rico de berço”, por herança, não houve, em si, uma
mudança de status social. Já as noções de “casamento” e “estudo” focalizam, de
forma emblemática, a aquisição de uma condição social diferenciada e
hierarquicamente superior à situação anterior de existência. Entretanto, creio que
haja uma diferenciação importante nessas duas outras maneiras de “subir na vida”
(na concepção de Márcia): a ascensão pelo estudo evidencia valores associados ao
esforço e mérito individuais, à escalada do sujeito na sociedade pela via dos seus
próprios projetos (ao contrário do casamento, situação na qual essa ascensão pode
não se caracterizar, propriamente, como uma aquisição dignificante).
Ascensão, mobilidade social, valores associados ao sujeito na vida em
sociedade, todos esses são assuntos bastante caros às áreas do conhecimento que
se debruçam sobre o estudo sistemático da vida social. Focalizarei, aqui, algumas
contribuições teóricas importantes advindas das Ciências Sociais, em especial da
Antropologia das Sociedades Complexas (Velho, 2008 [1981], 1994, 2000;
Duarte, 1986). As noções de continuidade e ruptura serão situadas, aqui, como
traços notórios das sociedades contemporâneas, onde os indivíduos vinculam-se à
elaboração de projetos (Schutz, 1962) e ao múltiplo pertencimento identitário. Em

8
Frase constante em nota etnográfica gerada em 12 de julho de 2010.
9
Nome fictício.
62

seguida, apresentarei a temática da ascensão social associada aos estilos de vida


das chamadas camadas médias e das classes populares, focalizando, em particular,
o valor comumente atribuído à escolarização como meio de ascender na escala
social.

3.1.
A sociedade complexa moderno-contemporânea e a dinâmica da
coexistência

É norteadora, no presente estudo, a noção de que inexistem sociedades


simples. Toda sociedade é dotada de algum nível de complexidade e tal
constatação não é sinônimo, meramente, de uma agregação de diferenças, valores
ou papéis sociais: as sociedades são complexas porque, também, são produtoras
de significados. Gilberto Velho é, possivelmente, o principal representante da
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chamada Antropologia das Sociedades Complexas no ramo da pesquisa social


brasileira. Seus diversos trabalhos sobre a vida na metrópole, seus domínios e
atores sociais destacam-se pela reflexão acerca do fenômeno urbano
contemporâneo à luz de textos fundadores da Escola de Chicago – escola do
pensamento sociológico que fez da cidade seu laboratório para o estudo da
sociedade (Velho, 2005). O autor define sua concepção de sociedade complexa
como

“uma sociedade na qual a divisão social do trabalho e a distribuição de riquezas


delineiam categorias sociais distinguíveis com continuidade histórica, sejam
classes sociais, estratos, castas. Por outro lado, a noção de complexidade traz
também a ideia de uma heterogeneidade cultural que deve ser entendida como a
coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições cujas bases
podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas etc” (Velho, 2008 [1981], p.14).

Dois traços, então, caracterizam as sociedades complexas: continuidade e


heterogeneidade; permanência e ruptura. A noção de coexistência assume, aqui,
centralidade. A vida na cidade (por isso essas sociedades, além de complexas,
serem denominadas “moderno-contemporâneas”) é marcada por intensos fluxos
(harmoniosos ou díspares) entre discursos, sujeitos, estilos de vida e visões de
mundo. Trata-se de um espaço permeado por movimentos que envolvem
consensos e tensões, interações sociais ora congruentes ora conflituosas, enfim,
63

um mundo que privilegia o trânsito dos seres humanos por redes de significados
(Geertz, 1989) e que sinaliza ser “próprio da experiência social humana encontrar-
se em permanente fluxo” (Duarte & Gomes, 2008, p.241).
O estudo da sociedade complexa moderno-contemporânea está intimamente
relacionado às questões sobre a metrópole e seus habitantes. A vida na cidade,
com suas tensões, contradições e marcas de continuidade e ruptura, promove uma
multiplicidade de experiências e hábitos, “contribuindo para a extrema
fragmentação e diferenciação de papéis e domínios” (Velho, 2008 [1981], p.16).
Isso remonta às pesquisas de Simmel (2005 [1903]), autor que, no início do século
XX, dedica-se à observação das transformações vivenciadas pelos indivíduos
diante dos ininterruptos estímulos da metrópole. O autor, perplexo diante da sede
de modernidade das cidades, percebe um descompasso entre o mundo objetivo,
com seus recursos técnicos, e a singularidade do sujeito. Para proteger-se de
estímulos excessivos e fragmentados, o indivíduo pode adotar uma atitude blasé,
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uma couraça protetora, uma indiferença frente às tensões da metrópole moderna.


Chama atenção nos estudos de Simmel a dimensão intersubjetiva na constituição
das relações sociais. Para o autor, só se pode conhecer o indivíduo por meio de
processos interacionais. Simmel vê a díade, a intersubjetividade, como unidade
básica da vida social. Pode soar até contraditório à primeira vista, mas o que
Simmel defende é que o sujeito torna-se mais cônscio de sua individualidade
quanto mais ele transita por diferentes círculos sociais. Quanto mais exposto à
diversidade, mais matrizes ideológicas poderão compor a singularidade do
indivíduo. Em outras palavras, não há indivíduo sem o social, e vice-versa.
Simmel, assim, preocupa-se em

“mostrar que o desenvolvimento dos valores individualistas está associado à


possibilidade de o indivíduo poder transitar entre diferentes grupos, não sendo
englobado, diríamos nós, apenas por um deles. (...) confirma-se que o indivíduo,
agente empírico, aparece cada vez mais como indivíduo-sujeito moral, unidade
mínima da vida social, em termos de representações e práticas sociais” (Velho,
2000: 18-19).

Emerge daí uma preocupação bastante cara aos cientistas sociais e


antropólogos afiliados a essa visão específica quanto à relação indivíduo-
sociedade: examinar atentamente as “pessoas agindo juntas” (Becker, 2008
[1963], p.193) e estudar os processos de diferenciação social e de negociação da
64

realidade por meio da interação. Na vida em sociedade, as pessoas participam de


contextos múltiplos e variados, movimentam-se por esferas plurais e simultâneas.
Qualquer tentativa de classificação apriorística acerca desses indivíduos pode
sugerir o risco de uma distorção da sociedade em estudo. O olhar atento para os
processos interacionais chama atenção para a “forma como os atores sociais se
definem uns aos outros e a seus ambientes” (Becker, 2008 [1963], p.204).
Segundo Barth (2000, p.123), “as pessoas participam de universos de discurso
múltiplos, mais ou menos discrepantes; constroem mundos diferentes, parciais e
simultâneos, nos quais se movimentam”. O indivíduo transita por diferentes redes
de significados (Geertz, 1989) e lida com um repertório dinâmico, maleável e
fluido de situações sociais. Assim, só se pode conhecer o indivíduo em processos
de interação social.
Nas culturas urbanas, o indivíduo corresponde a uma dimensão
fundamental. Mesmo naquelas sociedades com traços mais englobantes e
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hierarquizantes, a possibilidade do desenvolvimento de ideologias individualistas


se faz presente, em virtude do caráter de fluidez e maleabilidade típicos das
sociedades moderno-contemporâneas. O processo de individualização, entretanto,
não ocorre sem que se sigam regras de ordem cultural. Segundo Velho (2008
[1981], p.26),

“Em toda sociedade existe, em princípio, a possibilidade de individualização. Em


algumas será mais valorizada e incentivada do que em outras. De qualquer forma o
processo de individualização não se dá fora de normas e padrões por mais que a
liberdade individual possa ser valorizada. Quando vai de encontro às fronteiras
simbólicas de determinado universo cultural – ou as ultrapassa –, ter-se-á então,
provavelmente, uma situação de desvio com acusações e, em certos casos,
estigmatização”.

Diferentes concepções de individualismo vinculam-se a processos e valores


relativos à modernização da sociedade. Duas visões díspares do conceito de
individualismo costumam nortear as interpretações (mesmo no senso comum)
acerca desse fenômeno. Por um lado, o individualismo vincula-se à ideia de
autonomia, de livre-arbítrio e de liberdade, “rompendo com a opressão e rigidez
de sistemas tradicionais de dominação e organização social” (Velho, 2000, p.21).
Trata-se de uma perspectiva tida como positiva e otimista acerca do fenômeno e
65

que costuma materializar-se no ideal de indivíduo universal típico dos discursos


da democracia, por exemplo.

“O tema da “individualização” é indissociável do tema da “modernização”. Com


efeito, as teorias do vínculo social instauradoras da visão de mundo moderna
dependeram criticamente da representação dos “indivíduos” cidadãos, portadores
da razão natural e da disposição para participar de uma civitas organizada sob a
égide dos valores da liberdade e da igualdade” (Duarte & Gomes, 2008, p.248).

Por outro lado, concorre uma visão mais negativa sobre o individualismo,
compreendido como um agente de desagregação e desarticulação de vínculos
comunais e redes de solidariedade. A pessoa que se reconhece como indivíduo,
uno e autônomo, tenderia a afastar-se dos valores da comunidade, dos laços de
parentesco, e a levar uma vida marcada pela impessoalidade. Com base nessa
perspectiva dualista, o individualismo passa a ser concebido como um fenômeno
plural (logo, torna-se mais adequado falar em individualismos), múltiplo, sujeito a
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diferentes interpretações contextualmente definidas. Nas seções 3.2.1 e 3.2.2,


veremos como essa perspectiva plural acerca do fenômeno do individualismo
permeia as culturas, valores e visões de mundo do que se convencionou chamar de
camadas médias e classes populares urbanas.
Uma das expressões mais notórias do individualismo é a noção de
mobilidade social. Por mobilidade, estamos nos referindo à noção de trânsito em
um sentido bastante amplo. As pessoas transitam pelas ruas, mudam de bairro ou
de escola, circulam por outros discursos e, assim, ressignificam suas experiências
de vida, crenças e anseios. Podemos nos remeter, também, à mobilidade
verticalizada, comumente conhecida pelas denominações “ascensão social”, ou
“auto-afirmação”, ou “emburguesamento” (Duarte & Gomes, 2008). Todas essas
concepções de mobilidade social (a serem melhor discutidas adiante) pressupõem,
primeiramente, a possibilidade de uma certa margem de escolha consciente do
indivíduo no sentido de selecionar, direcionar os caminhos a serem percorridos. O
indivíduo seria, em tese, responsável pelos seus rumos e decisões. Essa margem
de escolha individual é intitulada pelos estudiosos das sociedades complexas
moderno-contemporâneas como projeto. O termo é definido por Schutz (1962),
importante teórico da Escola de Chicago, como conduta organizada para atingir
fins específicos. Por conduta, entendem-se as “experiências subjetivamente
significativas que emanam da nossa vida espontânea” (Schutz, 1962, p.211).
66

Schutz chama atenção para a relevância da ação tramada, ideada antecipadamente,


na constituição de projetos futuros. Segundo o autor,

“Todo projeto consiste na antecipação da conduta futura por meio da fantasia,


mesmo não sendo ainda o processo contínuo da ação, mas o ato fantasiado como se
tivesse sido realizado, o que é considerado o ponto inicial de qualquer projeto.
Tenho que visualizar um estado de coisas provocadas por minha ação futura antes
de esboçar os passos de tal ação a partir dos quais esse estado de coisas resultará.
Falando metaforicamente, devo ter uma ideia da estrutura a ser erguida antes de
esboçar a planta da construção” (Schutz, 1962, p.20).

Essa definição aponta para “a importância da dimensão consciente da ação


em que o sujeito se organiza para a realização de objetivos definidos” (Velho,
2008 [1981], p.110). A noção de projeto implica uma determinada noção de
indivíduo e uma dimensão de escolha, de ruptura em relação aos mecanismos
englobantes da sociedade. Entretanto, há que se relativizar essa noção de projeto.
Ainda que processos de individualização, sob forma de elaboração de projetos,
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possam ocorrer em qualquer sociedade, não se dão de forma totalmente livre,


longe dos cerceamentos de ordem social. O próprio Schutz aponta para o quão
duvidoso e incerto um projeto pode se tornar caso seja tramado fora de um escopo
de possibilidades sócio-historicamente definido.

“Nossa situação biograficamente determinada seleciona certos elementos desse


campo [de nossas possibilidades à disposição] como relevantes para nosso
propósito. Se essa seleção não encontra obstáculos, o projeto é simplesmente
transformado em um objetivo e a ação ocorrerá naturalmente. Se, pela imprecisão
de nosso conhecimento disponível no momento de estabelecer o projeto, emergir
uma situação de dúvida, as possibilidades inicialmente abertas logo se tornarão
questionáveis, problemáticas” (Schutz, 1962, p.94-95).

Assim, pode-se dizer que os projetos individuais estão sempre circunscritos


sócio-historicamente, incluindo certos valores, crenças e regras. Em outras
palavras, o projeto se dá dentro de um “campo de possibilidades próprio à
sociedade complexa moderna” (Velho, 1994, p.19). Assim, não há projetos
totalmente puros e autocontidos, fruto de uma pretensa intenção individual,
resultado da escolha consciente de um sujeito autônomo e desvinculado da vida
em sociedade. O mundo dos projetos é sempre dinâmico e sujeito a mudanças, a
novos significados e sempre circunscrito em um determinado campo de
possibilidades.
67

“Campo de possibilidades trata do que é dado com as alternativas construídas do


processo sócio-histórico e com o potencial interpretativo do mundo simbólico da
cultura. O projeto no nível individual lida com a performance, as explorações, o
desempenho e as opções, ancoradas a avaliações e definições da realidade. Estas,
por sua vez, nos termos de Schutz, são resultado de complexos processos de
negociação e construção que se desenvolvem com e constituem toda a vida social,
inextricavelmente vinculados aos códigos culturais e aos processos históricos de
longue durée” (Velho, 1994, p.28).

No estudo da dinâmica da vida social, é importante que o pesquisador lance


um olhar atento aos projetos legitimados como dominantes e socialmente
valorizados para os sujeitos de pesquisa e a quais temas são elegíveis para se falar
em projetos (bem sucedidos ou não) nas sociedades complexas. Além disso, faz-se
necessário reconhecer, dentro do universo de discursos múltiplos e de
heterogeneidades da vida contemporânea, quais valores e afiliações identitárias
emergem na interação social. Ainda que admitamos que o indivíduo pertença a
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múltiplos contextos, conferindo-lhe uma aura social, por vezes o sujeito vincula-
se a certos aspectos da vida em sociedade que são tratados como âncoras10
identitárias (Velho, 1994) trazidas à tona em situações estratégicas da interação
social e da negociação da realidade. “A fragmentação não deve ser entendida
como um estraçalhamento literal do indivíduo psicológico” (Velho, 1994, p.29).
Há referências básicas fundamentais para a vida das pessoas que constituem
orientações para seus mapas cognitivos e afetivos (como, por exemplo, as noções
de família e parentesco). Cabe ao pesquisador perceber quando determinada
referência identitária se faz mais relevante em determinados contextos e não em
outros. O olhar atento para o uso da linguagem pode ser bastante elucidativo nesse
sentido.
Toda essa discussão acerca das sociedades complexas moderno-
contemporâneas pode parecer evocar uma visão determinista sobre o fenômeno
urbano e essencialista sobre as identidades sociais, especialmente àqueles
estudiosos alinhados com a perspectiva da chamada pós-modernidade.

10
O termo “âncora” pode evocar uma noção de fixidez em relação às identidades sociais,
contradizendo a ideia de fragmentação e multipertencimento identitário tão discutida e defendida
na contemporaneidade. Ainda que o conceito possa gerar essa controvérsia, creio que seja
elucidativo de como, em determinados contextos da vida em sociedade, os sujeitos tornam
relevantes certas afiliações identitárias, essencializando-as na interação com diversos fins,
estratégicos ou políticos, inclusive.
68

Contemporaneamente, versa-se sobre processos de fluidez, de destronamento de


tradições, de desestabilização de crenças e regimes de verdade (Foucault, 2000
[1979]) de determinadas instituições, de liquefação das lealdades de outrora
(Bauman, 2001). A discussão sobre individualismo, tão cara à Antropologia
Urbana, por exemplo, pode soar inadequada e destoante às preocupações
contemporâneas mais interessadas na dinâmica da construção de identidades
cambiantes, instáveis, fluidas e fragmentadas. Não vejo, entretanto, contradição
entre os interesses epistemológicos da Antropologia das Sociedades Complexas e
as discussões mais contemporâneas (pós-modernas) acerca do fenômeno social.
Vejo-as, aliás, como orientações investigativas complementares em que se
privilegia, em ambas as tradições, o olhar para a dinâmica da vida em sociedade e
para construção dos sujeitos sociais em processos interacionais. A noção de
individualismo não pretende evocar uma essência do sujeito, uma singularidade
inabalável à dinâmica da vida social. Por outro lado, importa observar em que
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medida os atores sociais se apresentam como sendo detentores de uma


individualidade singular e como a manifestação de seus projetos, de alguma
maneira, molda e confere coerência a essa noção de indivíduo. Em outras
palavras, a pesquisa sobre a vida social, entre outras preocupações, pretende
investigar como os indivíduos se apresentam como tal. É nesse sentido que
acredito ser fundamental o olhar atento para os modos narrativizados (ou seja, via
uso da linguagem) empregados pelo sujeito para falar de si e se apresentar
socialmente.

3.2.
Estilo de vida, prestígio e mobilidade social

O debate recente no campo da Antropologia tem procurado estudar em que


medida, nas sociedades moderno-contemporâneas, os processos de mudança
assumem um caráter valorativo. As noções de mobilidade e de mudança social,
tão características do próprio do fluxo da experiência humana em sociedade,
tornam-se “um valor permanentemente buscado e institucionalizado” (Duarte &
Gomes, 2008, p.241) e isso pode ser explicado pelo próprio valor atribuído ao
indivíduo no nosso mundo. Toda essa discussão passa pelos conceitos de “ethos”
69

e “visão de mundo”, apresentados por Geertz (1989) em sua obra A interpretação


das culturas. Enquanto o ethos refere-se ao plano valorativo e moral de uma
determinada cultura, a visão de mundo diz respeito a aspectos mais cognitivos e
existenciais. Nas palavras do próprio autor,

“O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral
e estético, e sua disposição é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu
mundo que a vida reflete. A visão de mundo que esse povo tem é o quadro que
elabora das coisas como elas são na simples realidade, seu conceito da natureza, de
si mesmo, da sociedade” (Geertz, 1989, p.93).

O autor, entretanto, reconhece a imprecisão conceitual que incide sobre


essas noções e sugere, assim, haver uma relação circular entre ethos e visão de
mundo. De fato, em um mundo de fluxos, fragmentações e ambiguidades como o
nosso, torna-se tarefa desafiadora ao pesquisador definir fronteiras nítidas entre o
que pertence ao universo da moralidade e o que é exclusivo da dimensão
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existencial (ou seja, no nível de uma identidade pessoal ou coletiva). Acreditando


existir uma interpenetração entre valores, moralidades e identidades, empregarei,
no meu estudo, os conceitos de ethos e visão de mundo como termos correlatos e
intercambiáveis. Assim, para os propósitos da minha pesquisa, tratarei essas duas
noções como sinônimas, ainda que reconheça a validade dessa cisão conceitual
comumente utilizada nos estudos antropológicos.
Em se tratando de mobilidade social, é comum que esse trânsito seja
pensado enquanto um afastamento de uma condição original para outra diferente
(e, em geral, tida como melhor). Nesse processo de mudança, o indivíduo passa a
ser qualificado de forma diferenciada, o que implica dizer que ocorre, também,
uma migração identitária. Em outras palavras, ao deslocar-se de uma condição
social para outra, o sujeito passa a ser reconhecido por outros atributos e valores
incorporados nesse trânsito, tornando-o uma pessoa diferente da que era antes.
Segundo Louro (2010, p. 204), “o fato é que, de um modo ou de outro, ao se
deslocarem, os sujeitos se transformam”. Estas talvez sejam questões subjacentes
ao debate em torno do tema “ascensão social”, tão relevante na pesquisa que
venho desenvolvendo. Em geral, ascender na escala social é percebido como uma
melhoria da condição de vida atrelada à noção de prestígio ou status. Duarte &
Gomes (2008) indicam a existência de duas principais vias tradicionalmente
associadas à ascensão social. A primeira delas relaciona-se ao acúmulo de bens de
70

consumo e de recursos econômicos que elevarão o indivíduo à condição de


proprietário. A segunda via é traçada pelo acúmulo de bens simbólicos “capazes
de fornecer ao sujeito uma consciência ou sentimento da própria autonomia e
singularidade (nos termos de nossa cultura)” (Duarte & Gomes, 2008, p.250).
Qualquer que seja a via tomada, é notória a relação estabelecida entre ascensão
social, prestígio, mecanismos de individualização e processos de modernização.
Tradicionalmente, esse ethos particular costuma caracterizar as culturas das
chamadas camadas médias (como veremos a seguir, na seção 3.2.1).
Há que se levar em consideração, entretanto, que, na nossa sociedade, o
prestígio social pode ser alcançado por vias diferentes. Uma das tarefas do
pesquisador é, justamente, procurar reconhecer o que os nativos nomeiam como
status, prestígio, ascensão social ou qualquer outra categoria correlata. Por vezes,
o ideal de “ser bem sucedido” pode se manifestar por caminhos diversos: pela
luta, pela dedicação, pela liderança adquirida, pelo dinheiro acumulado, pelo
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bairro onde se mora, pelo trabalho que se desempenha, pela escola ou faculdade
onde se estuda, até mesmo pelas benesses da sorte ou do acaso, enfim, são
múltiplos (e díspares) os percursos para “melhorar de vida”. Cabe ao analista,
despojado de categorizações apriorísticas, olhar atentamente para o que os nativos
elencam como valor e que ethos vigora em seu contexto social. A meu ver, o olhar
para o discurso é um modo significativo de criar inteligibilidade sobre a
construção desses valores sociais e visões de mundo. Considero que a análise das
narrativas desses nativos e do modo como eles se apresentam nesse palco
discursivo podem em muito contribuir para uma melhor visualização da
construção desse ethos particular relacionado à noção de ascensão social.
A seguir, discutirei como essas noções de ethos e mobilidade social
ascendente emergem nas culturas das camadas médias e das classes populares,
segundo alguns trabalhos na área da Antropologia das Sociedades Complexas.
Posteriormente, focalizarei o valor comumente associado à educação escolarizada
como uma dessas vias possíveis de ser “bem sucedido”, mormente no que tange
aos anseios de “melhoria de vida” de uma parcela das classes trabalhadoras
urbanas.
71

3.2.1.
Cultura(s) das camadas médias

A origem do conceito de camadas médias (ou classes intermediárias) reside


na gênese e desenvolvimento do capitalismo comercial e industrial (Velho, 2008
[1981]). A expansão marítima, a Revolução Industrial e a urbanização das
metrópoles (entre outros fenômenos históricos ligados ao desenvolvimento do
capitalismo) fizeram emergir um novo valor associado ao individualismo, em
oposição às formas de organização social mais holistas e hierarquizantes como na
época do feudalismo (Velho, 2000). Os movimentos reformadores protestantes,
orientados por uma ética que privilegiava valores como a racionalidade, o trabalho
e o progresso, serviram de sustentáculo para o que Weber (2001 [1904 e 1905]),
no início do século XX, cunhou de o espírito do capitalismo. Para o autor, a
consolidação do capitalismo moderno se deu graças a um ethos particular que
emerge com o protestantismo, caracterizando o surgimento de uma ética
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econômica burguesa, essa classe intermediária entre a nobreza e a plebe que passa
a gerir os cursos da vida moderna-contemporânea. Segundo Weber (2001 [1904 e
1905], p.124),

“a avaliação religiosa do trabalho sistemático, incansável e contínuo na vocação


secular como o mais elevado meio de ascetismo e, ao mesmo tempo, a mais segura
e mais evidente prova de redenção e de genuína fé, deve ter sido a mais poderosa
alavanca concebível para a expansão desta atitude diante da vida, que chamamos
aqui de espírito do capitalismo”.

O conjunto desses fatores fez florescer ideologias que acentuavam o valor


de um tipo particular de indivíduo útil a essa sociedade moderna e capitalista que
emergia. Razão, método, vontade, livre-arbítrio, singularidade, progresso, avanço,
liberdade: em síntese, individualismo. Esta é a tônica que norteia a chamada
cultura das camadas médias. Particularmente, prefiro utilizar os termos “cultura” e
“individualismo” no plural, por considerar que tais conceitos se circunscrevem
sócio-historicamente em redes de significados múltiplas. O que nomeamos classe
média no Leblon pode ser muito diferente de uma burguesia iguaçuana, por
exemplo. Há outras redes e visões de mundo coexistindo, outras afiliações
identitárias que se interpenetram e, assim, soa bem mais producente pensar em
culturas e individualismos. De qualquer forma, estudos antropológicos, feitos com
72

base em intenso trabalho etnográfico e observação participante, apontam para a


recorrência de certos valores típicos das chamadas camadas médias, ainda que
assumindo novas roupagens em dependência de questões circunstanciais. Entre
esses valores, chamo atenção para três deles, a saber: o mérito, o prestígio social e
a capacidade de desenraizar-se. Todos esses valores estão intimamente atrelados
às noções de projeto e mobilidade social, tão caras à visão de mundo das camadas
médias.
A noção de mérito é materializada na figura do self made man, o indivíduo
que, sozinho, por esforço próprio e contando exclusivamente com o empenho do
seu trabalho, consegue subir na vida e galgar seus objetivos. Muitas pessoas são
guiadas por esse tipo de ethos no mundo contemporâneo, acreditando elas que a
ascensão social depende, exclusivamente, de suas próprias virtudes e do suor de
seu trabalho (Velho, 2002 [1973]). Weber (2001 [1904 e 1905]) localiza
historicamente a origem desse ethos nos primeiros movimentos protestantes no
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século XVI, especialmente no puritanismo inglês. Para essa ética cristã particular,
o trabalho era considerado a principal finalidade da vida, uma ordem divina que,
uma vez colocada em prática, é retribuída pelo elemento providencial (a
perspectiva de que “Deus abençoará os negócios”). O valor atribuído ao trabalho
metódico e à organização racional do capital é considerado pelo autor o “apreço
ético mais elevado para com o sóbrio self made man da classe média” (Weber,
2001 [1904 e 1905], p.119). Hoje, a questão do mérito norteia muitas discussões e
práticas na vida em sociedade, independente das afiliações religiosas dos
indivíduos. O contexto escolar, por exemplo, costuma ser orientado por uma
lógica meritocrática, por meio da qual se premiam os que mais se empenham –
categorizados como “merecedores”. A recompensa é dada como fruto do esforço
individual.
O prestígio nas camadas médias pode assumir contornos bem variados.
Conforme foi apresentado na seção 3.2, o ideal relativo a ser “bem sucedido” ou
ter status pode se manifestar por vias diferentes. Um exemplo bastante
emblemático sobre prestígio nas camadas médias é o trabalho de Gilberto Velho
(2002 [1973]), fruto de um investimento etnográfico em um prédio de
apartamentos conjugados no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Em Utopia
Urbana, o autor aponta para um estilo de vida de um grupo social específico que
reconhece na mudança de bairro um índice de ascensão social. Ao saírem de seus
73

bairros de origem para estabelecerem residência em Copacabana, as pessoas


entrevistadas construíam essa mudança como uma ascensão, como a aquisição de
uma situação mais prestigiosa de vida. Ainda que não houvesse mudanças
salariais ou de ocupação dessas pessoas, ou que deixassem casas mais amplas para
morarem em apartamentos conjugados de dimensões reduzidas, viver em
Copacabana era apresentado como a conversão de uma vida atrasada para uma
condição existencial moderna e de prestígio. A pesquisa de Velho aponta que a
distribuição de poder na sociedade e a estratificação social adquirem visibilidade
na hierarquia entre os bairros e nos valores atribuídos a eles. Os participantes da
pesquisa acreditam que, ao mudarem de bairro, estão mudando de classe social,
logo “a mobilidade residencial desempenha um papel fundamental para a
constituição de uma imagem da sociedade, em que as pessoas circulam entre os
diferentes estratos espacialmente localizados” (Velho, 2002 [1973], p.82).
Um último aspecto tipificador das camadas médias digno de nota é a
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questão do desenraizamento. O afastamento da condição original de existência é


entendido como uma espécie de pré-condição para a ascensão do indivíduo e para
construção de seu espaço como membro das camadas médias. Os valores
associados ao individualismo moderno, como as noções de mérito, livre-arbítrio,
autonomia, auto-afirmação, entre outros, só assumem relevância e estabilidade
caso o indivíduo aparte-se de mecanismos hierarquizantes e totalizadores. O
indivíduo moderno, para que se reconheça e seja reconhecido como tal, rompe
com as unidades que o englobam (como a família, por exemplo). Esse
afastamento consolidará a condição do sujeito de classe média como um ser
desgarrado e desenraizado, particularizado pelo distanciamento de origem social
hierarquicamente tida como inferior. Esse desenraizamento pode ser um processo
permeado por ambiguidades e até certo desconforto. Duarte & Gomes (2008)
apontam, por exemplo, o mal-estar que pode ser acarretado em famílias de classes
populares quando um de seus membros ascende às camadas médias. A frase
“Todos os que sobem esquecem dos que ficam” (Duarte & Gomes, 2008, p.266),
gerada etnograficamente pelos pesquisadores, reverbera esse desconforto que a
ascensão social pode provocar nos “enraizados”, que se sentem “deixados para
trás”. Outro exemplo desse desconforto é apontado por Velho (2002 [1973]) ao
descrever o quão sofrível pode ser ao indivíduo que migra para Copacabana seu
retorno ao lugar de origem. Voltar ao subúrbio para visitar a família, por exemplo,
74

pode indiciar um descenso na escala social, logo “muitas vezes parece haver uma
tentativa de “apagar” o fato de terem morado lá” (Velho 2002 [1973], p.52).

3.2.2.
Cultura(s) das classes populares

Se, por um lado, as culturas das camadas médias seriam orientadas por um
ethos individualista aliado a um ideal de modernidade, por outro, as chamadas
classes populares seriam constituídas por um caráter hierárquico-holista (Duarte,
1986). O interesse por pesquisas sobre os valores e visões de mundo das classes
populares não é recente nas Ciências Sociais. Estudos sobre periferias e áreas
suburbanas, particularmente no contexto brasileiro, sempre obtiveram a atenção
de pesquisadores que, considerando-se membros de uma elite intelectual e social,
têm aguçada sua curiosidade por esse universo a princípio tão distante da lógica
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das camadas médias e altas. Os trabalhos de Duarte (1986) e Duarte & Gomes
(2008) são, nesse sentido, bastante representativos, uma vez que vão na contra-
mão desse interesse de pesquisa por um mundo totalmente estranho ao
pesquisador. Os dois autores apresentam-se como membros de ramos familiares
situados nas classes populares, portanto investem na tarefa de produzir
conhecimento acerca de uma realidade social bastante familiar, sem, com isso,
abrir mão do exercício de distanciamento e auto-reflexão do fazer antropológico.
Duarte (1986) aponta a ocorrência de três principais denominações que
conferem conotações variadas a esses grupos sociais caracterizados por estarem
em situação de subordinação na hierarquia das sociedades moderno-
contemporâneas. O termo “classe operária”, de orientação marxista, coloca em
destaque a relação desse grupo social específico com os meios de produção
capitalistas. Já a expressão “classes populares”, segundo o autor, apresenta uma
conotação vaga, podendo referir-se tanto à noção mais abrangente de “povo”
quanto ao que se costuma intitular “classe média baixa”. “Classes trabalhadoras”
já corresponde a um termo mais plural e, por esse motivo, é bem mais utilizado
pelo autor ao longo de sua obra. Duarte (1986) chama atenção, entretanto, para a
importância de, no empreendimento etnográfico, o analista privilegiar o critério da
“auto-representação”, ou seja, é preciso ancorar-se no modo como esses próprios
75

grupos ditos “dominados” se nomeiam e se percebem no fluxo de interações da


sociedade moderno-contemporânea. Na minha pesquisa, especificamente,
utilizarei “classes populares” e “classes trabalhadoras” como denominações
correlatas e plurais, abarcando grupos sociais que, mesmo ocupando setores
variados no mundo do trabalho, distinguem-se comparativamente aos discursos e
comportamentos tradicionalmente associados às classes médias.
O autor apresenta, ainda, a existência de dois níveis de valoração
comumente atribuídos às classes trabalhadoras. De um lado, visões negativas
acerca dessas classes colocam ênfase nas noções de escassez e privação, em
contraste com o modelo liberal da ideologia individualista das camadas médias.
São, nas palavras do autor,

“versões puramente negativas, que atribuem e justificam o lugar subordinado e


doloroso ocupado pelas classes trabalhadoras à sua “ignorância”, “primitivismo”
etc. – enfim à sua falta de cultura. Essas versões são bastante generalizadas,
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podendo encontrar-se vazadas em discursos elaborados e programáticos ou


disseminados no senso comum do quotidiano das classes médias e “superiores”
(Duarte, 1986, p.134).

As versões positivas sobre as classes trabalhadoras ancoram-se em uma


perspectiva mais romantizada, enfatizando a noção de que esses grupos sociais
vivenciariam uma espécie de naturalidade existencial que os apartariam de uma
“artificialidade” do modelo civilizado de indivíduo moderno. Independente dessas
duas lógicas de interpretação acerca das classes trabalhadoras, chama atenção, no
trabalho de Duarte (1986), o reconhecimento de uma cultura fundamentalmente
hierárquica e holista caracterizando o estilo de vida desses grupos. Com base na
análise de dados etnográficos, duas noções fundamentais puderam ser observadas:

a) “a preeminência explícita e direta do ‘grupo’, da ‘coletividade’, da


‘comunidade’ sobre aquilo que chamamos e valoramos como a
‘individualidade’” (Duarte, 1986, p.135);
b) a clara oposição às ideologias das camadas médias.

Alguns valores das classes populares, dentro dessa lógica hierárquico-


holista, são bastante representativos. Destacarei, aqui, alguns dos eixos mais
emblemáticos caracterizadores dessa lógica particular das classes populares, como
76

traços relativos ao pertencimento familiar, à ênfase dada à localidade e às redes de


solidariedade. Por fim, focalizarei o valor atribuído ao estudo – aos processos de
educação escolarizada –, visto como meio significativo de se alcançar melhores
condições de vida.
Talvez a família seja a unidade mais básica e central no universo das classes
populares, justamente em virtude de seu papel englobante e gregário. Segundo
Duarte & Gomes (2008, p.161),

“O ente moral aqui chamado de “família” corresponde a uma rede de “parentes


entre si” que se consideram descendentes, em parte, de ancestrais comuns e que
entendem que isso lhes proporcionou também algum tipo de comunhão de
experiência de vida e de circunstâncias sócio-históricas que pode ser rememorada,
revivida, celebrada ou transmitida a outros descendentes.”

Há, assim, uma moralidade constituída em torno da questão do


pertencimento familiar. A noção de família implica a existência de laços de
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lealdade que podem extrapolar, inclusive, as relações consanguíneas. Para as


classes populares, a família não é constituída apenas de pessoas unidas por
relações de parentesco. As redes de amizade e trabalho, as relações de compadrio,
as afiliações pela mera aproximação ou pela confiança são elementos notórios que
conferem à noção de família um caráter expandido. Os “irmãos de fé”, os
“parceiros” e os “primos de consideração”, por exemplo, sugerem bem essa
dimensão ampliada da família nas classes trabalhadoras. Conforme apontam
Duarte & Gomes (2008, p.85), “há toda uma série de processos pelos quais o
pertencimento familiar pode ser “manipulado” para longe da ideologia da
consanguinidade prevalecente”.
O valor gregário associado à família nas classes populares é materializado
no próprio espaço doméstico, daí a relevância que a casa assume nessa lógica
particular. A casa é o lócus familiar por excelência. Mais que espaço físico, a casa
das/para as classes trabalhadoras assume um valor afetivo ímpar. É o lugar
sagrado do refúgio, do aconchego, da proteção; em outras palavras, é “a casa no
seu sentido mais vivencial” (Duarte & Gomes, 2008, p.85). Nesse sentido,
destaca-se a centralidade assumida pelo modelo domiciliar do “quintal”,
considerado como expressão físico-espacial mais representativa desse valor sócio-
afetivo atribuído à casa familiar. A pesquisa de Duarte & Gomes (2008) registra,
por meio de extenso material etnográfico, a posição estelar ocupada pela chamada
77

sociabilidade de quintal nas classes populares. Pelo quintal, ocorre um intenso


fluxo de pessoas diariamente. Nele, realizam-se as festas familiares e os encontros
com a vizinhança. Quando gerações descendentes de um núcleo familiar passam a
constituir novas famílias, é comum que suas casas sejam construídas no próprio
quintal por onde tanto transitaram desde a infância até a vida adulta. São os
chamados “puxadinhos”, síntese do comunitarismo e gregarismo associado à
família das classes trabalhadoras. Esse modelo específico de residência e de
sociabilidade é comumente encontrado nos vários municípios da Baixada
Fluminense, região sócio-geográfica onde os dados de minha pesquisa foram
gerados (seção 4.2).
Outro valor importante nas camadas populares é a sua intrínseca relação
com a localidade. Os membros desses grupos sociais costumam ser pessoas
enraizadas ao lugar onde moram (ao contrário da lógica do desenraizamento típica
das camadas médias, como visto na seção 3.2.1). O próprio modelo residencial do
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“puxadinho” pode ser entendido como uma evidência desse ethos da localidade e
dessa dificuldade em desenraizar-se. É bastante comum, também, que as relações
de trabalho se deem no próprio lugar onde se mora, ou em regiões próximas.
Predomina a “viração” como forma de trabalho: as pessoas “viram-se como
podem” (Duarte & Gomes, 2008, p.130) através do chamado trabalho autônomo e,
em geral, juntamente com membros de sua rede familiar. Em verdade,
família/trabalho/localidade constituem um tripé (Duarte, 1986) fundamental.

“O ethos familiar é inseparável, por sua vez, dos universos da vizinhança e do


trabalho, onde os processos de auto-regulação corporal-expressiva se impõem
imperceptivelmente, não sem contradições, hesitações e adaptações desviantes ou
criativas. Esses processos são mais nítidos em contextos de maior densidade ou
entranhamento das relações, tais como os que se podem encontrar justamente nas
vizinhanças populares e em trabalhos que pressuponham uma cooperação corporal,
presencial” (Duarte & Gomes, 2008, p.200).

Outro aspecto notório nas práticas sociais das classes trabalhadoras diz
respeito ao ethos da receptividade. Contrariando os mecanismos de
individualização representativos das classes médias, com seus projetos específicos
e ideais de progresso relativos a um futuro a conquistar, prevalecem, nas camadas
populares, a lógica da relacionalidade e a importância das redes de socorro mútuo.
A família, a vizinhança, a casa, o quintal, o bairro, todos esses entes morais são
78

construídos com base nesse ethos de receptividade que privilegia a solidariedade


local aos mecanismos mais individualistas da vida moderno-contemporânea.

“Por mais que se reconheça que os vínculos estão se esvaindo na atualidade,


sempre em oposição a um “passado” nostálgico no qual a família teria estado
unida, essa mesma referência indica a importância que ainda se atribui ao contexto
moral familiar. A rede de socorro mútuo ainda é fortemente acionada em diversas
situações” (Duarte & Gomes, 2008, p.172).

Todo esse quadro pode sugerir a existência de um verdadeiro paraíso


relacional (Duarte & Gomes, 2008) nessa visão de mundo típica das classes
trabalhadoras, na qual prevalece um sentido de comunidade, de pertencimento a
grupos de referência e de valorização dos laços humanos – tão escassos no mundo
contemporâneo (Bauman, 2003). Parece que estamos diante de um último reduto
de comunidade, o que pode provocar uma certa nostalgia em relação às unidades
gregárias que foram destituídas em virtude dos intensos estímulos
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individualizadores das sociedades moderno-contemporânea. Segundo Zygmunt


Bauman (2003, p.9),

“ ‘comunidade’ é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, a nosso alcance


– mas no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir. (...) ‘Comunidade’ é
nos dias de hoje outro nome de paraíso perdido – mas a que esperamos
ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos que podem
levar-nos até lá.”

Há que se relativizar, entretanto, essa noção de paraíso relacional,


especialmente em se tratando de classes populares no contexto social brasileiro.
Ao ser indagado a respeito dos valores de sua classe social, o membro das classes
trabalhadoras pode, sim, valer-se de um discurso de exaltação desse ethos de
receptividade e de gregarismo em oposição à impessoalidade e à indiferença que
tipificam o comportamento das classes médias. Por outro lado, outras questões
podem vir à tona, como, por exemplo, a escassez de bens materiais de sua
localidade, a precariedade na oferta de serviços públicos, o descaso dos
governantes, etc. A noção de paraíso relacional seria, assim, colocada à margem,
frente a questões mais emergenciais (leia-se materiais) na vida moderno-
contemporânea. Uma vez mais, cabe ao pesquisador social abandonar concepções
apriorísticas e partir daquilo que os nativos tornam relevante em seu discurso. Se
as classes populares são comumente caracterizadas como lócus de relacionalidade
79

e de comunitarismo, isso se deve ao fato de seus próprios membros se


apresentarem como construtores desse ethos particular.
Além disso, há que se considerar a penetração dos valores do
individualismo moderno-contemporâneo nas trajetórias das classes trabalhadoras.
Em determinados segmentos desses grupos sociais, é recorrente um ethos de
valorização do estudo, da educação, como meio de aquisição de melhores
condições de vida (conforme será melhor discutido a seguir, na seção 3.2.3).
Configura-se, aí, uma ambiguidade, uma vez que estudar, nesse sentido, pressupõe
um projeto individualizante de ascensão social que, como consequência, pode
provocar o afastamento de alguns de seus membros de sua condição social
originária. Em outras palavras, o sujeito das classes trabalhadoras, quando
investido de um projeto educacional como meio de ascender socialmente, pode
incorporar outros valores mais associados ao ethos individualista das classes
médias. Valores como a solidariedade local, a família e o apego à localidade
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poderiam, assim, estar ameaçados. O principal desafio de vários segmentos das


classes trabalhadoras na atualidade reside justamente no investimento na melhoria
de sua vida, sem com isso alterar os valores positivos da vida comunitária. Esse
desafio pode ser sintetizado nas palavras de Duarte & Gomes (2008, p.267),

“‘subir na vida’ sem alterar os aspectos considerados positivos de sua experiência


local. (...) o desejo de estabilizar suas condições de existência, expresso em
locuções do tipo ‘ficar melhor de vida’, ‘subir na vida’, ‘vencer na vida’, pode ser
considerado como sinal de um processo de auto-afirmação, mas não como a
expressão linear e literal de um desejo de ‘ascensão social’ (...) com as múltiplas
implicações de mudança de identidade e de pertencimento social que tem essa
expressão.”

A seção a seguir focalizará, em especial, o ethos de valorização da educação


como meio de ascensão social no seio das classes populares. Tomarei como ponto
de partida um diálogo com a obra de Gilberto Freyre (1936), enfatizando como
esse ethos constrói-se em um processo sócio-histórico de auto-afirmação e de
“civilização” das classes populares, segundo moldes burgueses e modernizantes.
80

3.2.3.
Escolarização e trajetórias de ascensão social nas classes populares

A pesquisa social tem apontado para um certo fascínio que exerce o ethos
do estudo, da escolarização, sobre boa parte das classes trabalhadoras (Duarte,
1986). Muitas vezes, percebendo-se abandonados à própria sorte, os membros
desses grupos sociais buscam mecanismos que os façam melhorar de vida e
sobreviver aos signos da escassez e à crescente pauperização de muitas
localidades de origem popular. O acesso aos estudos é encarado, em geral, como
uma possibilidade de se vislumbrar outros futuros possíveis de uma forma digna e
honrosa. Por vezes, lança-se um olhar mais instrumental e utilitarista ao valor do
estudo, tido como meio de inserção mais imediata no mercado de trabalho para
lidar melhor com os enfrentamentos do cotidiano (Duarte, 1986). Enfim, esse
valor atribuído à escolarização nas classes trabalhadoras é permeado por
significados múltiplos e por um percurso de ambiguidades e contradições. Se, por
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um lado, o sujeito das classes populares busca melhorar de vida pelo caminho da
educação, por outro esse investimento em sua ascensão social pode desestabilizar
a ordem relacional de seu grupo social de origem. A educação é, de alguma forma,
um projeto individualizante e civilizatório, sendo, assim, circunscrito numa óptica
modernizadora das camadas médias. Assim, para as classes trabalhadoras, “subir
na vida” por meio da educação pode dignificar o indivíduo, mas pode ser
interpretado, também, como uma traição ao seu grupo social originário.
O ethos de valorização do estudo como via de ascensão social não é um
fenômeno recente na sociedade brasileira. Nesse ínterim, creio ser relevante fazer
menção às pesquisas realizadas por Gilberto Freyre (1936), no âmbito das
Ciências Sociais. Em sua obra Sobrados e Mucambos, o autor faz um estudo
cuidadoso das relações sociais na transição do Brasil patriarcal/rural para um
Brasil moderno/urbano e, por meio de intensiva observação participante no seu
próprio meio social, faz uma análise microscópica (nos termos de Geertz, 1989)
dos mecanismos individualizadores e de aquisição de status nesse período de
transição. Entre outros eixos temáticos, o autor debruça-se sobre a questão da
ascensão social do bacharel e do mulato, vistos como “elementos de
diferenciação” (Freyre, 1936, p.711) nesse período de mudanças na estrutura
sócio-econômica brasileira. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, em decorrência de
81

uma forte valorização em torno de elementos de origem europeia, pouco a pouco


os estilos patriarcais da sociedade brasileira foram perdendo lugar. Famílias
enviavam seus filhos para importantes centros acadêmicos europeus (como
Coimbra e Marseille) e, quando estes jovens retornavam ao Brasil, “valorizados
pela educação europeia, voltavam socialmente iguais aos filhos das mais velhas e
poderosas famílias de senhores de terras” (Freyre, 1936, p.712). Emerge, assim,
um novo valor social atribuído não mais à herança dos engenhos, mas a esse
sujeito que ascende na escala social pela sua formação acadêmica. É a era dos
bacharéis moços, esses rapazes prestigiados pelo título de “doutor” cuja influência
altera sensivelmente a formação social e o caráter moral da sociedade brasileira.
Nesse processo, Freyre (1936) discute, também, a ascensão social de
mulatos pobres que se aristocratizaram e, de alguma forma, se
“embranqueceram11” em virtude de sua formação bacharelesca. Filhos de relações
extraconjugais de senhores brancos ou mesmo de famílias humildes que se
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esforçavam (a duras penas) para custear a formação acadêmica da prole, jovens


mulatos assumem prestígio social graças ao título de bacharel adquirido. Esse
prestígio passa, também, por uma espécie de ajustamento social, que incluía um
investimento de caráter civilizatório no modo de falar e vestir-se, por exemplo. A
negritude ou a mulatice “atenuavam-se”, “invisibilizavam-se” nesse contexto
social fortemente racista, o que pode ser apontado como fator condicionante para
ascensão desses “homens de cor” (Freyre, 1936, p.719). Esse processo, entretanto,
não foi de todo harmonioso. O autor aponta que, embora o mulato bacharel
gozasse das mesmas vantagens que os brancos, frequentemente percebia-se
sensível ao preconceito em virtude de sua origem racial e social. Assim, é possível
notar que essa ascensão social do mulato (que envolvia o investimento na
educação bacharelesca e a “civilização” de seu corpo e linguagem) deu-se de
forma ambígua e não resolveu questões referentes à hierarquização racial na
sociedade brasileira.

11
A questão do embranquecimento de mulatos pobres no Brasil dos séculos XVIII e XIX,
mencionada na obra de Gilberto Freyre, é cercada de controvérsia e o termo pode soar um
desserviço aos esforços contemporâneos de grupos que lutam contra o racismo e pela promoção de
condições mais justas de inserção na vida social por parte de grupos historicamente excluídos,
como é o caso da população afrodescendente. De qualquer forma, considero que a expressão
aponte para o modo como a educação formal “igualava” o mulato pobre aos aristocratas de berço,
tendo em vista o projeto modernizador e urbanizador da sociedade brasileira, até então tecida com
base nos moldes rurais e patriarcais. Essa suposta igualdade entre bacharéis (fossem eles mulatos
ou não) não eliminava, entretanto, o racismo estruturante da sociedade brasileira.
82

“Mulatos que tendo se bacharelado em Coimbra ou nas Academias do Império


foram indivíduos que nunca se sentiram perfeitamente ajustados à sociedade da
época: aos seus preconceitos de branquidade, mais suaves12 que noutros países,
porém não de todo inofensivos” (Freyre, 1936, p.728).

Em tempos mais contemporâneos, outros “mulatos” procuram orientar-se


por esse mesmo ethos de valorização do estudo como via de ascensão social. O
trabalho de Duarte & Gomes (2008), analisando as trajetórias entre gerações em
três famílias de classes populares, discute o modo como esse valor norteia boa
parte das ações e projetos de certos núcleos familiares oriundos dessas classes. Na
família Campos, por exemplo, estabelecida no município de São João de Meriti,
na Baixada Fluminense, o estudo era construído como uma possibilidade de se
conquistar um futuro melhor, de subir na vida, de auto-afirmar-se, de alcançar
uma estabilidade na esfera sócio-econômica. Em outras palavras, estudar é
sinônimo de ascender na escala social. Por outro lado, o acesso à educação formal
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de qualidade é bastante dificultado pela falta de uma rede pública de ensino


consolidada na localidade. Além disso, o precário sistema de transportes dificulta
o deslocamento a outras cidades para aquelas pessoas que, ainda assim, procuram
perseguir esse ideal de ascensão social pelos estudos. Nesse contexto, é notória a
valorização desse projeto educacional em certas unidades familiares nas classes
trabalhadoras, independente de que seus membros, efetivamente, frequentem
escolas ou faculdades para melhorarem de vida.

“Nesses núcleos [mais estabilizados] emergiu um nítido projeto educacional para


os filhos, homens ou mulheres. A ideia norteadora era que a conquista de melhores
condições de vida dependia da carreira educacional. Mesmo havendo incentivo à
entrada no mundo do trabalho, o projeto educacional preponderava como meio de
ascensão social” (Duarte & Gomes, 2008, p.140).

Como já apontado na seção anterior (3.2.2), a ocorrência desse ethos de


valorização da educação escolarizada pode se dar em um contexto de tensões e

12
Apesar de manter a citação original de Gilberto Freyre, discordo da noção defendida pelo
autor (e fortemente difundida no Brasil contemporâneo, seja no senso comum ou mesmo na
academia) de que o racismo no Brasil é mais suave que em outros países. Creio que o racismo no
Brasil assume contornos bastante sérios justamente por maquiar-se do discurso da democracia
racial, gerando o enfraquecimento da discussão sobre as relações etnicorraciais, além de impactos
devastadores na sociedade brasileira (haja vista o ainda muito reduzido número de
afrodescendentes matriculados no Ensino Superior e a forte relação existente entre pobreza e
negritude).
83

ambiguidades, uma vez que a própria unidade agregadora típica das classes
trabalhadoras estaria ameaçada. Muitos segmentos dessas classes investem em
projetos de escolarização a fim de que possam alcançar posições mais prestigiosas
na sociedade. O resultado desse processo pode incidir sobre a migração de uma
classe social para outra (mais especificamente, para as camadas médias) e todas as
implicações decorrentes dessa trajetória de mobilidade. Ao ascender às camadas
médias, o sujeito oriundo das classes populares teria se metamorfoseado (Velho,
1994) e se convertido a uma ética mais individualista, típica dos discursos
modernizadores de ordem burguesa. Por outro lado, nesse processo de
metamorfose, é possível que se resguardem marcas identitárias do seu grupo
social de origem. Instaura-se, assim, uma espécie de paradoxo: o sujeito das
classes populares que ascende socialmente pela via da escolarização percebe-se
como um indivíduo diferente de sua comunidade de origem, porém não se torna,
necessariamente, um “igual” entre os membros das camadas médias já
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estabelecidas. Trata-se de um sujeito in media res13: híbrido, mestiço, em processo


de mobilidade, com “um pé lá e outro cá”. Interpreto esse fenômeno como uma
situação muito semelhante à do mulato de Gilberto Freyre (1936): mesmo tendo
estudado na Europa e vestindo-se com roupas de seda, o bacharel mulato continua
sendo mulato. Nesse sentido, assim como apontam Duarte & Gomes (2008), creio
que essa trajetória de ascensão social e auto-afirmação se dê em um nível de
pertencimento relativo e que “jamais pode consistir num afastamento absoluto da
relacionalidade” (Duarte & Gomes, 2008, p.263).
Acredito que essas reflexões acerca dos valores e visões de mundo das
classes populares, mormente no que concerne ao ethos de valorização dos estudos
como meio de melhoria de vida, serão bastante elucidativas para a análise dos
dados de entrevistas orais com alunos da UnED de Nova Iguaçu. Nesse contexto,
investigo em que medida, nas narrativas desses alunos, elementos no nível do
discurso constroem esse ethos de ascensão social via escolarização, permeado pela
coexistência de valores individualistas e de relacionalidade local.

13
Expressão latina que significa “no meio das coisas”. Trata-se de uma técnica literária por
meio da qual a narrativa tem início “no meio da história”, com os acontecimentos já em sequência.
No presente trabalho, utilizo a expressão como metáfora para referir-me a esse sujeito em processo
e cuja identidade é híbrida, móvel e contraditória.
84

3.2.4.
A(s) moralidade(s) das classes trabalhadoras: fronteiras entre “nós”
e “eles”

Antes de passar ao próximo capítulo do presente trabalho, creio que valha a


pena ainda uma última palavra acerca dos estudos sobre classes trabalhadoras no
âmbito das Ciências Sociais. Trago à baila, assim, o trabalho de Lamont (2000),
cujo enfoque incidiu sobre os esquemas de avaliação utilizados por membros das
classes trabalhadoras no estabelecimento de comunidades morais e modelos
culturais de pertencimento. A autora realizou sua pesquisa com base em
entrevistas feitas com trabalhadores (todos eles, homens) nos Estados Unidos e na
França e observou aspectos que, em certa medida, se aproximam dos resultados
encontrados nos estudos sobre classes populares no contexto brasileiro, como
apontam os trabalhos até aqui arrolados (Duarte, 1986; Duarte & Gomes, 2008).
Alguns valores relacionados à importância dada à dignidade, à família e ao
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trabalho figuram na fala dos trabalhadores entrevistados por Lamont. Entretanto,


há diferenças sensíveis em relação ao contexto brasileiro. A pesquisa de Lamont,
por exemplo, aponta que o estabelecimento desses valores morais é atravessado,
principalmente, por questões identitárias ligadas à raça e, nesse sentido, são
construídas fronteiras morais que definem limites entre os trabalhadores brancos e
negros, no contexto estadunidense, e os franceses e imigrantes norte-africanos, no
contexto francês. Além disso, a educação formal e a escolarização, vistas por boa
parte das classes populares brasileiras como caminhos dignos e legítimos de
ascensão social, não assumem posição estelar no universo dos entrevistados de
Lamont, como veremos a seguir.
Lamont (2000) interessa-se pelo mundo das classes trabalhadoras segundo o
olhar lançado pelos seus próprios membros sobre esse universo. Assim é que
busca investigar os mapas mentais empregados pelos entrevistados, ou seja, “a
gramática de avaliação que eles [os trabalhadores] usam” (Lamont, 2000, p.4), a
fim de localizar que moralidade(s) é(são) construída(s) por esses sujeitos.
Primeiramente, destaca-se o valor atribuído à auto-disciplina e à integridade
pessoal como noções definidoras do próprio conceito de felicidade para esses
grupos. Segundo Lamont (2000, p.3),
85

“A moralidade está geralmente no centro dos mundos desses trabalhadores. Eles


localizam seu mérito na sua habilidade de auto-disciplina e de condução de uma
vida responsável e humanitária, garantindo ordem para si mesmos e para os outros.
Esses padrões morais funcionam como uma alternativa às definições econômicas
de sucesso.”

A noção de self disciplinado é central na tessitura de outros atributos morais


fortemente valorizados por essa cultura. Para esses trabalhadores, por exemplo, a
felicidade reside no estabelecimento de relações sociais agradáveis e harmoniosas
com os indivíduos que transitam por seu cotidiano, especialmente amigos e
familiares. Essas relações sociais amigáveis só se fazem possíveis, segundo esses
trabalhadores, na dependência de o sujeito ser íntegro, digno, fiel aos seus
princípios mesmo diante das situações mais adversas. “A desonestidade é vista
como um estigma uma vez que ‘rebaixa as pessoas’” (Lamont, 2000, p.44). O self
disciplinado é o que garantirá aos homens desses grupos sociais a superação de
obstáculos em momentos de dificuldade e de incertezas. Emerge, dessa noção,
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outro valor importante para esses trabalhadores: a luta, a firmeza, a capacidade de


não se render diante dos percalços do cotidiano. Nas palavras de Lamont (2000,
p.23), “eles não se rendem, não desistem, e é principalmente pelo trabalho e pela
responsabilidade que eles impõem o controle sobre a incerteza”.
O valor atribuído à luta é compreendido, inclusive, como integrante de uma
coletividade, mesmo porque as dificuldades vivenciadas pelos membros dessas
classes trabalhadoras também são construídas como algo comum a todos. Se os
obstáculos são os mesmos para todos, logo a luta empreendida deve ser vista
também como a mesma. Segundo Lamont (2000, p.23), “a identidade coletiva (...)
é articulada em torno de sua luta para “superar” e manter seu mundo firme diante
da incerteza econômica, dos perigos físicos e da imprevisibilidade da vida”. A
autora destaca, inclusive, que alguns participantes de sua pesquisa atribuem as
dificuldades vivenciadas em termos econômicos ao fato de não terem podido
cursar uma faculdade (o que poderia, em tese, ter-lhes garantido uma vida mais
tranquila).

“Nas entrevistas, os trabalhadores em geral destacavam seu poder limitado no


mercado ou de oportunidades na vida devido à ausência de uma formação
universitária. Uma experiência partilhada de ‘luta’ está no centro da identidade
coletiva e da comunidade simbólica desses trabalhadores: parece ser o que os
unifica. Eles dizem que tiveram que lutar com unhas e dentes para chegar onde
estão, principalmente porque não foram para a faculdade.” (Lamont, 2000, p.10)
86

Boa parte dessa luta é empreendida em nome de uma entidade nuclear na


moralidade das classes trabalhadoras: a família. Assim como no contexto
brasileiro (Duarte, 1986; Duarte & Gomes, 2008), a família é apresentada como
ente estreitamente ligado às redes de sociabilidade e à localidade. A essas noções,
porém, os entrevistados de Lamont somam outro valor moral: a visão de que todo
sacrifício investido em nome da família é sinônimo de status. Os trabalhadores se
veem como provedores naturais no sustento e proteção da família. Cumprir à risca
essa responsabilidade enobrece a integridade pessoal desses sujeitos e reforça o
valor atribuído à luta e à não-rendição do self disciplinado. Nas palavras de
Lamont (2000, p.30), “a família é o domínio da vida pelo qual esses trabalhadores
se responsabilizam e ganham status por isso”. É por ela que o trabalhador se
esforça, se sacrifica e trabalha.
Outro atributo fortemente valorizado por esse grupo social diz respeito à
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ética do trabalho, “construída como uma questão de honra e um recurso essencial


de mérito pessoal” (Lamont, 2000, p.24). Além disso, “o trabalho torna-se uma
ocasião para mostrar competência e uma fonte de orgulho” (Lamont, 2000, p.26).
A autora localiza a importância desse ethos particular nas origens do
Protestantismo, do liberalismo e da democracia, para os quais o trabalho árduo é
tido como base fundamental para a consolidação da cidadania e de uma economia
útil e produtiva. Trata-se de uma perspectiva que atribui ao trabalho um valor
dignificante, pois é através dele que o trabalhador mostra como quer ser visto pela
sociedade que o cerca: como alguém competente e orgulhoso do que faz. Dentro
dessa concepção, o trabalho é construído como único caminho que garantirá aos
trabalhadores a mobilidade social ascendente, entendida pelos sujeitos da pesquisa
de Lamont como a aquisição de bens materiais. Nesse sentido, é possível observar
certo contraponto em relação às pesquisas de Duarte (1986) e Duarte & Gomes
(2008) sobre as classes populares no contexto brasileiro, para as quais a educação
formal é que oportunizaria aos filhos desses segmentos a possibilidade de
afastamento da condição social original e de melhoria de vida. Para as camadas
populares brasileiras, a noção de ascensão social é valorizada bem mais pelo seu
aspecto simbólico que material. Para os entrevistados de Lamont, entretanto, a
aquisição material e o conhecimento aprendido no cotidiano (o know-how)
87

figuram numa posição hierarquicamente superior à educação formal


escolarizada/universitária.

“Esses homens também ranqueiam a educação formal em um nível inferior à


competência, ao know-how e até mesmo ao senso comum (...). Esses atributos são
também mais importantes que o conhecimento formal no que tange ao
fornecimento de vantagens e respeito no local de trabalho, visto que os
trabalhadores são, de fato, excluídos de posições que requeiram uma educação
universitária.” (Lamont, 2000, p.104)

Na pesquisa de Lamont, portanto, o “subir na vida” se faz pelo acúmulo de


capital e o trabalho é apresentado como o meio dignificante de se atingir tal fim.
Ainda que, por vezes, esses trabalhadores atribuam à formação universitária
alguma importância, esta parece ser uma construção mais valorizada pela
chamada classe média alta estadunidense e francesa. Como sugere a autora, para
os homens do universo por ela pesquisado, a vida parece já estar pré-concebida e
seus rumos seguem uma lógica una e estável, ao contrário do que proclama a
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chamada pós-modernidade.

Estes não são homens pós-modernos que se recriam a cada manhã: suas vidas
seguem dentro de parâmetros claramente definidos, em redes que eles conhecem a
partir de um ângulo interno e que são definidas como notavelmente estáveis.”
(Lamont, 2000, p.11)

Lamont sintetiza os resultados de sua pesquisa apontando que, no universo


das classes trabalhadoras, quatro elementos-chave são notórios:

“(1) ser trabalhador e responsável como meio de assegurar um ambiente previsível


para si próprio e para os outros; (2) sustentar e proteger a família; (3) ser franco,
direto, e ter integridade pessoal; e (4) respeitar a religião e outras formas
tradicionais de moralidade.” (Lamont, 2000, p.20)

Há que se ressaltar, entretanto, que a construção desses sistemas de


moralidade(s) envolve tensões, contradições e o estabelecimento de fronteiras
identitárias entre grupos sociais que, a um primeiro olhar, poderiam até ser vistos
como uma cultura única. O trabalho de Lamont aponta que os trabalhadores
entrevistados delineiam uma cisão entre o “nós” e o “eles”, entre as “pessoas
iguais a mim” e os “outros”. Essa separação, mais que mero estabelecimento de
semelhanças e diferenças entre grupos dentro desse amplo universo denominado
88

“classes trabalhadoras”, constitui uma fronteira moral que aloca os ditos “dignos”
de um lado e os ditos “indignos”, do outro. Nesse sentido, a pesquisa de Lamont
aponta para o modo como as noções de mérito e dignidade podem ser construídas
de formas distintas, em função das relações de semelhanças e diferenças tecidas
pelos membros de um grupo sobre si próprios e sobre seus respectivos “outros”.
No contexto estadunidense, por exemplo, os trabalhadores brancos constroem sua
moralidade em oposição aos valores dos trabalhadores negros. Já na França, “os
verdadeiros “outros” [para os trabalhadores franceses] não são os negros ou os
pobres, mas os imigrantes do Norte da África, que são percebidos como pessoas
culturalmente incompatíveis com os valores franceses” (Lamont, 2000, p.6). Boa
parte dos valores associados às noções de mérito, responsabilidade e auto-
disciplina é construída e avaliada com base em relações racistas, o que implica
dizer que chegar às comunidades morais do mundo das classes trabalhadoras
envolve a observação das tensões e contradições envolvidas no estabelecimento
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dessas fronteiras.
Considero que o estudo empreendido por Lamont assume relevância por dar
visibilidade ao modo como as identidades de classe social ainda ocupam um lugar
bastante significativo na sociedade, contrariando uma vertente contemporânea de
que estaríamos vivendo um declínio da importância da consciência de classe.
Concluo citando a própria autora, que chama atenção para o perigo de incorrermos
em uma miopia social ao negligenciarmos as construções sociais, esquemas de
avaliação e redes de pertencimento das classes trabalhadoras no mundo atual.

“...é crucial que se ouçam suas vozes, especialmente em um momento no qual a


classe média alta torna-se cada vez mais isolada social e geograficamente de outros
grupos. Esse isolamento pode promover uma miopia social, fazendo com que seja
crescentemente difícil que os acadêmicos e os definidores de políticas vejam como
são diferentes os seus [das classes trabalhadoras] entendimentos particulares sobre
o mundo.” (Lamont, 2000, p.2)

Passo, agora, à descrição do contexto em que os dados etnográficos e de


entrevistas orais foram gerados, bem como à caracterização do tipo de
metodologia investigativa que orienta o presente trabalho.
4
Metodologia e Contexto de Pesquisa

“Entendemos por pesquisa a atividade básica das


Ciências na sua indagação e descoberta da realidade. É
uma atitude e uma prática teórica de constante busca
que define um processo intrinsecamente inacabado e
permanente. É uma atividade de aproximação sucessiva
da realidade que nunca se esgota, fazendo uma
combinação particular entre teoria e dados.”( Mª
Cecília de Souza Minayo)

Assim compreendida, a pesquisa é um processo de construção de um


caminho que busca compreender uma dada realidade ou um objeto de estudo,
apoiado em determinados pressupostos epistemológicos e teóricos, e, portanto,
nunca é neutro e sempre incompleto.
Com base nessa concepção, apresento neste capítulo a minha opção por
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fazer uma pesquisa qualitativa, utilizando o estudo de caso de inspiração


etnográfica como suporte metodológico para investigar as relações entre surdos/as
e ouvintes numa escola inclusiva. Descreverei também o contexto de pesquisa e o
processo de coleta de dados para a realização do presente trabalho.

4.1
O estudo de caso de inspiração etnográfica

“A investigação é um processo educativo, não apenas


pelo que se descobre acerca dos outros, mas pelo que se
descobre acerca de nós mesmos.” (Peter Woods).

Considerando que toda investigação científica é uma produção discursiva,


situada inexoravelmente no quadro de paradigmas, cujos fundamentos
epistemológicos baseiam-se em “concepções relativamente estabilizadas sobre o
sujeito, o objeto e as relações entre sujeito e objeto do conhecimento” (Sarmento,
2003:141), a opção por um método de pesquisa orientado pelo paradigma
interpretativista58, em oposição ao paradigma positivista, que predominou durante
muito tempo na análise dos fenômenos sociais a partir de um modelo das Ciências

58
O paradigma interpretativista também é denominado de paradigma hermenêutico,
fenomenológico ou qualitativo.
99

Naturais, justifica-se pelo caráter subjetivo e interdependente entre sujeito e objeto


de conhecimento nas Ciências Sociais.
Em oposição ao paradigma positivista, que pressupõe uma distinção radical
entre o sujeito e o objeto de conhecimento e utiliza fundamentalmente métodos
quantitativos e experimentais em busca de uma verdade científica universal, o
paradigma interpretativista, cujas origens remontam ao final do século XIX,
entende que a realidade é construída por interpretações do real feitas pelos
indivíduos nos contextos sociais em que ocorrem (Sarmento, 2003)

“Assim o conhecimento científico dos fatos sociais resulta de um trabalho


de interpretação, o qual só é possível mediante uma interação entre o
investigador e os atores sociais, de forma a poder reconstruir-se a
complexidade da ação e das representações da ação social” (Ibid:142).

Não aceitando a realidade como algo externo aos sujeitos, o paradigma


interpretativista rejeita a formulação de leis universais para explicar a complexidade
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dos fenômenos sociais e afirma que as várias interpretações do real só são possíveis
mediante a relação intersubjetiva entre sujeito e objeto de conhecimento. Para tal,
utiliza preferencialmente metodologias qualitativas e participativas.
A pesquisa do tipo qualitativo, segundo Bogdan e Biklen (apud
Lüdke&André, 1986:13) “envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no
contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo
que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes”.
A partir de 1980, a abordagem qualitativa, originária da Antropologia e da
Sociologia tem sido muito utilizada em pesquisas educacionais, pois possibilita a
compreensão dos significados que tecem as relações e o dinamismo interno das
situações analisadas ao considerar os pontos de vista de todos os participantes em
suas interações e influências recíprocas, geralmente inacessíveis ao observador
externo (André, 2003).
Entre os vários os tipos de pesquisa de abordagem qualitativa (relatos de
experiência, história de vida, pesquisa histórica, pesquisa-ação) a pesquisa do tipo
etnográfico e os estudos de caso têm um papel de destaque.
O estudo de caso de inspiração etnográfica, opção assumida nesse trabalho,
define-se, portanto, como uma pesquisa qualitativa de abordagem
interpretativista, cujas características apontadas por vários autores foram assim
sintetizadas por André ( 2003:52):
100

“Podemos dizer que o estudo de caso deve ser usado: (1) quando se está
numa instância em particular, numa determinada instituição, numa pessoa,
ou num específico programa ou currículo; (2) quando se deseja conhecer
profundamente esta instância particular em sua complexidade e em sua
totalidade: (3) quando se estiver mais interessado naquilo que está
ocorrendo e no como está ocorrendo do que nos seus resultados; (4)
quando se busca descobrir novas hipóteses teóricas, novas relações, novos
conceitos sobre um determinado fenômeno; e (5) quando se quer retratar o
dinamismo de uma situação numa forma muito próxima do seu acontecer
natural”.

Nesse sentido, o estudo de caso permite um estudo específico de uma


instituição, um indivíduo, uma família ou uma comunidade, por meio de
diferentes técnicas de pesquisa, levando em conta os pontos de vistas de todos os
componentes com o objetivo de apreender a totalidade e descrever a
complexidade de uma situação concreta não alcançado por uma análise estatística.
Como afirmam Lüdke & André (1986) ao retratar o cotidiano escolar em
toda a sua riqueza, esse tipo de pesquisa traz uma grande contribuição para a
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compreensão do papel da escola e suas relações com as outras instituições da


sociedade.
Quanto à abordagem etnográfica nas pesquisas, esta não deve ser
entendida apenas como uma técnica de coleta de dados, mas como uma
aproximação com a teoria antropológica, exigindo do pesquisador, preocupado
com o rigor de suas análises, um conhecimento das discussões e das concepções
teóricas desse campo, como afirma Rockwell (1989:35).

“Ao adotar a etnografia no campo da pesquisa educacional, é importante


não aceitá-la como uma simples técnica, mas como uma opção
metodológica, no sentido de que todo método implica uma teoria. Retomar
essa tradição antropológica exige que se faça consciente uso da teoria, em
vez de negar a presença de pressupostos teóricos da descrição”.

O uso de etnografias em pesquisas educacionais, iniciado na década de 70,


nos EUA e Inglaterra, significou a aproximação com a Antropologia e a
Sociologia qualitativa e o rompimento com os paradigmas dominantes baseados
na Psicologia experimental e na Sociologia quantitativa. Tal ruptura provocou
discussões teóricas sobre a adoção dessa nova abordagem nas linhas de pesquisa
e, por isso, convém situá-la, inicialmente no contexto da própria disciplina da qual
é originária: a Antropologia.
101

De origem grega, etnografia significa o estudo da descrição de um povo. No


sentido antropológico pode ser definida como:

“A etnografia consiste na observação e análise de grupos humanos


considerados na sua especificidade e pretende a restituição, tão fiel
quanto possível, da vida de cada um deles, enquanto a etnologia utiliza de
forma comparativa os documentos apresentados pelo etnógrafo. ”( Lévi-
Strauss, apud Birou 1976:154).

Assim entendida, a etnografia assemelha-se a uma janela utilizada pelo


antropólogo para observar as relações e tipos de comportamento de um
determinado grupo e explicá-los numa perspectiva cultural mais ampla.
Geertz (1989), antropólogo norte-americano contemporâneo, atualiza essa
relação estreita entre a abordagem teórica e a descrição etnográfica, quando diz:

“Em antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que


os praticantes fazem é a etnografia. E é justamente ao compreender o que
é etnografia ou mais precisamente o que é a prática da etnografia, é que
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se pode começar a entender o que representa a análise antropológica


como forma de conhecimento. Devemos frisar, no entanto, que essa não é
uma questão de métodos. Segundo a opinião dos livros-textos, praticar
etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever
textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim
por diante. Mas não são essas coisas que definem o empreendimento. O
que define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco
elaborado para uma“descrição densa”, tomando emprestada uma noção
de Gilbert Ryle.(Ibid:.15).

Sob o ponto de vista semiótico, como mencionado na seção 2.5, Geertz


define cultura como uma “teia de significados” (Ibid:15), considerando a
Antropologia, a ciência que interpreta esses significados e a etnografia, o método
utilizado para estudá-la.
A definição de etnografia como um método de “descrição densa”, e não
apenas como uma “mera descrição”, traz em si a necessidade de uma
interpretação que traduza os significados das relações, ações e dos ritos humanos,
o que torna inevitável a relação com a teoria.
Ao responder “O que está acontecendo aí?”, questão própria da
Antropologia, o uso de etnografias em pesquisas educacionais possibilita a
construção de uma outra forma de problematizar os fenômenos sociais e
educacionais, a partir da introdução de conceitos teóricos desse campo, como a
alteridade e o relativismo.
102

“Esse movimento flexibiliza o afã homogeneizador, próprio de certos


profissionais da educação, através do distanciamento de posturas
reificadoras e etnocêntricas, pelo exercício do estranhamento, no qual são
afastados os conhecimentos estereotipados provenientes do senso comum e
exercitada a postura antropológica ”. (Dauster, 2003).

O “mergulho na cultura” para captar o “ponto de vista do nativo”, como nos


recomenda Malinowski (1978) tem o objetivo de revelar outras formas de
representar e organizar o real, além de olhar o outro na sua positividade. A ênfase
numa atitude de estranhamento e no abandono do etnocentrismo ampliam a
compreensão do educador em relação à diferença e à especificidade das relações e
das situações dentro e fora da escola.
Portanto, a riqueza dialética da Antropologia que busca o universal a partir
do específico e o valor da etnografia, reconhecida como uma opção teórico-
metodológica, construída na relação entre a prática do trabalho de campo e a
teoria antropológica, têm muito a contribuir nas pesquisas sobre a diversidade na
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escola e na investigação de como os alunos “classificam, organizam e


representam suas experiências”(Velho, 1980).
Com base nas características do estudo de caso e da etnografia apresentadas
por Lüdke e André (1986), podemos identificar algumas afinidades entre esses
dois tipos e pesquisa, tais como:
A importância da descoberta ou da redescoberta do problema no campo, ou
seja, o pesquisador parte de um quadro teórico inicial, que serve de base, ficando
atento a novos elementos que surjam, pois “o conhecimento não é algo acabado,
mas uma construção que se faz e refaz constantemente” (Ibid:18)
A presença direta do pesquisador no contexto é fundamental para
compreender e interpretar os fatos, percepções, comportamentos e interações entre
os atores sociais do grupo observado.
A realidade é retratada de modo a evidenciar a inter-relação dos seus
componentes, o que exige um mergulho profundo do pesquisador para
compreender os significados das regras, dos costumes, dos gestos, convenções do
grupo observado.
O uso de vários métodos de coleta de dados obtidos em diferentes fontes e
em momentos diversos de modo a validar ou não hipóteses por meio do
cruzamento das informações.
103

A possibilidade de realizar generalizações naturalísticas na medida que o


leitor pode associar dados da pesquisa às suas experiências pessoais, estabelecer
relações entre a situação estudada e outros contextos e gerar novas idéias e
compreensões.
A coleta de grande quantidade de dados primários possibilita iluminar os
diferentes pontos de vistas dos participantes com base na premissa de que “a
realidade pode ser vista sob diferentes perspectivas, não havendo uma única que
seja mais verdadeira”. (Ibid:20).
Assim como na etnografia, o caso vai sendo construído ao longo de processo
de estudo. Não há delimitações rígidas entre o estar e o sair do campo. O embate
entre a observação e a análise se dá durante toda a pesquisa. Do mesmo modo, a
linguagem utilizada no relato deve ser de fácil acesso para que o leitor possa
interpretar o estudo de caso ou a etnografia como se fosse um membro do grupo.
Em resumo, o que caracteriza um estudo de caso de cunho etnográfico é que
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seja um estudo de uma unidade com limites bem definidos, que preencha os
requisitos da etnografia ( André, 2003)

“De qualquer maneira o estudo de caso enfatiza o conhecimento do particular. O


interesse do pesquisador ao selecionar uma determinada unidade é compreendê-la
como uma unidade. Isso não impede, no entanto, que esteja atento ao seu contexto
e às suas inter-relações como um todo orgânico, e à sua dinâmica como um
processo, uma unidade em ação” (Ibi:31).

Considerando que a escolha do tipo de pesquisa deve se adequar à


concepção teórico-metodológica e ao objeto de estudo do pesquisador/a, minha
opção pelo estudo de caso de cunho etnográfico deveu-se ao fato dessa
metodologia de pesquisa responder ao objetivo central desse trabalho de
investigar as relações e interações entre surdos/as e ouvintes numa escola
inclusiva sob uma perspectiva intercultural, por meio de um estudo detalhado de
um determinado universo com limites definidos e historicamente situados, que
permitem a descoberta de novas formas de entendimento da realidade e
possibilita que outros/as leitores/as ampliem e aprofundem os aspectos comuns e
recorrentes do objeto de estudo em diferentes contextos.(Lüdke&André, 1986)
A abordagem etnográfica, com base na teoria antropológica, também
possibilita a leitura e a interpretação dos traços culturais e dos significados das
relações sociais, especialmente em situações sem registros escritos e onde o outro
104

é visto na sua diferença e positividade. Tal característica é um valioso instrumento


teórico e metodológico para o estudo da comunidade surda, por ser a Língua de
Sinais, até o momento, uma língua ágrafa, e pela própria imagem social da pessoa
surda, geralmente caracterizada por sua carência e privação.
O fato do estudo de caso, por meio de diferentes técnicas de pesquisa,
permitir o relato das perspectivas dos participantes sobre uma situação concreta
vivida pelos alunos/as surdos e ouvintes, professores/as e intérpretes numa escola
inclusiva foi mais um motivo que me levou a optar por esse tipo de pesquisa na
presente investigação.
Em virtude da necessidade de cumprir as exigências de fidedignidade e
validade do estudo de caso etnográfico, André (2003) dialogando com diversos
autores, afirma que o/a pesquisador/a deve apresentar as interpretações que os
diversos grupos ou indivíduos têm sobre uma mesma situação, explicitar os
métodos e procedimentos usados na coleta de dados, confrontar os dados obtidos
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nos diferentes instrumentos de pesquisa utilizados e, a partir de uma visão inicial


ampla da situação observada, procurar, no decorrer da pesquisa, focalizar
progressivamente os aspectos específicos que serão aprofundados na coleta e na
análise de dados.
Quanto à capacidade de generalização, essa mesma autora aponta que a
descrição densa, ou seja, o fornecimento de informações bem detalhadas do
contexto de estudo é fundamental para que o leitor faça uma análise das
semelhanças e diferenças que permitam fazer a comparação ou a transferência da
situação estudada para outras situações.(Ibid)
Essas recomendações orientaram a coleta e a análise de dados desse estudo
de caso sobre as relações entre surdos/as e ouvintes em uma escola inclusiva.
Nas próximas seções apresentarei o processo de coleta de dados e o contexto
em que se realizou essa pesquisa.
105

4.2
A coleta de dados

“O fundamental é estar aberto às surpresas, ao


imprevisível e ao imponderável que emergem do
trabalho de campo, mesmo que isso nos obrigue a rever
nossos conceitos e a refazer o caminho trilhado.”
(Rosália Duarte)

O trabalho de campo desse estudo foi realizado por um período de seis


meses, de abril a setembro de 2005. Para tal, utilizei os seguintes instrumentos de
pesquisa: a observação participante, desenvolvida nas salas de aula, mas também
em outros espaços, tais como: a quadra de esportes, o pátio, refeitório, corredores
e a sala dos/as professores/as, e trinta e sete entrevistas semi-estruturadas
individuais, realizadas com dez professores/as, dez alunos/as ouvintes, dez
alunos/as surdos/as e sete intérpretes de LIBRAS.
Em relação à observação participante, ciente de que a presença do/a
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pesquisador/a altera e influencia o ambiente, é importante estar atento às questões


éticas e ter um informante que lhe garanta o conhecimento dos códigos e regras do
grupo, a fim de atenuar o caráter invasivo de sua presença. Por outro lado,
também não se pode perder a atitude de estranhar o familiar, como nos recomenda
Velho (1997), essencial para a compreensão dos sentidos de organização, dos
comportamentos e das ações humanas. Nesse momento a habilidade do
pesquisador será muito exigida no sentido de que a sua participação no campo não
altere muito as relações e atitudes do grupo.
Ciente dessas questões, passei as três primeiras semanas do trabalho de
campo observando as interações e as atividades que ocorriam no pátio, na quadra,
no refeitório, me apresentando e conversando informalmente com os
professores/as e alunos/as, atenta às questões éticas e às informações que auxiliam
o conhecimento das regras de convivência do grupo.
Passado esse momento inicial de apresentação e aproximação com o campo,
quando minha presença foi aceita e havia despertado o interesse de
alguns/algumas professores/as, iniciei as observações nas salas de aula.
As observações foram registradas no caderno de campo e em três
oportunidades realizei filmagens de dinâmicas na sala de aula.
106

As entrevistas semi-estruturadas e individuais, realizadas dois meses após o


início das observações, permitiram aos/às informantes atitudes mais livres e
espontâneas necessárias ao enriquecimento da investigação e revelaram
informações importantes sobre os acontecimentos, normas de comportamento e
formas de pensar do grupo.
As entrevistas com os ouvintes, alunos/as, professores/as e intérpretes,
foram gravadas em fitas de áudio, perfazendo um total de vinte e sete horas de
gravação, transcritas posteriormente.
As entrevistas com os alunos/as surdos/as foram filmadas em fitas de áudio e
vídeo, tendo em média uma hora e meia de gravação cada uma, totalizando cerca de
quinze horas de filmagem, traduzidas, posteriormente, para fitas de áudio.
As filmagens dos depoimentos dos/as alunos/as surdos/as e das dinâmicas
de sala de aula são fundamentais para captar os sentidos e os significados
transmitidos pela Língua de Sinais, que por ser uma língua de modalidade visual e
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espacial, as mãos, a expressão facial e os movimentos do corpo são importantes


para a compreensão do que é dito.
Em relação às entrevistas individuais gravadas em áudio com os/as
informantes ouvintes foi preciso superar a dificuldade de tempo e de espaço na
escola para que elas ocorressem com a tranqüilidade necessária, pois, na maioria
das vezes, tanto os/as informantes como todas as dependências da escola estavam
ocupados/as. Felizmente, contei com a boa vontade da direção e de todos os
sujeitos dessa pesquisa que se dispuseram a aproveitar os tempos vagos ou
agendar encontros antes ou depois das aulas, ou até mesmo em outros locais para
que fosse possível realizá-las.
Quanto às entrevistas com os alunos/as surdos/as, apesar de atuar há mais de
vinte anos na educação de surdo/as não me senti segura para realizá-las sem a
presença de uma intérprete de LIBRAS, que no caso foi a própria professora
responsável pela coordenação dos/as intérpretes e que atuava como elo de ligação
entre os/as alunos/as surdos/as, a direção e o corpo docente. Sua colaboração foi
inestimável. Após discutirmos a forma apropriada para interpretar o roteiro da
entrevista em Língua de Sinais, ela as realizava, enquanto eu filmava e fazia as
intervenções necessárias para confirmar ou aprofundar determinadas colocações.
Como para realizar as entrevistas com os alunos/as surdos/as dependia da
presença da intérprete, de um local apropriado para as filmagens e, que em algumas
107

ocasiões fossem liberados/as das aulas, contei, mais uma vez, com a colaboração da
direção, dos/as professores/as e dos/as próprios/as entrevistados/as.
Também em relação às filmagens nas salas de aula, cabe considerar, que
além da necessidade de permissão de todos os participantes para fazê-la e das
perturbações que acarretam, naturalmente, no desenvolvimento da aula, tive
dificuldades de registrar simultaneamente os contextos de interação de forma a
incluir todos os participantes – professor/a, intérprete, alunos/as surdos/as e
ouvintes. Na impossibilidade de manter a filmadora fixa, vivendo o dilema de
filmar ou anotar e diante do constrangimento de alguns/algumas professores/as,
intérpretes e alunos/as, optei por restringir esse procedimento de coleta de dados à
apenas três filmagens de dinâmicas de sala de aula, que serviram para
complementar as informações dos depoimentos das entrevistas e das observações
sobre o papel do/a intérprete na interação entre o/a aluno/a surdo/a e o professor/a.
Finalizadas as entrevistas com os/as alunos/as surdos/as contei com o trabalho de
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outra intérprete que as traduzia em áudio, enquanto assistíamos juntas os vídeos.


Considerando, com base em Arrojo (2002) que toda tradução não apenas
carrega os significados de uma língua para outra, mas é uma “atividade produtora
de significados” na medida que traduzir significa necessariamente aprender a ler
um determinado texto de forma aceitável para a comunidade cultural da qual
participa o/a leitor/a, ou seja, nunca é fiel ao texto original, pois “cada tradução
(por menor e mais simples que seja) exige do tradutor a capacidade de
confrontar áreas específicas de duas línguas e de duas culturas diferentes e esse
confronto é sempre único, já que suas variáveis imprevisíveis”(Ibid: 78), assumo
o risco de reescrever a tradução das entrevistas dos/as alunos/as surdos/as em
Língua Portuguesa.
Quanto à quantidade de entrevistas realizadas, o número estipulado
inicialmente mostrou-se satisfatório, quando após as transcrições das falas dos/as
ouvintes e das traduções dos depoimentos dos/as surdos/as foi possível identificar
padrões simbólicos, categorias de análise da realidade e visões de mundo do universo
em questão e as recorrências atingem um “ponto de saturação” (Duarte, 2002).
Complementando a apresentação dos procedimentos e do contexto dessa
pesquisa, apresento o contexto e os atores sociais que me acompanharam nesse
percurso.
108

4.3
O contexto pesquisado

Esta pesquisa foi realizada numa escola pública de Ensino Fundamental e


Médio, localizada num bairro da zona norte da cidade do Rio de Janeiro, que
funciona no horário noturno.
A escolha dessa escola se deveu ao fato de que em 2004, época da
elaboração do projeto dessa pesquisa, ela era uma das poucas escolas públicas do
Grande Rio que atendia ao objetivo central desse trabalho: investigar as relações
entre surdos/as e ouvintes em um modelo de inclusão escolar ainda pouco
estudado que busca articular o direito à igualdade e à diferença, mediante a
atuação de intérpretes de LIBRAS na sala de aula e nos demais espaços e
atividades propostas pela escola.
Por uma feliz coincidência, uma colega de turma do mestrado era professora
dessa escola e se ofereceu para me apresentar ao diretor.
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Tão logo chegamos à escola, ainda no pátio de entrada, tive a satisfação de


reencontrar vários/as ex-alunos/as do Instituto Nacional de Educação de Surdos e
um professor com quem havia trabalhado há alguns anos atrás.
Fui bem recebida pelo diretor, que demonstrou o seu entusiasmo com a
implementação da inclusão dos/as alunos/as surdos/as e aceitou o meu projeto de
pesquisa.
Minha entrada na escola também foi facilitada pela empatia com a
professora responsável pela coordenação dos intérpretes, que também atuava
como um elo de ligação entre os/as alunos/as surdos/as e professores/as.
Cumpridas as exigências iniciais para a minha entrada no campo, tais como
oficializar o pedido e ter autorização para iniciar a pesquisa de campo, passei a
freqüentar a escola uma ou duas vezes por semana, por um período de seis meses,
de abril a setembro 2005, para realizar as observações e as entrevistas individuais
semi-estruturadas.
Considerando que o pesquisador é sempre o “outro” e que a sua presença
interfere nas relações, a forma como se dá as primeiras aproximações são
fundamentais para a imagem que os atores sociais farão do/a pesquisador (Tura,
2003), minha entrada no campo foi facilitada pela mediação da professora e
colega do mestrado, pela boa acolhida do diretor, pela identificação com a
109

coordenadora dos/as intérpretes e pelo reencontro com ex-alunos/as surdos/as e


um ex-colega de trabalho.
Se, por um lado, essa identificação com o campo facilitou a minha inserção
e o conhecimento inicial das “regras do jogo” (Ibid:198), de outro, obrigou-me a
redobrar a capacidade do estranhamento sobre a cultura local, pois como nos
anuncia Velho (1997:127):

“Assim, em princípio, dispomos de um mapa que nos familiariza com os cenários e


situações sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posição aos indivíduos.
Isso, no entanto, não significa que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo
dos diferentes atores em uma situação social nem as regras que estão por trás dessas
interações, dando continuidade ao sistema. Logo, sendo o pesquisador membro de
uma sociedade, coloca-se inevitavelmente, a questão de seu lugar e de suas
possibilidades de relativizá-lo ou transcendê-lo e poder ‘pôr-se no lugar do outro”.

Nesse esforço de relativização e estranhamento, que não significa


neutralidade, busquei ver, ouvir e escrever sobre uma diversidade de situações e
atores sociais do cotidiano escolar.
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O início da inclusão de alunos/as surdos/as na escola ocorreu em 2002 e foi


assim relatada por um professor:

”Eu fui na verdade o primeiro professor a entrar em sala de aula com o aluno
surdo. Inclusive, no ano de 2002, quando a escola começou a fazer esse trabalho,
houve uma enorme procura porque é um trabalho totalmente novo e eu cheguei a
dar uma entrevista ao RJ/TV que veio aqui na escola. A nossa turma era uma
turma experimental, era apenas uma turma que tinha seis alunos surdos e que
começou esse trabalho de inclusão. Nós éramos cinco professores, cinco matérias
e tínhamos uma intérprete que fazia um apoio pedagógico a esses alunos. Ela se
encontrava com eles em outro horário e procurava tirar as duvidas das matérias,
ela conversava com os professores para saber o que cada um iria lecionar, então
era um trabalho diferenciado, a gente sentia que existia um trabalho diferenciado
para os surdos.”

Nos anos seguintes, segundo relatos de alunos/as e professores/as foram


abertas vagas para o ingresso de alunos/as surdos/as em todas as outras séries do
Ensino Fundamental e Médio. Tal mudança foi assim relatada por uma
professora59:

“No início funcionou bem, houve uma aceitação. Quando a inclusão começou a
crescer de forma errada começou a rejeição. Hoje eu sinto que não há um
planejamento para dar prosseguimento àquele trabalho inicial. Me parece que
houve uma certa empolgação por um trabalho que deu certo no inicio e achavam

59
Os depoimentos dos/as entrevistados sobre a implementação da educação inclusiva serão
apresentados no próximo capítulo.
110

que iria continuar dando certo para sempre mesmo sem planejamento. Talvez aí
esteja a minha decepção.”

Quando iniciei o trabalho de campo, em abril de 2005, de acordo com


documentos que tive acesso, das onze turmas desde a quinta série do Ensino
Fundamental até a terceira série do Ensino Médio, sete tinham alunos/as surdos/as,
perfazendo um total de sessenta e sete alunos/as surdos/as assim distribuídos:
No Ensino Fundamental: treze na quinta série (501), seis na sexta série
(601), nove na sétima série (701), cinco na oitava série (801).
No Ensino Médio: doze na primeira série (1001), onze na segunda série
(2001) e seis na terceira série (3001).
Cada uma dessas turmas tinha um intérprete que traduzia simultaneamente a
fala do/a professor/a para os/as alunos/as surdos/as, isto é, da Língua Portuguesa
para a Língua de Sinais. Sempre que necessário, também interpretava as perguntas
e comentários dos/as alunos/as surdos/as para os ouvintes, ou seja, da Língua de
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Sinais para a Língua Portuguesa.


Durante todo o tempo de observação pude perceber o empenho do diretor
para garantir a presença de intérpretes em todas as turmas.
Em geral os/as alunos/as surdos/as sentam-se próximos, ocupando uma
mesma fileira de carteiras em frente ao/à intérprete, que fica ao lado do professor,
mas no canto oposto da sala. Esta organização espacial não significa
necessariamente uma segregação entre os grupos, mas uma forma de facilitar a
visualização e o contato entre surdos/as e o/ intérprete, na medida que este é o
responsável pela mediação na sala de aula. No entanto, não é raro encontrar em
todas as turmas observadas alguns/algumas alunos/as surdos/as sentados/as ao
lado de alunos/as ouvintes ou destacados dos demais no fundo da sala.
Em relação ao número considerável de alunos/as surdos/as, em conversas
informais vários atores sociais afirmaram que assim como a afluência era grande,
a evasão e a repetência também o eram. Segundo estimativa da coordenadora de
intérpretes do total de setenta e quatro alunos/as surdos/as matriculados da quarta
série do Ensino Fundamental até a terceira série do Ensino Médio, no ano de
2004, vinte e seis ficaram reprovados/as, vinte e cinco desistiram e dezenove
foram aprovados/as, sendo que, entre estes, dez ficaram em dependência em
Língua Portuguesa.
111

Durante o período de observação foi possível perceber o esvaziamento de


algumas turmas em especial na quinta série. O constante entra e sai de escolas é
uma tendência que tenho observado durante mais de duas décadas de contato com
a educação de surdos/as e com a comunidade surda.
No entanto, um dado interessante do contexto observado é que por reunir um
número considerável de alunos/as surdos/as, a escola já é conhecida em outros
espaços por um sinal60, criado pelos/as alunos/as surdos/as, que a identifica
como um ponto de referência na comunidade surda.
Embora tenha observado vários outros espaços da escola, o foco de
observação da presente investigação foi as relações entre surdos e ouvintes nas
salas de aula. Para tal, observei em dias e horários alternados as sete turmas
inclusivas de modo a captar os diferentes contextos de interação e os diversos
pontos de vista dos atores sociais envolvidos
O critério utilizado para a escolha dos sujeitos dessa pesquisa foi ouvir as
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diferentes visões dos/as professores/as, intérpretes e alunos/as surdos/as e ouvintes


de todas as turmas observadas que tivessem disponibilidade e possibilidade para
se encontrarem comigo.
Em geral se mostraram solícitos para falar da experiência que estavam
vivendo.
Passo então a traçar o perfil dos/as entrevistados/as, informando que para
preservar as identidades reais, a identificação de cada um/a deles/as, apresentada
no próximo capítulo, é fictícia.
Professores/as – Dos/as dez professores/as entrevistados/as, seis homens e
quatro mulheres, na faixa etária dos trinta aos cinqüenta anos, apenas dois haviam
chegado aquele ano, 2005, à escola e uma professora em 2003. Os demais
testemunharam o processo de inclusão desde o seu início, em 2002.
Durante as conversas informais foi interessante destacar que os/as três
professores/as que estavam há mais tempo na escola, dois há vinte e um anos e a
terceira há quinze anos apresentaram atitudes mais críticas e resistentes à maneira
como ocorreu a inclusão na escola do que àqueles/as que haviam ingressado nos
últimos sete anos.

60
Os sinais criados para pessoas são uma espécie de apelido. Em geral representam alguma
característica física, psicológica ou relacionado a algum fato ou situação. No meu caso, é o dedo
médio sobre a pinta da minha testa. O sinal da escola é mão esquerda em “E”, inicial do nome da
escola, apoiada sobre a mão direita fechada.
112

O grupo também revelou possuir um bom nível de formação acadêmica: um


engenheiro eletrônico, um engenheiro químico cursando o doutorado, uma
jornalista com mestrado, um professor que já havia concluído o mestrado e dois
que estavam cursando. Portanto, três tinham outra formação além da licenciatura e
a metade com pós-graduação.
Os/as alunos/as ouvintes – os dez alunos/as ouvintes entrevistados/as, seis
homens e quatro mulheres, na faixa etária dos vinte aos trinta e sete anos, eram
moradores do bairro ou das redondezas, o que facilitou nosso encontro.
Como os/as alunos/as que estudam à noite todos os/as entrevistados
trabalhavam ou estavam procurando emprego. Três alunas haviam interrompido o
estudo por conta de terem tido filhos, retornando recentemente para concluir o
ensino fundamental e médio. Outros/as quatro também afirmaram que
interromperam por diversas vezes suas trajetórias escolares porque precisavam
trabalhar ou por várias repetências. Apenas três alunos afirmaram não terem
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histórias de abandono ou de repetência em suas experiências como estudantes.


Os/as alunos/as surdos/as – foram entrevistados seis homens e quatro e
mulheres na faixa etária de vinte a quarenta e dois anos. Duas mulheres, uma com
35 e outra com 42 anos eram casadas e tinham filhos, uma com vinte e seis anos
era solteira sem filhos e outra com quarenta anos era separada e tinha um filho.
Entre os homens apenas um era casado com uma filha, os demais eram solteiros
sem filhos/as.
Na época dessa pesquisa, seis deles estavam empregados, duas como
costureiras, uma trabalhava em supermercado, dois eram funcionários
terceirizados na Fundação Oswaldo Cruz e um trabalhava como instrutor de
Língua de Sinais numa escola inclusiva no município de Duque de Caxias.
Apenas três moravam próximos à escola. Os restantes vinham de bairros distantes
ou de municípios da Baixada Fluminense.
Com exceção de um aluno que havia entrado na escola no ano desta
pesquisa, os demais já a freqüentavam há pelo menos dois anos.
Em seus depoimentos sobre suas trajetórias escolares revelaram que desde
muito cedo, assim como os/as pouco/as surdos/as que têm acesso à educação no
Brasil, experimentaram duplas jornadas escolares. Muitos/as deles/as, durante a
infância, alternaram diariamente idas às terapias fonoaudiológicas, aulas de
reforço e às escolas regulares ou especiais. Um dos entrevistados relatou ter
113

vivido a experiência do internato no Instituto Nacional de Educação de Surdos até


os quatorze anos, em virtude das dificuldades da família e da escassez de escolas
de surdos/as no país.
Apenas uma aluna usava um bimodalismo61 para se expressar, ou seja, fazia
uso simultâneo de sinais e da fala. Os demais preferiram se comunicar em Língua
de Sinais, embora três deles fossem oralizados.
Os/as intérpretes – todos/as os/as intérpretes de cada uma das sete turmas
observadas foram entrevistados/as, sendo quatro mulheres e três homens. Quatro
tinham entre 22 e 25 anos, um com 30, outra com 35 anos e uma intérprete com
45 anos. Três tinham nível superior: um jornalista, uma pedagoga e uma
psicóloga. Os demais tinham o Ensino Médio.
Como só recentemente a Língua de Sinais Brasileira foi oficializada e ainda
não existem cursos para formação de intérpretes de Língua de Sinais,
tradicionalmente, essa função tem sido desenvolvida por familiares de pessoas
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surdas ou participam de atividades com surdos/as em igrejas evangélicas ou


católicas. Apenas uma intérprete não se enquadrava nessas características, pois
aprendeu Língua de Sinais apenas quando trabalhou numa entidade representativa
de surdos/as. Entre os demais, um era filho de pais surdos, uma tinha uma irmã
surda e quatro participavam de atividade sociais e religiosas com surdos/as em
igrejas.
Delineados o cenário e o perfil dos atores sociais da presente investigação,
apresentarei, no próximo capítulo, a discussão dos dados coletados, organizados
nas seguintes categorias de análise: as visões sobre a educação inclusiva, as
representações sobre o outro, as formas de comunicação e de interação e as
dinâmicas de sala de aulas e o papel do/a intérprete.

61
Bimodalismo, também chamado de Português sinalizado, é um sistema artificial que dificulta a
estruturação do pensamento, uma vez que “com a busca constante de ajuste entre a fala e sinais
perde-se o fio condutor do assunto, a simultaneidade veiculada pelo bimodalismo deforma a
enunciação, que se torna uma montagem artificial e, sempre baseada na língua oral.” (
Botelho2002:122).
5
Análise de dados

A presente seção destacará a análise de dados gerados em situação de


entrevista e gravados em áudio com alunos da UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ. Foram realizadas duas entrevistas coletivas e seis individuais,
conforme descrito no item 4.6. As convenções de transcrição correspondem a uma
adaptação baseada nos estudos de Análise da Conversação (Sacks, Schegloff &
Jefferson, 1974), incorporando símbolos sugeridos por Schifrin (1987) e Tannen
(1989), e encontram-se disponíveis no item 8 do presente trabalho. O contexto de
geração dos dados em áudio varia entre as entrevistas e, ao longo desta seção,
procurarei descrever em que situação interacional as entrevistas se deram, bem
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como suas diferentes motivações. A natureza diversificada dos dados gerados


pode sugerir, à primeira vista, uma falha no que tange ao rigor metodológico
necessário à pesquisa acadêmica. Entretanto, considero que essa variedade de
dados, gerados por diferentes vias e em diferentes contextos, não torna os achados
da pesquisa menos confiáveis ou menos científicos. Parto da noção de que o rigor
metodológico surge das escolhas feitas pelo pesquisador e de sua reflexividade no
processo de pesquisa. Além disso, considero ser possível contribuir, de forma
significativa, para a construção de conhecimento sobre a vida social a partir de
escolhas metodológicas que envolvam certa imprevisibilidade e espontaneidade e
menos ortodoxia na geração dos dados. Ressalto que a análise dos fragmentos de
entrevista relacionados para a presente seção não desconsiderará toda incursão
etnográfica e observação participante empreendidas, como já apontado no item
anterior (4.7).
Privilegiando-se o critério narrativo e temático, foram selecionadas vinte e
três sequências interacionais que apresentam narrativas construídas pelos alunos
nas entrevistas gravadas em áudio. Essa quantidade de narrativas, apesar de soar
numerosa, é apenas um recorte dentro de um universo bem maior de histórias –
inseridas nas cerca de quatro horas de gravação de entrevistas orais em grupo ou
individuais – que, dada a limitação espacial deste trabalho, não puderam ser todas
135

analisadas. Cada sequência interacional foi numerada (de 1 a 23) e nomeada como
“cena”. Tal escolha lexical justifica-se pelo fato de, no presente trabalho, as
narrativas serem compreendidas como performances, para além de seu conteúdo
referencial. Assim, na análise de cada fragmento interacional, será dado destaque
ao modo como os narradores, por meio de recursos formais de performance,
encenam a vida social. As linhas de cada cena respeitam a mesma numeração
contida na íntegra da transcrição das entrevistas orais. As vinte e três cenas foram
alocadas em cinco eixos temáticos, nomeados em função de dois critérios: os
períodos de tempo relacionados ao cotidiano escolar desses alunos na UnED de
Nova Iguaçu do CEFET/RJ; e a noção de passagem, de trânsito, de mobilidade.
Desse modo, cada conjunto de cenas recebeu os seguintes títulos: 5.1) a chegada;
5.2) a origem; 5.3) o (per)curso; 5.4) a mudança; e 5.5) o destino. Esta
segmentação não sugere uma cisão rígida entre os cinco temas aqui elencados; em
muitas ocasiões, é notória a interpenetração de ethos e tópicos, de modo que a
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apresentação desses eixos temáticos assume um cunho fundamentalmente


didático. Assim sendo, considero que o agrupamento temático que ora proponho
favorecerá a apresentação e discussão dos valores e crenças tecidos no discurso
desses alunos e dará particular destaque à construção do ethos de valorização da
educação formal como caminho para a ascensão social.
O percurso analítico privilegiará as seguintes questões norteadoras:

a) Que valores e imagens de si emergem nas performances narrativas dos


alunos da UnED de Nova Iguaçu?
b) Como a organização da narrativa (em especial os dispositivos avaliativos
– ou metanarrativos) contribui para a construção desses valores e
imagens de si?
c) Em que medida esses valores vinculam-se a um ethos de ascensão social
via escolarização?

Passo, agora, à análise de dados propriamente dita, começando pelo eixo


temático intitulado “A chegada”. Serão discutidas cinco sequências interacionais
(Cenas 1 a 5) nas quais são relatadas histórias envolvendo o início da vida desses
alunos na UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ e momentos que antecederam
essa chegada à instituição. Nas cenas a seguir, destacam-se narrativas sobre o
136

processo seletivo para ingresso na escola, os antecedentes do concurso, os


critérios elencados para a escolha do curso técnico e o impacto proporcionado
pela chegada à instituição. Parto da noção de que, ao narrarem episódios
envolvendo suas vidas no CEFET/RJ, os alunos participantes da presente pesquisa
fazem ecoar os valores e crenças de todo um grupo social e, portanto, a UnED de
Nova Iguaçu do CEFET/RJ figura como um microcosmo de toda uma região
sócio-geográfica, seus ethos e anseios.

5.1.
A chegada

No início de cada entrevista com os alunos da UnED de Nova Iguaçu do


CEFET/RJ, procurei enquadrar aquele momento interacional como uma conversa,
um “bate-papo”, em que falaríamos sobre o cotidiano desses alunos na escola e
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sobre outros assuntos que julgássemos pertinentes em função do que emergisse


discursivamente naquele contexto particular. Interessava a mim conhecer um
pouco mais aqueles jovens: sua rotina diária, local de residência, escolas
anteriores ao CEFET/RJ, aspirações futuras etc. O percurso experienciado até se
tornarem discentes da instituição foi uma temática recorrente em todas as
entrevistas. Em sua grande maioria, as narrativas de chegada ao CEFET/RJ
centram-se no valor da felicidade e da emoção proporcionadas pela aprovação no
concurso público para a instituição e suas implicações para os atores sociais
envolvidos nessa chegada: os próprios alunos, seus familiares, os amigos, a
comunidade.
Inicio a discussão sobre essas narrativas de chegada com Carina, aluna que,
na ocasião da entrevista, tinha quinze anos de idade e cursava o 2º ano do Ensino
Médio-Técnico em Enfermagem. Carina é moradora de Miguel Couto, bairro de
Nova Iguaçu próximo à escola, limítrofe aos municípios de Duque de Caxias e
Belford Roxo e conhecido na região por sua intensa atividade comercial. Carina
demonstrou interesse em participar de minha pesquisa na ocasião do lançamento
de edital público aberto para seleção de bolsistas de Iniciação Tecnológica do
CEFET/RJ em maio de 2010 (conforme especificado no item 4.6). Assim como
Carina, outros quatro alunos (a serem apresentados mais adiante) se candidataram
137

à vaga de bolsista e, sabedora de que somente uma vaga poderia ser preenchida
(segundo previa o próprio edital), decidi estabelecer critérios para a seleção.
Solicitei, então, que os alunos candidatos lessem, previamente, o texto do meu
projeto de pesquisa cadastrado na COPET (cf. notas de rodapé 40 e 41, item 4.6) e
redigissem uma carta de intenções na qual pudessem justificar seus interesses em
participar da pesquisa. Em seguida, seriam feitas entrevistas gravadas em áudio
com esses alunos candidatos. Ainda que esse contexto de entrevista particular
possa sugerir uma dinâmica interacional menos espontânea – por se tratar de uma
situação supostamente mais formal, de candidatura a uma bolsa de pesquisa –,
como já apontei no início da presente seção, procurei enquadrar esse momento
como um bate-papo e somente a parte final das entrevistas foi destinada à
discussão mais específica sobre o projeto de pesquisa e as motivações para a
candidatura. A cena 1 diz respeito a um momento inicial da entrevista com Carina,
realizada no dia 4 de maio de 2010 em uma das salas de aula do segundo andar da
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escola.

5.1.1.
Cena 1: “Foi uma comprovação pra mim que eu era capaz”

23 Talita Quatorze pra quinze... tá certo, então agora,


24 quinze pra dezesseis. Certinho então. É... eu
25 queria... é, conversar um pouco com você a
26 respeito do texto que você escreveu, tá... e
27 sobre outros assuntos que de repente você...
28 considerar interessante, que for surgindo na
29 conversa, né?... Você começou o texto falando que
30 a sua chegada no cefet foi <emocionante>... Por
31 que que foi emocionante? Conta pra mim como é que
32 foi isso.
33 Carina Ah! Porque é como uma... uma realização... tipo,
34 nos outros... eu sempre... eu estudei em colégio
35 particular. Aí, num ti::nha, assim... é::... uma
36 coisa que provasse... assim, que eu era a
37 intelige::nte e tal. Eu conseguindo passar no
38 concurso, tipo, foi uma comprovação pra mim... e
39 também pras outras pessoas... que eu era capaz...
40 e::... provar que tudo valeu a pena, porque
41 VÁRIOS ahhnos de estuhh::do... e tal. Aí eu até
42 tinha falado com o meu pai... pô, assim, mu::ito
43 nervosi::smo... muito, muito bom... assim, a
44 realização, uma pequena realização.

(Carina, 4 de maio de 2010)


138

Em termos estruturais, a narrativa de Carina se aproxima bastante dos


moldes labovianos, apesar de não estarmos diante de uma narrativa propriamente
canônica. Ainda assim, creio que a apropriação das dimensões labovianas de se
compreender a narrativa pode elucidar questões importantes acerca de como
Carina constrói a si própria discursivamente, bem como acerca da visão de mundo
socialmente valorizada nesse contexto específico. Nesse sentido, será lançado um
olhar atento para a organização dessa narrativa particular, especialmente para os
dispositivos de avaliação (ou de metanarração) aqui presentes. Esse mesmo
movimento analítico também será empreendido nas demais cenas elencadas para a
análise de dados.
A narrativa de Carina é motivada por uma indagação feita por mim (“Por
que que foi emocionante? Conta pra mim como é que foi isso.” –
linhas 30-32), com base na carta de intenções redigida por ocasião da
concorrência para a bolsa de Iniciação Tecnológica. Em seu texto, Carina afirma
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ter sido sua chegada à instituição um momento de emoção (“Você começou o


texto falando que a sua chegada no cefet foi <emocionante>” – linhas
29-30). O sumário apresentado pela aluna, iniciado pelo conectivo “Porque”
(linha 33), sinaliza um alinhamento, sob forma de justificativa, entre a pergunta
elaborada por mim e a narrativa que, em seguida, seria construída por Carina. A
aluna reafirma a construção de sua chegada à instituição como uma emoção e
marca discursivamente tal alinhamento por meio de um sumário de cunho
justificativo: “Porque é como uma... uma realização” (linha 33). Considero,
assim, que o ponto da narrativa de Carina foi co-construído interacionalmente por
nós duas: chegar ao CEFET/RJ foi emocionante por se tratar de uma realização.
Carina prossegue tal movimento explanatório por meio da construção de
uma sequência de orações narrativas referentes, inicialmente, ao seu passado
como aluna de escolas privadas e, em seguida, aos desdobramentos de sua
aprovação no processo seletivo para a instituição. A aluna constrói
discursivamente sua chegada ao CEFET/RJ em termos de auto-afirmação e como
um índice de prestígio. Nas escolas privadas onde estudou anteriormente, Carina
parece ser “mais uma na multidão”, sem destaque individual e, portanto, invisível
aos outros no que tange a suas possíveis virtudes pessoais e potencialidades. A
noção de inteligência é valorizada, no discurso de Carina, como atributo que
dignifica o indivíduo por seus méritos e, mais que isso, enaltece toda luta
139

investida no cotidiano (“tudo valeu a pena” – linha 40). O emprego de


fonologia expressiva, por meio de prolongamento de vogal no vocábulo
“intelige::nte” (linha 37), funciona como avaliação encaixada que sinaliza o
valor positivo atribuído por Carina à noção de inteligência. Segundo a aluna, sua
aprovação no concurso para a instituição torna-a uma pessoa notavelmente capaz
aos olhos dos seus outros discursivos (“e também pras outras pessoas” –
linhas 38-39) e para si própria (“foi uma comprovação pra mim” – linha 38).
Da mesma forma, a repetição das formas cognatas “provasse” (linha 36),
“comprovação” (linha 38) e “provar” (linha 40) reitera a noção de que o mérito
individual, para ser legitimado publicamente, precisa ser empiricamente
evidenciado. Em outras palavras, é preciso haver um fato observável, passível de
verificação que justifique o mérito. Esta, aliás, é uma crença fortemente presente
em nossa sociedade, na qual as escolas são julgadas como boas ou ruins pelos
índices de aprovação de seu alunado em concursos vestibulares, por exemplo. O
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quadro esquemático a seguir ilustra o modo como o passado de ausências de


Carina é revertido em um presente prestigioso e dignificante.

“eu sempre... eu estudei em colégio particular.” (linhas 34-35)


“Aí, num ti::nha, assim... é::... uma coisa que provasse... assim,
que eu era a intelige::nte e tal.” (linhas 35-37)

“Eu conseguindo passar no concurso,” (linhas 37-38)


“foi uma comprovação pra mim... e também pras outras pessoas...
que eu era capaz” (linhas 38-39)
“e::... provar que tudo valeu a pena” (linha 40)

As noções de mérito e de auto-afirmação individual valorizadas no discurso


de Carina não estão desassociadas de um ethos bastante significativo entre os
membros das classes populares, como é o caso da aluna: o valor moral atribuído à
luta e ao sacrifício, sem os quais o prestígio adquirido não se sustenta como
conquista dignificante. Apesar da pouca idade, Carina atribui aos “VÁRIOS
ahhnos de estuhh::do” (linha 41) a validade de sua auto-afirmação individual.
Uma vez mais, a fonologia expressiva assume contornos avaliativos em sua
narrativa, especialmente por meio do emprego de vogais aspiradas (“hh”) que
140

criam um efeito de ofego, de exaustão, colaborando na dramatização do cansaço


vivido pela aluna nesse longo período de estudo. O sacrifício é construído
discursivamente como percurso que leva à auto-afirmação individual e, por esse
motivo, vale a pena. Destaco, ainda, o papel importante atribuído pela aluna ao
seu pai (linha 42), construído como interlocutor imediato das emoções vividas por
Carina nesse processo. Do descrédito, incerteza e nervosismo (linha 43) à emoção
pela realização alcançada, figura o pai na condição de testemunha da narrativa de
auto-afirmação da filha. Mais adiante na análise de dados, darei maior destaque ao
papel assumido pela família como unidade central na moralidade das camadas
populares e, da mesma forma, nas performances narrativas dos alunos aqui
entrevistados.
A cena abaixo dialoga com a anterior no que concerne ao ponto da
narrativa: mais uma vez, a aprovação no processo seletivo para o CEFET/RJ é
construída como momento emocionante. Manuela, próxima atriz social a vir à
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cena nessa trama, era aluna do 4º ano do Ensino Médio-Técnico em Enfermagem,


tinha dezoito anos de idade e era moradora de Tinguá, bairro do município de
Nova Iguaçu conhecido como recanto rural e ecológico. Manuela fora minha
aluna por dois anos consecutivos e destacava-se na escola por uma dedicação
exaustiva aos estudos. Era comum vê-la nos espaços da escola praticamente em
horário integral à procura de professores que pudessem tirar suas dúvidas com os
conteúdos ou utilizando os computadores da biblioteca. Passemos, agora, à sua
narrativa de chegada à instituição.

5.1.2.
Cena 2: “Foi uma emoção grandiosa!”

203 Talita Uhum, oentendio... e aí::... você veio pra cá.


204 Aí você passou, e como é que foi passar pra
205 cá::... como é que... foi seu primeiro ano de
206 cefe::t... como é que foi?
207 Manuela Foi emocionante.
208 Talita Foi emocionante passar.
209 Manuela ((risos)) Foi <demais>... inclusive uma
210 observação assim... o dia que eu soube que eu
211 fui CLASSIFICADA... pra fazer minha matrícula
212 aqui::... foi no dia da minha formatura.
213 Talita Na esco-, aham
214 Manuela [Na oitava série. Então assim, foi uma
215 emoção <GRANDIOSA>... o diretor da esco::la
141

216 ficou SUPER feliz, porque... QUATRO alunos da


217 turma... que tava se formando naquele dia
218 PASSARAM pro cefet
219 Talita [É me::smo? Quem foram os alunos?
220 Manuela Foi, a::... EU, né... a Danie::la... de telecom,
221 de tel.
222 Talita [A Daniela, de
223 telecom? A::h, tá.
224 Manuela = o Jorge, de info, e o::... o Rubinho...
225 o Rubens, de eletromecânica.
226 Talita Ah, sim... de eletromecânica ou de informática.
227 Manuela De eletromecânica, é um magri::nho... branco,
228 alto.
229 Talita Sei.
230 Manuela Então, nós QUATRO estudamos juntos na oitava
231 sé::rie... e assim, foi uma emoção <mui::to
232 GRA::NDE>... a gente, a gente <CHOROU> no dia,
233 quando a gente viu o nosso nome lá,
234 classificado, nossa, foi mui::to emocionante...

(Manuela, 29 de junho de 2009)

A narrativa de Manuela é carregada de um forte apelo dramático e afetivo


tecido por recursos formais de performance. A emoção experienciada por
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Manuela em virtude de sua aprovação para o CEFET/RJ é construída


discursivamente por uma série de dispositivos de avaliação: repetições,
intensificadores lexicais, recursos prosódicos (em especial, palavras e expressões
ditas pausadamente), fonologia expressiva e o constante riso, como se estivesse
revivendo, no momento da entrevista, a mesma emoção de quando fora aprovada
no concurso.

“Foi emocionante.” (linha 207)


“((risos)) Foi <demais>...” (linha 209)
“foi uma emoção <GRANDIOSA>...” (linhas 214-215)
“foi uma emoção <mui::to GRA::NDE>...” (linhas 231-232)
“nossa, foi mui::to emocionante...” (linha 234)

Chama atenção, na narrativa de Manuela, o entrelaçamento de enredos que


envolvem uma confluência de emoções. Há uma coincidência de datas na vida da
aluna que confere à sua aprovação para o CEFET/RJ um caráter de
excepcionalidade, de episódio marcante. A notícia que provocaria uma emoção
(“o dia que eu soube que eu fui CLASSIFICADA” – linhas 210-211) é
recebida em uma ocasião social que costuma ser caracterizada como um momento
simbólico, que marca o encerramento de um ciclo de estudos: a solenidade de
formatura do ensino fundamental (“foi no dia da minha formatura.” – linha
142

212). Assim, a emoção relativa à conclusão de uma fase de estudos conjuga com a
emoção pelo início de uma trajetória escolar em uma instituição renomada,
historicamente marcada pelos signos do prestígio (como apresentado nos itens 4.1
e 4.3). A história do dia da formatura assume uma importância tão singular que
torna a orientação da narrativa construída por Manuela ricamente detalhada: a
quantidade de alunos de sua turma também aprovados para o CEFET/RJ, seus
nomes, os cursos escolhidos, a reação vivida por eles naquela ocasião, enfim,
detalhes que vêm à tona em virtude do quão representativo aquele dia foi para
Manuela.

“QUATRO alunos da turma... que tava se formando naquele dia


PASSARAM pro cefet” (linhas 216-218)
“a Danie::la... de telecom, de tel.” (linhas 220-221)
“o Jorge, de info, e o::... o Rubinho... o Rubens, de
eletromecânica.” (linhas 224-225)
“a gente, a gente <CHOROU> no dia, quando a gente viu o nosso nome
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lá, classificado,” (linhas 232-234)

É notório observar, entretanto, que a emoção construída na narrativa de


Manuela assume uma dimensão mais coletiva, em oposição à narrativa de Carina,
na cena 1, que constrói sua chegada ao CEFET/RJ como auto-afirmação
individual. A emoção do dia da formatura de Manuela é co-experienciada por
outros atores sociais. A felicidade manifestada pelo diretor da escola de nível
fundamental onde a aluna estudara está fortemente atrelada à noção de orgulho
pelo feito dos alunos (“o diretor da esco::la ficou SUPER feliz,
porque... QUATRO alunos da turma... que tava se formando naquele
dia PASSARAM pro cefet” – linhas 215-218). A emoção dos alunos aprovados,
incluindo Manuela, é fisicamente expressa pelas lágrimas derramadas (“a gente
<CHOROU> no dia, quando a gente viu o nosso nome lá, classificado”

– linhas 232-234). Novamente, a expressividade fonológica (“SUPER” – linha 216;


“QUATRO” – linha 216; “PASSARAM” – linha 218; “<CHOROU>” - linha 232) é
empregada como recurso linguístico avaliativo que reforça o ponto da narrativa de
Manuela: dizer o quão emocionante foi a aprovação para o CEFET/RJ. Tanto o
orgulho do diretor da escola quanto o choro coletivo dos alunos justificam-se pelo
alcance e potencial transformador da escolarização de qualidade na vida desses
jovens de classes trabalhadoras. Não se chora, exclusivamente, pela ação
143

localizada de terem sido aprovados no concurso, mas pelos desdobramentos


simbólicos que essa aprovação pode proporcioná-los. Considero que, no choro
coletivo dos alunos e no orgulho do diretor, está em cena a crença de uma
comunidade no estudo como forma de melhoria de vida.
A cena 3 apresenta a narrativa de chegada de Wagner, aluno do Ensino
Médio-Técnico em Informática que, na ocasião da entrevista (em 29 de junho de
2009), tinha dezessete anos de idade. Wagner era membro do grêmio estudantil da
escola e residia em Paracambi, município da Baixada Fluminense limítrofe à
região do Vale do Café45, situado a cerca de 50km de Nova Iguaçu. Fui professora
de Wagner nas três séries do Ensino Médio e, como o aluno demonstrava apreço
pelas Letras e pelas Ciências Humanas, era comum que conversássemos, em
horários alternativos aos de sala de aula, sobre suas preferências de leitura bem
como suas aspirações futuras. Apesar de não demonstrar qualquer interesse por
áreas de conhecimento mais direcionadas para as tecnologias (para as quais o
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CEFET/RJ estaria, em tese, voltado), Wagner afirmava adorar a escola e nela


costumava permanecer mesmo fora dos horários reservados às aulas de sua grade
curricular. Na cena 3, Wagner enquadra sua entrada na instituição como “um
milagre”, aliando emoção (como já visto nas cenas 1 e 2) a um forte ethos de
religiosidade. Sua narrativa é carregada de apelo dramático e enfatiza os
obstáculos enfrentados para que alcançasse o êxito de ser aprovado para o
CEFET/RJ, ainda que essa trajetória seja construída discursivamente como
inusitada.

5.1.3.
Cena 3: “É um milagre!”

97 Wagner É pra contar... oassimo...


98 Talita O que você quiser.
99 Wagner Ah, então eu vou ter que contar a história que a
100 Márcia já está cansa::da de saber.
101 Márcia Ah... conta do seu milagre.
102 Wagner É um milagre. O cefet já começa marcando minha...
103 é... começou a marcar a minha vi::da... porque a
104 minha entrada aqui não foi uma ( ) muito
105 comum... eu lembro que na sétima ou oitava

45
A Região do Vale do Café é constituída dos seguintes municípios fluminenses: Piraí,
Mendes, Conservatória, Vassouras, Barra Mansa, Pinheiral, Volta Redonda, Engenheiro Paulo de
Frontin, Miguel Pereira, Paty do Alferes, Valença e Rio das Flores. (Fonte:
http://www.turisrio.rj.gov.br)
144

106 série... >lá em Paracambi< que eu estuda::va...


107 numa Oescola preparatóriaO... era escola, colégio
108 preparatório...
109 Talita Uhum, escola E preparatório.
110 Wagner =Isso. Teve um projeto lá em que cada
111 turma... <cada> grupo ia ficar responsável por um
112 stand de um, de um colégio técnico... que foi
113 uma... uma... uma feira que teve lá, lá na escola.
114 E eu fiquei com a cefet de Nova Iguaçu... e >eu
115 lembro do< Aldir... foi lá... na época... e ele
116 vai na minha barraca >e tal, no stand<, e a gente
117 conversa::ndo e tal, e a gente brinca::ndo,
118 falando, “po... ainda vou estudar lá” e tal... e o
119 CEFET era o que eu menos queria passar. Dos três
120 que eu fiz... foi ctur, cefeteq e o cefet, e o
121 cefet era o que eu menos queria passar... Só
122 quehh... só que eu entendo que DEUS me mostrou, de
123 uma forma bastante inusitada que era aqui que ele
124 me queria... porque eu fiz a prova pra cá::,
125 passei pra primeira fa::se... e aí a segunda
126 fase... eu, eu não tive acesso ao... >eu vi o
127 resultado< e eu não tinha passado... teria que
128 desistir nove pessoas pra eu entrar, >porque eu
129 fiquei em quadragésimo quinto<. E AÍ no dia da
130 reclassificação, eu não tive como saber se eu
131 tinha passado, porque eu liguei pra cá e ninguém
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132 sabi::a... eu... meu pai não quis vir >de


133 Paracambi até aqui pra poder< SÓ saber se eu tinha
134 passado ou não, e na internet tava fora do ar o
135 site do cefet... não tava no ( ) no jornal, não
136 saiu EM LUGAR NENHUM, não tive acesso. E aí...
137 passou os di::as... e eu... esperei a segunda
138 reclassificação, achando que NÃO IA desistir nove
139 pessoas... né... e aí na segunda reclassificação
140 eu descobri que eu tinha... sido reclassificado na
141 primeira... mas tinha perdido a vaga... porque eu
142 não vim fazer a matrícula. E aí minha mãe... a
143 gente veio... nisso eu já tinha pegado o resultado
144 no ctur >e eu não tinha passado, que era o que eu
145 mais queria<... e aí a gente veio aqui,
146 <reivindicar>, e a moça da secretaria disse que a
147 gente podia escrever uma carta... <pro diretor>...
148 mas ele disse que... todos os que já tinham
149 tentado >por esse método< NUNCA tinham conseguido,
150 >que era praticamente IMPOSSÍVEL, mas que eu tinha
151 esse direito<... Então a gente escreveu uma
152 ca::rta, contando tudo o que tinha aconteci::do e
153 tal... >não sei o quê<... e aí uma semana depo::is
154 o telefone lá em casa tocou... uma pessoa tinha
155 desistido... a turma já estava FECHADA... uma
156 pessoa desistiu e aí ele falou que a vaga ia ser
157 minha... que eu que ia estudar no lugar da
158 pessoa... E assim, foi EMOCIONANTE... inclusive na
159 hora que a pessoa ligou::... quando ela IA
160 falar... deu um curto aqui... a ligação caiu.
161 Talita ((risos))
145

162 Wagner hh Éhh uma COISA que parece que o universo


163 estava::... CONSpirando. Bom ( ) “ah é do cefet,
164 >mas não deu pra ouvir o que falou<, porque deu um
165 curto e caiu a ligação”... quando ela ligou e
166 falou... todo mundo lá em casa CHORA::NDO...
167 emocionado... e assim, depois que eu entrei pro
168 cefet >eu aprendi muita coisa... a minha vida
169 mudou<... enfim, eu sou OUTRA pessoa depois que eu
170 vim pra cá... e eu entendo que NO GRÊMIO está o
171 principal propósito de eu ter vindo para cá...
172 assim, >entre as muitas coisas que eu já vivi
173 aqui< e acho que <no grêmio>... eu vou ter a... a
174 possibilidade de fazer... assim, de retribuir pra
175 essa escola tudo que ela representa pra mim.
176 Talita Uhum
(Wagner, 29 de junho de 2009)

No início da entrevista com os alunos do grêmio estudantil, procurei deixá-


los à vontade para falarem sobre os temas que julgassem relevantes. Os primeiros
minutos da entrevista foram marcados por relatos envolvendo histórias sobre o
ingresso desses alunos no CEFET/RJ: suas escolas anteriores, o processo seletivo
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(o concurso propriamente dito para entrada na instituição) e todas as mudanças de


vida experienciadas por esses alunos. É justamente nesse contexto que está situada
a cena 3.
Já em sua primeira (e hesitante) fala (“É pra contar... oassimo...” –
linha 97), Wagner negocia o tópico de sua narrativa comigo. O aluno parece
reconhecer em mim uma figura de autoridade na situação de entrevista,
responsável, assim, pela distribuição dos turnos e pelo gerenciamento dos tópicos;
daí a necessidade de verificar que assuntos, de fato, estariam autorizados a serem
ditos ou mesmo que expectativas (minhas) estariam em jogo naquele contexto
particular. Wagner é autorizado por mim a contar o que quisesse (“O que você
quiser.” – linha 98) e, assim, prepara seus interlocutores, por meio de um
prefácio, para a narrativa que está por vir: “Ah, então eu vou ter que contar
a história que a Márcia já está cansa::da de saber.” (linhas 99-100).
Alguns aspectos do prefácio para a narrativa de Wagner merecem ser
comentados. A história é enquadrada como algo sobre o qual o aluno se sente
moralmente obrigado a falar (“Ah, então eu vou ter que contar a
história” – linha 99) e que já fora inúmeras vezes repetido (“que a Márcia já
está cansa::da de saber.” – linhas 99-100). Ao caracterizar, de antemão, seu
relato como uma história repetida (enfatizada pela expressividade fonológica da
146

palavra “cansa::da” – linha 100), Wagner remete a uma noção crucial apontada
por Linde (1993). Para a autora, uma narrativa, quando contada repetidas vezes,
entra no repertório de relatos que constituem uma história de vida. Wagner
sinaliza, com seu prefácio para sua longa performance narrativa/identitária, que a
história de sua entrada no CEFET/RJ já figura no hall de narrativas
necessariamente dignas de serem verbalizadas para que se veja sua identidade
social sendo forjada. Márcia, presidente do grêmio estudantil, nesse sentido,
assume uma função muito importante, pois é elencada por Wagner como
testemunha e legitimadora da reportabilidade de sua narrariva (“Ah... conta do
seu milagre.” – linha 101).
Em termos estruturais, Wagner produz uma narrativa bem aos moldes
labovianos e apresenta-se como um exímio narrador, engenhoso e habilidoso no
manejo de recursos performáticos de dramatização que conferem vivacidade ao
enredo construído e conexão afetivo-emotiva como sua audiência. É possível
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reconhecer uma macro-estrutura narrativa, em que se identificam um sumário,


uma ação complicadora principal, uma coda avaliativa e uma resolução.
Entretanto, nota-se que uma micro-narrativa antecede a ação complicadora
central, servindo aquela como orientação desta. Durante todo o processo narrativo,
uma série de recursos avaliativos é empregada, conferindo ao relato um viés
fortemente emocional e dramático. A fala de Márcia (na linha 101) antecipa o
sumário da narrativa de Wagner, o qual enquadra seu ingresso no CEFET/RJ
como um “milagre” (linha 102). Nesse sumário inicial, o aluno encapsula o ponto
de sua narrativa: mostrar o quão incomum e inusitada foi sua entrada na
instituição. Por seu caráter não-corriqueiro, não-ordinário, pode-se dizer que a
história de Wagner é contável, nos termos de Labov (1972): “O cefet já
começa marcando minha... é... começou a marcar a minha vi::da...
porque a minha entrada aqui não foi uma ( ) muito comum... ”

(linhas 102-105). Em seguida, Wagner inicia um movimento de orientação e de


ação complicadora bastante rico em detalhes, reconstruindo um episódio ocorrido
quando ainda era aluno de outra escola na sua cidade (Paracambi).

“eu lembro que na sétima ou oitava série...” (linhas 105-106)


“>lá em Paracambi<” (linha 106)
“que eu estuda::va... numa Oescola preparatóriaO...” (linhas 106-107)
147

“Teve um projeto lá em que cada turma... <cada> grupo ia ficar


responsável por um stand de um, de um colégio técnico...” (linhas
110-112)
“E eu fiquei com a cefet de Nova Iguaçu...” (linha 114)

Wagner reconstrói a lembrança (“eu lembro” – linha 105) de um evento


antecedente ao seu ingresso no CEFET/RJ em que participou de um projeto
escolar sobre as diferentes escolas técnicas da Baixada Fluminense. A maneira
como Wagner apresenta esse episódio dialoga com o ponto central de sua
narrativa: mostrar o caráter incomum de sua entrada na instituição. Wagner fica
responsável pelo stand da UnED de Nova Iguaçu, mas poderia ter ficado com
qualquer outra instituição de ensino. Em outras palavras, foi por acaso que o aluno
teve conhecimento da instituição. Em seguida, o aluno prossegue na
caracterização desse episódio ocorrido em sua antiga escola.

“>eu lembro do< Aldir... foi lá... na época...” (linhas 114-115)


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“e ele vai na minha barraca >e tal, no stand<” (linhas 115-116)


“e a gente conversa::ndo e tal, e a gente brinca::ndo, falando”
(linhas 116-118)
““po... ainda vou estudar lá” e tal” (linha 118)
“e o cefet era o que eu menos queria passar.” (linhas 118-119)
“Dos três que eu fiz... foi ctur46, cefeteq47 e o cefet” (linhas 119-
120)
“o cefet era o que eu menos queria passar...” (linhas 120-121)

Nesse trecho da narrativa, Wagner recorre a variados recursos formais de


performance que recriam o evento narrado e transportam os ouvintes para dentro
da história. A referência a Aldir (linha 115), primeiro gerente acadêmico da UnED
de Nova Iguaçu, confere credibilidade e legitimidade ao relato, por se tratar de
uma pessoa conhecida dentro da instituição. O uso do presente histórico (“e ele
vai na minha barraca” – linhas 115-116) e de verbos no gerúndio
(“conversa::ndo”, “brinca::ndo”, “falando” – linhas 117-118) confere
dinamicidade à sequência de ações. O emprego da fala relatada (““po... ainda
vou estudar lá” e tal” – linha 118) traz a plateia para dentro da situação
narrada e recria a ação dos personagens em cena, conferindo um efeito de

46
Colégio Técnico da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
47
Centro Federal de Educação Tecnológica de Química do Rio de Janeiro (atual IFRJ –
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro).
148

veracidade ao relato. Soma-se a isso a utilização de alterações no ritmo da fala,


mudanças no tom de voz e marcas de expressividade fonológica. Wagner,
também, constrói uma hierarquia de preferência das instituições para as quais
prestou exame (“ctur, cefeteq e o cefet” – linha 120). Nesse sentido,
assume o intensificador lexical “menos” (linhas 119 e 121) uma notória função
metanarrativa, uma vez que reverbera a avaliação de Wagner acerca do lugar
menor que o CEFET/RJ ocupa nessa hierarquia de preferência. Considero que
toda essa narrativa sobre o projeto do qual o aluno participou em sua escola
anterior, na verdade, funciona como orientação para sua narrativa principal: a
história de sua inusitada entrada no CEFET/RJ. A resolução dessa sequência de
ações passadas assume um papel duplo, pois corresponde, também, ao sumário da
segunda (e mais relevante) narrativa, em que se perceberá a reafirmação do ponto
(antes mencionado nas linhas 102-105), desta vez, entretanto, assumindo uma
nova roupagem, a saber, a do discurso da providência divina: “Só quehh... só
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que eu entendo que DEUS me mostrou, de uma forma bastante


inusitada que era aqui que ele me queria...” (linhas 121-124).
Wagner chega, então, à ação complicadora propriamente dita, na qual
podem ser identificados quatro grandes movimentos. Wagner constrói a ação
complicadora de sua principal narrativa partindo de uma trama de infindáveis
dificuldades, de insucessos em cadeia, até que, por fim (e de maneira inusitada), a
vitória é alcançada triunfantemente. Por meio de inúmeros dispositivos
metanarrativos, Wagner sinaliza para seus ouvintes como quer ser visto em sua
performance e constrói discursivamente os dramas e dificuldades enfrentados até
que conseguisse a desejada vaga na instituição. Vejamos como, estruturalmente,
esses quatro movimentos são organizados:

1º movimento: “porque eu fiz a prova pra cá::” (linha 124)


sequência de insucessos do “passei pra primeira fa::se” (linha 125)
aluno até o período da
primeira reclassificação de “aí a segunda fase... eu, eu não tive
candidatos ao concurso acesso” (linhas 125-126)
discente “>eu vi o resultado<” (linhas 126-127)
“e eu não tinha passado” (linha 127)
“no dia da reclassificação, eu não tive como
saber se eu tinha passado” (linhas 129-131)
“eu liguei pra cá” (linha 131)
“e ninguém sabi::a...” (linhas 131-132)
“meu pai não quis vir” (linha 132)
149

“na internet tava fora do ar o site do


CEFET...” (linhas 134-135)
“não tava no ( ) no jornal” (linha 135)
“não saiu EM LUGAR NENHUM” (linhas 135-136)
“não tive acesso” (linha 136)

2º movimento: “E aí... passou os di::as...” (linhas 136-137)


mais insucessos, “esperei a segunda reclassificação” (linhas
culminando com a perda do
direito de matricular-se na 137-138)
instituição na ocasião da “eu descobri que eu tinha... sido
segunda reclassificação de reclassificado na primeira...” (linhas 140-141)
candidatos “mas tinha perdido a vaga” (linha 141)
“porque eu não vim fazer a matrícula” (linhas
141-142)

3º movimento: “E aí minha mãe... a gente veio...” (linhas


tentativa de reverter esse 142-143)
quadro de fracassos em
cadeia por meio de um “aí a gente veio aqui, <reivindicar>” (linhas
processo reinvidicatório 145-146)
“a moça da secretaria disse que a gente
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podia escrever uma carta... <pro


diretor>...” (linhas 146-147)
“mas ele disse que... todos os que já tinham
tentado >por esse método< NUNCA tinham
conseguido” (linhas 148-149)
“>que era praticamente IMPOSSÍVEL” (linha 150)
“mas que eu tinha esse direito<...” (linhas
150-151)
“Então a gente escreveu uma ca::rta,
contando tudo o que tinha aconteci::do”
(linhas 151-152)

4º movimento: “e aí uma semana depo::is” (linha 153)


superação do fracasso e “o telefone lá em casa tocou...” (linha 154)
consequente conquista da
vaga como aluno do “uma pessoa tinha desistido...” (linhas 154-
CEFET/RJ 155)
“a turma já estava FECHADA...” (linha 155)
“a vaga ia ser minha...” (linhas 156-157)
“que eu que ia estudar no lugar da
pessoa...” (linhas 157-158)

Wagner, habilmente, orquestra os arranjos e acordes dessa sinfonia em


quatro movimentos sobre seu ingresso na instituição. Na passagem de um
movimento para o outro, o aluno acentua, em tom crescente, a dramaticidade
vivenciada a cada situação de dificuldade que se coloca à sua frente. O primeiro
movimento dessa ação complicadora é marcado por uma sucessão de negativas,
150

evidenciadas pela repetição do vocábulo “não” ou palavras de significado


correlato (como “ninguém” e “nenhum”). A cada passo dado por Wagner, um
tropeço, um fracasso, uma negativa:

“eu não tive acesso” (linha 126)


“e eu não tinha passado” (linha 127)
“eu não tive como saber” (linha 130)
“e ninguém sabi::a...” (linhas 131-132)
“meu pai não quis vir” (linha 132)
“não tava no ( ) no jornal” (linha 135)
“não saiu EM LUGAR NENHUM” (linhas 135-136)
“não tive acesso” (linha 136)

O segundo movimento parece sinalizar uma esperança de que a sucessão de


negativas seria superada, porém a expressão sinalizadora de oposição “mas” (“mas
tinha perdido a vaga” – linha 141) aponta para a ocorrência de mais um
fracasso. Toda a trama parecia direcionar um desfecho trágico e infeliz. No
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terceiro movimento, constrói-se um caráter mais agentivo e decisório por parte


desse narrador que, até o momento, parecia só assistir ao fracasso,
gradativamente, determinando os rumos de sua trajetória de vida. Dois aspectos
importantes marcam o processo reivindicatório empreendido por Wagner, na
tentativa de superar esse fracasso cadenciado. Em primeiro lugar, a reivindicação
vem por intermédio de uma carta (“a gente podia escrever uma carta...
<pro diretor>...” – linhas 146-147), o que aponta para o caráter político e
transformador do uso da linguagem; em segundo lugar, Wagner constrói esse
esforço reivindicatório como uma ação coletiva, na qual se fazem presentes o
próprio narrador e sua mãe (linha 142). O uso da locução “a gente” (em “aí a
gente veio aqui, <reivindicar>” – linhas 145-146 – e “Então a gente
escreveu uma ca::rta, contando tudo o que tinha aconteci::do” –
linhas 151-152) indicia que não é Wagner, sozinho, o único a querer estudar na
UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. Todo processo reivindicatório remete aos
sonhos e expectativas de sua família e comunidade, por isso a ação de tentar
reverter o quadro de impossibilidade ali colocado (“>que era praticamente
IMPOSSÍVEL” – linha 150) é investida por um “nós”, por uma coletividade. No
quarto e último movimento, o drama chega ao seu clímax: como que por milagre,
Wagner consegue a vaga para a instituição, após a improvável desistência de um
151

aluno. A orquestração dessa dramática e vivaz sinfonia em quatro movimentos


encerra-se com um allegro: a superação completa das dificuldades antes
colocadas (quiçá digna de aplausos da plateia).
Após uma coda avaliativa (“foi EMOCIONANTE...” – linha 158), Wagner
recupera o último movimento de sua ação complicadora principal para
complexificar, ainda mais, a trama de dificuldades vivenciada durante o processo
seletivo para discente da instituição. Por meio de fala relatada, Wagner reconstrói
o diálogo entre ele e uma funcionária da escola (“ah é do CEFET, >mas não
deu pra ouvir o que falou<, porque deu um curto e caiu a
ligação”... – linhas 164-166), após uma súbita (e inesperada) interrupção na
comunicação telefônica (“quando ela IA falar... deu um curto aqui... a
ligação caiu. – linha 159-160). O aluno, por fim, avalia esse encadeamento de
dificuldades como conspiração (“Éhh uma COISA que parece que o universo
estava::... CONSpirando.” – linhas 163-164). No resgate de sua coda
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avaliativa (“todo mundo lá em casa CHORA::NDO... emocionado...” –


linhas 167-168), Wagner focaliza os anseios de uma coletividade (assim como
acontecera na cena 2, na narrativa de Manuela). Sua família, materializada na
noção de “casa”, também participa, ativamente, de todos episódios narrados e
dessa emoção por fim vivida. Considero que a emoção da família provavelmente é
explicada pela possibilidade de ascensão social de Wagner via escolarização de
qualidade.
A resolução da narrativa de Wagner é tecida com base em um antes e um
depois de sua entrada na instituição.

“depois que eu entrei pro “>eu aprendi muita coisa...” (linha 169)
CEFET” (linhas 168-169) “a minha vida mudou<...” (linhas 169-
170)
“enfim, eu sou OUTRA pessoa depois
que eu vim pra cá...” (linhas 170-171)

O aluno enfatiza a dimensão da mudança (tema a ser melhor discutido no


item 5.4) como efeito de seu ingresso na UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ.
Essa mudança é apresentada em escala ascendente, como um encadeamento de
transformações positivas: os efeitos da aprendizagem imprimem mudanças em sua
vida, tornando-o uma outra (e melhor) pessoa. A retórica do sacrifício, da
152

dificuldade que vale a pena ser vivida (ver cena 1), sustenta um ethos de ascensão
social, aqui possibilitada pelo processo de escolarização. Por fim, a resolução da
narrativa de Wagner é permeada por um discurso de valoração de dois aspectos: a
retribuição e a gratidão pelo que a escola fez pelo aluno. Wagner constrói sua
participação na representatividade estudantil como um meio de “pagar” à escola
pelos benefícios a ele prestados (“acho que <no grêmio>... eu vou ter
a... a possibilidade de fazer... assim, de retribuir pra essa
escola tudo que ela representa pra mim.” – linhas 174-176).
Outros aspectos da performance narrativa/identitária de Wagner merecem
destaque. Wagner constrói sua entrada no CEFET/RJ como um evento acidental
(Linde, 1993), ou seja, não motivado intencionalmente. A noção de “acaso”
assume um papel notório em diversos momentos de sua narrativa. O universo
conspira e toda sorte de problemas quase inviabilizam a matrícula do aluno na
instituição. Toda ação complicadora é tecida em uma trama de dificuldades
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extremas e obstáculos instransponíveis. Em outras palavras: nada dá certo, tudo dá


errado no processo seletivo de Wagner para o CEFET/RJ. Sua agência é
construída de forma a permanecer minimizada, quiçá anulada. Há que se levar em
consideração, entretanto, o fato de Wagner ter enquadrado, desde o sumário da
narrativa, seu ingresso no CEFET/RJ como um “milagre” (linha 102). Por
“milagre”, compreende-se, normalmente, um ato extraordinário e admirável de se
ver, por contrariar as leis naturais. O milagre costuma ser, também, um ato
insólito, isolado, que não se reproduz (caso pudesse ser replicável e costumeiro,
não seria caracterizado como milagre). A performance narrativa/identitária de
Wagner leva sua plateia a crer que, caso as relações lógicas de causa e efeito
prevalecessem como critério para a entrada de alunos no CEFET/RJ, o aluno
jamais teria ingressado na instituição. Somente um milagre, portanto, justificaria a
entrada de Wagner na escola. Nesse sentido, o aluno baseia-se em um ethos
religioso para buscar dar conta dos elementos inusitados atuantes em seu processo
de aprovação para o CEFET/RJ. Wagner atribui à divina providência o verdadeiro
motivo de, hoje, ele ser aluno dessa instituição (“eu entendo que DEUS me
mostrou, de uma forma bastante inusitada que era aqui que ele me
queria...” – linhas 122-124). Ao invés de apresentar-se como um agente
minimizado ou nulo em todo esse processo, Wagner constrói sua auto-imagem
153

como um bem-aventurado: um ser afortunado, eleito por um Deus supremo para


que Sua divina vontade fosse cumprida.
O elemento providencial corresponde a um valor típico da moralidade
cristã evangélica, à qual Wagner parece ser bem alinhado. Weber (2001 [1904,
1905]), em seu estudo relacionando o desenvolvimento do capitalismo moderno
ao advento das religiões reformadas, atribui a Lutero (pai da Reforma Protestante)
a primeira aparição da palavra “vocação” na tradução da Bíblia para a língua
alemã. A noção de vocação, até hoje, corresponde a um preceito básico na ideia de
providência divina: o indivíduo é vocacionado por Deus, segundo Sua vontade, e
deve, portanto, cumprir os planos divinos designados. Na narrativa de Wagner,
esses valores de orientação luterana parecem bastante evidentes. O aluno diz
compreender, hoje, que, na ocasião em que os episódios relatados ocorreram,
Deus havia dado sinais, pistas de Seu plano (“era aqui que ele me
queria...” – linhas 123-124). O quadro de impossibilidade colocado diante do
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aluno nessa dificultosa travessia foi superado, de forma inusitada (porque divina),
e qualquer justificativa orientada por uma lógica racionalista humana seria falha.
Wagner, o bem-aventurado rapaz de Paracambi contra quem o acaso parecia
conspirar, agora se engaja na tarefa de dar testemunho de sua miraculosa entrada
no CEFET/RJ, fazendo sua narrativa ser ouvida, repetidas vezes, a diferentes
interlocutores dentro (e, possivelmente, fora) da instituição.
A narrativa de Wagner sinaliza que a chegada ao CEFET/RJ nem sempre é
fruto de um projeto (Schutz, 1962), ou seja, uma ação ideada antecipadamente na
constituição de uma ação futura. Apesar do status adquirido historicamente, o
CEFET/RJ raramente figura como sonho único e exclusivo dos alunos
participantes da presente pesquisa. É comum que se preste concurso para outras
instituições de ensino de nível Médio-Técnico e o CEFET/RJ corresponde a
apenas uma entre outras possibilidades, entre outras escolas de nível Médio-
Técnico ou academias militares. Resta-nos indagar, portanto, o motivo para que
essas narrativas de chegada à instituição sejam marcadas tão fortemente pelas
noções de emoção e felicidade. Considero que, para além da aprovação no
processo seletivo para o CEFET/RJ, há enredos nem sempre visíveis e que, uma
vez trazidos à baila, tornam inteligíveis projetos, crenças, valores que modelam a
chegada do aluno à instituição.
154

A cena 4, a seguir, apresenta a narrativa da chegada de Kátia à UnED de


Nova Iguaçu do CEFET/RJ. Kátia era aluna do 4º ano do Ensino Médio-Técnico
em Enfermagem, tinha dezoito anos e residia em Nova Iguaçu, no bairro da Posse.
A conversa com Kátia se deu em entrevista coletiva com outras duas alunas de sua
classe (a saber, Joana e Raquel). Na cena a seguir, motivada por relatos
construídos pelas outras duas participantes, a aluna elabora uma narrativa cujo
ponto inicialmente seria apresentar sua chegada ao CEFET/RJ como uma
conquista. Há, entretanto, uma mudança de rumos e Kátia constrói, na verdade, a
história de como não objetivava chegar ao CEFET/RJ.

5.1.4.
Cena 4: “Eu não acreditava que eu ia passar”

124 Kátia Acho que... o ensino fundamental... de forma


125 geral, era assim... aí, é::... eu entre-, no
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126 início do a::no... da oitava série, eu falei


127 assim, “não, eu quero entrar numa”... eu queria
128 entrar mu::ito na faetec. Eu não conhecia o
129 cefet, não conhecia cefeteq, não conhecia esse
130 MUNDO de escola técnica.
o
131 Talita Uhumo
132 Kátia Aí eu, “não, >eu quero entrar na faetec, eu
133 quero entrar na faetec<”... e eu sempre via uma
134 menina no ponto que pegava ônibus comi::go, da,
135 da::... faetec. Então eu só conhecia a faetec.
136 Perto da minha casa não tinha assim, NINGUÉM do
137 cefe::t, cefete::q. Aí eu opensandoo “não, >quero
138 faetec, quero faetec<”... aí eu entrei num curso
139 preparatório, até o mesmo onde que a Joana fez,
140 aí... eu entrei no curso preparatório assim, com
141 muita resistência porque::... meu pai falou
142 assim... “ah, você tira nota bo::a, >você não
143 precisa entrar< no curso”. E eu lembro que essa
144 época era até a época que meu pai tinha ficado
145 desemprega::do, e aí depois é que ele começou a
146 trabalhar de novo, então assim, ele <não QUERIA>
147 que eu entrasse no cu::rso, até por mais ga::sto
148 e tudo... aí minha mãe falou assim, “não, não,
149 ela vai entrar osimo... nem que seja assim com
150 muito esforço, tudo, mas ela vai entrar”... aí
151 foi a época que eu entrei no cu::rso, aí comecei
152 a me dedicar... aí comecei a CONHECER esse mundo
153 de escola técnica, cefet, cefeteq, oessas coisas
154 assimo, e NÃO I::A fazer prova pro cefet. O meu
155 objetivo era <FAETEC>.
156 Todas ((risos))
157 Kátia Eu QUERIA faetec. Só que a faetec, assim, e::...
158 no início, não era enfermagem que eu queria...
159 sempre quis algo relacionado com matemática, eu
160 queria <contabilidade>. Só que contabilidade na
155

161 faetec era em <Marechal Hermes>... e aí minha


162 mãe falou assim “não, você pode até fazer a
o
163 prova e tudoo, mas... pensa também nas
164 dificulda::des de você... conseguir terminar
165 esse cu::rso... de passar... em TUDO, né?”, até
166 porque a faetec era integral. Aí eu falei assim,
167 “tá, mãe, não sei”, aí até que eu conversei com
168 a minha mãe, aí ela falou assim, “ah, faz então
169 cefet e faetec. O que você passar você fica, até
170 porque o cefet é mais perto”... “Ah, então tá
171 bom”. Aí vi::m, aí vim, acho que no penúltimo ou
172 no último dia de inscrição... <paguei>, e vim
173 fazer a inscrição, e NÃO TINHA noção do curso
174 que eu ia fazer aquihh.
175 Talita Uhum.
176 Kátia Aí... a Andréia que estudava, >a Andréia
177 estudava< comigo desde a... terceira série.
178 Talita [a Souza?
179 Kátia A Souza... a gente estudou juntas desde a
180 terceira série... aí::... eu falei assim... “ah,
181 vou botar enfermagem. Pelo menos se eu passar,
182 eu estudo com a Andréia, eu já conheço alguém da
183 escola oe tudoo”... MAS eu NÃO ACREDITAVA que eu
184 ia passar, sinceramente eu achava que eu não
185 iria passar... porque todo mundo falava que era
186 MUITO mais DIFÍCIL a federal do que a
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187 estadual... aí::, eu >fui e falei<, “ah, vou


188 fazer pra enfermagem”... aí FIZ... opassei,
189 passei be::nzão, fiquei SUPER felizo... na época
190 eu lembro que eu fiquei até muito feliz e meus
191 pais, assim, não... não é que eles não
192 >reconheceram<, mas eles ficaram assim
193 >indiferentes<, “pô, que legal que você passou”,
194 sabe?, não foi aquela FE::Sta, >aquela coisa<...
195 porque, eu que ia, né... porque eu sabia o tanto
196 que eu tinha estudado, que... foi DIFÍ::CIL... e
197 que muitas pessoas, assim, lá no curso... é::...
198 ficavam tirando o::nda... ficavam falando que
199 eram os melho::res e tudo... porque tinha muito
200 isso lá no curso.
201 Joana [É::
202 Kátia E ficava aquela coisa assi::m... e eu assim,
203 sempre, eu... não conhecia, não era de amizade
204 com ninguém... nada, era a MENOS popular... oaío,
205 “CARACA... consegui passar”... foi assim, MUITO
206 legal...

(Kátia, 2 de outubro de 2009)

Considero a narrativa de Kátia bastante complexa em termos estruturais,


constituída de rupturas, sub-enredos, idas e vindas no fluxo narrativo. Acrescenta-
se a isso o emprego de sofisticados recursos linguísticos de performance, com
particular destaque para a fala relatada (Richards, 1999; Tannen, 1989). Procurarei
criar inteligibilidade sobre a narrativa de Kátia dividindo-a em dois momentos: a)
156

a história de como o CEFET/RJ não fazia parte dos seus planos inicialmente; e b)
a história dos antecedentes e desdobramentos relativos à sua chegada à instituição.
Kátia, no início de sua narrativa, constrói discursivamente seu projeto de
tornar-se aluna da FAETEC (ver nota de rodapé 35) como uma ideia fixa,
inabalável, uma meta a ser atingida. O emprego de repetições, de fonologia
expressiva e do diálogo construído como discurso interior (Tannen, 1989)
contribui para o efeito de obstinação, de pensamento insistentemente executado,
quase como um mantra que, por força da repetição, seria convertido em realização
de fato.

“eu queria entrar mu::ito na faetec.” (linhas 128-129)


“Aí eu, “não, >eu quero entrar na faetec, eu quero entrar na
faetec<”” (linhas 132-133)
“Aí eu opensandoo “não, >quero faetec, quero faetec<”” (linhas 137-
138)
“O meu objetivo era <FAETEC>.” (linhas 154-155)
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“Eu QUERIA faetec.” (linha 157)

Esses dispositivos linguísticos de performance sugerem, inicialmente, estar


Kátia convicta de seu projeto a ponto de não cogitar a possibilidade de prestar
concurso para outras instituições de cunho tecnológico. O interesse da aluna pela
FAETEC, entretanto, assume contornos exclusivistas por uma razão central:
Kátia, simplesmente, desconhecia a existência de outras escolas da mesma
natureza que a FAETEC (“Eu não conhecia o cefet, não conhecia
cefeteq, não conhecia esse MUNDO de escola técnica.” – linhas 128-
130). Por meio de estrutura paralelística (pela repetição de “não conhecia”),
Kátia reforça esse desconhecimento que, como consequência, restringe suas
escolhas e seu campo de possibilidades (Velho, 1994). Entra em cena uma sub-
narrativa sobre a menina do ponto de ônibus (“e eu sempre via uma menina
no ponto que pegava ônibus comi::go, da, da::... faetec.” – linhas
133-135), contribuindo sensivelmente para a construção desses limites a que Kátia
está submetida socialmente. Como Kátia só vê, em seu cotidiano e arredores
geográficos, o logotipo da FAETEC no uniforme escolar da menina do ponto de
ônibus, esta instituição assume status de existência (“Então eu só conhecia a
faetec.” – linha 135), enquanto as demais, simplesmente, inexistem no seu
repertório de conhecimento (“Perto da minha casa não tinha assim,
157

NINGUÉM do cefe::t, cefete::q.” – linhas 136-137). Somente quando se


matricula em um curso preparatório é que Kátia toma ciência da existência de
outras instituições educacionais de nível médio-técnico. É interessante notar o
binarismo construído discursivamente pela aluna: de um lado, o ponto do ônibus,
a casa, a FAETEC; do outro, o “mundo de escola técnica, cefet, cefeteq,
o
essas coisas assimo” (linhas 152-154). Ainda assim, mesmo após ter
conhecido esse mundo novo em toda sua amplidão, Kátia segue repetindo seu
mantra: “O meu objetivo era <FAETEC>.” (linhas 154-155).
Subordinada a essa narrativa nuclear na qual o CEFET/RJ não figura, de
forma estelar, no projeto educacional de Kátia, emerge outra sub-narrativa que
coloca em cena dois atores sociais fundamentais nas escolhas e projetos
elaborados pela aluna: seus pais. Sua entrada em um curso preparatório torna-se
alvo de disputa entre os valores antagônicos de pai e mãe. De um lado, o pai,
resistente (“com muita resistência” – linhas 140-141), desaprova a entrada de
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Kátia no curso preparatório, considerando os possíveis abalos no orçamento


familiar (“essa época era até a época que meu pai tinha ficado
desemprega::do” – linhas 143-145; “ele <não QUERIA> que eu entrasse no
cu::rso, até por mais ga::sto e tudo” – linhas 146-148); do outro, a mãe
incentiva que a filha seja matriculada no curso, tornando relevante a retórica da
luta e do sacrifício, tão notória em boa parte das camadas populares (“nem que
seja assim com muito esforço, tudo, mas ela vai entrar” – linhas 149-
150). Quanto ao emprego de dispositivos avaliativos/metanarrativos, vale destacar
o emprego da fala relatada para dramatizar o diálogo entre pai, mãe e filha quando
da decisão sobre a entrada de Kátia em um curso preparatório. Observa-se que, no
diálogo construído, o pai dirige sua fala à filha (por meio da forma de tratamento
“você” – linha 142) enquanto a mãe fala com o pai, referindo-se à filha pela
forma pronominal “ela” (linhas 149-150). Sugere-se, assim, que a mãe ocupa um
lugar decisivo nas escolhas e projetos envolvendo a educação formal de Kátia,
ancorada em um ethos que enaltece o esforço de agora em nome de resultados
favoráveis no futuro. Na reconstrução desse diálogo familiar, o lugar social
ocupado por Kátia é o de ouvinte e de filha obediente às decisões tomadas por pai
e mãe.
158

“meu pai falou assim... “ah, você tira nota bo::a, >você não
precisa entrar< no curso”.” (linhas 141-143)
“aí minha mãe falou assim, “não, não, ela vai entrar osimo... nem
que seja assim com muito esforço, tudo, mas ela vai entrar”.”
(linhas 148-150)

A inserção dos membros da família como personagens dessa trama


envolvendo a tomada de decisões acerca dos caminhos a serem trilhados por Kátia
provoca uma virada em sua narrativa, fazendo o CEFET/RJ sair do plano da
inexistência para o da possibilidade. Novamente, a fala relatada assume um papel
relevante, uma vez que traz para o evento narrativo a ação dos personagens,
conferindo vivacidade ao relato e envolvendo fortemente a audiência no tecer da
história. O diálogo travado entre Kátia e sua mãe reelabora o projeto inicial da
aluna (no caso, ter a FAETEC como objetivo maior e exclusivo) em função de
fatores outros, como a distância entre escola e residência e as dificuldades do
porvir.
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“não, você pode até fazer a


prova oe tudoo, mas... pensa
também nas dificulda::des “tá, mãe, não
de você... conseguir sei” (linha 167)
terminar esse cu::rso... de
passar... em TUDO, né?”
(linhas 162-165)

“ah, faz então cefet e


“Ah, então tá
faetec. O que você passar
você fica, até porque o bom”. (linhas 170-
cefet é mais perto” (linhas 171)
168-170)

A reconstrução do diálogo entre mãe e filha, sob forma de discurso direto,


confere à plateia acesso direto ao evento narrado e dá visibilidade aos valores e
crenças da comunidade da qual fazem parte as atrizes sociais em cena. A mãe de
Kátia atua como conselheira e protetora que antecipa possíveis dificuldades que a
filha enfrentaria caso seguisse à risca seu projeto inicial. Os anseios individuais de
Kátia (“eu queria... sempre quis algo relacionado com matemática,
eu queria <contabilidade>.” – linhas 158-160) são cerceados por
mecanismos sociais mais englobantes capazes, inclusive, de fazê-la mudar suas
escolhas. A distância entre a escola e sua casa (“Só que contabilidade na
159

faetec era em <Marechal Hermes>” – linhas 160-161), o horário em que as


aulas seriam oferecidas (“até porque a faetec era integral.” – linhas 165-
166) e a própria restrição financeira da família (“meu pai tinha ficado
desemprega::do” – linhas 144-145) são elementos que inviabilizam a execução
do projeto de Kátia como empreendimento individual. Os aconselhamentos de sua
mãe atentam a aluna para o campo de possibilidades (Velho, 1994) a seu dispor e,
portanto, suas escolhas e “sonhos” são circunscritos em condições sócio-históricas
(e também econômicas) específicas. O CEFET/RJ surge, assim, como melhor
alternativa: uma escola de renome, que oferece formação em nível Médio-
Técnico, e (mais importante) perto de casa (linha 170). A escolha do curso técnico
quando da inscrição para o processo seletivo é construída como algo menos
atrelado a uma intenção individual e mais atrelado à ordem relacional de seu
grupo de origem. Não à toa, Kátia seleciona o curso de Enfermagem em função de
Andréia, aluna do mesmo curso e colega de classe de Kátia desde a infância.
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“>a Andréia estudava< comigo desde a... terceira série.” (linhas 176-
177)
“a gente estudou juntas desde a terceira série” (linhas 179-180)
“eu falei assim... “ah, vou botar enfermagem. Pelo menos se eu
o
passar, eu estudo com a Andréia, eu já conheço alguém da escola e
tudoo”” (linhas 180-183)

O fato de Kátia e Andréia terem estudado juntas por um tempo considerável


é empregado como argumento para a decisão acerca da escolha do curso. Não
figura, na performance de Kátia, a noção de vocação ou de aptidão para a área
técnica de Enfermagem; pelo contrário, os valores que orientam a escolha de
Kátia são o da relacionalidade, o do gregarismo e o do conforto proporcionado por
ter alguém já conhecido em um ambiente novo. Uma vez mais, a fala construída
como discurso interior (Tannen, 1989), nas linhas 180-183, atua como dispositivo
linguístico de performance que confere dramaticidade e vivacidade ao que fora
dito (ou apenas pensado) pela aluna – é provável que tais palavras não tenham
sido efetivamente ditas. Mais importante que o futuro profissional para Kátia
parece ser “sentir-se em casa”, valor bastante caro às camadas populares, em geral
(Duarte & Gomes, 2008). A aluna vislumbra chegar a um lócus educacional novo,
sem romper totalmente o esquema relacional já tecido ao longo dos anos, desde a
época da infância.
160

Na construção discursiva de sua chegada ao CEFET/RJ, Kátia elenca


elementos que sugerem ter sido sua aprovação no concurso uma obra do acaso
(assim como fizera Wagner em sua performance narrativa, na cena 3). O fato de
ter feito sua inscrição “no penúltimo ou no último dia de inscrição”
(linhas 171-172) e de não ter referências para a escolha do curso técnico (“e NÃO
TINHA noção do curso que eu ia fazer aquihh.” – linhas 173-174) sugere
pouca agentividade por parte da aluna. Isso é ressaltado pela falta de expectativas
em relação à possibilidade de aprovação.

“MAS eu NÃO ACREDITAVA que eu ia passar, sinceramente eu achava


que eu não iria passar” (linhas 183-185)
“porque todo mundo falava que era MUITO mais DIFÍCIL a federal do
que a estadual” (linhas 185-187)

O conectivo adversativo “MAS” (linha 183) delimita uma cisão entre os


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planos de Kátia de estudar com sua colega de infância e o descrédito em relação à


concretização desses planos. A expressividade fonológica empregada em “NÃO
ACREDITAVA” (linha 183) e “MUITO mais DIFÍCIL” (linha 186) sinaliza que um
percurso árduo estava por vir e, consciente das dificuldades que enfrentaria, Kátia
apresenta-se mais inclinada a crer no fracasso nessa empreitada. Eis que vem a
aprovação para o CEFET/RJ e a história muda de rumo. A noção de esforço, que,
até então, não figurava na narrativa de Kátia, assume notoriedade e, além disso,
ocorre uma ressignificação identitária da aluna em termos de auto-afirmação e
auto-estima.
A felicidade pela boa aprovação no concurso (“opassei, passei

be::nzão, fiquei SUPER felizo” – linhas 188-189) não é celebrada pela


família (“não foi aquela FE::Sta, >aquela coisa<” – linha 194), nem se
converte em lágrimas, como ilustram as narrativas de Manuela e Wagner (cenas 2
e 3, respectivamente). A fala relatada que reconstrói a reação dos pais diante da
notícia da aprovação da filha para o CEFET/RJ (“pô, que legal que você
passou” – linha 193) é interpretada por Kátia como relativa indiferença. A
felicidade de Kátia é construída discursivamente em oposição à reação dos pais
por meio do emprego da partícula adversativa “e” (linha 190), conforme ilustra o
esquema abaixo:
161

“e meus pais, assim, não... não é


“eu lembro que eu fiquei que eles não >reconheceram<, mas
eles ficaram assim >indiferentes<,
até muito feliz” (linha 190)
“pô, que legal que você passou”,
sabe?, não foi aquela FE::Sta,
>aquela coisa<” (linhas 190-194)

Suponho que o repertório de conhecimentos dos pais de Kátia se assemelhe


ao estado identitário construído por ela no início de narrativa, quando ainda “não
conhecia esse MUNDO de escola técnica.” (linhas 129-130); isso talvez
justifique essa “indiferença” – se é que podemos nomeá-la como tal. Por outro
lado, Kátia procura enaltecer o percurso trilhado por ela até sua chegada ao
CEFET/RJ bem como sua reelaboração identitária decorrente dessa conquista. Se,
anteriormente, os recursos linguísticos empregados pela aluna sinalizavam que
sua chegada à instituição (caso acontecesse) seria resultado do acaso (já que a
prova seria difícil, o curso de Enfermagem foi escolhido por influência de uma
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colega, e seu objetivo era, unicamente, passar para a FAETEC), agora o ethos do
sacrifício, da luta, do esforço individual entram em cena na performance narrativa
de Kátia: “porque eu sabia o tanto que eu tinha estudado, que... foi
DIFÍ::CIL” (linhas 195-196). A aluna também constrói sua aprovação em termos
de auto-engrandecimento de si, no sentido de fazer emergir uma auto-estima até
então desconhecida. A aluna que “não era de amizade com ninguém” (linhas
203-204), “a MENOS popular” (linha 204), mostra seu valor e comprova,
publicamente, sua capacidade para aqueles que “ficavam tirando o::nda...
ficavam falando que eram os melho::res” (linhas 198-199). O êxito
alcançado por Kátia fá-la reconstruir sua história e sua auto-imagem à luz do
momento presente e tendo em vista os valores moralmente reconhecidos por sua
comunidade e audiência.
A cena a seguir aborda noções já performadas na narrativa de Kátia no que
tange a dois aspectos: a) a chegada ao CEFET/RJ motivada por um ethos mais
coletivista que individual; e b) o lugar central ocupado pela família no âmbito das
camadas populares. A cena 5 foi extraída da entrevista com Carlos, aluno do 3º
ano do Ensino Médio-Técnico de Enfermagem que tinha dezessete anos de idade
e residia em São João de Meriti, município da Baixada Fluminense bem próximo
à cidade do Rio de Janeiro e entre as mais altas densidades demográficas do
162

continente americano. Carlos era, assim como Carina (cena 1), candidato à vaga
de bolsista de Iniciação Tecnológica, cujas atividades estariam vinculadas,
necessariamente, ao meu projeto de pesquisa. Carlos foi o candidato selecionado
para trabalhar como meu auxiliar de pesquisa e, por esta razão, é o único
participante que não teve seu nome substituído por outro de natureza fictícia.
Carlos não constrói, propriamente, uma narrativa de sua chegada à instituição,
assim como acontecera nas cenas 1 a 4. Entretanto, creio ser producente incluí-la
neste primeiro eixo temático de análise de dados uma vez que as motivações e
justificativas pelas quais Carlos escolhera o curso de Enfermagem assemelham-se
às das demais cenas discutidas até aqui.

5.1.5.
Cena 5: “Minha mãe sempre foi hipertensa”
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215 Talita Entendi. Como é que é a sua relação com o curso


216 técnico?
217 Carlos De enfermagem
218 Talita É... Você gosta do curso, pretende seguir?
219 Carlos [Eu gosto do curso. Eu
220 gosto do curso de enferma::gem... eu... até,
221 sempre gostei de Biologia, foi isso que me
222 motivou a fazer... é::... eu acho
223 interessante... poder tá ali::... vendo, tendo
224 como objeto de estudo o corpo huma::no,
225 principalmente... olhar pra MIM MESMO e poder
226 ver que que eu, VER o que eu to aprendendo aqui
227 em mim... é::, eu, EU, eu... tenho o curso, o
228 técnico de enfermagem... como::... pretendo ter
229 no futuro como uma opção, de empre::go... se um
230 dia eu precisar... mas eu quero almejar algo,
231 algo melhor, assim... uma formação, é::... no
232 ensino superior. No momento ainda to meio
233 indefinidohhh ((riso)), se eu faço... se eu vou
234 pra área de saú::de, se eu faço enfermagem... OU
235 se eu faço:: história ou língua Portuguesa...
236 mas a minha relação com o curso de, com o curso
237 é esse... eu acho interessa::nte por... poder tá
238 >ajudando< as pesso::as, por... no futuro eu
239 vou... poder AJUDAR... seres huma::nos com
240 aquilo que eu to aprendendo... e até:: uma
241 questão interessante que eu gosto mui-, é uma
242 coisa... que me motivou a fazer o curso, e
243 que::... ((longa pausa)) e assim, foi o ponta-,
244 um dos pontapés inicia:is... foi que eu...
245 sempre::... minha mãe sempre foi hipertensa...
246 Talita Uhum
247 Carlos aí eu... sempre... >eu tive<, sempre quis
248 aprender algo... pra poder, sempre::... >quando
249 ela tinha problema de pressão a::lta, assim<...
163

250 minha mãe tem quarenta e quatro anos... aí eu...


251 sempre tive o desejo de... aprender pra poder
252 ajudar ela... aí eu... foi um dos, uma das
253 >minhas maiores motivações<... e eu acho que
254 isso SÓ aumenta a minha relação com o curso,
255 assim, me dá MAIS motivação pra tá ali...
256 ÍNTEGRO com o conteúdo.
257 Talita Entendi.
258 Carlos Pra aprender MAIS pra poder utilizar.

(Carlos Vinícius, 4 de maio de 2010)

A narrativa construída por Carlos ocorre em função de duas perguntas feitas


por mim acerca de seu cotidiano e expectativas como aluno do curso técnico
(“Como é que é a sua relação com o curso técnico?” – linhas 215-216;
“Você gosta do curso, pretende seguir?” – linha 218). Para dar conta do
que eu havia perguntado, Carlos dá início a uma narrativa cujo ponto é justificar
os motivos que o conduziram a tal curso técnico. Após o sumário (“Eu gosto do
curso. Eu gosto do curso de enferma::gem” – linhas 219-220), o aluno
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constrói uma narrativa mínima com base em uma lógica de causa e efeito: o
apreço pessoal pela disciplina do currículo básico mais diretamente relacionada ao
curso de Enfermagem é o que leva Carlos a escolher tal área técnica.

“eu... até, sempre gostei de Biologia,” (linhas 220-221)


“foi isso que me motivou a fazer” (linhas 221-222)

Das linhas 222 a 227, Carlos enumera uma sequência de cunho avaliativo
que enaltece o quão interessante sua área técnica se apresenta em função de sua
relação direta com o corpo humano (“vendo, tendo como objeto de estudo
o corpo huma::no” – linhas 223-224) e por seu aspecto prático (“olhar pra
MIM MESMO e poder ver que que eu, VER o que eu to aprendendo aqui
em mim” – linhas 225-227). Nas linhas seguintes, Carlos focaliza a dimensão
instrumental de sua formação profissional, com meio de se conseguir inserção no
mercado de trabalho (“de empre::go” – linha 229), ressaltanto, porém, que seus
objetivos vão além dessa visão mais utilitarista. Apesar de estar em dúvidas sobre
que caminhos trilhar futuramente (“No momento ainda to meio

indefinidohhh ((riso))” – linhas 232-233), Carlos não titubeia no que


concerne à continuidade de seus estudos. O aluno atribui ao ensino superior uma
164

valoração positiva, um status mais elevado e prestigioso em comparação à


formação de nível Médio-Técnico.

“eu... tenho o curso, o técnico


de enfermagem... como::... “mas eu quero almejar algo,
pretendo ter no futuro como uma algo melhor, assim... uma
opção, de empre::go... se um formação, é::... no ensino
dia eu precisar...” (linhas 227- superior.” (linhas 230-232)
230)

A partícula adversativa “mas” (linha 230) opõe o curso técnico de


Enfermagem ao ensino de nível superior: enquanto aquele é construído como uma
atividade não-prioritária, uma “carta na manga” para condições emergenciais do
jogo da vida (como salienta a conjunção “se”, na linha 229), este é tecido como
uma condição hierarquicamente superior de formação educacional. O ingresso à
universidade figura, no discurso de Carlos, como projeto individual a que se
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aspira. Ao situar o ensino superior como “algo melhor” (linha 231), Carlos
alinha suas aspirações ao ethos de valorização da educação como meio de
ascender na escala social e de adquirir prestígio.
Se, por um lado, as pretensões para a vida universitária parecem guiadas por
uma margem de escolha consciente de Carlos, na condição de indivíduo, o mesmo
não se pode afirmar no que tange à escolha do curso técnico de Enfermagem. A
relação direta entre sua preferência por Biologia e o fazer prático da área técnica
de Enfermagem, ainda que construída como elemento importante na narrativa de
Carlos, minimiza-se frente a uma sub-narrativa sobre a razão mais notória e nobre
para sua chegada ao CEFET/RJ: a doença de sua mãe.
O início dessa sub-narrativa é marcado por rodeios, meandros e hesitações
até que se chegasse ao ponto: querer ajudar sua mãe nos cuidados de sua
enfermidade a partir do conhecimento que adquirisse no curso técnico. Alguns
recursos formais de performance são dignos de comentário. De início, Carlos
parte de uma visão mais generalista acerca do trabalho com tal área técnica
(“poder tá >ajudando< as pesso::as, por... no futuro eu vou...
poder AJUDAR... seres huma::nos com aquilo que eu to aprendendo” –
linhas 237-240) até chegar aos benefícios que esse conhecimento poderia
proporcionar no âmbito de uma sociabilidade mais íntima, no seio familiar
165

(“sempre tive o desejo de... aprender pra poder ajudar ela” – linhas
251-252). A mudança de uma preocupação com as pessoas em geral para o
cuidado com a saúde de sua mãe é definida por Carlos como “uma questão
interessante” (linhas 240-241). Palavras ditas de forma incompleta (“mui-” –
linha 241; “ponta-” – linha 243), um sem-número de pausas curtas, o emprego de
termos de sentido vago (“é uma coisa” – linhas 241-242) correspondem a
marcas de hesitações que sinalizam a dificuldade de Carlos inserir, em sua
narrativa, um assunto de ordem tão íntima, mas, ao mesmo tempo, de tamanho
sentido simbólico. A longa pausa, na linha 243, sugere uma certa emoção que
antecipa a história que está por vir.
Carlos constrói a orientação de sua narrativa a partir de traços que
caracterizem a personagem central dessa trama e principal responsável pela
chegada do aluno no curso de Enfermagem do CEFET/RJ: sua mãe.
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“minha mãe sempre foi hipertensa” (linha 245)


“>quando ela tinha problema de pressão a::lta, assim<” (linhas 248-
249)
“minha mãe tem quarenta e quatro anos” (linha 250)

Carlos constrói discursivamente a imagem de sua mãe como alguém cuja


saúde inspira cuidados. Daí é que emerge o ponto de sua narrativa: “aprender
pra poder ajudar ela” (linhas 251-252). Carlos ainda apresenta a coda (“aí
eu... foi um dos, uma das >minhas maiores motivações<” – linhas 252-
253) e a resolução (“isso SÓ aumenta a minha relação com o curso” –
linha 254) de sua narrativa, fazendo emergir uma imagem de si como filho
plenamente dedicado ao curso técnico (“ÍNTEGRO com o conteúdo” – linha 256)
em nome de uma causa nobre e digna. Carlos vale-se de um forte ethos de
valoração do pertencimento e relacionalidade familiares e constrói-se
discursivamente como filho honrado que se sacrifica para proteger sua mãe. Trata-
se de um sacrifício que, no âmbito das classes trabalhadoras, confere status e
enobrece o mártir. Os projetos individuais de Carlos, tão claros quando se referem
ao ensino superior, parecem não ter lugar de destaque no âmbito da educação de
nível Médio-Técnico, visto que a saúde de sua mãe figura como motivação
primeira para sua chegada ao CEFET/RJ. Assim como na cena 4, a noção de
projeto é condicionada por mecanismos mais englobantes, como é o caso da
166

família, e a escolha do curso é motivada por interesses mais coletivos que


individuais.
É possível, após a análise das cinco cenas que constituem o eixo temático
nomeado como narrativas de chegada, chegarmos a considerações importantes
acerca dos valores sociais tecidos via recursos linguísticos de performance
narrativa/identitária. Em primeiro lugar, destaca-se a emoção e a carga dramática
com que os alunos narram as histórias de sua entrada no CEFET/RJ. Vimos que,
por vezes, essa emoção deve-se à felicidade do indivíduo que, após superar as
dificuldades do processo seletivo discente, engrandece-se pelo prestígio e auto-
afirmação adquiridos. Em outros momentos, essa emoção assume um viés mais
coletivista, uma vez que amigos e familiares também vivenciam a felicidade pelo
ingresso desse jovem indivíduo em uma instituição de renome na formação
técnica de nível Médio. Seja ela individual ou coletiva, a emoção performada está
fortemente atrelada às crenças e valores acerca dos ganhos futuros e
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desdobramentos da entrada desse aluno na instituição. Não se pode ignorar,


entretanto, a presença de elementos desestabilizadores permeando esse processo
de chegada ao CEFET/RJ. Nem sempre, por exemplo, tal instituição figura
propriamente como uma escolha – um projeto, segundo Schutz (1962) –
autocontida, como apontam os exemplos em que as urgências familiares
circuscrevem, de modo decisório, a entrada no aluno no CEFET/RJ. Do mesmo
modo, ao contrário dos relatos sobre a emoção vivida pelos alunos aprovados no
concurso e seus familiares, fisicamente expressa pelo choro, a cena 4 já apresenta
a relativa indiferença dos pais de Kátia quando da aprovação da filha no
concorrido processo seletivo. Voltarei à discussão desses elementos
desestabilizadores mais adiante a fim de chamar atenção para a importância de se
olhar atentamente para as práticas em vez de localizar uma uniformidade nos
valores e imagens de si construídos via padrões narrativos pelos participantes da
presente pesquisa.
As cenas discutidas até o presente momento apontam que as narrativas dos
alunos da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ ancoram-se em valores
fortemente tecidos no âmbito das camadas populares e, por essa razão, não se
pode ter acesso às trajetórias desses atores sociais sem que se tome conhecimento
de seu ponto de partida. O percurso empreendido depende não apenas do destino
que se quer alcançar, mas, também, da procedência, quer espacial quer simbólica.
167

A próxima seção de discussão de dados (item 5.2) denomina-se “A origem” e


objetiva apresentar as raízes desses alunos no que tange aos valores da localidade
e da família.

5.2.
A origem

Na presente seção, foram relacionadas quatro cenas que trazem à tona


narrativas relacionadas às origens sociais de boa parte dos alunos da UnED de
Nova Iguaçu do CEFET/RJ. Primeiramente, será dado destaque à construção
discursiva da Baixada Fluminense enquanto região sócio-geográfica atravessada
pelos signos da escassez e da precariedade. Em seguida, será focalizado o papel
nuclear assumido pela família no sentido de conduzir a criação dos filhos com
base no ethos de valorização da educação como meio de ascensão social bem
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como em outros valores, tais como a proteção, o trabalho e a religião.


Darei início à discussão das narrativas sobre as origens sociais e raízes
morais desses alunos com Helena, aluna do 3º ano do Ensino Médio-Técnico em
Telecomunicações e outra candidata à bolsa de Iniciação Tecnológica, já descrita
anteriormente no presente trabalho. Helena foi minha aluna durante o ano de 2010
(quando sua entrevista foi gerada e gravada em áudio) e mostrava-se muito
dedicada aos estudos e a outros projetos desenvolvidos na escola, como atividades
de monitoria, clube de Física, entre outros. A aluna tinha dezesseis anos e morava
no bairro Parque Anchieta, localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.
Na cena 6, Helena aponta, como ponto de sua narrativa, a relevância da
implementação do CEFET/RJ na Baixada Fluminense, lugar de ausências para o
qual, segundo a aluna, faltam oportunidades que possibilitem ressignificar a
trajetória de sua gente. A educação pública de qualidade é construída, na fala de
Helena, como possibilidade de reversão do fluxo tradicional capital-periferia e,
consequentemente, de ressignificação das trajetórias de vida de populações
marginalizadas, como a da Baixada Fluminense.
168

5.2.1.
Cena 6: “Esquecem um pouco da gente”

146 Helena Então... é porque, assim, a gente vê que a


147 Baixada Fluminense... é uma área que não é
148 muito::... olhada pelos governantes. Esquecem um
149 pouco da gente. A gente vê, por exemplo, no caso
150 quando tem chu::va... e tal... aqui é uma área
151 que, assim... total, não é totalmente, mas uma
152 área que sofre BASTANTE com i::sso, sabe...
153 com... não dão muita importância, investimentos
154 aqui... então, eu acho que... a implantação do
155 cefet aqui::, foi de uma forma... ou de outra...
156 é:: querer... levar um pouquinho do... assim...
157 >de uma coisa<... como é que eu vou dizer...
158 trazer pra Baixada Fluminense uma coisa que
159 talvez seria mais só ali da cidade do Ri::o...
160 das cidades gra::ndes... dar OPORTUNIDADE a
161 essas pessoas daqui da Baixada Flumine::nse,
162 porque aqui na escola a gente pode ver...
163 existem pessoas de VÁRIAS localidades, não só da
164 Baixada, mas ATÉ do Rio mesmo... que eu sou do
165 Rio... e venho pra cá.
166 Talita [Uhum, você mora
167 aonde?
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168 Helena Eu moro no Parque Anchieta... é... último bairro


169 do Rio ((risos))
170 Talita Aham ((risos))
171 Helena Sentido Baixada... Então, eu moro, eu moro no
172 Rio e venho pra cá... então... e várias pessoas
173 de outros municípios... da Baixa::da ou do Rio
174 vêm pra cá, porque é uma escola de QUALIDADE e
175 que tá num lugar... onde, que:: não tem tantas
176 oportunidades... então a implantação do cefet
177 aqui::... é mais com esse::... ponto de querer
178 dar >oportunidade< realmente às pessoas...
179 daQUI:: e da Baixada Fluminense oem sio.
180 Talita E você acha que as pessoas vêm pra cá mesmo
181 buscando... é:: qualida::de... qualidade de
182 ensino, uma boa escola?
183 Helena Sim... porque::... poxa, existem várias escolas,
184 assim... de ensino médio, às vezes perto da casa
185 da pessoa, mas ela vê, poxa... cefe::t... ensino
186 público FEDERAL... acho que até o emblema de
187 federal... já traz um, uma coisa de::...ocomo é
188 que eu vou dizero... já traz aquilo de::...
189 poxa, é uma coisa que DÁ certo... sabe? A gente
190 vê, poxa, um monte de aluno do cefet se dá bem
191 em faculda::de... consegue empre::go em
192 empre::sas... então, as pessoas, assim, por mais
193 às vezes num... (estejam) muito antena::das e
194 tal, mas já sabem que... por ser uma escola
195 FEDERAL... já traz um cargo de... de...
196 QUALIDA::DE em si, oentendeuo?

(Helena, 4 de maio de 2010)


169

Helena inicia seu relato partindo de uma constatação acerca da região sócio-
geográfica onde se localiza a UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. A Baixada
Fluminense é construída discursivamente como lugar precário no qual a carência
de atenção governamental desdobra-se em sofrimento para a população.

“a Baixada Fluminense... é uma área que não é muito::... olhada


pelos governantes.” (linhas 146-148)
“Esquecem um pouco da gente.” (linhas 148-149)
“uma área que sofre BASTANTE com i::sso” (linhas 151-152)
“não dão muita importância, investimentos aqui” (linhas 153-154)

O relato de Helena acerca da Baixada Fluminense assume um caráter


denunciativo frente ao descaso do poder público em relação à região, ainda que a
aluna procure suavizar sua crítica por meio do emprego de modalizadores (“um
pouco” – linha 149; “não é totalmente” – linha 151). Os verbos “olhar”
(modificado pela partícula negativa “não” – linha 147) e “esquecer” (linha 148)
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situam a Baixada Fluminense na condição de abandono e desprezo e ressaltam a


omissão dos governantes, que não criam condições para a prosperidade material
da região (construída discursivamente por Helena como “investimentos” – linha
153). A expressividade fonológica no vocábulo “BASTANTE” (linha 152) reverbera
a intensidade do sofrimento da Baixada Fluminense, personificando as
dificuldades enfrentadas por sua população. Como argumento para ilustrar tal
quadro de infortúnio, Helena elabora uma narrativa mínima, com verbos no
presente do indicativo, sobre um problema cotidiano na região: as enchentes.

“por exemplo, no caso quando tem chu::va... e tal” (linhas 149-150)


“aqui é uma área que, assim... total, não é totalmente, mas uma
área que sofre BASTANTE com i::sso” (linhas 150-152)

Pela própria composição geológica da Baixada Fluminense, constituída de


planícies baixas entre o mar e a serra nas quais predomina um clima tropical semi-
úmido, a região é naturalmente suscetível a fortes chuvas durante o verão, o que
pode levar à ocorrência de enchentes. Entretanto, na narrativa de Helena, a chuva
é construída discursivamente não como um fenômeno da natureza, mas como um
problema de caráter sócio-político decorrente da falta de investimentos públicos
na região. É interessante ressaltar que a própria UnED de Nova Iguaçu do
170

CEFET/RJ já teve, em inúmeras ocasiões, suas instalações afetadas pelas chuvas


de verão, resultando em perda de equipamentos de laboratórios e entrada de lama
nas cisternas que abastecem a escola com água.
No prosseguimento da cena, a aluna insere o CEFET/RJ como personagem
notório no sentido de reverter o quadro de abandono e precariedade tecido sobre a
Baixada Fluminense. Entra em cena a retórica da oportunidade (bastante presente
nos discursos do senso comum), segundo a qual se crê na mudança no quadro de
privação social e escassez caso sejam oportunizadas maneiras de os sujeitos
mostrarem suas potencialidades e, a partir da chance dada, mudarem de vida. O
CEFET/RJ, inaugurado em Nova Iguaçu, é construído na fala de Helena como a
oportunidade que aproximaria a Baixada Fluminense de um status já consolidado
na capital do Estado.

“dar OPORTUNIDADE a essas pessoas daqui da Baixada Flumine::nse ”


(linhas 160-161)
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“trazer pra Baixada Fluminense uma coisa que talvez seria mais só
ali da cidade do Ri::o... das cidades gra::ndes” (linhas 158-160)
“tá num lugar... onde, que:: não tem tantas oportunidades” (linhas
175-176)
“dar >oportunidade< realmente às pessoas... daQUI:: e da Baixada
Fluminense oem sio” (178-179)

Helena constrói uma dicotomia entre a Baixada Fluminense e a cidade do


Rio de Janeiro, espaços materializados discursivamente por meio dos advérbios
“aqui” (linhas 150, 154, 155, 161) e “ali” (linha 159), respectivamente: aqui, a
terra das ausências, do esquecimento, do sofrimento, do descaso; ali, o destino das
oportunidades tão necessárias à gente “daqui”. É interessante notar, entretanto,
que Helena ressignifica essa dicotomia entre as duas regiões sócio-geográficas
com base na construção de um movimento migratório de contra-fluxo, de trânsito
invertido. Já não é mais o morador da Baixada Fluminense que sai de sua
localidade de origem para buscar as oportunidades na capital: “pessoas de
VÁRIAS localidades, não só da Baixada, mas ATÉ do Rio mesmo ” (163-
164) é que seguem na contra-mão das expectativas tradicionais à procura de uma
educação qualificada em uma instituição de prestígio. Se há uma alteração na rota
prevista, também os significados que construímos sobre esse novo destino serão
revisitados. A imagem da Baixada Fluminense passa, assim, a ser a de um lugar
171

que abriga “uma escola de QUALIDADE” (linha 174). Helena emprega uma série
de dispositivos avaliativos que conferem ao CEFET/RJ uma noção de status,
justificando, assim, o até então improvável fluxo migratório invertido para a
Baixada Fluminense. A fonologia expressiva e o prolongamento de vogais
contribuem para destacar e enaltecer o prestígio da instituição – por exemplo em
“QUALIDADE” (linha 174), “QUALIDA::DE” (linha 196), “cefe::t” (linha 185),
“FEDERAL” (linhas 186, 195). Também o prolongamento de vogais dá destaque
aos efeitos positivos da passagem do aluno pelo CEFET/RJ no que diz respeito à
garantia de ingresso no nível superior e no mercado de trabalho: “faculda::de”
(linha 191), “empre::go” (linha 191), “empre::sas” (linha 192). Do mesmo
modo, chama a atenção o emprego da interjeição “poxa” (linhas 183, 185, 189,
190) como eficiente recurso de avaliação externa que denota certo espanto e
encantamento pela instituição construída discursivamente com base na noção de
prestígio.
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“poxa, existem várias escolas, assim... de ensino médio, às vezes


perto da casa da pessoa” (linhas 183-185)
“mas ela vê, poxa... cefe::t... ensino público FEDERAL” (linhas 185-
186)
“já traz aquilo de::... poxa, é uma coisa que DÁ certo... sabe?”
(linhas 118-189)
“A gente vê, poxa, um monte de aluno do cefet se dá bem em
faculda::de... consegue empre::go em empre::sas” (linhas 189-192)

Na tessitura desse drama que envolve a reconstrução da imagem


tradicionalmente associada à Baixada Fluminense, é preciso chamar atenção para
o alinhamento de Helena dentro desse enredo. A aluna constrói o seu bairro de
residência como “último bairro do Rio” (linhas 168-169) no “Sentido
Baixada” (linha 171). De fato, o bairro Parque Anchieta está localizado no
subúrbio carioca e é vizinho ao município de Nilópolis. Creio, entretanto, que
Helena constrói sua localidade de residência mais em termos simbólicos que
propriamente espaciais. Morar no último bairro do Rio significa estar distante
daquelas oportunidades destinadas às “cidades gra::ndes” (linha 160) e ocupar
o lugar social das ausências e da precariedade, como é comumente o caso da
Baixada Fluminense. Não à toa, Helena constrói-se com membro integrante dessa
comunidade particular por meio do emprego do referente “a gente” (“Esquecem
172

um pouco da gente.” – linhas 148-149). Uma vez mais, Helena torna relevante,
em sua narrativa, a noção de contra-fluxo: a orientação sobre seu bairro segue o
itinerário do trem, ou do ônibus, de sua casa para a escola, ou seja, da capital para
a Baixada Fluminense. Na busca pelas oportunidades não concedidas pelas
instâncias governamentais, percorrem-se caminhos contrários aos comumente
previstos, contribuindo na reelaboração de nossas afiliações identitárias.
As noções de precarização e ausência comumente atribuídas à Baixada
Fluminense também figuram nas narrativas construídas pelos alunos sobre suas
escolas de origem. Não são raros os relatos que situam, em lados antagônicos, o
CEFET/RJ e as escolas onde os alunos cursaram o ensino fundamental. Na cena a
seguir, Kátia (ver descrição da aluna na cena 4) constrói a escola estadual onde
estudara como lugar sem regras, sem cobranças e sem a necessidade de estudar.
Atributos semelhantes são tecidos em relação, também, a sua família.
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5.2.2.
Cena 7: “Eu não estudava na outra escola”

o
99 Kátia Eu também troquei muitoo... Assim, pra MIM,
100 é::... entrar pro cefet foi uma grande
101 conquista... no meu ver, oassimo. <De início>,
102 é... meus pais nunca foram aqueles pais assim de
103 cobrar... igual a Joana falou, de ter aquela
104 coisa assim de passar. Meus pais, assim... é até
105 um pouco, assi::m... aliena::dos em relação a
106 isso, não tinham conhecimento, >que nem<, ainda
107 HOJE eles são assim... só não são tão porque EU
108 entrei, e hoje eles têm mais contato com escola
109 técnica, faculdade pública, com essas coisas...
110 mas assim, era::... eu estudava em escola, é::
111 pública, estadual... não tinha NADA dessas
112 re::gras, assim, era, era até mais diferente,
113 era coisas assim... bem mais so::ltas... é::...
114 você não tinha aquela coisa... eu sinceramente
115 nem precisava estudar pra, pra fazer pro::va...
116 e quando eu entrei pro cefet foi um <baque>
117 porque eu vi que realmente eu precisava
118 estudar... precisava... estar sempre ali
119 estuda::ndo, contando >notinha daqui, notinha
120 dali<, e eu não estudava na outra escola e
121 tirava sempre no::ve, de::z... ah... eu
122 gostavahhh ((risos))

(Kátia, 2 de outubro de 2009)


173

A cena 7 ocorre, na sequência interacional gerada em situação de entrevista


com Kátia, anteriormente aos dados apresentados na cena 4 (item 5.1.4). Na
análise desta, Kátia construíra a reação de seus pais diante da notícia de sua
aprovação para o CEFET/RJ como “indiferença”, ao contrário da maior parte das
narrativas dos alunos, em geral atravessadas por um forte cunho emotivo. A parte
inicial da cena 7 pode ser, assim, interpretada como orientação que constrói
inteligibilidade sobre o “descaso” dos pais, conforme construído por Kátia
anteriormente.

“meus pais nunca foram aqueles pais assim de cobrar” (linhas 102-103)
“Meus pais, assim... é até um pouco, assi::m... aliena::dos em
relação a isso” (linhas 104—106)
“não tinham conhecimento” (linhas 106)

No que concerne à participação e incentivo dos pais de Kátia em relação


aos estudos, a aluna constrói essa relação como algo marcado por certo
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distanciamento. Isso se deve, como já discutido anteriormente, ao fato de o


“mundo das escolas técnicas” (ver cena 4) inexistir no repertório de
conhecimentos desses pais. As partículas negativas “nunca” (linha 102) e “não”
(linha 106), além do prolongamento de vogal na palavra “aliena::dos” (linha
105) podem ser compreendidos como recursos avaliativos que ressaltam essa
noção de afastamento e desconhecimento. Não se trata, portanto, de uma ausência
deliberada, mas justificável em função do campo de possibilidades (Velho, 1994)
que circunscreve as redes de saber e as moralidades desses pais. A narrativa que
Kátia elabora em relação à sua escola anterior ao CEFET/RJ pode elucidar alguns
aspectos referentes ao comportamento dos pais em relação ao valor do estudo.
Kátia sequencia orações narrativas com verbos no pretérito imperfeito para
caracterizar os hábitos e rotinas da época em que era aluna de uma escola da rede
pública estadual. Considero que essa sequência de orações, ao mesmo tempo em
que constrói uma ação complicadora, também funciona como orientação dessa
narrativa, uma vez que apresenta os traços que identificam essa instituição
educacional em particular em oposição à UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ.

“eu estudava em escola, é:: pública, estadual” (linhas 110-111)


“não tinha NADA dessas re::gras” (linhas 111-112)
174

“era até mais diferente” (linha 112)


“era coisas assim... bem mais so::ltas” (linha 113)
“eu sinceramente nem precisava estudar pra, pra fazer pro::va”
(linhas 114-115)
“eu não estudava na outra escola” (linha 120)
“e tirava sempre no::ve, de::z” (linhas 120-121)
“ah... eu gostavahhh ((risos))” (linhas 121-122)

Kátia constrói discursivamente sua escola pública estadual de origem como


um lugar livre de cerceamentos no qual, em oposição à lógica meritocrática típica
de algumas instituições em nossa sociedade, a recompensa chega ao sujeito sem
que seja empreendido qualquer esforço por ela. Kátia não estuda e, ainda assim,
obtém ótimos resultados nos exames escolares (“e tirava sempre no::ve,
de::z” – linhas 120-121). A partir desse quadro de ausência de exigências, por
parte da própria escola, quanto ao empenho necessário à aluna para a obtenção do
dito sucesso escolar, infere-se a razão pela qual os pais de Kátia “nunca foram
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aqueles pais assim de cobrar” (linhas 102-103). Se o rendimento escolar é


alto (como sugerem as notas de Kátia), é compreensível que os pais considerem
que não há por quê se preocupar, tampouco o quê cobrar. A chegada ao
CEFET/RJ é construída como “um <baque>” (linha 116), uma mudança súbita,
justamente porque altera, sensivelmente, a rotina de estudos (ou melhor, da
ausência deles) da aluna.

“quando eu entrei pro cefet” (linha 116)


“eu vi que realmente eu precisava estudar” (linhas 117-118)
“precisava... estar sempre ali estuda::ndo, contando >notinha
daqui, notinha dali<” (linhas 118-120)

A entrada para o CEFET/RJ pode ser entendida como um afastamento de


Kátia de sua condição de origem o qual envolve uma espécie de “civilização” dos
seus hábitos anteriores. A aluna parece ter ciência das consequências negativas
nesse novo ambiente escolar caso não se desenraizasse de sua rotina marcada pela
ausência dos estudos na escola anterior. Kátia constrói sua mudança de hábito
como um processo gradativo, como um “cauteloso pouco a pouco48” sinalizado
pela utilização de formas verbais no gerúndio (“estuda::ndo, contando” –
linha 119) e de estrutura paralelística no diminutivo (“>notinha daqui,

48
Referência ao poema “Ode ao burguês”, de Mário de Andrade.
175

notinha dali<” – linhas 119-120). Assim como na cena 6, a noção de contra-


fluxo assume relevância: devido ao ingresso de Kátia no CEFET/RJ, há uma
alteração (ainda que discreta) no repertório de conhecimentos de seus pais
(“ainda HOJE eles são assim... só não são tão porque EU entrei, e
hoje eles têm mais contato com escola técnica, faculdade pública,
com essas coisas” – linhas 106-109). O fluxo de transmissão de saberes que,
tradicionalmente, parte dos pais para os filhos figura, aqui, no sentido contrário:
são os pais de Kátia que aprendem com ela e, consequentemente, ressignificam
suas identidades sociais.
A narrativa encenada por Kátia constrói um precário quadro da educação
básica na Baixada Fluminense que pode inviabilizar projetos atrelados ao ethos de
valorização do estudo como possibilidade de melhoria de vida e de sobrevivência
aos signos da escassez e precariedade. Não se trata de característica exclusiva das
escolas da rede estadual, como é o caso de Kátia. Em outras narrativas
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performadas por outros alunos participantes da presente pesquisa, também escolas


municipais e particulares figuram um quadro crítico e preocupante no qual a
escolarização é construída discursivamente como insuficiente e inadequada aos
projetos futuros desses sujeitos. Na seção 5.4, focalizarei as narrativas que tratam
especificamente sobre a mudança identitária proporcionada pelo ingresso no
CEFET/RJ e, não raramente, as escolas anteriores são construídas pelos alunos
como hierarquicamente inferiores à nova instituição de ensino.
Se, por um lado, Kátia constrói, na cena 7, a indiferença e alienação de seus
pais frente ao valor do estudo, o mesmo não se pode dizer dos pais de Joana, na
cena a ser discutida a seguir. Joana tinha dezessete anos, residia no Bairro da Luz,
em Nova Iguaçu, e era aluna do 4º ano do curso técnico de Enfermagem, fazendo
parte da mesma classe de Kátia. Joana fazia da UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ uma espécie de “quintal de casa”: um lugar de encontro com amigos,
de descontração, da sociabilidade prazerosa para além do valor atribuído aos
estudos. Os dados nos quais constam as narrativas de Joana foram gerados na
mesma situação de entrevista em grupo da qual participou Kátia e Raquel. Na
cena 8, Joana constrói discursivamente o papel central de seus pais na decisão de
seus rumos educacionais com base em um forte ethos de proteção e vigilância
parentais.
176

5.2.3.
Cena 8: “Meus pais sempre quiseram esse negócio de estudar”

16 Joana Bom ( ) ((risos)) Eu... ahm... os meus pais


17 sempre quiseram esse onegócio deo <ESTUDA::R>...
18 ou na faetec ou no cefet. Então eu sempre fui
19 preparada pra::, pra isso mesmo... eu fiz
20 cu::rso... preparatório pra faetec e opra estudar
21 aquio... depois que eu entrei aqui, >acho que
22 tudo mudou<... até assim >em relação aos meus
23 pais<, ganhei BE::M mais liberdade depois que eu
24 passei pra cá... oacho que aqui foio... o
25 COME::ÇO da, de TUDO pra mim.
26 Talita [e liberdade, como assim?
27 Joana Ah, pra fazer as minhas coisas, assim... é::...
28 tudo, antes, na outra esco::la, era... ah,
29 <responsá::vel>, é... >pra buscar nota<, tinha
30 que ir meu <responsá::vel>, pra <assinar>... aqui
31 não, aqui >já é eu... eu é que tenho que< avisar
32 pra minha mãe... “mãe, ó, tirei ta::nto, tô de
33 recuperação ou nã::o”, essas coisas oassimo...
34 até pra sair. >Na outra escola ainda IA, minha
35 mãe ainda< vinha comi::go, aí dizia “ah, tá
36 perigoso, >vou contigo”, me levava< na
37 esco::la... aqui ela NUNCA precisou... vir me
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38 trazer, opor mais que seja mais longe, néo?


39 Talita Uhum
40 Joana Parece que ela ganhou MAIS confiança assim,
41 também.

(Joana, 2 de outubro de 2009)

O sumário tecido por Joana é bastante claro na explicitação do ponto de sua


narrativa: situar o ethos de valorização da educação como algo cultivado no seio
familiar (“os meus pais sempre quiseram esse o
negócio deo

<ESTUDA::R>” - linhas 16-17). Vêm de berço, de suas origens mais elementares, a


atribuição de um valor positivo à escolarização em instituições de notoriedade e
prestígio social (“ou na faetec ou no cefet” – linha 18) e a necessidade de
que se prepare o caminho para que se chegue a tais instituições. Querer “esse
negócio deo <ESTUDA::R>”
o
(linha 17), por parte dos pais, corresponde a um
desejo fabricado com base na crença no potencial transformador da escolarização
para os filhos das camadas populares. Uma breve sequência de ações, com verbos
no pretérito perfeito, sustenta o ponto da narrativa e reforça a centralidade dos
pais de Joana no preparo e na execução desse projeto de ingresso em uma
instituição educacional renomada.
177

“Então eu sempre fui preparada pra::, pra isso mesmo” (linhas 18-19)
“eu fiz cu::rso... preparatório pra faetec e opra estudar aquio”
(linhas 19-21)

No prosseguir da cena, Joana inicia uma narrativa sobre as alterações


proporcionadas pelo seu ingresso no CEFET/RJ, construído como ponto de virada
(Mishler, 2002) em sua trajetória de vida (“oacho que aqui foio... o
COME::ÇO da, de TUDO pra mim.” – linhas 24-25) e com o sentido de aquisição
de maior “liberdade” (“ganhei BE::M mais liberdade depois que eu
passei pra cá” – linhas 23-24). Indagada por mim a respeito dos significados
em torno dessa noção de liberdade, Joana constrói uma sequência narrativa que
compara a atuação de seus pais no passado, quando era aluna de uma escola
privada, e na atualidade, na condição de aluna da UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ.
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“na outra esco::la” (linha 28) “aqui não” (linhas 30-31)

“era... ah, <responsá::vel>, é... “aqui >já é eu... eu é que


>pra buscar nota<” (linhas 28-29) tenho que< avisar pra minha
mãe... “mãe, ó, tirei
ta::nto, tô de recuperação ou
“tinha que ir meu <responsá::vel>, nã::o”, essas coisas
pra <assinar>” (linhas 29-30) o
assim ...” (linhas 31-33)
o

“>Na outra escola ainda IA, minha “aqui ela NUNCA precisou...
mãe ainda< vinha comi::go” (linhas vir me trazer, opor mais que
34—35) seja mais longe” (linhas 37-38)

“aí dizia “ah, tá perigoso, >vou


contigo”,” (linhas 35-36)

“me levava< na esco::la” (linhas 36-


37)

A “outra escola” (linhas 28, 34) e a UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ


(“aqui” – linhas 30, 31, 37) materializam espacialmente uma oposição entre dois
universos simbólicos díspares: o primeiro, mais regrado e controlado pelos pais; o
segundo, de ações mais independentes por parte de Joana. Se, antes, o
desempenho estudantil era monitorado de perto pelos pais (que iam à escola para
buscar o boletim com as notas bimestrais e atestar conhecimento delas, por meio
178

de uma assinatura – linhas 28-30), agora é Joana, por agentividade própria, que
comunica à família os resultados obtidos. Joana, por meio da fala relatada,
dramatiza essa espécie de “prestação de contas” à mãe (““mãe, ó, tirei
ta::nto, tô de recuperação ou nã::o”” – linhas 32-33) no que diz respeito
ao seu rendimento no CEFET/RJ. O passado da aluna na escola anterior é
construído de modo a posicionar sua mãe como guia, condutora dos caminhos a
serem percorridos (“me levava< na esco::la” – linhas 36-37), bem como
protetora contra as intempéries e inseguranças do cotidiano (“aí dizia “ah, tá
perigoso, >vou contigo”” – linhas 35-36). Já na escola atual, a distância
espacial (“opor mais que seja mais longe” – linha 38) entre outras situações
adversas não são mais tornadas relevantes a ponto de a vigilância materna ser
totalmente descartada. Está em cena um ethos de proteção e vigilância parentais
que, aos olhos de Joana, são interpretados como opressão e falta de confiança
(linha 40). Os pais, por outro lado, parecem construir um sentido mais nobre para
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essa presença física constante nos caminhos trilhados por Joana, ancorando o
significado de suas atitudes na visão de que a família deve proteger e sustentar
seus filhos e conduzi-los ao melhor caminho para que seja considerada honrada.
Os valores cultivados no seio familiar adquirem um papel notório e decisivo
na tessitura do ethos de valorização da educação formal como meio de ascensão
social. Os discursos que circulam nas origens familiares são atravessados pela
crença no estudo como percurso que dignifica o filho das camadas populares,
proporcionando-o benefícios em termos de auto-afirmação, estabilidade, além de
prestígio e notabilidade sociais. A cena a seguir é um exemplo do papel nuclear e
englobante da família nos caminhos a serem percorridos pelos filhos. Desta vez,
além da valoração atribuída à escolarização, a religião, o trabalho e a perpetuação
da família tradicional também figuram como unidades fundacionais relevantes
para os filhos das camadas populares.
A próxima atriz social a se apresentar nesse palco que dramatiza as
moralidades enraizadas nas classes populares é Mariane, aluna do 2º ano Médio-
Técnico em Enfermagem. Na ocasião da entrevista, Mariane tinha dezessete anos
de idade, morava no bairro de Austin, em Nova Iguaçu, e era candidata à vaga de
bolsista de Iniciação Tecnológica. Em certo trecho de sua entrevista, Mariane
elenca seu pai como a pessoa que a levara a acreditar que o CEFET/RJ poderia lhe
proporcionar uma educação diferente das escolas por onde havia circulado
179

anteriormente. Na cena 9, Mariane constrói seu pai não apenas como principal
representante do ethos de valorização da educação, mas, também, como guardião
de valores morais associados à conjugalidade, ao trabalho e à religião.

5.2.4.
Cena 9: “Ele quer que a gente se case, trabalhe e estude”

o
230 Talita Não sabiao. E aí você, você acha que seu pai
231 foi um... um grande... incentivador?
232 Mariane [Sim... acredito que sim... Foi
233 sim, porque, no caso, o meu pai só tem até a
234 oitava sé::rie... e ele acredita... ele, ele faz
235 de tudo... ele fala assim... “eu quero que vocês
236 estu::dem... pra... futuramente vocês ter uma,
237 vocês terem uma estabilidade... porque eu NÃO
238 tive estudo”... Ele tem um bom empre::go <e
239 tu::do>, mas é porque... ele tem uma
240 característica assim... que é, gosta de criar as
241 coisas... aí ele conseguiu, conseguiu a
242 estabilidade dele. MAS... eu... é... ele fala
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243 que eu TENHO que ter estudo... que até mesmo


244 AONDE nós estamos... necessita do estudo, >pra
245 qualquer coisa que a gente vá fazer<. Ele já
246 viveu um tempo atrás, né... em determinada época
247 ele já fez um curso profissionalizante e tá
248 trabalhando na á::rea.
249 Talita Sei, e ele trabalha com quê?
250 Mariane Meu pai é cabeleireiro.
251 Talita Uhum
252 Mariane Aí, ele já trabalha lá em ba::ixo... já...
253 consegue, ele já trabalhou num... salão... que
254 era... no rio sul...
255 Talita Sei
256 Mariane E aí então, ele conseguiu... >estabilidade da
257 vida dele<, mas ele acredita, ele não gosta
258 dessa área... ele fala que <NÃO QUER>... que a
259 gente... siga essa á::rea. Então >ele fala
260 assim<... “eu quero que vocês <ESTUDEM>”.
261 Talita Ele não quer que vocês sejam cabeleireiras?
262 Mariane Não, nada, NADA na área da... da beleza, oele
263 fala queo...
264 Talita [É me::smo?... Mas por quê que ele... que ele
265 diz isso?
266 Mariane É que... onós somos evangélicoso
267 Talita Sim.
268 Mariane e, nessa área... ele fala que::... que nos leva
269 a OUTRAS coisas, entendeu?
270 Talita Aham
271 Mariane Aí ele não gosta, ele fala... que se... por
272 e::le... ele já mudaria... ele falou, “a::h, eu
273 quero comprar uma fazenda pra mim e me mudar
274 LÁhh:: pro interiorhh... ((riso)) que eu não
275 quero mais viver aqui::hh... oe nossao, quando
276 tiver oportunidade to indo embora daqui”... oEle
277 não gostao.
180

278 Talita [Entendi.


279 Então o, o emprego dele é mais assim, pro
280 sustento, né?...
281 Mariane I::sso.
282 Talita É a profissão que tem, mas que ele faz mais...
283 porque ele tem uma estabilida::de, né?
284 Mariane Uhum. É, por isso.
285 Talita E aí ele quer que vocês estudem?
286 Mariane Isso, exatamente... que ele, ele quer que a
287 gente ca::se... e TRABALHE, mesmo casa::da,
288 né... porque hoje tem esse problema todo de
289 famí::lia... hoje, tantos problemas que existem,
290 né?
291 Talita Uhum.
292 Mariane Ele acredita que a gente tem que trabalhar...
293 Talita Uhum.
294 Mariane e se profissionalizar.
295 Talita E você, o que que você pensa disso tudo? Cê, cê
296 concorda com a opinião do seu pai?
297 Mariane [Concordo, PLENAMENTE com ele...
298 porque... eu acho que assim, a gente tá
299 casa::ndo, a gente >tá fazendo<, tá constituindo
300 famí::lia... mas mesmo assim... no momento que a
301 gente tá bem, a gente pode tá ruim...
302 Talita Uhum.
303 Mariane e... eu posso tá hoje casa::da e amanhã já não
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304 ter mais laço nenhum... com aquele homem que me


305 tirou da casa dos meus pa::is e... que me deu
306 sustento por dete, por determinado te::mpo...
307 e... do na::da ficar... ter, ter que voltar pra
308 casa dos meus pais. E, então, eu acho que eu...
309 me qualificando... desde o momento que ele pode
310 me largar, eu posso... seguir meu caminho.

(Mariane, 4 de maio de 2010)

Mariane faz da minha pergunta inicial (“você acha que seu pai foi
um... um grande... incentivador?” – linhas 230-231) o resumo/abstract da
sua narrativa: apresentar seu pai como grande incentivador para seu ingresso em
uma escola que pudesse oferecer um modelo de educação diferente do que, até
então, constituía seu campo de possibilidades (Velho, 1994). Após a reafirmação
desse sumário (“Sim... acredito que sim” – linha 232), a aluna prossegue
com uma sequência de orações narrativas, alternando verbos no presente e no
pretérito que servem de orientação a fim de caracterizar seu pai e os valores
sociais e morais por ele personificados.

“o meu pai só tem até a oitava sé::rie” (linhas 233-234)


“ele faz de tudo” (linhas 234-235)
“Ele tem um bom empre::go <e tu::do>” (linhas 238-239)
“gosta de criar as coisas” (linhas 240-241)
181

“ele conseguiu, conseguiu a estabilidade dele.” (linhas 241-242)


“ele já fez um curso profissionalizante” (linha 247)
“tá trabalhando na á::rea.” (linhas 247-248)
“Meu pai é cabeleireiro.” (linha 250)
“ele já trabalha lá em ba::ixo” (linha 252)
“ele já trabalhou num... salão... que era... no rio sul...” (linhas
253-254)
“E aí então, ele conseguiu... >estabilidade da vida dele<” (linhas
256-257)

Mariane constrói discursivamente a imagem de seu pai com uma pessoa


que, apesar do pouco grau de instrução formal, uma vez que só concluiu o Ensino
Fundamental (“o meu pai só tem até a oitava sé::rie” – linhas 233-234),
conquista sua estabilidade graças à sua capacidade inventiva (apresentada como
um dom, um atributo nato) empregada na sua atuação profissional (“gosta de
criar as coisas” – linhas 240-241). Uma sequência de traços valorativos
acentua a imagem positiva desse pai que atinge sucesso na profissão, chegando ao
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ápice de trabalhar “lá em ba::ixo” (linha 252) – o que, entre as camadas


populares, é sinônimo de “centro da cidade” (downtown). A referência ao “rio
sul” (linha 254), shopping center localizado na Zona Sul da cidade do Rio de
Janeiro, colabora na construção dessa escalada profissional do pai de Mariane,
tendo em vista que tal centro comercial, situado em uma área nobre do Rio de
Janeiro, é comumente visto como destinado a uma clientela com maior poder
aquisitivo. Constrói-se uma hierarquização territorial, em que o “lá em ba::ixo”
(linha 252) e o “rio sul” (linha 254) são vistos como referências de prestígio
social em oposição ao local de origem e residência da família de Mariane: a
Baixada Fluminense. O sucesso na profissão do pai é, assim, medido em função
do local onde trabalha e do deslocamento espacial naturalmente esperado como
signo de ascensão: da Baixada Fluminense para a capital.
Essa ascensão social vivenciada pelo pai, entretanto, não é apresentada
como um modelo a ser seguido. O conectivo adversativo “mas” (linhas 239, 257)
– empregado, também, por meio de fonologia expressiva (“MAS” – linha 242) –
ressalta que, embora a trajetória profissional do pai seja de sucesso, não figura
como exemplo a subsidiar o destino das gerações mais jovens. Chamo particular
atenção, aqui, para o emprego da fala relatada (ora figurando como uma citação
verbatim, ora reconstruída sob a forma de discurso indireto), importante recurso
182

retórico de persuasão (Riessman, 1993) que busca conferir credibilidade ao relato


de Mariane. A aluna apresenta uma série de orações introduzidas pela expressão
“ele fala” e é justamente na fala do pai que o ethos de valorização da educação
como forma de ascensão social (particularmente no que tange à aquisição de
estabilidade) se faz, repetidas vezes, presente.

“ele fala assim... “eu quero que vocês estu::dem... pra...


futuramente vocês ter uma, vocês terem uma estabilidade... porque
eu NÃO tive estudo”” (linhas 235-238)
“ele fala que eu TENHO que ter estudo” (linhas 242-243)
“ele fala que <NÃO QUER>... que a gente... siga essa á::rea.”
(linhas 258-259)
“Então >ele fala assim<... “eu quero que vocês <ESTUDEM>”.” (linhas
259-260)

O ethos de valorização da educação assume notoriedade na fala do pai


(reconstruído por Mariane em sua narrativa) e destrona qualquer possibilidade de
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o modelo de ascensão social do pai ser adotado como referência para as gerações
mais jovens da família. De algum modo, Mariane já está no caminho de
afastamento de sua condição social herdada, uma vez que está em um curso de
nível Médio-Técnico, diferentemente do que fizera seu pai. Como aponta a fala do
pai, a condição elementar para garantir a estabilidade futura de Mariane são os
estudos, e não outras vias possíveis. A palavra de ordem é, portanto, “estudar”. O
discurso do pai parece bastante alinhado com esse ethos, típico das classes
populares, que concebe a educação como forma se ascender socialmente com
dignidade. “AONDE nós estamos” (linha 244) – leia-se “na Baixada Fluminense”
–, o pobre só alcança estabilidade frente às lutas do dia-a-dia se estudar. O
descrédito atribuído à Baixada Fluminense e a precariedade dos serviços
oferecidos na região poderiam sugerir pouca (ou nenhuma) necessidade de mão-
de-obra especializada via escolarização formal. O pai de Mariane, entretanto,
atribui um valor positivo e emergencial à educação, ainda que, no nível do
discurso, a Baixada Fluminense continue ocupando um lugar menor – “ele fala
que eu TENHO que ter estudo... que até mesmo AONDE nós estamos...
necessita do estudo, >pra qualquer coisa que a gente vá fazer<”

(linhas 242-245). Se “até mesmo” (linha 243) na Baixada Fluminense a


183

escolarização se faz necessária, supõe-se que em regiões geográficas de maior


prestígio social essa urgência se faça ainda maior.
Se, por um lado, o acesso à educação formal pode ser entendido como um
caminho para que o filho das classes populares chegue às camadas médias por
processos de individualização (Velho, 2008 [1981]), não se pode ignorar a
natureza plural da sociedade complexa moderna contemporânea, onde valores
contraditórios e permanentemente em disputa co-habitam. Comumente são
associadas às classes populares características como o holismo, o gregarismo e a
hierarquização e, a meu ver, esses valores parecem bastante presentes na fala do
pai de Mariane. Assim, ao mesmo tempo em que esse pai incentiva sua filha a
estudar para conquistar sua estabilidade, o tripé família/trabalho/localidade
(Duarte, 1986) continua sendo pilares importantes (e bastante firmes, por sinal).
Há, portanto, uma coexistência de ethos no discurso do pai e, por consequência,
no de Mariane: religião (linha 266), conjugalidade (linha 287) e trabalho (linhas
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287, 292, 294) figuram como orientadores de condutas moralmente valorizadas,


assumindo uma importância equivalente à dada à educação escolarizada.
A (espécie de) proibição do pai para que a filha não atue profissionalmente
“na área da... da beleza” (linha 262) poderia sugerir uma noção de sub-
empregabilidade à ocupação de cabeleireiro do pai (linha 250), em contraste com
uma formação de nível Médio-Técnico adquirida em uma instituição formal de
ensino, como é o caso do CEFET/RJ. A hesitação de Mariane, entretanto, ao
procurar justificar a proibição do pai sem mencionar diretamente as razões para tal
(conforme aponta a vaga oração “que nos leva a OUTRAS coisas”, linhas 268-
269), sugere que há valores outros em pauta, mormente no que concerne à
importância da religião (“É que... onós somos evangélicoso” – linha 266) e
ao lugar social da mulher nas camadas populares (“ele quer que a gente
ca::se... e TRABALHE, mesmo casa::da” – linhas 286-287). “Levar a outras
coisas” pode sugerir um desvirtuamento não desejado, uma corrupção dos valores
aprendidos no seio familiar, a perda da inocência original pelo contato com os
valores das camadas médias urbanas. Todas essas sugestões caracterizam uma
visão romantizada acerca dos valores cultivados nas classes populares (Duarte,
1986), na qual, para não ser corrompido e levado “a outras coisas”, o sujeito
investe na preservação de seus atributos originais e, para tanto, foge dos centros
urbanos.
184

“ele falou, “a::h, eu quero comprar uma fazenda pra mim e me mudar
LÁhh:: pro interiorhh... ((riso)) que eu não quero mais viver
aqui::hh... oe nossao, quando tiver oportunidade to indo embora
daqui”” (linhas 272-276)

Na continuidade da interação, pergunto a Mariane se ela se alinhava ao


discurso do pai (“Cê, cê concorda com a opinião do seu pai?” –linhas
295-296). Não posso deixar de mencionar a minha surpresa com a narrativa
construída pela aluna. O estudo, até então elemento principal de dignificação e de
possibilidade de mobilidade social, passa a figurar, no discurso de Mariane, como
uma espécie de “plano B” para o caso de os projetos anteriores fracassarem. A
aluna se alinha integralmente ao discurso de seu pai (“Concordo, PLENAMENTE
com ele” – linha 297), configurando uma nova hierarquia de valores: em
primeiro plano, o casamento; em seguida, o mercado de trabalho; por fim, a
profissionalização via formação educacional.
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“ele quer que a gente ca::se... e TRABALHE, mesmo casa::da” (linhas


286-287)
“Ele acredita que a gente tem que trabalhar” (linha 292)
“e se profissionalizar.” (linha 294)

Na cena 9, o estudo, que, até então, figurava como forma de aquisição de


estabilidade, é construído discursivamente como um conhecimento a ser acionado
em caso de desmoronamento nas relações de conjugalidade (“porque hoje tem
esse problema todo de famí::lia” – linhas 288-289). Diante da instabilidade
nos matrimônios contemporâneos (“no momento que a gente tá bem, a
gente pode tá ruim” – linhas 300-301), a carta na manga para continuar no
jogo da vida, o Plano B para o caso de o Plano A falhar, é o que se pode fazer
como resultado da escolarização: “E, então, eu acho que eu... me
qualificando... desde o momento que ele pode me largar, eu

posso... seguir meu caminho” (linhas 308-310). Soma-se a esse novo status
ocupado pelo ethos de valorização do estudo, construído discursivamente na
narrativa de Mariane, a maneira como os lugares sociais de homem e mulher são
apresentados: ao homem, cabe-lhe o papel de provedor e agente central do ente
moral família; à mulher, reserva-se uma condição inferior nessa hierarquia
conjugal.
185

“aquele homem que me tirou da casa dos meus pa::is” (linhas 304-305)
“que me deu sustento por dete, por determinado te::mpo” (linhas 305-
306)
“do na::da ficar... ter, ter que voltar pra casa dos meus pais”
(linhas 307-108)
“ele pode me largar” (linhas 309-310)

As ações referentes ao papel masculino são marcadas por verbos na voz


ativa (“tirou” – linha 305, “deu sustento” – linhas 305-306, “largar” – linha
310), enquanto a mulher é objetificada sob a forma pronominal “me” (“me tirou”
– linhas 304-305, “me deu sustento” – linhas 305-306, “me largar” – linha
310). A tradicional relação hierárquica familiar, na qual o homem assume um
papel agentivo e, à mulher, resta a condição de passividade, é legitimada como
caminho moralmente correto, uma vez que aprendido em família e na religião,
pelos valores do pai.
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Admito que esse alinhamento de Mariane, especialmente em relação ao


papel secundário da mulher na vida em sociedade, provocou em mim um sensível
desconforto e certa perplexidade. Como membro proveniente das classes
populares e da Baixada Fluminense, não me reconheci na narrativa de Mariane e,
da mesma forma, não esperava encontrar um discurso tão tradicionalista em um
contexto educacional caracterizado pela própria Mariane como “uma escola
diferente” (ver anexos). A partir da entrevista feita com Mariane, pude concluir
que essa concepção mais conservadora jamais deixou de existir, mesmo com as
transformações do mundo contemporâneo. Como aponta Velho (2008 [1981], nas
sociedades complexas, central é a noção de coexistência de consensos e tensões,
continuidades e rupturas. Nesse sentido, a própria UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ miniaturiza a complexidade da vida contemporânea, em que mundos e
discursos díspares co-habitam.
Ao término da presente seção, alguns aspectos merecem ser recuperados de
modo a destacar os principais valores sociais construídos nas narrativas de
origem aqui discutidas. Primeiramente, é inegável o papel estelar ocupado pela
localidade e pela família nas quatro cenas apresentadas. A Baixada Fluminense e
as escolas anteriores ao ingresso desses alunos na UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ são construídas com base nos signos da precariedade e das ausências.
Nesse sentido, a educação figura como possibilidade de reversão desse quadro
186

problemático do qual se originam os participantes desta pesquisa. Já a família


corresponde a um importante ente formador das moralidades fundacionais dos
sujeitos oriundos de classes populares, especialmente no que concerne ao valor do
trabalho, da conjugalidade e da religião. Somado a isso, a família figura como
principal fomentador do valor positivo atribuído à educação formal como meio de
ascensão social. Não se pode, entretanto, ignorar o campo de tensões e
desestabilizações no qual as relações sociais aqui discutidas se dão. Se, por um
lado, parece consensual dizer que boa parte das famílias de classes populares
valorizam a escolarização formal, o mesmo não se pode afirmar, por exemplo, a
respeito da família de Kátia (cena 7). A imagem do pai de Mariane (cena 9), como
incentivador dos estudos da filha e guardião dos valores morais familiares, parece
cair em contradição quando sabemos da profissão (cabeleireiro) e da orientação
religiosa (cristã evangélica) desse pai. Também surpreende o fluxo invertido
sinalizado por Helena (cena 6) ao falar dos alunos da cidade do Rio de Janeiro que
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buscam uma educação de qualidade na região periférica da Baixada. A análise das


cenas aqui elencadas só reforçam a complexidade e as ambiguidades da vida em
sociedade, os movimentos de ida e vinda, de continuidades e rupturas, eliminando
a possibilidade de incorrermos em uma leitura única e engessada acerca do
contexto sócio-interacional em estudo.
Passarei, agora, ao item 5.3, no quais serão apresentadas narrativas que
encenam as dificuldades e sacrifícios vivenciados pelos alunos da UnED de Nova
Iguaçu do CEFET/RJ, focalizando os significados construídos discursivamente
acerca dessas noções.

5.3.
O (per)curso

Na presente seção, o que denomino narrativas de (per)curso refere-se a


enredos que encenam, em especial, as dificuldades vivenciadas pelos alunos da
UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ antes do ingresso ou durante a estada na
instituição. Noções concernentes ao esforço e cansaço vividos pelos discentes, às
perdas, aos fracassos, enfim, a toda sorte de obstáculos e sacrifícios são
performadas discursivamente nas seis cenas que se seguem. Procuro criar
187

inteligibilidade acerca de como os narradores das cenas abaixo constroem


significados sobre as dificuldades e sacrifícios vividos e o que isso diz a respeito
de suas identidades sociais e do ethos de valorização da educação como meio de
ascender socialmente.
Darei início à discussão das narrativas de (per)curso com Manuela (ver
descrição da aluna na cena 2), que conta a história das dificuldades que teve de
enfrentar para tornar-se aluna da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. Manuela
constrói discursivamente seu ingresso na instituição como uma aposta e a si
mesma como alguém que, por dedicação própria, consegue vencer o jogo que à
sua frente se pôs.

5.3.1.
Cena 10: “Eu investi todas as minhas expectativas aqui”
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o
13 Manuela Olhao, antes do <cefe::t>... oeuo, e::u... eu
14 sempre gostei de estuda::r... sempre fui assim
15 muito interessada nessas co::isas, onéo... e,
16 graças a Deus sempre fui muito esforçada... e
17 assi::m... eu tinha::... expectati::vas... meu
18 primeiro objetivo não era vir pro cefe::t...
o
19 néo, mas assim... em decorrência assim de
20 algumas circunstâncias... da minha vida eu
21 acabei vindo pra cá... e isso >pra mim< foi
22 muito bom... Antes eu tive experiências com
23 grê::mio... assim me envolver com pessoas... de
24 dentro da escola... me envolver com alguns
25 trabalhos da escola também, sempre tive
26 envolvida onessas coisaso... e::... assi::m...
27 MUDOU.
o
28 Talita Uhumo, que circunstâncias são essas, oassim...
29 que você falouo?
30 Manuela É::...
31 Talita É, que você falou que você veio pra cá por causa
32 de algumas <circunstâncias>.
33 Manuela Porque assim... no final do a::no... é::...
34 eu... >fiz, você tem que< fazer inscrição pro
35 estado, né... pra estudar no estado.
36 Talita Uhum.
37 Manuela E eu NÃO TINHA feito essa inscrição... que é
38 pela internet... eu não fiz essa inscrição,
39 perdi essa época de inscrição. Então
40 >automaticamente pra eu conseguir uma vaga< em
41 outro lugar, eu ia ter que esperar época de
42 matrícula <DA esco::la>... que eu quisesse ir
43 >pra eu< poder entrar.
44 Talita Você estudava em escola pública?
45 Manuela Eu estudei em escola pública até a sétima
46 série... odurante a minha vida toda eu estudei
47 em escola públicao... só que na oitava série, eu
188

48 ganhei uma bolsa integral... nu::m... colégio


49 particular... esse colégio::... >que tem aqui<
50 perto da escola.
51 Talita Uhum, aquele::... Atual.
52 Manuela Isso.
53 Talita Colégio Atual, uhum.
54 Manuela [Eu ganhei uma bolsa integral ali::
55 e fui estudar lá... Então naquela é::poca... eu
56 tinha perdido essa época de inscrição pelas
57 escolas estaduais... e eu não... não consegui. E
58 eu também PERDI, >oolha como eu sou uma pessoa
59 aéreao<... eu perdi a::... a faetec otambémo... Aí
60 quando eu, quando eu... VI a possibilidade do
61 cefet, eu investi TODAS as minhas...
62 expectativas aqui... toda... <meu objeti::vo>...
63 TUDO era pra cá... então eu comecei a estudar
64 mu::ito pra poder conseguir passar na prova.
65 Talita Você estudava em casa, como é que era?
66 Manuela [eu estudei sozinha.
67 Estudava sozinha em ca::sa... assim, e::u, um
68 mês, >mais ou menos<... eu fiz uma média de um
69 mês antes da prova... eu estudava TODO dia em
70 casa... <sozinha>, lia MU::ITO... é... fazia
71 muitos cá::lculos, muitos exercí::cios, pra
72 poder passar pra cá.
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73 Talita Você não fez curso.


74 Manuela Não, não fiz curso.
75 Talita Uhum.
o
76 Manuela Não fiz curso em lugar nenhumo. Foi sozinha
77 mesmo.

(Manuela, 29 de junho de 2009)

Manuela tece um movimento de orientação inicial cuja finalidade é


construir-se como dedicada aluna já nas escolas anteriores onde havia estudado.

“e::u... eu sempre gostei de estuda::r” (linhas 13-14)


“sempre fui assim muito interessada nessas co::isas” (linhas 14-15)
“graças a Deus sempre fui muito esforçada” (linha 16)
“eu tive experiências com grê::mio” (linhas 22-23)
“assim me envolver com pessoas... de dentro da escola” (linhas 23-24)
“me envolver com alguns trabalhos da escola também” (linhas 24-25)
“sempre tive envolvida onessas coisaso” (linhas 25-26)

Nesse sentido, é interessante observar que, em sua performance, o


CEFET/RJ não é o agente responsável por uma mudança de comportamento em
Manuela, ao contrário da construção narrativa de outros alunos em cenas que
serão discutidas mais adiante. Manuela constrói sua auto-imagem de exímia
estudante, integralmente devota às atividades concernentes ao universo escolar,
como um atributo constante em sua vida (como sinaliza a repetição do advérbio
189

“sempre” – linhas 14, 16), uma característica nata, uma dádiva (“graças a Deus
sempre fui muito esforçada” – linha 16). Esse movimento de orientação que
envolve o engrandecimento identitário de Manuela é importante para justificar o
modo como constrói a superação das dificuldades por ela vividas, como veremos a
seguir.
Manuela afirma ter se tornado aluna da UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ em virtude de algumas circunstâncias (“em decorrência assim de
algumas circunstâncias... da minha vida eu acabei vindo pra cá” –
linhas 19-21). De um modo semelhante à cena 3, na qual Wagner constrói sua
chegada à instituição como um acidente, Manuela também não situa o CEFET/RJ
como uma escolha (“meu primeiro objetivo não era vir pro cefe::t” –
linhas 17-18), mas como um acontecimento casual. Assim como na narrativa de
Wagner, uma sequência de episódios frustra os planos iniciais de Manuela,
deixando-a à mercê do acaso e sem direção diante de perdas e erros em série.
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“E eu NÃO TINHA feito essa inscrição... que é pela internet” (linhas


37-38)
“eu não fiz essa inscrição, perdi essa época de inscrição” (linhas
38-39)
“eu tinha perdido essa época de inscrição pelas escolas estaduais”
(linhas 55-57)
“e eu não... não consegui” (linha 57)
“eu perdi a::... a faetec otambémo” (linha 59)
“>oolha como eu sou uma pessoa aéreao<” (linhas 58-59)

Por causa de um traço de sua personalidade (ser “uma pessoa aérea” –


linhas 58-59) construído discursivamente como um valor negativo e, até certo
ponto, vexatório (daí se justifica sua fala em ritmo acelerado e em voz baixa,
dificultando a clara escuta da frase), Manuela passa a correr o risco de,
simplesmente, não ter onde estudar. Com a perda das inscrições nas escolas da
rede estadual (incluindo a FAETEC – linha 59), o campo de possibilidades da
aluna parecia bastante restrito. Mesmo as escolas privadas parecem não figurar
como opção, considerando-se a informação de que, na oitava série, dependeu de
“uma bolsa integral” (linha 48) para estudar em uma instituição particular. As
perdas de Manuela figuram, também, em termos de perda de agentividade, uma
vez que fica à deriva, sem ter conhecimento de como seria o seu primeiro ano do
190

Ensino Médio. Derrotada nesse jogo que envolve um encadeamento de perdas e


dificuldades, Manuela reverte os rumos que diante dela se colocavam e reformula
seu enredo. A UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ é construída discursivamente
como um ponto de virada (Mishler, 2002) que permite a superação dessa
sequência de perdas e resgata sua auto-imagem de exímia estudante, capaz de
vencer no jogo da vida graças ao seu esforço individual.

“quando eu... VI a possibilidade do cefet” (linhas 60-61)


“eu investi TODAS as minhas... expectativas aqui” (linhas 61-62)
“toda... <meu objeti::vo>... TUDO era pra cá” (linhas 62-63)

A perspectiva de ingresso na UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ é


construída discursivamente por Manuela como uma espécie de jogo de azar, uma
aposta alta, um “tudo ou nada” (“TUDO era pra cá” – linhas 62-63) em sua
trajetória estudantil. A aluna situa o preparo para o processo seletivo para a
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instituição em termos de investimento cujo propósito único desejável seria o de


obter ganho (“eu investi TODAS as minhas... expectativas aqui” –
linhas 61-62). E para vencer nesse jogo de alto risco, em que se pode tudo perder
ou ganhar, Manuela embrenha-se na auto-tessitura de um self agentivo, obstinado,
que enfrenta as dificuldades em nome de um projeto maior: ser aprovada no
concurso para a instituição e garantir, assim, a continuidade de seus estudos em
uma escola tradicionalmente vista como de qualidade.

“eu comecei a estudar mu::ito pra poder conseguir passar na prova”


(linhas 63-64)
“eu estudei sozinha” (linha 66)
“Estudava sozinha em ca::sa” (linha 67)
“eu fiz uma média de um mês antes da prova” (linhas 68-69)
“eu estudava TODO dia em casa... <sozinha>” (linhas 69-70)
“lia MU::ITO” (linha 70)
“fazia muitos cá::lculos, muitos exercí::cios” (linhas 70-71)
“o
Não fiz curso em lugar nenhumo. Foi sozinha mesmo.” (linhas 76-77)

A ação complicadora da narrativa de Manuela alterna verbos no pretérito


perfeito e no imperfeito, dando destaque às ações empreendidas e aos hábitos que
constituíam o passado antecedente ao ingresso da aluna no CEFET/RJ. Os verbos,
em quase sua totalidade, fazem parte do campo semântico do universo da
191

escolarização: “estudar”, repetido em quatro ocasiões – linhas 63, 66,67,69; “ler”


– linha 70; “fazer cálculos e exercícios” – linhas 70-71; “passar na prova” – linha
64. Chama particular atenção o emprego de recursos formais de performance, sob
forma de avaliação encaixada. A fonologia expressiva em “mu::ito” (linha 64),
“MU::ITO” (linha 70) e “TODO” (linha 69) destaca a intensidade e a frequência com
que realizava seus estudos para o processo seletivo. Se, anteriormente, seu enredo
era tecido com base na ideia de perda, desta vez impera a retórica do esforço, da
exaustão diária e disciplinada (“eu fiz uma média de um mês antes da
prova” – linhas 68-69), viabilizando, assim, seu projeto de entrada na instituição.
A única negativa nessa performance narrativa (“oNão fiz curso em lugar
nenhumo” – linha 76) assume uma valoração positiva, dignificando a vitória de
Manuela nesse jogo de alto risco. A aluna apresenta-se como alguém que, por
mérito próprio, por força de seu trabalho metódico, alcança seus objetivos. Trata-
se de um ethos materializado na imagem do self made man, do indivíduo solitário
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que acredita que as recompensas na vida social se dão em função do empenho e


do suor de seu trabalho (Velho 2002 [1973]; Weber, 2001 [1904 e 1905]).
Por um lado, a forte presença desse ethos de valorização do esforço
individual sugere um alinhamento da performance narrativa de Manuela com os
valores das camadas médias contemporâneas, para as quais o indivíduo, e somente
ele, é responsável por suas conquistas. Por outro lado, creio que esse
empreendimento individual de Manuela possa também ser interpretado como
forma de “viração” (Duarte & Gomes, 2008), meio de subsistência comum entre
as classes trabalhadoras. Sabedora das limitações materiais que a circunscreve,
Manuela “se vira” como pode. O estudo solitário, feito nas dependências de sua
própria casa, enaltece o ganho alcançado por esse self exaustivamente empenhado
na causa: estudar para passar na prova de seleção para o CEFET/RJ. Entretanto,
estudar sozinha é o caminho encontrado por Manuela para sobreviver à lógica
meritocrática que costuma orientar o contexto educacional brasileiro e às
restrições econômicas a que está submetida: como Manuela não dispõe de
recursos financeiros para fazer um curso preparatório ou matricular-se na rede
particular, estudar sozinha é o que lhe resta.
A cena a seguir constrói as dificuldades vividas pelos alunos da UnED de
Nova Iguaçu do CEFET/RJ em termos de preenchimento integral do tempo e de
exaustão física. Além de Joana (já apresentada na cena 8), Raquel, aluna do 4º ano
192

do nível Médio-Técnico em Enfermagem, de dezoito anos de idade e moradora do


bairro Jardim Esplanada, em Nova Iguaçu, também participa da conversa.

5.3.2.
Cena 11: “Tem nem tempo de respirar”

338 Talita ((risos)) E::... como é que é o dia-a-dia... de


339 vocês aqui na escola?
340 Joana Ago::ra... tá bem corrido.
341 Talita É?
342 Joana Agora, é::... estudar pra cá::, pro
343 vestibula::r, pra outras <co::isas>... ainda tem
344 estágio
345 Raquel [tem NEM tempo de
346 respirar.
347 Joana É, tem... nem de respirar... aí durante, assim,
348 >quando a gente começou era um pouco< mais
349 tranquilo... que vinha:: de TA::RDE, dormia de
350 manhã::... e de noite a gente ficava livre...
351 não tã::o livre assim >porque tinha sempre que
352 estudar as matérias<, mas... AGORA tá MU:ITO
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353 corrido. É está::gio... agora não, porque o


354 estágio tá parado, aí vem de manhã::, fica até
355 umas... cinco ho::ras
356 Talita Vocês estão ficando o dia, o dia inteiro na
357 escola, né?
358 Joana É::, a gente pega sete e vinte, >praticamente<
359 de sete e vinte às quatro e vinte.
360 Kátia ( ) uns professores paradões por causa ( )
361 Joana ((risos)) É, às sextas ( )... E:: eu no caso
362 faço curso... sete horas, de sete às dez...
363 então eu saio daqui quatro e vinte, vou pra casa
364 CORRE::NDO... é só o tempo de >tomar banho,
365 comer alguma coisa e voltar pro curso<... que
366 nem eu, >eu tava falando com as meninas<... a
367 gente teve prova HO::je... ontem eu fiquei no
368 curso até umas DEZ horas... cheguei em casa
369 MO::RTA, sem tempo assim, pra:: pegar a matéria
370 mesmo e estudar... aí às vezes complica assim...
o
371 um poucoo
372 Raquel A gente chega em casa tarde, ainda tem que
373 estudar pro dia segui::nte... aí no dia seguinte
374 é a mesma coisa... nunca tem um, um tempo livre,
375 sempre tem que estar estudando prum negócio de
376 amanhã::... não dá nem tempo assim de estudar
377 antecipadamente... porque... >não tem<, num
378 rola...

(Joana, Raquel e Kátia, 2 de outubro de 2009)

O ponto da narrativa co-construída por Joana e Raquel é a caracterização da


exaustão que tipifica o cotidiano dos alunos da UnED de Nova Iguaçu do
193

CEFET/RJ. Dois movimentos narrativos podem ser identificados: um, no sentido


de dramatizar esse cotidiano de dificuldades no nível de uma corporeidade; outro,
no sentido de construir os estudos como parte da rotina dos alunos em tempo
integral. Joana atribui essa intensificação e acúmulo das atividades ao fato de
estarem no último ano do curso de Enfermagem, momento em que coincidem as
tarefas de sala de aula, o estágio supervisionado na área técnica e o preparo para
exames vestibulares em cursos livres realizados fora das dependências do
CEFET/RJ. Joana constrói discursivamente uma cisão entre o “antes” e o
“momento atual” de sua rotina estudantil, comparando a relativa calmaria de
outrora com o turbilhão de atividades do momento presente.

“>quando a gente começou era um “Ago::ra... tá bem corrido.”


pouco< mais tranquilo” (linhas (linha 340)
348-349)

“vinha:: de TA::RDE, dormia de “mas... AGORA tá MU:ITO corrido”


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manhã::... e de noite a gente (linhas 352-353)


ficava livre” (linhas 349-350)

É interessante notar a construção do passado de Joana e de seus colegas de


classe (“a gente” – linha 348) como um momento no qual a passagem do tempo
ocorre de modo mais tranquilo e sistemático, havendo períodos delimitados para o
descanso corporal (“dormia de manhã::” – linhas 349-350), as obrigações
estudantis (“vinha:: de TA::RDE” – linha 349) e o tempo destinado a atividades
outras, à escolha dos próprios alunos (“de noite a gente ficava livre” –
linha 350). Já o presente é construído discursivamente como uma maratona, uma
corrida de longo e cansativo percurso. Joana elabora um movimento de ação
complicadora, com verbos no presente do indicativo, para caracterizar a rotina
diária vivida pela coletividade dos alunos do 4º ano do curso de Enfermagem.
Nesse movimento, Joana destaca o longo período de tempo em que permanecem
nas dependências da escola, conferindo particular ênfase aos extremos de um dia
comum de aula: de cedo pela manhã até o fim da tarde.

“vem de manhã::, fica até umas... cinco ho::ras” (linhas 354-355)


“a gente pega sete e vinte, >praticamente< de sete e vinte às
quatro e vinte.” (linhas 358-359)
194

A fim de ratificar o ponto desse movimento narrativo de cunho mais


coletivista, Joana constrói duas sub-narrativas nas quais ela própria figura como
protagonista. Ao contar uma história sobre si, Joana investe discursivamente na
produção e manutenção identitária de seu grupo, de uma coletividade.

1ª SUB-NARRATIVA
“eu no caso faço curso... sete horas, de sete às dez” (linhas 361-
362)
“então eu saio daqui quatro e vinte” (linha 363)
“vou pra casa CORRE::NDO” (linhas 363-364)
“é só o tempo de >tomar banho,” (linha 364)
“comer alguma coisa” (linha 365)
“e voltar pro curso” (linhas 365-366)

2ª SUB-NARRATIVA
“>eu tava falando com as meninas<” (linha 366)
“a gente teve prova HO::je.” (linhas 366-367)
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“ontem eu fiquei no curso até umas DEZ horas” (linhas 367-368)


“cheguei em casa MO::RTA” (linhas 368-369)
“sem tempo assim, pra:: pegar a matéria mesmo e estudar” (linhas 369-
370)

Como hábil maratonista, Joana dramatiza a exaustão de seu cotidiano e os


impactos do escasso tempo a ela disponível. A expressividade fonológica e o
alongamento de vogal em “CORRE::NDO” (linha 364) encenam a velocidade
empreendida pela aluna para dar conta do pouco tempo que lhe resta para atos
elementares da vida humana, como a higiene pessoal (“tomar banho” – linha
364) e a alimentação (“comer alguma coisa” – linha 365). Envolvidos pela
carga dramática da performance narrativa de Joana, corremos junto com ela e
experienciamos o cansaço narrado. A aluna elenca Kátia e Raquel, participantes
da mesma entrevista, como testemunhas que atestam a veracidade dessas emoções
vividas (“>eu tava falando com as meninas<” - linha 366) e partilham da
visão de que essa exaustão cotidiana pode incorrer em consequências
problemáticas (por exemplo, fazer uma prova sem ter estudado previamente –
linhas 366-367, 369-370). Raquel resgata o ponto da narrativa iniciada por Joana e
elabora uma espécie de coda resumitiva relacionada ao cotidiano comum aos
alunos como um todo, no qual falta tempo para a quantidade de estudos exigida.
195

“A gente chega em casa tarde, “aí no dia seguinte é a mesma


ainda tem que estudar pro dia coisa” (linhas 373-374)
segui::nte” (linhas 372-373)

“nunca tem um, um tempo livre” (linha 374)


“sempre tem que estar estudando prum negócio de
amanhã::” (linhas 375-376)
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Raquel constrói discursivamente um sentido de rotina contínua, um ciclo


repetitivo e infindável no qual “sempre” (linha 375) é preciso estudar, apesar de
“nunca” (linha374) haver tempo para isso. O cotidiano dos alunos da UnED de
Nova Iguaçu do CEFET/RJ é tecido como um percurso de dificuldades
constantes, marcado pelo acúmulo de atividades e pelo sacrifício do tempo. Vale
ressaltar o modo como o cansaço e a exaustão são dramatizados, na cena 11, como
uma dolorida experiência corpórea. O verbo “correr” (linhas 340, 353, 364),
marcado por dispositivos de avaliação encaixada, imprime ritmo e velocidade aos
afazeres de Joana. A escassez de tempo é construída, por Joana e Raquel, como
noção impactante para um processo elementar para os seres vivos, que é a
respiração. As alunas conferem um aspecto fortemente dramático do acúmulo de
afazeres, como se a energia necessária para a continuidade de suas rotinas fosse
prejudicada pela falta de tempo (“tem NEM tempo de respirar.” – linhas 345-
346). Sem a absorção do oxigênio necessário à manutenção da vida como alunas
do CEFET/RJ, atinge-se o nível mais extremo da exaustão corpórea: “cheguei
em casa MO::RTA” (linhas 368-369). Para Joana e Raquel, o (per)curso de
dificuldades é vivido não somente no nível simbólico, mas também no corpo. Para
chegar ao final dessa corrida rumo à ascensão via escolarização de qualidade, a
dor e o martírio parecem ser construídos como elementos que tipificam esse
percurso.
196

Na cena 12, a seguir, a retórica da dificuldade é performada tendo em vista


uma narrativa bastante recorrente entre os atores sociais do CEFET/RJ: a da falta
de base, de conhecimentos prévios que não foram adquiridos nas escolas
anteriores. Mariane (ver descrição da aluna na cena 9) constrói uma narrativa
bastante performática, ricamente tecida de dispositivos metanarrativos, e
dramatiza a dificuldade e a aflição vividas em virtude dos precários
conhecimentos de sua formação no ensino fundamental.

5.3.3.
Cena 12: “Eu não sabia fazer regra de três”

106 Mariane [Isso. Senti muita dificuldade porque, no


107 primeiro a::no... eu só... no que eu fiz
108 preparatório... eu só conseguia, assim, aprender
109 <aqui::lo> que eu não aprendi na escola.
110 Talita A::h, tá.
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111 Mariane Eu não sabia fazer... é::... regra de trê::s...


112 eu não sabia NA::DA. Então, eu senti muita...
113 dificuldade... aí eu, “não, não vou fazer de
114 novo assim... Eu vou fazer DE NOVO... pra...
115 conseguir fazer a prova”.
116 Talita Aham, oentendio... E aí você passou E aí como é
117 que é agora o seu, seu dia-a-dia aqui? O
118 primeiro ano você achou que foi... você passou
119 no primeiro ano... você ficou reprovada? Não,
120 né?
121 Mariane Não, eu passe::i... foi MUITO difí::cil hhh...
122 porque... eu não conseguia assim... o meu jeito
123 de estudar... era, um dia antes da prova,
124 <pega::r, le::r> a matéria e fazer a prova... e
125 aqui NÃO... eu tive que estudar TO::DO dia pra
126 fixar a maté::ria... que eu tenho uma
127 dificuldade <IMENSA> pra estuda::r, mas aí eu
128 tenho que... TODO DIA eu tenho que estudar. Se
129 eu não estudar TODOS os dias.... o::... a
130 próxima aula eu já não consigo acompanha::r...
131 então, pra mim foi muito complexo, o meu
132 primeiro ano.
133 Talita Entendi. E aí você falou que, que agora pass-...
134 você MUDOU de hábito, né?
135 Mariane Isso... é exatamente dessa POSTURA... porque
136 senão... eu ia... ser reprovada... se for
137 pegar o meu boletim do primeiro até o quarto,
138 né... principalmente o terceiro bime::stre, foi
139 o meu melhor... é... bimestre aqui...
140 Talita Aham.
141 Mariane que eu tive que mudar ABSOLUTAMENTE de
142 postura... senão eu ia ser reprovada...
143 porque... até aquela visão... “ah, vou fazer a
144 prova, mas eu já se::i a matéria”... aí, eu
145 tirei notas BAIXÍSSIMAS no primeiro bimestre.
197

146 Aí no terceiro é que eu estudei mu::ito pra me


147 recuperar.

(Mariane, 4 de maio de 2010)

Em trecho antecedente ao fragmento interacional que compõe a cena 12,


Mariane rememora sua primeira tentativa de ingresso no CEFET/RJ, quando
concluía o ensino fundamental em uma escola da rede pública estadual e,
paralelamente, fazia um curso preparatório. A aluna presta concurso,
primeiramente, para a Unidade Maracanã e, não tendo sido aprovada, decide
refazer, no ano seguinte, o preparatório, ao mesmo tempo em que já cursava o 1º
ano do ensino médio também em uma escola estadual. Quando Mariane é
aprovada para a UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ, inevitavelmente, precisa
refazer a 1ª série do Ensino Médio-Técnico, pois o regimento da instituição não
permite o aproveitamento das disciplinas do currículo já cursadas em outras
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escolas. Considero essa contextualização importante no sentido de fornecer


subsídios para uma melhor compreensão de sua performance narrativa/identitária
na cena 12.
Podemos localizar, no relato de Mariane, dois movimentos narrativos
complementares: o primeiro constrói as dificuldades enfrentadas pela aluna ainda
antes de seu ingresso no CEFET/RJ, durante o período de estudos em um curso
preparatório; no segundo movimento narrativo, Mariane, já na condição de aluna
da instituição, acentua a dramaticidade em torno dos obstáculos vividos, bem
como a necessidade do que nomeia “uma mudança de postura”. Ao reconstruir os
passos tortuosos e de extrema dificuldade em seu percurso narrativo, Mariane
focaliza a pena a que fora submetida por sua falta de base de conhecimentos
prévios, bem como as transformações identitárias vividas no sentido de “civilizar”
hábitos e comportamentos para que lograsse a conclusão de seus estudos de nível
Médio-Técnico no CEFET/RJ.
Inicialmente, Mariane remonta a dificuldade sentida na primeira tentativa de
passar no processo seletivo para o CEFET/RJ: “Senti muita dificuldade”
(linha 106). A justificativa, construída por Mariane por meio de uma narrativa
sobre seu processo de aprendizagem no curso preparatório, residiria na ausência
de uma base sólida de conhecimentos de nível fundamental. O curso preparatório
figura, na narrativa de Mariane, como via de preenchimento das ausências e
198

lacunas de aprendizagem deixadas pela escola de nível fundamental onde


estudara: “no que eu fiz preparatório... eu só conseguia, assim,
aprender <aqui::lo> que eu não aprendi na escola” (linhas 107-109). O
aprendizado adquirido por Mariane no nível fundamental é construído em uma
escala decrescente.

“Eu não sabia fazer... é::... regra de trê::s” (linha 111)


“eu não sabia NA::DA” (linha 112)

A “regra de três” (linha 111) é um conteúdo aritmético comumente


compreendido como conhecimento elementar (logo, básico) para a aprendizagem
de outros conteúdos em Matemática. Na narrativa de Mariane, o não
conhecimento dessa “regra básica” é construído como indício de que sua
formação de nível fundamental foi falha. Um relativo sentido de indignação é
construído em torno desse aprendizado que não houve, a ponto de Mariane reduzir
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o desconhecimento do que seria básico na escola básica (“regra de trê::s” –


linha 111) ao nível de completa nulidade (“eu não sabia NA::DA” – linha 112).
A constatação de que o fracasso experienciado atribui-se a uma falha em seu
processo de aprendizagem é construída por Mariane como motivação para uma
virada em sua narrativa. Por meio do emprego de fala relatada como discurso
interior (Tannen, 1989), a aluna elabora o que teria sido seu pensamento face à
lacuna em sua aprendizagem e à necessidade de mudanças nos rumos até então
traçados por ela. Mariane, assim, constrói um self agentivo que nega as práticas
empreendidas até então e busca, de modo perseverante, reelaborar seu percurso
sobre outras bases.

“aí eu, “não, não vou fazer de novo assim... Eu vou fazer DE
NOVO... pra... conseguir fazer a prova”. (linhas 113-115)

Se, em seu primeiro movimento narrativo, a função do curso preparatório é


construída discursivamente como um meio de Mariane “aprender aquilo que devia
ter sido aprendido”, o segundo movimento já apresenta a UnED de Nova Iguaçu
do CEFET/RJ como lócus privilegiado para a aluna “aprender a estudar” – ou
melhor, aprender a estudar segundo os moldes moralmente reconhecidos como
“modos corretos de estudar”. Esse novo aprendizado envolve uma transformação
199

nas práticas e rotinas anteriores, bem como a travessia por um percurso de


dificuldades extremas, como apontam os índices de avaliação no resumo/abstract
dessa narrativa (“foi MUITO difí::cil hhh” – linha 121). As razões para as
dificuldades experienciadas por Mariane são construídas ora como um atributo
inato (como sugere o emprego do presente do indicativo no verbo “ter”, em “eu
tenho uma dificuldade <IMENSA> pra estuda::r” – linhas 126-127), ora
como uma “POSTURA” (linha 135) adquirida pelos métodos de estudo empregados
quando era aluna de outras escolas. De qualquer forma, é notória a maneira como
Mariane compõe a dimensão da mudança em seus hábitos de estudo, a partir de
seu ingresso no CEFET/RJ, dando particular destaque à dramatização das
dificuldades vividas nessa mudança.

“o meu jeito de estudar... era, “aqui NÃO... eu tive que


um dia antes da prova, estudar TO::DO dia pra fixar a
<pega::r, le::r> a matéria e maté::ria” (linhas 125-126)
fazer a prova” (linhas 122-124)
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“pra mim foi muito complexo”


(linha 131)

Mariane constrói, no plano relativo ao passado em outras escolas, os estudos


não como um hábito, uma rotina, mas como uma ação esporádica, eventual, e sem
comprometimento (“um dia antes da prova” – linha 123). Já no tempo
presente, o estudo é apresentado como um hábito que, obrigatoriamente (“tive
que estudar” – linha 125), precisou ser desenvolvido pela aluna. A ação
cotidiana de estudar é construída discursivamente pela expressividade fonológica
e alongamento de vogal no vocábulo “TO::DO” (linha 125). Esse deslocamento de
uma forma específica de estudar para outra bastante diferente envolve uma
espécie de “civilização” de Mariane, por meio da qual as práticas antigas são
substituídas por outras consideradas adequadas aos ethos valorizados no
CEFET/RJ, uma cultura escolar diferente das até então conhecidas por Mariane e
que inaugura nela um novo repertório de sentidos.

“aquela visão... “ah, vou “TODO DIA eu tenho que estudar”


fazer a prova, mas eu já (linha 128)
se::i a matéria”” (linhas 143-
144) “eu tive que mudar ABSOLUTAMENTE
de postura” (linha 141-142)
200

A fala relatada como discurso interior (linhas 143-144) construída por


Mariane remete ao hábito de estudos comum a boa parte dos alunos da rede básica
no Brasil: o de se estudar apenas na véspera dos exames bimestres. A performance
narrativa de Mariane sinaliza um abandono integral (“mudar ABSOLUTAMENTE de
postura” – linha 141-142) desse hábito localizado no passado e uma conversão a
uma nova ordem disciplinar: a do estudo diário (“TODO DIA” – linha 128).
Mariane enfatiza, por meio de recursos formais de metanarração, o quão difícil e
doloroso foi essa conversão, essa “civilização” de seus hábitos e comportamentos,
uma vez que essa mudança de postura envolve, necessariamente, uma migração
identitária: Mariane precisar aprender a ser outra pessoa, a agir de outra maneira.
Esse percurso dificultoso envolve tropeços (como as notas baixas tiradas pela
aluna ao longo do ano letivo – linhas 136-139, 144-147), bem como uma espécie
de auto-consciência acerca das penas previstas, caso essa mudança não ocorra de
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modo satisfatório. Além das notas baixas e das dificuldades de acompanhar bem
as aulas e conteúdos (linhas 128-129), a pena capital que Mariane poderia sofrer,
caso a mudança absoluta dos hábitos de estudo não acontece, figuraria na forma
de reprovação (linhas 136, 142).

“eu tirei notas BAIXÍSSIMAS no primeiro bimestre. Aí no terceiro


é que eu estudei mu::ito pra me recuperar.” (linhas 144-147)
“se for pegar o meu boletim do primeiro até o quarto, né...
principalmente o terceiro bime::stre, foi o meu melhor... é...
bimestre aqui” (linhas 136-139)
“Se eu não estudar TODOS os dias.... o::... a próxima aula eu já
não consigo acompanha::r” (linhas 128-130)
“senão... eu ia... ser reprovada” (linha 136)

A cena 13, em seguida, constrói o cotidiano dos alunos dentro da instituição


a partir de uma ótica diferenciada. O estudo em tempo integral, o acúmulo de
atividades, as dificuldades vivenciadas são apresentadas discursivamente por
Manuela (ver cenas 2 e 10) como benesses oferecidas pelo CEFET/RJ aos seus
alunos. Em sua performance narrativa/identitária, Manuela enaltece os valores
atribuídos ao trabalho árduo e ao empenho individual, partindo da amplamente
difundida noção de que, em uma sociedade democrática, as oportunidades são
201

dadas igualmente a todos os indivíduos, cabendo a estes aproveitá-las da melhor


maneira possível.

5.3.4.
Cena 13: “Não aprende quem não quer”

436 Talita Como é que é teu dia-a-dia aqui pra VIR pra
437 escola?... como é que... cê vem, cê agora tá
438 vindo ce::do, né, porque você agora tem aula de
439 manhã, mas... como é que era...
440 Manuela [É... eu venho pra cá de manhã::... tenho
441 aula até as onze
442 Talita Cê vem de ônibus?
443 Manuela Venho de ônibus... é o único meio de transporte
444 que eu te::nho, pra vir pra cá... venho de
445 ô::nibus... e::((pausa longa)) GERALME::NTE...
446 pelo menos na minha época de ensino médio... >a
447 gente costumava< passa::r... o DIA inte::iro na
448 escola
449 Talita Uhum.
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450 Manuela Estuda::ndo, fazendo traba::lho, uma SÉ::RIE de


451 >listas de exercícios que a gente tinha que
452 fazer<, então era muito mais fácil ficar
453 aqui::... até mesmo assim, pela::... pela
454 infraestrutura que a escola... oferecia pra
455 gente, onéo... ainda NÃO com o NÍVEL que ela
456 poderia oferecer... MA::S... em vista de outros,
457 de outros lugares, é u::m... bom, uma boa
458 estrutura... então assim, em relação a... a
459 bibliote::ca... a, aos livros, ao computado::r,
460 à interne::t, enfim... era, oassim, umao...
461 ficava mais... flexí::vel às vezes pra gente
462 estudar... se você não encontrava alguma coisa
463 no livro, você ia lá no... na internet,
464 pesquisava... ou senão procurava um professor
465 pra te explicar... ou senão um ami::go... SEMPRE
466 tinha::... várias, um LEQUE de opçõ::es pra
467 você... conseguir estudar, pra você conseguir
468 tirar suas dúvidas, então <realmente>, não a-...
469 NÃO APRENDE... quem NÃO QUER... se a pessoa
470 que::r, ela procu::ra, ela pesqui::sa... e::....
471 assim, é muito bom.

(Manuela, 29 de junho de 2009)

Manuela inicia sua narrativa por um caminho muito semelhante ao trilhado


por Joana, Raquel e Mariane nas cenas anteriores (11 e 12). Ao ser indagada por
mim acerca de seu cotidiano relacionado à escola (linhas 436-439), Manuela dá
visibilidade a três dimensões: o tempo, a locomoção e os afazeres.
202

“eu venho pra cá de manhã::” (linha 440)


“tenho aula até as onze” (linhas 440-441)
“Venho de ônibus” (linha 443)
“>a gente costumava< passa::r... o DIA inte::iro na escola” (linhas
446-448)
“Estuda::ndo, fazendo traba::lho, uma SÉ::RIE de >listas de
exercícios que a gente tinha que fazer<” (linhas 450-452)

Assim como nas cenas 11 e 12, empregam-se a fonologia expressiva e o


prolongamento de vogal como dispositivos avaliativos que destacam os longos
períodos de tempo (“o DIA inte::iro” – linha 447) de permanência dos alunos
nas dependências da escola. O transporte rodoviário, apresentado por Manuela
como única forma de locomoção disponível para se chegar à instituição (“é o
único meio de transporte que eu te::nho, pra vir pra cá” – linhas
443-444), sugere uma situação social de restrição, advinda tanto das limitações
econômicas da aluna e sua família quanto do precário sistema de transportes da
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Baixada Fluminense (Duarte & Gomes, 2008). A utilização de verbos no gerúndio


(“Estuda::ndo, fazendo” – linha 450) atribui um cunho processual, contínuo às
ações enumeradas; já a fonologia expressiva em “SÉ::RIE de >listas de
exercícios” (linhas 450-451) acentua o acúmulo de afazeres que tipificam o
cotidiano do aluno da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. O quadro instaurado
na fala de Manuela sugeriria que a retórica do cansaço, da exaustão e do sacrifício
entraria em cena uma vez mais. A partir da oração “então era muito mais
fácil ficar aqui::” (linhas 452-453), entretanto, Manuela reverte os rumos a
que sua narrativa parecia conduzir e, ao invés de focalizar as dificuldades vividas,
passa a dar destaque às facilidades disponíveis. A aluna torna relevantes, em sua
narrativa, indícios do que considera ser a boa infraestrutura da UnED de Nova
Iguaçu do CEFET/RJ. Ainda que reconheça as limitações da instituição no que
tange às suas potencialidades (“ainda NÃO com o NÍVEL que ela poderia
oferecer” – linhas 455-456), a valoração positiva atribuída ao CEFET/RJ é
tecida por meio do contraste (marcado pela conjunção “MA::S” – linha 456 – em
fonologia expressiva) com outras instituições de ensino: “MA::S... em vista
de outros, de outros lugares, é u::m... bom, uma boa estrutura” –
linhas 456-458. Permanecer “o DIA inte::iro” (linha 447) no CEFET/RJ é
construído, assim, como algo positivo e nada penoso, como sinaliza a coda
avaliativa de Manuela (“assim, é muito bom.” – linha 471). O cotidiano de
203

estudos dos alunos, na performance de Manuela, deixa de ser um sacrifício, ou


uma dificuldade extrema, em virtude das facilidades ofertadas pela instituição
(“ficava mais... flexí::vel às vezes pra gente estudar” – linhas 461-
462).
Manuela enumera o que considera serem as facilidades ofertadas pela
instituição, bem como as funções a que se destinam tais benesses. À
“bibliote::ca... a, aos livros, ao computado::r, à interne::t”
(linhas 458-460), destina-se o encargo da pesquisa; para tirar dúvidas sobre os
conteúdos escolares, estão à disposição “um professor” (linha 464), “ou senão
um ami::go...” (linha 465). Os recursos materiais e humanos disponibilizados
pela UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ são construídos discursivamente como
“um LEQUE de opçõ::es” (linha 466) que se colocam igualmente diante dos
alunos da instituição. Por opção, entende-se a noção de escolha, de livre arbítrio,
de autonomia do indivíduo. Assim, uma vez disponibilizadas, segundo a
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performance narrativa de Manuela, tantas opções para que todos os alunos


estudem e aprendam no CEFET/RJ, a culpa pelos eventuais fracassos nesse
percurso incide sobre o próprio aluno, e não sobre fatores de ordem mais macro.
Por meio de uma coda resumitiva (“NÃO APRENDE... quem NÃO QUER” – linha
469), Manuela condensa a visão de mundo particular que norteia sua performance
narrativa: a que atribui ao indivíduo a razão de seus sucessos ou fracassos.
Os discursos em torno do ideal de democracia partem da noção de que o
indivíduo, regido pelo princípio de que os direitos e deveres são iguais para todos
os cidadãos, é o senhor de seu próprio destino, autônomo para tomar suas decisões
e agir livre de cerceamentos mais holistas. Em sua performance
narrativa/identitária, Manuela apresenta-se como alguém alinhada a esse princípio
democrático e individualizante, uma vez que culpabiliza o indivíduo por seu
eventual fracasso de aprendizagem. Se a escola oferece infraestrutura física
(livros, computadores, etc.) e humana (professores e amigos) para todos, qualquer
aluno é, assim, capaz de aprender, a não ser que faça “escolhas erradas”. Manuela
condiciona o aprendizado dentro da instituição à vontade individual: “se a
pessoa que::r, ela procu::ra, ela pesqui::sa...” (linhas 469—470).
Ao construir a imagem da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ como uma escola
que “facilita” a vida dos alunos por causa da infraestrutura por ela oferecida,
paralelamente, Manuela forja sua própria auto-imagem. Considero que, em sua
204

performance narrativa/identitária, Manuela espera ser reconhecida por sua plateia


(no caso, eu mesma) como uma aluna que faz bom proveito dessas facilidades
ofertadas pela escola e, portanto, como alguém que “quer aprender” e que, para
tanto, faz as escolhas moralmente “corretas” para atingir seu sucesso e objetivos
educacionais. O diagrama abaixo busca apresentar, esquematicamente, o modo
como a instituição é construída na fala de Manuela: um leque disponível a todos,
justificando, assim, a centralidade do querer individual para o alcance do sucesso.

biblioteca
livros

“um LEQUE Computador


professor de
internet
opçõ::es”
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amigo

“NÃO APRENDE... quem NÃO QUER” (linha 469)

Comumente a não-aprendizagem no contexto escolar é medida através dos


índices de reprovação dos alunos, em geral construída como sinal de que o aluno
não teve interesse (em outras palavras, “não quis aprender”, como apontou
Manuela na cena 13) ou faltou-lhe base de conhecimentos em sua formação de
nível fundamental (como visto na cena 12). O percurso de um aluno reprovado
assume contornos de dificuldade não apenas por precisar repetir a série escolar em
que, em tese, “fracassou”, mas também por ter de enfrentar os processos de
estigmatização normalmente criados em torno dos “repetentes”.
Na próxima cena, veremos a atuação dramatúrgica de Gabriel, aluno do
Ensino Médio-Técnico em Informática, morador de Nova Iguaçu e que tinha
dezessete anos na ocasião da entrevista. Gabriel era uma das lideranças do grêmio
205

estudantil e frequentemente era visto com Márcia (presidente do grêmio) à frente


da mobilização dos estudantes, seja em relação a questões mais internas da própria
instituição ou a aspectos de ordem mais macro (como na organização de passeatas
a favor da gratuidade nos transportes coletivos para estudantes da rede pública).
Sua narrativa apresenta, como tema central, os desdobramentos de sua reprovação
em 2008, ano em que ingressou na UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. Gabriel
atribui às dificuldades e fracassos do momento presente (a saber, sua reprovação)
um valor positivo, uma vez que estão a serviço de um projeto individual mais
amplo associado à prosperidade futura. A cena a seguir faz parte dos primeiros
minutos da conversa coletiva com os alunos do grêmio estudantil (como já
apresentado na descrição da cena 3), marcados pelo livre relato de histórias sobre
a chegada desses alunos à instituição.
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5.3.5.
Cena 14: “Valeu a pena ficar reprovado”

75 Gabriel Bom, meu nome é Gabrie::l... tenho... dezessete


76 pra dezoito a::nos... vim do Estado... é... decidi
77 voltar pro primeiro ano, >pro primeiro ano< pra
78 cá... porque eu vi que... no Estado... pelo ensino
79 que eu tinha lá... eu não ia conseguir alcançar
80 meus objetivos... que é... uma formação
81 profissional. Então eu voltei pra cá::...
82 infelizmente eu repetihh ((sorri))... estou
83 fazendo o primeiro ano pela <TERCEIRA VEZ>... mas,
84 mas tá valendo a pe::na... >sei que é isso mesmo
85 que eu quero da minha vida<... e é isso. To
86 gostando... com a reprovação, eu ganhei mais
87 responsabilida::de... com a responsabilidade,
88 aceitei tomar o cargo de representante de
89 tu::rma... e vendo que eu tenho a responsabilidade
90 suficiente, >eu aceitei entrar pro grêmio, a
91 convite< da Márcia... e... a gente ( ) com o
92 grêmio... pra fazer a escola ir pra frente.

(Gabriel, 29 de junho de 2009)

A narrativa de Gabriel é permeada por uma série de recursos performáticos,


por meio dos quais procura transmitir aos seus interlocutores uma impressão
almejada de si. Há um emprego intensivo de recursos avaliativos e pouca ação
complicadora propriamente dita. O início da narrativa de Gabriel pode ser
206

compreendido como uma orientação na qual procura, em primeiro lugar,


apresentar-se.
O fato de Gabriel iniciar seu relato dizendo o seu nome (“meu nome é
Gabrie::l” – linha 75) e sua idade (“tenho...dezessete pra dezoito
a::nos” –linhas 75-76) já pode ser considerado uma primeira apresentação de si.
A referência à idade em estado de transitoriedade chama particular atenção, uma
vez que parece destacar a proximidade da maioridade, o que, de certa forma,
dialogará com um importante valor construído ao longo de sua narrativa: o da
responsabilidade, como será discutido adiante. A oração “vim do Estado” (linha
76) apresenta um claro viés de orientação, uma vez que contribui na construção
discursiva do que Gabriel “era” antes de sua entrada ao CEFET/RJ para,
posteriormente, tecer-se a imagem do que ele “veio a ser”.

“vim do Estado” (linha 76)


“decidi voltar pro primeiro ano” (linhas 76-77)
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Gabriel, oriundo da rede estadual de ensino, vivencia a experiência de


prestar o concurso para o CEFET/RJ por duas vezes, assim como acontecera com
Mariane (ver cena 12) e com vários outros alunos da instituição. Como já vimos
com a narrativa de Mariane, na cena 12, se um candidato ao processo seletivo do
CEFET/RJ já tiver cursado a 1ª série do Ensino Médio em outra instituição de
ensino, no caso de sua aprovação, precisará repetir, obrigatoriamente, a série já
cursada. Entretanto, na narrativa de Gabriel, essa espécie de repetência forçada é
construída em termos de decisão (“decidi voltar pro primeiro ano, >pro
primeiro ano< pra cá” – linhas 76-78), sugerindo uma atitude consciente –
logo, um explícito projeto (Schutz, 1962; Velho, 1994). Gabriel apresenta-se
como um ser agentivo, responsável pelos rumos de sua vida, e sua decisão é
construída com base em uma clara justificativa: querer alcançar seus objetivos
(linhas 79-80).

“porque eu vi que... no Estado” (linha 78)


“pelo ensino que eu tinha lá...” (linhas 78-79)
“eu não ia conseguir alcançar meus objetivos...” (linhas 79-80)
“que é... uma formação profissional” (linhas 80-81)
“Então eu voltei pra cá::” (linha 81)
207

Gabriel parte de uma constatação (“eu vi” – linha 78) para construir
discursivamente a sua decisão do que poderia ser chamado de “reprovação
voluntária”. Primeiramente, Gabriel apropria-se de um recurso discursivo de
identificação e diferenciação por meio do emprego dos referentes “lá” (linha 79)
– a escola estadual – e “cá” (linhas 78 e 81) – o CEFET/RJ. Trata-se de uma
oposição centrada, aqui, na questão da qualidade do ensino e permeada por um
julgamento moral e ideológico acerca desses dois espaços: a noção de que o “cá”
é melhor que o “lá”. Essa oposição, aliás, é bastante frequente nos relatos dos
alunos da UnED de Nova Iguaçu49. Mostrar-se diferente do aluno da escola
estadual é quase que um ponto de honra; identificar-se como “cefetiano” assume
um significativo valor de prestígio. Ao buscar alcançar seus objetivos (linhas 79-
80), Gabriel vislumbra, ao estudar na UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ, uma
possibilidade de colocar em prática seus projetos individuais, aliados a um ethos
de ascensão social por meio da educação (particularmente a profissional – linhas
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80-81). O aluno parece sinalizar que um ensino fraco não o permitirá alcançar
melhores condições de vida, daí a necessidade do afastamento da sua condição de
origem. Considero importante, entretanto, relativizar essa questão. Ao olhar de um
observador externo, pode não fazer muito sentido essa diferenciação entre o “lá” e
o “cá” construída por Gabriel, uma vez que tanto a escola estadual a que o aluno
se refere quanto o CEFET/RJ localizam-se na mesma região sócio-geográfica: a
Baixada Fluminense. Ambos os espaços seriam, em tese, marcados pela mesma
condição de precariedade e marginalidade se comparados, por exemplo, às escolas
situadas no Rio de Janeiro (capital). Contudo, é importante procurar reconhecer
que valores o narrador torna relevantes discursivamente em sua narrativa, ao invés
de partir de conclusões apriorísticas. Na narrativa de Gabriel, constrói-se uma
partição valorativa entre dois universos de escolarização (a escola estadual vs. o
CEFET/RJ), o que implica dizer que níveis diferentes de hierarquização podem
acontecer ainda que dentro de uma mesma sociedade. Se os valores construídos
são diferentes, isso implica dizer que estamos diante de outras as redes de
significados (Geertz, 1989).

49
Notas etnográficas registram a constante diferenciação que, nativamente, os alunos fazem
de si próprios em relação aos alunos da FAETEC (Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado
do Rio de Janeiro). Arrisco dizer que se trata, inclusive, de um mecanismo de negação. Ser
confundido como aluno da FAETEC pode ser motivo de muita indignação para alguns alunos do
CEFET/RJ.
208

A narrativa de Gabriel atinge seu momento mais avaliativo e, portanto, mais


fértil para que se percebam atributos morais socialmente valorizados sendo
forjados discursivamente. O aluno investe em modalidades diferentes de recursos
metanarrativos, dramatizando as dificuldades vivenciadas por ele no CEFET/RJ.

“infelizmente eu repetihh ((sorri))” (linha 82)


“estou fazendo o primeiro ano pela <TERCEIRA VEZ>” (linhas 82-83)

O emprego do intensificador lexical “infelizmente” (linha 82) e de


fonologia expressiva em “TERCEIRA VEZ” (linhas 82-83) correspondem a formas
de avaliação interna, por meio das quais Gabriel emite um julgamento, uma
opinião a respeito de sua situação atual na escola. Desta vez, sua reprovação não
fora planejada, ou seja, não fazia parte de um projeto pessoal traçado prévia e
conscientemente; daí justifica-se a infelicidade sentida por ele (“infelizmente
eu repetihh” – linha 82). Todo esse conjunto de ingredientes estabelece uma
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espécie de alinhamento entre o narrador e sua plateia. Somos fortemente


envolvidos no drama vivido por esse rapaz que está cursando o 1º ano do Ensino
Médio pela terceira vez, às vésperas de completar a maioridade (quando, em tese,
estaria concluindo esse ciclo de ensino). Por outro lado, o lamento de Gabriel por
sua reprovação parece ser suavizado pelo riso do aluno (linha 82). Logo em
seguida, o aluno suspende o fluxo da ação complicadora e constrói uma avaliação
externa cuja função central reside na ressignificação do fracasso experienciado.

“mas tá valendo a pe::na...” (linha 84)


“>sei que é isso mesmo que eu quero da minha vida<” (linhas 84-85)

A conjunção “mas” (linha 84) é bastante sintomática nesse movimento de


ressignificação do fracasso vivido: estabelece-se uma linha divisória entre os
obstáculos e insucessos de outrora e os ganhos e vitórias do presente. Constrói-se
uma retórica do sacrifício, da renúncia, do martírio, aliada, entretanto, a um ideal
de recompensa futura. Mais que isso: uma retórica do sacrifício justificada por um
projeto individual explícito (“>sei que é isso mesmo que eu quero da
minha vida<” – linhas 84-85). Assim, o percurso de dificuldades vale a pena,
tendo em vista sua tradução em termos de valores positivos atribuídos ao narrador.
No caso específico de Gabriel, emergem, em sua narrativa permeada por recursos
209

avaliativos, os valores da responsabilidade e da liderança. O aluno imprime uma


coda resumitiva (“e é isso” – linha 85) e, imediatamente, constrói outra
avaliação externa que faz uma espécie de balanço dos resultados obtidos pós-
fracasso. A pena (ou o castigo) resultante de sua reprovação na escola é
ressignificada por Gabriel, que investe na construção de sua imagem como
alguém que se tornou mais responsável depois do fracasso experienciado (“ com a
reprovação, eu ganhei mais responsabilida::de” – linhas 86-87). Gabriel
constrói, discursivamente, os obstáculos do presente como engrenagens geradoras
de benefícios para si próprio, especialmente no que tange ao seu engrandecimento
identitário.
Por meio de uma construção sintática paralelística, evidenciada pela
repetição da palavra “responsabilidade” e pela concatenação de ideias (linhas
86-90), Gabriel (re)constrói os desdobramentos de sua reprovação como uma
sucessão de êxitos em cadeia. Passo a passo, Gabriel forja sua imagem de
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liderança socialmente aceita na escola, desde um nível micro (“tomar o cargo


de representante de tu::rma” – linhas 88-89) a um nível mais macro
(“entrar pro grêmio” – linha 90). Pouco a pouco, percebemos um líder
estudantil sendo talhado discursivamente. Gabriel constrói, para seus
interlocutores, a sua trajetória de ascensão social dentro da escola: de repetente
(logo fracassado), passa a rapaz responsável; em seguida, sua responsabilidade o
conduz a níveis mais altos de reconhecimento (primeiro em sua própria turma,
depois na máxima representação dos alunos – o grêmio). A escalada de Gabriel,
que migra de uma condição inicial de fracasso ao ápice do sucesso como
importante liderança estudantil, pode ser visualizada no esquema piramidal
abaixo:
210

“>eu aceitei entrar pro grêmio” (linhas


4 89-90)
“aceitei tomar o cargo de
representante de tu::rma...” (linhas
3
88-89)
“eu ganhei mais responsabilida::de...”
2 (linhas 86-87)

“com a reprovação” (linha 86)


1

Ressalto, aqui, o modo como o aluno reconstrói sua ascensão social dentro
da própria escola: Gabriel afirma “aceitar” (linhas 88, 90) ser representante de
turma e, posteriormente, membro do grêmio estudantil. Isso implica dizer que o
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sentido de responsabilidade e liderança adquiridas pós-reprovação é validado


pelos seus outros discursivos, sejam eles seus colegas de classe ou a presidente do
grêmio (“a convite< da Márcia” – linhas 90-91). Gabriel constrói-se, sócio-
discursivamente, como um jovem obstinado com visão de futuro, que não se abate
diante dos percalços e imprevistos e que, por sua persistente determinação e seu
cativante entusiasmo, passa a ser reconhecido como uma interessante liderança
entre seus pares. Trata-se de uma performance vinculada, especialmente, à noção
de prosperidade e auto-afirmação individual (“>sei que é isso mesmo que eu
quero da minha vida<” – linhas 84-85). Por outro lado, considero que, na
narrativa de Gabriel, coexiste um forte ethos de solidariedade local. Ao
apresentar-se engajado na tarefa de “fazer a escola ir pra frente” (linha
92), Gabriel parece almejar que o resultado de sua ascensão (no plano individual)
sirva a interesses coletivistas e locais (no caso, à própria escola e a seus sujeitos
sociais).
Na cena abaixo, uma nova atriz social sobe a esse palco de performances
emergentes nas narrativas de (per)curso dos alunos da UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ. Juliana era uma das candidatas à bolsa de Iniciação Tecnológica (já
explicitada anteriormente) e, na ocasião da entrevista, tinha dezoito anos e era
moradora do centro do município de Nova Iguaçu. Juliana também era membro do
grêmio estudantil (do qual faziam parte Wagner e Gabriel – cenas 3 e 14,
211

respectivamente) e bastante alinhada às ideologias de orientação socialista no


campo político. A aluna costumava apresentar-se discursivamente como uma
idealista insatisfeita com as injustiças do mundo e como defensora dos direitos
humanos. Assim como Gabriel (ver cena 14), Juliana foi reprovada no 1º ano do
Ensino Médio e, além disso, trancou sua matrícula do curso técnico em
Telecomunicações logo nesse seu primeiro ano como aluna da escola. Em uma
escola cuja principal bandeira é a tradição no ensino tecnológico, a experiência de
abandono de um curso técnico, como é o caso de Juliana, pode assumir um
sentido simbólico negativizado tanto para a aluna quanto para a própria
instituição. Enquanto Juliana figuraria no quadro de construções estigmatizadas
comumente associadas à noção de fracasso individual, a escola poderia ter seu
prestígio sócio-historicamente construído colocado em xeque, uma vez que a
evasão de um aluno pode remeter a um sentido de inoperância por parte da
instituição quanto à sua missão na sociedade. Vejamos, na cena 15, como Juliana
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constrói seu abandono do curso técnico em Telecomunicações e o que isso diz a


respeito de sua própria identidade social.

5.3.6.
Cena 15: “Acho que tudo tem que ter paixão”

304 Juliana [Eu nunca... não, eu


305 NUNCA quis o técnico.
306 Talita Como é que foi essa situação?
307 Juliana Muito, muito estranho... porque assim, eu tive
308 um problema que foi o seguinte, no meu primeiro
309 a::no, e::u... no primeiro bimestre, eu
310 <conversei> com um professor do técnico... e::
311 expliquei a minha situação... que:: eu não
312 estava <SUPORTANDO> ((riso)) assistir às
313 a::ulas... eu sou uma pessoa assim, oTalitao, é::
314 >eu não sei se foi< criação, eu não sei se >as
315 coisas< que eu já li::, não sei se é o ambiente
316 que eu vi::vo, >eu sou uma pessoa que< eu não
317 gosto de fazer NADA pressionada, e::... e muitos
318 vieram falando “mas você”... ehhsse final de
319 semana mehhhsmo foi engraçahhdo, >se-, sábado<,
320 sexta-feira... um menininho de TREZE aninhos lá
o
321 do tae kwon do atéo... ele estudou no
322 Tamandaré::, ele fa::z cultura ingle::sa, >um
323 garoto< que... vai chegar aos dezoito anos já
324 TOP, né?... falando “QUE que você vai tentar no
325 vestibular?”, >aí< eu falei “História”... aí ele
326 olhou pra minha cara... “você tá fazendo <cefet>
327 pra fazer HISTÓ::RIA?”
328 Talita O menino falou isso pra você?
329 Juliana É... aí... TREZE aninhos... treze aninhos,
212

330 né?... aí::, oa velha falandoo...


331 Talita ((risos))
332 Juliana Aí eu fui e falei assim pra ele, eu falei...
333 “<POR QUÊ>?”, aí ele... “não, você tem que
334 tentar um I::TA, um I::ME”, aí começou a falar
335 “não, porque EU vou tentar ITA, I::ME, fazer
336 vestibular o quê, vou estu-“ <enfim>... é uma,
337 isso é uma característica da galera que tá::,
338 que tá de fora assim, que pensa que::, mas, mas
339 É a lógica, >acho que< teoricamente, se você tá
340 dentro de um centro tecnológico... você va::i...
341 vocêhhh, você vai se formar num técnico PRA::
342 abastecer o mercado de traba::lho, né?... e, e
343 enfim, você vai exercer aquela profissão >ali< e
344 isso NÃO ocorre, >a gente< sabe que isso não
345 ocorre.
346 Talita Você acha que na, a teoria é uma e a prática é
347 outra?
348 Juliana Eu acho que::... é elaborado pra ser de um
349 jeito... mas::... não é odesse jeito... néo?...
350 assim, eu vejo isso pelo <convívio> com outras
351 pessoas já. Por exemplo, eu tenho uma ami::ga...
352 que ela fez até o terceiro ano em
353 informá::tica... terminou o mé::dio... a
354 Â::ngela, ovocê acho que deve ter dado aula pra
355 e::lao.
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o
356 Talita Ângelao?
357 Juliana A Ângela::...
358 Talita [oEla terminou tem quanto tempoo?
359 Juliana Tem um ano.
o
360 Talita De repente ela foi minha alunao.
361 Juliana Então, ela fez vestibular pra educação fí::sica,
362 que era o sonho da vida dela... ela foi e
363 largou... porque acho que é integra::l, eu não
364 sei direito. Largo::u o último ano do técnico, e
365 muitas pessoas chegaram pra ela e falaram “não,
366 mas... mas é mais uma, uma forma de você
367 conseguir empre::go, onão sei quêo”... mas::...
368 eu acho que se você <não for>, é::... e acho que
369 tudo você tem que ter paixão... não adianta...
370 >não é<, não é discurso utó::pico de::... não é,
371 sabe, de fã de Che Gueva::ra, entendeu?
372 ((risos))
373 Talita Aham. ((Risos))
374 Juliana Mas acho que tudo tem que ter paixão, eu não
375 i::a conseguir dar co::nta de um técnico...
376 <sendo empurrado com a barri::ga>, >de um
377 técnico<... eu não ia, eu não ia conseguir fazer
378 aquilo bem. Agora dentro de uma faculdade de
379 Histó::ria, eu sei que, eu NASCI praquilo...
380 então por mais que eu tenha dificulda::de,
381 >porque dificuldade a gente vai encontrar< em
382 tudo na nossa vida... e::u, eu vou conseguir...
383 ser o melhor que eu puder ser naquilo, uma coisa
384 que eu não conseguiria... no Técnico.

(Juliana, 4 de maio de 2010)


213

O longo movimento narrativo de Juliana é tecido por meio de inúmeras


estratégias metanarrativas que conferem dramaticidade ao seu relato, colocando
em cena, inclusive, outros atores sociais, sejam eles membros ou não da UnED de
Nova Iguaçu do CEFET/RJ. Juliana é uma narradora bastante performática e, em
diversos momentos de sua narrativa, faz uso de recursos como fonologia
expressiva, sons aspirados, pausas e risos com notório aspecto avaliativo (e
crítico, na maioria das vezes), estilização da voz na dramatização de falas de
outros personagens de seu enredo, enfim, dispositivos que envolvem
emocionalmente quem a ouve. Recursos não verbais50, como expressões faciais
exageradas, gesticulação das mãos e outros movimentos corporais também eram
bastante empregados por Juliana.
O ponto da narrativa da aluna é construir o curso técnico de
Telecomunicações como algo indesejável (“eu NUNCA quis o técnico.” –
linhas 304-305). O fato de o curso não fazer parte de um projeto (Schutz, 1962),
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conduzido consciente e voluntariamente por Juliana, justificaria, assim, o


trancamento de sua matrícula e o consequente abandono do referido curso. A ação
complicadora construída pela aluna recupera um diálogo com um professor de sua
área técnica de origem e coloca em evidência o sofrimento vivido por ela em
função da completa rejeição ao curso.

“no meu primeiro a::no, e::u... no primeiro bimestre” (linhas 308-


309)
“eu <conversei> com um professor do técnico” (linhas 309-310)
“e:: expliquei a minha situação...” (linhas 310-311)
“que:: eu não estava <SUPORTANDO> ((riso)) assistir às a::ulas ”
(linhas 311-313)

Juliana localiza temporalmente a prematuridade com que diagnosticou sua


repulsa ao curso de Telecomunicações (ainda “no primeiro bimestre” – linha
309) e constrói o professor da área técnica como interlocutor/perito legitimado
para ouvir seu “problema” (linha 308). A frequência às aulas do curso técnico é

50
Como as entrevistas não foram geradas em vídeo, não incluí nas transcrições as marcas
não-verbais nas performances narrativas/identitárias dos alunos participantes da presente pesquisa.
No caso específico de Juliana, entretanto, creio ser importante incluir a menção aos seus usos
corporais que, aliados aos dispositivos linguísticos empregados pela aluna, conferiram à sua
performance narrativa contornos particularmente diferentes, se comparada aos demais alunos
entrevistados.
214

construída discursivamente como sofrimento de dimensões amplas, a ponto de


provocar certa repulsa, asco e intolerância. A expressividade fonológica e o ritmo
pausado em “<SUPORTANDO>” (linha 312), além do riso entremeado na própria
oração narrativa (linha 312), conferem dramaticidade ao sentimento experienciado
pela aluna, bem como certa perplexidade diante da situação a que foi submetida.
Em seguida, Juliana elabora uma justificativa para tamanha intolerância ao curso
técnico com base em atributos pessoais construídos discursivamente como traços
de sua personalidade possivelmente motivados pelo seu repertório sócio-cultural.

“eu sou uma pessoa assim, oTalitao” (linha 313)

“>eu sou uma pessoa que< eu não gosto de fazer NADA


pressionada” (linhas 316-317)
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“>eu não sei se foi< criação,” (linha 314)


“eu não sei se >as coisas< que eu já li::” (linhas 314-315)
“não sei se é o ambiente que eu vi::vo,” (linhas 315-316)

Juliana investe, de início, na construção de uma conexão afetiva imediata


entre mim (na condição de entrevistadora) e ela, através do emprego de um
vocativo (“oTalitao” – linha 313). A aluna não emprega (como a maior parte dos
alunos o faz) a forma de tratamento “senhor(a)” para se dirigir a mim, que era, na
ocasião da entrevista, sua professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.
Pode-se dizer que Juliana desconstrói a relação hierárquica de poder e a assimetria
interacional para me tratar como uma igual, uma amiga confidente de seu drama.
Juliana apresenta-se como alguém que valoriza a liberdade como um atributo
inerente às suas ações e torna relevante o mundo sócio-histórico que a
circunscreve, possível condicionador desse seu espírito libertário que não aprecia
coerções sociais (“eu não gosto de fazer NADA pressionada” – linhas 316-
317). Três fatores são elencados por Juliana como possíveis orientadores dessa
conduta que rejeita pressões sociais: a família (“criação” – linha 314), a
educação (materializada na imagem dos livros – linhas 314-315) e a localidade
(“o ambiente que eu vi::vo” – linhas 315-316).
215

Em seguida, Juliana constrói duas sub-narrativas que buscam ilustrar as


tensões entre o que o indivíduo quer para si e as expectativas da sociedade que o
circunda. Na primeira dessas sub-narrativas, Juliana constrói uma oposição entre
suas moralidades em torno da temática da escolha profissional e os valores
defendidos por um menino, membro de outro contexto social por onde Juliana
circula. A aluna habilmente reconstrói o diálogo, localizado temporalmente em
passado recente (“ehhsse final de semana mehhhsmo” – linhas 318-319;
“>se-, sábado<, sexta-feira” – linhas 319-320), entre ela e esse menino. A
utilização da fala relatada, sob forma de discurso direto, transporta-nos para
dentro do enredo ali dramatizado e confere vivacidade a esse diálogo que, na
verdade, encena uma disputa de ethos: um que valoriza o status adquirido pela
formação técnica no CEFET/RJ e outro que valoriza o sonho, a vontade
individual.
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“QUE que você vai tentar no


“História” (linha
vestibular?” (linhas 324-325)
325)

“você tá fazendo <cefet> “<POR QUÊ>?”


pra fazer HISTÓ::RIA?”
(linha 333)
(linhas 326-327)

“não, você tem que tentar


um I::TA, um I::ME” (linhas
333-334)

O resumo da sub-narrativa que encena a conversa entre Juliana e “um


menininho de TREZE aninhos lá do tae kwon do” (linhas 320-321) assume
contornos avaliativos, uma vez que enquadra o momento vivido pela aluna como
“engraçahhdo” (linha 319), ou seja, curioso, pitoresco. A orientação da sub-
narrativa modela a identidade do menino como alguém está sendo preparado para
galgar, em um curto período de tempo, um status social considerado como
prestigioso. O fato de ter estudado em uma instituição tida como de excelência no
216

senso comum (“ele estudou no Tamandaré51::” - linhas 321-322) e de estar


envolvido com a aprendizagem de línguas estrangeiras (“ele fa::z cultura
ingle::sa” – linha 322) é interpretado por Juliana como signos da garantia de
ascensão social desse menino por meio da educação formal: “vai chegar aos
dezoito anos já TOP, né?” (linhas 323-324). Juliana e o menino, entretanto,
afiliam-se a ethos distintos e isso se torna mais evidente quando o assunto em
pauta é a preferência de curso universitário de Juliana.
A aluna estiliza sua voz na dramatização das falas do menino, por meio do
emprego do discurso direto. O recurso da estilização sugere uma atitude de
desprezo, por parte do menino, em relação à preferência de Juliana pelo curso de
História (linha 327) e uma valoração altamente positiva atribuída a instituições
militares de nível superior (“um I::TA52, um I::ME53” – linha 334). Na
performance narrativa de Juliana, o menino parece querer estabelecer uma
competição entre as preferências em jogo: de um lado, a área de História,
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construída pelo menino como uma escolha incompatível com a trajetória escolar
de Juliana (“você tá fazendo <cefet> pra fazer HISTÓ::RIA?” – linhas
326-327); do outro lado desse campo de batalha discursivo, o prestígio das escolas
militares e a convicção, por parte do menino, de que a sua escolha é
hierarquicamente superior à de Juliana (“não, porque EU vou tentar ITA,
I::ME, fazer vestibular o quê, vou estu-“ – linhas 335-336). A aluna,
por meio de recursos linguísticos de avaliação encaixada (tais como a fonologia
expressiva e o emprego da repetição em “TREZE aninhos... treze aninhos” –
linha 329), constrói sua surpresa diante dos valores desse menino, uma criança
(como sugere o emprego do grau diminutivo) que ecoa uma lógica fortemente
enraizada no mundo da cultura acerca do papel das escolas de orientação

51
O Colégio-Curso Tamandaré é uma instituição de ensino tradicional e tida como
referência no preparo de jovens para concursos vestibulares e para academias militares. Em sua
página na Internet, o prestígio adquirido historicamente pela instituição figura em seu slogan mais
recente: “Tamandaré: 60 anos de ensino forte”. (fonte: http://www.tamandare.com.br/home.html).
52
Instituto Tecnológico de Aeronáutica, sediado na cidade de São José dos Campos – SP. A
instituição militar oferece cursos de Graduação e Pós-Graduação objetivando a formação de
profissionais no campo aeroespacial. O processo seletivo para a instituição, tido como difícil e
concorrido, atribui um forte sentido de prestígio aos alunos que lá ingressam (http://www.ita.br/).
53
Instituto Militar de Engenharia, localizado na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. A
instituição ligada ao Exército Brasileiro oferta cursos de Graduação e Pós-Graduação voltados,
especialmente, para área de Engenharias. No site da instituição (http://www.ime.eb.br/), as
palavras “Tradição”, “Tecnologia”, “Qualidade”, “Excelência” e “Credibilidade” figuram em
destaque como símbolos maiores do prestígio atribuído a tal escola militar.
217

tecnológica: a visão de que “você vai se formar num técnico PRA::


abastecer o mercado de traba::lho” (linhas 341-342)
Juliana critica a visão de que o percurso dentro de uma escola tecnológica
necessariamente seja pautado em uma definição prévia e previsível dos rumos
futuros dos alunos. É nesse momento que a aluna constrói uma sub-narrativa cujo
ponto é sinalizar que as expectativas gerais em torno da função das escolas
técnicas costumam ser frustradas. O resumo dessa sub-narrativa é co-construído
por nós duas, com base na coda resumitiva da sub-narrativa anterior
(“<enfim>... é uma, isso é uma característica da galera que tá::,
que tá de fora assim, que pensa que::, mas, mas É a lógica” – linhas
336-339).

“Você acha que na, a teoria é uma e a prática é outra?” (linhas 346-
347)
“Eu acho que::... é elaborado pra ser de um jeito... mas::... não
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é odesse jeito... néo?” (linhas 348-349)

A ação complicadora da segunda sub-narrativa de Juliana coloca em cena as


atitudes tomadas por uma amiga, ex-aluna da UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ, no que concerne à quebra dessa “lógica” (linha 339) comumente
construída acerca da missão social da instituição. Ângela (linhas 354, 357) é mais
uma aluna, assim como Juliana, que abandona o curso técnico, porém em um
período de tempo mais tardio. A evasão no “último ano do técnico” (linha
364) é comumente interpretada como uma decisão negativa. Há uma visão
circulante nesse contexto específico de que abandonar uma trajetória de estudos
quando esta se aproxima do fim é uma espécie de desperdício de tempo e de
oportunidades, um “nadar e morrer na praia”, como dito popularmente. Juliana
constrói, em forma de discurso direto, uma fala em forma de coro coletivo
(Tannen, 1989) que encena a opinião da comunidade em oposição à decisão de
Ângela de abandonar o curso técnico em Informática.

“muitas pessoas chegaram pra ela e falaram “não, mas... mas é mais
uma, uma forma de você conseguir empre::go, onão sei quêo”” (linhas
365-367)
218

Juliana dramatiza um ethos coletivo que entende a educação formal em seu


valor mais instrumental e utilitarista. Para as pessoas do convívio social de
Ângela, concluir o curso técnico de Informática é construído como uma
possibilidade de emprego, uma espécie de conhecimento reserva que pode ser
mobilizado em caso de situações imprevistas. Para a comunidade, atribui-se uma
valoração ao diploma de técnico e ao que este pode proporcionar em termos de
inserção no mercado de trabalho. Para Juliana, entretanto, outras noções assumem
maior notoriedade: o “sonho” (linha 362) e a “paixão” (linha 369) figuram como
valores que dignificam o percurso de estudos do indivíduo. Ao contrário do olhar
crítico lançado pela coletividade sobre a história de Ângela, Juliana constrói o
abandono do curso técnico como uma decisão que constitui um projeto de
felicidade e satisfação pessoal (logo, individual) no percurso educacional.

“ela fez vestibular pra educação fí::sica” (linha 361)


“que era o sonho da vida dela” (linha 362)
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“ela foi e largou” (linhas 362-363)


“Largo::u o último ano do técnico” (linha 364)

“acho que tudo você tem que ter paixão... não adianta” (linhas 368-
369)
“não é discurso utó::pico de::... não é, sabe, de fã de Che
Gueva::ra, entendeu? ((risos))” (linhas 370-372)
“Mas acho que tudo tem que ter paixão” (linha 374)

É interessante notar que Juliana personifica as noções de sonho e de paixão


na imagem de Che Guevara, um dos líderes e ideólogos da Revolução Cubana, na
década de 1950, e símbolo da luta contra as injustiças sociais na América Latina.
A referência ao mítico líder socialista é coerente com o modo como Juliana quer
ser vista por seus outros discursivos e, nesse sentido, a “rebeldia” de sua atitude
de abandonar o curso técnico de Telecomunicações é construída a partir de um
ângulo mais positivo: trata-se de investimento autêntico, porque fruto de um
sonho, na satisfação pessoal do indivíduo e contra os ethos mais englobantes da
sociedade. Outro ingrediente notório em sua narrativa diz respeito à construção
discursiva dos elementos considerados primordiais ao exercício de uma profissão.
Entra em cena, na performance narrativa/identitária de Juliana, o valor do artífice
(Sennet, 2009), cuja virtude maior reside em saber fazer bem o seu trabalho.
219

O CURSO TÉCNICO A FACULDADE DE HISTÓRIA

“eu não i::a conseguir dar “eu sei que, eu NASCI praquilo”
co::nta de um técnico” (linhas (linhas 379)
374-375) “e::u, eu vou conseguir... ser
“<sendo empurrado com a o melhor que eu puder ser
barri::ga>” (linha 376) naquilo” (linhas 382-383)
“eu não ia, eu não ia conseguir
fazer aquilo bem.” (linhas 377-378)

Juliana é, entre todos os participantes da presente pesquisa, a aluna que, por


meio de suas narrativas, mais se aproxima da definição de “artífice”, segundo
apontado por Sennet (2009). Para o autor, “o orgulho pelo próprio trabalho está no
cerne da habilidade artesanal, como recompensa da perícia e do empenho”
(Sennet, 2009, p.328). O artífice é alguém que deseja, assim, que seu trabalho seja
bem feito; daí se justifica o abandono de Juliana do curso técnico de
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Telecomunicações: “eu não ia conseguir fazer aquilo bem.” – linhas 377-


378. A aptidão é construída discursivamente por Juliana como importante
elemento que propiciará o bom trabalho, bem como o prazer e o sucesso no curso
técnico. Sem ter “nascido” (linha 37) para a área técnica, seguir no curso seria um
martírio, um esforço que não atribuiria mérito algum ao agente, algo “empurrado
com a barri::ga>” (linha 376) – em outras palavras, feito sem perícia e
habilidade. Ao contrário do curso técnico, Juliana constrói sua preferência pela
área de História como habilidade inata (“eu sei que, eu NASCI praquilo” –
linhas 379), garantindo sua boa execução e proporcionando a afeição pela área por
completo. A aluna não correlaciona, entretanto, aptidão com facilidade nos
estudos. A noção de dificuldade continua figurando na narrativa de Juliana, porém
não mais com o sentido de repulsa e dissabor. As dificuldades são naturalizadas
como parte do processo de aprendizagem (“>porque dificuldade a gente vai
encontrar< em tudo na nossa vida” – linhas 381-382), podendo ser
enfrentadas justamente em função de um objetivo maior: o desejo de fazer bem
aquilo que se gosta (“eu vou conseguir... ser o melhor que eu puder
ser naquilo” – linhas 382-383).
Vimos que as narrativas de (per)curso focalizaram as dificuldades vividas
pelos alunos da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ em seu cotidiano. As longas
220

horas dentro da instituição, o acúmulo de tarefas, a necessidade permanente de


estudar, o sacrifício e o esforço que levam à exaustão, a “civilização” de hábitos e
comportamentos como exigência para sobreviver nesse contexto específico, em
suma, percursos dificultosos narrados com intensa dramaticidade. Chamam
atenção, entretanto, os pontos de virada (Mishler, 2002) construídos em algumas
das seis cenas estudadas os quais, de alguma forma, ressignificam essas situações
dramáticas de sacrifícios e obstáculos extenuantes. As dificuldades de hoje são
construídas, em alguns excertos, como situações que enobrecem o indivíduo em
termos de aprendizado vivido e de aquisição de responsabilidade. Nota-se uma
valoração positiva atribuída ao sacrifício com base no ideal de que a recompensa
futura depende, necessariamente, da superação de obstáculos.
Percorrer caminhos antes nunca trilhados provoca efeitos no sujeito
caminheiro, que já não consegue olhar para o ponto de origem sem desvencilhar-
se dos sentidos construídos durante o percurso. No trânsito de uma condição
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inicial a um destino que antes não figurava no seu repertório de conhecimentos, o


sujeito, inevitavelmente, muda, transforma-se. Após termos viajado pelas
narrativas de (per)curso dos alunos da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ,
passaremos pelo que denomino narrativas de mudança, nas quais são colocados
em evidência os impactos identitários provocados pela entrada desses alunos na
instituição. O eixo condutor das narrativas elencadas a seguir é sintetizado em
uma frase comumente dita pelos alunos (e não apenas pelos que participam da
presente pesquisa): “depois que eu entrei para o CEFET/RJ, minha vida mudou”.
Procurarei dar destaque ao caráter valorativo da mudança, bem como aos efeitos
que esta provoca nos discentes em termos de construção identitária. Em outras
palavras, interessa a mim analisar que outros (e novos) atributos desses sujeitos
sociais emergem discursivamente quando contam histórias sobre o que mudou em
suas vidas ao se tornarem alunos da instituição.

5.4.
A mudança

Na presente seção, serão estudadas seis narrativas que tematizam as


mudanças provocadas nos alunos quando migraram de outras escolas para a
221

UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. Considero que, ao se afastarem de sua


condição original, o indivíduo passa a ser reconhecido por atributos tecidos no
âmbito desse trânsito. Nas narrativas que se seguem, a mudança é construída sob
vieses distintos: valores concernentes à aquisição de responsabilidade e
maturidade, à transformação no modo de pensar e de planejar ações futuras, bem
como ao reconhecimento do status adquirido pelo ingresso na instituição são
encenados discursivamente nas narrativas aqui elencadas.
Iniciarei a discussão acerca dessas narrativas de mudança com Cláudio,
membro do grêmio estudantil e aluno do 3º ano do Ensino Médio-Técnico do
curso de Informática à época da entrevista. Cláudio tinha dezessete anos de idade
e residia em Belford Roxo, município vizinho a Nova Iguaçu. Fui sua professora
durante as três séries do Ensino Médio e, aos meus olhos, o aluno sempre se
apresentou como um rapaz atento e responsável, além de cortês com seus colegas
e professores. Em sua narrativa, Cláudio engaja-se na tessitura de seu autorretrato
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com base em valores associados ao mérito atribuído ao jovem trabalhador,


responsável e amadurecido, uma vez que tem de conciliar as exigências da vida
estudantil com as demandas do mercado de trabalho atual.

5.4.1.
Cena 16: “Eu levava a vida como um adolescente”

21 Cláudio Bom, é... eu voltei o primeiro a::no, fiz a prova


22 duas vezes, >a primeira<... fiquei na segunda
23 fase... NÃO fiz curso preparatório NENHUM, pra
24 nenhuma das duas vezes... vim da escola estadual,
25 colégio estadual... o... po, depois que eu entrei
26 aqui, né, mudou coisa <pra cara::MBA>, eu tava
27 acostumado a... levar a vida como um adolescente,
28 >criança, depois que eu entrei aqui junto com o
29 CEFET eu comecei a trabalhar também<... foi:: <pro
30 banco>... pro HSBC, aí já começou a... a
31 responsabilidade, >se já tinha dobrado por causa
32 do CEFET, triplicou por causa do trabalho<,
33 também... saía de casa SEIS e meia da manhã e
34 chegava em casa onze da noite... opor causa do
35 trabalhoo... bom, é... ( ) depois aprendi ( )
36 aqui... além do, do que eu aprendi em sala de
37 aula, >aprendi muito com as pessoas fora da sala
38 de aula aqui na esco::la<... muita coisa... vários
39 assuntos... é... cultura útil... inútil... é... to
40 no terceiro ano, né... pela primeira vez estou
41 só... só no colé::gio... aqui no CEFET... só
42 fazendo o médio e o técnico... e... fazendo
43 vestibular... acho que eu vou... >começar a
222

44 faculdade só depois que terminar o quarto ano<...


45 e é... oisso aío.

(Cláudio, 29 de junho de 2009)

É possível reconhecer, na narrativa de Cláudio, três principais movimentos


temporais: o passado (linhas 21-38), a que se destina a maior parte do relato do
aluno; o momento presente (linhas 38-43); e o direcionamento de um futuro
relativamente planejado (linhas 43-45). O início de sua narrativa é marcado por
uma sequência de cinco orações no pretérito perfeito que remetem ao período
referente ao processo seletivo para ingresso no CEFET/RJ.

“eu voltei o primeiro a::no” (linha 21)


“fiz a prova duas vezes” (linhas 21-22)
“>a primeira<... fiquei na segunda fase...” (linhas 22-23)
“NÃO fiz curso preparatório NENHUM” (linha 23)
“vim da escola estadual” (linha 24)
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Essas orações narrativas não foram organizadas por Cláudio em uma


sequência propriamente cronológica. O ordenamento de ações parece destacar o
percurso do aluno para superar uma situação de fracasso experienciada. Por dois
anos consecutivos, o aluno candidatou-se a uma vaga na instituição, obtendo êxito
somente na segunda tentativa (“fiquei na segunda fase...” – linhas 22-23).
A consequência de não ter sido aprovado em seu primeiro exame de seleção é
apontada por Cláudio já na sua primeira oração narrativa (“eu voltei o
primeiro a::no” – linha 21). Esse, aliás, é um dado bastante frequente na
instituição. Há muitos casos de alunos que já haviam cursado a 1ª série do Ensino
Médio em outra escola e que, quando conseguiram a aprovação para o CEFET/RJ,
preferiram repetir a série. A meu ver, essa “preferência” por cursar a mesma série
novamente (porém em uma escola de renome e tradição) está atrelada aos projetos
desses jovens (e também de suas famílias) relacionados à possibilidade de
ascensão social futura pela escolarização.
É possível reconhecer, na narrativa de Cláudio, um primeiro movimento no
sentido de atribuir um valor positivo ao seu esforço e mérito individuais. O aluno
constrói uma imagem de si como alguém que, por dedicação e esforço próprios,
sem a ajuda de qualquer pessoa ou instituição, alcançou seus propósitos. A
223

expressividade fonológica empregada nos vocábulos “não” e “nenhum” (“NÃO


fiz curso preparatório NENHUM” – linha 23) pode ser interpretada como uma
avaliação encaixada por meio da qual Cláudio sinaliza como quer ser visto pela
sua plateia: como alguém que venceu os desafios sozinho, como um self made
man. O fato de ele não ter se preparado para o processo seletivo do CEFET/RJ em
cursos destinados a este fim pode ser entendido como um argumento significativo
que sustenta essa noção de mérito individual. Soma-se a isso o fato de Cláudio
apresentar-se como aluno oriundo da rede estadual de Educação, à qual são
atribuídos inúmeros estereótipos depreciativos54 no senso comum. Os tradicionais
valores negativos associados às escolas estaduais, especialmente no que tange à
duvidosa qualidade de ensino oferecida a seus estudantes, são construídos, na
narrativa de Cláudio, como tendo sido superados, vencidos, graças ao empenho
individual do aluno.
Esse primeiro conjunto de orações narrativas pode ser compreendido como
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orientação para a ação complicadora propriamente dita da narrativa de Cláudio. É


nesse momento que se reconhece, por meio da sua performance de rapaz
esforçado e dedicado, o emprego de recursos avaliativos que sinalizam o ponto da
narrativa de Cláudio: mostrar, para seus ouvintes, como a sua vida mudou depois
que se tornou aluno do CEFET/RJ. O aluno caracteriza sua entrada na instituição
como um ponto de virada (Mishler, 2002) em sua vida: “depois que eu entrei
aqui, né, mudou coisa <pra cara::MBA>” (linhas 25-26). Assim,
estabelece-se uma cisão entre dois universos: o antes e o depois em sua trajetória
de vida. O universo da criança/adolescente é colocado em oposição ao do jovem
trabalhador. O divisor de águas, nesse percurso entre o antes e o depois de sua
vida, é a entrada no CEFET/RJ. O antes é apresentado como um hábito
(construído pelo uso do pretérito imperfeito – “tava acostumado” – linha 26)
que foi substituído por uma nova ordem: a do trabalho e da responsabilidade. Se,
antes, a vida de criança poderia oferecer a Cláudio maior liberdade em suas ações,
agora sua rotina é regrada, disciplinada e marcada pela exaustão e pelo sacrifício.
Uma série de dispositivos metanarrativos (logo performáticos) constrói essas
noções no relato de Cláudio.

54
Entre eles, destacam-se: a carência de professores; a deficiência na qualidade do ensino; a
precariedade das instalações físicas da escola, o desestímulo de docentes e discentes; a não-
capacitação dos alunos, entre outros.
224

ANTES DEPOIS
“eu tava acostumado a... “eu comecei a trabalhar também”
levar a vida como um (linha 29)
adolescente, >criança” (linhas “aí já começou a... a
26-28) responsabilidade” (linhas 30-31)
“já tinha dobrado por causa do CEFET”
(linhas 31-32)
“triplicou por causa do trabalho”
(linha 32)
“saía de casa SEIS e meia da manhã”
(linha 33)
“chegava em casa onze da noite”
(linha 34)

A mudança é marcada em termos prosódicos, especialmente no


alongamento de vogal e na ênfase dada à palavra “caramba” (“mudou coisa
<pra cara::MBA” – linha 26). A estrutura paralelística evidenciada pela repetição
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do verbo “começar” (“comecei a trabalhar” – linha 29; “começou a... a


responsabilidade” – linhas 30-31) chama especial atenção a essa vida nova que
chega para substituir os hábitos do passado. A progressão matemática atribuída à
noção de responsabilidade (primeiramente “dobrada” – linha 31; em seguida
“triplicada” – linha 32), além das alternâncias no ritmo da fala (linhas 28-35),
enfatizam o acúmulo crescente de atividades em sua rotina diária. Toda exaustão e
sacrifício envolvidos nesses afazeres são, particularmente, notados nas
disposições antitéticas “saía de casa” (linha 33) vs. “chegava em casa” (linha
34) e “manhã” (linha 33) vs. “noite” (linha 34). O afastamento de casa,
compreendida aqui no seu sentido mais vivencial que físico (Duarte & Gomes,
2008), emerge, na narrativa de Cláudio, como elemento necessário para a
aquisição da responsabilidade exigida por esse novo mundo. Tudo isso,
entretanto, é construído como algo positivo em sua vida. As noções de
responsabilidade e de amadurecimento, resultantes de seu incansável esforço
individual, são construídas sócio-discursivamente como atributos socialmente
valorizados em sua performance narrativa/identitária de jovem trabalhador.
A resolução da narrativa de Cláudio aponta para o desencadear de todo esse
processo de mudança. O resultado de todo esforço, sacrifício, responsabilidade e
amadurecimento experienciados é sintetizado na noção de aprendizagem (que é,
em última análise, aquilo que mais se busca na educação escolarizada).
225

“depois aprendi ( ) aqui...” (linhas 35-36)


“além do, do que eu aprendi em sala de aula” (linhas 36-37)
“>aprendi muito com as pessoas fora da sala de aula” (linhas 37-38)
“vários assuntos... é... cultura útil... inútil...” (linhas 38-39)

A repetição do verbo “aprender” (linhas 35 e 37) pode ser entendida como


um dispositivo metanarrativo por meio do qual Cláudio atribui relevância ao
passado vivido. É como se todo percurso de dificuldades tivesse valido a pena,
uma vez que se traduziu em termos de responsabilidade e de aprendizado. É
interessante notar que Cláudio constrói discursivamente essa noção de
aprendizagem sob forma de uma gradação crescente. Parece, a meu ver, existir
uma escala de valores entre o aprender “em sala de aula” (linhas 36-37) e o
aprender “fora da sala de aula” (linha 37), em que o segundo termo assume
maior notoriedade. O saber escolarizado (a “cultura útil” – linha 39) é o que,
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em tese, possibilitará a ascensão social; por essa razão, Cláudio vem há tempos
perseguindo esse tipo de aprendizado (não à toa, prestou, por duas vezes, concurso
para instituição, preferindo, inclusive, repetir de série). Entretanto, Cláudio amplia
sensivelmente o conceito de aprendizagem e atribui alto grau de relevância à mera
sociabilidade (Simmel, 2006). A chamada cultura “inútil” (linha 39) enfatiza a
noção de interação social livre das obrigações curriculares, além de privilegiar o
estar com, a coletividade. O self made man, o jovem rapaz que, sozinho e com o
esforço do seu trabalho, vence os obstáculos e supera o fracasso de outrora,
desloca seu olhar para o aprendizado construído nas redes de solidariedade e
situa-o como um tipo de conhecimento mais válido que aquele aprendido “em sala
de aula”.
No fim de sua narrativa, Cláudio constrói uma coda, conectando os eventos
passados vivenciados ao momento presente, e sinaliza o que, possivelmente, há de
vir no futuro. O fato de estar na última série do Ensino Médio (“to no terceiro
ano” – linhas 39-40) pode ser caracterizado como um período de transição: finda-
se um ciclo escolar, inicia-se outro, seja pelo ingresso no ensino superior ou no
mercado de trabalho. Quanto ao presente, Cláudio focaliza dois aspectos: o
ineditismo em não mais acumular estudos e o trabalho (“pela primeira vez
estou só... só no colé::gio...” – linhas 40-41); e o preparo para seu futuro
acadêmico (“fazendo vestibular...” linhas 42-43). É interessante notar que o
226

trabalho já não figura em seu momento presente, nem chega a ser cogitado para os
planos futuros. A conclusão dos estudos de Nível Técnico55 e a possibilidade de
ingressar na universidade (“acho que eu vou... >começar a faculdade só
depois que terminar o quarto ano<” – linhas 43-44) emergem como
principais projetos, relativamente planejados, do aluno. Pode não haver garantias
para que esse ethos de ascensão social via formação bacharelesca se cumpra,
entretanto creio ser inegável que a inclusão do tema “faculdade” (linha 44) em sua
narrativa já sinaliza, ao menos, um roteiro para suas narrativas futuras.
Na construção discursiva do antes e do depois da chegada de um aluno ao
CEFET/RJ, por vezes a dimensão da mudança figura como uma necessidade de
adaptação às rotinas e exigências desse “mundo novo”, diferente do universo de
origem do aluno. É assim que Manuela (ver cenas 2, 10 e 17) constrói o sentido da
mudança proporcionada por seu ingresso na instituição. Na cena 17, a aluna
focaliza o esforço empreendido por ela para ajustar-se e aculturar-se ao “ritmo” da
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nova escola e suprir o que considera ser uma “deficiência” (linha 250, cena 17)
de aprendizagem advinda da oitava série do ensino fundamental. Manuela atribui
uma valoração altamente positiva aos efeitos da mudança em sua construção
identitária, no que diz respeito ao seu crescimento pessoal, assim como visto na
performance narrativa/identitária de Cláudio (na cena 16).

5.4.2.
Cena 17: “A gente se depara com um mundo novo”

245 Manuela Eu não sabia na::da, fiquei completamente


246 perdi::da... e assim, o Pablo me ajudou
247 MUI::TO...ele::...assim, me deu um livro de
248 química e eu estudava, TODO DIA eu estuda::va...
249 e tive que correr mu::ito atrás, porque a minha
250 deficiência em quí::mica e fí::sica... assim,
251 era mu::ito grande... era muito grande, então
252 pra eu começar a entrar no ritmo de::le, eu tive
253 que aprender mui::ta coisa. E mu::ita coisa eu
254 tive que aprender assim, do li::vro...
255 porque::.. tinha, ele chegava na sa::la, ele
256 ia... passava matéria do ensino médio... ele não
257 i::a voltar, é::... ocomo é que se falao...
258 conteúdos, não, é::...
259 Talita Sim, os conteúdos da, da oitava série? Não.

55
Na ocasião da entrevista, depois de o aluno concluir o 3º ano do Ensino Médio na UnED
de Nova Iguaçu, ainda permanecia na escola por mais um ano para findar as disciplinas de
formação técnica.
227

260 Manuela É, aquelas definiçõ::es, essas definições be::m


261 primiti::vas...
262 Talita [Ah, sim.
263 Manuela = EU é que tinha que... correr
264 atrás, então assim... pra mim, em relação a
265 e::ssas matérias assim, foi um pouco difí::cil
266 deu... >pra eu< me adapta::r... outras, assim,
267 é... assim, inovaçõ::es, né, tipo LER LI::VROS,
268 que não era minha... do meu costu::me... >eu
269 comecei, tive que< passar a ler li::vros,
270 o
entãoo... foi MUITO bom. Assim, eu CRESCI::
271 muito... eu aprendi ma::is, eu amadureci...
272 porque a gente vem daquela... fa::se, de
273 infância
274 Talita Uhum
275 Manuela E quando a gente chega aqui::... se depara com
276 um mundo novo... um mundo de pessoas muito mais
277 amadureci::das... professores MUI::TO, assim...
278 melhor prepara::dos, né... professores às vezes
279 com <MESTRA::DO> ou com <DOUTORA::DO>... e coisa
280 que numa escola municipal às vezes você não
281 tem... >às vezes não<... na ma::ioria das vezes
282 você não tem... oprofessor assimo tão bem
283 preparado como os que tem aqui... então... um
284 TURBILHÃ::O de INFORMAÇÃ::O... que você tem que
285 ir se adapta::ndo... e assim... é <MU::ITO
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286 BOM>... eu achei assim <EXCELE::NTE> ter vindo


287 pra cá::... assim, pra mim eu pude aproveitar o
288 má::ximo... assim, da minha capacidade, eu pude
289 aproveitar aqui dentro.

(Manuela, 29 de junho de 2009)

Já no começo de sua narrativa, Manuela constrói duas orações narrativas


que encapsulam seu estado emocional ao chegar na UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ. A sequência narrativa “Eu não sabia na::da, fiquei

completamente perdi::da” (linhas 245-246) constrói a constatação de Manuela


em relação ao conhecimento adquirido antes de tornar-se aluna do CEFET/RJ,
bem como o sentimento vivenciado no trânsito por rotinas e práticas que não
figuravam em seu repertório vivencial. Sentir-se “perdi::da” (linha 246) implica
não saber que rumos tomar, o que gera certa imobilidade e aflição (marcada pelo
alongamento de vogal) uma vez que o norte a ser seguido não lhe é conhecido. A
enfática nulidade (“na::da” –linha 245) atribuída ao seu conhecimento prévio
indicia as dificuldades que tipificariam esse caminho sem um norte definido.
Nesse momento, Manuela elenca Pablo (nome fictício para um professor de
Química da escola) como guia nesse trânsito, aquele que lhe fornecerá
instrumentos que lhe servirão de bússola e lanterna para seguir esse caminho
228

inaugural de modo mais agentivo, sem se sentir mais perdida (“o Pablo me
ajudou MUI::TO” – linhas 246-247). Pablo, que é conhecido entre os alunos da
instituição como professor exigente e temido pelo alto grau de dificuldade de suas
avaliações bimestrais, tem sua identidade forjada, pelo discurso de Manuela, como
aquele que sinaliza para a aluna o que é necessário para percorrer esse caminho. A
ajuda (linha 246) de Pablo, entretanto, não é construída como uma facilitação do
percurso. Apesar das lacunas de conhecimento de Manuela oriundas de seu ensino
fundamental, particularmente nas Ciências Exatas (“porque a minha

deficiência em quí::mica e fí::sica... assim, era mu::ito grande”

– linhas 249-251), na construção narrativa em questão, Pablo não paternaliza sua


ajuda à aluna, o que confere à mudança de hábitos vivida por ela um cunho
fortemente agentivo.

AÇÕES DE PABLO AÇÕES DE MANUELA


“ele::...assim, me deu um livro “eu estudava, TODO DIA eu
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de química” (linhas 247-248) estuda::va” (linha 248)


“ele chegava na sa::la, ele “tive que correr mu::ito atrás”
ia... passava matéria do ensino (linha 249)
médio” (linhas 255-256) “pra eu começar a entrar no
“ele não i::a voltar” (linhas 256- ritmo de::le, eu tive que
257) aprender mui::ta coisa.” (linhas
“aquelas definiçõ::es, essas 252-253)
definições be::m primiti::vas” “E mu::ita coisa eu tive que
(linhas 260-261) aprender assim, do li::vro”
(linhas 253-254)
“EU é que tinha que... correr
atrás” (linhas 263-264)

É notório observar que Pablo é construído como aquele professor que ajuda
Manuela, sem que isso fosse motivado por um sentimento de pena pelas
dificuldades enfrentadas pela aluna. Pablo dá um livro a Manuela (objetificada
pelo pronome oblíquo “me” – linha 247) e não modifica sua ação docente em
função de sua ausência de conhecimentos advindos do ensino fundamental –
construídos, aliás, por Manuela como algo elementar e hierarquicamente menor,
em comparação ao Ensino Médio (“essas definições be::m primiti::vas”
– linhas 260-261). A ação de Pablo é apenas o dispositivo que aciona as
engrenagens do esforço empreendido por Manuela para sua adaptação aos passos
(“entrar no ritmo” – linha 252) necessários para seguir no caminho, sem mais
229

se sentir perdida como inicialmente. As ações investidas pela aluna são


construídas com verbos na voz ativa, além da presença de expressões adverbiais
(“TODO DIA” – linha 248, “mu::ito” – linha 249, “mui::ta” – linha 253) que
atribuem um cunho avaliativo relacionado ao seu exaustivo empenho para se
adequar às exigências da escola. A aculturação a esse contexto novo para
Manuela, diferente de sua condição original de educação formal, é construída
como uma busca de caráter obrigatório (“tive que correr mu::ito atrás” –
linha 249) e de responsabilidade exclusiva do indivíduo (“EU é que tinha
que... correr atrás” – linhas 263-264). Ainda que Pablo, o professor guia,
aponte o caminho, quem caminha (aliás, “corre”) com seus próprios passos é
Manuela. Assim como na cena 10, a performance narrativa de Manuela constrói
sua auto-imagem como alguém que, sozinha e por mérito próprio, supera as
dificuldades e dá cabo de seus projetos. Aprender “do li::vro” (linha 254)
significa “aprender sozinha”, sem qualquer ajuda, o que traz à tona, uma vez mais,
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o ethos de valorização do empenho e do trabalho individual, materializado na


imagem do self made man.
A adaptação de Manuela a uma realidade que não lhe era familiar (“não
era minha... do meu costu::me” – linha 268), ainda que envolva obstáculos
(“foi um pouco difí::cil” – linha 265), é avaliada positivamente em sua
performance narrativa.

“foi MUITO bom” (linha 270)


“é <MU::ITO BOM>” (linhas 285-286)
“eu achei assim <EXCELE::NTE> ter vindo pra cá::” (linhas 286-287)
“eu CRESCI:: muito... eu aprendi ma::is, eu amadureci...” (linhas
270-271)

De modo bastante similar à narrativa de Cláudio (na cena 16), Manuela


constrói a noção de amadurecimento, a passagem da vida de criança para a adulta,
como efeito identitário positivo do processo de mudança vivenciado pelo trânsito
na instituição. O CEFET/RJ figura como caminho propiciador de mudanças,
fazendo Manuela migrar de um estado de nulidade (“Eu não sabia na::da” –
linha 245) ao de plenitude de conhecimentos (“um TURBILHÃ::O de

INFORMAÇÃ::O” – linhas 283-284). É interessante notar, também, o modo como


230

Manuela descreve a UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. Os dispositivos de


avaliação (encaixada ou externa) empregados pela aluna constroem uma espécie
de deslumbramento, de fascinação, em relação à instituição, especialmente tendo
em vista que o CEFET/RJ é construído como “um mundo novo” (linha 276). Na
tessitura discursiva desse universo tão diferente de seu mundo de origem,
Manuela coloca em evidência, de modo bastante especial, o aspecto humano da
instituição. A aluna constrói a identidade do CEFET/RJ, desse “mundo novo”,
com base nas qualidades das pessoas que atuam nesse mundo (“um mundo de
pessoas muito mais amadureci::das” – linhas 276-277), conferindo
particular destaque aos professores da instituição: “professores MUI::TO,
assim... melhor prepara::dos” (linhas 277-278). A formação educacional de
seus professores (reverberada por fonologia bastante expressiva: “com
<MESTRA::DO> ou com <DOUTORA::DO>” – linha 279) provoca certo
encantamento em Manuela, visto que se trata de situação incomum em seu mundo
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de origem (“numa escola municipal às vezes você não tem... >às vezes
o
não<... na ma::ioria das vezes você não tem... professor assimo
tão bem preparado como os que tem aqui” – linhas 280-283).
A composição desse painel que envolve a mudança de um estado inicial
identitário para outro simbolicamente melhor, nas performances narrativas dos
alunos participantes da presente pesquisa, em geral passa pela tessitura de
movimentos de orientação cuja finalidade reside no contraste entre as escolas
anteriores e a UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. Na narrativa de Manuela, por
exemplo, comparar a formação dos professores da rede municipal de ensino com a
dos docentes do CEFET/RJ significa dizer que sua educação atual é melhor que a
anterior. Se as condições de educação migraram para um estado valorativo
superior, consequentemente a aluna pode construir sua auto-imagem também a
partir desse mesmo movimento. Na cena abaixo, Juliana (ver cena 15) também
compara a escola onde cursou o ensino fundamental com o CEFET/RJ e constrói
discursivamente os impactos identitários nessa mudança de uma instituição para
outra. Desta vez, além da polarização estabelecida entre os docentes de uma e
outra escola, entram em cena dois ethos concorrentes: um que destaca o valor em
torno da localidade e da parentalidade, e outro relacionado a um processo de
desenraizamento de sua condição original.
231

5.4.3.
Cena 18: “Se eu tivesse ficado fechada naquele colégio de bairro...”

25 Juliana Então, enfim... eu tava estudan-, eu sempre


26 estudei em escola particular, é escola de,
27 escola de bairro, aquela escola que <TODO mundo
28 estuda>...
29 Talita AHam.
30 Juliana Que o vizinho, o filho do vizinho, o neto,
31 todo mundo estuda.
32 Talita Cê, você mora aqui em Nova Iguaçu?
33 Juliana É, eu moro perto do Gregos e Troianos.
34 Talita Sim.
(...)56
58 Fiz a prova pro cefet, passei pro cefet... eu
59 passei por causa da redação, porque eu quase
60 gabaritei redação, e::... a pro::va de
61 Matemática foi um... ((faz uma careta))
62 Talita Desastre. Ai, vai bater. ((porta bate por causa
63 do vento))
64 Juliana <Sem comentários> >a prova de Matemática<... aí,
65 FUI... e fiz e tal, aí PASSE::Ihhh, aquela coisa
66 toda... e:: eu acho que é mal de, de calouro
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67 mesmo, de achar que tudo vai ser... a mil


68 maravilhas... e o meu primeiro a::no, ele não
69 foi um primeiro ano... desleixado. Muitas
70 pessoas até dentro da escola ficaram admiradas
71 de eu ter ficado entre os doze que repetiram,
72 né?... no primeiro ano. E::... aí eu fui
73 aprendendo. >Eu fiz o primeiro ano de no::vo,
74 fiz o primeiro ano< bem mais tranquila na
75 questão das exa::tas, na parte das exatas...
76 porque aí a gente vai aprendendo como
77 estuda::r... e amadureci muito, acho que se eu
78 não tivesse entr-, vindo pro cefet... eu não
79 teria:: esse posicioname::nto, eu não teria::...
80 essa, essa visão, essa forma... porque eu acho
81 que::... eu passo a maior parte do meu tempo
82 aqui dentro... e:: as pessoas que eu MAIS
83 convivo durante o meu dia são professores e são
84 alunos... e:: ambiente escolar é isso, >você<,
85 você tá convivendo com as difere::nças, você...
86 é, num, não tem... tudo bem, QUALQUER outro::,
87 outra escola eu, eu conviveria com a diferença
88 >e tudo mais<, mas >acho que<... se eu tivesse
89 ficado <fechada> lá naquele colégio de ba::irro,
90 onde são pessoas do ba::irro... são... não é
91 querendo falar mal >do meu antigo colégio<, mas
92 os profissionais não são qualificados... não tem
93 comparação com os profissionais daqui... isso é
94 uma coisa que muitas pessoas veem i::sso...

(Juliana, 4 de maio de 2010)

56
Foi feito um recorte na sequência narrativa de Juliana (das linhas 35 a 57), na tentativa de
focalizar mais propriamente a narrativa de mudança da aluna, e não as motivações para sua
chegada à instituição (como é o caso das linhas retiradas nesta cena específica).
232

A construção da narrativa de Juliana não obedece a uma estrutura


propriamente linear. Pelo contrário, trata-se de enredo construído com idas e
vindas, rupturas e continuidades, assim como o próprio fluxo da vida em
sociedade. Diversos assuntos são mobilizados pela aluna, porém é possível
observar que sua performance narrativa, ainda que pareça escapar de uma rota
supostamente planejada, conduz a um ponto central: construir a mudança de
“posicioname::nto” (linha 79) da aluna em função da migração de uma
“escola de bairro” (linha 27) para o CEFET/RJ. Sua narrativa inicia-se, por
sinal, com um movimento de orientação cujo objetivo é caracterizar essa sua
escola de origem.

“eu sempre estudei em escola particular” (linhas 25-26)


“escola de bairro” (linha 27)
“aquela escola que <TODO mundo estuda>” (linhas 27-28)
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“Que o vizinho, o filho do vizinho, o neto, todo mundo estuda.”


(linhas 30-31)

Juliana constrói discursivamente a escola onde estudara antes de tornar-se


aluna do CEFET/RJ como instituição estreitamente vinculada à localidade. O
bairro corresponde a um dos entes morais mais emblemáticos entre as classes
populares, especialmente no que tange à valorização das redes de solidariedade
locais e ao pertencimento familiar (Duarte & Gomes, 2008). A “escola de
bairro” (linha 27) de Juliana é o lugar que congrega a vizinhança e, por isso, nela
a aluna consegue visualizar “TODO mundo” (linha 27) – ou seja, todas as pessoas
pertencentes a essa rede de convívio social tecida com base no lugar de residência.
Além da vizinhança, a parentalidade também assume relevância nesse movimento
de orientação caracterizador de sua escola de origem. O trânsito por essa escola é
construído, na narrativa de Juliana, como algo hereditário, passado de geração a
geração no seio familiar, como sugere a sequência enumerativa “o vizinho, o
filho do vizinho, o neto” (linha 30). O vínculo com a escola, transmitido
de pai para filho, sugere um enraizamento ao bairro, à localidade onde se reside,
como se a escola assumisse uma função de “puxadinho” dessas famílias bastante
apegadas à localidade. Da mesma forma, a construção narrativa de Juliana aponta
para previsibilidade desse vínculo com a escola do bairro, como se o destino
233

dessas gerações fortemente arraigadas à localidade de origem fosse um só: “todo


mundo” (linha 31) estudar no mesmo lugar, na mesma escola.
Juliana passa a narrar a história de sua aprovação e chegada à UnED de
Nova Iguaçu do CEFET/RJ, deixando em suspensão a caracterização de sua
escola de origem. A aluna desloca-se da euforia pela aprovação no processo
seletivo para a instituição (“fiz e tal, aí PASSE::Ihhh, aquela coisa
toda” – linhas 65-66) à frustração pela reprovação no seu primeiro ano como
aluna do CEFET/RJ. A fonologia expressiva, combinada à aspiração da sílaba
final em “PASSE::Ihhh” (linha 65), funciona como avaliação encaixada que
dramatiza a alegria e comemoração da aluna após ter sido aprovada no concurso
para instituição. Já o momento da reprovação não é propriamente nomeado pela
aluna, provavelmente porque este já era um conhecimento partilhado entre nós
duas. Na condição de professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira de
Juliana, eu já conhecia sua história de reprovação na 1ª série do Ensino Médio
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(ou, pelo menos, parte dessa história). É interessante notar, entretanto, que a aluna
associa sua reprovação a um comportamento que denominou “mal de, de
calouro” (linha 66). Calouro é um termo comumente atribuído a estudantes
novatos e, por isso, inexperientes, em uma instituição. Juliana constrói sua
reprovação como resultado de certo encantamento típico de um aluno novato que,
ao chegar a um “mundo novo” (como construído por Manuela na cena 17), não
vislumbra os percursos que estão por vir, ofuscado ainda pela felicidade de ter
sido aprovado no concurso. Este, então, seria o mal do calouro: “achar que tudo
vai ser... a mil maravilhas” (linhas 67-68).
Apesar de ver-se inserida nessa lógica concernente ao “mal de calouro”,
Juliana não encontra uma justificativa para sua reprovação, tampouco se
culpabiliza por isso. Na construção discursiva do seu primeiro ano na instituição
(“o meu primeiro a::no, ele não foi um primeiro ano... desleixado”
– linhas 68-69), Juliana parece não reconhecer um merecimento pela punição
recebida (a reprovação); não à toa, a aluna ainda constrói a surpresa de seus
interlocutores dentro da instituição pela notícia de sua reprovação, juntamente
com um numeroso grupo de alunos de sua turma (“Muitas pessoas até dentro
da escola ficaram admiradas de eu ter ficado entre os doze que
repetiram” – linhas 69-71). O relato de Juliana não é, entretanto, carregado de
qualquer sentimento de tristeza ou mesmo revolta na construção de sua
234

reprovação no 1º ano do Ensino Médio no CEFET/RJ. Pelo contrário, a aluna


constrói um sentido de leveza ao ano em que cursou a 1ª série pela segunda vez
(“>Eu fiz o primeiro ano de no::vo, fiz o primeiro ano< bem mais
tranquila” – linhas 73-74) e, ainda, ressignifica aquilo que, tradicionalmente,
seria interpretado como símbolo maior de fracasso no contexto escolar. Sua
reprovação é, assim, reinterpretada como oportunidade singular para aprender e,
portanto, mudar: “aí eu fui aprendendo” (linhas 72-73); “aí a gente vai
aprendendo como estuda::r” (linhas 76-77); “e amadureci muito” (linha
77).
Juliana tece uma cisão entre duas condições existenciais em sua vida,
marcadas discursivamente pelo conectivo condicional “se” (linhas 77, 88), e o
que cada uma delas lhe proporcionaria em termos de construção identitária. Em
ambos os lados dessa cisão, os desdobramentos identitários de Juliana ocupam um
lugar de descrédito e de negação.
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“se eu não tivesse entr-, vindo “eu não teria:: esse


pro cefet...” (linhas 77-78) posicioname::nto” (linhas 78-79)
“eu não teria::... essa, essa
visão, essa forma” (linhas 79-80)

Construção identitária positiva


graças à entrada na instituição

“se eu tivesse ficado <fechada> “não é querendo falar mal >do


lá naquele colégio de ba::irro” meu antigo colégio<, mas os
profissionais não são
(linhas 88-89)
qualificados” (linhas 90-92)
“onde são pessoas do ba::irro”
(linha 90)

Construção indireta dos efeitos


negativos da permanência na
escola de origem

Juliana enaltece as práticas e atributos da UnED de Nova Iguaçu do


CEFET/RJ por meio dos quais transformou sua identidade. O convívio social, o
tempo de permanência da escola, a qualificação dos profissionais que nela atuam,
a própria reprovação na 1ª série do Ensino Médio, enfim, tudo aquilo que é
235

desenvolvido “aqui dentro” (linha 82) opõe-se ao universo simbólico


representado por “aquele colégio de ba::irro” (linha 89). A dimensão da
mudança é construída, na performance narrativa/identitária de Juliana, com base
na migração espacial e no desenraizamento do ethos da localidade. Sair do bairro
de origem, onde todos se conhecem porque são vizinhos ou parentes, é o que
possibilita Juliana ser outra pessoa. No trânsito entre iguais, Juliana permaneceria
“<fechada>” (linha 89), ao contrário do que proporcionaria o convívio com a
diferença (linha 85) no CEFET/RJ. O quadro abaixo sintetiza a polarização tecida
na performance narrativa/identitária de Juliana.

ESCOLA DE BAIRRO CEFET/RJ


Convívio com iguais Convívio com a diferença
Profissionais não-qualificados Profissionais qualificados
Fechada Outro posicionamento, outra visão
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Permanência identitária Migração identitária

Outra noção importante construída nas narrativas de mudança dos alunos da


UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ diz respeito ao status adquirido em função
de sua passagem pela instituição. A pouca oferta de educação pública de
qualidade nas localidades de origem popular, como é o caso da Baixada
Fluminense, acaba dando uma visibilidade maior àqueles que conseguem driblar
esse quadro de escassez. O orgulho e prestígio comumente atribuídos ao aluno do
CEFET/RJ, dado ao concorrido processo seletivo para a instituição e à
respeitabilidade por ela adquirida sócio-historicamente, potencializam-se, a meu
ver, nesse contexto específico. Aos filhos das classes trabalhadoras, atribui-se um
status prestigioso por sua capacidade de chegar a uma escola renomada, o que o
caracterizaria como uma exceção dentro de um quadro mais amplo de
precariedade. O aluno do CEFET/RJ torna-se, assim, orgulho da família e da
comunidade, passando a ser visto como um modelo de sucesso a ser seguido.
Na cena 19, Joana (ver cenas 8 e 11) dramatiza um curioso episódio no qual
o prestígio do aluno do CEFET/RJ entra em cena em uma conversa entre a aluna e
uma médica socorrista. A excepcionalidade do lócus de interação performado por
Joana torna sua narrativa não apenas contável, mas também bastante teatral,
236

contando com o emprego de sofisticados dispositivos linguísticos de avaliação,


como a estilização da fala relatada.

5.4.4.
Cena 19: “Ah, você é fera, hein?”

805 Kátia [MAIO::R ORGULHO, né? ((risos))


806 Joana Eu tava... >semana passada que eu passei< mal,
807 eu fui pra emergê::ncia... aí eu passa::ndo
808 MAL... aí eu deitei assim no... na cama... aí a
809 médica... ((voz estilizada)) “NO::SSA, você
810 estuda no CEFE::T?”... Eu passando MA::L, hein,
811 ela vindo me examina::r, aí eu, ((voz
812 estilizada, simulando estar fraca para falar))
813 “<AHA:M>”... ela, ((voz estilizada)) “AH, você É
814 FE::RA, hein?... que não sei o quê”... e eu
815 quase morrendo, aí eu, ((voz estilizada))
816 “<aham, tá... brigada>”.

(Joana, 2 de outubro de 2009)


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A avaliação tecida por Kátia acerca do orgulho de ser aluno do CEFET/RJ


(linha 805) funciona como resumo/abstract para a narrativa de Joana. A aluna
encena uma situação vivida por ela em um setor de emergência de um hospital da
região, para onde fora levada após sentir-se mal. Joana dramatiza um diálogo
entre ela e a médica plantonista cujo ponto é o prestígio adquirido pelo trânsito
por uma instituição de ensino renomada. A aluna inicia sua narrativa bem aos
moldes labovianos, com um movimento de orientação (“semana passada” –
linha 806), e sequencia orações narrativas com verbos no pretérito perfeito.

“eu passei< mal” (linha 806)


“eu fui pra emergê::ncia” (linha 807)
“aí eu deitei assim no... na cama” (linha 808)

Joana procurar destacar a gravidade do seu quadro clínico por meio do


emprego de verbos no gerúndio (“passa::ndo” – linha 807, “passando” – linha
810, “morrendo” – linha 814), o que contribuiu para a dramatização do aspecto
processual e contínuo de seu mal-estar. A aluna intensifica o sofrimento
provocado pela indisposição física através do emprego de fonologia expressiva
(“MAL” – linha 808), associada, em seguida, ao prolongamento de vogal (“MA::L”
237

– linha 810). A performance da dor física vivida atinge seu clímax no momento
em que Joana constrói seu mal-estar como uma situação de morte iminente (como
sinaliza o vocábulo “quase” – linha 814).

“aí eu passa::ndo MAL” (linhas 807-808)


“Eu passando MA::L” (linhas 810)
“e eu quase morrendo” (linha 814)

A gradação ascendente desse quadro de mal-estar é associada, na


performance narrativa da aluna, a uma espécie de choque de enquadres e
expectativas concernentes àquela situação vivida. Diante de um contexto
emergencial como a cena construída por Joana sugere, espera-se que as ações da
médica sejam voltadas para o alívio imediato desse quadro de sofrimento vivido
pela aluna. No entanto, a médica desloca o enquadre clínico para uma conversa
sobre os valores prestigiosos atribuídos aos CEFET/RJ, bem como os impactos
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identitários que incidem sobre Joana em decorrência desse prestígio da instituição.


Joana havia passado mal nas dependências da escola e fora levada à emergência
do hospital ainda uniformizada. Desperta a atenção da médica o logotipo da
instituição bordado na camiseta da aluna, que, naquele contexto interacional
específico, era paciente do hospital. O emblema do CEFET/RJ motiva uma
alteração nos rumos da interação médica-paciente e coloca em cena outras
identidades de Joana: aquelas relacionadas aos valores e crenças acerca do que
significa ser um aluno do CEFET/RJ. A construção da conversa entre as duas
personagens dessa narrativa chama particular atenção em função dos dispositivos
de performance empregados por Juliana, com especial destaque para a fala
relatada estilizada.
Para performar as falas relatadas (em discurso direto) da médica, Joana
eleva bastante seu tom de voz, enquanto que, na dramatização de suas próprias
falas, a aluna pronuncia as palavras mais vagarosamente, como se lhe faltassem
forças (uma vez que “quase morrendo” – linha 814) para responder aos turnos
iniciados pela médica. Na fala da médica, figuram duas interjeições (“NO::SSA” –
linha 809, “AH” – linha 813) que, ditas em fonologia expressiva, constroem o
espanto, a admirável surpresa experienciada pela médica ao identificar, no
uniforme de Juliana, um signo tradicionalmente atribuído às noções de excelência,
qualidade de ensino e, consequentemente, prestígio. Não à toa, o nome da
238

instituição também é dito em fonologia expressiva (“CEFE::T” – linha 810),


enaltecendo, ainda mais, esse status adquirido. Juliana passa a ser vista pela
médica não mais como paciente da emergência do hospital, mas como uma aluna
“FE::RA” (linha 814). Todo um conjunto de crenças e valores é evocado na fala
da médica. Ser um aluno “fera” significa incorporar as noções de inteligência e
brilhantismo acadêmico como partes integrantes de sua identidade social. Ser
chamado de “fera”, nesse contexto específico, é interpretado como um elogio e
Joana, mesmo enfraquecida pelo mal-estar clínico vivido, valida o louvor a ela
direcionado por meio de um agradecimento (“<aham, tá... brigada>” – linha
816). Para a médica, Joana é “fera” por ser aluna do CEFET/RJ, personalizando,
assim, uma espécie de kit identitário de atributos valorados por uma comunidade:
esforço, dedicação aos estudos, responsabilidade, inteligência, prestígio, garantia
de futuro pelo estudo em uma escola qualificada etc.
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“NO::SSA, você estuda no


CEFE::T?” (linhas 809-810) “<AHA:M>” (linha 813)

“AH, você É FE::RA, “<aham, tá... brigada>”


hein?...” (linhas 813-814) (linha 816)

Na cena a seguir, Joana e Raquel narrativizam a notória influência do


CEFET/RJ no que tange à ressignificação de suas identidades para a comunidade
da qual fazem parte. As alunas adquirem um prestígio diante de suas famílias e
vizinhança, passando a figurar como personagens de histórias de sucesso dignas
de serem seguidas pelas gerações mais jovens. As identidades das alunas são
talhadas em função do êxito de terem sido aprovadas para uma instituição
publicamente consagrada e, por essa razão, Joana e Raquel tornam-se referências
notórias do quão representativo se faz o ethos de valorização da educação como
meio de melhoria de vida entre as camadas populares.
239

5.4.5.
Cena 20: “As pessoas falam como se você fosse um modelo”

845 Raquel Eu tenho uma irmã mais nova... aí, a, a minha


846 mãe fica assim... “ó, sua irmã passou pro
847 cefet... você pode ir estuda::ndo e tratando de
848 passar também”
849 Talita ((risos))
o
850 Raquel Não sei o quêo, todo mundo reconhece... >quando
851 eu passo< de unifo::rme.. “QUE I::SSO, HEIN?,
852 cefet, hein?”
853 Joana É, lá no meu condomí::nio, eu e minha irmã
854 >somos< a referência, assim... por causa disso,
855 que a minha irmã estudou na faetec... e::u
856 passei pro cefet, e a minha irmã passou pra
857 rura::l... e agora eu vivo nessa correria
858 estuda::ndo... aí todo mundo fala, “NO::SSA,
859 ó... a filha da Vânia”... minha mãe é
860 professora... “passou pra não sei ao::nde...
861 >passou pra não sei quê<, você também tem que
862 fazer i::sso”... >aí todo mundo<, otem atéo uma
863 vizinha que vai fazer prova pra cá... aí a mãe
864 dela fica... “ó, você ajuda a minha fi::lha,
865 he::in?... porque eu quero que ela passe >pra
866 estudar< que nem você passou pra lá::, hein? oQue
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867 não sei quêo”=


868 Talita [Aham ((risos))
869 Joana = é engraça::do, oassim, as
o
870 pessoas ... falam >como se você fosse um<
871 MODE::LO, assim, por estudar aqui no cefet.

(Joana e Raquel, 2 de outubro de 2009)

É possível observar, na cena 20, uma sequência de quatro narrativas curtas


interligadas pelo mesmo ponto: sinalizar o prestígio adquirido pelo aluno que
ingressa no CEFET/RJ, resultando no entalhe de sua auto-imagem como um
exemplo a ser seguido. Raquel dá início à sua performance com a elaboração de
duas narrativas encadeadas (linhas 845-852), que são imediatamente
complementadas pelas duas narrativas de Joana (linhas 853-867; 869-871). Essa
seriação de narrativas remete à noção de segundas histórias (Garcez, 2001;
Bastos, 2005), segundo a qual, no passo a passo da conversa cotidiana, é comum
que uma história seja construída a partir de uma primeira história, mantendo-se o
mesmo ponto ou tópico principal. O papel central dessa seriação reside na
construção da intersubjetividade dos narradores e na ratificação do pertencimento
a um grupo que partilha histórias em comum. Na co-construção narrativa tecida
por Raquel e Joana, cada história nova reforça o assunto apresentado pela anterior
240

e acrescenta, gradativamente, os exemplos vivos oriundos dos círculos sociais dos


quais as alunas fazem parte.
A primeira narrativa de Raquel coloca em cena os desdobramentos
proporcionados no seio familiar em função de seu ingresso no CEFET/RJ. Os
participantes que sobem a esse palco discursivo são sua mãe, sua irmã caçula e a
própria Raquel. A aluna formula uma fala relatada e dramatiza o que, na
construção narrativa de Raquel, corresponde a uma cobrança permanente da mãe
direcionada à filha caçula.

“ó, sua irmã passou pro cefet... você pode ir


estuda::ndo e tratando de passar também” (linhas 846-848)

Na performance narrativa de Raquel, temos acesso apenas à fala da mãe,


ocupando sua irmã caçula o lugar da escuta atenta e obediente aos valores
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ensinados, transmitidos pela mãe. A aprovação de Raquel no processo seletivo


para a UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ assume um status prestigioso e a
aluna, assim, passa a ser vista como modelo no qual se esmerar, um padrão a ser
seguido. O orgulho e felicidade pela presença da filha mais velha em uma
instituição de ensino de renome são transferidos para a caçula sob forma de
pressão familiar (“tratando de passar também.” – linhas 847-848). Se Raquel
já havia sido motivo de orgulho para sua família com o mérito de sua conquista, é
chegada a hora de sua irmã dar continuidade ao mesmo modelo de sucesso
personificado por Raquel. A mãe sinaliza, inclusive, as vias que devem ser
percorridas para se chegar ao mesmo feito da irmã: o estudo (“você pode ir
estuda::ndo” – linha 847). Na fala relatada construída por Raquel, o que a mãe
exige de sua filha mais jovem é a perpetuação do ethos de valorização da
educação como forma de melhoria de vida e de aquisição de prestígio. Raquel já
fizera sua parte; agora cabe à sua irmã dar continuidade a esse projeto familiar.
Na segunda, e curta, narrativa de Raquel, a aluna já se reporta ao modo
como a comunidade, em sentido mais amplo, avalia o status adquirido em função
de sua entrada na instituição. O resumo/abstract dessa narrativa mínima condensa
a noção concernente ao reconhecimento das pessoas, em sua totalidade, face ao
prestígio do CEFET/RJ e o que isso implica no que tange à construção identitária
de seus alunos (“todo mundo reconhece” – linha 850). Em seguida, a ação
241

complicadora é talhada com base em dois movimentos: o trânsito de Raquel, em


sua comunidade, portando os signos atrelados ao prestígio da instituição escolar
na qual estuda; e a reação da comunidade diante desses signos.

“QUE I::SSO, HEIN?, cefet,


“>quando eu passo< de
hein?” (linhas 851-852 )
unifo::rme” (linhas 850-851)

Assim como na cena 19, o uniforme da escola torna-se sinônimo da


excelência, da tradição e do prestígio sócio-historicamente construídos acerca do
CEFET/RJ. Vestir o uniforme da instituição, assim, é carregar (mesmo que de
modo indeliberado) no corpo todos esses valores prestigiosos. Raquel constrói
uma fala relatada em coro coletivo, como se os membros de sua comunidade
(“todo mundo” – linha 850) tivessem a mesma reação ao contemplarem Raquel
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vestindo o uniforme da escola. A pergunta “QUE I::SSO, HEIN?” (linha 851)


funciona, no nível pragmático, menos como indagação e mais como uma
exclamação de cunho elogioso, tal qual uma “cantada”, um flerte. Assim, o fato de
Raquel ser aluna do CEFET/RJ faz emergir todo um sistema de crenças e valores
relacionados ao prestígio e notabilidade da instituição e, portanto, motiva os
comentários elogiosos por parte daqueles atores sociais que, mesmo estando fora
desse universo escolar, não deixam de valorar positivamente esse ethos particular.
A terceira narrativa nessa sequência é construída por Joana e, desta vez, o
enfoque incide sobre a perspectiva da vizinhança acerca do prestígio adquirido
pelo ingresso da aluna em uma instituição considerada de qualidade. O CEFET/RJ
assume um lugar menos exclusivista e divide as atenções, no que diz respeito à
noção de prestígio e notoriedade, com outras instituições também renomadas
socialmente, como a FAETEC (linha 855) e a Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (“rura::l” – linha 857). Joana constrói, inicialmente, a cronologia das
aprovações em processos seletivos para essas instituições de ensino (linhas 855-
857), colocando em cena o percurso vivido por ela própria e por sua irmã mais
velha. Em seguida, a aluna reporta-se ao modo como sua localidade (materializada
na imagem do “condomí::nio” – linha 853) avalia tais aprovações nos concursos,
transformando Joana em exemplo a ser seguido pelas gerações mais jovens de sua
localidade (como acontecera na primeira narrativa de Raquel – linhas 845-848).
242

“a minha irmã estudou na


faetec” (linha 855) “NO::SSA, ó... a filha da
“e::u passei pro cefet” (linhas Vânia (...) passou pra não
sei ao::nde... >passou pra
855-856) não sei quê<, você também
“a minha irmã passou pra tem que fazer i::sso” (linhas
rura::l” (linhas 856-857) 858-862)
“agora eu vivo nessa correria
estuda::ndo” (linhas 857-858)

Por meio do uso de fala relatada, Joana constrói a avaliação de um “todo


mundo” (linha 858), que conversa com um “você” (linha 861), acerca dos valores
positivos relacionados à sua entrada em uma escola de renome. Segundo a
performance narrativa de Joana, o nome da instituição e do curso para os quais se
consegue a aprovação parece não assumir centralidade (“passou pra não sei
ao::nde... >passou pra não sei quê<” – linhas 860-861). Para essa voz que
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fala em nome de uma coletividade, representada pelo bairro, mais importante


parece ser a aprovação, em si, para instituições de boa qualidade e, da mesma
forma, que esse percurso possa ser replicável por outros sujeitos. É provável que o
“você” (linha 861) a quem se destina a fala relatada desse coro coletivo refira-se a
membros mais jovens da localidade que possam, ainda, seguir o exemplo de Joana
e sua irmã. Outro aspecto importante nesse movimento narrativo diz respeito ao
modo como a identidade de Joana é forjada nessa fala relatada em coro. Na
performance dessa coletividade, Joana é “a filha da Vânia” (linha 859), ou
seja, não é apresentada por seu nome próprio. Além disso, a aluna torna relevante
a profissão de sua mãe (“minha mãe é professora” – linhas 859-860). Esses
dois ingredientes na performance narrativa de Joana reverberam a noção de que o
ethos de valorização da educação como forma de ascensão social são tecidos no
âmbito familiar. A mãe de Joana, por ser professora, já circula por discursos que
conferem à educação um status dignificante, o que parece contribuir para a
perpetuação desses valores dentro de casa, com as próprias filhas.
Na quarta narrativa, Joana formula um exemplo vivo da valoração atribuída
por sua comunidade à educação formal em escolas tradicionalmente tidas como
qualificadas e prestigiosas. Joana desloca-se da construção de um painel mais
generalista a respeito dos valores de sua vizinhança para a tessitura de um
243

episódio local e contemporâneo ao momento da geração dessa entrevista. A aluna


conta a história de uma vizinha que prestaria concurso para a UnED de Nova
Iguaçu do CEFET/RJ (“otem atéo uma vizinha que vai fazer prova pra
cá” – linhas 862-863) e coloca em cena a mãe dessa vizinha e, com ela, todas as
expectativas em torno da aprovação de sua filha para a instituição.

“ó, você ajuda a minha fi::lha, he::in?... porque eu


quero que ela passe >pra estudar< que nem você passou
pra lá::, hein?” (linhas 864-865 )

Por meio do emprego de fala relatada, Joana dramatiza o pedido dessa mãe
para que Joana auxilie sua filha no preparo necessário à aprovação no processo
seletivo para o CEFET/RJ. Uma vez mais, Joana é construída discursivamente
como um exemplo a ser seguido, tendo em vista o status adquirido por ela ao se
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tornar aluna de uma instituição de renome (“eu quero que ela passe >pra
estudar< que nem você passou pra lá::, hein?” – linhas 865-866). É
preciso destacar, entretanto, que, ao invés de pautar-se na retórica do mérito
individual, do esforço solitário que se desdobra sob forma de êxito, a vizinha de
Joana torna relevantes as redes de solidariedade (“ó, você ajuda a minha
fi::lha, he::in?” – linhas 864-865) como caminhos para que sua filha
conquiste a aprovação para o CEFET/RJ. Com base em uma moralidade em torno
das relações de confiança, de amizade e de ajuda mútua, típica das trajetórias das
classes trabalhadoras (Duarte & Gomes, 2008), a vizinha credita o êxito futuro de
sua filha a um empreendimento coletivo, que envolve a interação entre os anseios
da filha com a experiência acumulada de Joana. Como a aluna já está
familiarizada com os meandros relacionados ao concurso e ao cotidiano da
instituição, isso é interpretado pela vizinha como uma experiência favorável no
sentido de apontar que caminhos devem ser percorridos por sua filha.
Se, por um lado, os alunos da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ mudam
seu status no âmbito da família e da localidade, deixando um legado a ser seguido
pelas gerações contemporâneas e/ou mais jovens, também esses alunos têm seus
modelos de referência dentro da própria instituição, o que pode favorecer a uma
alteração significativa nos seus projetos futuros. Na cena 21, a seguir, Kátia e
Joana compõem, conjuntamente, uma narrativa de mudança com base na
244

referência que se tornaram os docentes do CEFET/RJ no que tange à reelaboração


no campo de possibilidades (Velho, 1994) dessas alunas. O mundo anterior,
pautado em ambições mais enraizadas na localidade, é substituído por um outro,
novo, amplo e potencialmente provedor de uma vida melhor.

5.4.6.
Cena 21: “Pode estudar que dá!”

929 Kátia E eu acho que é legal também, assim, você...


930 é::, conhecer <novas histórias> dos
931 professores... na, na minha rede pública,
932 assim... no meu ensino fundamental, as minhas
933 professoras... a MAIORI::A tinha, tinha passado
934 pra faculdade particular... e aqui não... você
935 tem uma referência... totalmente difere::nte,
936 sabe?, a referência de professores, é::...
937 qualifica::dos, assim, que:: fazem mestra::do,
938 >doutorado<, que NÃO se CANSAM, sabe, de
939 estudar, que estão sempre ali busca::ndo... e
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940 você >olha aquilo e fala<, “cara::ca... se ele


941 consegue, eu também CONSIGO”, é uma coisa, é::
942 Joana [“quem sabe um dia eu não vou tá
943 aqui também” ((risos))
944 Kátia É::... <EXATAME::NTE>... é uma coisa assim,
945 é::... que te dá FORÇAS pra continuar ali... pô,
946 meu professor dá aula aqui::... pra CARA::MBA e
947 estu::da, faz, sabe... é muita::, é muito
948 assim... dá, cria novos... novas ideias na sua
949 me::nte, novos conceitos... mudou MUITA coisa
950 que eu pensava.
951 Joana Eu otinha assimo a intenção... “ah, vou fazer
952 faculda::de, acabou a faculdade, vou arranjar
953 meu empre::go e pronto”=
954 Kátia [eu vou trabalhar e <ACABO::U>
955 Joana = ago::ra NÃ::O... >terminou
956 a faculdade, quero fazer pós, quero fazer
957 mestrado, quero doutora::do<, e tudohh...
958 POSSÍ::VEL... até:: o último=
959 Kátia [é::... até o último.
960 Joana = pra ter a melhor qualificaçã::o,
961 pra, pra te::r... >tudo<... mas assim, acho
962 que:: cefet, é::
963 Kátia Porque antes da gente entrar aqui::... ou então
964 eu quero que eu vá viver >igual ao meu pai e a
965 minha mãe< ou então um pouquinho melhor,
966 sabe?... Assim, “ah, quero ter minha ca::sa, ou
967 então quero morar no meu apartame::nto”, assim,
968 você tem aquela ideia, mas hoje não... acho que
969 hoje você não tem só ideia assim, de
970 moradi::a... tem ideia assim... “ah, eu quero
971 VIAJA::R... eu quero::”... entendeu?
972 Joana Se fosse uma mansão, né? ((risos))
973 Todas ((risos))
974 Joana Ou um CARRÃ::O ((risos))
245

975 Kátia Até:: entã::o... é:: ((risos))... até então você


976 pensa assim... “ah, eu vou faze::r, minha
977 graduaçã::o e vou acaba::r”
978 Joana Arranjar um dinhe::iro
979 Kátia “Arranjar um empre::go e vo::u me sustentar e tá
980 tudo bem”, sabe? Mas quando você entra aqui::,
981 que você olha também, >acho que<, os professores
982 também são muito exemplo, osabeo?... que quando
983 você o::lha... “ah, pô... professora Alessandra
984 <VIAJO::U> pra... Estados Uni::dos... coisa
985 lega::l... eu também PO::SSO”, sabe?, “>cla::ro
986 que dá<”... acho que assim, tem um incentivo,
987 >essa coisa assim, de você<... REALMENTE...
988 ver... que:: é só você estudar que você
989 conse::gue chegar lá, sabe? É SIMPLES, gente...
990 pode estudar que dá ((risos))

(Joana e Kátia, 2 de outubro de 2009)

Kátia começa contando uma “história sobre as histórias” às quais teve


acesso no seu percurso como aluna da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ e que
assumiram relevância significativa em sua trajetória de vida. Nesse cenário, os
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personagens que encenam essas “<novas histórias>” (linha 930) são os


professores da instituição, construídos por Kátia não somente como modelos a
serem seguidos, mas como exemplos vivos da possibilidade real de ascensão
social via escolarização formal. A orientação inicial da narrativa da aluna
estabelece uma linha divisória que aparta dois universos simbólicos distintos: de
um lado, figuram os professores que lhe deram aulas durante o ensino
fundamental; do outro, localizam-se os professores do CEFET/RJ. A escola na
qual Kátia estudava anteriormente constitui um universo simbólico de “histórias
velhas”, ou seja, de um mundo já familiar à aluna, sem rupturas nesse enredo já
previsível. A familiaridade por esse contexto é tamanha a ponto de Kátia se
apropriar dele, por meio do uso de pronomes indicativos de posse (“minha rede
pública” – linha 931; “meu ensino fundamental” – linha 932; “minhas
professoras” – linhas 932-933). Já o CEFET/RJ é construído discursivamente
como um mundo divergente cujo ineditismo ganha visibilidade, em especial, pela
formação educacional de seu corpo docente (matriculado em cursos de
“mestra::do, >doutorado<” – linhas 937-938). Kátia constrói um valor
altamente positivo à qualificação de seus professores atuais, destacando o tipo de
instrução por eles adquirida.
246

Na escola de ensino fundamental No CEFET/RJ


“na minha rede pública” (linha “e aqui não” (linha 934)
931) “você tem uma referência...
“no meu ensino fundamental” totalmente difere::nte” (linhas
(linha 932) 934-935)

“as minhas professoras... a “a referência de professores,


MAIORI::A tinha, tinha passado é::... qualifica::dos” (linhas
pra faculdade particular” (linhas 936-937)
932-934) “que:: fazem mestra::do,
>doutorado<” (linhas 937-938)
“que NÃO se CANSAM, sabe, de
estudar” (linhas 938-939)
“que estão sempre ali
busca::ndo” (linha 939)

Alguns dispositivos linguísticos de avaliação contribuem na construção do


efeito de admiração na performance narrativa da aluna. Os atributos moralmente
validados por Kátia em relação aos seus professores são performados ora com
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fonologia expressiva, ora com prolongamento de vogais. A escola é


“difere::nte” (linha 935), os professores são “qualifica::dos” (linha 937) e
incansáveis (“NÃO se CANSAM” – linha 938), além de não se acomodarem com a
titulação adquirida; por isso é que, continuamente, estão “busca::ndo” (linha
939) se qualificar mais e mais.
É interessante notar que Kátia elenca poucos elementos de orientação para
caracterizar a identidade do corpo docente da escola de ensino fundamental.
Inicialmente, sabe-se, apenas, que havia um predomínio de professores formados
em instituições universitárias privadas (“a MAIORI::A tinha, tinha passado
pra faculdade particular” – linhas 932-934). Em nenhum momento, Kátia
menciona o tipo de instituição (se pública ou particular) onde estudaram seus
professores do Ensino Médio. Entretanto, somos capazes de reconhecer o
dualismo valorativo construído por Kátia, no qual a qualificação dos professores
do CEFET/RJ é colocada em lado oposto à formação universitária dos docentes de
sua escola de origem. A “faculdade particular” (linha 934) é construída,
assim, como metáfora inversa de todos os atributos tecidos em relação à trajetória
educacional (ascendente e incessante) dos docentes do CEFET/RJ.
Uma vez traçada essa cisão entre o mundo anterior e o atual, tecido com
base em “<novas histórias>” (linha 930), Kátia dá início à construção da
247

identidade de seus professores do CEFET/RJ como modelos a serem seguidos


(“uma referência” – linha 935) e legítimas fontes de inspiração e motivação
para os alunos da instituição. Kátia constrói discursivamente a ação do aluno que,
ao reconhecer nos professores do CEFET/RJ um exemplo de sucesso, ressignifica
suas práticas e passa a acreditar que sua própria vida pode seguir rumos
dignificantes, como é o caso de seus professores. Kátia se utiliza da fala relatada
como discurso interior (Tannen, 1989) para dramatizar o pensamento novo desse
aluno, referenciado de forma generalista por meio do pronome de tratamento
“você” (linha 940). Joana ratifica o ponto de Kátia, novamente através do
emprego desse tipo particular de fala relatada.

“você >olha aquilo e fala<, “cara::ca... se ele consegue, eu


também CONSIGO”” (linhas 940-941)
““quem sabe um dia eu não vou tá aqui também” ((risos))” (linhas
942-943)
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A constatação (“olha aquilo” – linha 940), por parte do aluno, de que um


modelo de sucesso alcançado pelos estudos está ali, bem diante de si, torna-se um
exemplo vivo e real do ethos de valorização da educação como meio de ascensão
social. A interjeição “cara::ca” (linha 940) constrói discursivamente uma
espécie de iluminação mental, uma descoberta por parte do aluno de que, sim, é
possível alcançar prestígio por meio da educação. A expressão popular “chegar
lá”, na qual o “lá” é sinônimo do lugar destinado à realização dos sonhos e
projetos do indivíduo, é ressignificada por Joana, substituindo-se o “lá” pelo
referente “aqui” (linha 943). Joana vislumbra pode chegar “aqui também” (linha
943) no futuro, ocupando o mesmo lugar de destaque de seus professores. Ser
docente da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ é, assim, construído como um
auge dessa escalada que confere status e respeitabilidade a quem não se cansa
(linha 938) de estudar. Soma-se a isso o fato de os docentes serem construídos
discursivamente como motivação para a continuidade nos estudos (“te dá
FORÇAS pra continuar ali” – linha 945), tendo em vista que o esforço
empreendido por esses professores, ao conciliarem as atividades de trabalho com
as de estudo (“meu professor dá aula aqui::... pra CARA::MBA e
estu::da” – linhas 946—947), é interpretado como algo recompensador.
248

Em seguida, Kátia e Joana co-constroem uma narrativa cujo ponto reside na


apresentação das mudanças provocadas em suas vidas graças à experiência
concreta de terem estudado em uma instituição com professores tão qualificados.
Kátia constrói a dimensão da mudança como algo que acontece no plano mental,
no nível do pensar. Dentro desse campo semântico associado à noção de
pensamento, figuram as intenções, as opiniões, as reflexões, os projetos, os sonhos
desses alunos.

“cria novos... novas ideias na sua me::nte” (linhas 948-949)


“novos conceitos” (linha 949)
“mudou MUITA coisa que eu pensava.” (linhas 949-950)

Essa mudança conceitual, de pensamento, é elaborada com base na


caracterização das intenções do passado em contraposição aos projetos ideados na
atualidade (ou seja, depois de os professores do CEFET/RJ já figurarem como
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modelos a serem seguidos). A construção discursiva dos anseios situados no


passado de Kátia e Joana é permeada por uma série de recursos linguísticos de
metanarração, como os já comumente empregados nas narrativas anteriormente
discutidas (a fonologia expressiva, o alongamento de vogais, a alternância no
ritmo da fala, entre outros). Assume particular destaque, aqui, a fala relatada como
discurso interior, utilizada na dramatização dos pensamentos e desejos dessas
alunas no que tange à utilidade prática dos conhecimentos aprendidos na escola.
Dentre os verbos (ou locuções verbais) empregados, predominam os volitivos
(“vou fazer” – linha 951; “quero ter” – linha 966; “vo::u me sustentar” –
linha 979; entre outros) e os de pensamento (“Eu otinha assimo a intenção” –
linha 951; “você pensa” – linhas 975-976). É curioso notar que tudo aquilo que
essas alunas almejam antes de serem alunas do CEFET/RJ (“antes da gente
entrar aqui::” – linha 963) está intimamente ligado a valores bastante caros às
classes populares em geral: o trabalho (“eu vou trabalhar” – linha 954), a
família (“viver >igual ao meu pai e a minha mãe<” – linhas 964-965), o
enraizamento à localidade (“quero ter minha ca::sa” – linha 966), a
sobrevivência (“vo::u me sustentar” – linha 979), o estudo sob uma visão
mais instrumental (“acabou a faculdade, vou arranjar meu empre::go e
pronto” – linhas 952-953). As alunas parecem construir uma função para o
249

estudo como instrumento que proporcionaria uma condição de vida estável, por
meio da entrada no mercado de trabalho, para dar cabo das expectativas já
previsíveis em relação ao lugar social dos filhos das classes trabalhadoras. Os
poucos movimentos de afastamento da condição social herdada pelas alunas
figuram como mobilidade relativa e bastante sutil, não chegando a constituir uma
ruptura nos enredos previstos para elas. Os anseios de Kátia e Joana são, assim,
circunscritos pelo tripé família/trabalho/localidade (Duarte, 1986); viver “um
pouquinho melhor” que os pais” (linha 965) ou morar no próprio apartamento
(linha 967), ao invés da casa, já figurariam como situações acima do esperado.

ANTES DEPOIS
“Eu o o
tinha assim a intenção... “>terminou a faculdade, quero
“ah, vou fazer faculda::de, fazer pós, quero fazer
acabou a faculdade, vou mestrado, quero doutora::do<,
arranjar meu empre::go e e tudohh... POSSÍ::VEL... até::
pronto”” (linhas 951-953) o último=” (linhas 955—958)
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“eu vou trabalhar e <ACABO::U>” “= pra ter a melhor


(linha 954) qualificaçã::o, pra, pra
te::r... >tudo<” (linhas 960-961)

“ah, eu quero VIAJA::R... eu


“ou então eu quero que eu vá quero::” (linhas 970-971)
viver >igual ao meu pai e a
minha mãe< ou então um
“ah, pô... professora
pouquinho melhor” (linhas 963-965) Alessandra <VIAJO::U> pra...
Estados Uni::dos... coisa
“ah, quero ter minha ca::sa, ou lega::l... eu também PO::SSO”,
então quero morar no meu
sabe?, “>cla::ro que dá<” (linhas
apartame::nto” (linhas 966-967)
983-986)
“você pensa assim... “ah, eu
vou faze::r, minha graduaçã::o
e vou acaba::r”” (linhas 975-976)

“Arranjar um empre::go e vo::u


me sustentar e tá tudo bem”
(linhas 979-980)

Os anseios e enredos até então previstos para Kátia e Joana mudam de rumo
quando constroem a influência que o CEFET/RJ proporcionara em suas vidas. Os
estudos universitários já não são o fim, mas o começo de uma jornada que envolve
uma sequência ascendente e cumulativa de estudos: “quero fazer pós, quero
fazer mestrado, quero doutora::do” (linhas 956- 957). Já não basta
estudar para ingressar no mercado de trabalho, mas estudar “tudohh...
250

POSSÍ::VEL... até:: o último=” (linhas 957-958). Se antes o objetivo era


fixar-se à localidade pela aquisição de moradia (linhas 966-967), agora o desejo é
deslocar-se, afastar-se dos mecanismos enraizadores (“eu quero VIAJA::R” –
linhas 970-971). Todas essas mudanças nos projetos e desejos das alunas estão
coerentes com a construção narrativa do início da presente cena: apresentar os
professores do CEFET/RJ como modelos de sucesso a serem seguidos. Não à toa,
Kátia ilustra, por meio de uma pequena narrativa, um exemplo desses professores
em quem se esmerar: trata-se de Alessandra (nome fictício), professora de língua
inglesa que, no ano em que os dados da presente entrevista foram gerados, havia
feito uma viagem para o exterior. O episódio é construído por Kátia como
situação exemplar de um sonho possível de ser realizado.

“ah, pô... professora Alessandra


<VIAJO::U> pra... Estados Uni::dos...”
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“coisa lega::l...” “eu também PO::SSO”

AVALIAÇÃO RESOLUÇÃO

A viagem para o exterior é construída por Kátia como possibilidade real


para si própria, e não mais um anseio longínquo. Alessandra é talhada como
exemplo concreto do modelo que os professores do CEFET/RJ se tornam para os
alunos da instituição. A viagem da professora passa a ser vista como resultado
final de todo investimento, feito pela coletividade dos professores, na educação
contínua. Aquela professora que, assim como tantos outros docentes da
instituição, trabalha e não se cansa de estudar (conforme construído por Kátia na
linha 938), torna visíveis suas condições de poder viajar, bem como os
significados prestigiosos associados a esse deslocamento espacial para um país
estrangeiro (por exemplo, saber falar uma língua estrangeira, conhecer outras
pessoas lugares, além da própria questão financeira). Kátia constrói uma relação
de causa e efeito e, tomando como referência a experiência vivida pela professora
Alessandra, elabora o que poderia ser considerado a fórmula da ascensão social:
“é só você estudar que você conse::gue chegar lá, sabe? É SIMPLES,
gente... pode estudar que dá ((risos))” – linhas 988-990.
251

Considero que a cena 21 apresenta, de forma mais evidente, o quão notório


é esse ethos de valorização da educação como meio de ascensão social,
especialmente quando as evidências dessa mobilidade ascendente são
experienciadas concretamente. No caso de Kátia, ter testemunhado a realização de
um acontecimento valorado positivamente, como é o caso da viagem da
professora de inglês, figura como prova real de que “estudar vale a pena”, que
estudar faz a pessoa “chegar lá” (linha 989). Isso só foi possível, entretanto,
porque Kátia, assim como Joana, migrou de uma escola para outra. Nesse
deslocamento, tiveram acesso a “novas histórias” (linha 930) que desencadearam
uma mudança no seu campo de possibilidades (Velho, 1994), bem como uma
transformação identitária. O trânsito por outras narrativas, experiências de vida e
ethos ressignifica os conceitos e projetos dessas alunas; sendo assim, nessa
travessia, Kátia e Joana transformam-se em outras e, com isso, seus percursos
futuros também assumirão outras feições.
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As seis cenas analisadas na presente seção temática traz para o palco


interacional da vida em sociedade os impactos identitários proporcionados pela
passagem dos alunos participantes desta pesquisa pela UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ. O ingresso na instituição é construído, nas narrativas aqui estudadas,
como um ponto de virada (Mishler, 2002) em suas trajetórias de vida. A noção de
mudança é tecida como a aquisição de uma condição melhor em comparação à
herdada. O CEFET/RJ é construído discursivamente como um mundo novo que
insere o aluno em um novo repertório de significados, tornando-o um indivíduo
diferente, modificado pelo trânsito por esferas jamais percorridas anteriormente.
Dentre os valores emergentes nessas narrativas de mudança, destacam-se: o
prestígio adquirido pelo aluno do CEFET/RJ, tornando-o um modelo de sucesso a
ser seguido; a significativa alteração do campo de possibilidades desse indivíduo;
e o desenraizamento da condição de origem.
Passarei, agora, à estação final desse itinerário percorrido pelos alunos da
UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ com o que intitulo narrativas de destino. O
último eixo temático da análise de dados do presente trabalho trata,
especificamente, do modo como os alunos constroem o fim dessa trajetória dentro
da instituição e as expectativas em relação ao porvir. Foram destacadas duas cenas
nas quais a noção de destino não se desvencilha da forma como os alunos avaliam
o próprio percurso vivido dentro da escola. Ou seja, o futuro é moldado
252

discursivamente em função do modo como os alunos interpretam seu passado e de


como, nessa trajetória, suas identidades foram forjadas.

5.5.
O destino

O termo “destino” pode sugerir diferentes conotações: direção, meta,


finalidade, sorte, acaso, enfim, futuro resultante ou não da vontade do sujeito.
Considero essa ambiguidade conceitual particularmente produtiva, uma vez que
constitui o cerne das narrativas de destino que aqui serão apresentadas. Ao
narrativizarem o que esperam para suas vidas futuras, é comum que os alunos do
CEFET/RJ construam seus destinos como uma escolha relativamente planejada; é
o caso, por exemplo, dos relatos que projetam a entrada no mercado de trabalho
ou na universidade. De modo similar, são constantes as histórias relacionadas às
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dúvidas do porvir, sendo o futuro construído como o lugar das incertezas e do


ingresso a um mundo dotado de outro tipo de sociabilidade. Algo particularmente
notório nas narrativas dos alunos da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ diz
respeito ao forte vínculo com a instituição, uma espécie de nó relacional que faz a
noção de futuro ser atravessada por certa imprecisão e estranhamento em relação
ao mundo “fora do CEFET/RJ”.
Na cena 22, Joana, Kátia e Raquel co-constroem suas rotas de vida, após a
conclusão dos estudos de Ensino Médio-Técnico no CEFET/RJ, como de difícil
previsão, tendo em vista o forte vínculo com seu presente vivencial, ainda na
condição de alunas da instituição. Assim, a vida a ser trilhada fora das
dependências da instituição é construída com base na reafirmação do presente das
alunas dentro do CEFET/RJ.

5.5.1.
Cena 22: “Hoje eu não me vejo fora”

658 Talita Agora o que eu tô:: achando interessante também


659 é que vocês estão falando mesmo assim do, do...
660 em momentos de desâ::nimo, que dá vontade de
661 ficar... né, de jogar bara::lho, quer ver os
662 amigos, né... cês num... num SAEM da escola, né?
663 Vocês permanecem no espaço da escola, ou
664 então... PRÓXIMOS, né?, aqui em fre::nte, né..
665
253

666 como é que vocês se identificam <com a


667 escola>?... Que vínculo é esse que vocês têm com
668 a escola? Como é que vocês se veem dentro da
escola?
669 Joana Hoje eu não me vejo fora, oassimo... não consigo
670 imaginar =
671 Raquel [é estra::nho imaginar
672 Joana =ano que vem como... vou ACORDA::R e
673 não vai ter mais cefet pra mim? Eu vou PRA
674 O::NDE? ((risos))
675 Todas ((fala simultânea))
676 Joana Acho que... viro::u... >meio que segunda casa<,
677 acho que a prime::ira casa, né, porque a gente
678 passa mais tempo aqui::... <do que lá>. Às vezes
679 não tem nada pra fazer aqui de importante,
680 “ah... vou pra esco::la, ué... vou ficar
681 lá::”... g::osto do cefet... eu me sinto BE::M
682 aqui.
683 Kátia Eu também... eu me sinto em casa.
684 Joana >Saio falando com todo< mu::ndo, eu chego...
685 brinco com o Lula... aí passo >ali na cantina<,
686 brinco com as meninas que trabalham ali::... aí
687 >passo no pátio<, brinco com todo mu::ndo...
688 então eu já::... assim, >interajo com todo<
689 mu::ndo, é::... eu não me vejo assim, ofora
690 daquio... eu acho que vai ser obastante::o...
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691 difícil quando eu... “mãe, otenho que ir pro


692 cefet hoje nãoo. Vou ficar em CASA”... que que eu
693 vou fazerhh?
694 Kátia Eu acho que >vai tem um dia que eu vou<
695 acorda::r, vou vestir o uniforme da esco::la e
696 vou pro ponto do ô::nibus... minha mãe vai lá me
697 buscar, “minha fi::lha, que que tá acontecendo?”
698 ((risos))

(Joana, Raquel e Kátia, 2 de outubro de 2009)

A cena 22 é motivada por uma curiosidade suscitada em mim ao longo de


uma troca de turnos (anterior à sequência interacional aqui apresentada) na qual as
alunas constroem discursivamente o tipo de sociabilidade comum ao seu cotidiano
como alunas do CEFET/RJ. Chamaram-me particular atenção alguns relatos seus
sobre uma espécie de vida paralela àquela de sacrifício e exaustão típicos da rotina
de estudos de boa parte dos alunos da instituição. Essa vida paralela caracterizava-
se por atividades nem sempre valoradas positivamente pela comunidade escolar e,
também, nos discursos do senso comum: “matar aulas” para ficarem no pátio da
escola jogando baralho ou conversando com os amigos, ou mesmo para
participarem de celebrações festivas em lanchonetes ou casas vizinhas à própria
escola, ocupava o cotidiano dessas alunas de modo tão significativo quanto às
obrigações associadas à vida estudantil. Minha curiosidade residia no fato de as
254

alunas permanecerem nas dependências da escola mesmo tendo infringido a


lógica tradicional de que deveriam, em tese, assistir às aulas, e não fugir delas. Por
que não se deslocavam para outros lugares para que a “infração” não fosse
descoberta? Não estariam sujeitas às penas da instituição caso fossem “flagradas”
matando aula? Enfim, que lógica justificaria a permanência delas no espaço
escolar ainda que estivessem fazendo “algo errado”, segundo o olhar da
instituição? Esses questionamentos servem de contexto para o turno que inicia a
cena 22 (linhas 658- 668).
Indago-as, assim, acerca do tipo de vínculo construído entre as alunas e a
instituição. A forte identificação com a escola origina a co-construção de uma
narrativa pautada na oposição entre o liame identitário tecido dentro da escola e a
desestabilização proporcionada pela iminente condição de estarem fora da escola.

“Como é que vocês se veem dentro da escola?” (linhas 667-668)


“Hoje eu não me vejo fora” (linha 669)
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O resumo/abstract da narrativa iniciada por Joana (e, em seguida,


complementada por Raquel e Kátia) constrói o forte vínculo entre a aluna e a
instituição, vínculo este que, uma vez desfeito, pode provocar uma espécie de
apagamento identitário (“não me vejo fora” – linha 669). A oposição “dentro”
(linha 667) vs. “fora” (linha 669) sustenta uma cisão entre o presente, marcado
pela afeição à escola, e o futuro de Joana, assinalado pelas noções de imprecisão,
incerteza e desorientação.

“não consigo imaginar =” (linhas 669-670)


“=ano que vem como... vou ACORDA::R e não vai ter mais cefet pra
mim? Eu vou PRA O::NDE? ((risos))” (linhas 672-674)
“que que eu vou fazerhh?” (linhas 692-693)

O fato de Joana estar no último ano do curso técnico de Enfermagem é


utilizado pela aluna como elemento de orientação que contribui na construção
dessa tensão entre as certezas do presente e a desorientação a ser vivida no futuro.
Hoje, Joana sabe o que fazer e para onde ir logo assim que seu dia começar: basta
que dê sequência à sua rotina previsível de acordar (linha 672), ir para a escola,
voltar para casa e, no dia seguinte, repetir essa mesma rotina circular (como visto
255

na análise na cena 11). No “ano que vem” (linha 672), Joana já terá concluído
seu ciclo como estudante do CEFET/RJ, possivelmente originando outra
sequência de atividades rotineiras que, por enquanto, não figuram no seu
repertório de projeções (“não consigo imaginar =” – linhas 669-670),
tampouco no de Raquel (“[é estra::nho imaginar” – linha 671). Emerge,
assim, uma performance narrativa/identitária de desorientação justificada pela
incerteza e insegurança do porvir. O emprego de orações interrogativas ressalta
esse sentido de desorientação provocado pela exclusão do CEFET/RJ da rotina
diária da aluna: “não vai ter mais cefet pra mim?” (linha 673); “Eu vou
PRA O::NDE?” (linhas 673-674); “que que eu vou fazerhh?” (linhas 692-693).
É interessante notar o modo como Joana e Kátia atribuem às suas
respectivas mães o papel de testemunhas oculares da desorientação vivida quando
o CEFET/RJ deixa de figurar como centro de referência a partir do qual suas
rotinas vivenciais são tecidas. O emprego da fala relatada, como importante
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recurso metanarrativo, reconstrói diálogos não ainda ocorridos por se tratar de


situações imaginadas acerca desse futuro incerto, sem o CEFET/RJ em suas vidas.

“eu acho que vai ser o


bastante::o... difícil quando eu... “mãe,
o
tenho que ir pro cefet hoje nãoo. Vou ficar em CASA”... que que
eu vou fazerhh?” (linhas 690-693)

“Eu acho que >vai tem um dia que eu vou< acorda::r, vou vestir o
uniforme da esco::la e vou pro ponto do ô::nibus... minha mãe vai
lá me buscar, “minha fi::lha, que que tá acontecendo?” ((risos))”
(linhas 694-698)

As ações imaginadas por Joana e Kátia parecem não fazer o menor sentido.
A perda de referência das alunas, construída com base na retirada do CEFET/RJ
de suas vidas, torna suas hipotéticas ações futuras situações absurdas e sem nexo.
“Ficar em CASA” (linha 692) é interpretado por Joana como algo incomum e
ilógico, pois o significado do seu dia-a-dia está atrelado ao seu agir dentro da
escola. Sem o CEFET/RJ, não há o que Joana fazer (linhas 692-693). Kátia
narrativiza um dia qualquer de seu futuro no qual reproduziria uma sequência de
ações típicas de seu cotidiano atual: acordar (linha 695), vestir seu uniforme (linha
695), tomar o transporte público rumo à escola (linha 696). A surpresa de sua
mãe, dramatizada via fala relatada (“minha fi::lha, que que tá
256

acontecendo?” – linha 697), justifica-se dado ao absurdo na repetição de um


ritual destinado a um lugar não mais existente em sua vida. As alunas, assim,
situam a família (aqui presenciada por suas respectivas mães) como instância que
testemunha a perda de sentido de suas vidas quando o CEFET/RJ sai de cena e
que, ao mesmo tempo, vivencia os efeitos dessa desorientação existencial.
Joana aponta que o CEFET/RJ tornou-se “>meio que segunda casa<,
acho que a prime::ira casa” (linhas 676-677) para as alunas e esse valor
atribuído à instituição onde passam boa parte de seu tempo (“porque a gente
passa mais tempo aqui::... <do que lá>” – linhas 677-678) pode criar
inteligibilidade acerca desse sentido de desorientação construído no nível do
discurso. Entre as camadas populares, a casa é entendida como lócus privilegiado
de sociabilidade, legítimo reduto de relacionalidade, de partilha de práticas
cotidianas por um tempo continuado. É o recinto destinado ao aconchego familiar,
à proteção, à afetividade, aos laços de confiança e amizade. Apartada dessas
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referências tão emblemáticas, ou seja, longe daquilo que considera ser sua
“prime::ira casa” (linha 677), Joana vê-se à deriva, sem destino certo. O futuro
da aluna é coberto por uma bruma de incertezas, uma vez que não consegue
vislumbrar o porvir longe de suas raízes.
Joana (ratificada por Kátia e Raquel) constrói discursivamente o sentido de
insegurança em torno de seu destino longe do CEFET/RJ em virtude de uma
dificuldade em desenraizar-se desse lugar tornado casa, no qual se sente amparada
e amiga de todos. Da linha 684 à 690, a aluna sequencia uma ação complicadora
com verbos no presente do indicativo a fim de caracterizar sua rotina dentro das
dependências da instituição. A narrativa de Joana é tecida com base em um forte
ethos de receptividade e relacionalidade, como se as dependências da UnED de
Nova Iguaçu do CEFET/RJ fosse transformada em uma espécie de quintal de
casa. Não à toa, Joana emprega, por três vezes, o verbo “brincar” (linhas 685, 686,
687), ressaltando a construção do espaço escolar como lócus vivencial de prazer e
aconchego, bem como esfera privilegiada para o estabelecimento de relações
interpessoais. A aluna elabora uma construção sintática paralelística na qual
sequencia seis orações no tempo presente: cada movimento empenhado pela aluna
destina-se a uma brincadeira com os sujeitos sociais que transitam pelo espaço da
escola. Os movimentos encadeados pela aluna procuram reconstruir
discursivamente o caminho que se percorre da entrada da escola até o pátio
257

(localizado no térreo do prédio). Ao chegar à instituição (“eu chego” – linha


684), Lula, nome fictício para o funcionário que trabalha fazendo serviços de
manutenção na escola, é o primeiro com quem Joana brinca (“brinco com o
Lula” – linha 685). Dando prosseguimento aos seus passos, Joana já dirige sua
diversão às funcionárias da cantina (“aí passo >ali na cantina<, brinco
com as meninas que trabalham ali::” – linhas 685-686). Por fim, ao chegar
ao pátio, o prazer da relacionalidade destina-se a uma coletividade de sujeitos que
transitam nesse “quintal” (“aí >passo no pátio<, brinco com todo
mu::ndo” – linhas 686-687). Na narrativa de Joana, uma gradação ascendente
constrói o passo a passo da sociabilidade de quintal que caracteriza esse contexto:
a cantina é expandida para o pátio; um único funcionário passa a um grupo de
funcionárias até chegar à plena coletividade – “todo mu::ndo” (linha 687, 688-
689). O CEFET/RJ é construído como um mundo prazeroso, divertido e bastante
familiar a Joana. Conceber um destino para si própria longe de todos esses valores
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tão caros à aluna provoca-lhe um forte sentido de desorientação. A escola é


entendida como lugar que lhe proporciona afetividade e conforto e que colabora,
sobremaneira, na tessitura de sua identidade social (“eu não me vejo assim,
fora daquio” –
o
linhas 689-690). Assim, sem a escola, Joana perde o rumo e suas
referências identitárias.

“>Saio falando com todo< mu::ndo” (linha 684)

“eu chego” (linha 684) “brinco com o Lula” (linha 685)

“aí passo >ali na cantina<” “brinco com as meninas que


(linha 685) trabalham ali::” (linha 686)

“aí >passo no pátio<” (linhas 686- “brinco com todo mu::ndo” (linha
687) 687)
“então eu já::... assim, >interajo com todo< mu::ndo”
(linhas 688-689)
“eu não me vejo assim, ofora daquio” (linhas 689-690)

Diferentemente do sentido de desorientação performado por Joana, Kátia e


Raquel, a noção de destino é construída por outro viés na próxima (e última) cena
a ser aqui discutida. Na cena 23, Manuela procura juntar os fios dessa trama para
procurar criar inteligibilidade acerca de seu percurso como aluna do CEFET/RJ e
os desdobramentos vivenciais dessa trajetória. Manuela reconstrói passado e
258

presente na tentativa de forjar seus projetos futuros e, de modo bastante peculiar,


metaforiza seu momento atual de vida como um “rito de passagem”.

5.5.2.
Cena 23: “Agora eu tô vivendo um novo rito de passagem”

808 Talita Uhum. E você? Cê acha que tua en-, cê já falou


809 um pouco isso no início, mas agora cê tá no...
810 no último ano do técnico, né... já concluiu o
811 mé::dio... cê me falou que vai fazer um concurso
812 na semana que vem, né... como é que você se vê,
813 assim, depois desse tempo de ensino médio e
814 agora quase o final do técnico... como é que a
815 tua vida tá agora... em função desses trê::s,
816 quase quatro anos aqui dentro?
817 Manuela Eu conheço, >pude conhecer< muito mais o
818 cefe::t... pude conhecer... as pessoas que
819 trabalham aqui::... foi muito bo::m... é::, to
820 me preparando agora pra... pros concursos da
821 vida, né... da minha área de enferma::gem...
822 estou me preparando pra... o ene::m, pra entrar
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823 na faculda::de... quero entrar na faculda::de...


824 VOU entrar na faculda::de... e::... estou me
825 preparando pra essa, pra esse RITO de passagem,
826 né... inclusive >um dos temas< da::... da prova
827 que EU FIZ foi essa, ensino médio, rito de
828 passagem.
829 Talita Ah, é verdade... o tema da redação.
830 Manuela [inclusive foi ESSA a redação
831 que eu escrevi.
832 Talita Ah, foi?
833 Manuela Foi, foi essa a redação que eu escrevi... e::...
834 e assim agora eu tô vivendo um novo rito de
835 passagem, sair daqui do cefe::t... e ir pra
836 faculdade... e assim, que é uma coisa que eu
837 almejo, que era ( )... e estou me esforçando
838 pra isso... é sobre aquilo, o que você tem, você
839 tem que se esforçar e conseguir.

(Manuela, 29 de junho de 2009)

A cena 23 corresponde a um recorte da parte final da entrevista com


Manuela no qual indago a aluna acerca de seus possíveis projetos para o futuro.
Em conversa informal ocorrida entre nós duas na semana anterior à entrevista,
Manuela havia me dito que estava em vias de prestar um concurso de nível médio
para sua área de formação. Com base no conhecimento de que a aluna estava
concluindo seu ciclo de estudos na instituição (“agora cê tá no... no último
ano do técnico, né... já concluiu o mé::dio” – linhas 809-811) e na
259

minha lembrança dessa nossa conversa informal (“cê me falou que vai fazer
um concurso na semana que vem, né” – linha 811-812), solicito que Manuela
elabore um autorretrato identitário (“como é que a tua vida tá agora” –
linhas 814-815) com base nessa experiência vivida como aluna do CEFET/RJ
(“em função desses trê::s, quase quatro anos aqui dentro?” – linhas
815-816). A partir de então, Manuela constrói uma sequência narrativa
englobando três movimentos temporais: a avaliação do passado; as ações do
presente; e os anseios para o futuro.

“Eu conheço, >pude conhecer< muito mais o


cefe::t” (linhas 817-818)
PASSADO “pude conhecer... as pessoas que trabalham
aqui::” (linhas 818-819)
“foi muito bo::m” (linha 819)

“to me preparando agora pra... pros


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concursos da vida, né... da minha área de


PRESENTE enferma::gem” (linhas 819-821)
“estou me preparando pra... o ene::m, pra
entrar na faculda::de” (linhas 822-823)

“quero entrar na faculda::de” (linha 823)


FUTURO “VOU entrar na faculda::de” (linha 824)

No que tange à reconstrução de seu passado, Manuela elabora uma


avaliação externa (“foi muito bo::m” – linha 819) que valora positivamente o
conhecimento oportunizado pelo contato com os funcionários da instituição. Em
seguida, a aluna desloca-se temporalmente para o momento presente, construído
como uma preparação contínua para exames de seleção quer para o mercado de
trabalho (“da minha área de enferma::gem” – linha 821), quer para o ingresso
no ensino superior (“o ene::m, pra entrar na faculda::de” – linhas 822-
823). O emprego de locuções compostas pelo gerúndio do verbo “preparar” (“to
me preparando” – linhas 819-820; “estou me preparando” – linha 822)
ressaltam essa noção de ação permanente e contínua. É interessante notar que
Manuela refere-se aos processos de seleção como “concursos da vida” (linhas
820-821), sugerindo ser o curso da existência humana uma eterna competição para
260

a qual é preciso estar permanentemente preparada. Já o futuro de Manuela é


construído em termos volitivos: a entrada para a universidade é desejada (“quero
entrar na faculda::de” – linha 823) e, por esse motivo, interpretada como
meta a ser alcançada (“VOU entrar na faculda::de” – linha 824).
Para moldar discursivamente seu destino, seu futuro após o tempo de
permanência no CEFET/RJ, Manuela utiliza-se da metáfora da qual me apropriei
ao longo de todo este trabalho: a noção de passagem, de trânsito, de travessia. O
término de seus estudos no CEFET/RJ e seu consequente ingresso no ensino
superior é construído como um rito de passagem (linhas 825, 834-835), uma
espécie de ritual de iniciação a uma nova cultura. Para poder entrar nesse novo
mundo, Manuela destaca a necessidade da prévia urdidura (“estou me

preparando pra essa, pra esse RITO de passagem” – linha 824-825), do


esforço contínuo (“e estou me esforçando pra isso” – linhas 837-838), bem
como do desejo de ser iniciada a essa cultura (“é uma coisa que eu almejo” –
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linhas 836-837). Manuela recupera a lembrança da prova de redação que fizera na


ocasião do processo seletivo que prestara para ingresso no CEFET/RJ, cujo tema
era “Ensino Médio: rito de passagem”. Já vimos, na discussão das cenas 2 e 10, o
quão significativa foi a aprovação de Manuela no concurso para discentes da
UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. A aluna interpreta seu momento atual de
vida com base na reconstrução do ciclo por ela experienciado quatro anos antes,
quando ingressara na instituição.
A noção de passagem é bastante notória, aqui, pois metaforiza o próprio
processo de mobilidade ascendente que caracteriza a trajetória de Manuela. Sua
entrada na UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ correspondeu à migração do
Ensino Fundamental, sua condição de origem na ocasião, para o Ensino Médio em
uma instituição tradicional e renomada. A passagem de uma condição para a outra
implicou um investimento civilizatório no que tange ao aprendizado de rotinas e
saberes que tornariam Manuela membro legítimo dessa nova cultura. Passados
quatro anos inserida nesse contexto não mais tão novo a ela, Manuela interpreta
sua iminente saída do CEFET/RJ como uma repetição do mesmo rito vivido
anteriormente. Desta vez, o mundo novo que a aguarda é o contexto universitário,
construído discursivamente como projeto individual a ser alcançado pela via do
esforço e da dedicação. A cada trânsito de uma cultura a outra, atravessa-se um
novo rito de passagem.
261

RITO DE PASSAGEM CEFET/RJ RITO DE PASSAGEM

Entrada no CEFET/RJ 4 anos de Ensino Entrada para a


Médio/Técnico em universidade
Enfermagem

Seja por uma perspectiva mais individualizante, como é o caso da


performance narrativa/identitária de Manuela (cena 23), seja por uma noção de
enraizamento capaz de provocar certa apreensão pelo porvir, como na narrativa
co-construída por Joana, Kátia e Raquel (cena 22), evidencia-se o reconhecimento
dos alunos quanto ao notório papel de sua estada na UnED de Nova Iguaçu do
CEFET/RJ. Independente das narrativas que o destino lhes reserva, estas serão
contadas, sem dúvida, em função do passado e do presente experienciados e de
tudo o que foi construído em termos de moralidades, crenças e identidades sociais.
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Na seção seguinte, teço as considerações finais a respeito do percurso


investigativo aqui empreendido, sem, com isso, pretender adotar um caráter
terminante e absoluto ou alcançar verdades definitivas.
6
Considerações finais

“Muita gente nem acreditava mais em mim. Teve momentos que eu até duvidei, sabe?
Depois que eu peguei o resultado, eu falei: chegou a minha vez.”57
Breno58 – ex-aluno da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ

Chegar ao item destinado às considerações finais de uma tese de Doutorado


pode sugerir a concepção de que, após os anos dedicados à pesquisa teórica e de
campo, um resultado final e conclusivo é, enfim, alcançado, possibilitando, assim,
a socialização de seus achados com a comunidade acadêmica. Não pretendo,
entretanto, conferir um tom conclusivo e definitivo ao presente trabalho,
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tampouco postular generalizações que possam ser replicáveis ao estudo de outros


contextos sociais. Não considero que a conclusão dessa pesquisa seja uma “linha
de chegada”, ou “ponto final” desse percurso investigativo, tendo em vista que
toda pesquisa sobre a vida social está sujeita a ressignificações, releituras, tensões
e embates. Desde o capítulo introdutório do presente estudo, procurei caracterizá-
lo como um lugar de passagem. No trânsito de fluxos e contra-fluxos da pesquisa,
ocorre um entrelaçamento de enredos, de posicionamentos teórico-metodológicos
e de trajetórias de vida. Continuarei, desse modo, apropriando-me da metáfora da
passagem para reconstruir as principais ideias discutidas ao longo do trabalho,
rever criticamente o caminho trilhado e apontar encaminhamentos acerca dos
próximos passos.
O percurso teórico adotado procurou aliar duas áreas de conhecimento, a
meu ver, complementares, tendo em vista a preocupação de ambas em olhar
sistematicamente para as práticas e padrões de organização da vida social.

57
Declaração gerada em janeiro de 2012 em conversa entre mim e o ex-aluno em uma das
redes sociais da Internet. Na ocasião, o aluno comunicou-me a notícia de que havia sido aprovado
para o curso de Admnistração Pública na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), após ter concorrido à vaga pela nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM). Breno havia sido jubilado da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ por ter sido
reprovado na 1ª série do Ensino Médio por dois anos consecutivos.
58
Nome fictício.
263

Primeiramente, investi em uma revisão teórica acerca dos estudos narrativos sob
uma perspectiva interacional, desde os trabalhos fundadores até as revisões
contemporâneas dos modelos pioneiros de se olhar para a organização da
experiência humana via padrões narrativos. Foi dada particular ênfase à
organização estrutural da narrativa (Labov, 1972), à noção de performance
narrativa/identitária e sua relação com a apresentação do self (Goffman, 2007
[1975]; Bauman, 1986; Riessman, 1993, 2008) e à concepção da pesquisa como
um fazer narrativo. Em um segundo momento, focalizei reflexões advindas das
Ciências Sociais, mormente da Antropologia das sociedades complexas.
Conceitos bastante caros à discussão antropológica contemporânea foram
apresentados, dentre os quais se destacam as noções de projeto (Schutz, 1962;
Velho, 1994), ethos (Geertz, 1989) e mobilidade social no âmbito das camadas
médias (Velho, 2002 [1973]; 2008 [1981]) e das classes populares (Duarte, 1986;
Duarte e Gomes, 2008; Lamont, 2000). Destacou-se, também, a notoriedade
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assumida pelo ethos de valorização da educação como meio de ascensão social em


boa parte das classes trabalhadoras, para as quais o estudo corresponde ao
percurso digno e prestigioso de se superar os signos da precariedade e vislumbrar
uma melhoria de vida. A proposta metodológica buscou integrar dois movimentos
para a análise e interpretação dos dados: a) a descrição densa e microscópica
(Geertz, 1989) do contexto investigado, por meio da utilização de métodos
etnográficos familiares à pesquisa social; b) a análise da materialidade discursiva
(em especial, dos recursos linguísticos de avaliação ou de metanarração – Labov,
1972; Bauman, 1986) das narrativas dos atores sociais participantes da pesquisa,
as quais foram geradas em situação de entrevista. Assumo a noção de que o olhar
atento para as performances narrativas dos sujeitos sociais – ou seja, como se
apresentam no palco interacional da vida em sociedade via padrões narrativos –
aliado à observação direta e prolongada do universo em investigação corresponde
a um caminho para a perspectiva êmica do nativo (Duarte & Gomes, 2008).
Foram analisadas vinte e três cenas constituídas das performances
narrativas/identitárias de alunos do Ensino Médio/Técnico da UnED de Nova
Iguaçu do CEFET/RJ, escola, localizada na Baixada Fluminense, integrante da
rede pública federal de ensino profissionalizante de nível médio e importante
personagem na minha pesquisa. Essas cenas foram agrupadas em cinco eixos
temáticos cuja proposta foi apresentar e discutir, didaticamente, as moralidades
264

construídas, pela via do discurso, nas performances narrativas/identitárias dos


alunos participantes da pesquisa, buscando compreender em que medida esses
valores e crenças afiliam-se ao ethos que enxerga na educação formal um caminho
para a melhoria de vida dos membros das classes trabalhadoras. Três questões de
pesquisa nortearam o percurso analítico:

a) Que valores e imagens de si emergem nas performances narrativas dos


alunos da UnED de Nova Iguaçu?
b) Como a organização da narrativa (em especial os dispositivos avaliativos
– ou metanarrativos) contribui para a construção desses valores e
imagens de si?
c) Em que medida esses valores vinculam-se a um ethos de ascensão social
via escolarização?
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O primeiro eixo temático intitulou-se narrativas de chegada e objetivou


apresentar relatos que tratassem da entrada desses alunos na instituição via
processo seletivo discente. As narrativas que tratam da experiência vivida por
esses alunos ao serem aprovados no concurso para o CEFET/RJ são carregadas de
intensa carga emocional e dramática, construída discursivamente por dispositivos
formais de avaliação. A dramatização da emoção vivida pelo aluno e pela
coletividade que o circunda (familiares, amigos, integrantes das escolas onde
estudaram anteriormente, por exemplo) é tecida por meio de recursos linguísticos
tais como fonologia expressiva, alongamento de vogais, alternância no ritmo da
fala, emprego da fala relatada, entre outros. A entrada na instituição é
caracterizada como um momento de excepcionalidade, o que motiva que essas
narrativas de chegada sejam contáveis e se tornem emblemas da felicidade e do
orgulho pela aprovação no difícil e concorrido processo seletivo. A chegada ao
CEFET/RJ é construída como uma trajetória de auto-afirmação individual que
auto-engrandece o aluno aprovado por meio do enaltecimento da luta e da
dedicação investidas para se alcançar o objetivo de tornar-se aluno da instituição.
É importante ressaltar, entretanto, que nem sempre a chegada ao CEFET/RJ é
narrada como um projeto singular, uma escolha planejada por antecipação, ou
como um sonho do indivíduo. Por vezes, a entrada na instituição é construída
como um episódio ocasional ou motivado por fatores outros não necessariamente
265

relacionados a uma escolha individual, tais como a proximidade com a residência,


as indicações e emergências familiares, etc. Considero, assim, que as narrativas de
chegada à UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ pautam-se em dois ethos
coexistentes: um relacionado a movimentos de auto-afirmação pela luta
empreendida pelo indivíduo, e outro associado a valores e anseios mais
coletivistas. Nesse último caso, é notório o papel da família desses alunos na
circunscrição das escolhas e caminhos tomados por eles.
As narrativas de origem, segundo eixo temático da análise de dados,
procuraram dar visibilidade ao ponto de partida desses alunos: sua procedência em
relação à localidade, às escolas anteriores ao CEFET/RJ e à família. Nas
narrativas apresentadas, observou-se a tessitura de uma cisão identitária opondo
dois universos simbólicos díspares. A Baixada Fluminense é construída
discursivamente em torno de um referente “aqui” colocado em oposição a um
“ali”, ou “lá embaixo”, rementendo à capital do Estado do Rio de Janeiro. Nessa
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cisão conceitual, “aqui” é caracterizado como o lugar das ausências, do descaso,


do abandono, ao passo que “lá embaixo” é o reino das benesses e oportunidades.
As escolas de origem, em especial as integrantes da rede estadual de ensino, são
construídas sob os signos da precariedade, uma vez que não promovem sequer o
mínimo esperado de uma instituição educacional: os estudos, preferencialmente
de qualidade. Em oposição às escolas de origem, figura o CEFET/RJ como lócus
de aquisição de hábitos diferentes das ações cotidianas nas escolas anteriores. O
CEFET/RJ é construído, assim, como caminho que propiciará o afastamento da
condição original dos alunos: as noções de precariedade e escassez atribuídas às
escolas da região e à própria Baixada Fluminense são substituídas pelo valor da
oportunidade de redescrição dessas noções em outras bases. Já a família, ente
moral fundamental no seio das classes populares, figura como intituição
responsável por apresentar às gerações mais jovens o valor da escolarização como
forma de superar a condição herdada de precariedade. Não à toa, o ingresso dos
alunos no CEFET/RJ é, por vezes, construído como um projeto tecido no âmbito
familiar. A família é construída, também, como ente transmissor de outros ethos,
tais como o da proteção/vigilância e do sustento e o da honra sustentada no tripé
trabalho-conjugalidade-religião.
As cenas constituintes do terceiro eixo temático foram nomeadas narrativas
de (per)curso. Considero esta a seção da análise de dados que apresenta uma
266

maior incidência de dispositivos formais de avaliação (ou metanarração) e,


portanto, pode-se dizer que as narrativas de (per)curso são as mais performáticas
em comparação aos demais eixos temáticos. Ao relatarem o caminho vivido
dentro da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ, os alunos dramatizam as
dificuldades e obstáculos enfrentados nesse percurso, especialmente em virtude da
falta de base de conhecimentos advindos do Ensino Fundamental. O sacrifício
experienciado é performado por meio do emprego de diversos recursos
linguísticos, principalmente pela utilização de fonologia expressiva e de
intensificadores. A rotina dos alunos da instituição, apresentada com verbos no
presente do indicativo, é marcada pela retórica do martírio que leva à exaustão
corpórea. Constroem-se as atividades dentro da escola como um acúmulo
crescente e acelerado de afazeres o qual torna o tempo escasso. Em suas
narrativas, os alunos parecem bastante cientes da necessidade de criarem
mecanismos para superarem essas dificuldades, sob pena de serem submetidos às
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experiências da reprovação e da evasão escolar, vistas como indícios de fracasso


nesse contexto específico. É interessante notar que essa performance do sacrifício
nesse cotidiano de dificuldades de proporções tamanhas em nenhum momento
constrói uma imagem negativa para a instituição. Em outras palavras, não se
critica o CEFET/RJ pelo sofrimento proporcionado a esses alunos. A superação
das dificuldades é construída discursivamente como uma performance de
dedicação e obstinação que enobrece identitariamente esse aluno que “vai à luta”
e vence as dificuldades diante dele colocadas. Já nas narrativas sobre reprovação
ou evasão escolar, o que, no senso comum, seria interpretado como um sinal de
fracasso é ressignificado pelos alunos em termos de aquisição de responsabilidade
e amadurecimento. Considero que essa retórica do sacrifício e da dor que
enobrecem o sujeito fundamenta-se no valor honroso atribuído à luta e à
dedicação, típico de boa parte das camadas populares.
As narrativas de mudança tratam, fundamentalmente, da construção
discursiva das trajetórias desses sujeitos antes e depois de tornarem-se alunos do
CEFET/RJ e o que isso implica em termos de redescrição identitária. A dimensão
da mudança é o indício mais notório da mobilidade identitária vivenciada por
esses alunos, além de figurar como um valor emergente nos demais eixos
temáticos, inclusive. Nessas narrativas, a entrada no CEFET/RJ é sempre
construída como uma mudança positiva que confere um status mais elevado aos
267

alunos: veem-se como sujeitos mais amadurecidos e responsáveis, mudam de


pensamentos, tornam-se um modelo a ser seguido, enfim, transformam-se em
pessoas melhores. Em outras palavras, o trânsito pelo CEFET/RJ é construído em
termos de migração identitária para melhor e de aquisição de um status prestigioso
validado publicamente. A comunidade de origem reconhece, no aluno do
CEFET/RJ, os mesmos signos sócio-historicamente atribuídos à instituição. O
simples uso do uniforme escolar aciona uma espécie de kit identitário que confere
ao aluno um conjunto de características prestigiosas: inteligência, dedicação,
apreço aos estudos, exemplo de sucesso e notoriedade para as gerações mais
jovens. Vale ressaltar que essa mudança nas trajetórias de vida desses alunos
envolve um certo desenraizamento de sua condição original herdada. A escola de
bairro, fechada e permeada pelo ethos da localidade, é substituída por um mundo
novo, mais amplo e potencialmente transformador dos repertórios de
conhecimento e do campo de possibilidades desses alunos. O CEFET/RJ é
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construído como lócus de acesso a enredos diferentes daqueles a que estavam


acostumados esses alunos anteriormente. Nesse sentido, confere-se relevância ao
papel desempenhado pelos professores da instituição, apresentados como
evidências cabais de que o estudo é o caminho para a ascensão social. Mesmo a
prosperidade material, performada no exemplo da professora que viajou para os
Estados Unidos, é construída como resultado do investimento da educação formal
contínua e permanente.
Por fim, o quinto e último eixo temático coloca em cena o futuro desses
alunos fora das dependências da instituição, depois de já terem percorrido todo o
caminho construído nos eixos temáticos anteriores. As narrativas de destino
apontam que os caminhos a serem trilhados podem ser duvidosos, permeados de
incertezas e inseguranças, mas também podem figurar como projetos
relativamente planejados. As tensões relacionadas ao que o destino reserva para
esses alunos estão ligadas, a meu ver, a uma coexistência de ethos própria das
sociedades moderno-contemporâneas. No caso particular das narrativas aqui
analisadas, os alunos participantes da pesquisa, como membros das camadas
populares da Baixada Fluminense, vivenciam as ambiguidades de colocarem em
vigor seus projetos, pautados em processos de auto-afirmação, sem se apartarem
por completo de suas raízes locais.
268

A análise das narrativas dos alunos da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ


em muito pode contribuir para a compreensão dos valores e crenças moralmente
reconhecidos como válidos nessa instituição em particular, bem como na região
geográfica em que está situada (a Baixada Fluminense). O projeto institucional do
CEFET/RJ, desde suas origens, está vinculado a um ideal de modernização e de
constituição de indivíduos que atendam a esse projeto modernizador. Por outro
lado, parto da visão de que, ao ser inaugurado na Baixada Fluminense, o
CEFET/RJ ressignifica-se, agrega novas vozes, incorpora novos valores. As
narrativas aqui estudadas sugerem a coexistência de dois ethos particulares: de um
lado, um ethos marcado por processos de individualização e auto-afirmação,
propiciados, em especial, pelo investimento na educação escolarizada; de outro,
um ethos de solidariedade local e de relacionalidade, tipicamente associado às
classes populares. A educação, como processo civilizador e instaurador de novos
discursos, inevitavelmente propicia uma migração identitária em relação à
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condição original herdada pela família e pela localidade. Por outro lado, a
valoração atribuída à escolarização formal como meio de ascensão social é algo
que se dá no próprio seio familiar. O desafio desses alunos residiria, então, na
conciliação desses ethos: melhorar de vida, sem que isso signifique um
afastamento total da relacionalidade local.
Considero que os alunos participantes da presente pesquisa pertencem a
camadas sociais menos pauperizadas da Baixada Fluminense, cujos membros
poderão, em algum momento, ascender às chamadas camadas médias. Entretanto,
essa aquisição de uma condição social superior à de sua origem é construída como
algo que não se dá sem renúncias e trabalho incansável; daí compreende-se o fato
de situações desastrosas ou fracassadas, ou que envolvam extremo grau de
dificuldade ou cansaço, serem ressignificadas como êxito: é a retórica do “plantar
agora para colher depois”, do sacrifício que “vale a pena” porque realizado em
nome de um bem maior: a possibilidade de aquisição de prestígio e de ascensão
social por meio da educação em uma instituição renomada. Não pretendo,
entretanto, pintar a imagem de uma Baixada Fluminense una, monolítica, onde
todos os seus habitantes respondem por esse ethos de valorização da educação
como meio de ascensão social. Para muitas famílias da região, a subida de nível
na escala social pode ser valorizada por outros caminhos que não o da
escolarização, ou pode nem ser uma questão a ser perseguida. Prefiro pensar em
269

termos de uma Baixada Fluminense plural, multifacetada, marcada pela dinâmica


da coexistência. Nesse sentido é que minha pesquisa focaliza uma parcela
específica desse universo plural chamado Baixada Fluminense: trata-se de um
ramo social menos pauperizado que se percebe como em condições de
proporcionar algum tipo de melhoria de vida para as gerações futuras. O acesso
aos estudos, à educação de qualidade, é concebido como a via mais segura,
honesta e digna de “subir de vida”.
Os dados da minha pesquisa parecem dimensionar a UnED de Nova Iguaçu
do CEFET/RJ como uma espécie de microcosmo das transformações vivenciadas
pela própria Baixada Fluminense em tempos mais recentes, a saber:

a) a construção de um novo valor de indivíduo, circunscrito, entretanto,


em trajetórias de classes populares;
b) a tessitura de outras narrativas sobre a Baixada Fluminense, buscando-
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se uma crescente valorização e auto-afirmação da região e de seus


habitantes, especialmente em termos simbólicos;
c) um investimento de muitas famílias em projetos de ascensão social de
seus descendentes via escolarização, sem que isso implique,
necessariamente, um desenraizamento, um afastamento da localidade
(um querer “subir na vida”, sem precisar “afastar-se de casa”).

Com relação aos alunos-narradores participantes do presente estudo, não


posso deixar de destacar o perfil diferenciado que os caracteriza. Todos eles, de
uma forma ou outra, são sujeitos engajados com a escola e suas atividades. Os
membros do grêmio estudantil são bastante atuantes na instituição e,
especialmente no que diz respeito aos problemas internos da escola, apresentam-
se socialmente como pessoas questionadoras e conscientes do papel por eles
ocupado. Os candidatos à bolsa de Iniciação Tecnológica buscavam uma
participação dentro da escola a partir da inserção em práticas de pesquisa que,
como resultado, os tornariam alunos com uma formação adicional àquela
oferecida aos demais discentes. É provável que alguns candidatos estivessem
ligeiramente mais interessados no auxílio financeiro propiciado pela bolsa (o que
considero um interesse legítimo) que na prática de pesquisa em si, porém a
preocupação em aprimorar seu currículo formativo e em contribuir com
270

conhecimentos para a própria instituição era notória na fala desses alunos.


Manuela, por iniciativa própria, criou um projeto de extensão dentro da UnED
cujo objetivo era oferecer aulas preparatórias para o processo seletivo do
CEFET/RJ, destinadas a alunos de escolas públicas da região. A aluna
considerava importante que a instituição atuasse, de forma mais direta, em
benefício dos jovens moradores da redondezas e, motivada por, também, residir
nas proximidade, montou o projeto, submeteu-o a apreciação ao Conselho de
Extensão (na Unidade Maracanã) e articulou todos os procedimentos necessários
para que o projeto entrasse em vigor. Joana, Raquel e Kátia, que não eram
membros do grêmio estudantil nem candidatas a vaga de Iniciação Tecnológica,
insistentemente pediram que eu as entrevistasse, pois, diziam, queriam muito
contribuir com a minha pesquisa.
Esse perfil específico, de engajamento e participação ativa na escola, por
parte dos alunos entrevistados pode, de alguma forma, ter sido decisivo na
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construção discursiva do CEFET/RJ, sempre apresentado de maneira tão positiva.


Isso não implica dizer, entretanto, que as inteligibilidades emergentes deste estudo
sejam distorcidas e impeditivas a que se chegue a considerações importantes
quanto aos valores da comunidade em estudo. Dentro desse perfil de engajamento
dos entrevistados, suas trajetórias de vida dentro e fora da instituição diferenciam-
se, uma vez que são entrecortadas por outras narrativas, marcas identitárias e
afiliações ideológicas. Inegavelmente, caso os narradores fossem outros, as
performances narrativas/identitárias também seriam construídas diferentemente.
Da mesma forma, caso o contexto de geração de dados fosse outro, novos achados
e interpretações seriam trazidos à baila. É preciso considerar, também, que todos
os alunos entrevistados me conheciam dentro da escola como membro do corpo
docente e eram sabedores de que esses dados de entrevista seriam parte do meu
material de análise durante meus estudos de doutoramento. Em outras palavras, as
performances narrativas/identitárias desses alunos eram construídas
especificamente para mim.
As narrativas aqui estudadas podem ser entendidas como uma espécie de
alento, um último lampejo de esperança aos muitos atores sociais direta ou
indiretamente atuando no sistema educacional brasileiro. Cada vez mais, fala-se
sobre a falência da educação no Brasil, especialmente a pública. Relatos de
professores insatisfeitos com a profissão e com a baixa remuneração; índices
271

exponencialmente crescentes de repetência e evasão escolar; notícias sobre a


precarização dos espaços escolares tanto no aspecto material quanto humano;
manchetes sobre as distintas faces da violência nas escolas (seja pelo bullying,
pelo tráfico de entorpecentes, pela entrada de armas de fogo no espaço escolar);
insegurança, intranquilidade e descrença conduzindo as ações de professores e
alunos. Em suma, um quadro devastador e de desesperança se instaura,
proporcionando o desmoronamento de valores morais e crenças em torno da
importância da educação e das escolas no mundo contemporâneo. As narrativas
dos alunos da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ são uma voz dissonante frente
ao coro de lamentos e descrédito de boa parte dos educadores brasileiros. Pode
haver quem duvide disso, mas estamos diante de um contexto no qual os alunos,
em grande maioria, amam a escola e têm profundo orgulho da instituição e das
redes de sociabilidade e conhecimento nela construídas. Nesse sentido, a presente
pesquisa também dá visibilidade a experiências bem sucedidas no campo
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educacional e a estudantes que ainda acreditam que a educação possa fazê-los


melhorar de vida – por mais que os noticiários digam o contrário disso.
As lacunas de agora serão, em futuro breve, convertidas em novas questões
de pesquisa. Durante a análise dos dados do presente trabalho, algumas
indagações emergiram como resultado do próprio exercício de interpretação das
narrativas orais, com base nos saberes e valores construídos nas práticas sociais
cotidianas deste contexto particular. Interessou-me aprofundar, por exemplo, a
possível relação entre os valores do trabalho, do sacrifício e do mérito individual
com as moralidades religiosas de orientação cristã evangélica, típica de maior
parte do alunado da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ. Intrigou-me, também, a
invisibilidade das questões etnicorraciais nas narrativas desses alunos,
considerando-se que quase metade do grupo entrevistado era negra ou não-branca.
Em interlocuções com alunos da Unidade Maracanã (onde leciono atualmente) e
com colegas professores, sugeriram que eu comparasse os valores sociais nas
narrativas de alunos de outras unidades de ensino do sistema CEFET/RJ, a fim de
verificar se há diferenças sensíveis entre os ensejos dos alunos em localidades
sócio-geográficas diferentes. Também sugeriram que o mesmo empreendimento
investigativo fosse feito com os professores da escola (seria a chegada ao
CEFET/RJ também uma ascensão social para o professor?). Independente dos
caminhos a serem percorridos, considero que a interface entre a análise micro da
272

performance narrativa/identitária e o olhar atento para a observação da vida social


à luz análise antropológica deva continuar sendo a tônica dos próximos
empreendimentos investigativos. Os movimentos de desestabilização, as
heterogeneidades, os conflitos internos das narrativas, as ambiguidades, os
posicionamentos morais dos narradores frente aos eventos narrados ganham
visibilidade pelo esforço contínuo de se compreender as práticas sociais, sem
deixar de lado a centralidade da linguagem.
Por fim, gostaria de salientar, uma vez mais, a forte imbricação entre a
pesquisa aqui empreendida e a minha própria história de vida. Conforme buscava
leituras sobre os temas aqui explorados e mergulhava na análise dos dados
etnográficos e de entrevistas, via minha própria vida sendo relida e reconstruída à
minha frente. Reconheço nos valores erguidos pelos alunos participantes dessa
pesquisa muitas das minhas próprias crenças, construídas no universo das classes
populares da Baixada Fluminense desde os tempos de menina até os dias atuais.
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Fiz da UnED de Nova Iguaçu do CEFET/RJ a minha própria casa. Estando eu em


permanente estado etnográfico, fui convidada a refletir sobre a relevância que esse
ethos de valorização da educação como meio de ascensão social assume na minha
família e na constituição da minha própria identidade social. Hoje, percebo-me
como uma igual, em diversos aspectos, a esses alunos da UnED de Nova Iguaçu
do CEFET/RJ: somos todos mulatos, nordestinos e pobres (mas não miseráveis)
buscando, pela via da educação, construir uma bela narrativa para nossas vidas,
famílias e localidade. Talvez isso justifique o intenso afeto que tenho por essa
escola. Talvez isso explique o dilema vivido por mim quando fui convidada para
coordenar a Pós-Graduação Lato Sensu do CEFET/RJ, o que me obrigaria a pedir
transferência para a Unidade Maracanã e não mais atuar na UnED de Nova
Iguaçu. Talvez isso dê um contorno ainda mais interessante aos rumos dessa
pesquisa (na verdade, uma meta-pesquisa) que, almejando dar visibilidade a uma
camada social que vislumbra na educação um “outro futuro”, acaba
caracterizando-se, também, como um empreendimento auto-etnográfico. Assim,
nossos enredos e trajetórias de vida vão se entrelaçando no trânsito entre o resgate
do passado, a construção do presente e a projeção de um futuro a conquistar.
Volte sempre, a casa é sua!
7
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279

ANEXO
Convenções de transcrição

... pausa não medida


. entonação descendente ou final de elocução
? entonação ascendente
, entonação de continuidade
- parada súbita
═ elocuções contíguas, enunciadas sem pausa entre elas
sublinhado ênfase
MAIÚSCULA fala em voz alta ou muita ênfase
ºpalavraº palavra em voz baixa
>palavra< fala mais rápida
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0812835/CA

<palavra> fala mais lenta


: ou :: alongamentos
[ início de sobreposição de falas
] final de sobreposição de falas
( ) fala não compreendida
(( )) comentário do analista, descrição de atividade não verbal
“palavra” fala relatada, reconstrução de um diálogo
hh aspiração ou riso
↑ subida de entonação
↓ descida de entonação

Convenções baseadas nos estudos de Análise da Conversação (Sacks, Schegloff e


Jefferson, 1974), incorporando símbolos sugeridos por Schifrin (1987) e Tannen
(1989).

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